COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Circus

Crônicas e reflexões.

Adauto Suannes
sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Carol

Carolinda é o nome dela. E ela faz questão de não desmentir quem lhe deu um nome tão belo. Sabem quem escolheu esse nome para ela ? Foi a comadre da madrinha dela, que, por sinal, é casada com o pai do irmão dela. Ela tem uns olhinhos puxadinhos, coisa que só um anjo pode fazer nas crianças antes de elas nascerem. Esse anjo foi contratado especialmente pelos pais dela, porque, normalmente, ele só repuxa olhos de criancinhas chinesas. Os olhos da Carol foi uma gentileza especial daquele bondoso anjinho. Os cabelos dela então, nem te digo! São rolinhos e mais rolinhos de cabelo, que, vistos de longe, parecem nuvens sapecas. E ainda tem uns rolinhos bem pequeninhos na nuca e atrás das orelhas, que estão só esperando espaço para crescerem e ficarem do tamanho dos demais. A mãe da Carolinda penteia os cabelos da menina com muito cuidado, que é para não acordar os filhotes de beija-flor que às vezes nascem dentro daqueles cachinhos dourados. É muito comum haver ninhos de passarinho dentro dos cachinhos da Carol e se os cabelos dela forem penteados sem muito cuidado, podem-se quebrar alguns ovinhos ou serem acordados os filhotes que esperam a mãe para trazer-lhes comida. E aí é um berreiro danado. Um dia desses, depois do jantar, os pais perguntaram aos filhos o que eles queriam ser quando crescessem. O irmão da Carol foi muito prático: "quando eu crescer eu vou querer ser adulto !". Palmas para ele. "E você Carol ?". Os pais teriam de adivinhar qual seria a escolha feita por ela. Ela subiu na mesa, pegou um pão de queijo, tirou toda a massa de dentro daquela bolota e ficou só com a casca na mão. Aí ela cobriu o narizinho minúsculo dela com aquela casca de pão de queijo. "Adivinhem o que eu vou ser quando crescer!". A mãe pensou bastante, olhou aquele narigão e disse: "Vai ser uma tartaruga!". Todos riram muito, pois nunca haviam visto uma tartaruga com um nariz daqueles. Essa dona Vavá, onde está com a cabeça ? O pai também arriscou: "você vai ser um pé de carambola!". Mais risos, pois ninguém jamais tinha visto carambola redonda. Seu Carlito, mas que fora! O irmão pensou, pensou e concluiu que não dava para adivinhar só com aquela indicação. Ele queria mais. Aí ela se pôs a dar cambalhotas sobre a mesa. Agora ele já estava em condições de dar sua opinião. "Você vai ser um ventilador!". Nana, nina, não. Erraram todos. Carol pegou uma fatia de bolo de chocolate e deu nela a maior mordida que ela conseguiu. Aquele chocolate se espalhou pela cara da menina, aumentando a boquinha dela, que agora parecia uma bocarra enorme. O pai, a mãe e o irmão viram aquilo, olharam um para o outro e chegaram à conclusão de que ela, quando crescesse seria uma comedora profissional de bolo de chocolate. Que gente sem imaginação! Então ela abriu as pernas e os braços, formando uma enorme letra X e disse: "quando eu crescer eu vou ser palhaça!". Todos deram palmas e vivas. Os pais da Carol subiram na mesa e abraçaram a filha, contentes com a precoce vocação demonstrada por sua menina. "Grande escolha, minha filha. Médico, advogado, motorista de táxi, varredor de rua, sapateiro e costureira qualquer um pode ser. Mas palhaço não é para qualquer um. Palhaça, então, é para pouquíssimas. Parabéns! Parabéns!" E não pararam mais de dar beijos e mais beijos na pobre da Carol, que não tinha mais espaço no rosto para tantas beijocas. Desse dia em diante, a menina passou a aprimorar sua vocação. "Não basta ter vocação, é necessário aperfeiçoar-se" dizia-lhe o pai, que era professor de alguma matéria de nome complicado numa escola de nome ainda mais complicado. Deixa pra lá. O que importa é que a Carol agora não subia para seu quarto à noite, quando ia dormir, nem descia para a sala de manhã, logo que acordava, do modo como faziam as demais pessoas da casa. Ela subia e descia andando sobre o corrimão da escada. A rigor, para ela não era mais corrimão, era corripé. Quando ela já estava craque em subir e descer pelo corripé, ela dava umas piruetas enquanto subia e enquanto descia. Uma gracinha! Outra coisa que a Carolinda fazia era ir até o supermercado andando com as mãos e tendo as perninhas esticadas para cima, com os dois pezinhos lá em cima, olhando a paisagem. Ela usava um macacão que tinha uns nove bolsos, todos eles com zíper, que era para não ficar espalhando moedas pela rua. Se você for a um supermercado e vir um par de pés passeando na altura das prateleiras, pode procurar mais embaixo que vai encontrar a carinha da Carol. A vendedora já conhece a menina e faz um pacote com as compras, colocando com todo o cuidado sobre os dois pés juntos da Carol, que assim carrega o pacote até sua casa. Outra coisa que ela pretende fazer é brincar com malabares. Sabe o que é isso ? São aquelas garrafas feitas de madeira, pintadas de branco, como se fossem pinos de jogo de boliche. É por isso que quem joga aquelas garrafinhas para cima e fica equilibrando no nariz ou na testa se chama malabarista. Alguns desses malabaristas até aparecem na rua, diante do nosso carro, quando o sinal de trânsito está com a luz vermelha para nós. Por enquanto, ela treina com laranjas. Ela joga com três laranjas. A mão direita joga a primeira laranja para cima. Quando a laranja está lá em cima, a mão direita lança a segunda laranja. Enquanto uma está subindo, a outra já está caindo na mão esquerda. Nesse momento a mão direita lança a terceira laranja. E o processo continua. O segredo é movimentar a mão direita mais depressa do que o movimento das laranjas. Com o tempo ela vai aumentar o número de laranjas, até chegar a umas sete ou nove. Ela tentou fazer esse malabarismo usando ovos, que são um pouco menores do que as laranjas e cabiam melhor na mãozinha dela. O resultado foi que nunca se comeu tanto omelete naquela casa como depois que ela começou esse tipo de treino. Nem ela agüentava mais tanto omelete, motivo pelo qual preferiu voltar às laranjas. O sonho da Carol é realizar um número sensacional, desses que vão levar o nome dela para a lista dos maiores malabaristas de todos os tempos. Ela vai comprar um fio de prata muito resistente, vai amarrar uma ponta dele na canela do porteiro do teatro onde ela irá apresentar seu número. A outra ponta ela vai amarrar na batuta do maestro que ficará no palco, regendo os músicos que farão aquele tralalalalala que antecede o número final do espetáculo. Embaixo do fio esticado ficarão os boquiabertos espectadores, com seus fraques e roupas longas. Terminado o repique do tambor, virá um silêncio enorme. Até pum de borboleta vai dar para ser ouvido, diz ela. Aí ela vem lá de fora, pede licença ao porteiro, que lhe estenderá a mão. Ela sobe no fio de prata e vem caminhando lentamente sobre ele. Um pé de cada vez. Às vezes ela finge que vai cair, só para provocar aquele Oh dos que estão vendo o espetáculo. À medida que ela caminha sobre o fio de prata, vem a parte inesperada do show: dos cachinhos dourados da cabeça dela vão saindo colibris, patativas, sabiás, tico-ticos e sanhaços, que voam em círculo por dentro do teatro. O público aplaude, sem imaginar o gran finale, que é como os artistas denominam o ponto mais alto do espetáculo: quando a Carol chega ao palco, o maestro lhe estende a mão e ela desce graciosamente apoiando-se no braço do gentil cavalheiro. Quando ela se volta para o público, do último dos cachinhos de seus cabelos sai uma arara azul, completamente azul, que dará uns vôos pelo palco, gritando "Carol, Carol!" Depois a arara subirá, subirá, até que o seu azul se misturará com o azul do céu. Ainda falta acertar uns detalhes finais. Depois disso ela sumirá do palco ? Voltará até a porta pelo fio de prata ? Ela diz que ainda tem muito tempo para decidir isso.   1Do livro Descontos para meus netos, em preparação  
sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Easy Rider

Mais um fim de semana que se anuncia perdido. Por um dá cá aquela palha ele e a mulher discutindo em plena sexta-feira. "Pela tua moderníssima expressão dá para perceber a influência de tua mãe na educação do filho querido. Bah! Nem morta ela nos dá sossego!" Dentro dele acendeu a luz vermelha. Daí para a frente não haveria mais como travar uma troca de opiniões civilizada, pois quando a mulher resolve brigar com a sogra, melhor é sair de perto e deixar que as duas se entendam. Ele sempre reconheceu que a dedicação de sua mãe, tentando ensinar isto e mais aquilo à futura nora não daria certo. "Ela é como uma filha para mim" dizia a velha. Por isso mesmo é que eu temo que isso não vá dar certo, mamãe. A senhora não prefere deixar que ela aprenda isso com a verdadeira mãe dela. "Quem, aquela ignorante ? Só porque faz empadinhas e vende na feira ela acha que tem condições de ensinar alguém a ser uma dona de casa ?" Deu no que deu. "Quando a senhora quiser vir ver seus netos, não se esqueça de me telefonar antes, para que eu possa programar a sua visita" observara-lhe a nora, já mãe do casal de filhos. Ela, de avó, passou a ser visita! Pode ? Um repentino infarto resolveu aquele constrangimento das duas. O único problema é que o espírito da velha agora fazia o que o corpo jamais se atrevera fazer: dormir na mesma cama do casal. Era o que ele dizia à esposa, quando a discussão enveredava pelos caminhos do passado. Tua mãe isto, tua mãe aquilo. Crente em tudo o que havia ouvido nas sessões de terapia de casais, ele renunciara a muitos de seus divertimentos de solteiro, em nome da paz doméstica. Não apenas as saídas com as colegas de escritório, mas o futebol das quartas-feiras à noite, o cachimbo fumado na sala e, acima de tudo, os filmes de arte, em especial os do Ingmar. "Aquela chatice em branco e preto, falado em uma língua incompreensível, com uma lentidão que mais parece corrida de lesmas, tchê ? Tudo, menos isso!" E ele renunciou também às sessões do cinema de arte, distante do qual morava, ironicamente, a não mais de duas mordidas de maçã, como ele dizia, usando uma figura de metáfora que, certamente teria aprendido em algum filme visto lá. Resnais ? Clouzot ? Antonioni ? Antes que a discussão degenerasse, saiu da boca dele um "vou espairecer um pouquinho". Acho bom, diz ela. Por que não vai matar saudade do teu Ingmar Bergman ? Aquele pulgueiro ali da esquina está repassando aquelas obras primas, agora que ele, felizmente, se passou desta para aquela onde deveria estar há muito tempo. Imagino o que deve ter sido a vida daquelas cinco viúvas que ele deixou. Ou dos nove filhos. Era ofensa demais. Falar da mãe dele, tudo bem, pois sogra não é uma pessoa, é uma instituição, como aprendera com o Woody Allen, salvo engano. Falar da canastrice dele, sempre procurando por panos quentes nas crises quase diárias de TPM dela, ainda passava. Mas ofender o seu idolatrado Bergman era atrevimento demais. Botou um boné na cabeça, sem saber bem por que, jogou dramaticamente um blazer sobre o ombro e lá foi, qual um Humphrey qualquer, a caminho do paraíso. Ou porque a velocidade de seus passos estivesse acima daquela que ele normalmente empregava em suas caminhadas, ou porque os pensamentos brigavam entre si para terem prioridade em vir à tona, o fato é que quando ele deu por si já havia passado, há muito tempo, a estreita porta de entrada do tal cinema de arte. Que mania idiota a desses intelectuais, a imaginar que, por ser cinema de arte, tem de ficar escondido em algum beco inatingível! E ali está ele longe de casa e longe também de seu almejado paraíso cinematográfico. Voltar ? Talvez não. Lembrou-se dos tempos de juventude, onde era comum ele e seus amigos andarem easy rider, tal como haviam feito o filho do Henry Fonda e o ainda quase desconhecido Jack Nicholson. Sem a motocicleta deles, é claro. Talvez fumando maconha no cemitério de vez em quando, como no filme. O fato é que mais de uma vez ele se dirigiu a esmo a um guichê, tomou ônibus ou trem sem qualquer programação prévia, e foi parar numa cidade que jamais havia pensado visitar. E teve surpresas incríveis. A mãe de seus filhos, por exemplo, ele conheceu em Carazinho, cidadezinha gaúcha de que ele jamais havia ouvido falar. Rigorosamente, naquele tempo, além de Porto Alegre, tudo o que se sabia do turismo gaúcho era a transviadônica, que ligaria Pelotas a Campinas, no Estado de São Paulo. Aí veio a liberação geral, e bicha passou a ser chamado de gay. E deu no que deu. Pois ele estava agora simplesmente diante do aeroporto. Coisa de filme. Entrou e dirigiu-se ao primeiro balcão vago. "Uma passagem na classe mais xumbrega para o primeiro vôo que estiver para sair", proclamou, à maneira de um Edward G. Robinson, no Little Caesar. "O senhor é um homem de sorte. Acaba de abrir uma vaga para Buenos Aires. Desistência de última hora". Ele olhou firme o rosto da moça, achando que estaria a caçoar dele. Chegou à conclusão de que ela falava sério. Não havia trazido bagagem nenhuma, mas o Peter Fonda também não tinha quando seguiu sem destino naquela inesquecível moto. Não tinha mais o pai que garantia suas loucuras, mas temos agora vários pais, enfiados nos escaninhos da carteira. É aventurar-se e aguardar os trinta dias do vencimento da conta. Aí vamos ver se dá para pagar tudo ou adiar o saldo, a juros astronômicos. Ele não quer voltar a ser o aventureiro que fora na juventude ? "Feito!" Chegou à chamada capital portenha ainda a tempo de obter um bom quarto num daqueles hotéis que estão sendo erguidos da noite para o dia no Puerto Madero, cada um oferecendo diárias de final de semana mais baratas do que o outro. Pensando bem, uma esticada dessas até Camboriú ficaria pelo dobro do preço. Sem o bife de choriso com papas fritas. Fosse pelo vinho nacional que tomou no jantar, fosse pelo seu estado de espírito, dormiu como não se lembrava de haver dormido nos últimos anos. Até a imagem da esposa lhe pareceu menos terrível quando tomava o café da manhã, ao som de Oblivion, de e com o Astor Piazzola. Saiu do hotel e foi ao caixa eletrônico fazer sua provisão de moeda local, pois nem para tudo o cartão de crédito dá um jeito, afinal de contas aquilo não era a Escandinávia, onde até banca de jornal aceita cartão de crédito. Primeira surpresa: nenhum dos dois cartões foi aceito pela maldita máquina, o que serviu para provar-lhe o estado lamentável em que se encontra o país vizinho. O jeito foi caminhar pelos parques locais, aproveitando para comprar entrada para o espetáculo anunciado no Tango Mio, à venda ali no shopping center de um dos parques, ao lado do cemitério célebre. Segunda surpresa: o aparelho do guichê da loja recusou ambos os cartões. Ele fez um discurso no portunhol do costume, mas a moça lamentava muitíssimo, pois quem mandava ali era a máquina, não ela. ¡El prójimo! Novas tentativas de utilização dos cartões começaram a produzir-lhe um tremor nas pernas que prenunciavam um estado de pânico. Ele era suficientemente inteligente para concluir o que ocorrera. Havia dito à esposa que sairia para espairecer, sendo de presumir que, para isso, tivesse visto o Morangos Silvestres. Duas ou três horas depois estaria em casa, talvez ainda a tempo de tomar a sopa que ele mesmo poria no forno eletrônico. Quatro horas depois sem dar notícias, certamente a mulher teria concluído que o marido havia sido, na melhor das hipóteses, seqüestrado. Que fazer ? A primeira providência de alguém tão prático seria, como deve ter sido, comunicar o extravio às administradoras dos cartões, informando o extravio e, em conseqüência, obtendo o bloqueio de saques. Em seguida, contatos com hospitais e delegacias de polícia. Ele foi a uma cabine telefônica e tentou, inutilmente, uma ligação a cobrar com sua casa. Ninguém atendia, a sugerir que a esposa havia ido para a casa de algum amigo comum, para orientar-se. Ou à casa de algum dos inúmeros desafetos dele, para comemorar. Preferiu ficar com a primeira hipótese. O fato é que nosso Peter Fonda está em Buenos Aires sem um puto no bolso para gozar o fim de semana que, a tanto custo, se reservou. Nem restaurante, nem show de tango, nem recuerdos da feirinha de Santelmo para sua amada. Ele sempre poderá almoçar e jantar no hotel, mas, mais dia menos dia, terá de acertar as contas das diárias. Sentado em frente ao simbólico obelisco, ele apenas se indaga o que George Raft faria se estivesse em seu lugar, como naquele filme em que.
sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Preconceitos

  "No mundo todo o índice de assassinatos cometidos por homens é muito maior que o das mulheres, e tipicamente são os homens que lutam nas guerras. Por isso, parece razoável culpar o cromossomo Y pelos apuros em que nos encontramos. Mas, se as mulheres têm a vantagem no quesito pacifismo, talvez não seja porque são habilidosas para consertar o que foi quebrado. Vejo a força das mulheres na prevenção de conflitos e em sua aversão à violência. Mas elas não são necessariamente talentosas para dissipar tensões que já tenham surgido. Essa capacidade, na verdade, é um ponto forte masculino." Frans de Waal - "Eu, Primata" Vovô Pitecantropus Erectus, já lá vai um milhão de anos, é considerado a primeira espécie do gênero humano. Saiu da África e avançou pelo mundo afora, chegando sabe-se lá aonde, deixando atrás de si os sinais de sua passagem, que, no limite, deu no comprometimento definitivo do meio ambiente, também chamado "efeito estufa". O primeiro fóssil dessa espécie foi descoberto em 1891 pelo francês Eugène Dubois na ilha de Java, localizada na Indonésia, donde ser o Pitecantropus conhecido como o "Homem de Java". Inicialmente ele não foi reconhecido como fazendo parte do gênero humano, mas, com as descobertas de outros fósseis da mesma espécie, como por exemplo, o "Homem de Pequim", encontrado na capital da China, a classificação dessa espécie como pertencente ao gênero Homo foi sendo confirmada. Supõe-se que esse nosso antepassado já dispunha da capacidade de imaginar o futuro, condição para que ele se organizasse na busca de alimento, tal como fazem tantos outros animais, como as abelhas, por exemplo, que não só descobrem o alimento como o descrevem aos membros de sua comunidade, indicando distância e quantidade, mediante a famosa "dança do oito deitado", registrada por todos os que estudaram esse simpático inseto. Entretanto, enquanto o cérebro da abelha é do tamanho de uma bíblica semente de mostarda, vovô Piteco tinha um cérebro bem maior do que isso, embora ainda não chegasse ao tamanho do de seus netos atuais. Ao que tudo indica, ele impunha-se pela força, utilizando as mãos, já funcionalmente distintas dos pés, para empunhar instrumentos e fazer o que fazem seus netos hoje. A exemplo do que fazem gorilas, orangotangos, policiais e executivos de certas empresas, a autoridade era imposta por murros no peito, bocarra aberta, tapas na mesa e outras formas de intimidação. Os subalternos executavam, ao que tudo indica, os mesmos rituais dos chimpanzés de hoje, curvando-se à autoridade do primata alfa e fazendo-lhe afagos subservientes, como a continência dos militares dos dias atuais ou a bajulação dos subalternos interessados em promoção nas grandes empresas. O problema é que havia um outro animal muito mais forte do que ele, a julgar pelo barulho que fazia lá em cima das árvores, tão acima que nem dava para vê-lo. Além do barulho intimidatório, o animal desconhecido não atirava lanças de madeira, como era comum entre eles, mas lanças de fogo, que incendiavam o mato e árvores, obrigando os Pitecantropus a esconder-se nas cavernas, onde registravam o temor de, se aquela fúria não fosse contida, não terem o que caçar. No entanto, o registro do temor em desenhos rupestres não era suficiente para acalmar o animal desconhecido. Era preciso fazer algo mais, como ofertar-lhe presentes. Se ele gostava tanto do fogo, por que não lhe ofertar cerimônias onde eles mesmos escolhessem quem deveria ser sacrificado em honra do animal desconhecido ? Vovô Pitecantropus já estava enterrado havia milênios e esse hábito de acalmar o animal raivoso com sacrifícios de crianças transformadas em churrasco ainda existia entre os descendentes dele. Veja no Velho Testamento o capítulo 11, versículos 7 e 8, do terceiro livro dos Reis para saber do que estou falando. Não só existia como ainda existe. A preocupação em imitar o grande e invisível animal furioso, do qual os descendentes do Pitecantropus se dizem "imagem e semelhança", chegou ao cúmulo de também enviarem lá do céu, não mais raios que queimam árvores e pastos, mas bombas que queimam casas e pessoas, militares ou civis, adultos ou crianças. Isso em nome da civilização e da religião, registre-se. O fato é que o Pitecantropus e seus descendentes passaram a ocupar o tempo tentando descobrir o que o animal invisível e furioso lá de cima queria que fosse feito para acalmar-se. E inventaram regras e princípios, que, no limite, significavam "isto o animal furioso me disse que quer que seja assim", "isso o animal furioso disse que não quer que seja feito ou ele fica ainda mais furioso". O nome que deram a esse animal furioso também não tem a menor importância, pois, que é um nome ? O que importa é que, enquanto a ciência caminhava no sentido de conhecer cada vez mais o desconhecido, pessoas bem ou mal intencionadas se puserem a aplicar regras e princípios para dizer o que pode e o que não pode ser investigado cientificamente, tudo em nome da vontade do animal furioso lá do alto da árvore. O centro do Universo, como podemos ver claramente, é o planeta Terra, onde, aliás, vive o animal furioso. Qualquer pessoa sabe disso. Logo, dizer o contrário será provocar a ira divina. Logo, ponham-se no fogo (sempre o fogo do inferno !) os Galileus, os Giordanos Brunos e todos os outros que ousem desafiar o animal furioso, cuja vontade é presumida a partir de indícios, mesmo que isso se chame preconceito: conceituar mesmo sem ter como comprovar a verdade que se afirma. Um salto para o século XXI, para a pós-modernidade e vemos uma sociedade que se diz avançada questionar uma pesquisa científica. Não é mais uma autoridade religiosa quem diz que isto pode e aquilo não pode ser estudado, que isto pode e aquilo não pode ser dito, que este tabu deve ser aceito por mais absurdo que seja. Não. Agora é um grupo de cientistas que diz ao professor doutor James Watson, nada menos do que ganhador do prêmio Nobel por suas descobertas a respeito da estrutura do DNA, que ele não pode dizer se os negros são mais ou são menos inteligentes do que os brancos. Isso é simplesmente um atentado à ciência feito, não mais por sacerdotes, mas por cientistas ! Ou seja, se eu disser que as nádegas das mulatas são incomparavelmente mais bonitas do que as horrorosas nádegas das inglesas, tudo bem. Se eu disser que os magérrimos africanos são mais aptos do que os bem nutridos alemães para vencerem a maratona, isso é afirmação científica. Se eu disser que o caucasiano Cristiano Ronaldo não pedala com a elegância do negro Robinho, eu estou rendendo homenagem aos negros. Agora, se eu digo que não houve ainda mulher que escrevesse algo semelhante ao que escreveram Bach, Beethoven, Tchaikovsky, Mozart e tantos outros compositores de igual quilate eu serei enquadrado em alguma lei que pune o preconceito. Que preconceito ? Isso é um fato e um fato só pode ser desmentido por outros fatos. Não basta dizer que a mulher isto e a mulher aquilo. O fato é que não houve mulher que se igualasse a esses autores masculinos. Ponto final. O mais é repristinação do Santo Ofício. O mesmo vale para a equiparação entre homens brancos, negros, amarelos e que outra cor tiverem. Transformar equiparação jurídica em igualdade fática é, quando menos, burrice. Por falar em primatas, não é descabido lembrar que a ciência considera tanto o homem como o gorila, o orangotango, o chimpanzé e o bonobo integrantes de um mesmo grupo: os primatas. Graças ao mesmo doutor Watson, sabemos hoje que 98% do DNA dos chimpanzés são idênticos ao do primata superior, que se denomina homo sapiens. Ou seja, o que nos separa dos chimpanzés e dos bonobos, os primatas mais próximos de nós, são míseros 2%, número que estatisticamente é quase irrelevante. Segundo Frans de Waal, primatólogo respeitado mundialmente, há no comportamento dos chimpanzés e dos bonobos claros sinais de que certos comportamentos humanos não são originais. A prostituição, por exemplo, aparece entre os bonobos, pois não é raro ver-se uma fêmea oferecer-se sexualmente a um macho que esteja carregando alimento. Enquanto ele desfruta da oferta feita pela fêmea, ela simplesmente devora o alimento que era destinado a ele. Aliás, os bonobos se notabilizaram porque, ao contrário do que fazem os chimpanzés, não resolvem suas divergências na violência, mas por meio de jogos sexuais. Em média um bonobo participa de algum jogo sexual a cada duas horas, seja entre macho e fêmea, seja entre fêmea e fêmea ou macho e macho. Segundo Waal, o autor do Kama Sutra ficaria envergonhado com a criatividade dos bonobos, em matéria de jogos sexuais. Entre os chimpanzés, ao contrário, a liderança do grupo é imposta pela força. Entretanto, não está afastada a hipótese de algum macho inferior unir-se a outro, tal como fazem os políticos, para, juntos, destronarem o líder. Com a vitória surge a questão crucial: qual dos dois assumirá a liderança ? Se um deles o fizer, o primitivo chimpanzé alfa retornará com sua força e recuperará o posto. Logo, a solução é os vencedores dividirem as atividades próprias de um líder. Algo muito semelhante ao que fazem os nossos congressistas em suas concessões mútuas. Dizer que um jogador africano de algum time francês ou inglês é mais parecido com um bonobo do que com um caucasiano será ofendê-lo ? Aqueles lábios enormes, aquele nariz achatado, as narinas grandes, os olhos negros e pequenos, próximos do nariz, alguém já viu um escandinavo com tais características ? Isso é de considerar-se ofensa ou constatação científica ? Sabemos que ao longo do tempo sempre houve restrições à pesquisa científica, em atenção, por exemplo, à dignidade humana. Ou à anima nobile, como se costuma dizer. Um fato, porém, é inconteste: não há religião sem dogmas. A fé religiosa do ser humano não se refere propriamente a Deus, mas ao que algum iluminado diz que Deus lhe disse. Sem aceitação disso, você estará fora daquela religião. Por outro lado, não pode haver ciência dogmática. A verdade científica é prova inequívoca de que só os tolos acreditam na verdade. Como diz o respeitado Stephen Hawking, no seu Uma Nova História do Tempo, "qualquer teoria científica é sempre provisória, no sentido de ser apenas uma hipótese: nunca é possível prová-la. Não importa quantas vezes os resultados dos experimentos estejam de acordo com alguma teoria, você nunca poderá ter certeza de que, na próxima vez, o resultado não a contradirá". Que se respeitem as opções religiosas de quem precisa delas, mas há, por outro lado, que se lutar para que não se impeçam, por temor a suscetibilidades, pesquisas científicas, por mais desagradáveis que possam vir a ser seus resultados, que, certamente, sempre serão cientificamente questionáveis, a justificar novas pesquisas e, talvez, conclusões diferentes das anteriores. Até porque o mundo pur se muove.  
sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Cinema e Espiritualidade

  "Existe algo mágico nos filmes. A pessoa que você vê está ao mesmo tempo em algum outro lugar. Esse é um atributo de Deus." Joseph Campbell Impressiona-me enormemente o comodismo daqueles que se dizem positivistas e que, por isso, encaram a relação Estado/criminoso como mera equação matemática: tal crime, tal pena. Algo tanto mais incompreensível quando se percebe facilmente o viés religioso da atividade dos juízes (a toga dos sacerdotes, a solenidade catedralícia dos prédios dos tribunais, a referência ao local em que o pecador ficará recluso: penitenciária). Há, por outro lado, um indisfarçado medo desse conteúdo religioso da atividade judicial, que está presente até mesmo na referência à busca do Santo Graal da "verdade real" (quid est veritas ?, indagava um colega dos nossos juízes há tantos séculos) e na utilização leviana de um atributo exclusivo do Criador: a justiça. Medo incompreensível se considerarmos que a religião (religação) nos cerca, quer queiramos vê-la quer não, visto não estar ela separada da própria vida, como nos mostra diuturnamente o cinema, por exemplo. Recordo, antes de tudo, que há muitos anos foi por aqui exibida a primeira versão do filme "O Destino do Poseidon" (The Poseidon Adventure). O filme é considerado pelos críticos apenas como o primeiro filme do gênero disaster movie, que teve no Titanic, com todos os efeitos especiais cabíveis, o seu auge. Eu, de mim, como sempre buscava nos filmes algo mais do que a primeira impressão ou o mero divertimento, via nele uma narrativa bíblica, menos pelo fato de o nome do navio corresponder ao nome grego do deus do mar, que os romanos chamavam Netuno. Revendo-o hoje, graças ao DVD, penso que não estava errado em minha leitura de entrelinhas: logo no início do filme, dois padres discutem até onde a vontade humana deve submeter-se cegamente à vontade de Deus. O mais velho é do tipo tradicional, "orar e confiar", ao passo que o mais novo, o reverendo Frank Scott, interpretado por Gene Hackman, se classificaria ativista (progressista, como depreciativamente querem alguns conservadores), aquele que vai à rua fazer a história. Ao longo do filme isso me parece bastante claro: a maioria procura a salvação indo para um lado, enquanto a minoria, confiando no seu líder, segue o caminho oposto; há uma Madalena arrependida; há o batismo na imersão na água; há o discurso escatológico do reverendo, semelhante ao clássico "Pai, por que me abandonaste ?"; e há a salvação pelos anjos, que descem de helicóptero e levam os escolhidos para o alto (o céu). Quando ouviu essa minha interpretação, o Ercílio, que havia visto o tal filme, exclamou: "mas esse é outro filme !" Com tantos filmes sempre me ocorreu o mesmo: enquanto a maioria dos meus amigos limitava-se a uma leitura linear deles, eu buscava quase sempre uma possível segunda leitura, uma mensagem subliminar que o realizador estava tentando passar ao espectador, ou que, quem sabe ?, ali teria sido posta por artes das forças cósmicas, se é que isso existe. O silêncio da maioria dos críticos a respeito dessa leitura subterrânea de obras cinematográficas (ao contrário do que ocorre com as obras literárias e teatrais, por exemplo) jamais me abalou. Houvesse abalado e eu estaria resgatado quando Joseph Campbell, o notável estudioso da Mitologia de nosso tempo, assistindo à trilogia "Guerra nas Estrelas" (Stars Wars), de George Lucas, viu ali algo mais do que um filme de aventuras, indo além do que disseram os críticos cinematográficos. "Guerra nas Estrelas possui uma perspectiva mitológica válida". O filme encara o Estado como uma máquina e por isso a pergunta: "A máquina vai esmagar a humanidade ou vai colocar-se a seu serviço ?", diz o celebrado mitólogo. Aliás, o próprio Lucas não escondeu jamais essa inspiração, bastando ver sua entrevista que vem no DVD daquela trilogia. Pulo para o século XXI e falo de um filme extraordinário, mais uma vez lido superficialmente pela crítica especializada e que acaba de sair em DVD: "Três enterros" (The Three Burials of Melquiades Estrada), dirigido magistralmente por Tommy Lee Jones, esnobado pela Academia de Cinema de Hollywood, embora reconhecido pelo Festival de Cannes como uma extraordinária obra cinematográfica, premiando o roteiro de Aguinaldo Arriaga e a magistral interpretação de Lee Jones. De que trata o filme ? Simplesmente da falibilidade humana (pecado) e da possibilidade da redenção pelo sofrimento (penitência). Tommy é Peter, nome que diz muito para os cristãos e que não lhe teria sido posto naquela história por mera coincidência. Seu amigo Melquiades (Melquíades foi Papa de 311 a 314, tendo a particularidade de haver nascido na África e haver convivido com o imperador Constantino, aquele que teria tido a visão do in hoc signo vinces, graças ao qual liberou o cristianismo em Roma) é um mexicano que vive no exílio, tal como os judeus levados para o Egito. Tem a suavidade de um São João e um desprendimento evangélico, como ao dizer que o seu cavalo era também cavalo de seu amigo Pedro (curioso: em 1982, no livro "Cristo Hoje", eu falo desse mesmo desprendimento num conto chamado Tomé, que, seguramente, não foi lido pelo autor do roteiro do filme). Morto Melquiades, insta dar-lhe um sepultamento cristão, tal como se fizera com o próprio Cristo, envoltos ambos em panos, na melhor tradição judaica. E aí ocorre a grande travessia (Páscoa ou Pessach é a saída da escravidão em busca da Terra Prometida, que, no dizer de Joseph Campbell, não é um lugar físico mas um lugar espiritual), com seus elementos clássicos: o deserto (lugar em que, ainda de acordo com Campbell, inspirado em Jung, o ser humano atinge o self, aquele sanctus sanctorum interior, ali onde habita o Espírito, sendo o corpo humano o verdadeiro Templo de Deus, como dizia o próprio Cristo, que, por sinal, desfrutou desse deserto purificador), o batismo de conversão (a belíssima cena em que o pecador é arrastado por dentro do rio, banhando-se nas águas lustrais), a picada da cobra (o simbolismo que envolve a cobra é vasto, indo desde a primária representação do demônio edênico até a simbolização da própria vida, pois tal como a cobra troca de casca, assim o ser humano deve deixar para trás o passado imprestável, vivendo o presente com uma capa nova, a significar a conversão, a derrota, ou caminho aberto através das dificuldades, como está dito nos bons dicionários) e a terra prometida (a casa confortável, o jardim maravilhoso, o riacho e tudo o mais que representaria, para Melquiades, o paraíso, não existia fisicamente, mas existia na esperança dele, que é respeitada por Pedro, que ali vem a enterrá-lo, em uma cerimônia pungente, na qual não falta o altar, com a fotografia da "família" do falecido ali colocada em local de destaque). E a conversão, o verdadeiro arrependimento do pecador, numa interpretação emocionante do canadense Barry Pepper, ao fim do qual Pedro, com seu penetrante olhar, diz algo como: "vá em paz, e não tornes a pecar". E o convertido, cuja mudança de expressão facial é extraordinária, despede-se de quem o chamou de "filho" desejando-lhe que também vá em paz, em seu solitário caminhar. Quantos de nós espectadores, quantos juízes não teríamos matado aquele pecador, invocando a lei, que estava no Velho Testamento, o olho por olho ? O diretor, porém, vai além dele e, numa visão neotestamentária, acredita na redenção, de que se tornou Pedro o agente. Não vim para revogar a lei, mas para aperfeiçoá-la. Como diria o Mestre, quem tiver olhos para ver e ouvidos para ouvir veja essa imperdível epifania, se me permitem o rebuscado termo.   Atendendo a pedidos  
sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Entrevista (A)

  "Não sei se ela é funcionária dos Correios, mas tem cara de sê-lo." Do Livro das Sínteses Algumas pessoas dizem que odeiam trocadilhistas. Por que ? Eles não sabem dizer. No fundo, gostariam de trocadilhar, mas, cadê competência ? O jeito seria aceitar que ninguém se torna trocadilhista, nasce-se assim, como se nasce com verruga na ponta do nariz ou dente torto. Mas cadê humildade para reconhecer isso ? Assim também ninguém se torna trovador. Nasce-se com essa capacidade, como um Zé Preá ou um Mano Meira ou um Ontõe Gago. Qualquer dos três subscreveria, certamente, esta trova : "Se o amigo não faz trova,E por mais feliz que seja,Com certeza me reprova.Devia ir para a cova sujeito que não troveja." Mas eu falava era de trocadilho, vindo-me à mente o caso da moça que estava num bar, sentada com um rapaz num canto, trocando ambos gentilezas e carícias. Eis que chega um outro rapaz e passa a dizer isto e mais aquilo à moça, certamente agastado com a distribuição dos carinhos e atenções de que se julgava credor único. O acompanhante dela sente-se no dever de explicar que. E logo os dois garanhões estão a trocar sopapos vários. A moça, um tanto assustada, vem para perto da mesa onde estava o Emílio de Menezes, célebre trocadilhista carioca. Este, cinicamente, indaga do garçom, apontando os dois lutadores : "É esta a moça que se disputa ?" Eu contava isso numa mesa onde havia vários de meus poucos amigos. E lembrei-lhes o caso daquela china de Carazinho, que, embora noiva de aliança no dedo adequado da direita mão, recusava-se a proporcionar desde já ao afoito noivo as benesses matrimoniais. E argumentava: "Se tu queres ter-me em teu leito, casa-te comigo. Aí, certamente, tu me terás". Duas senhoras levantaram-se e foram até a janela tomar um pouco de ar. Um dos amigos censurou-me por essa minha incontinência verbal, que já me custou tantos amigos. Aliás, disse ele, há uma professora da Unicamp, especialista em metalinguagem, que está fazendo pesquisa com pessoas esquisitas e pretende escrever um livro demonstrando que. "Mas você acha que minha mulher vai concordar que eu procure uma moça especialista nisso aí ?" Mais duas senhoras levantaram-se e também se dirigiram à tal providencial janela. O escritório da tal professora ficava num sobradinho simpático, ali pelas bandas da Vila Madalena. Marquei consulta, se assim posso dizer, para as catorze horas. Fui atendido pela secretária, que me deu uma ficha para eu preencher. O de sempre. É como ficha de hotel. Você escreve ali as maiores barbaridades e ninguém confere nada daquilo. Eu, pelo menos, já coloquei ali, na casinha onde se diz "sexo", as coisas mais inimagináveis, tal como "uma vez por semana". Tais fichas, que custaram a derrubada de árvores e mais árvores serão, depois de preenchidas, enviadas para um departamento de alguma secretaria e ficarão no porão alimentando ratos. Devolvi a ficha preenchida e aguardei ser chamado. Menos de quinze minutos depois eu estava entrando na sala da pesquisadora, uma jovem de bom aspecto, terninho elegante, que me conduz até uma poltrona, onde me sento. Ela se senta em uma cadeira de braços, à minha frente, segurando uma prancheta com algumas folhas e uma caneta na mão direita. - Como o senhor se chama ? Eu havia preenchido uma ficha ali na sala ao lado e chego à conclusão de que a secretária fizera aquilo apenas por curiosidade. Ou será que ela levaria a ficha para casa e depois me telefonaria para um chopinho a dois ? Minha mulher é muito compreensiva, mas, se eu a conheço bem, não vai gostar disso. Pensei em dizer que meu nome continuava a ser aquele que eu havia indicado à secretária, até porque eu ainda não havia tido tempo, nesses poucos minutos, de mudá-lo, como é de meu propósito. Quando dei por mim, saltou outra ficha: - Eu nunca me chamo. As outras pessoas é que me chamam. Ela se limita a voltar os olhos para a prancheta e escrever linhas e linhas de texto. Que seria aquele texto longo ? A demora foi tanta que minhas pernas não sabiam mais como se comportar. Ora a direita não se conformava de estar sob a esquerda, ora a esquerda é que não se achava muito à vontade sob a direita. Tentei mantê-las abertas e o resultado foi pior, pois a poltrona deveria ter sido projetada pelos mesmos engenheiros que projetam poltronas de avião. Quando é que o Jobim vai pensar nisso ? Ela, sem mais nem menos, indaga: - Quanto o senhor mede ? Digo-lhe que, dependendo da fita métrica ou mesmo da trena, eu meço qualquer distância, é só combinarmos preço e pagamento. De preferência por metro medido. Ela volta a escrever, sem esboçar qualquer reação. Ou é uma profissional extraordinária ou é débil mental. Como não tenho outro compromisso para as próximas duas horas, lembrei-me, por menos que o desejasse, da Marta, aquela boquirrota que vem de chamar uma de nossas atletas de "moreninha". A senhora está enganada, madame. Eu sou negra, disse a moça. Ela tenta melhorar a situação. Falo da pesquisadora. - Muito bonito o seu sapato. A senhora está se referindo ao esquerdo ou ao direito ? - O senhor sempre foi assim ? Claro que não, minha senhora. Segundo pude ver de algumas fotos, quando eu ainda engatinhava não possuía o bigode que tenho hoje. Meus cabelos naquela época não eram tão grisalhos como atualmente. Igual mesmo só a fala de dentes. - O senhor tem alguma religião ? Várias. Quando eu era criança, costumava ir à igreja, onde me apresentaram a um senhor velho e barbudo que permanecia o tempo todo no teto me olhando. Segundo me diziam, tudo o que eu fazia era visto e julgado por ele. Por causa disso, parei de enfiar o dedo no nariz quando estava dentro da igreja. Aí me disseram que ele costumava descer do teto da igreja e me acompanhar pelas ruas. Fui procurar o sacerdote, querendo saber que brincadeira era aquela. Como é que eu vou limpar o nariz se ele ficar com aquele olho grande o tempo todo em cima de mim ? Como o padre era gordo e gordo é aquilo que é, padre ou não, mesmo se chamando Eugênio, ele deu uma risada. "Isso só acontece quando a pessoa acredita que ele nos acompanha". Não entendi bem o que ele quis dizer, mas compreendi que era uma espécie de autorização para eu colocar o dedo no nariz e em qualquer outro lugar que me parecesse apropriado. Ou desapropriado, dependendo do ponto de vista. Quando fui à Índia, inspirado pelo George Harrison, descobri que eles veneram as vacas. Trocar o velho barbudo do teto da igreja por um animal de quatro patas, dois chifres e um ubre, que vai derramando aquelas broas quentes e fedidas por onde passa, só mesmo sendo beatle. Minha vocação musical não era tanta. Indo à China, descobri que lá o Mao é o Bem. Claro, era uma piadinha que dez entre dez brazucas contavam aos parentes que haviam ficado no Brasil, quando conseguiam usar o telefone da praça Celestial, que era disputado a tapa, pois tinha um defeito e fazia ligação aceitando como ficha qualquer peça redonda de metal. Até tampinha de cerveja bem amassada. Se eu bem entendi do livrinho vermelho do Bem, escrito pelo Mao, tudo aquilo que a Bíblia diz que foi feito por Deus e seus enviados foi, na verdade, realização do Grande Timoneiro. Alguns pedreiros chineses até chamavam o homem de Arquiteto do Universo, da Ásia e, particularmente, da China. A grande muralha, que o George W. Bush está pretendendo transferir para a fronteira entre os Estados Unidos e o México, foi obra do Grande Arquiteto. - O senhor tem algum sinal particular ? Tenho vários, mas são tão particulares que eu só os faço quando estou sozinho no meu quarto, tendo, antes, o cuidado de trancar a porta e apagar a luz, para que nem mesmo eu os veja. Se a senhora quiser conhecer alguns sinais públicos eu os posso mostrar, principalmente os que adoto no trânsito. Estranhamente, ela agora nada escreveu. Colocou uma das mãos sobre a outra e ambas sobre a prancha e ficou a me olhar, não sei se encantada com meu desempenho ou imaginando que faria comigo, agora que. Aquilo me lembrou uma brincadeira de infância, o "Quem pisca ?" e eu me dispus a participar do jogo. Também coloquei mão sobre mão e as duas sobre o colo, mesmo porque eu não tinha culpa de não ter uma prancheta, e fiquei ali, brincando de estátua. A música ambiente, agora eu percebia melhor, era new age. De vez em quando uma terminava e começava outra, que era quase exatamente igual à anterior. Se eu não tivesse estado na China estranharia aquilo. O fato é que a música e a luz azul suave eram um convite às pálpebras para se encontrarem. A de cima com a de baixo, não a do olho esquerdo com a do olho direito. Ocorreu então que, depois da terceira ou quarta repetição da mesma música, eu parei de contar e só vim a dar por mim quando a luz do sol, penetrando na sala pelo vão da cortina da janela, deu na minha testa. Acordei meio assustado com o impacto causado pela luz solar. "Onde estou ?" pensei exclamar, a exemplo do que eu lia nas revistas de histórias em quadrinhos na minha juventude, exclamação que jamais tive oportunidade de utilizar ao longo da vida. Aquela seria a oportunidade. Que, não sei por quê, deixei escapar. Felizmente, a música continuava a espalhar-se por aquele ambiente de paz, a sugerir que a minha sessão ainda iria longe. Na minha frente, a posição da outrora elegante pesquisadora havia mudado um pouco. Seu braço direito estava estendido para baixo, apontando para a prancheta e a caneta, que teimavam em permanecer no chão, aguardando serem levantadas. A cabeça dela, falo da moça, pendia sobre o ombro esquerdo e eu descobri que ela, tal como minha mulher, baba quando dorme. Minha barriga começa a roncar e eu não sei quantas horas ainda faltam para que ela dê por terminado o tal teste. Não vejo a hora de ler o livro que vai sair dessas entrevistas.  
sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Golpes

  "Agora já não é normal o que dá de malandro regular, profissional, malandro com o aparato de malandro oficial, malandro candidato a malandro federal, malandro com retrato na coluna social..." Chico Buarque Quem nunca freqüentou um tribunal ou uma vara criminal ou mesmo um cartório criminal não imagina do que é capaz a mente humana. Eu particularmente tenho alguma atração pelo estelionato, forma refinada de crime que, por vezes, mais parece uma obra de arte. Um bom conto do vigário, por exemplo, é algo fascinante, especialmente quando praticado contra pessoas que se julgam mais espertas do que nós e que esperam lucrar com a imbecilidade daquele que lhe está fazendo uma oferta dessas. Ao tempo em que meu falecido pai dirigia a Casa de Detenção, quando ela ainda era naquele casarão antigo ali da avenida Tiradentes, lá estava um hóspede que tinha uma história singular : ele, um refinado malandro, havia matado um colega de falcatruas. Motivo: o colega lhe havia conseguido vender uma máquina que fabricava autênticas notas de dólares, uma guitarra, como se denominava na época. Pago o preço, ele descobriu que a máquina não fabricava nem notas de mil réis. Alguém tão esperto, como o Diabo Loiro se considerava, ser enganado por um João Soares qualquer só poderia merecer um balaço entre os olhos. Meu colega Honoré de Balzac já dizia, aí por volta de 1825 que "a vida pode ser considerada um perpétuo combate entre ricos e pobres. Os primeiros estão entrincheirados numa praça-forte cercada de muralhas de bronze e abarrotada de munições; os segundos sondam, saltam, atacam, derrubam, corroem as muralhas; e, apesar dos muros e dos portões, apesar dos fossos e da artilharia, raramente os assaltantes, esses cossacos do Estado social, saem da empreitada de mãos vazias". Veja o ano: 1825 ! E olhe que ele sabia das coisas, pois era mestre em dar golpes naqueles que confiavam nele. Fosse hoje, se preso e processado, restaria safo, porquanto seu hábil advogado demonstraria que aquela mania dele de só comprar tapetes persas e encher a casa com enfeites de prata de lei ou de uns tantos quilates de ouro era, qualquer um está a ver, prova comprovada de que o homem padecia de psicose maníaco-depressiva, basta ler seus livros para verificar que. E aqui está o laudo do doutor fulano de tal, PhD em não sei onde que garante que. E lá estaria o Honoré não só liberto como ainda gozando de novas oportunidades para exercitar seu melhor ofício : tapear. Além de escrever belíssimos romances. Cito um caso a que cada um poderá dar seu próprio julgamento, como é comum em casos tais. Uma senhora elegantíssima comparece ao consultório luxuoso de certo psiquiatra, famoso porque cobra os olhos da cara, até porque só atende pessoas de alto coturno, se é que a senhora sabe o que é um coturno. O motorista de madame pergunta primeiro à secretária onde poderia deixar estacionado o Porsche em que trazia sua patroa, o que também serviria para mostrar à vizinhança o nível de clientes que o homem costuma receber. Nova consulta na semana seguinte e o carro agora é um Jaguar. Coloque na mesma vaga do doutor, que hoje veio com um carro só, por favor. A ricaça mostra-se preocupadíssima porque seu filho, ao que tudo indica, estaria envolvido com drogas. Todo o dinheiro que ela lhe dá desaparece da noite para o dia, sem que ele explique devidamente o destino daquela pequena fortuna. Fortuna para os demais, pois para ela aquilo era ninharia. O que a preocupa mesmo é não saber onde está indo parar aquele dinheiro. Pior : por vezes ele faz compras enormes, como obras de arte, sem que nem ela nem o marido vejam essas tais obras, apenas as faturas. Que fazer, doutor Manrich ? Na próxima vez, mande seu filho falar comigo, decreta o homem. Na semana seguinte a ricaça vai a uma joalheria, onde pretende comprar um belíssimo colar de. Coisa aí de mais de. O preço, o vendedor reconhece, é elevadíssimo, mas a jóia ficara muito bem em seu belo pescoço, como a senhora pode ver naquele espelho de cristal ali no fundo da loja. Convencida disso, ela abre a carteira e conta quanto de dólares traz. Não dá para pagar nem a caixa da jóia. Se o senhor não se importar, nós saímos daqui e vamos ao escritório do meu marido, que lhe fará o cheque. Ao ver o colar em meu pescoço, ele nem vacilará em fazer minha vontade. O jovem gerente informa seu imediato de que se ausentará por alguns instantes e seguem ele e a ricaça ao escritório do tal marido. O motorista estaciona o carro na vaga já conhecida e ela se dispõe a falar com o marido, enquanto o gerente da joalheria aguarda na sala de espera do psiquiatra, por sinal, viúvo há alguns anos. Atendida pelo Dr. Manrich, em caráter de urgência, como em voz baixa informara à secretária, ela não precisa de mais de cinco minutos para convencer o médico a receber seu filho, lugar involuntariamente interpretado pelo gerente da joalheria logo que ela deixa a sala do psiquiatra, a quem também em voz baixa agradece a gentileza que lhe está fazendo. "Então que história é essa de comprar jóias de valores elevados ?" começa o doutor, dirigindo-se ao presumido filho da ricaça. "Comprar não, vender", diz o gerente da joalheria. Aliás, o valor é elevado mas a qualidade está acima de qualquer suspeita, responde o gerente, dando seguimento a uma série de equívocos que só vem a ser desvendada muito tempo depois, quando o carro, evidentemente alugado, dirigido pelo cúmplice da malandra, que se passara por ricaça, já havia sido entregue à locadora. Onde havia sido locado mediante a apresentação de documentos que haviam passado a noite no interior de uma geladeira, como diria ela ao delegado de polícia se algum dia viesse a ser identificada, coisa inimaginável. Felizmente, as joalherias, como os bancos, fazem seguro que lhes garante o reembolso dos prejuízos causados por malandros. O fato de constar do boletim de ocorrência uma relação de jóias muito superior ao que efetivamente fora furtado pela falsa ricaça, tanto quanto uma importância muito maior do que aquela que os ladrões levaram efetivamente quando do assalto a uma agência bancária é coisa de somenos importância, talvez até adiáfora, como diria algum entendido em Direito. E o fato de esta crônica haver sido desavergonhadamente subtraída de um dos livros escritos pelo exímio Honoré de Balzac só vai ser descoberto por alguém que não tenha coisa mais importante para fazer do que estar perdendo seu valioso tempo a ler autores franceses nos dias de hoje.  
sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Morte (A)

Ao André, que um dia descobrirá que nem nós adultos sabemos muito bem o que é isso. Dizem que os chineses (quais deles ?) choram quando nasce alguém e se alegram quando alguém morre. Sempre me perguntei por que motivo os cristãos, que dizem acreditar na vida eterna, a qual, é lícito esperar, será muito melhor do que esta, não têm esse mesmo procedimento. Até onde vai a fé do cristão numa vida eterna ? Como é possível que nos alegremos sabendo tudo o que passará na vida aquela criança inocente e indefesa que acabou de ser posta no mundo ? Tirando a nossa alegria de termos ali um brinquedinho de carne e osso para nos entreter, tudo o que espera essa criança são as dificuldades naturais da vida. Sorte dela que ainda não lê jornal nem vê noticiário de televisão. Encontrei, há muitíssimos anos, um amigo que eu não via há muito tempo. À pergunta "como vai você ?" tentei brincar: "cada dia mais longe do berço e mais perto da sepultura". Nunca mais nos falamos, pois ele ofendeu-se terrivelmente com o meu "pessimismo". E o que eu disse era algo absolutamente verdadeiro, válido para mim, para ele e para todos nós. Em compensação, certa ocasião fui à missa de corpo presente de uma senhora, nossa vizinha, que tinha vários filhos, um deles sendo um frei franciscano, que rezou aquela missa. Muitos dos presentes ficaram chocados quando ele disse que estava tendo sua segunda alegria em menos de seis meses. A primeira alegria fora pela celebração, por ele, da missa em ação de graças pelas bodas de ouro de seus pais. A segunda era agora, quando se comemorava a passagem da alma de sua mãe para o local que, certamente, Deus lhe havia reservado. Quantas vezes você já ouviu isso ser dito em uma missa de corpo presente ? O medo da morte é algo absolutamente irracional. Não confundir isso com a quebra do dever de cuidar da própria saúde, que está em qualquer código de ética, coisa que até as plantas não desconhecem. Mais absurdo ainda é quando a pessoa que tem esse medo pânico da morte fuma, bebe e expõe constantemente sua vida a riscos de toda natureza. Qual a lógica ? Veja a coisa por este ângulo: pense num pedaço de corda. Essa corda começa à sua esquerda e termina à sua direita, alguns metros mais adiante. Como se chama o começo da corda ? Chama-se começo. E como se chama o fim da corda ? Chama-se fim. Tanto o início como o final da corda são corda. Se há um nada antes do início da corda é porque esse nada não se confunde com o início da corda. Se há um nada depois do fim da corda é porque o fim da corda não pertence ao nada, mas à corda. Ora, a vida tem um início, pouco importando aqui as discussões científicas a respeito de quando ocorre esse momento. O que importa é que há um momento em que a vida tem início. E a vida tem um fim, pouco importando também qual o método que vamos utilizar para atestar que ela terminou. O início da vida se chama "nascimento" e o fim da vida se chama "morte". Logo, tanto o nascimento como a morte pertencem à vida. São o primeiro e o último momento de uma coisa contínua chamada vida individual. O que veio antes e o que virá depois são outros trezentos e cinqüenta. Dou-lhe outro exemplo: você está dentro da sala, olhando a paisagem lá fora através da janela. Nisso aparece um avião, vindo da esquerda, cruza a frente do seu rosto e desaparece à sua direita. De onde ele veio ? Você não sabe. Para onde ele foi ? Você também não sabe. Tudo o que existe de visível é o caminho que ele fez desde o batente esquerdo da janela até o batente direito da janela. O mais é o desconhecido. Você sabe que ele levantou vôo em algum lugar, em algum horário, mas não tem conhecimento exato sobre isso. E sabe que ele voltará ao solo, mais cedo ou mais tarde. Onde ? Quando ? Como ? Você também não sabe. Será difícil imaginar a vida como esse vôo ? Tive ao longo de minha já longa vida inúmeros encontros com a morte. E sempre saí desses encontros mais fortalecido, mais preparado para seguir adiante. A primeira vez se deu quando eu ainda não tinha dez anos de idade. Havia ido ao sítio de meu padrinho e dois primos, pouco mais velhos do que eu, o Zé Carlos e o Zezinho, mais velhos do que eu, brincavam em um barco a remo, dentro de um açude, palavra que eu, que jamais saíra da capital, nem conhecia. A certa altura o barco virou e um dos remos veio até a borda do açude, impulsionado pelas ondas que a agitação que eles faziam na água havia produzido. Abaixei-me para pegar o remo, senti tontura e caí n'água. Meus primos, entretidos com suas brincadeiras aquáticas, nem repararam nisso. Quando fui retirado da água, já estava inconsciente. Fui reanimado por um empregado do sítio. Que faltou para que eu morresse ? Apenas que eu parasse de respirar e meu coração parasse de bater. Eu posso dizer que vi a morte. Eu e o Jung temos muita coisa em comum, sendo uma delas essa perigosa atração pela água. Mais tarde, já adulto, encontrava-me no Rio de Janeiro, com suas praias tremendamente traiçoeiras, pois são do tipo "praia de tombo", diferentemente do que ocorre nas praias paulistas. Você está caminhando em direção ao mar e, de repente, falta chão sob seus pés. Entrei num redemoinho desses, contra o qual era inútil tentar lutar. Moço ainda, nadei acompanhando o movimento da água, abrindo cada vez mais o círculo, até que consegui sair de sua influência e chegar à areia. Com as pernas tão bambas que não conseguia ficar de pé. Nova sobrevida, a sugerir que eu ainda não havia feito tudo o que fui chamado a fazer por aqui. Mais recentemente, já avô, novamente vou a uma tranqüila praia do Rio de Janeiro. Novo redemoinho e eu já sem a juventude e o fôlego que me salvariam daquele próximo afogamento. Eu não tinha condições físicas mas tinha cérebro. "Help! Help!" foi o que se ouviu por ali, grito a que os salva-vidas cariocas estão acostumadíssimos. Em fração de segundos, um deles se aproximou de mim e, mantendo uma distância de segurança, atirou-me uma bóia amarrada numa corda. Agarrei a bóia, fui arrastado até a praia, onde lhe agradeci encarecidamente o auxílio. Em inglês, é claro. Para não me alongar muito, pois matéria é que não falta, falo de umas cólicas intestinais esquisitas que me vinham aborrecendo há alguns meses. Um exame de colonoscopia revela que há um pólipo bastante alterado ali. Em português claro: câncer. Cinco horas de cirurgia e trinta pontos no abdômen e mais dois dias de repouso, lá estou eu caminhando pelos corredores do Sírio-libanês, fazendo piadinhas com colegas de "Cooper". Vali-me desta vez, confesso, de uma lição (mais uma!) que me fora dada pelo Ranulfo: "Diarréia se chama diarréia, estrabismo se chama estrabismo. Só para o câncer os cretinos insistem em por apelido". Valeu-me também a lição de minha mestra, filha e psicóloga Cláudia: "Geralmente, a sombra é maior do que o bicho!" Agora é enfrentar seis meses de quimoterapia e seus efeitos colaterais quase-insuportáveis e estarei novinho em folha. Para morrer com saúde. Por que trago tal assunto para este espaço ? Porque ainda há entre nós essa cultura estranha de achar que, mascarando a realidade, a vida fica mais fácil. É claro que não fica. Ouvi de uma senhora que caminhava comigo pelos corredores do hospital a estranha frase: "Nós não merecemos isso!" Pensei em indagar-lhe o que ela entendia por "merecimento". Onde está o certificado de garantia que nos dá a certeza de que nossa vida durará no mínimo 80 anos e que as doenças só atingirão nossos vizinhos e nossos desafetos ? Repare bem: quase sempre nós perdemos muito do nosso tempo preocupados com o futuro ou lamentando o passado. O presente, com a alegria proporcionada pelo fato de saber que um tumor canceroso agora está fora do meu corpo, pode passar batido. Nossa vida, estou convencido, é aquilo que nós fazemos dela.
sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Cá e Lá

"Tem só dois tipo de político: os ruim e os pió." Alvarenga e Ranchinho, a dupra que era uma navaia "Todos são iguais perante a lei, como diz o general ao anão". Todos os circunstantes riram da minha frase de efeito, que, por sinal, está no inédito e já afamado Livro das Sínteses, sendo aquilo algo que a minha amiga Noca chamou de boutade, erguendo um cálice de kir, na calçada daquele bistrô que fica a duas quadras do apartamento dela, na Îlle de Saint Louis. Para sermos mais exatos, na Rue Poulletier, quase esquina da Rue Saint-Louis-en l'Ile, como, aliás, me havia informado o Chico Buarque, quando eu vagava meio perdido por aquela cidade que tem aquela enorme antena de rádio, como dizia o Garrincha. Falávamos, já se vê, de democracia, isso de que o W. Bush e o irmão dele acham que entendem, aprendido, obviamente, com o pai deles, que fez preciosos contatos com os árabes quando chefiava a espionagem norte-americana e associou-se ao pai do Bin Laden, como sabemos todos. O qual, outrossim, morreu quando o avião em que viajava explodiu, enquanto sobrevoava o Texas, em circunstâncias que até hoje a polícia norte-americana não conseguiu esclarecer. "E como é a democracia na Noruega ?" pergunta um dos tais circunstantes, talvez o Belisário, homem bom numa serenata e nessas coisas de justiça e cidadania. Pigarreio e passo à reclamada peroração. A vida lá não é diferente da vida que temos cá, assim começo, meio solene. Nasce-se, cresce-se e morre-se. Aqui o corpo vai imediatamente para a sepultura. Ou para o crematório. Parece-me que o que queremos é nos livrar logo daquela companhia incômoda. Lá, o defunto vai para uma geladeira, à espera do momento propício para o enterro. Ou seja, pela volta do coveiro, se é verão, pois ele está na Espanha passando as férias com a família nas Islas Baleares. "Mas estamos no inverno !", exclamará alguém, pouco afeito aos hábitos locais dos noruegos. O homem da funerária explica pacientemente: "e você acha que o coveiro vai querer cavar aquele terreno congelado ?" Solução: o corpo do falecido vai para o depósito e, meses depois, quando as condições pessoais e climáticas forem favoráveis, os familiares serão disso avisados. "Diga lá: que diferença faz o cadáver estar guardado na sepultura ou numa gaveta de necrotério ?" diz-me o Berge Furre. Nada a responder. Mas falávamos de política, lembra alguém da roda. Explico: não se fala de política sem conhecer a índole do povo a que nos referimos quando falamos dela. Foi o que aprendi numa viagem entre Oslo e Copenhague, cruzando os fjords e me empanturrando de queijos e caviares. Eu que já havia aprendido em Portugal, a duras penas e trançando pernas, a ir, no Porto, com o Silva Franco de uma destilaria a outra ("exp'rimente este !; agora est'outro !"), que não há apenas uma cor de vinho do Porto, mas um arco-íris deles, agora aprendo que também não há caviar de uma só cor, mas de várias. O sabor é sempre uma droga, mas que isso dá um status danado a quem come e depois conta aos amigos, isso lá dá. Havia a meu lado no tal navio três rapazes conversando em italiano, coisa de suscitar a atenção de um surdo. Chamo de rapaz todo aquele que tem 50 anos ou menos de idade, esclareço desde já. O Oscar Niemeyer não chama de menino quem completa 80 anos ? Pois então. Cansado daquele inglês com sotaque local (Te vímen vent from te vór, dizia-me o Diedrik, grande economista escandinavo, com livros publicados e tudo o mais, explicando que as mulheres haviam já voltado da guerra, a pretexto de nada) não pude deixar de prestar atenção na conversa dos três italianos. Quando surgiu a palavra Berlusconi, não resisti e me ofereci para completar o quarteto. O tal italiano falava em como o grande líder patrício havia utilizado as suas empresas de televisão para influenciar o eleitorado. Para muitos italianos, só existe o que os canais de TV do homem quer que exista. "Já ouviu falar no Chatô ? no Roberto Marinho ? na Igreja Renascer ? no Edir Macedo ?" indago. "Io conosco il Cafu, il Kaká, il Adriano, ma questo Marino, questo Macedo ..." O outro italiano falava agora de futebol e dos resultados arranjados das partidas. Tudo coisa do mesmo Berlusconi, segundo eles. "Vocês tiveram lá algum juiz que, antes de começar o jogo, levantava a imagem de Nossa Senhora no meio do gramado, depois dava um beijinho nela, persignava-se três vezes e em seguida, em lugar de dirigir a partida, dirigia o resultado ?". Eles se entreolham. "Ma questo brasiliano è pazzo ?" O jogo de pôquer prosseguia e, a certa altura, baixei o meu straight flush. "Chi è questo Re d'oro ?" indaga um deles ao ver minhas cartas. É um amigo do Juca Kfouri e futuro presidente da FIFA, esclareço. Se vocês acham que já viram tudo em matéria de futebol, esperem pelo genro do Havelange. A viagem prosseguia e o terceiro italiano, cujo sotaque eu já havia percebido, apresenta-se-me: Erik Petersen, ou coisa que o valha. Era norueguês e havia aprendido italiano apenas para ter o prazer de conversar com aqueles dois amigos, esclarece, gentil. Afasta da mesa as cartas e as fichas imaginárias e se põe a discorrer sobre a história da Noruega. Isto aqui era um fim de mundo tão desprezível que, em 1906, quando nós nos proclamamos libertos do domínio da Suécia, a que havíamos pertencido durante anos, como pagamento de indenização da guerra napoleônica, o governo sueco concluiu que não valia a pena brigar por este pedaço de gelo. "Ruim conosco, pior sem nosco" deve ter pensado o rei, diz o norueguês, num italiano horroroso, aqui traduzido por mim livremente. "Vocês, no Brasil, dizem que o nordestino sofre porque a seca mata o capim que deveria alimentar o gado. Você tem idéia do que acontece com o capim norueguês durante os meses em que a neve cobre tudo por aqui ? Ou você acha que gado norueguês não tem fome no inverno ? Ou se alimenta de neve ? De brisa ?" O homem era bem informado, positivamente. Vocês sabem por que o nosso bacalhau chegava a Portugal salgado e sem a cabeça ? É que não tínhamos navios frigoríficos e o peixe deveria ser biblicamente conservado com sal, ensina-me o loquaz escandinavo. E as cabeças nós as retínhamos para nós, como tempero de sopa de pedregulho. Acho que a diferença entre nós, cá dos fjords, e vocês, que vivem do outro lado do mundo, seja no sul da Europa, seja na América do Sul, è molto percepitibile. Vocês acham que Deus fez o homem à sua imagem e que, portanto, enquanto o homem não chegar a ser Deus ele não deve sossegar. Nós, ao contrário, fizemos Odin à nossa imagem e semelhança. Reparem que ele não tem um dos olhos. Ele é tão imperfeito quanto nós. Os santos católicos parecem artistas de novela das oito. Dos rostos cinematográficos das santas então, melhor nem falar. Pois veja o nosso Trol, padroeiro das florestas e dos animais. É mais feio do que político nordestino. Nariz enorme, olhos esbugalhados e, de quebra, um rabo de ponta peluda. Dá pra perceber a diferença de conceitos ? Vocês acham que o ser humano pode atingir o absoluto. Nós nos contentamos com menos. O que faz os nossos processos judiciais terem apenas três recursos. Para que mais do que isso ? Tese, antítese e síntese. Fim. Em lugar de falar sobre nossos políticos, continua ele, vou dizer apenas que seja aqui, seja na Itália ou no Brasil, a discussão entre políticos a respeito da desonestidade que uns atribuem a outros, parece briga propagandística entre Coca-Cola e Pepsi-Cola. Se você reparar bem, não há, a rigor, briga nenhuma: o que essa falsa propaganda quer é convencer o consumidor de que há apenas essas duas marcas de refrigerantes na praça. Política é isso. Vou contar-lhes, diz-nos o Erik, nome que homenageia seu antepassado que descobriu a América 500 anos antes do Colombo, informação que os historiadores do lado de cá do Atlântico nos sonegam, vou contar-lhes uma fábula que encerra esta nossa desagradável conversa e mostra como nós lidamos com nossos políticos, feito do mesmo material dos seus. Um empregado procurou o empresário norueguês para despedir-se, pois estava de partida para a Finlândia. Havia sido muito bem tratado durante todos aqueles anos que trabalhara naquela empresa e, por isso, queria retribuir a gentileza, dando ao agora quase ex-patrão uma informação importante. "O gerente da empresa desvia bens para ele" informou, solene. O patrão agradeceu a gentileza, contratou o melhor detetive de que dispunha a Escandinávia, o qual, depois de um trabalho meticuloso, entregou o relatório, dando conta da situação da empresa. Ela vinha crescendo nos últimos meses, coisa de 10% em média por mês. Mas era fato que o tal gerente embolsava parte desse lucro. Coisa aí duns 3% do lucro líquido mensal. O empresário terminou de ler o maçudo relatório, fez as contas, tomou um último trago de aquavitæ, foi até a lareira e atirou aquela papelada inútil nas chamas crepitantes. "Vale a pena mantê-lo no posto", murmurou de si para consigo. E, sentencioso, encerrando nossa desagradável conversa: "o problema não está na corrupção; está no volume dela !" Acaso ele estaria querendo dizer que a ética política é sempre relativa ?
sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Desalento

"A gente vai contra a correnteaté não poder resistir,na volta do barco é que senteo quanto deixou de cumprir.Faz tempo que a gente cultivaa mais linda roseira que há, mas eis que chega a roda-vivae carrega a roseira pra lá" Chico Buarque Quando se ouve a mais alta autoridade do país declarar que quando entra num avião não pensa que o país por ele governado se esforça para formar pilotos competentes, nem pensa que quem fabricou aquele avião sabia o que estava fazendo, nem que o país que ele tem o dever de governar vem formando profissionais hábeis a promover a necessária manutenção das aeronaves que por aqui circulam, bem como profissionais capazes de controlar adequadamente os vôos dessas aeronaves, mas que, quando entra num avião, confia apenas na proteção de Deus, qual o sentimento que nos envolve ? Há em cada um de nós, em grau maior ou menor, essa sensação de que estamos desempenhando um papel para o qual não nos havíamos preparado adequadamente. "A vida não tem rascunho", dizem os mais realistas, deixando de lado as convicções dos que acreditam que aqui voltamos vezes sem conta, com o propósito de nos aperfeiçoarmos, o que quer que a palavra aperfeiçoamento possa significar. Lembro-me de um livro que li na minha distante juventude e que muito me ajudou na busca daquilo que, na falta de melhor palavra, se costuma chamar de humildade. O livro chamava-se Todos Nós somos Incompetentes, perdendo-se em algum recanto da memória o nome dos autores, que eram dois, ambos norte-americanos, especialistas em Administração de Empresas. O livro mostrava que um bom pedreiro não se conforma, geralmente, em ser apenas um bom pedreiro. Ele passa a querer ser um empresário, dito empreiteiro de obras, pretensão mais do que justa. O problema é que, muito embora ele saiba tudo sobre o ofício que aprimorou ao longo do tempo, nada entende de administração, o que, certamente, lhe será fatal no novo empreendimento, que exige mais do que habilidade no manejo do instrumental de que até então se valia. Resultado: nem a sociedade terá o excelente pedreiro que tinha, nem terá o empresário medíocre que irá à falência, mais dia menos dia. O Brasil de hoje nos confirma a curiosa tese daqueles dois autores. De um tempo a esta parte, parece que a grande qualificação para alguém ser escolhido para exercer algum cargo importante no Brasil é não saber nada, ou quase nada, a respeito daquilo de que ele se vai ocupar no exercício profissional. E isso não é privilégio do Poder Executivo, nem do Poder Legislativo, onde os disparates ilustrativos dessa tese saltam aos olhos até de um cego de nascença. Para ficarmos num campo onde a regra é a veneração e a religiosa superstição de que basta colocar uma veste negra sobre os ombros para adquirir-se a honestidade que se não tinha até ali, cultura que não precisou jamais ser comprovada e presumido espírito de dedicação ao mister profissional que escolheu, indaguemos: em que momento de sua formação profissional o juiz entra em contato com uma ciência chamada Psicologia ? Ele deverá ouvir pessoas, deverá avaliar aquilo que essas pessoas disserem e que lhe servirá de meio de convicção, deverá supor as conseqüências psicológicas das decisões que toma, especialmente quando examina os naturais conflitos decorrentes dos complicadíssimos laços familiares, de que se ocupam psicólogos e psicólogas. Para tanto, não é preciso conhecer Psicologia. Basta colocar a toga sobre os ombros e saber apor sua assinatura em uma decisão, sem se preocupar com os fundamentos do texto elaborado pelo perito, quando tem humildade de nomear um, cuja palavra terá valor de verdade absoluta. "Quem entende de Psicologia é psicólogo, não juiz", dirá, sobranceiro, para justificar sua indiferença pela sorte alheia. Quem entende de cálculos matemáticos é o engenheiro, quem entende de computação é o assessor de sua excelência, quem entende da contabilidade da comarca é o escrivão. Se isso é assim, então para que se perde tempo e dinheiro com exames psicotécnicos ? A contradição é flagrante. A Psicologia é importante quando se cuida de abrir a porta ao candidato; passa a não ter importância alguma depois que ele adentra o sagrado templo de Têmis. Ser perito em matemática, psicologia, contabilidade ou seja lá que matéria for é uma coisa; ter por essas matérias ignorância olímpica, transferindo a terceiros, ou seja, ao perito, a incumbência de decidir a causa, visto não estar minimamente apetrechado para avaliar as impugnações feitas pelo assistente pericial, como se vê diuturnamente, é coisa diversa. Por outro lado, em que momento de sua formação profissional o futuro juiz entra em contato com a Ciência da Administração ? Ele deve administrar pessoas e coisas, canalizando estas e o serviço daquelas para que se chegue àquilo que os técnicos em O & M chamam de "ótimo possível", no sentido de que uma sucessão de atos coerentes e conseqüentes leve sua atividade e daqueles por ele orientados, o mais cedo possível, a um resultado prático, a partir de um estímulo inicial promovido por um terceiro interessado no tal resultado da atividade referida. Como fazer isso sem conhecimento de Organização e Método, que, bem ou mal, é ministrado em cursos de Administração ? Simples: colocando uma toga sobre os ombros do recém-ingresso. Pronto, a ciência infusa entra-lhe pelos poros e o membro da Magistratura não precisa de mestres, nem de livros, nem de estudo para que aquele resultado seja atingido. Curia novit omnes scientias deveria ser a frase famosa. Se, não poucas vezes, nem a tal jura a Curia se preocupa em conhecer, que dizer tudo o mais que vem abaixo dela, as tais scientiæ ancillæ ? Quando se verifica a situação inacreditável a que chegou o nosso Congresso Nacional, a ponto de não sabermos se ainda merece ter o nome escrito em maiúsculas, entidade que, no dizer de certo candidato, teria, não 300 membros dispostos a morrer pela pátria, como os espartanos célebres, mas 300 picaretas, generalizamos a crítica: ser político é ser sinônimo de ser desonesto. Ou seja, valemo-nos de uma cômoda sinédoque para não termos o trabalho de tentar separar o joio do trigo. Quando os escândalos batem na porta da circunspecta porta dos fóruns, tomar-se o todo por sua parte podre passa a ser "campanha de desmoralização de uma instituição respeitável", guiada, evidentemente, por "interesses escusos", primos, por certo, das inidentificáveis forças ocultas invocadas em outro momento de nossa História recente. Em último caso, traz-se o oportuno escudo: "os desmandos envolvem minoria insignificante de seus membros". Ora, para sabermos se o número dos magistrados e das magistradas que não respeitam seus mais elementares deveres profissionais compreende a minoria ou a maioria de seus membros, necessário fora que se expusessem, para consulta pública, o teor das denúncias feitas contra eles, as provas colhidas a respeito da procedência ou improcedência delas e, acima de tudo, o teor da decisão que acolheu ou rejeitou tais denúncias, principalmente quando a punição consistir na incrível e convidativa aposentadoria com vencimentos integrais ou, em caso de impossibilidade dessa por ausência do chamado lapso temporal, a colocação em disponibilidade de sua excelência o infrator, com vencimentos proporcionais ao seu tempo de desmandos no cargo que desonrou, com a risível e infiscalizável restrição de não poder advogar. Veja-se a resistência que se fez e ainda se faz à existência de um órgão neutro para fiscalizar o Judiciário, como se fez e se faz ao desbaratamento do nepotismo e à elevação ilegal dos próprios vencimentos para concluir-se que aquela transparência jamais será ao menos objeto de cogitação. E tudo isso In Nome del Popolo Italiano, como ironizou Dino Risi na película que dirigiu nos idos de 1971, a respeito da Magistratura do seu país. Uma coisa, porém, é certa: se é para deixarmos tudo nas mãos de Deus, como disse recentemente a suma autoridade deste país, então é para perguntamos por que haveremos de pagar o que pagamos para termos um simulacro de governo, seja ao serem elaboradas leis, seja ao ser promovida sua execução, seja ao ser fiscalizado o seu cumprimento, a partir de casos concretos. Melhor será voltarmos à Idade Média, escolhermos alguém que seja a representação física daquele invocado Deus e mandarmos as demais autoridades constituídas para aquele recanto a que destinamos as pessoas imerecedoras de nosso respeito.
sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Estufas

  "Podrán cortar todas las flores, pero no podrán detener la primavera." Pablo Neruda Na minha juventude, os chargistas publicavam desenhos gozando os hippies. Um homem barbudo, vestindo camisolão, vagava pelas ruas, carregando uma tabuleta: "Arrependei-vos enquanto é tempo. O fim está próximo !" E nós todos ríamos daquilo. Bons tempos ! Meio século depois, talvez nem isso, e estamos todos sentindo os efeitos do chamado superaquecimento de nosso planeta. Neve em Buenos Aires, calor na Escandinávia, moças usando minissaia na Sibéria, frio insuportável em São Paulo. É só sintonizar a televisão e lá vem alguém mostrando que os barbudos da tabuleta não estavam tão errados como nossa superioridade cultural imaginava. Hoje em dia, o tal efeito estufa serve até como pretexto para vender automóvel. À prova de tsunamis e vendavais ! Em matéria de estufa, tenho algumas experiências. Primeira vez que ia a Portugal, a guia, muito solícita, levou-nos para uma surpresa: mataríamos a saudade do Brasil. Roda de samba ? Caipirinha ? Nada disso. O local era um espaço não muito grande, talvez do tamanho de um campo de futebol, todo com parede e teto, muito alto, de vidro. Era um jardim tropical, onde, surpresa das surpresas !, encontramos nossas velhas conhecidas "costela de Adão", "banana de macaco", "capim gordura" e outros vegetais com que cruzávamos em qualquer parque público de São Paulo. Talvez até gabiroba haveria por ali, se procurássemos bem. A temperatura ambiente era devidamente controlada, como nos explicou o gajo que tomava conta daquilo, e havia lá em cima, estão a bispar ?, aqueles caninhos furados que, de tempos em tempos, aspergem água sobre a vegetação. Viajar tanto só para aprender o que quer dizer o verbo aspergir ! E fui, assim, remetido aos meus tempos de infância, retornando aos matinhos onde nos escondíamos na brincadeira de pega-pega, ou onde íamos caçar borboletas, ou, em caso de emergência, nos agachávamos para atividades menos nobres. E tudo isso como atração turística! Tempos depois me meti a entender de orquídea. Comprei alguns livros, aprendi a diferença entre pétalas e sépalas e lá fui a uma cidadezinha perto da capital, visitar o orquidário de um nipônico. Era também uma estufa, onde ele me mostrou o processo de hibridação. Cruzadas duas espécies, dentro de meses surgiriam as sementes, que ele colocaria naqueles primeiros vidrinhos que o senhor está vendo ali, com aquela gelatina incolor dentro. Quando apareceram as primeiras folhinhas, ele transportaria para aquele outro grupo de vidrinhos, onde elas ficarão até que. E assim, de conjunto de vidrinhos em conjunto de vidrinhos, chegaríamos aos novos exemplares. E, finalmente, tchã tchã tchã tchãããã!, uma orquídea nova. Desde que o senhor faz o cruzamento das duas espécies até que surja essa nova flor, quanto tempo se passa ? Ele, com aquele rosto inalterável que têm os japoneses até diante de dor de dente: "de oito a dez anos !" Dez anos para conhecer o resultado de seu trabalho ? "Mas a vida não é assim ? Muitas vezes nós morremos sem ao menos ver o resultado do que fazemos", filosofa o sábio nipônico. Segundo essa minha filosófica experiência, o efeito estufa é benéfico. E, realmente, assim era o projeto do arquiteto do Universo, como dizem meus amigos pedreiros. O planeta Terra, ao desligar-se do Sol, tão incandescente quanto ele, foi-se esfriando, pois o fogo é algo que depende de algo para existir. Quando esse segundo algo vira cinza, tollitur causa sublatum effectum, como dizem os juristas. Ou será o contrário ? Ou seja, sem um algo não tem o outro algo. Captaste, pá ? Segue-se que, se o resfriamento da Terra prosseguisse naquele ritmo, logo logo ela viraria uma bola de sorvete. Um pouco mais dura, é verdade. Aí mamãe natureza inventou um expediente bastante inteligente, como tudo o que a natureza cria: o dióxido de carbono. Se em cada duas moléculas de oxigênio eu pendurar uma molécula de carbono, que é o nome latino do carvão, esse minúsculo carvãozinho, em contato com a luz do sol, virará uma micro-brasa. Conforme o número dessas brasinhas, o ambiente da Terra estará tão aquecido como aquele jardim tropical de Lisboa. Graças a esse inteligente expediente, os gelos que já se iam formando foram-se derretendo, o que deu no surgimento dos oceanos e da vida animal, segundo os darwinianos. Se você tiver a paciência de eliminar de um desenho do mapa-múndi o Oceano Atlântico, verá que a costa oeste da África se encaixa perfeitamente no litoral do Brasil. É o resquício do que a professora Maria Helena Rolim chama de Pangea, um bloco único de terra que se formou quando as águas ainda não haviam tomado o volume que vieram a tomar com o aquecimento global, que, até então, era algo benéfico. Quando se deu o rompimento entre os dois continentes, nós tivemos de agüentar o Gilberto Gil, que havia ficado do lado de cá quando tudo era uma coisa só. Foi esse um dos inconvenientes do progresso. Mas não o pior. O que a mamãe natureza não havia previsto é que o macaco que pensa que é inteligente levaria sua condição de animal predador às últimas conseqüências. E bote última nisso! Aliás, para o etologista Konrad Lorenz, que escreveu na primeira metade do século XX, o ser humano é o único animal que merece, a rigor, o epíteto de predador. Os demais, perto dele, são pinto. O fato é que, muito antes de o George W. recusar-se a assinar o Tratado de Kyoto, pois havia deixado sua caneta naquela escola infantil onde passava o seu presidencial tempo e ali ficou sentadinho, livro infantil na mão, mesmo quando o seu assessor lhe cochichou no ouvido que o mundo estava pegando fogo, coisa documentada pelo Henry Moore. Repito: mesmo antes de o segundo George ser parido, a produção industrial de dióxido de carbono já era algo digno dos maiores aplausos. Progresso não é derrubar matas e produzir fumaças ? Pois então. O fato, minha senhora, é que há 50 anos atrás, quando nós dois ríamos com as comédias do Gordo e o Magro, ou seus imitadores, o Abbott e o Costello, nem eu nem a senhora imaginávamos que a concentração do dióxido de carbono na atmosfera estava na casa de 280 unidades por milhão. Foi só nós dois nos distrairmos e esse número chegou às atuais 380 unidades por milhão. Nem eu nem a senhora sabemos que diabo de relação é essa, mas, convenhamos, um aquecimento da ordem de 36% em míseros 50 anos é algo que deve preocupar. É ou não é ? Pense nisso a próxima vez que deixar a torneira da pia aberta enquanto se olha no espelho escovando seus belos dentes. Ou quando deixar as luzes da casa acesas sem necessidade alguma. Ou quando.  
sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Cada um na sua

"Brasil ! Meu Brasil brasileiro, meu mulato rizoneiro, vou cantar-te nos meus versos !" Francisco Alves, treslendo os versos escritos por Ari Barroso, onde ele havia incluído um ininteligível "inzoneiro" "Quem é você que não sabe o que diz ?" Noel Rosa O presidente da Infraero deita falação sobre as dificuldades em preparar um pepino, assunto que ele, como militar, parece conhecer como poucos. Não foram eles que inventaram a dança da garrafa ? O elemento presumidamente subversivo tinha de dançar nu, agachado sobre a garrafa posta em pé, bem abaixo do seu ânus. Quando ele se cansasse, já viu. Falando do tal presidente, logo em seguida à sua peroração, a TV exibe uma cozinheira dizendo que pepino, oficialmente, só serve para salada. E é facílimo de preparar, mostra ela, que não se atreve, aliás, a discorrer sobre os problemas da aviação. Por falar em atrevimentos, a cantora Mônica Salmaso vem de lançar um belo CD com composições do Chico Buarque de Hollanda, acompanhada pelo excelente conjunto Pau Brasil, que simplesmente reescreve todos os arranjos das belíssimas melodias do nosso compositor maior. É difícil decidir se o que mais encanta o ouvinte é a voz intimista da cantora ou a inspiração e o virtuosismo dos músicos. O nosso querido Chico, compositor de quem sou declaradamente uma das incontáveis viúvas, agora que ele se passou para o lado do Baudelaire, sempre contou com essa cumplicidade de seus intérpretes e seus ouvintes. Ele não escrevia letras para si, mas para provocar a reação de quem viesse a ter a felicidade de ouvir ou cantar suas músicas. Sei que alguns ouvintes preferem Cartola, ou Noel, ou Adoniran. Respeito, mesmo porque de gustibus et compositoribus non disputandur. Em uma dessas letras ele fala de carne posta na mesa. Fico a indagar-me: quantos daqueles que ouviram essa música terão atentado para a intenção do autor ao colocar ali a palavra posta ? Sabemos que, como adjetivo, ela é o particípio passado do verbo pôr. Mas sabemos também que, como substantivo (ainda prefiro essa palavra, ao inexpressivo e multívoco nome) ela significa pedaço de carne. Ou seja, a letra pretende convidar-nos a fazer a riquíssima ligação: posta de carne posta na mesa. Eis o que é um artista. E quantas dessas mesmas pessoas terão atinado para as letras complementares que ele produziu ? Explico: são duas músicas distintas que têm, no entanto, um encadeamento evidente, como se uma descrevesse fatos posteriores aos fatos contidos na letra anterior. Vamos a elas. Inicialmente, ele geme: "Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim:não me valeu!Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim; o resto é teu.Trocando em miúdos, podes guardaras sobras de tudo que chamam lar,as sobras de tudo que fomos nós:as manchas do amor em nossos lençóis,as nossas melhores lembranças.Aquela esperança de tudo se acertar ?Pode esquecer.Aquela aliança você pode empenharou derreter.Eu bato o portão, sem fazer alarde,eu pego a carteira de identidade,uma saideira e muita saudade,e a leve impressão de que já vou tarde." Aí, diz a moça, enlouquecia: "Quando olhaste bem nos olhos meuse o teu olhar era de adeusjuro que não acreditei, eu te estranheime debrucei sobre teu corpo e duvidei." Tempos depois vem a mesma Bethânia (a Gal Costa, embora aquela voz extraordinária, é apenas uma cantora; a Maria Bethânia é uma intérprete) e nos atira no rosto: "Quando você me deixou, meu bem, Me disse pra eu ser feliz e passar bem.Quis morrer de ciúme,quase enlouqueci, mas depois, como era de costume,obedeci.Quando você me quiser rever,já vai me encontrar refeita, pode crer.Olhos nos olhos, quero ver o que você fazao sentir que sem você eu passo bem demais.E que venho até remoçando, me pego cantando,sem mais nem porquê.E tantas águas rolaram,quantos homens me amarambem mais e melhor que você! Quando você precisar de mim'cê sabe que a casa é sempre sua, venha, sim.Olhos nos olhos, quero ver o que você diz,quero ver como suporta me ver tão feliz." É isso um acerto de contas, que sugere uma conversa íntima, talvez num canto de um bar, em voz baixa. Pois não é que veio um tal de Emílio Santiago, que o Cauby considera o melhor cantor brasileiro da atualidade, e se permitiu corrigir essa belíssima letra, cantando "você sabe" onde a intimidade da cena exigia o carinhoso "'cê' sabe" ! Nem o presidente da Infraero chegaria a tanto ! Eis, aliás, um reincidente específico. Falo do Santiago. O compositor alagoano Djavan brindou-nos com esta definição do amor: "O amor é um grande laço, um passo pr'uma armadilha;um lobo correndo em circopra alimentar a matilha.Comparo sua chegada com a fuga de uma ilha:tanto engorda quanto mata, feito desgosto de filha." Aí está um poema com magníficas redondilhas. Pois não é que o mesmo Emílio Santiago resolveu corrigir isso para "um lobo correndo em círculos" ? E como fica a redondilha, meu caro professor ? Um tanto estropiada, concorda ? Que circo seja uma corruptela de círculo todos nós sabemos. Isso decorre da forma daquela construção, até porque ninguém pensaria num circo quadrado ou retangular. Mas daí a emiliosantiagar (se o Caetano inventou o djavaniar, por que não eu ?) a letra do colega, comprometendo a beleza do verso, vai um salto triplo, sem rede de proteção. Não é tanto uma questão de conhecimento de métrica, mas de sensibilidade. Dizem que o pintor grego Apeles fora encarregado de fazer um retrato de Alexandre Magno, que se tornou imperador da Macedônia aos 20 anos de idade. Ou porque fosse perfeccionista, ou porque temesse as iras do jovem imperador, Apeles solicitou a assessoria de um sapateiro que lhe dissesse se as sandálias imperiais estavam bem pintadas. O tal sapateiro (sutor, em latim, pois o caso nos é contado por Plínio, o moço), depois de haver cumprido a honrosa missão, para que a sandália (crepida) imperial fosse retratada fielmente, pôs-se a sugerir algumas correções em outros trechos da tal pintura. "Aquela manga ali poderia ser mais bufante. Aquele saiote está muito curto. Aquela outra." Ao que o nosso Apeles teve de pôr um basta no atrevimento do Emilus Santiagus (como Plínio não nos diz o nome do sapateiro, valha nossa imaginação), exclamando a frase célebre: Ne sutor ultra crepidam! Não vá o sapateiro além das chinelas. O Emílio Santiago, seguramente, jamais leu Plínio. E o presidente da Infraero, agora elevado à categoria de ex, jamais imaginou que, segundo os dicionários, pepineira não é apenas a planta que produz pepinos. É também "fonte de proventos sem maior trabalho, mamata". Coisa que ele agora deixou de ter.
sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Teste - II

  "Uma das grandes vantagens da existência do Direito, como área normativa organizada, é a segurança que propicia a quem cumpra as regras exteriores; é a tranqüilização das consciências medianas e cívicas. Cumprir a lei é o que importa para quem não quer incomodar-se e deseja manter uma certa boa consciência". (Paulo Ferreira da Cunha, Pensar o Direito, tomo II, p. 181) O número de leitores que acudiram ao meu chamado (Circus n. 45 - clique aqui) foi maior do que me era razoável esperar, com muitas respostas inteligentes. Houve desde quem pusesse a mãe do chefe na dança até quem jurasse que, se tivesse recebido as três notas, teria dado uma delas a quem recebera apenas uma e equilibraria a partida. Alguns falaram em "justiça". E houve até quem se lembrasse da surrada "isonomia", segundo a qual, para os menos informados, homem e mulher são iguais, mesmo nossos olhos nos mostrando que são tão diferentes. Não vou definir "justiça", coisa que os autores vêm fazendo desde que o mundo é mundo. Vou apenas lembrar que, quando você vai comprar um quilo de feijão, o vendedor coloca um objeto de metal num dos pratos da balança. Nesse objeto está impresso algo como 1k. Em seguida ele vai despejando grãos de feijão no outro prato, até que aquela agulha que separa um prato do outro fica a prumo. Aí ele diz: "Um quilo justo !" Se a senhora for comprar dois metros de tecido para fazer uma saia rodada de tafetá, o vendedor despejará o pano sobre o balcão e sobre ele pousará uma vara amarela, com risquinhos de espaço em espaço. Ao fim da série de risquinhos vem o número 100, a indicar que até ali temos um metro. Duas varadas daquelas e ele passa a tesoura, dizendo: "Dois metros justos !" Que há de comum nessas duas situações ? Há, de um lado, um padrão de medida (1k ou 1m) e, de outro, algo que se afeiçoa a tal padrão. Justiça, portanto, será a conformidade entre aquilo que se compara e o padrão com que aquilo é comparado. A coisa comparada se ajusta ao padrão. Pausa para vermos futebol. Final de partida, um dos times meteu 3 a 1 no adversário e o locutor, com a boca cheia de vento, sapeca um "o placar foi injusto, pois o time A não mereceu vencer". Se o justo seria um empate, qual o padrão que não foi respeitado ? Por quem ? Vamos à regra da FIFA: "Considera-se vencedor o time que tiver marcado mais gols do que o outro". Não há regra (padrão) nenhuma dizendo que o time melhor é que deve vencer. Logo, ou aquele locutor vai estudar melhor o assunto ou mude de profissão, para não ficar passando conceitos errados a quem tem paciência de ouvi-lo. Ninguém vence uma partida de futebol "por merecimento". Aliás, há muito juiz de Direito que é promovido "por merecimento" e quem o conhece de perto sabe muito bem que ele pode ter tudo, menos merecimento, se é que temos um merecimentômetro nos tribunais do país. Nos concursos para o preenchimento de cargos nas faculdades oficiais, isso é feito de acordo com o merecimento do candidato. Sabe o que quer dizer isso ? Não ? Nem eles. Você acha que eles não eliminam as provas orais por quê ? Porque a avaliação do desempenho do candidato na prova oral segue critérios puramente subjetivos. Ou seja, a banca aprova quem quiser aprovar. Nota 9,8 para o concorrente, a mostrar que ele se saiu muito bem. E nota 9,9 para aquele previamente escolhido. Se você conhece a história da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, responda: entre o professor Moreira Alves, que veio a tornar-se um dos mais respeitados Ministros do Supremo Tribunal, e o filho do genial professor Alexandre Correa, que dava aula lendo o livro escrito pelo pai (os alunos o chamavam de "lente", num trocadilho culto que só honra nossa velha e sempre nova academia) quem você acha que venceu a disputa ? A idéia de "merecimento" é mais uma dessas várias dores de cabeça que devemos à moral judaico-cristã. "Se meu filho nasceu cego, de quem foi a culpa, se ele ainda não fez nada na vida ?" indaga alguém. Mais exatamente: "Seus discípulos lhe perguntaram: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego ?" (Jo 9:2). Seria o caso de Jesus responder: onde está escrito que Deus tem a obrigação de fazer todas as pessoas nascerem com saúde ? Quando foi que Ele estabeleceu esse padrão ? Pois vivemos como se a todo instante tivéssemos de nos afeiçoar a padrões, estabelecidos por iluminados. Faça isto, senão aquilo. Se um nosso ente querido morre "mais cedo", nossa fé corre sério risco. Fé em quem ? Se um crápula desfruta de boa saúde, aí perdemos a fé de uma vez por todas. Onde está escrito que os maus têm menos direito de viver (com irritante saúde) do que os bons ? Essa regra não existe. Conheci Luciano Mendes de Almeida desde muito antes de ele ser cogitado para ocupar a cadeira de São Pedro. Raros padres conheci com uma vocação e uma santidade daquelas. Certa ocasião, ele impactou-me com uma pregação sobre um tema sobre o qual eu ainda não me havia debruçado, e olha que eu já estava até meio corcunda de tanto me debruçar sobre temas espinhosos: a necessidade de ter-se caridade no ato de receber. Todos nós sempre havíamos aprendido que caridade significa desprendimento, capacidade de dar. Pois ele falava na capacidade de receber. Já pensou nisso ? A relação que se estabelece entre quem dá e quem recebe não é uma relação horizontal, entre pessoas iguais. É uma relação vertical: o que dá está assumindo, goste ou não, uma posição de superioridade diante de quem se dispõe a receber. Por mais que o doador tente impedir que isso aconteça, haverá lá dentro dele um pensamento inconveniente, do tipo "eu é que não gostaria de estar no lugar dele". Em resumo: eu sou mais, ele é menos. Sendo isso assim, não é fácil para alguém ter de contar com outrem para ter alguma coisa, seja comida, seja roupa, seja até mesmo um carinho. Todos nós somos seres orgulhosos e certamente não é natural que saiamos pela rua vestindo um camisolão amarelo, com a cabeça raspada e um prato vazio esperando quem queira pôr ali uns grãos de arroz. Isso pode ser bonito em filme e em fotografia, mas vá fazer isso para ver a superação que isso exige. Superação de nossas limitações humanas. Para complicar, nossa cultura materialista faz corresponder os gestos generosos a uma compensação ou um interesse. Você, homem, cumprimenta alguma mulher no interior do elevador privativo dos membros da magistratura e não recebe um sorriso quando ela responde ao cumprimento. Se é que ela responde ao cumprimento. "Que será que ele está pretendendo ?" é o pensamento que a maioria das pessoas terá quando alguém a ela se dirige com algum gesto de cordialidade. Especialmente se for alguém do outro sexo. A palavra cordialidade vem de cor, cordis = coração. Isto é, sede simbólica dos bons sentimentos. Para concluir: você faz aniversário e convida vários amigos. Todos lhe trazem livro de presente. Um livro que você ganha tem mais de 500 páginas, outro tem umas 200 páginas e um último tem menos de 100 páginas. Qual desses amigos gosta mais de você ? Se você avaliar o afeto dos seus amigos pelo volume do presente que eles lhe dão no aniversário, você não é menos do que um cretino. Sendo assim, que obrigação alguém, chefe ou não, terá de dar presentes de mesmo valor quando resolva homenagear desinteressada e espontaneamente seus três funcionários ? Quem disse que ele está retribuindo alguma coisa ? Essa visão vesga das coisas acaba produzindo um efeito paradoxal: em lugar de agradecer pelos 100 dólares que ganhei, acabo irritando-me pelos 200 que deixei de receber, clamando por justiça. Em bom português: eu não me estou sentindo injustiçado. O sentimento que me invade tem outro nome: inveja. E ainda chamo quem me presenteou de "sádico" ! Aliás, uma das leitoras citou, com toda propriedade, a célebre parábola que se lê em Mateus, capítulo 20, versículos 1 a 16, que termina com a surpreendente frase "os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos". Conhece ?  
sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Bunda (A)

"The wounds you cannot see are the most painful2." (Nelson Mandela) Quando a mulher negra entrou no ônibus, chamou-me a atenção, a mim que estava sentado num dos primeiros bancos, o tamanho descomunal de suas nádegas. Como sabemos, as portas dos ônibus noruegueses têm, ao menos em Oslo, uma divisória que separa as pessoas que entram daquelas que saem, muito embora, por paradoxal que seja, haja no interior do ônibus uma determinação clara: Utgang bak. Se a saída deve ser feita pela porta dos fundos, para que aquela divisão ? Mesmo assim, muita gente entra pelos fundos e sai pela frente. Principalmente os não-noruegueses. E também muitos jovens loiros, que, ao que parece, não precisariam economizar o preço da passagem. O que é o mau exemplo ! Pois a tal mulher entalou na porta e o motorista, que aparentemente já a conhecia, foi obrigado a desmontar a porta, retirando a tal divisória, para que ela entrasse e depois por ali saísse. Sentou-se ela num banco duplo, ocupando-o todo, esparramada. Eu conseguia vê-la porque sua imagem aparecia no espelho situado à minha frente, à esquerda. Claro que não via o corpo todo, mas o espaço que ela ocupava, com um vestido que lhe dava o ar de uma barraca. Estranhei aquele tipo de africano na Noruega - ela só podia ser africana, já que a Escandinávia não produz negros daquela tonalidade, pois sempre havia visto por aqui apenas somalis, cuja constituição física é diversa. São mais esguios e magros. E mais bonitos também. Ou os pardos, que são indianos ou paquistaneses, coisa que nós ocidentais não distinguimos claramente, para desespero deles. Imagine um galego sendo tomado por português ! Ou um francês sendo confundido com belga. Na África há, desde sempre, negros e negros. O que sei é que, quando os mercadores europeus descobriram a África como celeiro de mão de obra gratuita, graças principalmente à permissão da Igreja, que não os considerava inteiramente humanos, deu-se a captura de número impensável de negros, transportados pelo mar, para serem vendidos nas feiras, juntamente com galinhas e porcos, para além daquele continente. Muitos deles atravessaram o Atlântico em linha reta, levados principalmente para o Brasil, colônia portuguesa que necessitava de mão de obra importada porque os portugueses que haviam sido mandados para a colônia eram criminosos e, sendo aquilo uma punição, não tinham eles nenhuma vontade de trabalhar o chão do seu exílio. Que trabalhassem os indígenas. Ocorria que os nativos, tal como os pássaros, não se acostumavam a viver em cativeiro, preferindo morrer a ficarem fixos em alguma fazenda. A solução, portanto, foi importar negros da África, tal como faziam as colônias inglesas do Novo Mundo, principalmente para colherem algodão e darem nascimento ao jazz. Bendita escravidão! Logo se descobriu que os nativos de Angola eram os mais trabalhadores dos escravos que nas praias brasileiras haviam aportado. Eles tinham as pernas finas e as nádegas muito grandes, o que chamava a atenção dos brancos, pois era um tipo bizarro. Falavam o quimbundo ou bundo, mesmo porque mbundu significava negros na língua deles. Para os portugueses, os negros falavam bunda, a língua angolana deles, que, aliás, havia sido objeto de estudo por parte de um missionário lusitano que se enfurnou naqueles ermos no século XVII, e onde até hoje há quem fale a língua de Camões, como herança deixada por esse abnegado missionário. Como esses angolanos de nádegas grandes eram muito trabalhadores e como não interessava aos fazendeiros ter em suas terras negros que falassem línguas diferentes (menos pela língua deles e mais pela cultura diversa, que, não raro, significava tribos inimigas, e, portanto, lutas mortais), encomendavam o negro pela língua que era falada pelos demais trabalhadores da fazenda: a bunda. O que bastou para que a palavra viesse a referir-se não mais à língua, mas ao aspecto físico deles: nádega grande, sua principal característica física, que os distinguia dos negros de outra procedência. E tanto isso é assim que em Portugal as nádegas são chamadas de cu, da mesma forma como os de língua inglesa chamam-nas ass. No Brasil, nádegas e bunda são a mesma coisa, reservando-se ali o vulgar e impronunciável cu para designar o ânus, que os de língua inglesa chamam asshole. Tudo isso eu expliquei, como pude, ao motorista do ônibus, quando chegamos ao ponto final. Aquela havia sido a última viagem dele naquele dia e eu lhe ofereci algum trago de øl num café ali próximo, o que ele, já vencido o turno de serviço, não tinha por que rejeitar. Baixamos umas tantas garrafas de cerveja norueguesa, pois os bares são proibidos de vender vinho ou uísque, e depois da quarta ou quinta ele se pôs a falar, quebrando a discrição dos nativos, que muitos pardos adotam, ainda que, aparentemente, seja proibido à casta superior de brancos locais aceitar empregos menores, como o de motorista, por exemplo, seja de ônibus, seja de táxi, função ocupada por negros e mulatos, africanos, indianos ou paquistaneses, como era o caso do meu interlocutor, que vivencia aqui na distante Escandinávia o mesmo sistema de castas que vivera em seu país natal. Não dizem que a História é feita de repetições ? Ele conhecia a negra de nádegas grandes há muito tempo, quando ela viera para a Escandinávia, fugida das lutas fratricidas entre as duas facções que disputavam o poder em Angola, alimentadas por potências externas. Não errei ao supô-la uma bunda. Antes disso vivera algum tempo na vizinha Moçambique, de onde também foi escorraçada pelo confronto entre duas facções: a Frente de Libertação Moçambicana e o Renovação Nacional Moçambicana, as temíveis Frelimo e Renamo, uma delas mais violenta do que a outra. Bungwanga, eis o seu nome, era uma jovem que havia demonstrado desde cedo pendor para as artes. Nada a estranhar num país onde as esculturas em ébano ou mesmo marfim (coisa que o governo acabou proibindo, pois era com a venda das presas dos elefantes que os revolucionários adquiriam armamentos no exterior) são vendidas nas ruas sem calçamento, por um preço quase simbólico. Pois a negra desenhava e pintava com extrema habilidade, como se reconhecia na aldeia onde ela morava. E suas pinturas eram misteriosas, cheias de símbolos que nem ela mesma, evidentemente, saberia explicar como se haviam ali fixado. Coisas dignas de fazer a alegria de um terapeuta junguiano, aquela expressão do inconsciente coletivo, de que ela, evidentemente, jamais ouvira falar. "Tudo o que fiz foi reproduzir um sonho", explicava ela e mais não dizia. Nem tinha o que dizer. Seus quadros tinham como personagens principalmente os animais africanos, que ela reproduzia com fidelidade fotográfica. O comportamento dos personagens, contudo, fugia ao comum. Um belo e elegante leão fugindo atemorizado de uma simples gazela. Ou um crocodilo sendo escoiceado por uma zebra. Também pintava flores. Rosas, muitas rosas, em cujo caule faltavam, porém, os necessários espinhos. "Querer rosas sem espinho é o mesmo que querer mulher sem ciúme" disse um crítico local mais exigente. Pintava bugainvílles, togomas e túbis, com seus caules floridos e também nus de espinhos. Pássaros, muitos pássaros, que pareciam ter sido desenhados pena por pena, tal sua perfeição. Mas que não coincidiam com aqueles que todos conheciam. Araras multicoloridas, com o bico da garça. Aves de rapina sem as garras que lhe atribuem o sobrenome. Era, enfim, uma inversão da normalidade da natureza, como reconheciam todos, principalmente os poucos turistas que por ali passavam e lhe compravam a produção a preço de banana. Ou pelos potentados locais, principalmente os políticos, aos quais não faltava dinheiro para pagar o que os quadros efetivamente valiam. E tudo seguia seu rumo se ela não houvesse pintado um quadro que fugia de seu repertório. Ele mostrava um avião sobrevoando matas claramente africanas. Tinha ele posição descendente e lançava fumaça aos ares. Apenas isso. Nem fogo se via no aparelho. Deu-se, porém, que na semana seguinte um líder político local veio a morrer na queda de um avião, cuja cor correspondia exatamente àquela da pintura da nossa Bungwanga. A coincidência foi objeto de muitos comentários, que, com o passar dos dias, foi diminuindo, deixados à conta de mera coincidência, mesmo porque eles nada sabiam dos estudos junguianos a respeito da sincronicidade. E a vida voltava ao normal, ela com suas pinturas costumeiras. Mais um mês e ela, certamente inspirada por um impressionante quadro de Goya, que teria visto numa revista importada (isso nunca ficou muito claro), pintou uma alegoria, na qual se poderia perceber claramente que dizia respeito à disputa sangrenta entre dois homens. Na semana seguinte houve um atentado numa das praças da cidade, quando um prestigioso político foi morto por um parente próximo, em plena luz do dia. Novos comentários daqueles que haviam visto o quadro, que agora precisou de algumas semanas, não apenas dias, para ser aparentemente apagado da memória daqueles curiosos. Bungwanga continuou a pintar seus animais, seus peixes, suas flores e seus pássaros e sua vida continuava na mesma rotina de sempre. Novamente foge ela de seu repertório habitual e mostra em uma de suas telas uma mulher com um longo vestido branco, ao contrário das vestes coloridas costumeiras. A mulher está sendo esfaqueada, não se distinguindo bem, na penumbra do quadro, as feições do agressor. Havia na mulher um pormenor perturbador: ela tinha no rosto uma sombra que claramente indicava ser referente a uma barba masculina. Na semana seguinte um prestigiado bispo maronita, que passava pela cidade, foi esfaqueado à saída do templo. Sua batina branca ficou tisnada pelo vermelho espesso que lhe correu do peito. E lá estava a necessária barba cobrindo o rosto da autoridade eclesiástica assassinada. Ora, as estranhas coincidências foram, como sói acontecer em ocasiões tais, comunicadas ao Ministério da Justiça e Bungwanga foi convidada a prestar os devidos esclarecimentos junto a quem de direito. Quem lhe dava informações tão precisas a respeito de fatos pesarosos como aqueles que ela registrava em seus quadros com precisão e antecedência ? "Meus mentores", limitou-se a dizer ela. Os negros são profundamente supersticiosos e, em outra situação, tal resposta seria suficiente para explicar o inexplicável. Há naquela região muitos nhamussoros e ela talvez fosse também apenas uma feiticeira. É verdade que, em nome de Mulugo, muita gente comete atos que nada têm a ver com o Criador. Entretanto, como o país estava sendo invadido por agentes estrangeiros, interessados nos recursos naturais de Angola, seu silêncio foi interpretado como manifestação política. Dali não voltou para casa. Ficou alguns anos detida, sem a formalização de um julgamento, mesmo porque não havia ligação direta entre a premonição e os fatos previstos e, portanto, de nada se poderia oficialmente acusá-la. O motorista não me sabia indicar exatamente onde ela ficara detida, nem que tratamento havia recebido, pois não tinha tanta intimidade para perguntar-lhe isso, que ela jamais quis contar espontaneamente. O fato é que, passados esses anos, ela conseguiu bandear-se para o país vizinho, em circunstâncias que ele também desconhecia, e de onde acabou por ser expulsa, sem jamais dizer ao amigo os motivos dessa punição. "E que faz ela agora ?" indaguei-lhe, como era natural que o fizesse. "Ela é faxineira nas horas vagas", respondeu-me ele. "Horas vagas ?" E ele me explicou que a maior parte do tempo ela o passa pintando seus quadros, que vende a preços irrisórios a um norueguês, que se passa por autor deles, vendendo-os por intermédio de uma das inúmeras galerias da cidade. "Oslo, como o senhor sabe, tem mais galerias do que farmácias", foi seu comentário, que me impediu de saber onde poderia encontrá-los para uma análise mais objetiva dos trabalhos de nossa Bungwanga, que se liga ao país de origem pela "Quadros Angolanos na Diáspora", uma entidade aparentemente oficial que tem por objetivo a evidente fiscalização dos angolanos no Exterior, comenta ele. "E que tipo de quadros ela pinta agora ?", indago, curioso. "Focas, baleias, renas, garças, gaivotas e flores, muitas flores locais, dessas que se encontram nas ruas de Oslo na Primavera". Personagens humanos não mais. De todos os quadros que ele viu, pintados na Noruega, apenas um chamou sua atenção, por fugir dessa rotina: era uma mesa comum, coberta por um pano verde, onde havia cartas de baralho espalhadas. No chão, apenas duas cartas: o rei e a rainha de copas. Ambas rasgadas em quatro pedaços. 1Do Livro Contos da Noruega, inédito. 2As feridas que você não pode ver são as mais dolorosas.  
sexta-feira, 27 de julho de 2007

In illo tempore

  "Antigamente é um tempo que se foi, mas que se recusa a ir de vez e fica dentro da gente, atormentando o coração com saudade". (Rubem Alves) As Memórias do Jung têm inúmeras vantagens. Uma delas, claro que não a principal, é mostrar-nos que ele, mesmo vindo a ser o gênio que foi, era um homem comum, tinha essas esquisitices que todos nós temos mas procuramos disfarçar, e um precoce juízo crítico. Nós, que muitas vezes pensamos que somente nós somos assim tão inseguros e desajeitados, tão incompreendidos, tão gauche, como diria o Drummond, temos ali motivo de consolo. Suas referências a seus pais não são as de um filho devotado, como as de tantos desmemoriados que não se lembram dos tempos difíceis da infância, dos castigos imerecidos, da incompreensão e da prepotência que, não poucas vezes, caracteriza o relacionamento pais/filhos, preferindo guardar na memória apenas os bons momentos, que todos nós, tanto quanto o Carl Gustav, também tivemos. Ele fala dos momentos doces mas também dos momentos amargos. Isso se chama honestidade intelectual. Falo aqui de uma coisa que ele e muitos de nós conheceu muito bem: a pobreza, e de como isso se refletiu na escolha de nossa vida profissional e em nosso estilo de vida. Dele e minha. Minha mãe era uma jovem bonita que, vindo da Itália ainda menina, cresceu e se casou na Mooca. Seu marido, um garboso policial civil, tinha a mania de ser honesto. Com isso, só conseguiu comprar um terreno, financiado a perder de vista, num lugar que a italianada da Mooca chamava de Cafundós do Judas. Era, na verdade, o incipiente bairro do Alto de Santana, além do qual acabava o mundo, tanto que lá naqueles confins haviam construído um hospital para doentes de fogo selvagem, de que, de vez em quando, segundo se dizia, fugiam alguns para chupar o sangue das crianças e nisso buscar a cura. E foi para lá que se mudou nossa família, composta, na ocasião, do casal e dois filhos. Logo viriam mais dois, completando-se a ninhada. Mantê-los com o que ele ganhava na Guarda Civil (naquele tempo, havia a Força Pública, de uniforme cáqui, rebatizada Polícia Militar depois de 1964, e a Guarda Civil, de uniforme azul, que era estadual, coisa que o Jânio veio a ressuscitar, a nível municipal, tempos depois) era quase impossível. Daí as costuras a que se dedicava minha mãe para reforçar o orçamento do lar. A rua Antonio de Souza só veio a conhecer asfalto quando o segundo dos quatro filhos já ingressava na puberdade. Para irmos ao centro da cidade caminhávamos vários quarteirões que, nos dias de chuva, era um lamaçal só. Minha irmã mais velha, quando ia para o trabalho, levava um par de sapatos numa sacola e, chegando à Rua Voluntários da Pátria, onde se tomava o ônibus 45, deixava os sapatos enlameados numa moita de capim, ao pé da caixa d'água que ainda lá existe, e subia para o ônibus com os sapatos limpos. À tarde, quando voltava do trabalho, invertia a operação. O ponto final do 45 era no largo de Santa Ifigênia, onde havia um prédio que chamava a atenção de todos nós: o edifício Gazeta, onde havia um letreiro luminoso, com as letras correndo da direita para a esquerda, dando-nos as manchetes dos jornais ali impressos. Ali também funcionava a Rádio Gazeta, que tinha, dentre outros, um locutor de voz inconfundível. Seu nome: Walter Ceneviva, hoje um jurista respeitável. Eu, como o Jung, tinha lá minhas veleidades profissionais. Sem saber bem o que era isso, pendia para a Arquitetura, que, naquela época, era ramo da Engenharia. Entretanto, por escolha de meu pai, preparei-me para o vestibular de Direito da USP, onde o ensino era gratuito e não havia necessidade do período integral da Politécnica. Eu poderia, assim, trabalhar meio período e contribuir para meu sustento. Ou USP ou nada. Aliás, eu só fizera meus estudos ginasianos porque meu pai conseguira uma bolsa de estudos para mim no Colégio Salete, nímia gentileza do professor Hélvio Bugano, como disse eu em comovido discurso muitos anos depois, já juiz. Leiamos a esse respeito o Jung: "Foi preciso então enfrentar o penoso problema de arranjar o dinheiro para os estudos. Meu pai podia fornecê-lo apenas em parte. Solicitou uma bolsa junto à universidade e, para minha vergonha, a obtive. Esse sentimento prendia-se menos ao fato de que nossa pobreza seria assim publicamente confirmada do que à convicção de que todos os superiores, isto é, os competentes não me viam com bons olhos". Eu, certamente muito superior espiritualmente ao escritor suíço, ou mais conformado do que ele com o padrão de vida que ambos levávamos, jamais tive vergonha de minha pobreza. Ao menos conscientemente. Havia naquela ocasião dois cursos preparatórios: o do Castelões, onde se notabilizaria o Geraldo Roberto de Souza, que nos precederia na magistratura, e o do Azevedinho. Este era um lusitano de não mais de metro e meio de altura, que praticamente dava todas as aulas. Conhecia literatura como gente grande. Era autor de uns livros de latim, num dos quais havia uma versão feita por ele, que começava assim: "Audierunt Ipirangæ ripæ placidæ ..." Era o nosso hino nacional. Eu sempre fora bom aluno, um CDF, como então se chamavam aqueles que com certeza tinham as nádegas de ferro para ficarem sentados o dia todo, como eu, debruçado sobre os livros. No cursinho conheci um mulatinho tímido, vindo do Interior, o Didi. Este me encantava pela voz aveludada que tinha, com a qual vivia cantarolando alguns boleros, o que me causava inveja, pois eu tinha uma remota vocação para a música. Seu nome era Aldimir Ribeiro. Faltava muito às aulas porque estava recebendo convites para apresentar-se em boatezinhas do centro da cidade. E lá ia ele, a conhecer gente nova. Uma dessas pessoas chamava-se Maysa Matarazzo, esposa de um ricaço, que não via com bons olhos o pendor dela pela música. Ela compunha, e cantava nas festas familiares suas músicas, mas a família do marido se opunha àquilo. Tinha um rosto triste e uns olhos verdes simplesmente incríveis, como vim a verificar muito tempo depois, quando o Didi já se chamava Almir Ribeiro. Sua bela voz e aquelas companhias acabaram por retirá-lo definitivamente de nosso convívio no Azevedinho, tanto quanto fizeram a Maysa romper com o Matarazzo. O fato é que ele gravou dois ou três discos, apareceu em filme da Atlântida e em programas da engatinhante televisão e foi convidado para apresentar-se em um cassino, em Punta del Este. O moço interiorano, não habituado com o Oceano Atlântico, certo dia nadou além dos seus limites pessoais e não voltou vivo à praia uruguaia nem a seu país natal. Aquilo me mostrou que o sucesso também tem seu preço. Concluído o cursinho, prestei o vestibular e fui aprovado, principalmente por causa de uma armadilha que montei para o examinador de latim. Depois que eu traduzi o texto, ele me mandou classificar determinada palavra. Eu não só classifiquei, como acrescentei, malandramente: "Essa é uma das inúmeras preposições que exigem o acusativo". E quais são as demais ? E eu despejei a lista que trazia na ponta da língua. Um ou dois dias depois de sair o resultado, recebo um telefonema impensável. Era o Azevedinho, que me convidava para lecionar em seu curso preparatório. Ele vinha prestando atenção em meu desempenho nas aulas e agora, com aquele terceiro lugar no vestibular, ele me queria para seu auxiliar. Inseguro como um Carlos Gustavo qualquer, declinei do amável convite, como se diz, com uma resposta educada: "É uma honra ser lembrado pelo senhor, professor, mas fica para outra ocasião". E ele, mais Azevedinho do que nunca, batendo o telefone, deseducadamente: "Não haverá outra ocasião". E não houve, de fato, jamais nunca. Hoje, passados mais de 50 anos, concluo que aquela grosseria muito contribuiu para meu auto-conhecimento. Fui aprendendo que, como toda gente, eu não era um bloco de coerência. Eu poderia dizer, como Jung, que fui tomando consciência de que "havia em mim duas pessoas diferentes: uma delas era o menino de colégio que se caracterizava pela insegurança; o outro era um homem importante, de grande autoridade moral", que foi abrindo o seu caminho com muito esforço, tanto quanto o genial suíço. E com Jung aprendi que modéstia é coisa de quem finge ser menos do que sabe que realmente é.  
sexta-feira, 20 de julho de 2007

Mistérios Brasilienses

  "Se todos os homens rivalizassem em nobreza e se esforçassem por realizar as ações mais nobres, então todas as necessidades comuns seriam satisfeitas e cada indivíduo possuiria os maiores bens, se na verdade a virtude for de tal valor". (Aristóteles) Quando resolveram criar aquela baía de Guanabara artificial lá em Brasília, para que os cariocas não sentissem saudade dos bons tempos do Palácio do Catete e arredores, eu fui contra. Não que eu mandasse alguma coisa, mas o brasileiro tem essa mania de achar que entende de tudo e eu manifestei essa opinião, não sei se foi ao Zé Carlos Bettiol, que nos havia solenemente tonsurado no trote de ingresso na faculdade, coisa que o Campbell chama de "rito de passagem" e que alguns ignorantes querem proibir, ou ao Roger Vadim da Costa Arsky, que já usava aquele bigode de lorde inglês que ostenta até hoje e ainda não havia dirigido o Barbarella. Com todo o respeito, meus caros, paira no ar uma suspeita de que isso não vai dar certo. Essa água toda parada ali por anos e anos, mais dia menos dia vai começar a emanar alguns eflúvios cujas conseqüências ninguém pode prever. Eflúvios era uma palavra que eles, evidentemente, não conheciam. Ambos respeitavam minha cultura, pois, quem era o misterioso Shelley Keats, responsável por uma página humorística em um dos jornais da faculdade ? Pois é. Calaram-se respeitosamente, mas, lá no fundo, não tinham qualquer dúvida. "Se esse cara algum dia for à Itália vai tentar aprumar a torre de Piza". E se mandaram para a capital federal. Deu no que deu. Não a ida deles, mas a construção do tal lago. O brinquedinho milionário do Oscar e do Lúcio, em cujo bigode certamente o Vadim se havia inspirado, era, como todo brinquedo novo, uma beleza. Aquelas esculturas plantadas naquele chão que outrora fora não sei bem quê, como disse o Juscelino no dia da inauguração, convidavam ao pasmo. Ruas sem semáforo, esse nome mais idiota inventado pelos paulistas para denominar sinaleira de trânsito, isso sim é que é nome correto, como dizem fora deste nosso Estado, a sugerir cena de filme colorido norte-americano, com Doris Day e Rock Hudson, aquele belíssimo galã pelo qual as moçoilas. Deixa pra lá. Em derredor, aquela exuberante falta de vegetação digna de tal nome. E algumas siriemas pastando por ali, quando não estavam competindo quem gritava mais alto, incomodando um grupo de violeiros que o Jusça havia trazido especialmente para lhe cantar o "como pode o peixe frito ser comido sem farinha ?" Música que ele adorava. Tanto quanto bailar e viajar de avião. As pessoas foram chegando, vindas lá da seca mais acima, e cadê hotel pra elas ? Ou casa ? Ou conjunto residencial ? Ou emprego ? Ou ? O resultado foi o que qualquer urbanista minimamente esclarecido já previria: cidades de lata, como diria o lusitano Boaventura Santos, que entende disso como gente grande e que se sente ofendido quando o chamam de jurista. Faz ele muito bem! Aí começaram a aparecer os governantes locais antenados com os tempos pós-modernos, como eles costumam dizer em seus discursos ininteligíveis. Em lugar de fluxo rápido de veículos, coisa mais absurda, melhor fazer filas e mais filas diante de sinaleiras, se é que é assim que se chamam aqueles semáforos brasilienses. O Lúcio Costa disse que depois dessa nunca mais poria seus poéticos pés naquela cidade. O Oscar, com a pragmaticidade dos comunistas autênticos, como o grande líder e também macróbio Luiz Carlos Prestes, engoliu aquele atentado à obra de que era co-autor e fez de conta que a ofensa não era com ele. Continuou a pegar a pilot, fazer dois ou três risquinhos curvos numa folha branca de papel, que envia a seus auxiliares, que vão morrendo um depois do outro antes dele, que é eterno, com a recomendação modesta: "fiat!" E deu no que deu. Trazer aqui a biografia das figuras que, por lá passando, mereceriam ter busto eternizado em algum monte Rushmore caboclo, seria encher o restante do espaço com nome e mais nomes. Melhor escolher algumas das figuras mais significativas, pinçando nos três poderes da praça, que comprovarão, com suas biografias, aquela tese que eu sustentara nos idos de 50. Como seria o governo do Jânio sem os eflúvios do lago Paranoá ? Você acha que ele iria sair desfilando com aquela fantasia de soldado indiano, só faltava bermuda e meia de lã até o joelho ? E ainda nos convencendo de que aquilo era roupa adequada ao clima brasileiro ? Que diriam a isso os gaúchos que, salvo erro meu, naquele tempo ainda pertenciam ao Brasil ? Proibiria biquíni em desfile de miss ? Renunciaria e depois renunciaria à renúncia ? E o Jango, que entendia tanto de política como o Mané Garrincha entendia de geografia ? Felizmente ele tinha um cunhado que, para o bem da pátria, revogou o Código Civil elaborado pelo ignorante Rui Barbosa de Oliveira (você sabia que ele era tão Oliveira quanto o Juscelino ?), que, fosse mais dedicado aos estudos, saberia que "cunhado não é parente". Parentesco por afinidade e outras besteiras é coisa de gente que não tem o que fazer. Parente é pai, mãe e filho. O resto é o resto. E o Collor, gente, como ele costumava exclamar ? Um nome que vale por uma biografia. Ou, se preferirem, um nome que dispensa biografia. Só pode ser efeito dos gases do tal lago. Pense nas explicações do Renan para aquela história da pensão da filha. Se algum dos meus filhos me apresentasse o boletim escolar rasurado, ele levaria uma sova daquelas. Não por haver rasurado o boletim, pois era direito dele fazer o que bem entendia com o que era dele. Nem pelas notas baixas, criança faz dessas besteiras mesmo. Mas por tentar me fazer de bobo. E veio o Roriz, com aquele discurso que nos custou alguns lencinhos de papel e que, depois dele, voltou para os braços do povo. De onde, aliás, não deveria ter saído. E, last but not the least, como diria aquele recentíssimo ministro do Lulla, que parece o Clodovil antes da plástica, vem o Paulo Medina, primus gerrmanus inter pares. Vejamos: juiz não dirige automóvel oficial, dirige ? Trabalhinho mais insignificante esse, sô ! Juiz não perde tempo abrindo livro de doutrina e de jurisprudência, perde ? Para isso basta contratar parentes dos colegas, mesmo porque os colegas contratarão nossos parentes, é ou não é ? Juiz não perde seu precioso tempo digitando sentenças e acórdãos, perde ? Lá estão novos parentes dos colegas, ditos assessores, para esse serviço braçal, ou, pelo menos, digital. E juiz também não compulsa autos, segundo declaração do ex-presidente da Associação de Magistrados Brasileiro, gestão 1996/1997. Segundo supúnhamos até aqui, em nossa cândida ignorância, se alguém impetra uma ordem de Habeas Corpus, alegando que tal juiz de tal comarca não se houve com a prudência e sabedoria habituais, como dizem os incensadores, ao indeferir pedido de concessão de liberdade provisória a um réu, o mínimo que o relator teria a fazer, ao reformar tal sentença, seria examinar os fundamentos da decisão que, segundo o writ, violou o constitucional direito do paciente de vir, ir embora para o Exterior, e ali ficar, e onde viverá para sempre, graças ao dinheiro acumulado com os crimes por ele cometidos, parcialmente repartido com seus advogados e quejandos. Depois dessa leitura, segundo se supunha, caber-lhe-ia ao relator a análise crítica dos fundamentos daquela decisão. Aí ele chamaria o auxiliar e diria: "veja meus votos anteriores, nos quais já me manifestei sobre essa surradíssima tese, vezes e vezes, e faça as adaptações necessárias ao presente caso. OK ?" Pois essa jurisprudência acaba de ser profundamente alterada. Agora é o assessor quem lê os fundamentos da decisão recorrida e dá disso notícia ao relator, quando dá. Se o assessor, por esses esquecimentos a que todos nós, juizes ou não, estamos sujeitos, não resume adequadamente a decisão que o relator deveria, em tempos pretéritos, ter lido, é chamá-lo ao gabinete e dizer: "Rua! Dê lembranças a teu pai". Caso encerrado, dirão seus compreensivos pares. Ficou no ar apenas uma dúvida: se o relator não faz a pesquisa, não datilografa o acórdão, não examina os autos, qual a função dele ? Pergunta mais descabida. A função dele é apor a sua valiosíssima assinatura no acórdão, coisa que exige tempo e concentração, e depois ler, durante a sessão, aquilo tudo que o auxiliar, que não ganha nem um terço do que sua excelência percebe, havia feito. Percebeu ? Claro que talvez já se pense em contratar um porta-voz para cada ministro, o que pouparia sua excelência desse monótono trabalho. É o que se dessume da mais recente lição de um dos homens que tem sua carrancuda fotografia no hall da fama da Associação dos Magistrados Brasileiros, aquela conspícua entidade que resolveu vir a público para lutar pela moralização do serviço público. Perda de tempo, meu caro Collaço. Tudo isso só pode ser efeito dos tais eflúvios da "baía fluvial", tradução do nome do tal lago. Melhor esvaziar o Paranoá.  
sexta-feira, 13 de julho de 2007

Nomes

  "A Juíza da comarca de Castro, no Paraná, autorizou o registro de uma criança com o nome de Lehgolaz, personagem da saga Senhor dos Anéis". (Dos jornais) Deu na televisão: uma senhora pretendia pôr na filha o nome Dgiúlia. A cartorária esclareceu que o nome correto é Júlia. Ela queria o nome italiano. Então é Giulia. Também não serve, porque a filha seria da mesma forma chamada de Júlia, e ela fazia questão da pronúncia italiana. Acho que havia ouvido em uma novela. Então não pode. Pode, não pode, foram falar com o curador de registros, que subscreveu o veto. Aí ela foi consultar o juiz de direito, que, educadamente (tudo estava sendo televisionado, pois não ?), ponderou que, de modo geral, os pais, quando escolhem o nome para o filho ou a filha, pensam mais em si do que no destinatário do nome. Em razão disso, muita gente, quando adulta, procura o juiz para mudar o nome. Como reagiria a filha tendo um nome incomum desses ? Nem precisa ser incomum. O Zico, o famoso Galinho de Quintino, idolatrado no Japão, como jogador e como técnico de futebol, dia desses, disse pela televisão que se arrepende amargamente por haver posto seu nome no primeiro filho que lhe nasceu. O rapaz, que joga futebol, não consegue errar um passe que lá vem cobrança. E o Júnior, o tal filho, ali do lado, contando casos e mais casos desses, a aumentar as culpas do ilustre pai. Mas vamos aos nomes insólitos. Para quem já teve aluna, filha de eslovacos, chamada Biruta, nada pode surpreender. Uma outra aluna, professora primária, exultou com a aula relativa à possibilidade da mudança de nome, quando o portador esteja sendo por ele submetido a vexame, pois tinha uma aluna chamada - acreditem ! - Disneylândia. Quando a professora fazia a chamada, a portadora daquela enormidade se escondia sob a carteira. Encaminhei-a depressinha ao curador de menores local. O cartório eleitoral é fonte permanente de esdruxularias dessas. Quem foi ou é juiz eleitoral tem muito a contar a respeito. Principalmente eleitores nascidos em cidades onde os cartorários são tão ou mais ignorantes do que os pais do registrado. Que tal uma eleitora chamada Cornustíbia ? Procure no TRE de São Paulo e lá encontrará tal nome, ainda que, a esta altura, a eleitora, que residia em Paulo de Faria, já deva ter morrido, pois são passados quase quarenta anos de nosso encontro e o conhecimento de tal fato. Talvez o pai quisesse prestar alguma homenagem ao chifre e à perna de alguma vaca, ou algum boi. Sabe-se lá ? Perguntem ao Homar Cais, que é daquela região. Aliás, o pai dele, quando o batizou, imaginou que ele seria professor de Direito do Mar, pois não ? É sabido que o pai do Millôr Fernandes jamais quis pôr esse nome incomum no filho. Ocorre que, já rapaz, o filho do seu Fernandes teve acesso ao seu registro de nascimento, lavrado a mão. E viu que o cartorário, como tantas vezes ocorre, ao cortar a letra "t" de Milton, levou o risco para longe da base vertical daquela letra, parecendo ser um acento circunflexo sobre a letra seguinte. Estava criado, graças à imaginação do grande humorista, o nome Millôr, ao mesmo tempo que desaparecia para sempre o até então Milton Fernandes. Muito juiz paulista já despachou petição assinada por um advogado de nome Nerço que, certamente por algum motivo nobre, se recusou a corrigir a falha cartorária. Talvez em homenagem à simplicidade do pai ou da mãe que o registrou. Poderia ele ter feito como o cliente daquela advogada que pediu alteração do registro, dando lá seus motivos. Indo ela a cartório, para saber como andava o pedido de alteração do registro do nome de seu cliente, chamou a atenção dos circunstantes pelo espaço enorme que colocou entre o nome e o sobrenome do interessado, quando indagou do escrevente: "Veja aí como anda o processo de retificação de nome de Adolfo (pausa longa) Dias". A primeira impressão era de que ela houvesse esquecido o nome de família do seu cliente. Pronunciando-se, porém, com naturalidade o nome completo do interessado se descobre o cacófato que deve ter sido invocado para a alteração pretendida. Adolfo José Dias, por exemplo, resolveria o problema do rapaz, como concluiria qualquer juiz sensato. O mesmo que, certamente, transformaria esse Nerço no correto Nelson, se é que se pode usar o adjetivo. Por falar em homenagem, o médico Adauto Rocha, profissional muito respeitado nesta Capital, confessou-me que seu nome lhe fora dado em razão de um tio, monsenhor na região de Ipauçu e Santa Cruz do Rio Pardo. Pois meu pai, um anticlerical convicto que morou por aquelas bandas, quando lhe nasceu o primeiro rebento masculino, homenageou o mesmo padre, que, a julgar por tal fato, deveria ser, deveras, um santo. Pois esse nome também é, ele mesmo, uma homenagem. Diz a lenda que, quando S. Félix estava sendo executado numa fogueira, apareceu um doido querendo saber do que se tratava. Foi-lhe explicado que o homem que ali ardia era um cristão que se havia recusado a renegar sua fé. Daí sua execução. Pois o tal forasteiro, dizendo ser também cristão, fez questão de morrer junto com o santo, queimado na mesma fogueira. Qual o nome dele ? Ninguém jamais soube. Como aquele cristão morreu junto do mártir, sendo seu sacrifício "acrescentado" ao do santo, foi batizado, post-mortem, de Adauctus, particípio de adaugeo, es, ere. Já falei de meu querido amigo Maurício de Oliveira, cuja voz emocionava tantos ouvintes da Rádio São Paulo, dentre os quais a genitora da Leda Magalhães. Pois fez e faz até hoje par com a Lenita Helena, a grande dama das novelas radiofônicas. Pois não é que acabo descobrindo, depois de quarenta anos de amizade, que a Lenita jamais foi Lenita, muito menos Helena ?! Na realidade, deram-lhe o inusual nome de Sidéria, que seria corruptela de outro não menos incrível: Sidélia, que mais parece, com todo respeito, nome de remédio. O Otávio Gabus Mendes, ou outro desses monumentos, vetou aquele nome sugerindo-lhe que arranjasse outro. Pois foi de uma sobrinha que ela tomou o nome com o qual seria eternizada nas rádio-novelas. E há também o caso do Dácio de Arruda Campos, juiz famoso em São Paulo, pois era tido e havido por comunista, embora fosse apenas um grande gozador, que jamais pôs em risco as instituições do país. Prova maior de seu não-comunismo era o fato de ser articulista do conservador Estadão, onde escrevia sob o pseudônimo de Mathias Arrudão. O que não impediu que a visão caolha de algum patriota conseguisse sua cassação em 1964, talvez por ter escrito um livro, hoje mais atual do que nunca, intitulado: "A Justiça a serviço do Crime". Em lugar de uma medalha no peito, deram-lhe um pijama e um par de chinelas, em nome da "segurança nacional". Pobre país ! Pois o Dácio havia chegado à comarca há bem pouco tempo quando foi procurado pelo titular do cartório do registro civil, que tinha um problema para resolver. "É que apareceu lá um camarada querendo registrar o filho com um nome estranho e o doutor Eiriri me havia recomendado que, em casos como esse, eu viesse falar com ele antes de fazer o registro. Como o doutor Eiriri não está na comarca, eu vim consultar o senhor a respeito". O Dácio arregala os olhos: "E quem, por acaso, é esse doutor Eiriri? Que eu saiba, isso é nome de uma cascata, na rodovia Rio-Santos". O escrivão não se faz de rogado: "Doutor Eiriri Carvalho é o curador de registros da comarca, Excelência. Ele sempre fiscaliza os nomes esdrúxulos que querem botar nos filhos". E o juiz, com toda sua bonomia, decidindo a dúvida de pronto e legislando para o futuro: "Olha aqui, meu rapaz. Se a comarca tem um curador de registros chamado Eiriri, você registre tudo o que aparecer no teu cartório".  
sexta-feira, 6 de julho de 2007

Rodriguiana

  "Juiz do Paraná adiou audiência porque reclamante usava chinelos". (Migalhas, 27.6.07) "No Brasil, a impunidade se transformou em símbolo de status social". (Roberto DaMatta) E quem disse que juiz tem de ser compreensivo paternal afetuoso conselheiro tolerante coisas assim ? Tem nada, tem mais é de ser carrasco mesmo, tratar essa gente toda ditos desviantes sociais com casca e tudo, que é disso que eles estão precisando, que que estão pensando ? Já imaginou teu pai te tratando com pão de ló e você virar a mão e ele ficar desgostoso porque criou filho para ser macho e tu por aí com essa viadagem toda ? Tem mais é de te criar com pau de ló, se me permites o trocadilho. Você já viu alguma vez um condenado vingar-se de juiz que o condenou ? mesmo quando ele sabe que é inocente ? mesmo quando ele confessou porque foi torturado ? mesmo quando ele ? Claro que não viu, nem você nem ninguém porque réu tem pelo juiz essa veneração, meio sadomasoquista, viu aquele filme O Porteiro da Noite onde a moça acaba se apaixonando pelo seu carrasco ? Ela queria mais era levar porrada, até porque mulher normal gosta é de apanhar, como dizia o Nelson Rodrigues aquele cara lá do Rio que comentava futebol e era míope feito uma toupeira, ele não enxergava porra nenhuma no campo do Maracanã ou nas Laranjeiras e no dia seguinte escrevia no jornal onde ele atuava coisas maravilhosas sobre o jogo que neguinho lia e dizia puxa ! eu estava lá e nem percebi isso ! como esse cara é legal ! era porque ele reescrevia a história do jogo. E a vida não é mesmo assim ? A vida como ela é, as coisas acontecendo na medida em que a gente sabe que elas aconteceram, porque se elas acontecerem e ninguém ficar sabendo esse não-saber equivalendo a não-acontecer e isso significando que se é verdade que um copo sem líqüido dentro está cheio porque o ar só não existe no vácuo e sendo assim nenhum copo jamais está vazio e isso se chamando teoria da relatividade ou da compensação como diz o grande cientista Luis Roberto Barroso, futuro juiz do Supremo, e como disse o ministro da cultura numa das vezes em que ele veio ao Brasil para descansar de mais uma turnê que ele havia feito pela Europa para ganhar dinheiro porque o que ele ganha como ministro não dá para ele pagar nem o café da manhã que dizer a pensão daquela porrada de ex-esposas que ele tem, como ele deixou claro quando tomou posse e todos nós ouvimos e ninguém achou isso nada de mais, mesmo sabendo que as ex-esposas dele são todas saudáveis e trabalham pacas e ganham uma puta nota preta, sendo uma delas a administradora das múltiplas atividades dele, coisa que eu li na Caras, não sei se é verdade. Ou então são magistrados que aceitam viagem patrocinada sabe-se lá por quem, mesmo porque a cavalo dado não se olham os dentes, como dizem os beneficiados, que, juízes que são, cedo ou tarde terão em mãos algum processo cabeludo que, você vai ver, é do interesse da empresa que patrocinou a tal viagem dele e de seus familiares e fica uma dúvida se a tutela antecipada foi concedida em face da plausibilidade das assertivas constantes da peça vestibular, como dizem os juízes em seus despachos deferitórios de tais liminares, ou se quem dá almoço grátis cobra em dobro o jantar, como se diz na favela. Pergunte ao Juca Kfouri que ele entende disso, não era filho de promotor de justiça ? E isso quando não se dá de o cara ser processado, por descuido do advogado dele, que não chegou a tempo na delegacia e não azeitou os homens, e o nome dele acusado aparece nos jornais e nos noticiários televisivos onde ele diz eu sou inocente isso é perseguição política estão pretendendo abafar os desmandos do governo e eu fui escolhido para bode expiatório como comprovarei a tempo e hora, e, quando não, vem lá um HC dando a ele o direito de acompanhar o processo em liberdade, com recurso sobre recurso, advogado ganhando os tubos em cada peça que elabora que é para que o seu respeitável cliente tenha assegurados todos os seus direitos constitucionais, um dos quais sendo o de poder viajar para a Europa, gastar à tripa forra a grana que juntou você sabe como e a empresa que ele levou à falência sendo parca de recursos para pagar os direitos trabalhistas dos antigos operários que têm prestação de casa para pagar senão a financeira toma-lhe a casa e o advogado dele dizendo societas distat a singulis o que em linguagem de gente significa que o neguinho pode ser podre de rico que a empresa que ele levou à falência fica por isso mesmo pois não há dinheiro para pagar os credores da empresa, não sei se me fiz entender, os credores que se danem ! para dizer o mínimo. E se e quando finalmente ele réu importante vem a ser condenado anos e anos depois, vem lá uma prescrição retroativa, que faz a sentença deixar de ser sentença, apenas um nada jurídico, um fantasma, que dá a ele o direito de exigir que o promotor lhe peça desculpas por havê-lo molestado por todo esse tempo que durou o processo, pois se não durasse tanto tempo não haveria prescrição, veja que diferença quando se trata de nazista acusado de matar prisioneiro, que é preso mais de trinta anos depois e é processado e é condenado e é executado, olha ali o cadáver dele na foto ! e cadê a prescrição a favor dele ? Não tem. Isso quando não se cuida de prescrição etária, que beneficia os velhotes malandros, que deveriam ter a pena era aumentada pois não têm motivo algum para cometer crimes, que diabo ? já passaram da idade de fazer maluquices, mas aí está a prescrição retroativa mais a prescrição etária e isso dá uma overdose de benefício que as más línguas dizem ter sido inventada pelo Nelson Hungria que achou absurdo que um pai da pátria fosse cumprir pena em presídio junto com pés-de-chinelo como nós, onde já se viu ? e inventou isso que ninguém entende bem o que seja, a não ser os advogados de alto coturno que logo logo livram o cidadão de bom nome e passado ilibado dos inconvenientes da execução da pena, bastando a ele réu importante o processo, pois é pessoa proba e não precisa de cumprir pena para mostrar que está arrependido e disposto a voltar a trilhar o caminho do bem, ainda que não se saiba bem que caminho é esse pois aquele tal réu sempre trilhou o assim chamado caminho do bem, à maneira de todos aqueles que usam terno de tecido italiano e gravata hermés e os sapatos sempre lustrosos, ao contrário dos pés-de-chinelos como nós que deveríamos conhecer nosso lugar na sociedade e ali ficar, ou, pelo menos, buscar a ascensão social para poder deixar de cometer esses crimes meia-boca que fazemos e que nos fazem ter de enfrentar prisão temporária e pau-de-arara e levar porrada e choque de maquininha e cadeira do dragão e o tal de telefone que deixa muitos de nós surdos ou com aquele zuiiiiiiim no ouvido aporrinhando o coitado noite e dia, que é para aprender a deixar de ser besta e se preparar para subir na chamada escala social e poder, agora sim, com honradez e seriedade, usar terno de tecido italiano, gravata francesa e, se calhar, candidatar-se a cargo eletivo e, quem sabe ?, chegar a ocupar um cargo numa CPI qualquer, exibindo-se para o seu eleitorado na televisão e ficando imune de qualquer tipo de fiscalização, como é necessário para o progresso social e o aprimoramento da democracia, coisa antiga, que vem da Inglaterra, segundo dizem, onde nem o rei pode mandar invadir a casa de alguém, my home my castle, sendo que ali os nobres só podem ser julgados por seus pares, by their pairs, segundo li no Barroso, o que significa que ninguém melhor do que um gambá para suportar o cheiro de outro gambá, como diz aquele costureiro de cabelo tingido, ora deputado, até ele ! E, se vier a calhar de haver bom motivo, até dançar no plenário da casa ele dança, escrita assim com inicial minúscula que ela não merece outra. Ou até vir a ser membro de alguma Comissão de Falta de Ética, há! há! há! E tu agora vê se te levanta daí que é chegada a hora de o papai aqui deitar e esta maldita cela não tem lugar para todos dormirem deitados ao mesmo tempo, que que tu queria ? se quer moleza encomenda uma sopa de minhoca aí pro carcereiro. Falou ?
sexta-feira, 29 de junho de 2007

Verdade (A)

"Quid est veritas ?" (Pontius Pilatus) Verdade e mentira são conceitos filosóficos, que a vida prática nem sempre confirma. Dizer que a verdade não dói é coisa em que nem quem diz acredita. Como na vez em que o professor Fernão Mendes de Almeida, precisamente irmão do velho Canuto (aquele para quem a diferença entre inquérito policial e ação penal é a mesma que existe entre uma lagartixa e um jacaré) se encontrava na casa de um de nossos colegas, seus alunos de Direito Administrativo. Entre bebericos (naquele tempo se falava em birinaites ou coisa que o valha) e petiscos, alguém começou a tocar piano e todos nós entoando algo próximo de uma música. "Qüim qüim qüerum goodnight qüerum, qüim, qüim qüerum goodnight qüerum. Ó Nicodemo ! O, hô, hô, hô ô Jalauba". Um dos presentes, indiscreto, informou que o professor sabia tocar piano. E ele, modesto: "Eu toco muito mal". E os alunos: "Toca ! Toca ! Toca!". Ele se fez de rogado durante algum tempo, como se deve, mas cedeu às nossas súplicas. Tocou alguma coisa e, quando terminou, após os convencionais aplausos, um de nós, talvez o Chicão, eterno moleque, até agora quando já é avô, sentenciou. "Toca mal mesmo !" Muito embora isso fosse apenas a confirmação do que o próprio pianista havia já anunciado, a cara enfezada do Fernão positivamente não correspondia às suas convicções a respeito de seu talento musical. E cito outro caso envolvendo a verdade. Era no tempo em que havia carteiros. Sei que ainda há, mas com a comodidade do correio eletrônico, quem se dispõe a envelopar mensagem e ir até o posto do correio lamber selo e postá-la ? Esse passeio talvez seja feito apenas quando lá vamos buscar alguma mercadoria importada graças exatamente aos serviços da Internet e que enroscou na Delegacia da Receita Federal. Nos filmes norte-americanos da época até se podiam ver uns iglusinhos no jardim, postados sobre um pedestal, com uma bandeirola, que era acionada pelo peso da carta, quando esta era deixada na caixa do correio, que era precisamente o tal iglu. Se a bandeirola estivesse de pé, o morador saberia que havia novidade postal. O que mostra o espírito prático do norte-americano: gastar tempo e energia para ir até a caixa do correio, tão longe, ver se havia mensagem ? nem pensar, já que se poderia ter a informação sem desperdício de fôlego. Eis a razão de ser da tal bandeirola. Era isso, pelo menos, que eu supunha que ocorresse, se lá se era assim mesmo que a coisa funcionava. No Brasil jamais adotamos aquele artifício, o que diz bem com o espírito de nossa gente. Se podemos complicar, para que simplificar ? Aliás, enquanto lá no país do norte havia a tradição de, "faça chuva ou faça sol, o carteiro sempre cumpre seu dever", cá no sul a fama era a inversa. Coisa mais fácil era justificar ausência a alguma cerimônia atribuindo ao notório mau funcionamento dos correios e telégrafos a culpa pelo não recebimento do convite. E houve o caso daquele brasileiro que, indo viver no Japão, criou a maior confusão porque tentou justificar a ausência com a velha história do não recebimento do convite pelo correio. Pois obrigaram-no a fazer a declaração por escrito, instauraram uma sindicância e apuraram que, muito pelo contrário, o convite havia sido entregue no dia tal a fulana de tal. Por sinal, a esposa do convidado, que teve de mentir dizendo que se havia esquecido de entregar o convite ao marido, cujo cargo justificava a mentira. Pois o que eu queria contar era um caso real, envolvendo um carteiro brasileiro. Ou porque não ganhasse o suficiente, ou porque estivesse desgostoso da vida, ou porque não tivesse - ironia das ironias - quem lhe escrevesse queixando-se de saudade, nosso personagem resolveu atirar o conteúdo do malote num terreno baldio, contando com a colaboração da chuva, que cobriria de lama aquele monte de envelopes, ou os levaria para o rio Pinheiros, como tantos outros objetos que por ali trafegam. Entre pneus e latas de plástico, quem repararia naqueles retângulos de papel boiando ? Deu-se que um cidadão prestativo, desses chatos que deveria haver em maior número, dando com aquele monte de cartas, resolveu recolhê-las e levar ao posto do correio mais próximo. Cá, como lá, instaurou-se uma sindicância, que identificou o carteiro relapso, que foi demitido e processado criminalmente, como era de lei. A juíza que julgou o caso era uma loira de meia idade, muito bem humorada, vizinha de sala do Homar Cais, acho que atualmente desembargadora, pois não a vi mais. Colega dos dois era o Sebastião, homem do interior, fumador de cigarrim de paia, espirituoso, de alto astral. Certa quinta-feira, ela informou ao Sebastião que na sexta-feira precisaria faltar ao expediente. Indagou se ele poderia cobri-la, como se diz em tais casos. E ele, malicioso, homem do interior, criador de gado, revirando os olhos: "Quem me dera !" Pois tudo começou quando ela, durante uma festa, mostrou-se em dúvida atroz: não sabia se ficava alegre ou triste com o que havia ouvido a seu respeito. Diante da indagação dos circunstantes, ela esclareceu que, naquele dia, quando voltava do almoço para o fórum, ali na Paulista, um pedreiro, do alto do andaime, berrou a plenos pulmões: "eta coroa gostosa !" Sua dúvida: ela não sabia se ficava triste pelo coroa ou alegre pelo gostosa. Pois isso deu ensejo a que os presentes, descontraídos, também contassem casos curiosos. E lá pelas tantas, a roda que se formara e foi girando, voltou até a vez dela. E ela nos contou a história do tal carteiro e todos nós ali imaginando qual seria sua originalidade para merecer inclusão no rol de causos curiosos. Disse ela que, quando interrogou o tal réu, ele prometeu dizer a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade. O que demonstrava que ele era fã de filme norte-americano. E, de fato, narrou o fato em todos os seus pormenores, com a maior naturalidade, sem esconder nada, em sua linguagem de homem simples. E falou da sindicância, que acabou descobrindo tudo o que havia ocorrido. A essa altura o réu fez um silêncio, que se prolongou por vários segundos. Ela, toda espontânea, procurando incentivá-lo a prosseguir: "E aí, seu Manoel ?" E ele, com a mesma naturalidade: "Aí ? Aí fudeu, dona !" A narrativa foi interrompida pelos muitos risos, pois algumas pessoas ali presentes jamais esperavam ouvir sair da boca de uma juíza tal expressão. E ela, naquele seu jeito peculiar, completou: "Pior foi ter de esclarecer a escrevente se ela deveria escrever o tal verbo com o ou com u".  
sexta-feira, 22 de junho de 2007

Poliana

  "Onrradês é uma palavra tão fora de moda que eu já nem mais sei como se escreve." (Do Livro das Sínteses) Conhece aquela menina que vai atravessando a rua, amparada num par de muletas ? Não parece, mas ela nasceu em 1913, sendo filha de Eleanor Hodgeman Porter, uma escritora norte-americana quase desconhecida por aqui. Ela, a filha, está passando férias no Brasil. Assim que chegou foi atropelada por uma bicicleta na avenida Brasil e quebrou a perna. Sua primeira providência quando se levantou do chão foi chamar um táxi, colocar o ciclista dentro dele, recomendando ao motorista que o enviasse ao melhor hospital do Rio de Janeiro, entregando a ele, adiantadamente, o preço presumido da corrida. Quanto ao passageiro, entregou-lhe o seu cartão de crédito para que com ele fosse paga a conta da hospitalização e depois lhe restituísse pelo correio, enviando-o para o hotel onde está hospedada. E pediu-lhe desculpas por estar sobre a calçada no fatídico momento em que ele ali trafegava em alta velocidade. Ainda bem que o ciclista sofreu só escoriações. O gerente do hotel onde ela está hospedada ficou inconsolável. "A senhorita mal chega a nosso país e lhe acontece uma coisa dessas !" Poderia ter sido pior, disse ela. Imagine se eu quebrasse as duas pernas ! Ele, teimoso, insistiu: "Mas a senhorita vai ficar dois dias na cama !" E ela, no mesmo tom: "Eu bem que estava precisando de um descanso". Ela, que é fã de esporte, veio ao Brasil para assistir aos jogos pan-americanos. E está encantada. Antes mesmo de eles começarem, ela foi informada de que os brasileiros já bateram um recorde mundial : nunca na história dos Jogos Pan-americanos a construção das dependências necessárias à hospedagem dos atletas e à realização das provas consumiu tanto dinheiro. Ela jamais havia imaginado que o Brasil fosse um país tão rico ! Segundo levantamento ainda não definitivo, os cálculos iniciais já foram quintuplicados. Essa medalha de ouro obtida no item "desperdício" tem muito mais valor quando sabemos que o Brasil não mais tem inflação e o dólar, moeda que serve de parâmetro para o julgamento dessas competições de despesas, está mais desvalorizado do que o Poder Judiciário brasileiro. Ela também está encantada com a dedicação dos atletas brasileiros que se preparam para a dificílima competição. Tiro ao alvo, por exemplo, é um dos que têm mais adeptos. Ela ouve estampidos a todo instante seja quando passeia pelas prazerosas avenidas da cidade maravilhosa, seja quando está na varanda do hotel onde está hospedada a apreciar a paisagem, sem o ridículo colete à prova de balas que lhe entregaram na portaria do hotel, pois a cor dele não combina com nenhum dos seus vestidinhos de florzinhas. Nenhum membro de outras delegações vem treinando com tal afinco, pelo que ela tem conferido in loco. Além disso, a julgar pelo número de garotos que treinam corrida nas areias das praias, de manhã, à tarde e até à noite, nem os etíopes serão páreo para aqueles meninos magrinhos que disparam a correr e não há adulto que consiga alcançá-los. "A prova da maratona é dos brasileiros. Ninguém tasca" diz ela, já usando o vocabulário que vem aprendendo em sua breve estadia em nosso país. Eles somem lá na frente e não voltam nem para receber as medalhas a que fazem jus. As autoridades encarregadas de entregá-las ficam ali paradas, olhando os civis para os militares e os militares para os civis e, depois de algumas horas, resolvem ir embora, até porque amanhã haverá mais treino. Que as crianças, ela tem certeza, ganharão outra vez. "Barbada", diz, entusiasmada. Dizem pelo mundo afora que no Brasil nada funciona no serviço público. Mais uma mentira que ela está pronta para desmentir. Dizer que o Judiciário leva meses para publicar um mero despacho, que o Executivo até agora não implantou o Programa Fome Zero nem o PAC, que no Congresso Nacional um projeto de lei leva anos para ser aprovado deve ser mentira deslavada. Ainda agora ela acaba de ver algo que está indo para o Guinness Book: antes mesmo de terminar a investigação a respeito das irregularidades atribuídas a um membro do Senado Federal, o relator, homem independente, que só tem compromisso com sua esposa, a quem proclamou alto e bom som sua gratidão, pois a ela deve a vida (ao contrário de todos nós, míseros mortais, que devemos a vida a nossa mãe) já adiantou seu voto. "Com provas ou sem provas meu voto já está pronto", proclamou ele para o mundo. Em que país vocês já viram tamanha celeridade num julgamento ? Eis o que ela indagará de seus conterrâneos. E o espírito prático dos brasileiros, aliado a seu bom humor, só pode dar num país extremamente feliz. Por motivos que nem as mais rigorosas investigações conseguem descobrir, os aviões não conseguem sair do solo no horário marcado. Em qualquer país que se diz civilizado as pessoas queimariam o aeroporto se isso ocorresse por lá. Na França, por muito menos, não queimaram automóveis nas ruas ? No Iraque não aparecem homem-bomba, mulher-bomba, vovó-bomba e criança-bomba ? Falta de imaginação ! "Paz e amor", gente, eis a solução que nossa Poliana, esse o nome da risonha moça manquitola, tem para levar para o mundo todo, pois pretende encetar uma série de palestras mostrando urbi et orbi, como diz ela, toda cultinha, o exemplo brasileiro, única alternativa para salvar o mundo até mesmo do deletério efeito estufa. Ela levará consigo, nesse périplo humanitário, a mais recente invenção do governo brasileiro. O kit "don't worry, be happy", coisa do Ministério do Turismo. Eis a idéia simples e prática, coisa para prêmio Nobel : um pequeno estojo, que está sendo distribuído gratuitamente quando se compra uma passagem de avião. Ele contém um comprimido de um diazepan genérico qualquer e um envelope com uma camisinha de vênus, aquilo que lá no país dela se chama condom. "What for ?" indagou ela ao ser assim presenteada com o oficial mimo. "Como o avião vai demorar para levantar vôo, a senhorita escolha alguém que lhe pareça simpático e carinhoso, vá para trás de um daqueles tabiques disponíveis ali no fundo do aeroporto e ponha em prática os sábios conselhos de nossa ministra de orientação turístico-sexual : relaxe (graças ao comprimido) e goze (porém em segurança)". E pensar que sua mãe fica perdendo tempo escrevendo esses livros água-com-açúcar que não estão com nada. "Come here, mommy, and see with your own pretty blue eyes how marvelous, kind and industrious people is this" disse ela outro dia à sua mãe, valendo-se de uma ficha telefônica genérica, vendida numa tendinha da praça da Sé, bem em frente o Palácio da Justiça. Aliás, dear mom, sabe o caso do tal senador a que me referi acima ? Veja o que é a má fé de certas pessoas, mesmo num país maravilhoso como este. O tal senador tem um lote de terreno na Lua. In the moon, maw. Lá ele tem uma plantação de árvores que produzem bois e vacas, que, na Lua, como sabe você, que é escritora, nascem em árvores. De tempos em tempos, o caseiro dele colhe os frutos maduros, encaixota e exporta para Marte e Vênus, enviando depois o dinheiro para a conta bancária do tal senador pela internet galáxica. Sabe que só por isso alguns idiotas, autênticos assholes, querem a cabeça do homem ? Pode, mommy ?
sexta-feira, 15 de junho de 2007

Teste

Certa ocasião, quando convidado a dar uma palestra sobre um tema cujo conteúdo pretendo omitir, para não influir no resultado do teste que irei propor-lhe, em lugar de falar eu contei à platéia uma historieta, finda a qual recolhi alguns depoimentos e, a partir deles, discorri, só então, sobre o tema que me havia sido encomendado. O resultado foi surpreendente tanto para os ouvintes como para o palestrante. Animado, repeti a experiência outras vezes com outras platéias e o resultado sempre foi excelente. Para eles e para mim. Resultado esse muito diferente daquele que obtive depois de outra palestra que, juntamente com o José Carlos Dias, na época Secretário da Justiça, demos numa faculdade da USP a respeito de violência, até porque eu havia sido co-autor de um livrinho chamado Violência no Esporte, no qual distingui violência de agressividade. Falo disso outro dia. O que quero dizer agora é que, quando perguntaram ao Zé o que ele faria se alguém lhe estuprasse a filha, ele, com muito equilíbrio, esclareceu que seu primeiro impulso seria pegar uma arma e ir atrás do estuprador. Entretanto, ele estava convencido de que faria de tudo para esfriar a cabeça e entregar o caso às autoridades constituídas. Minha intervenção bateu na mesma tecla, como não poderia deixar de ser. Um dos alunos, com evidente apoio de toda a classe: "O senhor que é Secretário de Estado e o seu companheiro que é desembargador podem matar o estuprador. E nós ?" Eu e o Zé quase caímos da cadeira. Tentamos dizer que não havíamos dito aquilo, mas, quem ali nos queria ouvir ? Digo isso porque, antes de ler o tal teste, é necessário que o leitor se capacite da necessidade de fazer aquilo que atores e atrizes fazem antes de entrar em cena : assumir o personagem. Isto é, à medida que os elementos do teste forem sendo expostos, o leitor procurará deixar de ser um mero leitor para assumir aquela pessoa a que o teste se refere. A Meryl Streep dizem que fica no camarote por mais de uma hora antes de iniciar a filmagem de uma cena. Quando ela sai para filmar, dizem os colegas, ela não é mais ela, mas o personagem que ela interpretará. A interpretação de Helen Mirren, no filme A Rainha, que, para os críticos, havia ganho antecipadamente o Oscar de melhor atriz, é tão surpreendente que, doravante, quando virmos a Elizabeth II, teremos a impressão de que ela está interpretando a Helen Mirren. O que muitos não sabem é que a atriz ficou mais de um ano estudando sua personagem, em seus mínimos pormenores. Exageros à parte, assuma o seu personagem. Combinado ? Então, lápis e papel na mão, respire fundo e vamos lá. Imagine que você trabalha numa empresa, como funcionário (a), numa sala onde trabalham mais dois (duas) colegas seus (suas). Faça mentalmente um retrato desse ambiente, incluindo os móveis, a cor das paredes, o conteúdo das estantes, cor da persiana etc. Por hipótese, todos (todas) vocês têm as mesmas características: mesmo sexo, mesma idade, mesmas condições físicas e intelectuais, mesmas atribuições, mesmo estado civil e mesmos encargos familiares. E, claro, mesma produtividade. Assumiu ? Veja-se trabalhando como habitualmente você faz, quando toca o interfone. É o chefe de vocês chamando um (uma) de seus (suas) dois (duas) colegas. Ele (ela) vai à sala do chefe e volta depois de uns 15 minutos, com um envelope na mão. Ela (ele) nada diz sobre o conteúdo do envelope, que está lacrado, nem sobre a conversa que tivera com o chefe, mas informa à (ao) colega de vocês duas (dois) que o chefe quer agora falar com ele (ela). Ele (a) vai e volta com um envelope na mão, dizendo-lhe que agora é tua vez. Respire fundo e vá enfrentar a fera. O seu chefe a (o) recebe amavelmente, fala com entusiasmo do teu trabalho e lhe entrega um envelope fechado, tal como havia feito com teus (tuas) colegas. E diz que, agora, depois do expediente, vocês três vão jantar e abrir, após o jantar, os envelopes, tomando, só então, conhecimento daquilo que há lá dentro. Se você assumiu o seu personagem, seu coração está batendo mais forte. Essa taquicardia é normal, não se assuste. Se ela não estiver presente, desista do Oscar. Após o tal jantar, vem o grande momento. O (a) primeiro (a) colega abre o envelope que coube a ele (ela) e descobre que ali dentro o chefe havia posto três notas, cem dólares cada uma. A (o) segunda (o) colega abre o envelope dela (dele) e descobre que ali estão duas notas de cem dólares cada uma. Você abre o seu envelope e descobre que o teu chefe ali pusera apenas uma nota de cem dólares. A pergunta é esta: com toda sinceridade, escreva no papel que você tem na mão a primeira palavra que lhe veio à mente, se é que não veio à sua boca. Use de toda sinceridade, mesmo porque você está só em sua casa neste momento e ninguém mais vai ler o que você escrever. Escreveu ? Agora, assuma o (a) segundo (a) personagem, aquele (aquela) das duas cédulas, e escreva a palavra que corresponde àquilo que você, agora como a segunda personagem da história, sentiu quando viu aquelas duas cédulas. Por fim, assuma o personagem restante e faça o mesmo: os teus dois colegas (as tuas duas colegas) estão ali te olhando e você sentiu algo ao dar com aquelas três notas. Que foi que você sentiu ? Escreva no mesmo papel. Agora guarde o papel escrito por 24 horas. As idéias vão ficar a ruminar em teu cérebro. Amanhã você retoma o mesmo papel e acrescenta aquilo que você estará sentido depois dessas 24 horas, como primeiro (primeira), como segundo (segunda) e como terceiro (terceira) personagem. Se quiser escrever-me, remetendo cópia de sua folha de papel, garanto que não divulgarei o nome dos que assim agirem. Simplesmente levarei em conta o conteúdo, para meros efeitos estatísticos, se for o caso disso. Aí vai meu endereço: clique aqui. Voltarei ao tema futuramente, se disso for o caso.  
sexta-feira, 1 de junho de 2007

Arte Conceitual

"Que é a arte? Por que o homem a cria? Poucas perguntas são capazes de provocar um debate tão caloroso e resultar em tão poucas respostas satisfatórias." (H. W. Janson, Iniciação à História da Arte) Eu seria a última pessoa a falar mal das artes visuais, pois estaria cuspindo na própria paleta. Menção honrosa no 50º Salão Paulista de Belas Artes, graças a um peixe de bronze que a Maria Helena acabou por me furtar, isso muito tempo antes de transformarmos nossa amizade em casamento, e uma petite medaille d'or numa exposição em Nice, ali no Sul da França, por conta de um Jesus crucificado vestido à Francisco de Assis, eu jamais terçaria pincéis com os admiradores da arte moderna, por exemplo. Nesse assunto eu sou mais Tarsila do Amaral do que Monteiro Lobato, mesmo porque o fato de alguma obra parecer mistificação ou expressão de paranóia não lhe retiraria o rótulo de "obra de arte", o que quer que isso signifique. Estão aí os borrões coloridíssimos daquele paranóico holandês que só conseguiu vender um quadro em toda sua vida, embora tivesse, em um acesso de loucura, pintado dez quadros em dez dias. E hoje os seus girassóis e céus dramáticos, com aquelas pinceladas tresloucadas, são disputados a peso de euro ! Diga com sinceridade: você colocaria sobre aquele elegante móvel da sala um solitário pneu de bicicleta, sem guidão nem selim, simplesmente porque ele trouxesse uma plaquinha com o nome de Marcel Duchamp, outro amalucado ? Ou penduraria na parede do hall o faltante selim de bicicleta, ao qual um tal de Pablo Picasso houvesse soldado o lá também ausente guidão ? Assim é a vida. Mas tudo tem também o seu lado humorístico, como é de conhecimento comum. Numa exposição realizada no Ibirapuera, estavam expostas obras notáveis de nossos maiores pintores e escultores, pois era uma retrospectiva da arte brasileira. As pinturas nas paredes e as esculturas distribuídas pelo assoalho, como é de todo óbvio. Eis que uma senhora, impressionada com um Portinari, foi-se afastando para poder vislumbrar melhor a brodosquiana obra, sempre de olho na atraente peça dependurada na parede fronteira. E acabou tropeçando nuns bichos metálicos da Lygia Clark. "Quem largou essa porcaria aqui ?" indagou ela furiosa aos circunstantes, ao levantar-se. Nenhum de nós está imune a essas confusões, certamente. Falo de mim principalmente. Em pleno Museu do Prado eu percorria uns salões onde se realizava uma exposição de algo que alguns chamam de "arte conceitual", envolvendo artistas de vários países. Não sei bem como se diz isso em espanhol, mas lá estava o trabalho de um artista, cujo nome, tanto quanto o dos demais, vinha indicado numa pequena tabuleta em uma das paredes da sala. Era um monte de terra de pouco mais de meio metro de altura, tendo em torno, deixadas displicentemente, umas pedras brancas. Confesso que, sem algum guia para auxiliar-me, eu me limitei a olhar aquilo, sem ver a mensagem pretendida, se é que obra de arte tem, de fato, de conter alguma mensagem. Obra de arte é que nem namorada moça de amigo velho: se você elogia, ele te olha atravessado; se não elogia, ele se ofende. Minha mulher só balançava a cabeça, lobatianamente, inimiga declarada desse tipo de expressão artística. "Melhor que isso eu faço", logo ela que. Mais adiante havia uma corda muito grossa, desses camelos bíblicos que se usam para puxar navio. Pendurada no teto por quase invisíveis fios de náilon, ela subia e descia, dando voltas à direita e à esquerda, sugerindo-me o caminho percorrido por alguém, a desoras, do bar até sua casa. Um Vinicius de Moraes, por exemplo. Fui até a parede e lá estava o nome do artista e o título da obra. Escritos em japonês. Havia nas demais obras ali expostas esse quê de insólito, que me foi cativando aos poucos. Se são artistas de lugares tão distantes uns dos outros, como podem eles expressar-se de maneira tão assemelhada ? Eu ainda não havia, naqueles idos tempos, me envolvido com os escritos junguianos e a palavra sincronicidade significava para mim o mesmo que nada. Passado o susto inicial, fui tentando ver as obras, mais do que apenas olhá-las, lembrado de um dito do Pontes de Miranda, quando fala da interpretação das leis: "Se o exegeta não tiver um pouco de boa vontade, nenhuma lei é boa." Pois foi com esse propósito que fui observando as demais obras daquela curiosa exposição. E eis que chego diante de uma que me cativou imensamente. Era uma escada de alumínio, muito nova, aberta e dirigida contra uma parede, na qual não havia absolutamente nada. Apenas sua imensa cor azul, um azul celeste, como o de uma tarde de inverno européia. Ela tinha três ou quatro degraus somente. No primeiro degrau havia uma caixa de madeira fechada, enquanto que no último havia um belo martelo de cabo negro emborrachado. Nessa ocasião, eu estava saindo de um desses momentos cruciais que por vezes nos derrubam, meio perdido quanto a meu futuro profissional. Aliás, aquela viagem havia sido programada "para espairecer", como nos aconselham os amigos nessas ocasiões em que parece que "estamos sobrando". E o psicoterapeuta, pragmaticamente nos adverte: "a única coisa chata dessa viagem é que você irá junto". Cretino ! E aquela escada era a síntese do meu estado emocional. Eu estava diante de um caminho que me levaria para onde ? Para um futuro de céu azul ? Mas faltava nesse céu alguma coisa que me atraísse e que eu não vislumbrava bem o que seria. A caixa fechada era, sem a menor dúvida, a famosa boceta de Pandora, a misteriosa caixa que nossa prudência aconselha a não ser aberta. Sabe-se lá que malefícios advirão dali ! E o martelo, que lembrava uma cruz, era o inevitável elemento que me esperava naquela caminhada. Como era mesmo o nome daquele curioso que o soldado romano convocou para ajudar a carregar a cruz na caminhada ao calvário ? Meu impulso foi abrir a caixa e guardar ali o martelo, o que meu psicoterapeuta certamente interpretaria como o propósito de fugir dos problemas, em lugar de encará-los. Vai-te, Gaudêncio ! Que eu carregasse minha cruz e ponto final ! Estava eu ali, a procurar na parede o nome da obra e do seu autor, quando surge um rapaz de macacão, abre a tal caixa e retira dali algum objeto, que depois vim a saber ser um prego, un clavo, como se diz por lá. Pega em seguida a minha simbólica cruz de cabo emborrachado, sobe na escada e enfia o prego na parede. Feito isso, pendura nele um cartaz que nos indica las prójimas exibiciones, desce da escada, pega a caixa, o martelo, dobra a escada, e leva para local ignoto toda aquela expressão do meu sofrimento.
sexta-feira, 25 de maio de 2007

Papa é Pop ? (O)

  "Bento XVI é de uma Igreja com muita liturgia, muito latim, muito incenso, muita piedade. Não é uma Igreja de engajamento na sociedade e no mundo, mas uma Igreja-fortaleza que se defende contra os riscos do mundo. É uma nostalgia de uma igreja que já não existe mais." (Leonardo Boff) Durante a visita de Bento XVI, a emissora de televisão convida um sacerdote de sotaque italiano para dar informações técnicas aos telespectadores. A certa altura, o tal locutor sai-se com esta: "O Episcopado brasileiro vem de condenar os jovens por ficarem, como eles denominam certas ligações íntimas sem compromisso algum. Considerando que a Igreja quer atrair os jovens, essa censura não veio em má hora ? " Com alguém servindo de bandeja uma bola dessas até eu faria a cesta que o tal padre fez: "Uma coisa é atrair o jovem; outra coisa, muito diversa, é trair o jovem." E deitou falação sobre a moral sexual tradicional, compromisso e responsabilidade. O locutor era um despreparado ou se fez de besta ? Ou desempenhou, conscientemente, o papel de escada para o sacerdote ? Há em muitos de nós um deslumbramento com tudo que é moderno. Telefone celular e Internet, com suas mil e uma utilidades, são elevados a patamares excelsos. Como foi que conseguimos sobreviver sem isso ? Aquela calhordice de censurar a nudez, coisa mais retrô. "Está vendo essa moça nua na capa daquela revista ? É minha filha ! Está ganhando mais do que eu, graças àquele corpinho sarado dela." Antigamente isso se chamava prostituição, coisa que alguns até sustentam ser uma profissão como outra qualquer. A mãe dele, por exemplo, era e ele nunca se envergonhou disso. Aliás, reconheçamos que naqueles idos até se falava em baixo meretrício, que ficava ali na rua Itaboca e adjacências, aqui em São Paulo. O que nos permitia concluir que havia um alto meretrício, exercido nas chamadas garçonières, se não lhe falha a memória do teu avô. O problema, portanto, não estava no meretrício, mas no andar em que ele era exercitado. E por quem. "As mulheres hoje trabalham deitadas e descansam de pé", como disse certo boquirroto, desses que nos convidam a mudar de programa de televisão quando aparecem ? Que é ser moderno ? E, pior ainda, que é ser pós-moderno ? Tanto o judaísmo como seu dileto filho, o cristianismo, são, como todas as verdadeiras religiões, eminentemente conservadoras. Não é a religião que deve adaptar-se ao mundo, mas o mundo que se deve adaptar às verdades dela, por isso que são eternas, no entender de seus líderes. Ou isso não seria uma religião. A dificuldade está em seus agentes nem sempre rezarem a célebre oração do Almirante Hart : "Senhor, dê-me força para mudar o que pode ser mudado; dê-me resignação para aceitar o que não deve ser mudado; e dê-me sabedoria para distinguir uma coisa de outra". O fato de o Papa atual vir ao Brasil utilizando-se de um meio de transporte moderno, como é o avião, já é, para alguns, a demonstração de que ele nada tem de inflexível. Fosse um fervoroso agostiniano, teologicamente falando, e teria vindo em lombo de burro. Ou a pé. Quais os padrões éticos a serem observados na modernidade e pós-modernidade ? A escolha de um Papa já é em si mesmo algo misterioso. Em primeiro lugar, por que será que o Espírito Santo teima porque teima em escolher apenas cardeal europeu para ungi-lo Papa ? Ele, o tal Espírito deve ter lá os seus celestiais motivos, inacessíveis a nós mortais. Aliás, até outro dia, não bastava ser europeu: deveria ser italiano. Carrancudo como Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini, ou bonachão como Angelo Giuseppe Roncalli, mas, sendo italiano, tutto bene. O segundo até falava em ecumenismo, um palavrão que os pósteros mandaram para o limbo, não fosse o limbo vir a ser mandado para a lata de lixo pelo Papa atual, com ecumenismo e tudo mais que havia lá dentro. Assim caminha a Humanidade. Fosse lá por quais motivos fossem, o fato é que, seguindo à risca o roteiro do ex-seminarista Morris West, o Espírito Santo resolveu, a certa altura do campeonato, calçar as sandálias de pescador em pés que haviam nascido extra muros. Chega de oriundi. Um polaco ontem, um bávaro hoje e talvez um negro africano amanhã, ou, quem sabe ?, um mulato sul-americano no futuro distante. Sincretismo ? Tesconjuro ! Para as pessoas de fé católica, essa importação de craques estrangeiros não muda em nada o estilo de jogar da seleção do Vaticano, pois o técnico continua o mesmo. Ocorre que, se um italiano já mostrava alguma dificuldade em entender o que se passa nos ininteligíveis países da América latina, pesasse a ligação afetiva que nos une a nossos antepassados da península itálica, imagine-se um cardeal polonês, criado sob o dogma da absoluta incompatibilidade entre Marx e Jesus. "Quem não está comigo está contra mim", pouco importando que Karl Marx fosse, antes e acima de tudo, um humanista, tanto que inspirou algo chamado Teologia da Libertação. "E quem disse que o cristianismo deve ser humanista ? " Em outras palavras: enquanto a Igreja latino-americana dava mais atenção à cidade dos homens, a Igreja européia, agora mais do que nunca, dava mais atenção à cidade de Deus, para lembrarmos a dicotomia proposta por Santo Agostinho, que passeou pelas ruas de ambas. Seu filho bastardo Adeodato que o diga. "Misturar fé e política em nome da fé é privilégio meu" poderia dizer o cardeal Woytila, para desespero do bispo Pedro Casaldáliga. E quando os alunos do mestre-escola Joseph Ratzinger resolveram pensar com a própria cabeça, tome reguada no alto do cocuruto. "E não me venham outra vez com uma composição infantil do tipo a Águia e a Galinha que eu expulso da classe. Brincadeira tem hora !" O cerebral Ratzinger tentar compreender o jeitinho sul-americano ? Mais fácil as águias do Leonardo Boff cacarejarem. Ou as galinhas dele voarem em bando harmonioso e elegante. Quando o eleito Ratzinger resolveu homenagear São Bento, choveram especulações, nenhuma das quais acenando para algo próximo de uma diminuição da afinação de violino realizada pelo seu antecessor polonês. Muito pelo contrário, como bom músico, sabia o novo Papa que as pausas são importantíssimas para apreciarmos melhor os solos propriamente ditos. Além disso, há que dosar prudentemente a afinação dos instrumentos, pena de partirem-se mais cordas do que o necessário. Aqui chegado, houve quem se surpreendesse com seu sorriso ao contatar a irreverente juventude brasileira. "Vocês não perdem por esperar" deve ter ele pensado, enquanto abençoava os que lhe foram dar as boas-vindas enfrentando o frio e a paulistana garoa. Allegro ma non troppo. Infelizmente, não lhe permitiram conhecer o "vira de Jesus" do animador de auditórios Marcelo Rossi, para quem, segundo entrevista dada à Folha de S. Paulo, a diferença entre ele e Bento XVI é de cerca de 350.000 fiéis. De fato, comentando o número pífio de fiéis levados pelo concorrente, esnoba, modesto de Souza: "Aparecida poderia ter tido 500 mil pessoas e teve 150 mil." E aproveita para dar aos fiéis uma lição de humildade: "Eu estava à disposição. Se não quiseram, glória a Deus". O que apenas confirma que cada um de nós ou tem fé demais, ou fé de menos. Que ficará neste hemisfério sul, de paisagem tão diferente da de sua fotogênica e impecável Bavária, depois que Sua Santidade voltou ao hemisfério norte ? A julgar pelo que sabemos do Brasil, este continuará a ser o maior país católico do mundo e também o mais pragmático. Houve já quem traduzisse o jeitinho brasileiro por brazilian by-pass, um modo de contornar obstáculos sem questionar a pertinência deles. Pois é essa atração pelo by-pass que explica o número ínfimo de católicos brasileiros que saiba dizer o nome da mais recente encíclica do Papa Bento XVI. Ou, pelo menos, o seu tema. Ou, pelo menos, o que seja uma encíclica, que longe está de ser meio de transporte, como supõe algum chefe de Estado desavisado. E também explica o número elevadíssimo de católicos que jamais a lerá. Ou o número de pessoas que continuará a ir à missa aos domingos e também ao centro espírita na quinta-feira. Ou a comungar mesmo recusando-se a utilizar o falibilíssimo método anticoncepcional oficial do Vaticano. Ou. Agora que a visita foi embora, voltemos à nossa normalidade. O Papa fica com sua ortodoxia germânica absolutista e nós ficamos com o nosso relativismo pragmático, vulgo mais-ou-menos: mais ou menos religiosos, mais ou menos cristãos, mais ou menos católicos. E nossas cristãs autoridades continuarão mais ou menos éticas, mais ou menos honestas, mais ou menos confiáveis. Fosse vivo o padre Charbonneau, que longe estava de ser um "padre de passeata", para relembrarmos Nélson Rodrigues, talvez repetisse aquilo que já havia dito há quase meio século, a respeito de si e de seus colegas: "Se, como é infelizmente o caso de nossa época, a moral evangélica parece evaporada, a condição de seu renascimento não residiria nessa redescoberta de suas raízes naturais ? Será que não quisemos, até agora, fazer cristãos onde não se tinha ainda conseguido fazer homens ? O resultado não é dos mais brilhantes: não temos mais nem homens nem cristãos".  
sexta-feira, 18 de maio de 2007

Rio

  "Rua Nascimento Silva, 107, eu saio correndo do pivete, tentando alcançar o elevador." (Tom Jobim, parodiando a si próprio) Não costumo ir muito ao Rio de Janeiro, Fevereiro e Março. Não que não tenha lá vários amigos, que me receberiam com os braços mais abertos do que os do Cristo Redentor, que, pelo jeito, logo logo os estará levantando para o alto. O Sérgio Couto, por exemplo, que me vive oferecendo sua casa no Rio dais Oxtras, onde passei já um reveillon, com direito a ser noticiado na coluna do Ibrahim Sued. Eu e certo Ministro do Supremo Tribunal e sua simpática e magistral esposa, que lhe são vizinhos do amigo Sérgio. Há também o Geraldo Prado, doutor em Direito, com direito a site na Internet e livros e mais livros jurídicos publicados e que tem uma particularidade que não sei se é do seu agrado lá dele: o homem é sósia perfeito do Romário, rosto e resto. Imagino um futebolista fanático entrando na sala de audiências para depor e dando com o homem atrás daquela mesa lá no fundo. "Sai já daí, baixinho, antes que o juiz chegue. Já pensou se ele te pega aí, pondo tua prosaica bunda nessa curul excelsa? Esse negócio dos mil gols mexeu com teu juízo!" E agarra o doutor Geraldinho pelo colarinho, supondo que é o outro baixinho que ali está. Sorte dele que o doutor Prado é moço magnânimo e entende o qüiproquó. Na certa se limitaria a ajeitar a gravata e dizer aos seguranças que está tudo bem. E tenho também ali na mesma cidade como amigo aquele negrão forte, de cabeça raspada, que mereceria o apelido de Bola Sete, não tivesse ele sido patenteado por aquele violonista que a Carmen Miranda levou lá para os states e que se tornou um ícone dos entendidos em música. Djalma Andrade era o nome dele e o guitarrista Carlos Santana não deixou por menos: nosso Bola Sete foi seu grande mestre. O Dizzy Gillespie que o diga. Falo do Paulo Rangel, nome de ator de teatro, reconheço. Vinha ele pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, dirigindo seu BMW, quando foi interceptado gentilmente por um grupo de policiais militares, com direito a metralhadora apontada para o rosto do negrão e mais os tradicionais "já pra fora, nego safado, mãos na nuca, pernas separadas e cara no muro". Quando o sargento conseguiu ler a cédula de identidade do Paulo, não sabia o que fazer. Dispensou a tropa e abriu a porta do BMW. "Quer que engraxe os seus sapatos, doutor?". Não precisava. Os amigos que ouvimos a narrativa esperávamos que o doutor Rangel fosse agora relatar o esporro que havia dado nos homens. Coisa nenhuma. "Eles estão cansados de saber que um negrão elegante como eu num carrão desses só pode ser jogador de futebol, artista de TV ou traficante. Como não conhecem artista nem jogador com minha cara..." E o promotor de justiça ri, como sabem rir os espíritos superiores. Acho que ele deveria incluir a história na décima edição do seu Direito Processual Penal. Pois se aceito o convite de um deles, ganho dois inimigos. Pelo menos. Melhor ir ao hotel que um certo português instalou ali na avenida Atlântica, como me haviam recomendado. Sendo de português, só pode ser pensão, comento com a Maria Helena. E certamente com a bandeira do Vasco hasteada no saguão de entrada. Maldito preconceito. O tal hotel tem todas as estrelas que merece e mais algumas que eu acrescentaria depois de comer o bacalhau que eles me prepararam, com direito a um naco de queijo da Serra da Estrela na sobremesa. Nem em Portugal comi tal iguaria. Na Noruega, então, nem falar, pois, o Berge Furre, a Elisabeth e o Terje que me perdoem, mas ali eles só sabem fazer uma sopinha chamada Bacalao, que mais parece regime alimentar pós-operatório servido a paciente do SUS. Só não digo o nome do hotel porque, tal como o meu amigo Juca Kfouri, sou inimigo de merchandising, inda mais de graça. Quando for ao Rio, porém, abra bem os olhos e verá o nome dele, por sinal enorme, na fachada do prédio, entre o Copacabana Palace e o Othon, que lhe não chegam às tamancas, pá. Ao preencher a ficha de entrada, noto sobre o balcão a notícia de uma excursão que será feita ao Maracanã no dia seguinte, para o final game of the carioca soccer's championship. Boto meu nome na lista de gringos e no dia seguinte lá estou eu com minha bermuda cheia de bolsos e um par de papetes, respondendo em inglês o que o chefe da equipe de segurança me pergunta. Sim, os hóspedes seremos levados em um carro blindado, com direito a uns tantos seguranças uniformizados, cada um com um walkie-talkie, coisa de operação bélica. São três vans, que seguem em fila indiana pelas ruas e avenidas até o estádio Mário Filho. Uma hora e meia depois lá estamos diante da porta de entrada. Forma-se um corredor polonês, por onde os gringos, eu inclusive, vamos passando, sem sermos bolinados pelos policiais civis que nos deixam passar sem aquela gentileza reservada aos suspeitos nativos. O chefe dos nossos guarda-costas vai mostrando os bilhetes ao catraqueiro e cada um de nós vai recebendo autorização para adentrar aquele templo do futebol. Nova fila indiana e assim vamos indo até o setor vip, onde nos aguardam as poltronas que ocuparemos durante a pugna. Sinto-me retornado aos meus tempos de jardim da infância ou remetido aos tempos futuros do Alzheimer que nos aguada a todos. Até quando falo em ir ao banheiro lá está meu guarda-costas levando-me até o rest room e trazendo-me de volta são e salvo a meu reservado local de iminente desfrute futebolístico. Ganhou quem venceu e perdeu quem foi derrotado, como diria o sábio Abelardo Barbosa. Nosso guia nos leva de volta ao nosso fortim motorizado, com os cuidados de praxe, no qual retornamos ao hotel, sempre escoltados. O celular do meu guarda-costas toca. É a mulher dele perguntando como vão as coisas. "Até aqui sem novidades. Vamos ver quando entrarmos na linha vermelha. Espero em Deus que cheguemos sãos e salvos ao hotel" diz ele, com toda naturalidade. Os demais gringos não estão nem aí para a preocupação do homem. Logo mais à noite mato um velho desejo: ouvir um grupo de chorinho sob os arcos da Lapa. O gentil gerente do hotel aconselha a Maria Helena a abrir mão de brincos, colares, pulseiras e outros adereços, desses sem os quais mulher se sente nua. E lá vamos de táxi até a Lapa dos Capoeiras, como cantava o Nelson, o motorista passando como pode por aquelas mesinhas que ocupam os bares, as calçadas e parte do leito carroçável. "Daqui a pouco nem este espaço sobrará" diz ele. "Mas pelo menos, com tanta gente, o local é seguro" observa a ingênua Maria Helena. "Minha mulher foi assaltada naquela esquina ali ontem à noite. E ninguém fez nada para impedir. Aqui é cada um pra si" suspira o homem. Descemos do táxi já ouvindo o som da flauta. Dá para perceber o cavaquinho, o pandeiro e o violão de sete cordas. As parcas deixaram uma mesa vazia para nós dois, bem diante do conjunto musical. Para surpresa do meu preconceito, quem toca a flauta não é um negro beiçudo, um Pixinguinha redivivo. É uma bela moça, com não mais de 21 anos, cabelos lisos e rosto ariano de artista francesa. Ela estuda música na UERJ, segundo nos conta num intervalo, fazendo um bico nos barzinhos locais. Ri e exibe uma arcada dentária que mais parece teclado de um Steinway. Alguns bolinhos de bacalhau e umas sardinhas portuguesas depois achamos que é hora de passear pelo bairro. Entramos antes numa drogaria, onde a caixa está narrando ao namorado como se deu o assalto de que foi vítima ainda há pouco. "Só a carteira" diz ela, respondendo a uma pergunta do interlocutor. Que mais haveria para ser levado? Encerrado o agradável diálogo, indagamos qual o caminho para irmos visitar os famosos arcos. "Vocês estão loucos? Peguem o primeiro táxi e voltem para o hotel", aconselha a moça. O taxista, que diz ter sessenta anos, chama-se Alvarenga, parente remoto da Marquesa de Santos, segundo nos relata. Fala de Maquiavel e Saint Exupéry, mostrando-nos a diferença entre um príncipe e outro. Fez pós-graduação no Exterior e era alto funcionário de um banco que, por medida de economia, foi enxugando a equipe. "Lucram o que lucram e despedem funcionários para fazer economia!" exclama. Enquanto aguarda o visto para ir tentar a vida na Austrália, vai circulando por essa merda de cidade, para usar o qualificativo empregado por ele. Aproveita nossa boa vontade para falar de Marcola e Fernandinho Beira-Mar, exemplos de heróis que os tempos modernos estão produzindo no Brasil. "Diga o nome de outro, diga" desafia ele. "Agora os policiais querem tomar o lugar deles, sem dar ao pessoal do morro a cesta básica e a segurança que os bandidos sem farda sempre lhes deram" conclui ele. "Desde que me conheço por gente as Escolas de Samba são lavanderias do jogo do bicho e do tráfico. Só agora descobriram isso?" Maria Helena, que já integrou missão de paz da ONU na África, só arregala os olhos. Eu, fazendo sutil trocadilho, apenas rio.
sexta-feira, 11 de maio de 2007

Foi bom pra você?

  "O Papa, com sua autoridade de representante de Deus na face da Terra, decreta que todos os Papas são representantes de Deus na face da Terra." (Do Livro das Sínteses) Houve tempo em que a Terra era o centro do Universo. Depois se descobriu que ela não estava com essa bola toda, não passando de mais um planeta a girar em torno de uma estrela que também não estava com aquela bola toda, quinto lugar na classificação universal de estrelas, segundo decisão unânime dos jurados. E também se chegou à conclusão de que o sistema planetário não passava de uma reunião de umas insignificantes bolinhas situadas ali no extremo sudoeste de uma miríade de estrelas, não deixo por menos que as estrelas da Via Láctea o merecem, cada uma certamente com seu sistema planetário próprio, o que só fez aumentar o complexo de inferioridade dos terráqueos, tidos e havidos, por eles próprios, como os únicos animais inteligentes no Universo a pensar que são os únicos animais a pensar. E veio aquele filósofo grego, como é mesmo o nome dele ?, a dizer que se as vacas e os elefantes soubessem pintar, certamente pintariam Deus com corpo e cara de vaca. Ou de elefante. E tome hereges na fogueira ! Como se aquilo que se pensa valesse mais do que a realidade sobre a qual pensamos. Corta para o consultório do doutor Sérgio Guimarães, ginecologista. Ali está um rapaz, o que causa estranheza ao médico, não esclarecesse o tal moço que o doutor foi-lhe recomendado por dona fulana de tal, tia da comadre dele e cliente do médico. É que, casado há pouco mais de um ano, está com um problema sério: sua mulher quer porque quer que ele a satisfaça sexualmente todas as noites. Todas ? Sim, senhor: todas. Eu chego morto de cansaço, com esse trânsito maluco, e tudo o que eu quero é uma sopa quentinha e um bom sono. E lá vem ela com suas cobranças. Eu tenho cura, doutor ? O médico chama ao consultório a mulher do rapaz aflito, que confirma a história. "Mas a senhora tem desejo sexual todas as noites ?" indaga o Sérgio, arregalando-se. Claro que não, diz ela. "Mas ?" É que minha mãe me disse que se eu não satisfizer ele todas as noites ele vai procurar outra. "Mas ele não agüenta mais isso, minha senhora ?". Agora é a moça que arregala os olhos: nãããão ? Ai que bom! Câmera no consultório da conhecida psicóloga freudiana Cláudia Amaral. Ali está uma senhora, casada, mãe de um casal de filhos, e que tem com o marido uma empresa comercial que vai de vento em popa. Depois que nasceu a filha, porém, a mãe nunca mais sentiu desejo sexual. "Se é que havia sentido antes", diz ela. Nem pelo marido, nem por outro homem. "Nem por mulher ?" Ela faz uma careta que a psicóloga conclui significar "não". A cliente não pode nem imaginar estar nua diante de outra pessoa, inda mais um homem. Inda mais fazendo aquelas coisas. E faz uma cara de nojo. Deu-se, porém, que, havendo saído de férias com o casal de filhos, ela não resistiu à curiosidade comercial e abriu a página de mensagens eletrônicas do seu sócio, para saber como vão os negócios que lhes são comuns. E deu com um estranho diálogo dele com uma amiga comum deles, a interlocutora a elogiar a decoração do quarto, a maciez da cama e a qualidade do edredon. "Do meu edredon, Cláudia !" Separa ou não separa ? De um lado, o marido tinha razão em procurar outra, diante da repulsa ao sexo que a paciente relatava a sua psicoterapeuta. Ou trazer outra para o tálamo conjugal, como lhe dissera o advogado consultado. "Acho até que teve um filme com esse nome, foi não ?" Por outro lado, há a relação comercial, de que ela não pretende abrir mão. E, pior de tudo, a filha, que padece de epilepsia, é ligadíssima ao pai. Uma separação seria um desastre. Indago de ginecologista e de psicóloga se eles têm dados estatísticos a respeito disso que se poderia rotular de "conseqüências danosas da super-valorização do sexo no casamento", algo próximo daquilo realizado pelo casal Kinsey, que, nos anos 40/50, entrevistou mais de 20.000 pessoas para tentar conhecer o comportamento sexual dos norte-americanos. "Nem pensar", respondem ambos. "Esqueceu que vivemos no Brasil ?" Lembro-lhes, então, que o Alfred Kinsey não era médico nem psicólogo: era entomologista. Estudar abelhas, formigas e seres humanos não faz grande diferença para um verdadeiro cientista. O "tálamo conjugal" do advogado me faz pensar em quantos operadores do Direito, especialmente os juízes, conhecem algo de paleontologia, de antropologia, de sociologia ou de psicologia. Vejam as perguntas que são feitas nos concursos para ingresso na Magistratura e tirem suas conclusões. Que sabem a respeito desse misterioso desejo que algumas pessoas têm de conviver com outra e com ela ter intimidades que satisfaçam a ambas ? Sabem, quando sabem, aquilo que lhes diz a lei. Acaso reparam eles que essa lei é fruto de uma anacrônica moral judaico-cristã, que ainda contempla o dever de "não cobiçar a mulher do próximo" ? Esse conceito tem dois dados significativos: primeiro, só o homem tem desejos; segundo, a mulher é de propriedade do homem, tanto quanto a vaca, o arado e o computador. Matrimônio, isto é, os cuidados da casa e seus pertences, é coisa de mulher (matris munus, isto é, tarefa da mulher), da mesma forma como a formação do patrimônio é coisa de homem (patris munus, encargo do pai). A sabedoria divina, que perpassa os tempos, desconhece que hoje a mulher puxa o arado ao lado do seu marido (cônjuge significa estarem ambos, como um par de bovinos, sob a mesma canga ou mesmo jugo). "Quem não for como eu sou, que se case. Melhor casar do que abrasar-se" dizia o fariseu Saul de Tarso, rebatizado Paulo ao cristianizar-se. Vá à I Carta aos Coríntios, capítulo 7, versículos 7/9 e confira. Em bom português: um mal menor. Ou um remédio, remedium concupiscentiæ, como recomendou o Papa Pio XI. E os juízes se põem a aplicar normas que não são estatuídas a partir da análise científica da realidade, num processo indutivo, como faria um entomologista, mas que são impostas pela superior vontade divina, interpretada por quem se arvora seu representante terráqueo. As revistas mundanas declaram que a atriz fulana, que, no mês passado se havia casado com beltrano, resolveu ficar com sicrano, que à sua vez, parece que. Enquanto isso, um líder religioso diz que o segundo casamento é isto e mais aquilo, coisa que pode dizer respeito aos que aceitam sua autoridade única e tão somente, se é que os seus subordinados espirituais levam a sério seus anacrônicos conceitos. Ele procura decretar nos dias de hoje o que deve ser a união amorosa de duas pessoas da mesma forma como antes se decretava qual dos corpos celestes deveria ocupar o lugar de destaque na miríade universal, valha repetir a rara palavra que o assunto merece. E tome pedido de perdão a Galileu Galilei depois de 300 anos, quando ele, possivelmente, já não os poderia conceder. E os psicólogos certamente agradecem o aumento da clientela.  
sexta-feira, 4 de maio de 2007

Felicidade

  "A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor: brilha tranqüila, depois, de leve, oscila, e cai, como uma lágrima de amor". (Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim) "Ser feliz é poder perceber a si mesmo sem temor". (Walter Benjamin) Pretendendo escrever um livro sobre a felicidade, indaguei de vários amigos se eles se consideram felizes e o que entendem por isso. "Honestamente, precisei parar e pensar a respeito. A vida é tão corrida, tão cheia de altos e baixos, que na maioria das vezes me sinto tão cansada que nem perco tempo para me lembrar se estou feliz ou não" escreveu uma amiga. "Acredito que a sensação de felicidade depende de momentos: instantes em que atingimos, sem qualquer constatação objetiva, um completo bem estar físico e emocional. É uma rápida harmonia do nosso interior com as coisas que nos cercam. É um desapego instantâneo de tudo o que, direta ou indiretamente, nos leva ao sofrimento" diz outro. "É um estado de espírito, em que os ânimos o impulsionam positivamente para você enfrentar os desafios do mundo. Acho que a felicidade se estabelece quando conseguimos êxitos nos desdobramentos do dia-a-dia e também quando enfrentamos com sabedoria as frustrações, desencontros e enganos" diz uma terceira pessoa. "Não só me considero como sou feliz, na maioria do tempo. Mas, felicidade não é um monumento consolidado em pedra ou bronze, e sim uma conquista de momento a momento. Portanto só é feliz quem consegue construir a felicidade. Felicidade é apenas uma crença, uma criação emocional do próprio ser humano" filosofa um quarto. Não sei se vou escrever o livro, pois continuo achando que não há felicidade. O que há são momentos felizes, o que é um mero jogo de palavras, reconheço. Mas acabo de tomar conhecimento de uma interessante conclusão de pesquisadores não sei de onde que consultaram várias pessoas fazendo a pergunta inversa: "que lhe proporciona infelicidade ? ". Sabendo o que é infelicidade, talvez descubramos o que é o seu inverso. Número elevado de pessoas afirma que sua infelicidade está na televisão. Esclarecendo: depois que inventaram a TV, acabou-se aquela conversa gostosa com os familiares e os amigos depois do jantar, ou sentados na calçada. Não mais tertúlias literárias, não mais roda de samba (a pesquisa foi realizada no Exterior, mas vale a extrapolação). TV significa pouquíssimo ganho e muitíssima perda cultural, eis a conclusão dos pesquisadores. Já passei por isso. Voltando do Exterior, fomos visitar duas irmãs, amigas da Maria Helena. Não nos víamos há mais de ano e quando chegamos a televisão estava ligada. As duas conversavam conosco tendo um olho no gato e outro na telinha. Chegando a pizza, imaginei que a TV seria desligada. O máximo que fizeram foi diminuir o som e sentarem-se ambas em posições estratégicas para não perder nenhum daqueles valiosos momentos que estavam sendo apresentados na tal novela, que, tanto quanto me consta, é uma mesmice só. Saímos de lá sentindo-nos duas pessoas inconvenientes. Outro item foi o carro de luxo, que, para a maioria, causa mais preocupação do que prazer. Houve tempo em que as pessoas se exibiam exibindo o seu automóvel. Era um autêntico alter ego, uma amante, que na Itália tem até nome feminino: machina. Hoje, segundo constatou a tal pesquisa, carro é sinal de transtorno, algo que se usa porque se deve usar, como óculos ou dentadura. Ninguém deixa de ser quem é porque deixou os óculos em casa ou porque saiu sem a dentadura. Isso causará alguns contratempos, mas nada que nos leve ao desespero. É só manter a boca fechada e abrir bem os olhos e tudo está resolvido. Carro é a mesma coisa: eu, pelo menos, prefiro tomar táxi. Dirigir pela avenida 23 de maio, tendo entre o seu automóvel e o carro do lado motocicletas e mais motocicletas passando a toda velocidade, muitas vezes com o motoboy apontando o céu com o dedo médio da mão direita, só pode agradar os masoquistas. Dia destes eu contei dezoito motocicletas que me ultrapassaram uma em seguida a outra naquele zum zum zum infernal. Dezoito! Grande número de pessoas concluiu que isso de "não saia de casa sem ele" pode se referir ao sapato ou ao guarda-chuva, mas cartão de crédito só é bom para uma coisa: enriquecer a Visa, a Mastercard e a American Express. Ou os clonadores. Fuja dele, dizem os pesquisadores. Cito novamente a Maria Helena: num mesmo dia, ela fazia compras em São Paulo e compras em Madri, pagando com o mesmo cartão. Globalização é isso! O telefone celular é outra causa de enorme infelicidade. Na Noruega, segundo ali se diz, as crianças nasciam já com os patins nos pés. As mães foram queixar-se a Odin, pois isso lhes causava às mães algum transtorno no momento do parto, e ele deu um jeito na coisa: em lugar de patim, elas nascerão com um telefone celular na mão, decretou ele. E até em carrinho de bebê talvez ali se encontre telefone celular guardado. Os adultos falam sozinhos nas ruas, parecendo, ao estrangeiro, um bando de malucos. É que na lapela eles trazem um minúsculo microfone com os quais vão matraqueando enquanto fazem suas caminhadas com as mãos no bolso, por causa do frio. Coisa de louco! Num ônibus vi duas crianças, de menos de 7 anos, falando ao celular. Acho que era algum assunto importantíssimo, como um chá de bonecas. Outros itens mais foram abordados na tal pesquisa. Um deles, porém, me fala ao coração. O vinho causa infelicidade, concluiu a tal pesquisa. Não qualquer vinho, esclareço. De fato, um curioso fator de infelicidade é comprar um vinho de US$ 200.00. Isso diz comigo. Não ponho uísque na boca nem se houver determinação médica. Gosto de remédio por gosto de remédio prefiro o óleo de fígado de bacalhau, para recordar a Noruega mais uma vez. Mas um vinho tinto chileno eu não dispenso. Um malbec portenho também me cai bem, até porque sou louco pelo Piazzola, que bem poderia ser nome de vinho. Não sou tão entendido como o Renato Machado, que a ex-mulher diz que quando moravam juntos não distinguia guaraná da Brahma do guaraná da Antarctica. "Veja como eu progredi com a separação" certamente retrucará ele. Verdade que não passo da segunda taça, mas que satisfação! Como não chego às tamancas do professor Jorge de Figueiredo Dias, das quais não sou digno nem de tirar o pó, gastar mais do que US$ 20.00 numa garrafa de vinho é caso de interdição. Imagine-se o que me aconteceria se, surtado a mais não poder, eu viesse a desembolsar os tais duzentos dólares para comprar um vinho apenas razoável! Ficaria, como os pesquisados, tremendamente infeliz. Vejo, porém, na Internet, que a casa Romanée-Conti está promovendo os vinhos de sua famosa domaine, a preços convidativos. O site da casa nos informa que tout ici est mis en oeuvre pour ne produire que des grands vins de garde, algo que você deve levar em consideração no momento da compra. La biodynamie a pris depuis une dizaine d'années une part différente sous la houlette nouvelle de Henry Frédéric-Roch, un des deux co-gérants du domaine avec Aubert de Villaine, prossegue a peça publicitária. Toutes les appellations proposées sont au sommet de l'élégance et de la profondeur, en progrès évidents sur la dernière décennie. Não entendeu? Deixa pra lá. É aquela ladainha costumeira dos comerciais. O sempre citado site traz um esclarecimento muito importante a todos aqueles que estão interessados na compra do tal vinho. Ils ne sont mis en vente qu'au bout de trois ans, en caisse panachée, avec une seule bouteille de Romanée-Conti. Caisse eu sei que quer dizer caixa, mas esse panachée é que são elas. Seria uma garrafa enfeitada com penachos? Na verdade, minha infelicidade não está em não ser tão bom no francês ou não poder gastar entre 8.341,00 et 8.759,00 EUR, como diz o mesmo site, para sorver um único exemplar da safra de 1961. Isso para mim é dinheiro de pinga, como se diz em Ribeirão Preto. Minha infelicidade está em não ter lugar onde colocar todas as pessoas que eu gostaria que me vissem tomar isso até cair de bêbado diante delas. Enquanto isso a elas eu mandaria meu mordomo servir um autêntico Sang de Bouf, safra 2001, de Bento Gonçalves. Salut!
sexta-feira, 27 de abril de 2007

Plágio

  "La legge è uguale per quasi tutti." (Pitigrilli) Vivaldo José Breternitz, que se diz doutor em Administração de Empresas pela USP, consultor de empresas e professor na Universidade Mackenzie, informa, na internet, para quem quiser ler, que um membro do Ministério Público de São Paulo, autor de um trabalho de mais de 500 páginas, que lhe valeu o título de Livre-Docente em Direito Penal em uma de nossas mais tradicionais faculdades de Direito, estaria sendo investigado pela apropriação de texto escrito por um colega dele, o qual texto foi incluído em livro escrito pelo investigado, como se este seu autor fosse. A editora retirou o livro das livrarias, alegando "problemas técnicos". É o chamado plágio, palavra que os romanos usavam para indicar a reprovabilidade do ato de quem se apropriasse de escravo alheio. Quer ter um escravo ? Pois então pague. No caso, o dono do escravo é um sub-procurador da República, que me assegurou haver-se composto com quem de direito, recebendo pelos danos morais decorrentes da apropriação até mais do que recebeu como direitos autorais. "Quanto ao cargo dele na USP e no Ministério Público não são problemas meus, que não sou palmatória do mundo" diz ele, com carradas de razão. Dada a relevância da matéria, seria desejável que pelo menos o Ministério Público, tão solerte quando se cuida de mandar para a cadeia ou propor que ali permaneçam meras furtadoras de pacote de margarina, viesse a público explicar o desenlace do imbróglio envolvendo um de seus membros. Ou o Conselho Nacional respectivo, que está aí para esfriar panos quentes. Mais recentemente a internet, sempre ela, e até o Migalhas nos informaram que o autor plagiante de outra obra não é promotor público mas nada menos do que juiz de Direito, citado com nome e endereço, o qual teria copiado e traduzido texto de um autor norte-americano em obra que etc. E, de quebra, teria também copiado trechos de um livro espanhol, com citação alemã que o espanhol fala com fluência e da qual o professor brasileiro só conhece o aftas das baitas ardem e doem, como se brincava no meu tempo de ginásio. "Juiz que concorre a cargo de titular de direito penal é acusado de plagiar artigo e, agora, tese" foi o cabeçalho curto e grosso do site do Estadão no dia 17 de abril. A excelente revista piauí, escrito assim mesmo com modestas letras miúdas, do mesmo mês de abril, que os horoscopistas dizem não ser propício a plagiadores, traz o relato de uma "fazedora de trabalhos acadêmicos". Inicialmente, ela fazia TCCs. Não é do seu tempo ? Eu explico: Tese de Conclusão de Curso Universitário. Ou seja, o aluno é obrigado a fazer pesquisa e depois escrever um trabalho, que, em tese, será lido por alguém e depois levado para uma sala onde, naturalmente. Acontece que aquela senhora fazia trabalhos jurídicos e psicológicos tão sérios que acabou sendo procurada para fazer trabalho de aluno de pós-graduação. "Sou como uma cozinheira: eu faço bolo sob encomenda. O que a pessoa que me contrata vai fazer com o bolo não é problema meu" diz ela, sem a mais mínima razão, como diria ela em algum trabalho sobre a língua portuguesa. O fato é que a tal senhora tanto se aperfeiçoou no seu ofício e no tal trabalho, que este foi ficando tão bom, mas tão bom, que os dois "orientadores" do seu cliente não tiveram dúvida em fazer com este um acordo: eles passam a ser considerados os autores da tese e dariam ao seu orientando (!) uma compensação qualquer. "O aluno ganharia a aprovação, mas os orientadores (!) queriam que o trabalho virasse a tese de doutorado da dupla". Nome da universidade: USP. Vá à banca de jornais e confira. Gente, que se passa? Longe de mim aceitar desde logo a acusação e já aplicar ao denunciado o merecido opróbrio, palavra que nem sei o que significa, pois acabo de pegá-la de um texto erudito que estou lendo nas minhas horas vagas. Citar o que o tal livro diz sem consultar o dicionário pode trazer-me sérios problemas, como acabo de ver dos exemplos que me chegaram às níveas mãos, embora não seja eu promotor público nem desembargador. Mas, modess in rabus, como dizia o Adhemar de Barros, aquele político que produziu uma singular tradução do quod abundat non nocet. É claro que o plágio é reprovável, pois implica a apropriação de trabalho intelectual alheio, o que é feito não só pela glória da autoria como pelos proveitos econômicos que isso lhe proporcionará ao plagiante. Reconheço que nem sempre é fácil punir um plagiador, menos pelo cargo que ocupa e mais porque certas idéias são como passarinhos: ficam voando aqui e ali. Quem pegar é dele. Especialmente quando a cópia é de apenas umas 30 páginas. Também sabemos todos que existem muitos professores universitários que se utilizam de trabalhos de alunos em suas obras e "se esquecem" de colocar o texto entre aspas. O professor Breternitz, que é do ramo, dá conta disso naquela denúncia internética. Mero esquecimento, mesmo quando isso representa páginas e mais páginas, dirão os apontados plagiadores. Seus superiores hierárquicos geralmente aceitam a desculpa. Dizem que certo candidato a professor de Direito que copiou quase literalmente um livro editado em Portugal e o apresentou, como seu, na disputa da cátedra para professor de Direito, eis a ironia. Para que não percebessem o golpe, diz a lenda que ele comprou todos os livros que a importadora havia trazido de lá. O diabo é que a importadora ficou entusiasmada com o sucesso da até então obscura obra e mandou vir o dobro de exemplares. E nosso plagiador acabou sendo descoberto, pois gastaria um dinheirão enorme se pretendesse ocultar indefinidamente a tal obra, lotando o porão de casa com tantos inúteis exemplares por ele plagiados. A rigor, quem motivou a descoberta foi ele mesmo, ao dar ao obscuro livro o caráter de best seller. Eu mesmo corro o risco de ser desmascarado. Andei cometendo alguns hai-kais, que, como sabeis, são manifestações poéticas brevíssimas, coisa de meia página e três ou quatro linhas. Lendo as que escrevi, fico em dúvida se sou mesmo o autor de todas elas ou se estou a me apropriar de coisas do Basho, o grande poeta japonês do século XVII, mestre de nós todos na área, inclusive do nosso Millôr Fernandes, que publicou um enorme rol deles, devidamente abrasileirados. O Paulo Vanzolini, homem inteligente e sensato, afirmou que entre Zeca Pagodinho e Caetano Veloso prefere a obra do primeiro, pois o compositor baiano é mero fruto de marketing. Seria isso uma insensatez do renomado cientista de São Paulo, não soubéssemos que ele não perdoa o Caê por haver "plagiado" (é o Vanzolini quem o diz) sua música Ronda, criando sobre ela o consagrado hino da cidade de São Paulo, ao falar do que ocorre no cruzamento da Ipiranga e da São João, em seu belíssimo Sampa. E o Pagodinho, para quem não sabe, é aquela figura ética que recebeu um bom dinheiro para elogiar certa marca de cerveja e, pouco tempo depois, recebeu mais dinheiro para falar mal da mesma marca de cerveja. "Faça como eu: mude!" dizia ele no segundo comercial, convidando-nos a seguirmos seu exemplo deontológico. E sermos tão processados criminalmente quanto ele ? Em relação ao Villa Lobos e ao Tom Jobim também já houve quem apontasse estranhas coincidências entre músicas de autoria deles e outras, muito anteriores a seus nascimentos. Ora, é sabido que tanto um quanto o outro não escondiam que se baseavam em obras anteriores, dando a elas roupagens mais modernas. Ninguém em sã consciência acusaria Villa Lobos de haver plagiado cantigas de roda, que aparecem em sua obra e, a partir dela, correram o mundo. Por outro lado, o Samba de Uma Nota Só, do Tom, nos lembra a introdução do Night and Day, mas, e daí? É impraticável fazermos música como o João Cabral fazia poesia: sempre que lhe vinha à mente uns versos bonitos, rimados, ele os registrava e depois, racionalmente, os reescrevia, temendo que a inspiração fosse, na verdade, mera lembrança de versos que já lera no passado. Ocorre que nosso Tom pretendia, segundo declarou mais de uma vez, mostrar que as pessoas ditas comuns gostam de música clássica. E, para provar isso, ele as fantasiava de bossa-nova. Para comprovar, ouça o Prelúdio nº 4 de Chopin e, depois, Insensatez, do Jobim, e veja de que estou falando. Da mesma forma como, dentre os milhares de quadros que deixou Pablo Picasso, encontraremos claras referências a obras de artistas anteriores, numa espécie de intervenção sobre a obra alheia, uma releitura do mesmo tema. Compare seu Las Meninas, que é de 1957, com o quadro homônimo de Velázquez, que é de 1656, e verá que lá estão os mesmos elementos. Para muita gente, Picasso era um plagiador, mesmo porque nunca foi juiz nem promotor. Entretanto, est modus in rebus, meu caro Adhemar.  
sexta-feira, 20 de abril de 2007

  "A ciência sem a religião é manca; a religião sem a ciência é cega" (Albert Einstein) Para algumas pessoas, só a mais crassa ingenuidade atribui a eventuais poderes sobrenaturais a responsabilidade por aquilo que nada mais é do que a reunião de circunstâncias favoráveis reunidas pela coincidência. Milagre é coisa de criança e de velho decrépito. "Trabalhe duro e deixe Deus em paz", eis o conselho deles. Sem adentrar tal discussão, lembro apenas que o respeitável Carl Gustav Jung passou a vida toda recolhendo dados para uma análise científica do fenômeno religioso e não chegou a conclusão alguma, nem afirmativa, nem negativa. "Como uma traça, que se alimenta de lã tirada de um carneiro australiano, poderá demonstrar às demais traças como é a Austrália ?" exemplificava ele. Mas não deixou de reconhecer: "Religion is a defense against religious experience", como sublinha sua biógrafa Claire Dunne. Isso não impediu que, em suas Memórias, ele deixasse dito: "A existência de Deus não depende de nossas demonstrações". Sua grande divergência em relação a Freud assentava-se precisamente aí, pois não conseguia aceitar o materialismo do antigo mestre. Suas críticas a seu genitor, que foi pastor luterano a vida toda, baseava-se principalmente no fato de seu pai ser uma pessoa extremamente amargurada, dominado por uma religiosidade que era apenas um conjunto de ritos e proibições, algo mui diverso do que a fé genuína costuma proporcionar ao crente. Seu pai era um homem sem alegria. "Parecia-me inconcebível que ele não tivesse a experiência de Deus", escreve ele em suas Memórias. Há quem confunda religião com rituais supersticiosos. Veja o caso do Romário, para citar um só de nossos futebolistas. Quando ele perde um gol, faz o famoso "sinal da cruz", como entre nós se denomina aquilo que os pernósticos chamamos persignar-se. Qual o sentido daquilo ? Expressa que tipo de convicção ? Eis um prato cheio para os racionalistas. Ainda se fosse o Kaká, levantando os braços para o céu, tudo bem. Afinal de contas, ele é branco, classe média e o Deus dele agora é europeu. Ou como fez um inimaginável jogador da seleção russa persignando-se enquanto adentrava o gramado, como dizem os locutores. Não me peçam o nome dele, que não tenho memória nem para nome de remédio. Vejam o teipe do jogo em que a Rússia perdeu de 1 a 0 para a Espanha, na Copa da Europa 2004, e lá está o tal lance. Isso para não falar dos que colocam o nome de Jesus na camisola, como lhe chamam os lusitanos à camisa do time. Ainda hei de ver um time de muçulmanos estendendo o tapete sobre o gramado e dobrando-se todos na direção de Meca, direito tão válido como qualquer outra forma de exibição de nossa convicção religiosa. Eu, de mim, prefiro narrar fatos. Como eu escrevi certa vez, plagiando inconscientemente o Mário Quintana, "não acho importante dizer se acredito em Deus; importante é eu saber que Deus acredita em mim". Quando terminei uma palestra em Congresso realizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada em Recife, anos passados, palestra que cuidava do surrado tema dos direitos humanos fundamentais, liberté, egalité, fraternité e coisas que tais, duas senhoras, entusiasmadas, vieram discretamente anunciar que, pelo teor de minhas palavras, elas haviam descoberto que eu pertencia à mesma religião que elas professavam. Elas não disseram qual era a tal religião nem eu lhes perguntei. E trocamos um sorriso cúmplice. Independentemente de eventual rótulo, havia entre elas e eu alguma coisa que nos unia, algo que estava além das palavras. E isso me bastava. Bastaria a elas ? Dia desses encontro um velho amigo (ele é uns dez anos mais velho do que eu), que tem algumas características peculiares. Em primeiro lugar, é um homem de fé assumidamente católica e de atuação engajada, como se costumava dizer outrora. Em segundo lugar, é de uma amabilidade extraordinária, expressando-se efusivamente onde quer que se encontre e onde quer que nos encontre. Certa ocasião, quando eu me distraía vendo um casal de dançarinos de tango exibindo-se na feira de San Telmo, em Buenos Aires, alguém se aproximou de mim e lascou um beijo estalado em uma de minhas bochechas. Era o Luizinho Beijoqueiro, sempre acompanhado de sua baixinha, como ele carinhosamente se refere à inseparável esposa. A terceira característica dele é seu pitoresco bigode, pontas voltadas para o céu, o que lhe traz ao rosto um eterno sorriso, com um ar de plena felicidade. E ele, de fato, transpira felicidade e nos contagia com seu entusiasmo e suas beijocas fraternais. Pois embora não nos víssemos há tantos anos, ele começa o diálogo como se nos tivéssemos despedido na véspera. "E a fé, como está?", pergunta ele, sem dizer água vai. Confesso que não esperava uma pergunta dessas àquela altura. Já havíamos conversado algumas vezes sobre as famosas noches oscuras, tão bem cantadas pelo grande vate espanhol, que, a exemplo do poverello de Assis, também outro grande poeta, tinha lá suas diferenças com Deus. Para Juan de la Cruz, como para Francisco de Assis, o crístico "pai, por que me desamparaste?" jamais foi uma exclamação histórica, mas o reconhecimento de uma contingência do ser humano, um preço que pagamos por sermos como somos. Sabermos que ubi homo ibi peccatum nada tem a ver com a fé propriamente dita, mas com um estado de necessária humildade: se tudo que sei é que sei tão pouco sobre tudo, por que a soberba ? a arrogância ? a vaidade ? o orgulho ? a sensação de desamparo diante da loucura que nos cerca ? Ou, como no célebre episódio envolvendo Tomás de Aquino, é sabermos que o mar é muito maior do que o buraco que a criança fazia na praia para ali guardar toda aquela água que ela ali pretendia pôr. Ou teria sido Agostinho? A sensação de desamparo não pertenceu a um único homem, por mais divino que o achemos, mas pertence a cada um de nós, que nele tivemos o nosso corajoso representante, o nosso procurador, a voz de nossa humana depressão. Pois falava-me o Luiz Soares de Mello, com seus mais de 70 anos de conversão diária, que recentemente teve posta à prova sua fé. Estava fora de seu ambiente habitual e pretendia comungar na missa de que ele participava. Mas entendia que antes disso deveria confessar-se, como lhe ditava sua consciência e suas respeitáveis convicções. E lá foi ele para o local a isso destinado. Mal iniciara o relato ao confessor, ele descobre pelas frestas da treliça que o padre era alguém de quem os meios de comunicação haviam, recentemente, tecido considerações desairosas. Indaga o nome e o padre o confirma: era, de fato, aquela pessoa que os jornais vinham enxovalhando. Meu amigo, então, com toda lealdade e imbuído da mais legítima caridade fraterna, indica ao sacerdote os motivos pelos quais não poderia confessar-se, pois não sentia confiança no seu confessor. O tal padre ouve as explicações e, gentilmente, indaga se ele conhecia a fundo a vida privada de todos os demais padres com os quais havia-se confessado até então. E se ele sabia a diferença entre um homem e um anjo. E concluiu: "Os que temos fé sabemos que o que importa não é o tipo de garrafa que o contém, mas a qualidade do vinho que está dentro dela". A conversa prosseguiu por algum tempo, ao fim do qual lá estava o Luiz reconhecendo, homem generoso que de fato é, que se excedera ao olvidar o evangélico "não julgueis". E confessou-se com toda liberdade. Pensando bem, um padre pecador talvez fosse, de fato, alguém mais indicado para ouvir as misérias que um ser humano atormentado tem para desabafar. De fato, que que um anjo entende de pecado, sô ?
sexta-feira, 13 de abril de 2007

Toc

"Essas recordações me matam!" (Roberto e Erasmo Carlos) Há cerca de 20 anos encontrei um colega, cujo aspecto não deixava margem a dúvida: estava numa crise de depressão. Com a liberdade que nossa amizade me permitia, perguntei-lhe se andava chorando sem motivo aparente. Ele ficou sério. Se tinha medo de suicídio. Ele arregalou os olhos: "quem lhe contou?" De depressão eu conheço mais do que você imagina, respondi. Falei de minhas crises e ele, a partir daí, foi cuidar da saúde psíquica dele, tanto quanto eu já cuidava da minha. Agora, ele, já desembargador, apenas me toca no braço e, com alguma dificuldade, deixa escapar: "Você me salvou a vida". Leio numa dessas revistas que quase não têm matéria para ser lida que o cantor Roberto Carlos declarou publicamente que está bem melhor do TOC, doença da qual ainda não está curado de todo, embora esteja em tratamento há mais de dois anos. TOC? A senhora não entendeu? Eu explico. Viu aquele filme do Jack Nicholson, Melhor é Impossível? Pois é. Aquilo é, evidentemente, um exagero, próprio de uma comédia, se é que aquilo é uma comédia. O personagem escolhe os ladrilhos em que pisar pela cor deles, coisa que muitos de nós certamente fazíamos quando éramos crianças; conta as barras das grades dos jardins das casas, quem de nós não fez isso?; repete uma série de atos aparentemente absurdos, como se aquilo dependesse da vontade dele. Ocorre que não depende. O Transtorno Obsessivo e Compulsivo caracteriza-se exatamente pelo fato de o padecente realizar atos aparentemente sem motivo algum, seja por sua natureza, seja por sua reiteração e demora na sua realização. Todos nós trancamos a porta de casa antes de nos deitarmos, mas há pessoas que se levantam no meio da noite para ir conferir, pela décima vez, se, de fato, trancou a porta. No filme, ele não apenas se preocupa com isso, como coloca várias trancas na porta, num evidente exagero. Quantas pessoas há que se reconheceram naquele personagem? Eu conheci um juiz que não devolvia os autos do processo à secretaria, acumulando pilhas e pilhas, todas com os votos prontos. "Ainda preciso dar uma última revisão nisso" era sua explicação. Para todos os efeitos, era um juiz vagabundo. Uma jovem artista de televisão teve, tempos atrás, o desassombro de confessar que tinha necessidade compulsiva de tomar banho. Eram banhos que duravam horas, disse ela. Imagine o mal que isso lhe fazia à pele. Não sei como andará isso, mas a reportagem dava conta de que ela também havia tomado consciência de que aquela preocupação nada tinha com o dever de higienizar-se. Também contou que costumava ficar junto a janela de casa e dali não se afastar enquanto não passasse um automóvel de tal marca e tal cor. Com a padronização das cores de automóvel hoje em dia, pois ou são pretos ou cinza, imagine quanto tempo ela ficaria ali, escrava de seu TOC. Longe de mim querer diagnosticar a conduta de certos jogadores de futebol que não podem deixar de persignar-se quando fazem ou quando perdem um gol. Ou questionar sua religiosidade, mesmo porque esse tema é delicado. Todos vimos o presidente José Sarney entrar de novo na casa de onde havia saído porque a porta pela qual saíra não era a mesma pela qual entrara. E a TV Globo ali, registrando aquilo que, oficialmente, se chama superstição. Uma senhora só faltou me bater quando tive o atrevimento de, após uma visita feita a ela, abrir eu mesmo a porta da casa. "Isso dá azar!" berrou ela. O que quero dizer é que seria interessante saber se essas pessoas conseguem ou não conseguem ficar sem aquelas "bengalas". Certamente, não conseguem. Esses rituais estão, de fato, acima do entendimento e da vontade de quem os pratica. Dizer que são mera superstição não resolve o problema da compulsividade. Qual a raiz do ritual supersticioso? Diga sinceramente: qual será sua conduta ao verificar que o pão está sobre a mesa com os fundos para cima? Ou um par de sapatos está com as solas voltadas para o teto? O fato de eles estarem "de cabeça para baixo" e, portanto, deverem ser virados, não explica a providência que a senhora um dia tomou diante daquela "anormalidade", mesmo porque nem o pão nem o sapato têm cabeça. Concorda? Há na rapidez e inevitabilidade com que muitas pessoas se apressam a "corrigir" aquela postura, eu suponho que também seja a sua, algo que foge à racionalidade. Tente explicar. Provoque seus conhecidos, virando o pão que está sobre a mesa e veja a reação deles. Conheço pessoas que não conseguem ir para casa antes de arrumar todos os objetos que estão sobre a mesa no escritório. Reconheço que a ordem é importante para eu saber onde está isto e aquilo. Facilita o meu trabalho. Mas o que aqui se registra não é a escolha da ordem, mas a imposição feita pela ordem. A rigor, não sou eu que mando nela, é a ordem que manda em mim. O que é um rematado absurdo. E eu não posso deixar de fazer o que ela quer, eis o que a pessoa diria, se tentasse explicar essa compulsividade. Não sei se a senhora conhece a série Monk, exibida na televisão. Não vi os primeiros episódios nem acompanho com fidelidade os diversos capítulos daquele drama, vencedor de muitos prêmios, desconhecendo, por exemplo, por que motivo o personagem se chama Monge. O fato é que ele era um policial excelente, que entra em crise quando a mulher morre numa emboscada. A partir daí, tornou-se vítima do TOC. Imagine um policial com a mania de limpar o local do crime, apagando eventuais pistas datiloscópicas, para concluir que, como ocorreu no filme, ele acaba sendo aposentado por invalidez. Mas, como era muito eficiente, é chamado pelos colegas para cuidar de casos difíceis. Que ele resolve precisamente por ser obsessivo, eis a ironia do filme. Tenho também minhas pequenas manias, mas o que quase me levou a uma aposentadoria precoce foi a síndrome do pânico, um distúrbio tão escravizante quanto aquele. Curioso é que os comarcanos ficaram sabendo disso - e o que os comarcanos não sabem a respeito da vida do juiz? - e tome visita de solidariedade, que eu recebia na certeza de que eles iam à minha casa menos para saber de minha saúde e mais para verificar se eu já estava babando na minha excelentíssima gravata. Desculpe, mas tenho essa mania de desconfiar das pessoas. Um desses gentis visitantes era um modesto comerciante que havia entrado em uma crise profunda de depressão depois que sua empresa havia sido autuada, com aplicação de uma multa astronômica que o levaria à falência, segundo ele. Eu nunca vim a saber exatamente qual o valor da tal multa. Conto apenas o que ele me contou. Outro visitante era um padre, com aspecto saudável, corado, que conversava normalmente. Ele estava naquela cidade gozando de "férias forçadas", depois que, como ecônomo de sua congregação, algo que os mortais comuns chamamos de tesoureiro, havia caído num conto do vigário, olha a ironia, e causado um prejuízo enorme à tal congregação, que ele pretendera ajudar quando contratara o bem falante economista, especializado, veio ele a saber depois, em mutretas e coisas afins. E ali estava ele, já que, depois daquele rombo, se recusava a sair da cama. Quando me ouviu falar dos meus sintomas, ele não se agüentou e, a batina que me perdoe, soltou um desabafo inesquecível: "pois eu passo por tudo isso e aqueles filhos da pátria dos meus colegas dizem que não tenho nada!" Sugeri a ambos que fizessem o que eu estava fazendo para superar a depressão: viagem de trem até a capital uma vez por semana, sessão de psicoterapia por uma hora e nova viagem de trem de volta à minha comarca, pois, dirigir automóvel?, nem pensar. Espero que o tenham feito. Posso afirmar, meu caro leitor, que pelo menos cinco por cento dos que estão lendo esta crônica padecem de depressão. E olhe que estou sendo otimista. Dando de barato que o Migalhas chegue a 100.000 lares diariamente, isso significa que neste momento dirijo-me a 5.000 depressivos, dando também de barato. E posso apostar também que mais de cinqüenta por cento dos familiares desses depressivos não dão a menor importância a isso. "Isso no meu tempo se chamava frescura" é como grande parte dos amigos e parentes se referem a uma das doenças mais insidiosas que existe. Eu vivo cruzando com depressivos e posso dizer que já ajudei a alguns a procurar tratamento. "Você, com esse espírito brincalhão, vem me dizer que é sujeito a depressão? Não acredito!" E quando eu passo a descrever os sintomas todos, a resistência deles baixa, como ocorreu com aquele colega, cuja vida minha orientação teria salvo. A última pessoa com quem cruzei e que se encaixa nisso é a mais recente faxineira que tivemos em casa. Educadíssima, fala mansa, mas não aceita "imposições". Imposição? É, a senhora me mandou arrumar a sala mas eu só arrumo quando tenho vontade. No fim do ano, sintomaticamente, não compareceu ao serviço porque passou na cama, "sem a menor vontade de ver ninguém". Daí à tentativa de suicídio é um pulo, como sabe quem já teve alguém depressivo na família. Um dia ela resolveu que não viria mais e não veio mesmo. Por que falo disso tudo? Para dizer que o Roberto Carlos, que tem uma belíssima música, pouco conhecida mas que inspirou o nome de um jogador de futebol, até com passagem pela seleção brasileira, talvez não tenha consciência do bem que fez a tanta gente falando de algo que as pessoas preferem silenciar. A tal música chama-se O Divã, o que produziu o nome do jogador Odivan. Teriam os pais do jogador conhecido a letra daquela música? Ali já se poderiam notar as tendências à depressão naquele admirável compositor, ao recordar o acidente que o aleijou, como narrado numa sessão de psicoterapia. Veja se não é: "Relembro a casa com varanda,muitas flores na janela,minha mãe, lá dentro dela,me dizia num sorriso,mas na lágrima um aviso,pra que eu tivesse cuidadona partida pro futuroeu ainda era puromas num beijo disse adeus. Minha casa era modesta mas eu estava seguro,não tinha medo de nada,não tinha medo de escuro,não temia trovoada.Meus irmãos à minha voltae meu pai sempre de voltatrazia o suor no rostonenhum dinheiro no bolsomas trazia a esperança. Essas recordações me matam,por isso eu venho aqui. Relembro bem a festa, o apitoe na multidão um gritoo sangue no linho brancoa paz de quem carregavaem seus braços quem choravae pro céu ainda olhavae encontrava esperançade um dia tão distantepelo menos por instantesencontrar a paz sonhada. Essas recordações me matam,por isso eu venho aqui. Eu venho aqui me deito e falopra você que só escutanão entende a minha lutaafinal, de que me queixo?são problemas superados,mas o meu passado viveem tudo que eu faço agoraele está no meu presenteeu apenas desabafoconfusões da minha mente. Essas recordações me matam,por isso eu venho aqui."  
sexta-feira, 30 de março de 2007

Chico Louco

Chico Louco era o singular apelido do magistrado, nome que dispensa maiores explicações, sendo famosa na comarca a motocicleta com que Sua Excelência cruzava as ruas da cidade, passando vezes e vezes diante do quartel local, sempre em alta velocidade, para ser homenageado com os cumprimentos do soldado de plantão na fronteira guarita, o qual lhe batia sonora continência, juntando estrondosamente os dois cascos tal como lhe determinava o RDE, a cada vez que isso se dava. E ele que não o fizesse! Se não for eu a quem ele irá saudar para justificar o soldo recebido? Estando a acumular comarcas no período de férias, visitava-as a bordo de sua Harley Davidson devidamente equipado como convém a quem se dispõe a tal aventura que insta não dar azo às Parcas para não abrir vaga na carreira precipitadamente para gáudio de seus queridos colegas como dizia Sua Excelência e punha aquele belo capacete que parecia ter saído da falecida cabeça de algum soldado ariano do III Reich. E havia advogados que aceitavam carona no incômodo veículo, olha a temeridade! como o doutor fulano, que, no entanto, não conseguiu chegar a seu destino porque, respeitoso em demasia, furtou-se de circundar a cintura de Sua Excelência com os necessários braços que manteve ao vento até que numa curva vencida com franco exibicionismo por parte do piloto Sua Senhoria estatelou-se no asfalto, fato singular e inesperável de que Sua Excelência só tomou conhecimento quando, ao estacionar sua possante máquina na garagem do fórum do seu destino, deu pela ausência do causídico. Ingrato! Nem despedir despediu-se! Em sua comarca, como em muitas mais, a sexta-feira era destinada a trabalhos burocráticos forma eufêmica de dizer que o juiz não aparece no fórum, em nome da chamada semana inglesa ou das inúmeras sentenças em atraso que insta por em dia e como fazê-lo tendo de atender partes e advogados? E foi precisamente numa sexta-feira que o doutor sicrano, titular do conhecido escritório de advocacia sicrano e associados, sendo estes inúmeros, mais os não associados também inúmeros e os inúmeros estagiários e inúmeras estagiárias, ditos solicitadores acadêmicos naquele tempo, desceu de um táxi aéreo no aeródromo local que ele não era homem de vencer distâncias de automóvel, mesmo porque a despesa seria lançada na conta do augusto cliente, sendo que o fato de o próprio titular do escritório e não algum dos inúmeros associados ou dos inúmeros advogados não associados ou ainda algum dos inúmeros estagiários, ditos então solicitadores acadêmicos, não o terem feito já era indicação da magnitude da causa e do poderio econômico do cliente. Chegado ao fórum, o ilustre advogado, desses de chamar desembargador de você, ali não encontrou vivalma para espanto seu que supôs haver chegado ao local em dia de feriado municipal, o que logo foi desmentido pelo porteiro que lhe explicou que Sua Excelência estava fora em correição. Mas cuida-se de medida extrema urgente e inadiável que insta seja submetida a Sua Excelência de imediato, sem tardança alguma. A correição é no cartório da dona Geny diz o porteiro com seriedade. E onde fica esse cartório senão no fórum como os demais? Esse fica num local mais retirado como esclareceu então o porteiro, o senhor tem de pegar um táxi e ele lhe conduz até lá, sugeriu ele a errar a flexão do objeto direto como se indireto ele fosse. E o nosso advogado que chama desembargador de você foi até o centro da cidadezinha onde perguntou: quem saberá levar-me ao cartório de dona Geny e todos eles disseram qualquer um de nós e ele escolheu o carro mais confortável e com ar condicionado sem atentar para isso de primeiro aquele, eu estou pagando eu escolho, e o carro mais confortável levou-o por estrada de terra até um local onde se avistava um sobrado situado no alto de uma pequena elevação ricamente gramada, com uma discreta rampa que levava até à porta principal do edifício, rampa essa cercada de flores que me pareciam ser petúnias não tenho muita certeza talvez alamandas. E ele agora tira do bolso direito interno do bem cortado paletó a carteira de couro alemão e procura ali umas notas para pagar o taxista que lhe estende a palma da mão direita, deixe-se disso é por conta da casa. Por conta da casa? Isso mesmo, tenha uma boa tarde e aproveite. E o advogado com a pasta de couro também alemão debaixo do braço cruza o belo portal do sobrado e é atendido por uma bela moça que lhe diz em que posso servi-lo? Dona Geny por gentileza! Quem deseja? Diga que é o doutor sicrano, advogado em São Paulo, que tem uma petição para despachar em regime de urgência com. Um momento, um momento, diz ela e se põe a subir a escada de mármore que havia à esquerda, com corrimão vazado que permitia ao importante advogado apreciar as belas pernas da moça, o que para ele não era muita novidade porque em seu escritório para serem admitidas como estagiárias as moças deviam de. Pode subir, doutor, pode subir. A voz feminina vinha lá de cima e não pertencia à moça que o atendera e ele agora está a subir a mesma escada, sem mostrar suas feias pernas porque o terno de tropical inglês impede a exibição delas, para sorte de eventuais espectadores, e logo ele está lá em cima, sendo atendido por uma senhora um tanto gordita cabelos louros penteados com laquê colares e mais colares de falsas pérolas a cobrir-lhe o gordo pescoço, sendo que a falsidade das pérolas foi o juízo que ele fez, além de um decote que se poderia chamar de generoso não mais do que isso, o que lhe trouxe à mente a velha anedota da mulher peituda com decote vasto onde homenageava em um broche o quadro célebre do Leonardo da Vinci, ali reproduzido em miniatura. Ao que ela lhe perguntou ao homem que não lhe retirava os fixos olhos dos peitos: o senhor está admirando a Ceia do Senhor? Não, estou é admirando os seios da senhora! Acompanhe-me, doutor, acompanhe-me. E eles seguem pelo corredor acarpetado com uns desenhos de flores que se repetem a cada passo que eles dão até uma porta lá no fundo, em que ela bate duas vezes com dois dedos dobrados, com delicadeza, entre entre, e agora a mulher abre a porta em que havia batido delicadamente por duas vezes com os dedos dobrados e faz um sinal solene ao advogado que trata desembargador de você, indicando-lhe que entre, o que ele faz e ela fecha a porta sem entrar. O advogado agora está com o chapéu de autêntico panamá na sua mão direita dele pasta de couro alemão em baixo do braço esquerdo também dele a olhar curioso as paredes daquela sala onde faunos e sereias dançam alegremente, ele não imagina como sereia poder dançar sem ter pernas mas é isso que as pinturas sugerem sendo que as pinturas parecem ter sido feitas por algum artista local, coisa que não se confundiria jamais com as pinturas das paredes da Igreja do Santíssimo Sacramento, no Vaticano, para citar apenas uma, que ele visitou naquele Ano Santo, como representante da Ordem dos Advogados, ele que é congregado mariano e membro da Sacrossanta Ordem dos Templários, partícipe desde remotos anos da anual festa dedicada a Santo Ivo, com direito de publicação da conferência então feita, dita homilia, no boletim da AASP, em folhas destacadamente azuis, e que jamais havia suposto entrar em uma sala tão insólita como aquela, sendo insólita a palavra de que ele se utilizou quando, em reunião ordinária, narrou a seus inúmeros associados aquela incrível aventura de que fora protagonista. E a petição, foi despachada ou não foi? Calma, calma, uma coisa por vez, diz ele, fazendo uma pausa para tomar um gole da água que o aguarda ao lado, em copo de cristal da Boêmia onde quer que seja isso e lhe pergunta aos colegas são servidos? E uns dizem sim e outros dizem não e a maioria fica silente esperando o resto da história. Pois não doutor foi a voz que ele ouviu, o que muito o encabulou pois, a falar verdade, não havia reparado que havia um homem naquela incrível sala. Um homem inteiramente nu, se permitido for imaginar, pois da cintura para baixo ele estava protegido por uma alvíssima espuma de sabonete Phebo, se não me falha o olfato, já que se encontrava o tal homem sentado dentro de uma banheira, mais exatamente um arremedo de um nipônico ofurô, tendo na boca um charuto certamente vindo de Havana se não lhe falham as narinas profissionais do doutor sicrano ele mesmo um fumeur de bons charutos o que ele faz no clube destinado especificamente a isso, fiquem os senhores sabendo! e aquele olor que lhe era muito familiar, pois charuto não tem cheiro mas olor, como ele disse aos colegas que se divertiram muito com a tirada, não fosse ele o chefe deles todos, e o homem do charuto na boca diz novamente pois não pois não. Quer dizer que o senhor? Doutor, estamos perdendo tempo, diz o homem nu enquanto enxuga as mãos em uma toalha felpuda branca branca como a fumaça do charuto, e logo lhe diz o senhor tem uma caneta aí doutor, que a minha ficou no paletó. Pois não, pois não, diz o doutor sicrano tirando sua caneta preta do bolso do paletó e entregando-a ao homem sentado dentro do ofurô, que repara que ela tem uma estrela branca nos fundos externos da tampa, e com a outra mão o homem do charuto pega a petição e, com incrível perícia, escreve ali mesmo jota conclusos com urgência dia tal do mês tal e ano tal e assina com aquela assinatura escandalosa que ocupa quase meia página, ressalvado o exagero, e devolve a caneta, que olha demoradamente antes de entregar com a petição ao advogado que viera da capital e que agora vai pedir à secretária da dona Geny que lhe chame um táxi por obséquio, que o vai levar de volta ao fórum, onde ele protocolarizará, como dizem os pernósticos, aquela petição, se fosse para receber um despacho desses qualquer estagiário poderia ter vindo resmunga ele que depois irá com o mesmo táxi até o aeródromo onde o aguarda o aviãozinho Bandeirante que o levará de volta à capital, onde, dentro de alguns dias, ele encontrará os amigos desembargadores no reservado restaurante do Jockey Clube, ali na rua Boa Vista, prédio onde também ficava naquela época, não sei hoje, o escritório do Pinheiro Neto, onde trabalhava aquela bela loira a doutora Noêmia, conhece? aos quais começará dizendo vocês não sabem o que me ocorreu nesse fim de semana!   - Do livro Menas Verdades (no prelo)
sexta-feira, 23 de março de 2007

Hinos

  "A Federação Paulista de Futebol determinou que antes da realização de partidas do campeonato de futebol deste ano seja executado o Hino Nacional Brasileiro" (Dos jornais) Pra que serve um hino? Faço a pergunta menos para tornar pública minha ignorância e mais para tentar explicar porque os jogadores de futebol ficam mascando chicle, fingindo que cantam alguma coisa naquele momento nervoso que antecede um jogo de futebol da seleção brasileira. Ou outro jogo de futebol, vá lá. Um jogador de futebol saber cantar o hino é algo importante? Por quê? Para quê? Cartas à redação. A princípio, um hino sugere uma tropa de militares marchando, carabina no ombro, passos cadenciados, em dupla fila indiana, se eu puder dizer isso. É impossível ouvir a Marselhesa e pensar em sílfides, borboletas ou cisnes, como ocorre quando ouvimos o Lago do Cisne, do Offenbach ou a Barcarolle, do Saint Saens. Ou seria o contrário? Mais cartas esclarecedoras, por favor. Pense naqueles primeiros e famosos versos do hino francês, que poderiam ser traduzido por "vamos lá, moçada". Lá está a tropa pisando firme o solo pátrio lá deles e gorgeando: Alonzan (pé esquerdo) fan (pé direito) de (p.e.) la (p.d.) pa (p. e.) triiii (p.d.). Verdade que é difícil imaginar os franceses pisando neve nesse ritmo a caminho de Moscou. Talvez um moderato ma non troppo até que fosse bem nas circunstâncias. Ou uma Barcarolle, agora tendo ao piano Frédéric Chopin, comme il faut. Ou uma valsa vienense, sei lá. Curiosamente, nem todos os hinos têm esse ar marcial, alguns mais parecendo cortejo fúnebre, o que contraria a palavra marcial, pois Marte é o Deus da Guerra, até onde me consta. Uma espécie assim de um George W. lá do Olimpo. Vejam, digo, ouçam o quase-hino norte-americano, naquele slow motion em que soldados levam o féretro até o sepulcro, com bandeira sobre o caixão, é claro. Refiro-me ao America, the Beautiful, de Katharine Lee Bates e Samuel Ward, que é, ao ver de muitos entendidos, mais bonito do que o outro, o hino oficial, tanto que o John F. Kennedy tentou oficializá-lo, sem êxito. O cortejo vem-se arrastando e lá pelas tantas temos aquele lamento doído (olha o acento no i, minha gente) que me arrepia sempre que o ouço: América! América! Para meu gosto musical, este é mais bonito do que o hino considerado oficialmente o oficial. Só não sei bem que tipo de sentimento ele deve despertar em quem o ouve. Vontade de lutar é que não deve ser. Esse grito de dor é mais adequado para recepcionar os soldados que voltam do Vietnã ou do Iraque do que para incentivar os soldados que estão partindo para despejar bombas nos guerrilheiros do Vietnã ou da Somália. Temos aqui no Brasil uma reconhecida cópia da Marselhesa. Mudemos o tom: nosso hino é unanimemente considerado uma obra inspirada no hino francês. Assim ficou melhor e poupa meus lombos de novas chibatadas. Ou em composição do padre José Maurício, professor do autor oficial do hino, como dizem outros fofoqueiros. Se o Noel Rosa quase perpetrou um plágio do Hino Nacional Brasileiro, ao compor o seu Com que roupa?, por que nosso compositor, qual é mesmo o nome dele?, não poderia inspirar-se, para dizer o mínimo, no hino francês ao compor o nosso? Até a batida dos pés é a mesma: Ou (pé esquerdo) viram (pé direito) doipi (p.e.) ran (p.d.) gasmargens (p.e.) plááá (p.d.) ci (p.e.) das (p.d.) O problema dele é que, onze entre dez brasileiros não sabe cantá-lo com a confiança com que rezamos um Pai Nosso, por exemplo. Vem sempre aquela voizinha nos assoprando no ouvido: "Brasil um sonho intenso" é na primeira metade ou na segunda? E aquele "garrida": quantos brasileiros sabem o que quer dizer isso? Mais cartas para a redação. Faça o seguinte teste: consulte seus melhores amigos, os mais cultos, os mais preparados, os mais patriotas e faça um desafio. Peça a eles que descrevam, em palavras próprias, o que diz o nosso Hino Nacional. Fique só na primeira parte, para não desanimar o auditório. Se dissermos que "as águas plácidas do (riacho) do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico" fica parecendo DVD de ópera com closed caption em português, é ou não é? "Quer dizer que aquele magnífico agudo da Kiri Te Kanawa em italiano significa apenas isso em português?" Ou então missa rezada em português. Você não entendia nada quando era em latim, ou quase nada, mas que era mais imponente, lá isso era. Tanto que o Joseph Campbell, católico na infância, compara a missa atual a um programa de televisão, em que o celebrante se parece com certa apresentadora de TV de um programa de culinária. O que lhe valeu tijoladas cristãs no lombo, aliás. Estamos aí, companheiro. Não falo apenas dos hinos nacionais, que a lei brasileira dizia serem coisa sacra, tanto que não era possível fugir da partitura original, ouviu Fafá de Belém. Até que um compositor estrangeiro, que gostava tanto do Brasil que aqui morreu, Louis Moreau Gottschalk, resolveu ir além do que escrevera o Francisco Manoel da Silva, produzindo uma belíssima Grande Fantasia Triunfal, nele inspirado. A propósito, o tal compositor, a julgar pelo nome, era francês ou alemão? Façam suas apostas. E percam, pois ele nasceu em New Orleans, Estados Unidos da América do Norte. Prosseguindo na arenga, que dizer dos hinos dos clubes de futebol, esses que a torcida canta a torto e a direito? "Eternamente, dentro de nossos corações" caberia muito bem em hino do Flamengo, do São Paulo ou do Internacional de Porto Alegre. Claro, cabe no hino de qualquer clube, pois o fanatismo faz parte do jogo. E então? E aquilo do "és do Brasil o clube mais brasileiro", qual o critério para se fazerem tais afirmações? Seria por causa da origem do dinheiro empregado na contratação de jogadores? Nacionalidade do técnico? Dos dirigentes? Se algum clube merecia incluir isso no seu hino, esse clube seria, de fato, o Corinthians, que durante muitos anos se recusou, xenofobicamente, a contratar jogador que não houvesse nascido dentro das quatro linhas do nosso país. Mas será que hoje ainda se pode cantar isso? E o armênio, ou russo, que declarou, na Europa, que a coisa que mais funciona no Brasil, o Duailibi que o diga, é a Polícia Federal? Há hinos curiosos, como este, escrito por um flamenguista doente, que não cantava gooooooool, pois não tinha voz para isso, mas tocava uma gaitinha de amolador de faca: "Na regata ele me mata, me maltrata, me arrebata." Um torcedor fanático como o Lamartine Babo, que se reconhece uma autêntica mulher de malandro, do tipo "bate no que é teu, meu nego", é algo digno de todo respeito, positivamente. Outra curiosidade é o hino do América, do Rio de Janeiro, time sabidamente do coração do José Trajano, que o considera o mais bonito hino de times de futebol no Brasil, haver sido escrito pelo mesmo Lamartine. Talvez por isso o tal hino termina com uma silepse monumental, que, sintomaticamente, não fala em "nós", mas em "ele", como se dissesse que o autor não tem nada a ver com isso: "América, unido vencerás." América! América!