COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Circus

Crônicas e reflexões.

Adauto Suannes
sexta-feira, 11 de julho de 2008

Baú de Ossos

"Nos dias atuais a educação está muito precoce." "O desenvolvimento trás grandes lados positivos e negativos para o meio ambiente." "Isso tudo é devido ao raios ultra-violentos." "Existem dois tipos de animais : os que vivem em cativeiro e os que não vivem. Ultimamente, surgiram um terceiro tipo que corresponde aqueles os que são presos pela polícia federal. Todos os fiscais são subordinados. É a propina." ENEM 2007, segundo dizem Quando nasceu o memorialista Mário Nava, um anjo torto entrou na maternidade, sentou-se ao lado do berço e exclamou a frase célebre : "Vai, Mário, ser gaúcho na vida !" Ele era muito triste e a família resolveu, por isso, mudar-se para Alegrete, onde ele ficou conhecido como o Mário da Quitanda. Dizem que na hora do embarque ele, ainda criança, teria dito : "Parto alegre !". Outros dizem que a frase foi outra : "Parto sem dor !" Eu poderia também falar do Alberto Calheiros, autor de O Guardador de Camelos, e que se notabilizou pela frase : "Eu não sou mais o mesmo Pessoa". Alguns supõem fosse ele homo, mas, na realidade, ele era hétero. Heterônomo, segundo o Fernando, seu biógrafo. Tanto quanto o Bernardo Soares, homem extremamente desassossegado. O fato é que, depois que o Raul Gil, ex-esposo de Flora, a virgem dos lábios de mel, assumiu ministério, tudo o que aprendemos é que ele prefere novelas e xaxados. Cultura ? Nem pensar. Quem te viu e quem TV ! E tem também o Sal Amargo, homem dado a cegueiras, imortalidades e jeux de mots. Numa jangada de pedras lá vai ele da Ilha da Madeira para as Ilhas Canárias, apenas para que seus conterrâneos digam que fez uma troca d'ilhas. Essas confusões entre nomes de autores e nomes de personagens só faz agravar-se com o tempo. É o que me dizem pessoas mais velhas, das quais não tenho motivos para duvidar. O Pierre Bayard, que, mesmo não pertencendo ao Ministério do governo brasileiro, acumula as inacumuláveis atividades de psicanalista e professor de literatura na Universidade de Paris, além de escrever romances policiais, acaba de brindar-nos com um interessante e sério livro intitulado Comment parler des livres que l'on n'a pas lus ?, que, em português, recebeu, como não poderia deixar de receber, o título Como falar dos livros que não lemos ? É um livro que eu não li, mas achei ótimo. Pois todos nós temos, segundo o Bayard, isso de discorrermos com autoridade sobre coisas de que mal ouvimos falar, livros em especial. Você acha que alguém tem tempo e paciência para ler os não sei quantos volumes do monumental Em Busca não sei de quê, escrito pelo Marcel acho que Proust, é esse o nome do autor ? No entanto, todos nós sabemos que aqueles brioches se chamavam madeleines e é graças a eles que o autor viaja ao passado. Como dizia ele, Não há pão ? Pois que comam madeleines ! É ou não é ? Quando o livro vira filme, como está a ocorrer com o autor português que mora em Lanzarote, isso lá é nome de cidade, pá ? a coisa então é de chorar. O livro mais célebre do Joseph Conrad, por exemplo, passa-se na selva africana. Nele "há um homem que é quase um mito, pois sozinho consegue vender mais marfim do que todos os outros juntos, e que chefia o posto mais distante, mais embrenhado no coração das trevas que são aquela selva. Esse homem é Kurtz, uma figura misteriosa de quem se fala praticamente ao longo de todo o livro, mas que só nos é apresentado perto do fim, criando também em nós, leitores, a ansiedade pelo encontro, o fascínio pela personagem" diz uma resenha do livro divulgada na Internet. Acontece que no filme Apocalypse Now, baseado no tal livro, o Ford Coppola narra a história do capitão Willard, papel do Martin Sheen, que recebe a missão de matar um insano desertor, o coronel Kurtz, papel do Marlon Brando, porque este preparara uma tropa de vietnamitas para matar os norte-americanos. Transpor a história do Congo Belga para o Vietnã e transformar o traficante Kurtz no coronel maluco foi o mínimo. Em primeiro lugar, quem não é maluco no filme e na equipe de filmagem ? Um tufão acabou com o cenário, que teve de ser refeito, e o Martin Sheen por pouco não morreu por causa de um infarto, coisas de que o Conrad não tomou conhecimento, até porque o filme foi feito mais de 50 anos depois de sua morte. Se você tentar comentar o livro a partir do filme do Coppola, entra na lista do Bayard. Antes de concluir : já que você teve paciência de aturar-me até aqui, certamente descobriu que isto é um teste de auto-conhecimento, também chamado "jogo dos nove erros". Ou dezenove, dependendo do enfoque que se lhe dê. Graças a este teste você descobrirá o quanto não sabe de literatura. Nada mau para quem vive dizendo que é socrático, referindo-se ao homem que dizia a seus alunos, chamados por ele de patetas, que tudo o que sabia era que não sabia nada. A brincadeira que proponho consiste justamente em você reescrever a crônica, que lembra o "Samba do Crioulo Loiro", do Estanislau Ponte Porto, que, aliás, entendia um bocado de jazz, tanto que se apresentou no "O Céu é o Limite", lá vão alguns lustros, e ganhou um bom dinheiro, que repartiu com sua Tia Zulmira. Mas, é claro, reescrevê-la corrigindo o que deve ser corrigido. E nem me venhas pôr a culpa no Exame Nacional do Ensino Médio.
sexta-feira, 4 de julho de 2008

Dans Le Cirque

"Dream, when you're feeling blue;dream, that's the thing to do." (Música de Johnny Mercer, na voz de Frank Sinatra) Qu'est-ce que c'est que ça ? perguntou-me o diretor do circo, apontando com aquele enorme dedo enluvado, ganté, como diria ele, para o pacote enorme que eu trazia comigo. Eu, que sou mestre na arte de improvisar; eu que sem a menor dificuldade consigo conversar com um chinês, mesmo desconhecendo por completo o significado daqueles autênticos hieróglifos, os tais ideogramas que eles empregam na escrita e, ao que parece, também na fala; eu que me considero o supra-sumo dos vigaristas, fiquei repentinamente mudo. Tão mudo como a girafa que minutos atrás quase comeu o chapéu verde que eu, por imperdoável inadvertência, não havia tirado da cabeça ao passar rente ao espaço reservado aos animais, trajeto esse escolhido por mim para não ter de apresentar o bilhete que eu, lamentavelmente, não portava. Como eu nada dissesse, o homem insistiu no gesto inquiridor, permitindo-se silenciar o anterior "que vem a ser isso ?". À falta de coisa melhor, ouvi-me dizendo "isto é um cadáver". Fez-se um silêncio constrangedor que, não fosse eu quem sou, seria simplesmente insuportável. A cena de faquirismo que eu, nos tempos de vacas mais magras, que essas jamais me foram gordas, interpretei por anos a fio, sentado em um catre desconfortável, com as pernas cruzadas, na ante-sala dos teatros, rosto enegrecido para parecer hindu, e fingir não sentir o cheiro de batatinhas chips que crianças com cara de idiotas, acompanhadas de mães obesas saboreando aqueles horríveis sanduíches de salsichas, feitas certamente com carne de cavalo, mastigavam a menos de um metro de meu estômago vazio, agora me veio à mente. Não me pergunte a senhora qual a ligação entre uma coisa e outra, mesmo porque eu não estou aqui para preencher as notórias lacunas de sua cultura. O que conta aqui é simplesmente a sensação, aquele impulso quase incontrolável de pular no pescoço do atrevido e dar um fim naquela situação insuportável. Agora, como antes, o fato de haver tantas pessoas ali em torno não se me apresentava como empecilho. Au contraire, isso aparecia como um incentivo a que eu fosse adiante em meus propósitos. Felizmente, para ele, o diretor do circo rompeu aquele já abjeto silêncio, prorrompendo em uma sonora gargalhada, que me pareceu durar dias, talvez meses. Enquanto ele gargalhava, eu notava que as pessoas que se dirigiam ao circo não encontravam qualquer dificuldade em passar pela cancela. Apenas eu permanecia ali retido, aguardando que ele encerrasse aquela despropositada reação antes que eu. Repentinamente fez-se silêncio. O diretor do circo, que estivera até então à minha frente, precisamente entre mim e a porta de entrada, afastou-se de lado, fez uma mesura, dobrando o corpo magérrimo para a frente e quase arrastando a mão direita no chão, fazendo um arco tal como um porta-bandeira de escola de samba, convidando-me a entrar. A primeira parte do meu desempenho estava vencida, foi no que pensei, tentando segurar o bilhete de ingresso que agora, num passe de mágica, apareceu em minha mão esquerda, mesmo porque o braço direito estava ocupado com o incômodo e extravagante pacote que quase me trouxera complicações na porta de entrada do circo. No verso vinha a indicação do meu lugar, enquanto que no anverso do bilhete vinha algo como "???e?t?, ???a t?? ?p??a? ?????f????? sta e??????? ap? t?? e?d?se?? t?? ?st?a?, ß?aße????e ??a t? p?µpt? t?? µ???st???µa." Uma senhora a meu lado, parecidíssima com minha falecida mãe, faz uma cara de nojo e diz: "Isso pra mim é grego." Butaca G veinte y cuatro murmurei para mim mesmo, depois de ler o verso do bilhete, pondo-me em seguida a procurar onde ficaria esse lugar. Localizada a tal fila G, agora era procurar a poltrona 24, o que fui intentando à custa de muitos permiso ?, permiso ?, permiso ? Enquanto as pessoas se levantavam, para permitirem que eu chegasse à minha butaca, veio-me à mente, como tantas vezes me ocorre nas situações mais inadequadas, uma excelente idéia para uma das crônicas, talvez um conto, que escrevo constantemente e que um obscuro jornalzinho de sindicato publica quando lhe falta assunto para fechar a última página. Eu precisava agora chegar o mais depressa possível a meu lugar, sacar do bolso o caderninho de anotações e ali registrar desde logo aquela idéia, antes que ela se esvanecesse, como já acontecera outras muitas vezes. Enquanto arrastava os pés, andando ridiculamente de lado, como é próprio daqueles que buscam chegar a seu assento numa sala de espetáculos, eu alimentava aquela idéia sensacional que me havia ocorrido. Ei-la : imagine um circo em cuja platéia não há viv'alma. Só você foi ao circo naquela tarde de sol. Você olha em volta e tudo o que vê são as cadeiras vazias, voltadas solenemente para o picadeiro iluminado, naquela conhecida angustiante espera de que o homem de cartola pronuncie a frase mágica que em tais circunstâncias todos aguardam. Enquanto não se ouve o "Senhoras e senhores !", você consulta seu bilhete e em seguida procura a fila ali indicada, tal como fizera eu há poucos minutos. Embora não haja ninguém sentado naquela fileira, nem, de resto, em nenhuma outra, lá está você andando de lado, caranguejo humano, repetindo, em voz baixa, "licença ?", "licença ?", "licença ?". Você, naquela narrativa que certamente anotará em seu caderno tão logo chegue à sua butaca, inebriado por aquela dança solitária, acaba sendo envolvido pelo prazer da dança e passa sem perceber pela poltrona que lhe estava reservada, de acordo com seu bilhete. E a dança continua até a última poltrona daquela fila. Quase sem notar, você atravessa o corredor que separa um grupo de cadeiras de outro, ingressa em uma nova fila e vai arrastando sucessiva e lateralmente os pés, sempre ao som do "licença ?", "licença ?", "licença ?". Horas depois, quando você percorreu todas as fileiras naquela dança de caranguejo, as luzes do picadeiro começam a ser apagadas. Você, que está perto da porta de saída, vê que a noite já caiu. Pas du soleil. Lá fora, pelas alamedas, só circulam fantasmas, muitos deles em duplas, conversando em voz baixa, talvez para que você não se inteire dos assuntos de que cuidam. Caminhando por ali, você descobre um providencial banco de cimento, junto a um poste curvo como um anzol, que despeja sua luz sobre o banco e seus arredores. Você encosta o pacote numa árvore, de modo que o cadáver fique de pé, senta-se no banco e tira do bolso o caderninho e a caneta. Saído do nada, aparece o diretor do circo, que se senta a seu lado e se põe a ler o que está sendo relatado. Páginas adiante, ele consulta discretamente o relógio e diz, suavemente, "Tempo esgotado". Você guarda o caderno e a caneta e sai em direção ao ponto de ônibus, deixando o pacote aos cuidados do diretor do circo, que certamente a ele dará o destino adequado. Ele fecha o livro do Freud que trazia sobre as coxas. Aqui termina a narrativa. Tudo o que posso acrescentar é que você terá sérias dúvidas em enviá-la para publicação, pois a diretoria do sindicato não vê com bons olhos esse tipo de história, cujo simbolismo onírico os leitores do jornalzinho semanal não têm condição de apreender. Talvez até se ofendam, supondo que você os está humilhando com uma narrativa tão fantástica e tão distante da cultura deles. E tudo o que o diretor do jornal não quer é publicar cartas de leitores irados. Também direi, antes de encerrar, que só muito adiante, quilômetros além do ponto de partida, você perceberá que tomou o ônibus errado e que o seu desejo de cair na cama e sonhar com anjos, bailarinas e palhaços, como tantas vezes lhe tem ocorrido ultimamente, ficará para mais tarde. A última imagem que me ocorre é ver você, ainda sentado no banco do ônibus errado, tentando tirar do bolso a caneta e o bloco de notas. A seu lado, o diretor do circo faz anotações em outro caderninho.
sexta-feira, 27 de junho de 2008

Lição de Coisas

"E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, o que receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza." Pero Vaz de Caminha (Na famosa carta enviada ao rei de Portugal e que pode ser lida clicando aqui) "Bons tempos !" é como as pessoas de mais idade, dessas que se utilizam daquela fila especial nas agências bancárias ("vocês que já são aposentados e têm todo o tempo do mundo ocupam o lugar que deveria ser de quem ainda trabalha", protestou alguém dia desses, com certa dose de razão), se referem à sua juventude. Não adianta mostrar que a mortalidade infantil era maior, que a medicina não havia chegado aonde chegou hoje, que as distâncias ficaram menores, que o país caminha (passe o trocadilho) mesmo sem ter um governo digno do nome. Nem adianta comprovar que o nepotismo e a bajulação não nasceram ontem, pois vieram para o Brasil nas caravelas trazidas pelo Pedro Álvares Cabral. Para os velhos, bons tempos eram aqueles. Como diz o Rubem Alves, "antigamente é um tempo que se foi, mas que se recusa a ir de vez e fica dentro da gente, atormentando o coração com saudade". É como dizia o fazendeiro, olhando o céu na sexta-feira e pensando em sua lavoura : neste fim de semana teremos dias ótimos, pois aquelas nuvens ali são chuva na certa. Como reagiria a filha dele, que havia programado uma ida ao clube ou à praia ? "Tempo bom" diz com empáfia o locutor de rádio encarregado de divulgar os relatórios meteorológicos. Tempo bom para quem, cara pálida ? Bons tempos eram aqueles em que nossos pais (mais exatamente, nossa mãe) nos mandavam à venda (nome que se dava ao empório, onde se vendiam uns misteriosos "secos e molhados"), levando a caderneta. Ou cardeneta, como diziam muitos. Quem se lembra disso ? No fim do mês, o dono da tal venda fechava a conta, nós entregávamos a ele o dinheiro contadinho (quem tinha conta em banco naquela época ?) e ele nos recompensava com uma garrafa de vinho (nacional, claro) ou uma caixa de balas. Se fosse bom freguês, caixa de bombons. No fim do ano era ocasião dos almanaques, um caderno mais encorpado, editado por alguma empresa com precoce visão de merchandising, que nos fornecia bons momentos de distração, com palavras cruzadas, charadas e curiosidades várias. A mais famosa era a do biotônico a que o nacionalista Monteiro Lobato alugara o talento, criando o famoso Jeca Tatu, que, pretendendo fazer propaganda do tal licor, acabava fazendo propaganda da botina que o personagem passou a usar para evitar a verminose. Quem acha que inserção de propaganda (hoje se usa o americanista comercial) em veículo aparentemente neutro, como as novelas, é coisa de hoje sabe pouco da vida. Veja os filmes em branco e preto, dos anos 40, e lá encontrará alguma tabuleta que não tinha motivo algum para estar ali, informando, como quem não quer nada, as excelências de algum produto. Cigarro ou cerveja. Ou a marca do carro. Ou da máquina fotográfica que aparece em close. Meu pai, não sei como, descobriu o Almanaque do Porto, que era editado pelo sindicato dos padeiros de Portugal. Era um livro de capa dura, com os mais surpreendentes assuntos, que líamos com grande proveito. Até roteiro de viagem ele apresentava. Todo fim de ano, lá estávamos nós entretendo-nos na tal fonte de conhecimento. Será que ainda existe ? E o Bertrand ? E o do Pensamento ? Lembrei-me disso a propósito de algumas noções que a vida moderna não nos proporciona, embora estejamos em contato com símbolos de algo que nos escapa. Talvez seja falta de um bom almanaque. Por exemplo, você sabe o que é ara ? Que vem a ser isso ? Quem se divertiu nas palavras cruzadas dos almanaques sabe que é o nome do altar de sacrifício utilizado pelos nossos antepassados. É importante saber isso porque, numa dessas conversas cultas que nós travamos em festas de casamento ou de aniversário, você pode levar o assunto para a religião, vai até a antiguidade, fala da oferta das primícias e, quando o interlocutor der por si, lá está você falando da ara. E pode ir mais adiante em sua exibição : ara era também aquela trave horizontal da cruz onde pregaram o Cristo. Figurativamente, um altar de sacrifício. Isso deve impressionar muito as viúvas de meia idade. E ainda esclarecer que ara não se confunde com a mó, que não é apenas um adjetivo de elogio usado pelos mano (exemplo : "minha mina é mó legal, cara"), mas outra pedra. Esta é aquela que move o moinho, fazendo farinha, também um assunto interessante para um bate-papo num happy-hour qualquer. E aí você aproveita para perguntar se a moça é uma igapirense. Ou ela lhe dá um bofetão, toda ofendida, encerrando a conversa, ou, modesta, pergunta o que é isso. E você, afetando naturalidade, mostrará surpresa : "Como ? Você não sabe ? Igapirense é quem nasce na cidade de Álvares Florence". Ela ficará encantada com tua cultura, muito embora nenhum de nós três tenha a menor idéia sobre onde fica essa cidade. Nem como de Álvares e de Florence foi nascer um palavrão desses. Outro bom tema diz com o chamado "e comercial" ou &. Que significa isso ? Bem examinado, o símbolo mostra a conjunção coordenativa latina "et". Pois o nome que os de língua inglesa deram a esse símbolo é ampersand. De onde veio isso ? Da aglutinação de uma explicação : "and per se and", isto é, é um e que é e por si mesmo. O leitor chamará isso de cultura inútil. Engano seu. Certa ocasião mestre Fernando Sabino publicou uma de suas saborosas crônicas, na qual ele aludia a esse símbolo comercial, cujo nome ele desconhecia. Pois um leitor atrevido escreveu-lhe, exibindo sua cultura de almanaque, e reclamou, como cachê, um livro dele, devidamente autografado. Quem for à minha casa notará na estante, dentre outras preciosidades, o "Encontro Marcado", com autógrafo do autor agradecido. O que mostra que essa cultura não é tão inútil assim. E o sinal "@" dos e-mails, que os brasileiros insistem em chamar de arroba, pois era empregado entre nós para indicar a saca de mais ou menos 15 quilos ? Que tem a ver arroba com a Internet ? Simplesmente nada. Pois ainda uma vez é a importação descuidada de algum transgênico lingüístico. Ocorre que, quando alguém criou o correio eletrônico (aquele e de e-mail se refere a electronic, como sabeis), pretendeu informar o endereço da pessoa compondo-a de três partes distintas : o nome do usuário (username, se preferis), o nome do servidor (a empresa que nos transporta pela Internet) e a indicação do ramo de atividade do passageiro ou usuário da Internet. Para dizer que alguém está ligado ao servidor terra, ou servidor gmail, ou qualquer outro, faz-se isso empregando a preposição "at", que é representada pelo tal símbolo @. Como se diz "João dos Santos, comerciante brasileiro", também se diz, em internetês, "[email protected]", isto é, "João do servidor Terra", ou, simplificando, "João da Terra", que atua no ramo comercial no Brasil. A diferença é que João dos Santos há muitos, ao passo que "[email protected]" só haverá um. A ausência de cedilha e de til é uma imposição, mais uma, dos norte-americanos, que não perdem tempo com essas bobagens. E todos nós passamos a ser considerados comerciantes, veja só. Individualidade é isso, filosofará você, impressionando ainda mais a já boquiaberta garota, objeto de seus maus propósitos. E ela talvez concorde em visitar a tua garçonière. Não sabes o que se esconde por trás dessa francesia ? Não ? Quem mandou você ser tão moço ? Então procure no Google algo sobre o romance entre a Pagu e o Oswald de Andrade, que, aliás, acabou gerando um filho, batizado de nada menos do que Rudá Poronominare, e veja como se denominava o local dos chamados encontros fortuitos naqueles idos e vividos tempos. Tempos bons aqueles !
quinta-feira, 19 de junho de 2008

Ações e Reações

  "A Terceira Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) suspendeu, na noite dessa quarta-feira, o zagueiro André Luís, do Botafogo, por 12 jogos, e o árbitro Wilson Luiz Seneme por 120 dias, puniu o Náutico com a perda de dois mandos de campo e multa de R$ 15 mil, e aplicou também multa de R$ 9 mil ao Botafogo e de R$ 4 mil à Federação de Futebol de Pernambuco". Dos jornais Quando o Zidane, em plena Copa de Futebol, mostrou para todo o mundo o tamanho do seu pavio, alguém se deu o trabalho de procurar traduzir o comentário que o alvejado lhe havia feito. Era coisa de mãe ou irmã. Justificava? Tempos atrás, um dos nossos selecionados craques, quando um jornalista o acuou com perguntas atrevidas, exibiu o relógio que trazia no pulso e argumentou : pra teu governo, este relógio vale mais do que o apartamento em que tu mora. Diz-se que alguns atacantes já utilizaram de argumento semelhante para humilhar o marcador do time adversário : o que eu ganho num dia você não ganha em um ano ! E depois reclamam das botinadas. Dia desses certo jogador de futebol provocou um auê danado lá no Nordeste porque, sendo expulso injustamente de campo, foi vaiado pela torcida adversária. Ora, vaia de adversário é elogio. Pois ele, que teria feito um gesto obsceno, foi preso, algemado e literalmente expulso do estádio. Na verdade, o que ele queria, segundo diria seu advogado, se fosse eu, era mostrar ao público o dedo médio da mão direita, que, havendo sido lesionado em campo, ele não conseguia dobrar. Vejam o que me fizeram ! O pobre rapaz foi mal-entendido, e o caso foi parar na delegacia de polícia, com direito a Juizado Especial e as famosas e providenciais cestas básicas como pena alternativa. O que me faz lembrar de um dentista que, havendo cometido um crimezinho qualquer, foi condenado a prestar serviços comunitários semanalmente, cuidando dos dentes de favelados por uma hora. Mas, doutor, eu já fico a tarde toda do sábado na favela fazendo isso ! sussurrou-me ele. Pois de agora em diante ele deveria encarar aquilo como pena alternativa. E não se fala mais nisso. O trio Cláudio, Luizinho e Baltazar fez a alegria de muitos corintianos nos anos 40/50, muito antes de um mano qualquer adotar a tática do tatu para não perder jogo. Nem ganhar. Um desses jogadores, ao que se dizia, tinha um irmão homossexual, o que, naquela época, não era coisa tão comum como hoje. Ou, pelo menos, não era algo de que as pessoas se orgulhassem, como parece ocorrer nos dias atuais, com direito a parada de trânsito e tudo o mais. Pois alguns marcadores passavam o jogo todo sussurrando no ouvido do craque os pormenores dos encontros amorosos que teriam tido com o irmão do corintiano, inventando as histórias mais abjetas e, com isso, conseguindo, não poucas vezes, obter o descontrole emocional do craque e sua expulsão de campo. Certo jogador do São Paulo, bem mais forte do que o corintiano, certa ocasião recebeu foi uma tijolada na testa. Tudo, certamente, por causa da tal provocação. Ironicamente, hoje é o São Paulo Futebol Clube que faz vistas grossas ao modo de andar de um de seus craques, que, segundo dizem. Bobagem. O Johnny Depp, ao ser convidado para ser o pirata do Caribe, impôs ao diretor uma condição : ele correria rebolando, com os braços dobrados e as mãos sendo agitadas no ar. Resultado : a série já vai para o quarto episódio. E ele nem bate escanteio. Heleno de Freitas foi uma figura lendária no futebol brasileiro, com uma biografia que merece um belo filme. Pois alguém, naqueles idos e vividos tempos, resolveu compará-lo a Rita Hayworth, que, na ocasião, estrelava o filme Gilda. Nunca houve uma mulher como Gilda dizia o apelo publicitário. Nunca houve alguém como Heleno de Freitas disse um admirador do craque do Botafogo, talvez ligado ao famigerado Clube dos Cafajestes. Foi o que bastou para que a torcida adversária o apelidasse de Gilda. Heleno apresentava claros sintomas de um crescente desequilíbrio mental, fruto, ao que parece, da sífilis. Vários incidentes são narrados em sua biografia, onde se verifica que a doença se somou à sua notória megalomania, vindo ele, por fim, a ser internado numa clínica psiquiátrica, onde morreu. Não tinha ainda atingido os 40 anos de idade. O mais famoso incidente, autêntica gota d'água, foi algo muito mais constrangedor do que a cabeçada do Zidane na Copa do mundo. Em um FlaFlu qualquer, Heleno vinha infernizando a defesa do time adversário. Era preciso contê-lo, antes que aquilo se transformasse em uma humilhante goleada. Foi quando a sempre irreverente torcida resolveu gritar, em um retumbante e sonoro coro, o apelido do excepcional craque. Aquilo foi elevando a pressão sangüínea do nosso Heleno de Freitas que, a certa altura, qual um Zizou sul-americano, volta-se de costas para a platéia, baixa o calção e lhes mostra seu alvo traseiro. Dizem que o seu arrière, como então se dizia, era mais bonito do que o da Rita Hayworth.  
sexta-feira, 13 de junho de 2008

Sexo e Tabu

  "A ética pode mudar, desde que se respeite o direito do outro à igualdade e à diferença" Renato Janine Ribeiro Quando lecionava Direito Civil, lá vão muitos e muitos anos, eu tinha especial preferência pelo Direito de Família, talvez porque, como juiz de família, eu me convenci de que a maioria dos desquitandos (falava-se em desquite naquela época, minha jovem) precisava mais de auxílio psicológico do que de apoio jurídico. Como diz minha filha Cláudia, freudiana convicta, só os juízes supõem que conseguem resolver os problemas familiares. Dos outros, é claro. Havia em São Paulo um juiz que gostava tanto de família que tinha duas. Único ? Não poucas vezes suspendi o processo e encaminhei os desavindos para sessões de terapia de casais, cujo resultado, evidentemente, jamais me foi comunicado. Ou para lerem uma dessas revistas que trazem os conselhos de um Gikovate da vida ou uma Lya qualquer dizendo às mulheres como serem felizes, pois os homens não costumam se preocupar com isso. "Agora vocês vão atravessar a rua e comprar na banca de jornal que está lá do outro lado a revista Cláudia. Irão para casa, lerão o artigo da Carmen da Silva e voltarão aqui dentro de 15 dias". Era a lição de casa que eu passei para vários casais de desquitandos, para escândalo e zombaria dos demais juízes. Alguns daqueles casais não voltavam mais ao fórum. Por que ? Nem imagino. Pois acabei sabendo que uma de minhas aulas causava um frisson especial entre as jovens. Para surpresa minha, um grupo de alunas veio perguntar-me, já nas primeiras aulas do ano, quando eu falaria sobre casamento. E diante de minha perplexidade me informaram a respeito da fama que havia conquistado a tal aula. Minhas ex-alunas haviam comentado que isto e mais aquilo. Que havia naquela aula de tão especial ? Se lermos os livros escritos por nossos (e também nossas) juristas, veremos que ali o casamento é mostrado quase como um mero contrato de prestação de serviços domésticos. Textos frios, onde a palavra amor raramente aparece e onde ainda se fala no ato sexual como medicamento preventivo do adultério. Remedium concupiscentiæ, no dizer da Santa Madre, remédio que os padres, evidentemente, não precisam tomar, sabe-se lá o motivo. O pátrio poder, como então se dizia, aparece nesses compêndios como uma série de deveres, algo incapaz de nos dar algum prazer. O papel da mulher, como esposa e mãe, é tratado burocraticamente, principalmente quando se fala de seus deveres depois da separação. Quer ter vida sexual ? Pois que renuncie à pensão que lhe paga o ex-marido. Ou sexo ou dinheiro. Eu não creio que um novo Código Civil mude isso, que decorre mais da mentalidade de nossos operadores e operadoras do Direito do que de disposição legal. "Operadores do Direito !" Algo como "mecânicos de automóveis !" Já que a rebimboca da parafuseta está gasta, vamos substituir por uma nova. E é bom colocar um Viagra no radiador, dir-se-ia hoje. Pois nas tais aulas sobre casamento eu recordava aos alunos a lição de alguns teólogos no sentido de que o orgasmo seria uma pálida demonstração da parusia, palavra que eles, os alunos, evidentemente, não conheciam, e que diz com a chamada visão beatífica de Deus. Aquele oh ! eterno diante do sublime, como narram os santos iluminados. E eu ilustrava isso com exemplos colhidos do kama sutra, do tantrismo e ilustrações de templos hindus, onde essa integração amorosa entre os membros do casal é uma experiência, acima de tudo, de cunho religioso. Algo de escandalizar até um Carl Jung, veja a senhora, quando passou pela Índia. Logo ele que vivia ao mesmo tempo com duas esposas : a Emma e a Tony. Façam o que eu digo. Há, por sinal, no Japão uma cerimônia religiosa em que homens e mulheres levam imensos falos para serem abençoados. E desfilam pelas ruas carregando aqueles pênis enormes, vestidos todos a caráter. Refiro-me às pessoas, não aos falos gigantes. Algo não muito parecido com a cerimônia sincretista da lavagem dos degraus da igreja do Senhor do Bonfim, certamente. Por vezes algumas alunas se excediam, como as duas moçoilas que, carinha safada, vieram, depois da aula, até a sala dos professores perguntar, num sussurro, se eu não iria passar algum trabalho prático sobre o tema. Por mera coincidência ou por indicação de algum aluno, a Zulaiê Cobra, hoje operosa deputada federal, que mantinha um programa de televisão, convidou-me, nessa mesma época, para uma entrevista sobre o papel da mulher na sociedade atual. Aceitei o convite e, diante das câmeras da TV Globo, repeti, de certa forma, os conceitos da famigerada aula. Foi, segundo ela, a primeira vez que um juiz de direito pronunciou a palavra orgasmo em um programa televisivo. Maria Tereza, uma senhora lusitana que havia visto a tal entrevista, procurou-me, suplicando que eu escrevesse um artigo sobre o tema, pois pretendia "abrir os olhos de suas patrícias", segundo dizia, ao publicá-lo em Portugal. Atendi ao pedido dela e, para não perder a viagem, enviei-o à Revista dos Tribunais, que tinha como diretor o falecido chefe do clã dos Malheiros, homem ligado à Opus Dei. O nome do artigo era "O Direito da Mulher ao Orgasmo", que o velho Malheiros, católico de comunhão diária, certamente não veria com bons olfatos. Pediu-me, então, gentilmente, que providenciasse outro nome, um título mais abrangente, e o artigo lá está publicado (veja no índice das RT, se duvidar disso) com o descomprometido título "O Despertar dos Direitos da Mulher". Mais tarde, já sob a Constituição de 88, publiquei artigo sobre aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo, o que motivou alguns telefonemas, partindo de conhecidos e desconhecidos. Os conhecidos, maliciosamente, indagando-me a respeito de minhas atuais preferências sexuais; os desconhecidos, um dos quais um famoso sociólogo baiano, dedicado militante dos direitos dos homossexuais, para incentivarem-me a publicar novos trabalhos sobre o tema, tomando-me, se não por um deles, pelo menos, por um "simpatizante" da sua causa. As dificuldades desse tema, entretanto, quem acabou por mostrar-me foi um notável juiz criminal, seriamente preocupado com a reinserção social dos condenados criminais. Um desses condenados, dado ao travestimento, ganhava a vida na prostituição, ambiente que, como lhe esclareceu o Dr. Monteiro, seria propício a uma reincidência, caso em que o sursis sob que ele se encontrava seria revogado e ele cumpriria as duas penas, se condenado pela segunda vez. O rapaz insistiu em que, concorrendo com heterossexuais, não tinha a menor oportunidade de emprego, pois não conseguia aproveitamento nas atividades tradicionais, donde ter optado pela prostituição, mesmo porque tinha despesas mensais a pagar. "Seja o que Deus quiser, Excelência", suspirou o drag queen. Tocado pela curiosidade, o Marco Antonio, esse o nome do juiz, candidamente, perguntou ao condenado quanto ele cobrava cada vez que recebia um cliente, já que era com tal rendimento que ele, segundo havia dito, pagava seus débitos. E o rapaz, revirando os olhos, com a mais legítima expressão de gratidão no rosto, interpretando mal a pergunta : "O senhor tem sido tão bonzinho pra mim, doutor, que do senhor eu não cobraria nada !"  
sexta-feira, 6 de junho de 2008

Litteratura

  "Ficamos sem saber o que era Joãoe se João existiude se pegar". Carlos Drummond de Andrade, três dias após a morte de Guimarães Rosa O Joãozito nasceu em Cordisburgo, cidade cujo nome tinha tudo para mexer com a cabeça do mineirim, vê se não. Num é que ele, falo do nome da cidade, sô !, é um híbrido de puro latim com alemão ? Puisintão. Era tudo o de que o João percisava móde aprender umas mais de dez línguas, como dizem seus biógrafos. Arguns falam em vinte, que eu nem sei se enziste tantas neste mundo de meu Deus. E o hómi se pois a filosofar, indagano : Donqueuvim? Oncotô ? Prondeuvô ? Quando arresorveu de publicar um livro, foi aquele tedeo, pois mexeu com a cabeça das gentes já no título. Intão, ondocê viu dois pontos separando coisa que não sinonimeia ? O Grande Sertões : buliu co juízo dos críticos, tadinhos, tão acostumados com a previsibilidade do Joaquim Maria e sua Capitu traiu/não traiu, que caíram de vara de sucupira no lombo do moço. Falo dos críticos, claro. Que se contentasse em ser médico naqueles interiores mineiros, abra a boca e diga aaaaaaaa, ao invés de pretender brincar de ser um ..., de ser um ... como é mermo o nome daquele irlandês que escreveu Ulisses e não encontrou na Irlanda editor disposto a aplicar seu dinheiro na publicação daquilo ? Pois é dele que eu falo. Diz a lenda que ao prestar concurso para ingressar na carreira diplomática, já em prova oral, pergunta-lhe um da banca o que ele conhecia da literatura francesa. E ele, franco da Silva : "Tudo !" O que os críticos não haviam percebido era que o ex-médico e agora embaixador criava palavras não apenas usando as que nossa monoglossia, licença, senhora !, estaria em condições de perceber, como a deliciosa funebrilhos, para designar os enfeites de caixão de defunto, ou este incrível verbo, referindo-se ao seu burrinho : "no mato, vozinha mansa, aeiouava". Aeiouar ? Só o João. Quando botara o nome de Sagarana em outro livro, dado ao mundo em-antes do romance dos dois jagunços que se amavam e que o Tarcísio mais a Bruna eternizaram na TV - cadê o DVD disso, gente ? - quem na sala soubesse alemão que levantasse o dedo ! E foi um Deus nos acuda. Diz que o nome do livro é casamento do alemão "saga", vale dizer "canto heróico", mais "rana", palavra indígena a significar "à maneira de". Então é. Sagarana pretendeu ser, e foi, uma "narrativa à moda das fábulas". Apenasmente o mais deslavado atrevimento levaria alguém a arrolar os dez mais belos contos da literatura mundial, pois quem haverá tantas vidas para ler tanto ? Mas se dessa lista não constar o Hora e Vez de Augusto Matraga, que encerra em ouro o livro, saiba o senhor que ela estará manca. Das duas pernas, como eu lhe agaranto, por essa luz que me alumeia. Só mesmo o Rónai para desfiar o novelo. Não é que o Paulo tinha nascido em Budapeste, muito em-antes de a cidade ser nome de romance do Chico, aprendeu línguas e mais línguas, veio fugido para o Brasil causo da guerra, criou dicionários, traduziu alguns livrinhos como a Divina Comédia, do Dante, e a Comédia Humana, do Balzac, coisica pouca, e, deixando as comédias de lado, sacou qual era a do Joãozito : "a invenção de onomatopéias sem conta, a livre permutação de prefixos verbais, a atribuição de novos regimes, a ousada inversão das categorias gramaticais, a multiplicação das terminações afetivas são algumas dessas fecundas arbitrariedades que se abonam mais de uma vez na prática de outras línguas, cujas reminiscências o poliglota nem sempre soube ou quis reprimir". Falou ! Pois se o João houvera nascido num país sério, caríssimo Charles, onde houvesse um Ministério da Cultura sendo ocupado por alguém que entende do assunto e não alguém que está lá (está ?) apenas para preencher cotas raciais, o centenário do nascimento de nosso escritor maior, a ocorrer este mês, seria comemorado com fogos e tambores de Minas, já que poucos países do mundo tiveram entre seus filhos alguém de sua elevação moral e intelectual. Não viu que ele mais a secretária e futura esposa driblavam o ditador, debaixo do bigodinho do homem, ali em Hamburgo, dando passe livre a quem por lei não deveriam ? E quem, amante dos livros, não curtiu na juventude aqueles quebra-cabeças roseanos ? Quem o diz não sou eu, que mal conheço tal assunto. É seu colega Francisco Buarque de Hollanda, que, jovem menestrel, inventou o roseano verso "Pedro pedreiro penseiro esperando o trem", confessadamente inspirado no modo de escrever do João. O moçambicano António Emílio Leite Couto, Mia Couto para os que gostam de ler, não confessa ser aquele o inspirador de suas licenças literárias ? Um autor que bota num livro o nome de Estórias Abensonhadas, ou Mar Me Quer, ou Pensatempos precisa confessar alguma coisa ? Ouçamos o pai do Chico : "Tenho medo de tentar comparações. Não direi, por isso, que a obra de Guimarães Rosa é a maior da literatura brasileira de todos os tempos. Direi porém que nenhuma outra, de nenhum escritor, me deu até hoje, entre brasileiros, a mesma idéia de tratar-se de criação absolutamente genial". O fato é que todos nós que escrevemos sonhamos, algum dia, ser o João, ainda que em uma única e atrevida linha. Mire veja. Se a cuidadosa Ariane, nome de princesa medieval encerrada em torre pétrea altíssima, no aguardo do seu louro príncipe, que se aprochegue amontado em seu corcel imaculadamente branco, mas que, falo dela, nas horas vagas revê meus textos, expungindo deles as bobagens datilográficas que nele encontre, fruto quiçá de minha parestesia manual, não corrigiu o título desta crônica, lá estará uma roseanice. Litter, como aprendemos nos desenhos do Woody Woodpecker, quer dizer lixo lá no estrangeiro, donde o roseano litteratura. Nada mau para título do conjunto das coisas que escrevo. Segundo meus detratores, é claro, pois eu jamais faria a meu respeito um julgamento tão injusto, admirador que sou da falta de modéstia de todos os que rezam pela cartilha do Romário. "Dentro da área, eu sou mais eu" pontificou o ex-técnico certa ocasião. Tamos aí. Na verdade, para aplicar anabolizante em fios de cabelo só mesmo se chamando Romário, nome que iria bem numa galeria de personagens roseanos, não houvesse o Joãozito morrido antes de tornar-se sexagenário, logo em seguida à sua posse na Academia Brasileira de Letras, evento, aliás, que ele postergou quanto pôde, pois estava convencido de que esse seria o derradeiro ato de sua carreira de escritor, como, de fato, foi. Autêntica precognição. Jung explica ? De efeito, eleito em 6 de agosto de 1963 membro da Academia, só em 16 de novembro de 1967, mais de quatro anos depois, aos 59 anos de idade, foi que João Guimarães Rosa se dispôs a vestir o fardão fatídico, assim como quem se oferecesse consciente e voluntariamente em holocausto, repristinando Nhô Augusto Esteves. No dia 19 de novembro partiu de vez. "Encantou-se em beleza" como diz sua filha e colega de nós ambos, se me permites.  
sexta-feira, 30 de maio de 2008

Regras e Lógica

  "Com um profuso copo d'água, todos brindaram. E faziam, em gesto emocionado, a homenagem ao Professor Goffredo Telles Jr., que hoje, em plena atividade, assiste às comemorações pela passagem de seus 93 anos. Deixe professor Goffredo, assim como suplicava seu saudoso pai nos versos que hoje trazemos, que fiquemos assim, bem seus alunos, ao seu lado. Viva nosso mestre Goffredo !" Migalhas, 16.5.2008 Tenho pela lógica a mesma paixão que o soldado José tinha pela charuteira Carmen. Só espero que isso não resulte em tragédia semelhante. Quem visse aquela cigana talvez perguntasse onde o soldado estava com a cabeça para largar tudo, ser declarado desertor, aliar-se a contrabandistas só para estar ao lado de sua amada, que o troca por um toreador, despertando as iras do ex-soldado que, louco de ciúme. Veja a ópera, se não a conhece. Há uma versão cinematográfica intitulada Carmen Jones, na qual todos os personagens são negros. Coisa do Otto Preminger, sendo o soldado José interpretado pelo Harry Belafonte, o homem do Banana Boat, lá se vão mais de 50 anos. Pois algumas pessoas conseguem viver longe da minha paixão, o que eu simplesmente não compreendo. Se Carmen causou alguns tantos contratempos ao José, não será de admirar que a lógica também me faça das suas. Especialmente quando se casa com a lógica. Diz o Millôr Fernandes que, "se dizemos que toda regra tem exceção, estamos mostrando uma regra. Logo, essa regra que enunciamos tem exceção. Portanto, de acordo com essa regra, nem toda regra tem exceção". Lógico, não ? Por falar em regras, almoço por vezes num restaurantezinho da rua do Riachuelo, cuja comida não é nenhuma maravilha e o preço menos convidativo ainda, mas como ali revejo amigos de cabelos brancos como eu, ou já sem cabelo nenhum, além de senhoras que conheci há muitos e muitos quilos passados, penso que só por isso vale a pena dar uma passada por lá. Além do mais, para quem vive sendo advertido pela cardiologista de que deve deixar de ser preguiçoso e caminhar uma hora por dia e moderar nas massas, nada como um restaurante por quilo, para fazermos as combinações mais heterodoxas que a culinária permite. Folha disto, mais folha daquilo, mais peito de frango, para eu não me sentir um coelho. E sair da mesa ainda com fome, diz a doutora Sílvia. Dia desses preguei uma peça na simpática proprietária. Disse-lhe que, sofrendo de incontinência urinária, entrei outro dia às pressas no seu restaurante e passei por uma vergonha danada por culpa dela. Ela empalideceu e eu continuei a acuá-la, cinicamente. "É que eu cheguei correndo até a porta do banheiro e lá havia uma tabuleta do lado de fora da porta dizendo 'conserve a porta fechada'. Eu conservei e urinei-me todo". Depois ri muito, mostrando que era uma piada. Pelo sim, pelo não, se você for lá hoje, verá que não há mais placa nenhuma na porta. Num restaurante da Alameda Santos, famoso por seus galetos, precisando ir ao banheiro, como sempre, dirigi-me a uma porta que tinha a letra "S". O maitre, aflito, agarrou-me dizendo que eu estava entrando em banheiro errado. "Mas S não quer dizer Senhor ? " disse eu cinicamente. Ele me apontou uma outra porta, com a letra H. "Pensei que fosse para Homossexuais" disse eu mais cinicamente ainda. Pior é quando colocam na porta do elevador a placa "em manutenção". Eu procuro o zelador, indagando-lhe, como se eu não soubesse, o que quer dizer aquela placa. "É que o elevador quebrou", esclarece o homem de boa vontade. "Então vamos, de agora em diante, ter de ir pela escada para todo o sempre ?" indago, cinicamente. "Logo, logo o elevador estará consertado", diz ele, caindo na esparrela. "Acho que não", retruco. "Se ali diz que estão mantendo o elevador como ele está, estando ele quebrado, vai continuar quebrado ad infinitum". Manter não é isso ? Outro restaurantezinho, este especializado em saladas, como recomendou a mesmíssima doutora Sílvia, e em moças e moços bonitos, desses que se vestem como se tivessem vindo de um batizado, sempre falando não sei que tantos assuntos pelo eterno telefone celular, também tem seu banheiro, que eu, evidentemente, não pude deixar de visitar. São, aliás, dois banheiros, no alto da escada, um à direita e outro à esquerda de quem lá chega. São duas portas : uma com um desenho do rosto de um homem ; outra com o desenho do rosto de uma mulher. Em cada um deles só pode entrar uma pessoa por vez. Desço e pergunto ao simpático maitre, um jovem quase de minha altura, com idade para ser meu neto : "Se só cabe uma pessoa em cada banheiro, por que a tabuleta na porta ?" Ele pára o que está fazendo, ri muito e conclui, encerrando o assunto: "Sua observação tem sua lógica!". Aluno do aniversariante Goffredo, ouvi com a atenção devida sua explicação do chamado "imperativo atributivo", lá vai mais de meio século, valha-nos Deus ! Dizia ele : uma norma impõe uma conduta, que deve ser observada, sob pena de o infrator ser punido. Isso, concluía ele, contribui para que a sociedade se desenvolva e todos busquem a felicidade. Atrevidamente eu pensei perguntar-lhe à saída da aula : "Imaginemos uma norma que diga que todas as pessoas devem matar uma pessoa, para restabelecer o equilíbrio ecológico. Na China, por exemplo. E isso deve ser feito sob pena de morte. Imaginemos que todos os habitantes daquela sociedade cumpram essa norma, como bons cidadãos que são. Portanto, B mata A; C mata B; D mata C até que Z vem a matar Y. Com isso esse tal Z fica sendo o único habitante daquele hipotético país. Cadê a tal sociedade, mestre ?" Meu atrevimento lógico não chegava a tanto. Vou pela estrada a dirigir, procurando fugir desses pensamentos lógicos, que, como toda paixão, tanto me atormentam. O DNER colocou avisos simpáticos ao longo da Rodovia Carvalho Pinto. Um deles diz : "Para ver melhor e ser visto, use o farol aceso". Grande aviso ! De agora em diante, quando eu estiver em um quarto escuro e precisar iluminá-lo, vou pedir que me tragam não só uma lanterna, como também as respectivas baterias, todas elas em perfeito estado de funcionamento. Não esqueçam de testar, hein ? Sempre é bom ser claro como o DNER, até porque eu não tenho a menor idéia a respeito da utilidade de um farol apagado. Ou de uma lanterna sem pilhas. Ou pilhas descarregadas. Só ser for para matar barata. Mas, no escuro ? O próprio DNER nos adverte : "Não beba antes de dirigir". Vi num Oktoberfest, lá no Sul do país, uma cartola pândega, que é, na verdade, uma mini-geladeira. Você coloca nela uma garrafa de cerveja, aberta, é claro, com o bocal para baixo. O líquido, geladinho, chega até tua boca por um caninho plástico. Prático, né não ? E você pode ir bebendo durante a viagem, enquanto dirige. Isso, ao que parece, não é proibido, segundo o DNER. Chego a Campos do Jordão e vou visitar o seu Horto Florestal. Logo na entrada há uma tabuleta : "É proibida a entrada de animais domésticos". Paro e afirmo ao simpático porteiro que da próxima vez eu virei com um leão e ele será obrigado a deixar-me entrar. Ele faz um ar de espanto fitando-me sem explicitar o pensamento, que somente pode ser um : "De onde saiu esse doido ?" Ao lado dele, um outro rapaz, de mesma idade, despeja uma solene gargalhada. Dessas de dobrar o corpo e bater com as palmas das mãos nas coxas. "O cara tem razão, mano. Leão não é animal doméstico !". E tome gargalhada enquanto eu avanço com o carro, como se não tivesse nada a ver com aquilo. Acha pouco ? Estou sentado aguardando a vez de despachar uma petição com a juíza, que se prepara para interrogar o réu. "Pela Constituição Federal o senhor pode ficar calado. Mas de acordo com o artigo tal do código tal o seu silêncio poderá ser interpretado por mim como confissão de culpa". O rapaz diz lá umas tantas coisas, com seu defensor só olhando. Terminado o interrogatório, aproximo-me e obtenho o tal despacho. Antes de despedir-me, provoco : "A senhora pode esclarecer-me algo ?" Ela aceita. "Como a senhora me explica que alguém que acaba de exercer um direito de índole constitucional pode vir a ser prejudicado por aquilo que se encontra em uma simples lei, inferior, hierarquicamente, à Constituição ?" Surpreendentemente ela esboça algo próximo de um sorriso e me manda às favas com toda educação. "O senhor há de admitir que uma discussão dessas levaria horas !". Volto para casa e, no caminho, há um bloqueio feito por guardas de trânsito. "Alto lá !" diz um deles. Penso em perguntar : "Lá onde ?". Melhor não.  
quinta-feira, 15 de maio de 2008

Tocantinense

E não foi o Presidente do Tribunal de Justiça do novel Estado do Tocantins, nominado Liberato Póvoa, homem de letras não-promissórias, quem nos contou que, em certa eleição, viu-se ele na contingência de cruzar o rio mar que dá nome ao Estado, como ele se referiu àquela imensidão oceânica de água doce em que você daqui não enxerga a margem de lá. Tens inimigo ? joga ele aqui com uma pedra amarrada no pé e esquece ! não fosse ele um literato com livros e livros publicados como já dito, homem bom de prosa, o cruzamento do rio sendo feito por balsa, sobre a qual o motorista do tribunal colocara a chamada viatura, como era de mister. E lá vem o cobrador entregando bilhete a este e àquele e recebendo em contrapartida o valor correspondente, como é próprio do contrato de compra e venda, mais propriamente contrato de transporte no caso, sendo que quando ele o cobrador se aproxima da viatura estende a mão em concha para recolher o pagamento antecipado do bilhete que ele logo destacaria do bloco onde ele o bilhete se encontrava para entregar ao mesmo motorista, o qual lhe diz este carro é oficial. E que quer dizer isso ? diz o bilheteiro a exibir sem buços sua plena ignorância tocantinense. E o motorista, em voz baixa, eu estou transportando o Presidente do Tribunal do Tocantins, desembargador fulano de tal. E o bilheteiro, prêmio Nobel de ignaros conhecimentos : desembargadô ! desembargadô ! se cabo de poliça que é cabo de poliça paga por causo de quê que um desembargadô não avéra de pagar ? Perguntem ao Póvoa se é mentira. E para mostrar que ignorância não é privilégio de bilheteiros de balsas tocantinenses recordo que, segundo o mesmo e letrado presidente, havia por aquelas bandas um juiz de despreparo ímpar e que, pela necessidade dos serviços muitos, acabou sendo convocado para auxiliar no tribunal, coisa que no Estado de São Paulo lhe mereceria a alcunha de pingüim, talvez devido a que a roupa negra não lhe recobre o todo peito branco que outrora era a cor exclusiva das camisas de Suas Excelências, nada de camisa colorida aqui, doutor, nada disso, volte para casa e troque isso ! ficando até hoje o divertido epíteto, que tanta curiosidade desperta alhures. Deu-se então que logo no primeiro julgamento ele exibiu solerte as qualidades inúmeras de que não era possuidor. Não é que se tratava de uma revisão criminal ? coisa que ali era julgada pelo chamado Tribunal Pleno, composto de ene juízes, sendo que regimentalmente os juízes mais antigos na casa votam ao depois dos mais recentes, que é isso para que os mais novos não se sintam acuados pelo saber maior dos demais, coisa que se presume, ou pelo temor reverencial, que a toga não afasta, ao reverso do que pensam os muito ingênuos, muito pelo contrário. E o relator da revisão criminal dá seu longo voto dizendo que assiste inteira razão ao peticionário Senhor Presidente eminentes colegas porque de fato sua condenação baseou-se exclusivamente na palavra escoteira da vítima, sendo que o assalto ocorreu em local ermo a desoras e sendo os negros mais pardos do que os gatos quando o sol se põe temerário se me afigura Senhor Presidente eminentes colegas manter a condenação feitas as devidas ressalvas aos ilustres membros da Egrégia Câmara de onde originário o processo, com expedição de alvará de soltura clausulado. Já o ínclito juiz revisor, muito ao reverso, tinha por incogitável o deferimento do pleito, pesasse embora o lúcido voto do eminente relator, visto que na esteira do que tem decidido esta Augusta Casa possível não é em sede de revisional reapreciar as provas dos autos visto como embora mínima fosse a prova acogulada no bojo destes autos levada na devida conta pelos ilustres integrantes da Colenda Câmara não significa isso tenha havido contrariedade à evidência dos autos, motivo pelo qual Senhor Presidente eméritos desembargadores, sem embargo do respeito e admiração que tenho pelo ínclito juiz relator, indefiro a revisão. O Presidente do Tribunal proclama então o resultado provisório: o senhor relator acolhe a revisão para absolver o réu e o senhor revisor nega-lhe provimento para manter a condenação, Como vota o ilustre terceiro juiz ? sendo ele ninguém menos do que o tal juiz cujos méritos ocultos jamais nunca haviam sido conhecidos por seus colegas o qual toma da palavra e sentencia : "acompanho a maioria !" O Plenário é só olhos voltados para o juiz vogal, que assim se chama o que vota depois do revisor, bugalhos a supor haverem os ouvidos ouvido coisa diversa do que dissera o ilustre colega ali presente. Como, Excelência ? indaga-lhe solícito o Presidente, fingindo não haver ouvido o que todos os ouvidos ali ouviram. "Acompanho a maioria !" repete o juiz convicto e ignaro da Silva. Mas ainda faltam votar ene menos dois juízes ! exclama o Presidente em obviedade que lhe daria vergonha se necessário não fosse a explicitação e a procurar calma que normalmente não lhe era o forte. E o tal juiz vogal, do alto de sua prosopopéia : "Eu espero !" Alguns dizem que o Póvoa só não disse que esse fato se havia passado mesmo foi em São Paulo, em tocantinense homenagem a seu interlocutor. Perguntem aí ao Silva Franco. 1 Do livro Menas Verdades - Causos Forenses ou quase (no prelo)
sexta-feira, 9 de maio de 2008

J'Accuse !

  "Supremo critica Justiça do Pará no caso Dorothy" Jornal O Estado de S. Paulo, edição de 8.5.2008 Quando aceitei o convite para armar minha tenda nos quintais do Migalhas, concluí que, em razão da diversidade de leitores que me aguardavam, ser-me-ia extremamente difícil e trabalhoso calibrar o tom, para não escandalizar uns nem enfastiar outros. Sei que virtus in medio, mas, como medir o discurso para descobrir esse meio termo ? Assim, tenho procurado amenizar algumas posturas críticas com algum humor e alguma ironia, ainda que esta nem sempre seja percebida. É o velho e revelho ridendo castigat mores. "Maldito seja quem tira a esperança dos jovens", disse alguém em algum lugar. Sei, no entanto, que est modus in rebus, para continuar com o não sei se oportuno latinório, expressão que uma amiga sintetizou numa misteriosa exclamação : "numas !" A expressão poderia ser outra : "paciência tem limites". Meus leitores, jovens ou menos jovens como eu, hão de concordar em que todos nós que vivemos em uma sociedade juridicamente organizada, como nos dizia o Ataliba Nogueira, ansiamos por termos nos cargos públicos pessoas cujos discernimento, cultura, ponderação e consciência de seu papel social se sobreponham a seus inúmeros defeitos que, humanos como nós todos, eles certamente haverão de ter. Ubi homo ibi peccatum é a versão latina da célebre passagem bíblica a respeito da tolerância que a vida social nos impõe a todos em face dos demais : você tem autoridade moral para atirar a primeira pedra contra um pecador ? Concretizemos o discurso. O Delegado Geral de Polícia de São Paulo, pela portaria 18, de 25 de novembro de 1998, baixou "medidas e cautelas a serem adotadas na elaboração de inquéritos policiais e para garantia dos direitos da pessoa humana". No livro que escrevi sobre os princípios éticos do devido processo penal foi ela aplaudida, como não poderia deixar de ser. "É simplesmente incrível que tais normas, de necessidade inquestionável à vista das garantias constitucionais, não tenham sido baixadas pelo Poder Judiciário, ao qual incumbe, em tese, a fiscalização da atuação policial" escrevi ali. Cito apenas o contido no artigo 11 daquele meritório ato administrativo, pelo qual é fácil imaginar os demais : "As autoridades policiais e demais servidores zelarão pela preservação dos direitos à imagem, ao nome, à privacidade e à intimidade das pessoas submetidas à investigação policial, detidas em razão da prática de infração penal ou à sua disposição na condição de vítimas, a fim de que a elas e a seus familiares não sejam causados prejuízos irreparáveis, decorrentes da exposição de imagem ou de divulgação liminar de circunstância objeto de apuração". Ainda que desnecessário fosse, a mesma portaria deixa claro que "a inobservância das normas constantes nesta portaria implicará responsabilidade administrativa ao servidor, sem prejuízo de eventual responsabilidade civil e criminal, no que couber". Veja a data da portaria e responda : ao longo desses dez anos, você já tinha ouvido falar dessa portaria, especialmente em algum programa de rádio ou de televisão ? Leu em algum outro local, especialmente nos jornais e revistas que só se preocupam em aumentar a tiragem, alguma referência a ela ? Não preciso especificar o caso que me levou a este desabafo. Um casal de suspeitos, meros suspeitos, nada mais do que suspeitos, já estava definitivamente julgado e condenado antes mesmo de terem sido denunciados formalmente. E tais suspeitos, ao que se diz na imprensa, só não foram ainda executados pelo linchamento por autêntico milagre. Ou você é tão ingênuo que imagina haver nesta cidade ou neste Estado sete pessoas que se disponham a julgar esse casal com um mínimo de isenção de ânimo ? Qual seria o "clamor popular" se isso, por novo milagre, viesse a acontecer ? Não foi um ministro do nosso Supremo Tribunal quem declarou haver, em rumoroso caso, votado contra sua convicção porque se sentiu "com a faca no pescoço" ? Fosse eu o defensor daqueles réus requereria o desaforamento do processo, para que os pronunciados fossem julgados no Rio Grande do Sul ou no Amapá. E se falei em Supremo Tribunal Federal e em Tribunal do Júri, não posso deixar passar a oportunidade para registrar meu mais veemente repúdio às declarações de certo ministro daquela Casa, um conspícuo constitucionalista, por quem tenho enorme admiração, que, desmandando-se a mais não poder, censurou decisão soberana do Tribunal do Júri do Pará, por haver absolvido réu acusado de ser mandante de homicídio que vitimou a missionária Dorothy Stang, fato lamentável ocorrido há três anos. Não bastasse essa enormidade, que não condiz com o recato que devem observar os juízes, inda mais os que se assentam na chamada Curul Excelsa, vejam-se os motivos que, segundo a imprensa, teriam fundamentado aquele despropositado desabafo : "Isso pode transmitir, não apenas ao país, mas à comunidade internacional uma sensação de que os direitos básicos da pessoa não tenham sido respeitados". O tal acusado, que acabou absolvido, não é "pessoa" ? Não tem ele "direitos básicos", um dos quais sendo a presunção de inocência, a que se refere nossa Constituição Federal, conhecida de cor e salteado pelo ministro Celso de Mello ? E desde quando as decisões de nossas autoridades judiciárias devem corresponder ao que espera essa genérica "comunidade internacional" ? Aliás, quem a compõe ? Os Estados Unidos da América do Norte, que mantêm aquele hediondo galinheiro em Guantánamo, no qual não vivem galinhas, mas anônimos prisioneiros ? A China e sua imposição da pena capital a mais de duas dezenas de pessoas por dia, como diz a International Amnesty ? Pois ainda assim teria o insigne constitucionalista contado com aplauso de outro ministro, segundo o mesmo jornal. "De duas uma : ou a culpa não estava formada antes do primeiro julgamento e a decisão estava errada; ou esta segunda está errada" teria dito o ministro Marco Aurélio Mello. Vamos ao caso : a lei brasileira, em dispositivo cuja constitucionalidade jamais nunca foi posta em dúvida, admite que, condenado pelo Tribunal do Júri a uma pena elevada, pode o condenado pedir a renovação do julgamento. Ou seja, a condenação anterior desaparece do mundo jurídico, passando a ser substituída pela decisão que vier a ser proferida no segundo julgamento. Até as crianças lá de casa sabem disso, como sabem também que, se a decisão do júri "contrariar a evidência dos autos", também será caso de novo júri. Se, porém, a decisão no segundo julgamento for igual à anterior, mesmo sendo ela, obviamente, "contrária à evidência dos autos", não poderá haver terceiro júri sob esse fundamento. Dizem os autores todos que, diante da soberania do júri, cujas decisões, em caráter absolutamente excepcional, não são fundamentadas, sendo tomadas mediante um "sim" ou um "não", encerrado o julgamento, o redondo pode vir a ser quadrado e o branco tornar-se negro. Ninguém, absolutamente ninguém, máxime sendo operador do Direito, pode dizer que uma decisão do Júri seja "certa" ou "errada". Isso é coisa tão conhecida que até vexa relembrar. Logo, aquele insigne Ministro, que se diz perseguido pela imprensa por falar demais, perdeu uma excelente oportunidade de ficar com sua excelsa boca fechada. Por falar em boca indevidamente aberta, o senador Agripino Maia, ao ensejo do depoimento que a Ministra de Estado Dilma Rousseff iria prestar no Senado, chamou-a de mentirosa, pois confessadamente ela mentiu quando, presa pelas Forças Armadas, teria sido torturada para delatar companheiros. O que mereceu do Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil o oportuníssimo comentário : "Numa ditadura, a mentira é um direito de resistência inerente a todo cidadão".
sexta-feira, 25 de abril de 2008

Lusografia

  "Foi com grande satisfação que ouvi (em Portugal) um Professor, o Doutor Pedro Pimenta da Costa Gonçalves, fazer referência ao informativo e questionar aos colegas se já o conheciam. Aos que ainda não, ele recomendou com elogios. Fica constatado, então, que nosso estimado Migalhas tem reconhecimento internacional". Patrícia Muller, in Migalhas, 11.2.2008 Amigo meu esteve em Portugal, onde teria feito um curso de pós-graduação em algum desses ramos que a cada dia a árvore jurídica vai lançando ao ar, daninhamente, para espanto dos mais velhos, que mal conhecemos o Direito Civil e o Penal, vai ver era algo relativo a um tal Direito Comunitário, que, para os brasileiros, é grego, pá. Pois não é o Cunha Gonçalves quem nos diz em sua monumental obra sobre o Direito Civil que durante o dia o condutor do auto deve acionar a klaxon, em sinal de advertência, coisa que se não usará à noite, sendo então substituída pelas luzes do farol, "mais silencioso" ? Está no volume XIII. E ele voltou de lá encantado : conseguiu entender quase tudo o que diziam os nativos. Mesmo descontando o sotaque deles, ressalvou o aldrabão. "Quase tudo", esclareceu ele, até porque mesmo no nosso Brasil não escapamos de alguma gozação, dadas as esquisitices de quem não é paulista, como a que passou meu querido Luiz Floriano que, nascido na capital paulista e indo tentar a vida em Porto Alegre, onde, por sinal, se deu tão bem que não quer saber de São Paulo nem em fotografia, no que faz muito bem, saudade dos congestionamentos, das filas e do ar poluído só sendo louco da cabeça, como diz enfaticamente nossa faxineira, que suspira de saudade de sua distante Quixadá. Pois o tal paulistano caiu na besteira de dizer que havia comprado umas mexericas quando seu veículo parara diante de um farol. "Estavas a dirigir auto ou barco, paulista ?" A partir dali, passou a ser chamado de "o homem das mexericas", nome mais absurdo para aquilo que todo gaúcho sabe que se chama bergamota. E quando foi levado a um bolicho, procurou que procurou as pistas e as bolas para mostrar sua habilidade naquele jogo, mas teve de contentar-se mesmo foi com um copo de uma gasosa qualquer que lhe serviram. Isso para não falar da corrida que teve de dar quando, sendo convidado para jantar na casa do Cleanto, o gaúcho recomendou ao irmão : dê-lhe um naco de manta e depois mate. Logo ao chegar à cidade de Coimbra, o tal amigo foi levado a um barzinho muito simpático, pois lá eles nem imaginam o que seja um bolicho, tchê, que, segundo lhe disseram, era freqüentado por paneleiros. Ele achou incrível que os fabricantes de panelas se organizassem tanto assim, não bastava o sindicato dos panificadores ? Verdade que eles tinham um jeito afeminado, mas isso ele levou à conta de seu preconceito, pois isso de GLT (sigla inventada por ele para gays, lésbicas e tolerantes) não é com ele. Um dos tais lusitanos, por sinal, pediu ao garçom que lhe trouxesse um cacete, o que meu machíssimo amigo considerou um desrespeito inqualificável aos homens presentes. Ali ? No meio daquela gente toda ? Ainda bem que o garçom se fez de desentendido e lhe trouxe apenas uma bengala, como se diz com toda lógica em São Paulo e que todos no Brasil sabem que não é aquele instrumento que usam os cegos e os velhinhos, como uma terceira perna, para se guiarem ou se apoiarem, mas as que são feitas de farinha de trigo pelo padeiro, pá. Aliás, um dos rapazes, que estava muito resfriado, disse aos demais que iria até a farmácia, atrás de uma pica. Meu amigo engasgou com o queijo da Serra da Estrela, que comia com tanto gosto, ao som de um legítimo Porto branco. Gente mais desinibida esses patrícios, sô. Imagine só alguém dizendo isso do bar do Américo, lá em Varginha. Tomava era um chute nos fundos que não se assentava por uma semana. Um dos amigos do rapaz até que se dispôs a acompanhá-lo até a drogaria, mas, ao levantar-se da mesa, quase caiu, de tão tonto que estava. "Estás enfrascado", disse-lhe um dos presentes, que aproveitou para mandar andar uns putos que por ali faziam um alvoroço danado, a mangar do tal gajo. O enfrascado esparramou-se na cadeira e dentro em pouco roncava que só um capado. Diríamos até, levianamente, que parecia estar bêbado. Pior foi quando um dos desavergonhados disse a outro que viria no dia seguinte vestindo camisola. E da seleção brasileira ! Só para provocar ainda mais o brasileiro, certamente. Talvez o lusitano soubesse ser ele torcedor do São Paulo, cujo mascote, como se diz até no Além-Tejo, é o Bambi. E calçando botas, tais como as carmesins que o Ronaldo, falo do Cristiano, usa quando faz seus golos pela seleção. Botas ? Mas aqui o Ronaldo pratica o futebol ou o rodeio ? Pois agora tudo estará resolvido, graças ao tal acordo ortográfico que se está a gestar tempo faz e que ameaça botar a cabeça de fora. Agora, um acontecimento, tanto cá como lá, será um fato, tal como o terno de roupa, que no Brasil ainda se chama terno, mesmo não mais havendo a terceira peça de roupa, o colete, e que lá é fato, e não mais facto, coisa mais confusa. O fato é que não mais teremos facto, o que é um progresso vestimental. Com a eliminação do trema, tanto lá como cá, nossas ações terão consequência e não mais conseqüência. Dizer aos brasileiros que o ue e o ui às vezes se pronuncia e e i mas outras vezes se deve pronunciar ue e ui não será coisa das mais difíceis, sabendo-se dos avanços que temos tido em nosso programa de desanalfabetização, graças, principalmente, aos ingentes esforços e sacrifícios feitos pelo nosso Ministro da Cultura, nos dias que se dispõe a vir ao Brasil. Também agora, se os portugueses quiserem adoptar um puto, de preferência brasileiro, que levarão para vender pacotinho de balas junto às sinaleiras de tráfego lisboetas, ou exibir sua destreza com malabares na praça fronteira aos Jerônimos, não mais poderão fazê-lo. Terão mesmo é de, como os brasileiros, adotar a tal criança, sem pe mas com cabeça e tudo. Os que leem e veem sabem disso tudo, sem necessidade de consultar as novas regras nem por chapéu. Já nas assembleias deveremos ficar de pé, pois ali não mais haverá acento, o que é uma boa ideia, que esta de acento também não mais haverá de ter mister, coisa que se não haverá de confundir com o tratamento dispensado a cavalheiros ingleses, meu caríssimo senhor. Os que não creem nisso nem imaginam que agora seu voo será sem o quepe. Preparem-se para o vento nas madeixas. E tudo isso nem nome da simplificação, pá.  
sexta-feira, 18 de abril de 2008

Causo

"Há informações preliminares do Instituto de Criminalística que nos permitem concluir que ..." Promotor de Justiça Francisco José Taddei Cembranelli, apud Migalhas de 14.4.2008 "Quando a polícia militar chegou ao local o populacho já estava começando a pôr fogo na cerca de madeira pintada de branco que circundava toda a casa do acusado, pesasse embora ser noite de lua cheia e as roseiras do jardim estarem a exibir, sem o mais mínimo pundonor, um perfume escandaloso", assim começaria o Garcia Marquez a descrição daquela quase morte anunciada. Isso se passou na cidadezinha do interior do Estado em cujo centro havia como era de mister uma igreja matriz junto à qual havia como também era de esperar a casa paroquial na qual a Sebastiana, baiana chegada à cidadezinha há trinta ou quarenta anos, quando menos gorda certamente era, preparava os acepipes paroquiais que era como se chamavam as lautas refeições dos párocos que ali se sucediam e como também era imperioso, a ensejar visitas arcepiscopais com suspeita freqüência segundo as comadres locais. A tal casa paroquial tinha um diretor que desempenhava os misteres específicos tais como ajeitar a bela igrejinha para as missas diárias, a começar pela das seis que ele acolitava fizesse chuva ou frio ou caísse neve se disso se pudesse excogitar ali, acompanhado sempre da Alice, sua companheira de anos e anos de vida cristã e que lhe dera três filhos um dos quais já os presenteara com dois netos, um dos quais a levar o conceituado nome do avô. O qual, quando não estava na casa paroquial ou secundando o padre Ignácio, estava a colher cana em seu sítio Santa Gertrudes ou a plantá-la ou a lavrar a terra que os tempos estavam muito bons para o álcool agora tornado combustível dos mais apreciados tanto no país como no Exterior que é o que lhe diziam em Piracicaba e como se anunciava no jornal das dez. Se tudo ali era aquela paz beatífica, por que o populacho ? e, mais do que isso, por que o fogo ? e por que ali ? Eis as perguntas que qualquer pessoa minimamente curiosa haveria de fazer sem necessidade de ser um dos inúmeros jornalistas que ali haviam vindo até mesmo com câmera de televisão fixando a moça com o papel na mão a repetir para si mesma o pequeno texto que deveria representar logo mais tendo a mesma igreja como pano de fundo, cujo relógio lá no alto marcaria então seis horas, dita hora do Angelus, eis o que é um diretor de TV arguto! e que esperava a moça dizer pronto ! e ele a dar a senha é cinco é quatro é três e a moça ajeitando o corpo e o vestido pintalgado de flores é dois é um e ela fica séria e já! "A pequena cidade de Conceição do Este acordou hoje sob o impacto da notícia que correu pelas tranqüilas e arborizadas ruas do lugarejo : dois cadáveres, dois pequenos cadáveres foram encontrados nesta manhã no interior da casa paroquial escondidos dentro de uma geladeira". Corta para o prédio ao lado onde se lê Casa Paroquial e o cameraman mostra roseiras e mais roseiras ali sorridentes alheias à desgraça ocorrida intra muros e que as flores, a julgar por sua alegria, até aquele momento desconheciam. Novo corte rápido e a mesma repórter de cabelos esvoaçantes entrevista homens e mulheres na pracinha local, mais velhos e mais moços, indagando o que o senhor acha disso ? qual é a opinião da senhora ? E os cidadãos até então orgulhosos de sua pacata cidadezinha vêm o nome dela sendo enxovalhado nos noticiários da televisão, quem apagará essa nódoa que caiu sobre a nossa urbe ? Como disse o prefeito municipal, também alvo de entrevista, o qual confiava na ação enérgica de nossas autoridades constituídas para que um crime hediondo como esse, dito assim mesmo com agá, embora minúsculo, pois o prefeito era formado em Direito, não quedem impunes, assegurados evidentemente a todos os suspeitos os constitucionais direitos relativos à presunção de inocência sentenciou ele que havia feito muitos júris por ali o que lhe havia granjeado a simpatia do eleitorado local sendo granjeado uma palavra que os advogados gostam muito de empregar em suas arengas verbais inda mais diante de uma câmera de televisão, ano próximo haverá eleição para deputado e nunca se sabe o que. Comecemos pelo princípio : o diretor da casa paroquial naquele trágico dia saiu da missa das seis, que se encerrou, salvo erro excelência, às sete horas da manhã, e se dirigiu ao prédio ao lado para providenciar sua arrumação dado o fato notório de ter havido no sábado transato como declarou depois seu advogado à imprensa o casamento da filha do dono da padaria Esmeralda, nome dado em homenagem a uma filha precocemente falecida do pai do seu co-proprietário o senhor Osório, excelente fotógrafo amador em Araraquara especialista em chiaro/oscuro digo desde já, com a filha de um fazendeiro de uma cidade próxima, cujo nome nos escapa, com festança a mais não poder na tal casa paroquial que tinha e tem um salão especialmente dedicado a tais efemérides, com palco e tudo o mais, quando não está sendo ocupado com cursos de preparação de noivos ou encontros de casais com Cristo nos quais o Mauro e a Alice têm papel preponderante sendo exemplares pais de família como são e ainda se permitem ficar, por requisição e determinação do mesmo pároco, parados dentro do templo na missa dominical das dez horas em frente à fila de fiéis distribuindo a santa comunhão em ambas as espécies como ministros extraordinários da eucaristia que eles são: Corpo de Cristo ! Amém ! Corpo de Cristo ! Amém! dando ao padre Ignácio algum tempo para descansar que a messe é basta, como diz ele. Quando foi ele, excelência, levantar aquela caixa enorme de isopor, que é o nome comercial de um produto que se destina à feitura não só dessas caixas térmicas como até mesmo a feitura de lajes, veja vossa excelência o que é a ciência! sendo poucos os seus usuários que sabem ser isopor nome registrado pelo fabricante, o que lhe dá direito exclusivo de uso, assim como os fabricantes de gilete, que eu nem sei se alguém ainda usa em face desses barbeadores azuizinhos ou amarelos que pesam nada e se joga fora com suas duas lâminas e tudo depois de oito nove barbas feitas, depende da espessura da barba de cada um, é claro, falo de um número médio, sendo que o meu tio, por exemplo, com aquela cara de árabe, me disse que o aparelho de barbear dele cego já está na terceira barbeada com ele, além da maizena que as donas de casa também pensam que é nome comum e é nome próprio com copyright e tudo, assim explicou o advogado ao juiz em sua longa exposição em seu devido tempo. Quando foi levantar aquela caixa de isopor, foi aquele susto. .......... E o desembargador Gonçalves Nogueira, relator do processo, que está aí com saúde para comprovar o que eu digo, repetiu escandalizado a seus pares, os não menos ilustres desembargadores Sérgio Braz e Oliveira Ribeiro, assiste inteira razão ao insigne defensor do réu pronunciado, sendo, de fato, inteiramente incrível que uma testemunha fosse ouvida nada menos do que dez vezes em um mesmo processo, dez vezes ! vejam Vossas Excelências, disse ele respeitoso dirigindo-se a seus colegas de turma julgadora, só faltando mandar consignar o fato no Guiness Book ad perpetuam, os quais disseram acompanho! acompanho ! quando Sua Excelência propôs a despronúncia do acusado visto que nem mesmo se teria havido crime tinha sido demonstrado pelo laudo de folhas, sendo mais razoável que, como lucidamente sustentado oralmente nesta sessão de julgamento pelo insigne defensor aqui presente, que se cuidasse de uma brincadeira de dois meninos que, tentando esconder-se dentro da caixa de isopor e notando que as roupas os impediam de lograr seu intento, deliberaram desnudar-se para que seu propósito fosse alcançado graças à menor fricção de um corpo desnudo contra outro corpo desnudo. E, desgraça das desgraças, assim que eles os meninos ali se acomodaram no interior da tal caixa de isopor, caiu-lhes sobre o tênue corpo a tal tampa que, por azar ímpar, se fez travar pelo encontro fatídico das partes masculina e feminina daquele malfadado fecho qual casal de desavergonhados cães a exibirem sua cara alegre língua de fora arfando a cara dele voltada para cá e a cara dela da cadela voltada para lá talvez por vergonha do que acabam de fazer em público. É o que está nos autos do processo TJ/SP número duzentos e um ponto oitocentos e vinte e oito ponto três, se duvidar consulte no site do tribunal, agora com novo visual mais bonito e mais eficiente como disse o serviço de relações públicas pelo jornal do advogado. Isso para não falar que uma decisão de despronúncia não produz coisa julgada material porque o feito pode ser reaberto a qualquer momento, olha o sofrimento do réu ! se novas provas aparecerem, sendo que ao ser publicado o tal acórdão já fazia mais de dez anos que os dois meninos haviam tão tragicamente falecido.   1Transcrição parcial de capítulo do livro Menas Verdades - Causos Forenses ou quase (no prelo)
sexta-feira, 11 de abril de 2008

Era do Rádio

Meu pai fumava cigarros Yolanda, que, por sinal, era o nome de minha mãe. Eu tomava banho com sabonete Eucalol e passava Antisardina no rosto, para eliminar aquelas malditas espinhas, e Gumex na cabeça, para assentar meus cabelos. Já minhas irmãs usavam Royal Briar, "o perfume que deixa saudade", até porque o Maderas Del Oriente era muito caro e a Água de Colônia, com estampa da catedral e tudo, era privilégio de nossa mãe, quando ia à missa. Quando tomava o bonde, à saída do colégio, eu ficava no estribo, driblando o cobrador que vinha atrás da gurizada, com notas de dinheiro dobradas entre os dedos. De vez em quando ele registrava o dinheiro recebido, puxando uma alavanca que produzia um som específico. Nós, que notávamos que os toques eram em número menor do que as passagens vendidas, cantávamos : "blim, blim, dois pra Light e um pra mim". A Light era a proprietária da linha de bondes. Aliás, bond queria dizer qualquer coisa, menos referir-se ao veículo que a Electric Bond & Share havia colocado nos trilhos brasileiros. Quando o bonde chegava ao alto da rua Amaral Gama, depois de sair da Voluntários da Pátria, em Santana, já quase sem fôlego pela subida que havia vencido, nós aproveitávamos a diminuição da velocidade dele e saltávamos, como se aquilo fosse um avião e nós trouxéssemos nas costas um pára-quedas, que evitaria que nos esborrachássemos nos macadames, como por vezes acontecia. Macadame era o aportuguesamento da palavra McAdam, talvez o introdutor daqueles paralelepípedos com que eram calçadas as ruas, antes da introdução do asfalto, que teve a grande vantagem de impermeabilizar as ruas, impedindo que a água da chuva penetrasse na terra entre os vãos dos paralelepípedos, nome com que alguém havia batizado os tais macadames, aumentando, assim, o risco de inundação das casas que ficassem no fim de uma ladeira. Coisas do progresso. Ninguém, absolutamente ninguém que tenha vivido em São Paulo naquele tempo deixará de recordar-se do belo poema que se lia na parede dos fundos do bonde : "Veja, ilustre cavalheiro, Que belo tipo faceiroO senhor tem a seu lado.E, no entanto, acredite, Quase morreu de bronquite. Salvou-a o Rhum Creosotado". Eu poderia ainda falar tanto do inconfundível perfume do sabonete Lifebuoy como do Edifício Balança Mas Não Cai, que chegava "ao recesso" de nosso lar pelas ondas sonoras da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, sob o prestigioso patrocínio das Casas da Banha e locução do Manoel Barcelos, transmitida em ondas curtas, com seus chiados característicos. Ou seria "sob os auspícios" do misterioso Regulador Xavier, "o remédio de confiança da mulher", cuja propaganda (reclame, se dizia então, fruto da influência francesa, palavra que, muitos anos depois, seria substituída pela norte-americana comercial) era para mim um enigma indecifrável : "número um, excesso; número dois, escassez". Eu, naquela época, ainda não sabia que o criador do impagável edifício, que depois se bandeou para a televisão, era um cardiologista : Max Nunes. O rádio nos trazia as "brigas" entre a Emilinha Borba e a Marlene, um expediente publicitário engrossado pelas reportagens da Revisa do Rádio e pelas fofocas do César de Alencar, que a revolução de 64 levou ao ostracismo, juntamente com o cantor Wilson Simonal, bem mais moço do que ele. E havia o vozeirão do Vicente Celestino, que nos explicava porque se havia tornado um ébrio. Mais o Francisco Alves, "o rei da voz", que se apresentava na mesma Rádio Nacional aos domingos, exatamente ao meio-dia, "quando os ponteiros do relógio se encontram". E ainda o Carlos Galhardo, "o rei da valsa", que havia trocado a profissão de alfaiate pela de cantor, com direito a peruca e cachimbo, à la Bing Crosby. Ou as patacoadas da PRK-30 e seus inesquecíveis personagens, como a fadista Maria Joaquina Dobradiça da Porta Baixa, que era apresentada pelo locutor Megatério Nababo d'Alicerce, e que tinha no repertório este emocionante fado: "Tirei um retrato a cavalo.Ficou mesmo uma coisa fina.Ao vê-lo, alguém perguntou:Quem és tu ? O de baixo ou o de cima". Ou est'outro : "As águas dos mares salgados,donde nos vem tanto sal,são das lágrimas choradas,são das lágrimas choradas,das praias de Portugal". E havia também aquela dupla extraordinária, que fazia meu pai, que, no cinema, só via filme do Gordo e o Magro, chorar de rir : Murilo Alvarenga, nascido em 1912, e Diésis dos Anjos Gaia, nascido em 1913. Seu avô, meu caro leitor, acaso se lembrará deles ? Por mais de 50 anos eles formaram uma dupla caipira que de caipira não tinha nada, a não ser o forçado sotaque e a fantasia com camisa de tecido xadrez e chapéu de palha. Apareceram em mais de 20 filmes, mas gravaram pouquíssimas músicas. Faziam paródias e imitavam os repentistas nordestinos, coisa de um Zé Preá versus Mano Meira ou Ontõe Gago. No duelo mais famoso, eles se referiam a animais com duplo sentido. O burro do teu pai tem puxado muita carroça ? Não tanto quanto a galinha de tua irmã. Por falar nisso, a cadela de tua mãe está melhor? Morreu trasdantontem, atropelada pela elefoa da tua vó. Começaram com isso nos anos trinta e vieram depois escolher Getúlio Vargas, o todo poderoso ex-membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul, para alvo de suas críticas políticas. Certo dia, um carrão preto parou diante do hotel onde Alvarenga e Ranchinho, esse o nome da "dupla que é uma navaia", estavam hospedados. Dois homens mal-encarados os levaram, com as respectivas violas, até o prédio do Catete, sede da Presidência da República. Getúlio, que era fã da dupla, queria uma apresentação especial, para ele e seus convidados. E lá ficaram cantando até alta madrugada. Entre outras prospectivices, inventaram um bordão notável para o patrocinador do programa. Havia, na ocasião, duas fábricas de fogos de artifício: Adrianino e Caramuru. O programa era patrocinado pelo segundo, que fabricava "fogos que não dão chabu". "Mas que é chabu, compadre ?" perguntava um. "Sei lá, compadre. Eu só uso Caramuru !" respondia o outro. Vejam a inteligência do diálogo, que se utilizava de uma palavra inexistente sem dizer qual o seu significado. Quando o Chico Buarque escreveu sua maravilhosa Construção, ele, certamente, se inspirou em certa música do Alvarenga e Ranchinho, cujos versos terminam sempre por uma proparoxítona. A antológica Drama da Angélica era uma valsinha sem qualquer complicação rítmica, compasso ternário, naquele pa pa pum, pa pa pum próprio dessas valsas. É uma letra longuíssima, quase impossível de ser decorada, da autoria de M. G. Barreto. Graças ao meritório registro que vem promovendo a gravadora Revivendo, é possível aos mais velhos matarem saudade e aos mais novos conhecerem a criatividade da dupla. Eis a longa letra da música: "Ouve o meu cântico,quase sem ritmo,que é a voz de um tísicomagro, esquelético. Poesia épica,em forma esdrúxula,feita sem métrica,com rima rápida Amei Angélica,mulher anêmicade cores pálidase gestos tímidos. Era malignae tinha ímpetosde fazer cócegasno meu esôfago. Em noite frígida,fomos ao Líricoouvir um músico,pianista célebre. Soprava o zéfiro,ventinho úmido, então Angélicaficou asmática. Fomos a um médicode muita clínicacom muita práticae um preço módico. Depois do inquérito, descobre o clínicoo mal atávico,mal sifilítico. Mandou-me, célere,comprar noz vômicae ácido cítricopara o seu fígado. O farmacêutico,mocinho estúpido,errou na fórmula,fez de propósito. Não tendo escrúpulo,deu-me sem rótuloácido fênicoe ácido prússico. Corri, mui lépido,mais de um quilômetronum bonde elétricode força múltipla. O dia cálidodeixou-me tépido.Achei Angélicajá toda trêmula. A terapêutica,dose alopática,dei-lhe uma xícarade ferro ágate. Tomou num fôlego,triste e bucólica,essa estrambólicadroga fatídica. Caiu no estômago,deixou-a lívida,dando-lhe cólicase morte trágica. O pai de Angélica,chefe do tráfego,homem carnívoro,ficou perplexo. Por ser estrábico,usava óculos:um vidro côncavo,outro convexo. Morreu Angélicade um modo lúgubremoléstia crônicalevou-a ao túmulo. Foi feita a autópsia.Todos os médicosforam unânimesno diagnóstico. Fiz-lhe um sarcófago,assaz artísticotodo de mármore,da cor do ébano. E sobre o túmulouma estatística,coisa metódicacomo Os Lusíadas. E numa lápide,paralelepípedo, pus esse dísticoterno e simbólico: "Cá jaz Angélica,moça hiperbólicabeleza helênica,morreu de cólica!" "He, he, Caramuru !", como diziam eles enquanto eram aplaudidos.  
sexta-feira, 4 de abril de 2008

Mors Omnia Solvit

  "Os ladrões de galinha sempre olham os arrombadores com certo respeito. Se os ladrões simples são os bacharéis dessa faculdade e os escroques são os licenciados, estes serão ou doutores ou eméritos professores". Honoré de Balzac, Código dos Homens Honestos Era, segundo meu interlocutor, uma Santa Casa como tantas outras que ainda existem no interior de muitos de nossos Estados, em especial ali no sul da Bahia : janelões compridos, pé direito triplo, cadeiras e camas de metal que um dia haviam sido pintadas de branco, pois agora havia nelas mais o marrom da ferrugem do que a cor do esmalte. Pelos corredores alguns móveis inservíveis que ali aguardavam destino melhor, ou seja, o lixão da cidade. Nas paredes e no teto as temerárias fiações elétricas improvisadas, prontas para desencadear curto-circuito e, com ele, até um incêndio. Ao longo do corredor, portas com tabuletas indicando o que deveria haver no interior de cada um daqueles cômodos e que as minguadas contribuições dos beneméritos transformavam em mera expectativa. Num canto, ao fundo, uma imagem do Senhor do Bonfim iluminada por uma luzinha fraca, que permitia ver umas flores murchas deixadas por algum parente aflito, que não renovara a oferta, por inútil ou suficiente a já feita. Naquilo que poderia chamar-se sala de espera, algumas pessoas muito feias e mal-vestidas, descalças ou calçando chinelo de dedo, aguardando a chegada do doutor. Os casos mais urgentes costumavam ser cuidados pelos enfermeiros ou mesmo pelo pessoal encarregado da faxina, pois tudo ali se confundia, naquela miséria bizarra. Quando a moça chegou, amparando aquele velho que mal podia andar, os olhares se voltaram para ela, pois sua vestimenta não era como a dos demais e seu perfume não poderia deixar de ser notado. Vestia, na verdade, roupa extremamente simples, mas, em confronto com a pobreza dos freqüentadores habituais, chamava a atenção, coisa de gente chique, vinda da cidade grande. Perguntou pelo médico e os atendentes se desdobraram para saber dele, telefonando para vários locais antes de informar que ele chegaria logo logo, tivesse um pouco de paciência. Telefone celular ali nem pensar. Quiseram até atendê-los, dada a notória urgência, mas ela preferia aguardar a vinda do médico. Educadamente ela foi pedindo licença aos demais pacientes e acabou por sentar-se com o velho num canto da sala, ele com evidente dificuldade para respirar. Vez que outra o velho fazia um esforço enorme, como se quisesse armazenar um bocado maior de ar no pulmão, para não ter de repetir o esforço constante para aspirar o seu alimento. Magro como estava, parecia que se alimentava de ar e água, como se fosse orquídea. E respirava com muita dificuldade, produzindo um barulho incômodo. Era um ronco estranho, que rebatia nas paredes nuas da sala. Em seguida, ele pendia a cabeça, como que adormecido. O estado do velho era, de fato, preocupante, as pessoas concordavam. Quando o homem de branco chegou, os funcionários apontaram para o canto onde estava a moça e o velho, o que parecia indicar que se tratava do caso mais grave a ser atendido. O jovem médico olhou-os, disse algo ao atendente e entrou numa das salas do longo corredor. O funcionário fez um sinal ao casal, cuja necessidade de atendimento preferencial foi, ao que parece, entendido pelos demais pacientes, que não se consideravam em estado assim tão grave. Nada como alguém em pior estado para diminuir nosso sofrimento. Foi com grande dificuldade que o velho conseguiu arrastar-se, amparado pela filha, ou pela moça que parecia ser sua filha, até a sala onde o médico os aguardava. Quem a anunciou como filha foi o atendente, ao que parece depois de consultá-la. A moça, gentilmente, acomodou o pai numa cadeira e se pôs a falar em voz baixa ao médico, salientando que o estado dele era muito grave e que, no fundo no fundo, a família desejava apenas que ele morresse em paz. Indicou nome completo, local de nascimento e idade. "Tão moço ?", estranhou o profissional. "Sempre viveu da capina e trabalhava de sol a sol. Ele, em realidade, é meu irmão mais velho, mas passa facilmente por meu pai. Devo muito a ele, que me permitiu ir para a cidade e estudar. Daí meus cuidados com ele, que está no fim da vida. Faço por ele uma parcela mínima do que ele já fez por mim". O médico concordou com a observação, depois de admirar uma vez mais o rosto da moça e revoltar-se pelas condições desumanas com que os fazendeiros tratam seus peões. "Mas que morresse na própria casa, onde ele morara tantos anos e onde todos se haviam criado", eis o desejo dos familiares, insistiu ela. Depois, ela falou de si. Necessitando de estudar, fora para a cidade grande próxima, onde atualmente mora, trabalha e estuda à noite. Vida de roça nem pensar. Hoje, porém, sua mãe telefonou-lhe aflita, supondo que o filho não passaria desta noite. Daí sua presença, enfatizou mais uma vez. O médico preencheu uma ficha, redigindo com os dados que lhe foram passados pela moça. Muitas informações ela desconhecia, pois quase não tinha tido mais contato com a família. Veio hoje à cidade como ato de caridade, a pedido da mãe, repetiu. Nem mesmo documentos de identidade ela trouxe na pressa, desconhecendo se o doente era ou não inscrito no INSS. "Isso, no entanto, não me impedirá de dar a ele a assistência de que ele necessita", concluiu ela, emocionada. O jovem, mais atencioso do que seria razoável esperar de um médico nas circunstâncias, talvez pelo aspecto diferenciado da moça que, no meio de tanta gente feia, até parecia bonita, levou o paciente até a cama de exame, onde auscultou demoradamente seus principais órgãos. O velho respirava com grande dificuldade e o coração, viria a dizer a ela o médico depois de testar os chamados sinais vitais do paciente, não agüentaria muito tempo mais. Indagou sobre os remédios que ele tomava, mas ela não sabia informar, repetindo a mesma ladainha anterior. "Com todo respeito, pense num carro bem velho, uma Brasília, por exemplo, dessas que ainda circulam pelas nossas estradas vicinais, caindo aos pedaços. Se formos substituir todas as peças que não funcionam a contento, o preço do conserto será maior do que o preço do carro. Melhor comprar um novo. Tudo o que podemos fazer é andar com o carro, mas tendo muito cuidado, sabendo que, mais dia menos dia". A moça o interrompeu educadamente. Sim, ela sabia que a comparação era exata, mesmo porque a família não tinha dinheiro para um tratamento numa cidade com mais recursos. Esperava apenas que o médico indicasse algum remédio que aliviasse o mal-estar do velho, para que, dizia com pesar mas sendo muito prática, ele morresse sem sofrer muito. O jovem médico elogiou a objetividade da moça e rabiscou algo num papel timbrado, onde constava seu número de telefone particular. Qualquer emergência, que a jovem não tivesse dúvida em consultá-lo. Se necessário, iria até o sítio onde ele morava. Qual era mesmo ? Que ela não fizesse luxo com ele. Naquela noite, de fato, o telefone da casa do médico tocou e confirmou-se o que já era esperado. Ela informou que precisaria de um documento para providenciar o enterro do falecido no dia seguinte, já que tinha compromissos inadiáveis na cidade onde morava. Passaria no consultório dele no outro dia, para poder regularizar a situação do defunto. Que viesse à sua casa assim que pudesse, propôs o médico. E realmente assim foi : logo pela manhã, lá estava o automóvel reluzente dela diante da casa do médico, onde ela obteve a declaração do óbito de Severino José de Albuquerque Cavalcanti, com o qual se dirigiu ao cartório local e providenciou o necessário atestado de óbito. Foi declarante sua esposa, que ali se identificou, Sandra Maria Cavalcanti. Com o atestado na mão, a moça tomou o rumo da estrada e seguiu para a capital, onde, depois de devolver o automóvel à locadora, tomaria o avião cujo vôo fosse o mais próximo para a capital do Estado nordestino onde, na verdade, ela morava e de onde viera. Uma vez lá, entregou o atestado de óbito ao advogado, que requereria a extinção da punibilidade do temível criminoso, ora foragido, conhecido na região como Severo Mau, matador profissional que, condenado a mais de quarenta anos de prisão, escafedera-se dali, após fugir do presídio, em circunstâncias ainda não esclarecidas, sem ameaça a quem quer que seja e sem arrombamento algum, coisa mais espantosa. E cujo nome de batismo pouquíssima gente sabia ser Severino José de Albuquerque Cavalcanti. O qual, outrossim, aguardava pela esposa num rancho de gado que havia adquirido na Argentina, cujo endereço só ela conhecia. E onde seriam, por fim, felizes para sempre. "E como o senhor sabe de tudo isso ?" perguntei ao homem que regava sua narrativa com sucessivos goles de cerveja, refestelados nós ambos naquelas piscinas naturais de água quente da cidade balneária onde, pelo que tudo indicava, passávamos as férias e jogávamos conversa fora, como ali se diz. "Eu sou o tal advogado que o senhor ouviu ser mencionado no final da narrativa".   1Do livro Menas Verdades - Causos Forenses ou quase (no prelo)
sexta-feira, 28 de março de 2008

Brian de Palma Doutrinando

"A sociedade não pode pretender que o Estado viole as suas próprias regras, garantidoras dos direitos fundamentais de todos os seres humanos, sob pena de não mais se justificar, moralmente, a existência do Direito Penal, porque, nesse caso, ter-se-ão legitimado os valores e os meios empregados por aqueles cujos atos o Estado deve impedir". Eduardo Pizarro Carnelós, in Migalhas, 17/8/2006 Dizem que o velho advogado de júri, durante uma sessão, ouviu e mais ouviu o jovem promotor citar autores e mais autores. O Hungria disse isto, o Carnelutti disse aquilo, o Ferri disse mais o seguinte, concluindo que o réu deveria ser não só condenado como apenado severamente, tendo em vista isto e mais aquilo. Pouco afeito ao salutar esporte de abrir e ler livros, o astuto advogado passou a fazer as afirmações mais disparatadas, citando o conhecido jurista italiano Coriógi, segundo cuja lição, em casos como aquele, não faz sentido que. Quando acabou o julgamento o jovem e modesto promotor (há promotores modestos, acredite !) foi à biblioteca do Tribunal de Justiça procurar algum livro do tal autor, que ele não conhecia. Na praça João Mendes, bem debaixo das janelas da biblioteca, por uma coincidência junguiana, o bilheteiro italiano anunciava os últimos bilhetes que tinha à venda, dizendo que seriam sorteados logo mais, desmascarando, tarde embora, o esperto defensor e seu refrão : "Córi oggi! Córi oggi !" Si non è vero, è bene trovato, como diria minha amiga Ada Grinover, a menina que não viu a uva, viu a guerra. Muitos leitores talvez não identifiquem o nome do personagem que aparece no título destas considerações. Depois de um grande sumiço, ele voltou, com um filme que os críticos consideram de pouca inspiração. Para azar dele, sua Dália Negra foi exibido ao mesmo tempo em que apareceu um imperdível Xeque-mate, um dos mais criativos roteiros dos últimos tempos. Faço-lhes, pois, a apresentação do De Palma : discípulo e admirador confesso de Alfred Hitchcock, costumava incluir em seus filmes referências a trabalhos alheios, principalmente os realizados por seu mestre. Desde Carrie, a estranha (cuja cena final, um achado cinematográfico, nos fez pular da cadeira) passando por Dublê de Corpo (onde ele usa e abusa dos recursos hitchcockianos de fazer parecer o que não é), até Os Intocáveis lá estão referências que o cinéfilo se diverte em tentar encontrar, em um jogo muito ao gosto do cineasta inglês, que fazia questão de dar uma rápida aparição nos filme que dirigia, apenas para provocar os espectadores e aguçar a expectativa deles. Aos amantes de cinema, uma pergunta, que os moderninhos chamam de quiz : em qual dos seus filmes o Alfred Hitchcock aparece tentando passar por uma porta rotatória carregando um violoncelo ? Pois quero falar justamente do último filme referido (cuja antológica cena da escadaria, por sinal, foi inspirada no Encouraçado Potenkim, de mestre Eisenstein), que a televisão reprisa freqüentemente. Se o leitor está lembrado, preso Al Capone pelos "intocáveis" agentes do governo, não pelas matanças que mandara realizar, mas pela sonegação fiscal que cometera, algo que deve ter inspirado nossos recentes Ministros da Justiça para mandar para a cadeira tantos colarinhos de renda, será ele submetido a julgamento pelo petit jury. Capone (magistral interpretação de Robert de Niro) está calmo, sorridente, na certeza da absolvição. Eis que o chefe dos agentes do governo descobre com um capanga do mafioso, que havia sido morto pela polícia, uma lista que indica que todos aqueles jurados haviam sido subornados pelo réu. Foi lá que nossos parlamentares conheceram o mensalão. Daí o ar vitorioso do gângster. Que fazer ? Os verdadeiros juristas teriam dificuldade em resolver esse quebra-cabeça sem ser propondo o suscitamento de um incidente processual, com observância do princípio do contraditório, duplo grau de jurisdição e tudo aquilo que os norte-americanos incluíram nas primeiras dez emendas apostas à Constituição lá deles, às quais deram o nome de American Bill of Rights, isto é, Relação de Direitos privativos dos norte-americanos, a significar que eles não se aplicam a quem não nasceu ao norte do Rio Grande, o que no Brasil significa recursos e mais recursos até que. Nem se aplica lá a quem está preso em algum galinheiro situado em alguma ilha do Caribe. "Os muçulmanos não estão em território norte-americano, mas em território cubano", esclarece o Bush em rede nacional de televisão. E há norte-americanos que acreditam nisso ! No tal filme, levado o problema ao juiz presidente do júri, ele encontra a solução, que faria babar muito jurista brasileiro e certamente provocar um sorriso a mais no rosto do ministro Marco Aurélio, quando concedesse mais uma de suas liminares : consulta o colega da sala ao lado, onde se julgaria outro réu, e, pragmaticamente, trocam de jurados. Assim, os peitados jurados que estavam aqui vão julgar o réu da sala de lá, enquanto os jurados da sala de lá virão julgar o réu da sala de cá, pois nada haviam recebido do acusado a título de estímulo financeiro. Al Capone protesta no filme e eu, quando assisti pela primeira vez, protestei veementemente do lado de cá, pois há um princípio chamado do "juízo natural", que não permite esse tipo de expediente, mesmo porque. O problema é que, por vezes, ao ouvir declarações de certos advogados brasileiros, fico me perguntando se eles não estariam a aprender Direito com mestres como o Brian De Palma. Um doutor Coriógi um pouco mais sofisticado.
sexta-feira, 14 de março de 2008

Pecados interiores

  "A verdade é que apenas Deus pode conhecer Deus". Joseph Campbell "- Você acredita em Deus, vô ?" Será que os netos não têm mais nada para perguntar aos seus avôs ? Eu aqui descansado, tentando decifrar um livro do Guimarães Rosa, e vem esse fedelho me desafiar com suas dúvidas existenciais. Marquei a página do livro até onde eu havia conseguido chegar, coloquei-o sobre a mesinha, ao lado do abajur e de outros três livros que disputam entre si a prioridade da leitura, sentei meu neto em meu colo e tomei fôlego para uma conversa longa. Como falar de algo tão transcendente sem ser pedante nem ser, como direi ?, ingênuo ? Conheço meus netos e sei que eles estão sendo criados com toda liberdade e num clima de diálogo, sem a imposição de verdades absolutas, como era comum no meu tempo de criança e como sei que ainda ocorre em certas famílias, principalmente quando os pais não têm tempo para dialogar com os filhos ou, por modéstia ou ignorância, se acham sem competência para isso. "- Para que eu fale de um assunto desses, primeiro quero saber o que você já sabe a respeito dele" comecei, malandramente, invertendo, de certa forma, o problema por ele trazido. Ele falou de coisas vagas, fantasiosas, que, certamente, havia aprendido em aulas de religião. São os conceitos tradicionais, que falam na criação do mundo, no surgimento do primeiro casal, em pecado, em céu e inferno e coisas tais. Uma criança que tem o mundo diante de si, por força da internet, aprendendo ali o que deve e o que ainda não precisa aprender, aceitará essas histórias que intimidavam nossos pais e nossos avós ? Será que não há um modo mais adequado para despertar a criança para os valores transcendentais ? Para a chamada conduta ética ? Abri um dos livros que estavam sobre a mesinha e dei para ele ler uma das páginas. Era um desses best-sellers do dia, traduzido para o português, numa linguagem sem afetação. Ele leu atenciosamente o texto por duas vezes e depois, a meu pedido, explicou-me, sem grande dificuldade, aquilo que havia lido. Depois, entreguei a ele um livro de poesia e repeti o mesmo processo. Agora ele embatucou na hora de me explicar o que havia lido. Olhou o nome do autor e me indagou quem era Fernando Pessoa. Sem comentar sua dificuldade, indaguei-lhe se ele seria capaz de cantar as primeiras estrofes do nosso hino nacional, pois eu já sabia que uma vez por semana eles são obrigados a cantá-lo no colégio. Ele sapecou o "ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heróico o brado retumbante". Mandei que ele parasse aí e me explicasse, com suas palavras, o que aquilo queria dizer. "- Agora você me pegou" disse ele. "- Quer dizer que vocês cantam o nosso hino todas as semanas e os professores nunca lhes explicaram o que isso quer dizer ?" indaguei. "- Eu nem sabia que isso quisesse dizer alguma coisa" disse-me o cínico. Em lugar de um sermão sobre a má qualidade do ensino em nosso país, propus a ele que puséssemos em ordem direta aquela frase. "Aliás esse é um exemplo daquilo que os gramáticos chamam de hipérbato, ou seja, a colocação das palavras em uma frase fora da ordem a que estamos acostumados. Logo logo o teu professor de português lhe ensinará isso". "- Algum dia ainda vou aprender isso tudo e serei tão culto como você, vô", bajulou-me o garoto. Passamos então à ordem direta daquela pomposa frase : "as margens do (riacho do) Ipiranga ouviram o brado de um povo heróico". Eis o que o poeta quis dizer. "- Mas um riacho tem ouvidos, vô ? " "- Aí é que entra algo que nos ajuda a entender a linguagem religiosa. Nem sempre aquilo que está sendo dito significa aquilo que parece significar. Por causa disso, surgem pessoas que se dispõem, de boa ou de má fé, a mostrar às pessoas o significado daquilo que nossa inteligência não consegue entender". "- Eu, por exemplo, não entendi nada de todo esse seu discurso, vô". "- Então me diga: você acredita que exista a Austrália ?" "- Claro, vozão. Eu vi na televisão um programa que mostrava o deserto da Austrália e os cangurus saltando pra todo lado". "- Mas quem lhe garante que aquele deserto é mesmo na Austrália e não na África ? Quem lhe garante que aqueles animais estranhos, que têm as pernas da frente bem menores do que as pernas de trás, não é um truque de cinema, um efeito especial como alguns personagens da série Guerra nas Estrelas ?", provoquei. O garoto ficou sério, pensou um pouco e saiu-se com esta : "Quer dizer que eu não devo acreditar em tudo que me mostram ? Em tudo que me contam ?" Dei uma sonora gargalhada e um abraço no meu neto mais velho. "- Você agora falou como certos filósofos gregos, que diziam exatamente isso : desconfie sempre. Eu não aceito essa filosofia, porque ela torna a vida um inferno. Já imaginou eu pondo em dúvida se você é meu neto, pondo em dúvida se a água que sai da torneira está boa para se beber, se a comida que me servem no restaurante não estará envenenada, se a notícia que li no jornal é mentirosa e assim por diante. Quem consegue viver assim?" "- Mas eu também não posso aceitar tudo o que me dizem, é ou não é ?" diz ele com seriedade. "- Viu como isso é complicado ? Pois quando alguém, por mais importante que seja, afirma que Deus lhe disse alguma coisa, a primeira pergunta que nossa inteligência faz é : se ninguém sabe como é Deus; se ele, ao que tudo indica, não usa carteira de identidade, como é que aquela pessoa, mesmo estando de boa fé, sabe que falou com Deus ?" "- Então esse problema não tem solução", concluiu meu esperto neto primogênito. "- Algumas pessoas, de fato, entregam os pontos e chegam a afirmar que Deus não existe, o que é uma grande bobagem. O fato de eu nunca ter estado na Austrália e nunca haver tocado num canguru não me dão a certeza de que eles não existam. Se eu pegar um avião e for à Oceania, que é um outro continente, eu poderei saber, sem ter de confiar na palavra dos outros, se a Austrália e os cangurus existem ou não". "- Isso quer dizer que, se eu pegar um foguete e for pelo espaço eu acabo descobrindo se Deus existe e onde ele está ?" disse o garoto. A conversa estava indo mais longe do que eu esperava, mas eu não poderia encerrá-la sem dar um fecho razoável ao assunto, para não deixar meu neto mais confuso do que estava antes. Dizer a ele que só na nossa Via Láctea, uma das milhões de galáxias que há no universo, deve haver mais de 200 bilhões de estrelas e que, de acordo com qualquer cálculo de probabilidades, deve haver algum outro ambiente no espaço sideral onde a vida, tal como a conhecemos na Terra, é possível, seria algo adequado à idade dele ? "- Então me responda o seguinte : o que é o sol para você ?" indaguei-lhe. O garoto, sem pestanejar, foi objetivo : "é uma bola de fogo que circula no céu e produz luz e calor". "- Bravo. Bem na mosca. Se você olhar esse mesmo céu à noite, especialmente quando não há lua, você verá um número incalculável de estrelas. Que é uma estrela ?" "- É um pontinho luminoso azulado". "- Pois fique sabendo que a maioria daqueles pontinhos luminosos azulados são também bolas de fogo, que produzem luz e calor. Em torno de cada uma dessas estrelas talvez girem planetas, como ocorre com o nosso sol, que, saiba você, é também uma estrela, menor do que muitos daqueles pontinhos azulados". A surpresa de meu neto, diante de minha revelação, foi muito menor do que imaginei que seria. "- E o que isso tem a ver com Deus ?" foi tudo o que ele disse. "- Eu estou tentando mostrar que tanto o sol como as demais estrelas que vemos à noite representam uma parcela mínima, quase insignificante de um conjunto de estrelas que se chama Via Láctea. A Via Láctea é apenas uma das inúmeras galáxias que compõem o universo, cujo número exato nós desconhecemos". "- E onde entra Deus nisso tudo ?" indagou o garoto, já demonstrando certa impaciência. "- A nossa experiência nos ensina que tudo o que existe teve um criador. Se você vê na calçada um montinho de cocô" disse eu, usando, de caso pensado, um objeto de que ele certamente não se esqueceria, "você conclui que o criador daquele objeto foi um cachorro, até porque cocô não surge do nada. Certo ?" Ele não tinha como discordar de mim. "- Ocorre, porém, que você não tem como saber qual a raça nem a cor do criador daquele objeto. O que, no entanto, você consegue saber é que o criador é muito maior do que aquilo que ele criou. De acordo ?" Ele não deixou por menos: "você está tentando me dizer que Deus é um enorme cachorro e que esses bilhões de estrelas são como cocôs que ele deixou no espaço ?" Não pude deixar de dar uma gargalhada estrondosa, diante da irreverência do garoto. Agora era aproveitar a deixa. "- Em termos poéticos, sua comparação não seria de se jogar fora, principalmente se levarmos em conta o que os homens fizeram com nosso planeta. Na verdade, o que estou tentando mostrar é que, pelo fato de nós conhecermos a obra, isso não significa que conseguiremos conhecer o seu autor. No caso do universo, nem podemos dizer que conhecemos a obra toda, pois ainda sabemos muito pouco a respeito dele. A rigor, nós sabemos quase nada. Quantas galáxias ele tem ? Isso compreende quantas estrelas ? Qual o tamanho do espaço ocupado por isso tudo ? Nós não temos resposta para essas perguntas". "- E Deus deve ser maior do que isso tudo" diz meu neto, deixando-me emocionado. "- É exatamente isso. Se nós não temos condição de conhecer a obra criada, como podemos atrever-nos a dizer que conhecemos seu criador, que, como bem disse você, deve ser maior e mais complexo do que ela ?" "- E como saímos dessa, vô ?" indaga-me o garoto, com certa apreensão na voz. "- Acho que a solução mais prática é esta: a nossa inteligência nos diz que nós nascemos para sermos felizes. E também ela nos mostra que nós não conseguimos ser felizes se as pessoas à nossa volta não forem também felizes. Se a idéia de quem nos criou foi a de permitir que cada um de nós alcance a felicidade, podemos extrair disso uma regra geral: não faça ao próximo aquilo que você não gostaria que ele lhe fizesse. E trate o próximo como gostaria de ser por ele tratado". "- Ou eu irei para o inferno. É isso ?" indaga o guri. "- Eu não gosto de falar em céu e inferno, porque acho que podemos ensinar as crianças a descobrir que fazer a coisa certa traz um prazer que não depende de uma futura gratificação. E que fazer a coisa errada acaba causando um enorme mal-estar, com sentimento de culpa e arrependimento, que fará a pessoa concluir que esse não é o melhor caminho. Ao menos para a maioria das pessoas. Talvez esse sofrimento é que seja o verdadeiro inferno". "- Acho que por hoje chega, vozão. Tenho que pensar em tudo isso, que já é muito para minha pobre cabecinha", disse meu neto. Finda a exposição, meu primogênito deu-me um beijo no rosto e saltou do meu colo. Antes que ele se fosse, fiz-lhe uma última pergunta, que, de certa forma, concluía tudo o que eu havia tentado ensinar-lhe. "- Você beijou meu rosto porque se sente bem quando está comigo ? Porque sabe que isso me faz feliz ? Ou porque está interessado em ganhar um bom presente no seu aniversário ?"  
sexta-feira, 7 de março de 2008

Direito Favelário

Logo que se aposentou, o Kazuo foi com a sua inseparável Ester ao Japão, em companhia de outro casal de nipo-brasileiros, talvez o Roque Komatsu e esposa, que é, por sinal, excelente pintora. Voltando de lá, deram uma paradinha em Portugal, para contornar o jet lag. Tomaram o táxi no aeroporto e puseram-se a conversar. Lá pelas tantas, o motorista, intrigado, parou o auto fora do leito carroçável, na chamada berma, voltou-se para eles e perguntou-lhes de onde haviam vindo. "Viemos do Japão". E o homem atônito : "Acabam de chegar do Japão e já falam o português quase fluentemente !" Como advogado na Trench, Rossi e Watanabe, de que também já se aposentou, era o terror dos advogados novatos. Certa ocasião, ele e alguns veteranos foram com um calouro a uma Loja Americana qualquer e, sem que o calouro percebesse, colocou-lhe no bolso um sutiã. Ao sair o grupo, disparou o alarme. Olhe o novato tendo de devolver um sutiã e explicar o que fazia aquela peça íntima feminina em seu bolso. Quixotesco como só ele, o Kazuo lutou, mais o Dinamarco e a Ada, pela implantação dos Juizados Especiais, que começaram pelos ditos Informais. Um dos que mereceu a honra de ser escolhido para participar do projeto foi este atrevido escriba, que colocou apenas uma condição: "Implantarei o Juizado Especial em alguma favela, onde eles escolherão os mediadores da confiança deles. Eu apenas supervisionarei os trabalhos". Claro que minha proposta não foi aceita pelo Tribunal, por ser "muito avançada". E olhe que eu já tinha alguma experiência em Direito Favelário, pois, quando juiz no Ipiranga, atendi a vários causos ocorridos ali em Heliópolis, uma favela que tem mais habitantes do que muita cidadezinha européia famosa. Seria, realmente, uma experiência muito enriquecedora (mais para nós do que para eles, claro, pois entraríamos em contato com uma espécie de Direito Achado na Rua, como diria o Boaventura Santos). Ficou para outra vez, como se diz nessas ocasiões. Penso, porém, que, mais dia menos dia, deveremos escrever um Tratado de Direito Favelário. Pode-se achá-lo preconceituoso, mas não devemos esquecer que a língua portuguesa é um latim mal falado. Era o que nos dizia ninguém menos do que o velho e sábio Alexandre Correia, quando nos despejava ouvidos abaixo os conceitos do seu temível Direito Romano. "Vejam os senhores", dizia ele com aquela voz fininha, "vejam os senhores esta palavra: agora. Isto é latim puro. In hac hora. Nesta hora. Pois é. Os senhores falam latim e não sabem que o fazem". E poderá ser o rol desses conceitos favelários ampliado ad libitum, como diria o Geraldo Roberto, como antigo e respeitável professor do Castelões, hoje desembargador aposentado. Vamos a ele: Assistência - "então, bro, vamo tomá de conta." Parte da doutrina prefere "estamos aí !" Chamamento ao processo - "o maluco ali também deve". Co-autoria - "passarinho que acompanha morcego dá de cara com muro", ou "passarinho que anda com morcego, dorme de cabeça pra baixo". Comoriência - "um pipoco pra dois" ou "dois coelhos com uma caixa d'água só no cocuruto". Decadência - "Neguinho tá maus". De cujus - "presunto". Deserção - "deixa quieto". Despejo - "sai fincado". Direito de apelar em liberdade - "fui !" Parte da doutrina entende como "só se for agora". Embriaguez voluntária - "não agüenta ? bebe leite". Estado de necessidade - "seguinte, eu sou mais eu". Estelionato - "malandro é malandro, e mané é mané". Execução de alimentos - "quem não chora não mama". Honorários advocatícios - "cada um com os seus pobrema, meu". Investigação de paternidade - "toma que o filho é teu". Justiça gratuita - "passarinho canta é na gaiola". Legítima defesa - "folgou, levou". Legítima defesa putativa - "foi mal". Legitima defesa de terceiro - "folgou com brother meu leva na oreia". Nomeação à autoria - "agora eu vou jogar merda no ventilador". Oposição - "sai quicando que o barato é meu". Perempção - "Pru quié qui não veio inhantis ?" Preparo - "então, meu ? deixa uma merrequinha aí." Princípio do contraditório - "agora samus nóis". Princípio da insignificância - "grande bosta". Preclusão - "camarão que dorme a onda leva". Princípio da fungibilidade - "só tem tu ? vai tu mesmo". Parte da doutrina e da jurisprudência entende como sendo "quem não tem cão caça com gato". Princípio da iniciativa das partes - "faz a tua que eu faço a minha". Reconvenção - "tá maluco, rapá ? ! A culpa é tua". Recurso adesivo - "eu vou no vácuo". Reincidência - "porra, rapá, de novo ?". Res nullius - "achado não é robado, pô !". Revelia - "Botô o pé no mundo". Sigilo profissional - "na miúda, só entre a gente, num espaia". Sucumbência - "a casa caiu" Usucapião - "tá dominado, tá tudo dominado".
sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Equívocos

- Teu pai morreu. Eu ali de pé, com o telefone junto ao ouvido direito, mão esquerda no bolso da calça, pois, ao levantar-me para atender ao chamado, havia pensado em retirar dali alguma coisa que, agora, nem mais sabia o que seria, ouvia aquela notícia dada assim de chofre, como uma martelada em tua testa. Em outras condições eu teria dito que aquilo não era modo de transmitir a alguém uma notícia tão extrema como essa, pois é de presumir que há entre pai e filho uma ligação afetiva que certamente exigiria um tratamento respeitoso, diferente daquele que me estava sendo dado, muito embora saibamos todos que. Nem se fosse um animal ! Veio-me à mente, vinda de longe, uma lembrança de infância, quando minha mãe, sentada em sua cadeira de balanço, me chamou até ela, colocou-me sobre os seus joelhos e pôs-se a contar uma história longa, cujo término jamais chegava, produzindo uma angústia enorme naquele menino que segurava nas mãos a bola de borracha com a qual. - Alô. Está lá ? Está lá ? Claro que estou aqui. Ou acaso pensas que desmaiei por força da maneira grosseira como me deste a notícia, estúpido ? Era o que eu diria, se não estivesse ocupado em lembrar-me da morte de meu cachorrinho, que minha mãe, rodeando muito, acabou por contar-me ao fim da longuíssima história, que tinha, mais tarde percebi, o efeito de um anestésico. Não me lembro qual foi minha reação naquele dia distante, mas certamente não foi o mutismo que o modo como este cretino acaba de. - Está lá ? Repito : teu pai morreu. Tive impulso de perguntar ao imbecil do outro lado da linha com quem ele imaginava que estava conversando. Acaso alguém liga e diz "teu pai morreu" e quem recebe a notícia põe-se a chorar, descabelado, agradecendo ao informante pelo trabalho que teve, talvez com interrupção de suas habituais atividades, ao vir dar-lhe tão desagradável notícia ? Se nem sei quem fala do outro lado da linha, como é que eu. - Aqui quem fala é Manoel de Arruda Botelho Ramos, proprietário de uma quinta em Santa Bão d'Aldeia, freguesia de Visconde d'Oiro, onde produzo vinhos de óptima qualidade. Pelo jeito o homem lê pensamentos, foi o que me veio à mente, por menos que o desejasse. - Vosso pai é meu funcionário há catorze anos. Desculpa : foi meu funcionário por catorze anos e hoje veio a falecer, após receber uma marrada de uma vaca prenha, que lhe custou a ele uma fratura na bacia e ela praticamente nada, pois saiu ilesa do embate. Não tínhamos como transportá-lo à sede da freguesia, visto que os dous veículos que normalmente nos servem, duas charretinhas traçadas a burro, a transportar pessoas e bens, tal como consta de sua licença, encontrava-se de lá da sede, levando víveres alhures. Deu-se que ocorreu nele, falo de teu falecido pai, uma hemorragia e lentamente vosso pai foi-se passando desta para a melhor, como aqui dizemos. A idéia de ter o pai morto, sem que algo nos prevenisse de que isso estava prestes a ocorrer, é uma experiência que eu, evidentemente, jamais havia experimentado, até porque aquele era o único pai que eu havia tido na vida. Mas tenho um amigo que passou por algo semelhante, quando seu pai. - Alô ? Está lá ? Preciso que me diga que recebeu o meu recado para que eu possa orientar-me sobre as providências a tomar. Repito meu nome é Manoel Ramos e estou a informar-vos que o vosso pai acaba de falecer e há que cuidar-se do féretro. Eu continuava ali parado, de pé, mão esquerda esquecida no bolso da calça, mas meu olhar foi lentamente atravessando o vidro da janela daquele segundo andar, onde fica meu escritório. O mar silenciosamente vinha e voltava, produzindo aquelas linhas brancas volumosas, paralelas à linha da praia. Alguns banhistas, poucos, ainda brincavam na água, talvez crianças ou jovens. Mais à esquerda o morro Dois Irmãos, que me evocou a música do Chico. A calçada exibia o desenho que eu estava acostumado a ver todos os dias, desde criança, quando meu pai me levava para o colégio, antes de começar o expediente em seu quiosque ali na praia. Eu pulava amarelinha na calçada de Copacabana, evitando tocar com os pés as faixas onduladas de cor escura. "Escuro é morte", expliquei a meu pai certa ocasião, quando ele quis saber que bobagem era aquela. Ele riu e eu, sem saber o que dizer nem o que fazer, pus-me a rir também. Ri naquela distante ocasião como estou rindo agora. Quer dizer que meu pai foi até hoje funcionário de uma adega, ou seja lá o que for, situada do outro lado daquele mar imenso? E foi ferido porque uma vaca maluca lhe deu uma chifrada nas ancas ? Conta outra, pá. - Alô. Está lá ? Repito : pela última vez aviso que teu pai. Tive ímpetos de dizer ao cretino lusitano tudo o que me vinha à cabeça, em retribuição ao susto que me havia produzido. Teria ele se equivocado ao acessar o código internacional ? Se a tal quinta tinha telefone para ligar para o Brasil, não teria telefone para ligar para um hospital que certamente haveria na sede da tal freguesia ? Ou ainda haverá em Portugal, em pleno século XXI, municípios que não possuem atendimento médico de urgência, mesmo depois dos rios de euros que a União Européia despejou no país, para enriquecimento de uns tantos de nossos ancestrais ? Preferi simplesmente colocar o telefone no gancho, até porque eu ria tanto que não conseguiria dar à minha voz o tom dramático de que eu necessitaria. Estiquei os braços, espreguiçando, e saí do escritório, em direção à praia. Atravessei a avenida, como fazia várias vezes por dia, e fui até a barraca de frutas, logo ali adiante, onde trabalhava meu pai. - E aí garoto ? Tudo em riba ? Vai um coco ? O Zelão era quase um irmão, pois começara a trabalhar na barraca de meu pai há muitos anos, até porque era bem mais velho do que eu. Tomei um gole da água de coco e perguntei por meu pai. - Ele não está. Passou por aqui um português que o convidou para ir ver umas garrafas de vinho que ele mandou vir de Portugal. Isso já faz umas três horas. Estou começando a ficar preocupado.
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Luar sobre Havana

  "Fidel Castro, 81, anuncia renúncia à Presidência de Cuba" Folha de S.Paulo, edição de 19.2.2008 "Fidel es de la única persona que hablo con adjetivos y superlativos. Cada siglo tiene su hombre que lo marca en la historia. El siglo XX es el de Fidel". Juan Almeida Bosque, Comandante de la Revolución No Malecón, pessoas ainda conversam, debruçadas sobre a mureta larga, onde um e outro atrevido senta-se, admirando, pela milésima vez, a água que, tal como as pessoas que por ali passam, nunca é a mesma. Viejos coches trafegam sonolentos em ambos os sentidos. Fords e Packards que testemunham tempos idos ou tempos que insistem em ficar, em imagens tão impensáveis como um desfile de mamutes ou desses megalossauros que o cinema faz renascer das cinzas anti-diluvianas. No ar, o eterno e enjoativo cheiro de charuto. A limpeza da rua destoa das paredes enegrecidas das casas, que lembram velhos mineiros que, chegando do trabalho famintos, sentam-se à mesa sem mesmo passarem pelo chuveiro, fosse embora ele apenas uma lata de banha vazia com providenciais furos nos fundos, suspensa a uma altura conveniente para recolher a água provinda da bica. E as crostas acumulando-se no rosto e nos braços, incorporando-se ao corpo, para sempre, tatuagens com figuras abstratas a registrar o passar do tempo. Assim o amarelo das fachadas, já descascadas, mais pelo desleixo dos moradores do que pelo inexorável rato que tudo come, o tempo. O que é de muitos não é de ninguém, não é isso ? A janela do sobrado em cuja soleira apóio os cotovelos também traz nas venezianas as onipresentes marcas do mesmo rato, o minúsculo roedor que nada deixa ficar como era, como diz a sabedoria hindu. Uma ou duas palhetas já deixaram o posto há algum tempo, vencidas pelo cansaço, sem que houvesse outras de plantão para substituí-las. O que resta de vidros na janela está surpreendentemente limpo, ainda que discutível seja sua utilidade, já que o vento contorna o obstáculo sem a mais mínima cerimônia. Na sala, o relógio na parede testemunha, na imobilidade dos seus ponteiros, o tempo que parou lá fora, por desnecessário. Como se quisessem mostrar a inutilidade de seus movimentos, diante da identidade entre o ontem e o amanhã. É um relógio simpático, sextavado, imponente em sua imobilidade absoluta, com o tampo de vidro limpíssimo, fruto dos cuidados de quem faz o que pode para conservar aquelas peças arqueológicas. Como um taxidermista que diariamente escova os dentes inúteis dos seus animais empalhados. Um móvel envidraçado, estrategicamente postado sob o aposentado marcador do tempo, portas de vidro translúcido, cujo largo bisotê multiplica os escassos objetos lá dentro guardados. Um bule com uma pintura bizarra, tendo no bocal um friso dourado; cinco xícaras de café com os respectivos pires, todos com a mesma pintura campestre e o mesmo arremate dourado do objeto maior. Alguns outros objetos anônimos passam despercebidos pelo olhar do visitante, em sua insignificância estética. Talvez uma geladeira sem marca, que, se fosse aberta, mostraria toda sua inutilidade, no vazio de suas prateleiras. Sobre a peça, um impensável vaso de louça com a boca levemente lascada e um ainda mais impensável conjunto de flores plásticas, cores desbotadas e um repugnante perfume de bolor. Quem as teria plantado ali ? Quando ? A que título ? Para remate, uma toalhinha de renda, já amarelecida, cujo bico pende além e abaixo do vaso. Repare o chão. São tábuas largas, enceradas certamente com sebo animal e lustradas com os pés envoltos em improvisadas luvas de algodão. Em frente ao desbotado sofá, um tapete ainda mais desbotado, a sugerir que muitas noites ali foram passadas em conversas intérminas, cujo conteúdo só as paredes conhecem. Sobre que falariam ? Sobre quem conversariam ? Seriam conversas descuidadas, entre um gole e outro de rum, ou sussurros, ditos entre um lance e outro de olhos para os lados, como se os espiões pudessem surgir do nada num átimo de repente, brotados da parede ? A mesinha no canto e a luminária claramente improvisada, pois ninguém venderia um objeto daquele formato e acabamento, completam a decoração do ambiente, algo próximo de uma cela franciscana, ou uma instalação de algum Braque cubano. Na falta da imagem do santo, a fotografia do bravo guerreiro e seu grito de guerra: hay que endurecer sin perder la ternura jamás! Também poderia ser hace de mi señor los brazos y los piés de tu misericordia. No quarto anexo, a cortina de voal baila solitária para uma platéia de fantasmas, uma sinistra dança do ventre por força da brisa que vem do mar distante. O colchão largo, posto diretamente sobre o chão, sugere a presença de um casal na casa. Ao menos naquelas dependências da casa. Um armário, apinhado de coisas impróprias a um quarto de dormir, demonstra que a casa do casal tem como limite as paredes do quarto. Não me atrevo a tocar em nada, como quem teme que o toque das mãos produza danos irreparáveis naquelas memórias. Lembro-me vagamente dos sonos longos que ali passei, quando a companhia justificava, ou nas noites de insônia, com um puro entre os dedos, saboreando sua fumaça dançarina. Em que pensava o jovem idealista entre uma tragada e outra do longo e saboroso charuto ? No futuro é que não estariam seus pensamentos, pois jamais fui sonhador. No passado ? Ainda menos, pois sempre fui pragmático. Noto, porém, que esse pragmatismo hoje assemelha-se a Fords e Packards que circulam pelo Malecón da minha mente, e que os rolos do charuto que subiam naquela época estão sendo substituídos por dois corregozinhos mornos que lentamente buscam seu caminho pelo acidentado terreno do meu encarquilhado rosto, como se descessem as encostas da longínqua e saudosa Sierra Maestra.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Vigarices

O Benedito é um motorista de praça de quem me sirvo quando o trânsito de São Paulo ameaça acabar com minha paciência. Como temos um único automóvel em casa, basta alguém manifestar o propósito de usá-lo para que eu, fingindo generosidade, prefira ir de táxi para as minhas andanças por aí. Pois o Dito é quase sempre o que está a postos no ponto de táxi ali da esquina. É um caboclo feito nas Conchas, segundo diz ele, fazendo trocadilho com a cidade onde nasceu e de onde vem seu forte sotaque. Faz umas observações muito sensatas, sendo, como tantos outros motoristas, de citar a Bíblia, de que traz um exemplar sobre o banco, que lê enquanto aguarda cliente. Numa das vezes em que entrei no carro, ele desligou o toca CD, onde rolava um disco de músicas caipiras. A meu pedido ele religou o toca-disco e eu, para surpresa dele, acompanhei o Pena Branca e o Xavantinho : "domingo detardezinha, eu estava mermo à toa, cunvidei meu cumpanhero pra i pescá na lagoa; levemo a rede de lance; ai! ai ! fumo pescá de canoa". Ele se admirou de minha versatilidade. Isso porque ele ainda não me viu fazendo dupla com o Sydney Sanches cantando a Morte do Chico Mineiro. "Fizemo a úrtima viage, foi lá pro sertão de Goiais". Aliás, o Sydney tem um primo que é motorista de táxi e faz ponto aqui por perto. E é parecido com ele. O mesmo cabelo que o Sydney herdou do pai. Coisas da vida. Mas voltemos ao Dito cujo. Passamos, dia desses, por uma praça, onde um rapaz fazia o famoso jogo dos três dedais e um grão de milho. Como o tráfego estava emperrado, deu para apreciar parte da encenação. Roda de cá, roda de lá, e o espectador não consegue acertar sob qual dos dedais está o milho. Prestidigitação, esclareço ao Benedito, nome técnico da arte de fazer os dedos serem tão rápidos que os olhos não conseguem acompanhá-los. Grego, Dito. É bom mostrar cultura numa hora dessas, mas nem sempre isso funciona. "Pra mim isso é vigarice mesmo, doutor", sintetiza ele, encerrando o assunto. Encerrando coisa nenhuma. Ele me fala do Largo Treze, lá em Santo Amaro, onde existem muitos daqueles prestiqualquercoisa, fazendo pouco do meu tolo exibicionismo. Um deles vende feijão de corda. "O senhor conhece? Pois ele vende cada baciada a dois barão". Barão, Benedito ? Dois real, vá lá. E qual a vigarice, Benedito? "É que em antes de encher a bacia com o feijão, ele coloca dentro uma bacia menor, com a bunda pra cima. Assim, fica um espaço vazio entre as duas bacias e quem compra o feijão leva aquele tanto de ar junto. Quando a pessoa faz atenção no dinheiro que vai entregar pro vendedor, ele, zas !, coloca o feijão no saquinho e o comprador não percebe a manobra". Prestidigitação, sem a menor dúvida, sentencio. E lá se vende de tudo. De tampinha de bideu a aparelho de vídreo e rádio de pia. Aparelho de vídreo me parece uma trouvaille digna do Guimarães Rosa, mas imaginar que alguém compra rádio apenas para pôr sobre a pia... Talvez coisa de cozinheira ou copeira, dessas funcionárias cujo espaço físico não passa daqueles dois metros quadrados da casa, se tanto. E tem o vendedor de ficha para telefone. Que nunca produz o prometido. "Mas quem é que conta o número de chamadas que se faz com uma ficha dessas ? E o vendedor vai lucrando em cima dos panaca. Compra ficha usada e vende como nova. É o que sempre digo: onde tem trouxa aparece sempre um esperto. Trouxa e boa cabeça juntos só na Bahia". Bahia, Benedito ? "Então não viu as lavadeiras voltando do rio equilibrando aquela trouxa de roupa enorme ?" Positivamente, o Benedito hoje está com a macaca. E por falar em macaca, sabe que eles também vendem passarinho ? Sei que isso é proibido, mas se brasileiro só fizesse o que é permitido, olha o desmazelo de gente de braços cruzados ! Pois eles vendem uns papagaios brancos que são uma beleza. Importados, Benedito ? "Cândida, seu doutor". Que cidade é essa ? "Cândida, QBoa, esses produtos que distintam as coisas", ensina-me ele. Eles colocam o papagaio num balde com cândida e, se ele não morrer no banho, fica com as penas desbotadas. O comprador só vai perceber quando o papagaio, se não morrer no caminho, trocar de pena na época da postura. "E lá tem sagüi, tartaruga, sanhaço, o que o doutor querer". E tem também caneta importada. Ele tira uma do bolso, muito bonita, cor preta brilhante, com uma estrela branca de seis pontas no alto da tampa e frisos dourados. Examino bem a caneta e lanço meu diagnóstico. Mas esta caneta é falsa, Benedito, feita na China, com toda certeza. Ele faz uma cara de espanto, pára o carro com ar indignado, dramatizando a cena. "Se isso que o doutor está dizendo for verdade, eu perdi vinte barão". E dá uma sonora gargalhada, desfrutando da peça que me havia pregado. Vinte reais, Benedito ? "Por uma Montebic o doutor queria que eu pagasse quanto ? O que conta é a carga, que é com ela que se escreve, não é aquela frescura toda em volta dela. Se eu saco de uma caneta legítima, alguém acreditaria que eu paguei 500 ou 600 barão ? E se o doutor, todo bacano nesse terno e com essa gravata de seda, sacar de uma destas Montebics, alguém vai acreditar que não pagou nem 30 real por ela ? Diga : vai ?" O Benedito, positivamente, sabe das coisas. ________________
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Bye Bye, Happy End

"O homem hoje dá-se conta dolorosamente de que nem as suas grandes religiões nem as suas várias filosofias parecem capazes de fornecer-lhe aquelas idéias enérgicas e dinâmicas que lhe dariam a segurança necessária para enfrentar as atuais condições do mundo." C. G. Jung, O Homem e seus Símbolos Os irmãos Coen sempre foram inseparáveis. Estudaram juntos cinema e são conhecidos como o diretor de duas cabeças. O mais novo, além de diretor e ator, também escreve livros de poesia e de contos, sempre com a irreverência que aparece em seus filmes, dos quais o mais famoso é, sem dúvida, Fargo, no qual o humor negro, que caracteriza a obra de Joel e Ethan Coen, está presente nas trapalhadas do marido que trama o seqüestro da própria esposa, filha de pai rico. Tanto quanto em A Roda da Fortuna (The Hudsucker Proxy), no qual eles fazem impiedosa crítica aos critérios morais do empresariado norte-americano, padrão que a globalização espalhou, qual metástase, para todo o mundo. Neste recentíssimo No Country for Old Men (traduzido no Brasil como Onde os Fracos não têm Vez, título que pouco diz sobre a profundidade da mensagem constante do filme), eles voltam com a bola toda. Alguns críticos vêem no filme uma nova crítica aos padrões de vida norte-americanos e um epitáfio aos filmes de caubói, os westerns de nossa juventude, no qual o "mocinho", pistola fumegante na mão, impunha a justiça e a ordem. Lá está o Shane, de George Stevens, que não me deixa mentir, mesmo com o título idiota que lhe deram entre nós, que serve apenas para mostrar que o autor de tal título pouco entendeu do filme que viu, se é que o viu. A terra onde não há lugar para os velhos também não tem lugar para os jovens, como o rapaz que, à falta de melhor currículo, apresenta-se como veterano do Vietnã, algo de que nenhuma pessoa esclarecida, como os irmãos Coen, tem motivo para orgulhar-se. E esse país tanto podem ser os Estados Unidos como o Japão, o Iraque ou o Brasil, pois a mensagem do filme é universal. A lei já não é imposta por um "mocinho" idealista, mas, ironicamente, por um velho desencantado, às vésperas de sua aposentadoria, depois de repetir a rotina de vida de seu pai e de seu avô. O progresso substituiu os cavalos pelas potentes pick-ups, o comércio ilegal de peles e uísque por carregamento de drogas, agora em nível internacional. Os cadáveres agora são tantos que nem os coiotes se dão o trabalho de devorá-los. O que há hoje e que havia ontem é a ganância e o dinheiro fácil, que abre portas e compra facilidades e consciências (repare no comportamento dos dois jovens que, tendo aprendido a "fazer o bem sem olhar a quem", depois de um deles haver, relutantemente, aceito o dinheiro da gratificação, põem-se a discutir sobre o destino dela, mandando às favas os escrúpulos, tal como teria feito certo militar ao aderir à revolução de 64, slogan hoje repetido em nosso país por muitos esquerdistas de ontem, até mesmo em nome da isonomia e da defesa das minorias e seu justo anseio de equiparação entre elas e as maiorias, até com criação de Ministério específico para isso e para gastos astronômicos em locais os mais inimagináveis). E é aí que aparece o grande personagem do filme, que, certamente, renderá um Oscar a Javier Bardem, cuja interpretação vem de criar uma dessas figuras cinematográficas inesquecíveis, tal como o Hannibal, de Anthony Hopkins, há alguns anos. É ele nada menos do que o Mal absoluto, o Diabo encarnado, que mata sem outro propósito que o de fazer justiça, ainda que a seu modo. Não é isso que vemos ocorrer em tantas partes do mundo, especialmente em nosso país ? Como o demônio que é, ele tem a onisciência e o dom da ubiqüidade. Ele sabe de tudo e está em toda parte. E, pavor dos pavores, é, como é próprio do capeta, do cão, do sem-nome, como dizia o nosso Guimarães Rosa, simplesmente imortal. Anton Chigurh (nome estranhíssimo, que não nos sugere nenhuma nacionalidade, mas cuja pronúncia assemelha-se a sugar, mesmo nada tendo ele de doce) é muito mais do que um psicopata e um matador de aluguel, até porque ele está acima de quem o contratou. Desprovido de emoção e sentimentos, a vida e a morte das pessoas pode depender do mero acaso, de um simples "cara ou coroa", ou, se o filme se passasse no Rio de Janeiro ou no Líbano, de uma bala ou uma bomba perdida. Não é por outro motivo que o velho xerife, já aposentado, confessa à esposa sua crença de que Deus abandonou os homens. Talvez porque, antes disso, tenha sido abandonado por eles. E, de quebra, ainda nos apresenta uma dificílima charada, representada por um sonho, que parece dizer-nos, junguianamente, que um sonho contém mais do que aquilo que ali vemos, até porque "cada sonho é um processo particular individual, e a forma definida que toma é determinada pelas condições do sonhador". Talvez aquilo fosse uma referência aos filmes, que, tal como nos sonhos, estão a dizer-nos bem mais do que aquilo que vemos na tela.
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Parole, Parole

  « Parole, parole, parole, parole/ parole encore des paroles/ que tu sèmes au vent. » Música de Chiosso, Del Re e Ferrio, versão francesa na voz de Dalida e Alain Delon, cujo vídeo pode ser apreciado no YouTube Ornella Vanoni se apresentava em São Paulo. O público exigia que ela cantasse seu grande sucesso "Parole, parole, parole". E ela nada. Pausa. "Sou do tempo em que se lia Rui no original", gabava-se o senhor grisalho, à saída do fórum. Falava assim de alguém que os circundantes aparentemente não sabiam bem quem seria. Talvez algum jogador de futebol (Rui, Bauer e Noronha, lembram ?). Falava em Rui da mesma forma como alguém perguntava na loja se já havia saído o último disco do Roberto. Coisa de íntimos. "Viu como o Fernando está envelhecido ?", comenta-se a boca pequena, como se o ex-Presidente pudesse ouvir o comentário e se aborrecer, vaidoso daquele jeito. O que o senhor grisalho queria dizer é que os chamados operadores do Direito, pois ele era um jurista, não mais se preocupam com a precisão da linguagem. Usam um adredemente (eu mesmo encontrei isso em várias sentenças e pelo menos em um acórdão, o que soa pior ainda quando a decisão nos é desfavorável) sem o mais mínimo (consulte a gramática se julgar errado o reforço pleonástico, que aprendi com o Geraldo Roberto, dos velhos tempos do Castelões) cuidado, mal sabendo que esse dúplice advérbio (sim, adrede já é um advérbio, minha senhora, o que dispensa o adverbiador sufixo mente) para mostrar cultura. Mal sabem eles que isso foi inventado pelo Dias Gomes, quando criou o seu prefeito Odorico Paraguassu (que nasceu no teatro e foi transferido, muito tempo depois, com pompa e circunstância, para a televisão, imortalizado pelo Paulo Gracindo, que, aliás, fora batizado com um incrível Pelópidas Guimarães Brandão antes de passar a ser Gracindo), autor de tantas outras barbarices como essa, se me permitem o neologismo. Havendo, aliás, quem diga que nem é coisa do falecido Dias Gomes, que teria aproveitado idéia alheia, no caso o Mário Palmério, salvo erro, o tal do Chapadão do Bugre, o que vivia encastelado em um barco, singrando os rios do Brasil central, como personagem dele mesmo. Ou um exordial (palavra que dá comichão no mestre Geraldo Arruda, que já baixou, por causa disso, muito lápis vermelho em prova da Escola de Magistratura sim, senhor), no lugar de petição inicial, ou um preopinante (que fazia as delícias do Ercílio, hoje transmudado em plantador de aspargos), no lugar de Procurador de Justiça, que oficia nos recursos, que "opina antes" da decisão do tribunal. Ou um sodalício, ou um curul ou tantas outras expressões bolorentas que tornam nosso português forense, ramo da tal "última flor do Lácio", algo que nem serve para demonstrar a cultura de quem escreve nem nos leva ao encanto trazido por uma frase bem construída, e muito menos transmite ao leitor precisamente a idéia que se pretendera transmitir. Lembro-me da reação de uma senhora que insistiu em ir assistir à sessão de julgamento do recurso que havia sido interposto a seu favor, nos tempos do Departamento Jurídico do XI de Agosto. Depois daquele falatório todo ela se vira para o advogado e indaga: "A final, doutor, ganhemo o perdemo ?" Registro, em público e raso, a bem da verdade, que isso não é fruto da pós-modernidade. Em meus tempos de solicitador acadêmico (hoje se fala em "estagiário de Direito", se não me engano) divertíamo-nos incluindo, à força de marteladas, nas frases mais corriqueiras, que a hipótese "não espertava disceptações", coisa linda que havíamos lido em votos do Ministro Orozimbo Nonato e que pouquíssimos leitores, nem mesmo sendo juízes, haveriam de entender. Nós muito menos. Mineiro de Sabará, a biografia dele divulgada pelo Supremo Tribunal Federal nos dá conta de que era conhecedor profundo da língua portuguesa, um "purista". Que quer dizer purista ? Quem fala difícil ? Quem faz questão de não ser compreendido ? Surpreendi certa vez um juiz, hoje já alguns muitos degraus acima disso, no momento exato em que revisava uma sentença que havia proferido. Descobri que ele escrevia o texto em linguagem de gente e depois, com tempo e paciência inimagináveis, ia substituindo palavras inteligíveis por sinônimos arrevesados, que caçava nos três dicionários abertos sobre sua mesa. Ser purista será isso ? As palavras nascem, vivem, transformam-se e acabam morrendo. Por vezes ressuscitam. Cito, dentre muitas, a palavra galera. Pergunte a cem jovens o que eles entendem por galera. O Aurélio derrama-se em muitas linhas para descrever as embarcações que assim eram denominadas, algumas das quais, como sabemos, tinham gurupés e três mastros de brigue, o que noventa e nove daqueles jovens desconhecem o que seja. Nem eu, aliás, sei o que é brigue. Como é de seu feitio, o tio do Chico não deixa os jovens ao desamparo, registrando que, por força de uma síncope, a mesma palavra passou, no jargão dos brasileiros, a substituir a palavra galeria, que é uma "espécie de tribuna para o público em certos edifícios". O que levou a um novo sentido, por extensão, diz o mesmo dicionarista : "o conjunto de pessoas que se acham na galeria". Ou seja, a turma, diz o mesmo Aurélio. A torcida, dirão eles, referindo-se a um jogo de futebol ou a um show de rock. E responda francamente : depois do jantar no restaurante você pede um café expresso ou um café espresso ? Se pediu o primeiro, o garçom deverá trazê-lo correndo, pois é a essa velocidade que a palavra se refere. Quando você despacha uma carta expressa é isso que você pretende. Já espresso é o café que é obtido espremendo-se um sachezinho numa máquina específica. O verbo imprimir apresenta dois particípios: imprimir e impresso. O verbo espremer também: espremido e espresso. Picadeiro também é cultura. A propósito disso, leio num desabafo de um leitor desanimado, que se refere aos nossos parlamentares como uma corja de larápios, algo com que certamente muita gente concorda. Para o tal leitor, como para tanta gente neste país, os políticos seriam todos iguais, "seriam uns a cara cuspida e escarrada dos outros". Paro a leitura e me pergunto : quantos leitores saberão qual a origem dessa feia expressão ? "Cuspido e escarrado"! Não haverá coisa mais elegante para usar ? Pois o mesmo Geraldo Roberto me ensinou que isso é uma corruptela de "esculpido em (mármore de) Carrara". Da mesma forma como quando chamo uma moça de "sincera" eu estou querendo dizer que ela foi esculpida em mármore puro, sem aqueles buraquinhos que exigem serem tapados com cera (isto é, "sine cera"). E acrescento : aquele larápio que apareceu ali em cima seria a assinatura de um político romano cujo comportamento o faria digno de nosso Congresso Nacional: Lucius Antonius Rufus Appius, que assinaria, como muitos de nós, abreviadamente: L. A. R. Appius. Si non è vero, è bene trovato, diria minha querida amiga e romancista Ada Grinover, que, por sinal, canta o "Parole, parole, parole" no original, como o fazia sua compatriota Mina, música essa que jamais foi gravada por sua colega Ornella Vanoni, que, naquela sobredita apresentação, saiu do palco pisando duro, ofendidíssima com a confusão feita pelo público.
sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Justiça e Caos

  Passado quase meio século de minha formatura, fico a imaginar que diriam nossos mestres de Direito Penal se se dispusessem a analisar a sociedade brasileira contemporânea. Ainda se pode falar no Direito como o "mínimo ético exigível" ? Tenho em mãos, ao redigir estas notas, o noticiário jornalístico destas últimas semanas. Por ele fico sabendo que determinado desembargador foi condenado pela prática do crime de falsidade ideológica1. Um magistrado ser condenado porque se excedeu ao revidar a um ataque à sua honra, ou que, como qualquer cidadão, envolveu-se em uma briga de trânsito será sempre para lamentar. Isso, porém, é compreensível especialmente se ele vive em uma dessas cidades estressantes que a incúria de nossos governantes permite que sejam construídas, com desprezo dos mais comezinhos princípios que deveriam nortear a convivência humana. Mas, amante da verdade por dever de ofício, é simplesmente inconcebível que esse profissional traia seus deveres funcionais, que dizem não apenas com sua propalada vocação profissional, mas especialmente com a confiabilidade da instituição a que ele pertence. Pois o noticiário nos diz que não só foi ele condenado como que sua pena teve a execução suspensa, nos termos da leniente e irresponsável legislação penal que temos hoje neste país. Mais : como decorrência dessa suspensão, o condenado foi autorizado a voltar a judicar. Em termos práticos, os advogados que doravante a ele se dirigirem para obter despacho em alguma petição, estarão a dirigir-se a um criminoso, que este é o título com que os magistrados se referem a quem tem pena a cumprir. Será para indagar se Sua Excelência não se sentirá constrangido ao ter de julgar caso envolvendo um colega específico, isto é, outro réu condenado por falsidade. Tal situação é tanto mais surrealista se nos lembrarmos de que, para inscrever-ser em concurso para ingresso na magistratura, o bacharel em Direito não pode apresentar "maus antecedentes", assim entendida até mesmo condenação por mera lesão corporal produzida em choque de veículos. O candidato a juiz não pode ter maus antecedentes; já o juiz, a existência deles não o impede de continuar no cargo. Isso quando ele não é "punido" com a inacreditável "sanção" representada pela aposentadoria com vencimentos integrais, imoralidade contra a qual somente agora a sociedade brasileira parece querer levantar-se, a julgar por projeto de lei apresentado pelo deputado federal Raul Jungmann2, que procura, assim, suprir a omissão do Supremo Tribunal Federal, ao qual compete tomar a iniciativa de um tal projeto moralizador. Relatam ainda os mesmos jornais que certo membro do Ministério Público, ao ser abordado por um motociclista desarmado, despejou sobre ele nada menos do que 10 (dez) tiros3, saídos, por sinal, de um revólver de uso exclusivo das Forças Armadas, que o chamado custos legis trazia consigo. Eu poderia ainda citar aquilo que vem ocorrendo em nosso Congresso Nacional, onde pessoas sob investigação não se pejam de participar do julgamento de colegas também sob investigação, criando-se uma inaceitável distinção entre "infração ética" e "infração meramente política", a tornar vazio o texto constitucional que nos impõe a todos, especialmente ao ocupante de cargo público, o respeito aos sadios princípios da moralidade e da impessoalidade. Diante de fatos como esses, que dirá o homem comum ? Como é possível dizermos a ele que, de fato, o crime não compensa ? Como poderemos nós, os chamados operadores do Direito, repetir essa desacreditada afirmação sem corarmos ? Vejamos aquilo que a doutrina mais equivocada chama de "ressocialização" do criminoso, palavra que não resiste ao menor sopro crítico para estar no chão, de onde jamais deveria ter saído. "Ressocialização" talvez signifique convencer alguém (não nos esqueçamos de que, em tempos passados, o condenado era, otimisticamente, chamado de "convicto", como o pecador que se confessa arrependido de seu pecado para obter o refrigério do perdão e voltar a pecar, como é dos humanos) de que o adequado padrão de conduta que a sociedade dele esperava não era aquele que o levou à prisão. Que ele doravante siga os padrões exibidos pelos homens de bem, eis o que lhe propõe o Estado ressocializador. "Qual deles, cara pálida ?" indagará o condenado, tal qual na conhecida anedota. "Acaso deverei espelhar-me no desembargador condenado por falsidade ? No fiscal da lei que portava ilegalmente arma de fogo ? Talvez na pessoa do Presidente do Congresso Nacional e seus discutíveis rebanhos". O sistema punitivo brasileiro, que de sistema tem muito pouco, tais os odiosos casuísmos que encerra, é, sob certos aspectos, um incentivo à prática do crime. Veja-se o recentíssimo caso de certo empresário, arrecadador de dinheiro não contabilizado para a campanha do Partido dos Trabalhadores, que, condenado por sonegação fiscal, teve a pena cancelada e voltou à condição de réu primário, graças ao pagamento, na undécima hora, dos tributos até então sonegados4, benesse que lhe é assegurada pela lei n. 10.684/2003, aprovada por nosso nada edificante Congresso Nacional para beneficiar os criminosos de colarinho branco. Se esse tardio arrependimento eficaz faz parte de nosso sistema penal, porque motivo ele não alcança o ladrãozinho que, preso logo em seguida ao roubo ou furto, devolve à vítima, tão espontaneamente quanto fez aquele conhecido empresário, aquilo que à vítima deve pertencer ? O legislador, para beneficiar os já beneficiados sociais, eliminou aí a distinção que sempre houve em nosso Direito Positivo entre infração criminal, infração civil e infração administrativa, entidades que tinham vida própria, como vasos não-comunicantes. Consumado o crime e descoberto seu autor, pouco nos importa se o agente, na esfera civil ou naquela administrativa, veio a indenizar a vítima. Resta puni-lo exemplarmente, para escarmento daqueles cujo lume ético bruxuleia. Aceitar que o pagamento dessa indenização a qualquer momento tenha reflexo na esfera penal é enfraquecer perigosamente o sistema punitivo, sabido que o que o lastreia é, principalmente, a convicção dos comuns mortais de sua inexorabilidade. Nossos mestres nos ensinaram que a justiça é o caminho para pôr ordem no caos e chegarmos à paz. Opus justitiæ pax. Em livro ainda não editado, tento demonstrar que hoje em dia, tanto intra muros como no campo internacional, o que se vê é exatamente o inverso : o caos nos envolve e invade nossa sociedade, sem que possamos deter essa maré montante, pois as instituições brasileiras e os organismos internacionais mostram-se extremamente débeis para realizar o necessário para que essa crescente anomia seja domada. Simon Blackburn, falando da história da Filosofia, mostra que, ao longo do tempo, nenhuma das três perguntas clássicas (quem sou ? de onde venho ? para onde vou ?) foi respondida de forma satisfatória pelos filósofos, criando-se sempre um pêndulo dialético : posta uma tese, surge sempre uma tese contrária (ou antítese, isto é, anti-tese). O encontro entre essas duas forças provocará uma terceira : a síntese. E quando pensamos que tudo está resolvido, essa síntese se torna uma nova tese, que, à sua vez, provoca o aparecimento de uma nova antítese. E por aí vai. Em razão disso, ele classificou os pensadores como se estivéssemos diante de um campeonato de futebol: absolutistas versus relativistas, tradicionalistas versus pós-modernistas, realistas versus idealistas, objetivos versus subjetivos, racionalista versus construtivistas sociais, universalistas versus contextualistas, platônicos versus pragmáticos5. Cuidasse ele do Direito e certamente incluiria em seu rol outra disputa : positivistas versus jusnaturalistas, como se uma coisa excluísse outra. Um autor respeitável nos advertia de que "a Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão : o que é e como é o Direito ? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito"6. Dito de outro modo: o conhecimento do Direito Positivo não exclui o questionamento da aeticidade ou mesmo antieticidade nele contida. Sabemos todos que a chuva de aeticidade que se despeja sobre nossa sociedade já atinge proporções diluvianas, e tudo o que temos é um surrado guarda-chuva ético cujo modelo, ao que parece, já saiu de linha. Nestes tempos pós-modernos de pragmatismo suplantando idealismo, hedonismo desenfreado e relações internéticas, esperar que as pessoas se debrucem sobre os livros clássicos de deontologia talvez seja pedir demais, ante a presteza do Google, essa babá eletrônica especializada em imbecilizar internautas acríticos. Em momentos como este, talvez não seja o caso de citarmos juristas ou políticos, mas de irmos aos poetas, como o imortal criador do famoso Estatuto do Homem, de lembrança mais do que necessária, nosso Thiago de Mello, que nos alimentarão com sua invejável esperança: "Madrugada camponesa,faz escuro (já nem tanto),vale a pena trabalhar.Faz escuro mas eu cantoporque a manhã vai chegar". __________________ 1 Cf. Jornal internético Migalhas, edição de 26.12.2007 2 "Um dos privilégios mais antigos da toga - a aposentadoria remunerada como punição disciplinar a juízes processados criminalmente - pode estar com os dias contados. Proposta de emenda constitucional em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara prevê o fim do benefício, que é exclusivo da magistratura. 'Esse é caso flagrante de privilégio porque é uma trincheira de defesa corporativa no mau sentido', diz o deputado Raul Jungmann (PPS-PE), autor do projeto. 'Provoca escândalo e perplexidade o fato de que aquele que usurpou de suas competências, desonrou o Poder Judiciário e promoveu o descrédito da Justiça seja agraciado com a concessão, à guisa de punição, de um benefício pecuniário, suportado por toda a sociedade.' A punição remunerada tem amparo na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), editada no regime militar, em 1979, mas contemplada pela Constituição de 1988. A Loman estabelece seis penas disciplinares, graduadas segundo a gravidade da 'ofensa à ordem jurídica e à dignidade do cargo': advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade com vencimentos proporcionais por tempo de serviço, aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais por tempo de serviço e demissão. A aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço é aplicável ao magistrado eventualmente enquadrado em quatro situações: negligência manifesta no cumprimento dos deveres do cargo; conduta incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções; escassa ou insuficiente capacidade de trabalho, e procedimento funcional incompatível com o bom desempenho das atividades". (Fausto Macedo, jornal O Estado de São Paulo, edição de 27.12.2007) 2 Cf. Jornal internético Migalhas, edição de 8.1.2008 2 Cf. Verdade: um guia para os perplexos, Civilização Brasileira, 2006, p. 13 3 Cf. Jornal internético Migalhas, edição de 7.1.2008 4 Cf. Jornal internético Migalhas, edição de 8.1.2008 5 Cf. Verdade: um guia para os perplexos, Civilização Brasileira, 2006, p. 13 6 Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, Martins Fontes, 1999, capítulo I  
quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Décimo Conto

"A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer." Mário Quintana O pai da mãe dos meus netos resolveu fazer uma surpresa para eles. Queria dar-lhes um presente de desaniversário. Presente de aniversário todas as crianças sempre ganham, ora bolas. Entretanto, presente de desaniversário só os netos dos avós espertos. Mas, que presente ele poderia dar, se os filhos de sua filha tinham de tudo ? Pensou em dar um par de meias, com um furo no dedão, mas descobriu que meias com furo no dedão eles tinham quase meia dúzia. Só de pé esquerdo ! Pensou em dar uma bola de futebol furada e rasgada pelo cachorro da casa, mas no quintal dormiam umas três ou quatro dessas bolas, plantadas dentro de um vaso de barro. Acho que eles pensavam que dali nasceria um pé de bola de futebol. Só que eles tinham preguiça de regar o vaso e, como se sabe, sem água não há bola de futebol que se transforme em pé de bola de futebol. Pensou em dar cocô de cachorro, para eles espalharem pelo gramado do quintal. Mas já havia tanto cocô de cachorro espalhado que seria difícil encontrar algum que fosse diferente daqueles que já existiam. Que coisa difícil é escolher um presente de desaniversário ! "Já sei", disse ele, "vou dar um carrinho de corda sem a roda dianteira". Bobagem ! Eles já tinham uns dois carrinhos faltando pelo menos uma das rodas. "Um jogo de lego faltando uma porção de pecinhas é um bom presente" pensou o esperto velhinho. Mas desistiu da idéia, porque sua filha lhe disse que eles só gostavam de brincar com as peças que não conseguiam formar nenhuma figura completa. Cavalo sem orelha, castelo sem telhado, trenzinho sem fumaça, navio sem ondas de mar, gavião sem céu pra voar. Era isso que eles gostavam de montar com aquelas peças de lego que espalhavam pelo chão, sempre procurando aquelas que não estavam ali. Formar alguma coisa com peças existentes qualquer um forma, diziam eles. Foi ao shopping e procurou na loja de brinquedos alguma coisa que faltava no quarto dos meninos. "A senhora tem antipatia para vender ?" perguntou o avô de meus netos à gentil senhorita que os atendeu. Ela fez uma cara de quem não estava entendendo nada e ele precisou explicar. "Eu preciso dar a meus netos alguma coisa que eles ainda não têm". Ela fez uma cara alegre e disse que ali não se vendia antipatia. Aliás, todos os vendedores tinham simpatia para dar e vender. "Então eu prefiro que eles me dêem, assim eu economizo uns tostões", disse o sovina. "E me veja aí um pacotinho, desses bem pequeninos, de pó de tristeza, coisa que falta naquela casa que tem tudo". Ela cochichou bem baixinho no ouvido do velhinho que venda de tristeza estava proibida pela dona da casa, aquela senhora gordona que quase não cabia naquele espacinho que ficava entre a caixa registradora e a parede dos fundos. Quando a mulher dava gargalhadas, a impressão era que aquela gordura passaria por cima do balcão e cairia no chão, esparramando-se toda. E as pessoas escorregariam ali e ficariam também dando risada deitadas no chão. Ele era meio surdo e não entendeu direito o que a gentil senhorita disse, mas pela cara dela ele concluiu que tristeza ali nem pensar, inda mais com aquela senhora alegre esparramada atrás da caixa registradora, sempre pronta para explodir de alegria. "Então vamos fazer o seguinte", disse ele: "faz de conta que meus netos são seus filhos e a senhorita vai escolher um presente para cada um de seus imaginados filhos. Mas eu quero que a senhorita me faça um desconto". Ela concordou com a proposta do velhinho ladino e os dois ficaram passeando por aqueles corredores como se fossem dois namorados, pois ele era meio atrevidinho, fingia que estava tendo uma tontura e pegava no braço das moças, quando elas eram bonitas. Só perto das moças bonitas ele tinha tontura. "Quando eu era mocinho", foi dizendo o avô dos meus netos, "assim como a senhorita, mas não tão bonito, o dinheiro era o mil réis. Dez contos de réis era muito dinheiro, dava pra comprar a metade de uma loja do tamanho desta" exagerou ele, que gostava de aumentar um ponto naquilo que ele contava. "Quando meu avô ia comprar alguma coisa, ele sempre pedia desconto. De tostão em tostão se chega ao milhão, havia ensinado o pai dele. Um dia ele foi comprar alguma coisa que custava dez contos de réis, que era um dinheirão, não sei se eu já disse isso para a senhorita. Não me lembro se era uma bengala nova, ou um par de botinas, ou um navio, ou um cachimbo, ou um par de nuvens. Mas sei que custava dez contos de réis. Aí, como fazia sempre, ele pediu ao vendedor que lhe desse desconto. E o homem, seduzido pela simpatia de meu avô, coisa que ele deixou em testamento para os filhos e os netos, como a senhorita pode perceber, caiu na cilada e lhe deu o tal desconto. Aí meu avô disse que então não tinha de pagar nada pela mercadoria que estava levando, porque os dez contos do preço menos o desconto que o vendedor havia dado era igual a zero. Dez contos menos dez conto é igual a nada, percebeu ? E saiu da loja com o presente debaixo do braço, para espanto do vendedor". "Acho que meu avô era advogado", rematou o simpático velhinho.    Do livro Descontos para meus netos (em preparação)
sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Tempo (O)

"Todos querem viver para sempre. Mas têm horror à velhice". Cícero Se você reparar bem, o tempo não existe. Qual o cientista que conseguiu defini-lo ? Nenhum. Dizer que o tempo é uma relação entre o antes e o depois é apenas trabalhar a partir de duas palavras, cujo conceito foi estabelecido pelo ser humano. Que é o antes ? Que é o depois ? Antes de quê ? Depois de quê ? O agora é esse momento que acaba de passar. Ou seja, que não existe mais. Ouço pessoas dizerem "farei tal coisa quando tiver tempo". O tempo, portanto, para essas pessoas, é uma coisa que se tem ou não se tem, como uma frieira ou um automóvel. Onde se adquire ? Como se conserva ? Onde se guarda ? É evidente que uma frase dessas não quer dizer coisa nenhuma. Ou quer dizer : eu não vou fazer agora. Esse "eu não vou fazer" deveria ser "eu não quero fazer" ou "eu não posso fazer". Entretanto, como somos todos uns covardes, inventamos circunlóquios, palavra que nem sei bem o que significa, para não dizermos que temos medo de tentar. Ou que estamos convencidos de que não temos capacidade para fazer aquilo que ousamos imaginar que poderíamos fazer. Disse-me o psiquiatra Paulo Gaudêncio que uma cliente foi procurá-lo para falar do complexo de inferioridade que a atormentava. "E quem disse à senhora que isso é apenas um complexo ?" Acho que ele perdeu a cliente. Azar o dela. Ele certamente lhe demonstraria o mau uso que ela estava fazendo do tempo, o que quer que fosse isso. "Quando as crianças crescerem eu me separo de meu marido" ouve-se com freqüência. Não seria mais adequado dizer "eu não tenho coragem de assumir a minha vida" ? O tempo de decidir é agora. É claro que há quase sempre variáveis que devem ser levadas em consideração. Uma mulher, cliente do mesmo Paulo, casada, começou, por nada, a fazer curso de inglês. Mas, com um casamento complicado, sem filhos, ela resolve estudar inglês ? "É para espairecer o espírito", dizia ela ao marido. Quando ela conseguiu dizer "I love you" e "goodbye my dear" ela comprou uma passagem de avião, a prestação, só de ida, e se mandou para os Estados Unidos, onde construiu uma vida sem aquele chato do seu marido, que até hoje não entendeu nada. Evidentemente, quando ela se decidiu a fazer o curso de inglês não tinha consciência de que já havia decidido abandonar o marido e o país para recomeçar a vida longe. Assim são tomadas muitas de nossas decisões. Só tomamos consciência delas depois de muito tempo. Eis aí mais uma prova de que o tempo não existe. Lembro-me de uma mulher de pedreiro que me procurou, nos tempos do Departamento Jurídico do XI de Agosto, dizendo o diabo do marido, aquele imprestável. Eu, embora ainda sem a experiência que o tempo, mesmo inexistindo, nos traz, disse-lhe mais ou menos isso : a senhora não é obrigada a morar com ele. "E se Deus o livre ele cair do andaime, para quem vai ficar a aposentadoria dele ?" disse-me ela, pragmática a mais não poder. Quantas mulheres não diriam a mesma coisa se dissessem o que pensam de fato quando fingem estarem preocupadas com os filhos e o futuro. Que é o futuro ? Aliás, quem foi ou é juiz de família conhece bem o que se esconde por trás do interesse do pai ou da mãe em ter a guarda do filho, que será, quase sempre, cuidado pela empregada ou pela avó paterna ou materna, pois o detentor da guarda não tem tempo para a criança. "Quem efetivamente ama o filho pensa primeiro nele" eu disse a vários pais e mães que tentavam convencer-me de que estavam criando mil dificuldades para o ex-marido ou a ex-esposa em nome do bem-estar da criança e não por mera vingança, como é a regra. Não me lembro de ter visto um único caso em que o casal estava, de fato, empenhado em construir um futuro melhor para o filho. O fato é que, em nome desse momento que ainda não veio e nem sabemos se virá, deixa-se de preocupar com o momento presente. É isso bem próprio do cristianismo: sofra agora e resigne-se hoje porque no futuro haverá a compensação. Ou seja, você, velhinha e caquética, encontrará finalmente o homem de seus sonhos e será feliz para sempre. Num asilo. Mas eu falava do tempo, e ele, que não existe, vai passando e logo a crônica chega ao fim. O amigo Cleanto me presenteia com a gravação de uma música belíssima, que fala das coisas simples. E lá pelas tantas, diz a letra que "El amor es simples y las cosas simples las devora el tiempo". O tempo como um devorador é bem próprio do budismo. Repare na conhecida figura da deusa de quatro braços, esposa de Shiva. Nos pés de Kali há um ratinho, que significa o tempo, o que devora as coisas. É isso um convite à nossa reflexão, pois o cristianismo também nos adverte que seremos idiotas se nos preocuparmos com o futuro. Tanto orgulho, tanta ambição, tanta auri sacra fames. Entretanto, quem garante que amanhã você acordará ? Está na carta de Tiago, capítulo 4, versículo 14 : "Vós dizeis que hoje ou amanhã iremos a tal cidade, lá ficaremos um ano, negociaremos e ganharemos dinheiro. No entanto, não sabeis o que sucederá amanhã Que é a vossa vida?" E Mateus, no versículo 34 do capítulo 6 diz o mesmo : "Não vos inquieteis pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo". E acrescenta a famosa frase, popularizada por ninguém menos do que o Renan. Falo do senador, não do autor da Vida de Jesus. Eis a frase renaniana: "Basta a cada dia suas atribulações". Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã; porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo, completa o evangelista. Tempus fugit nos dizia um belo relógio de pé situado na sala das becas do Tribunal de Alçada Criminal, uma sala curiosa cuja parede era coberta com armários individuais, cada um com o nome do respectivo juiz numa plaqueta. Quando era promovido, morria ou se aposentava alguém, a plaqueta do juiz que ocupava posição de antiguidade imediatamente inferior à dele, caminhava uma casa, passando a ocupar o local que era antes ocupado pela plaqueta do juiz agora ausente. E esse caminho da plaqueta tinha a direção da porta, junto à qual ficava o armário relativo ao juiz mais antigo na casa, a indicar que o próximo passo o levaria à rua. Ou à morte. Os dois pêndulos, de certa forma, diziam isso, naquele movimento de ir daqui para lá e vir de lá para cá. Várias vezes parei diante dele, que não sei se ainda estará lá, e indaguei dele o que ele queria dizer ao lembrar-nos disso. Ele, filosoficamente, se limitava a repetir tempus fugit, tempus fugit, tempus fugit.  
sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Presente (O)

  "Vingança é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais" Guimarães Rosa, Grandes Sertões: Veredas Quando aquela criança nasceu, seus olhos fizeram a alegria do pai. Mais que alegria: júbilo. Filho de japoneses, sabia alguma coisa a respeito de fator dominante. Cabelos pretos e olhos puxados vão passar de pai para filho até o fim dos tempos, brincava o amigo médico. Aquele era o primeiro filho. A tensão pela espera, gravidez difícil, risco de aborto, meses e meses de repouso imposto à mãe. "Faça tudo o que puder, doutor". Foi feito. E a criança ali estava. Testa grande, cabelos negros, olhos amendoados. Os parentes vinham chegando do interior do Estado para conhecer o primogênito. A emoção dos velhos nipônicos, com sua gesticulação comedida, as palavras soltas, desligadas umas das outras, mas suficientes para indicar que agora podiam morrer em paz. Os olhos se perpetuariam, se dependesse do Ivanzinho. O nome foi escolhido sem titubeio. Já antevia o pai as travessuras do petiz. Visita à casa dos avós, ainda engatinhando, a puxar a toalha da mesa da sala, sempre longa, qual convite. E o jarro de flores se espatifando no chão, com barulho que assustaria o guri. O pai o ergueria com orgulho, prometendo à avó comprar outro igual. Sua mãe sorriria, aquele sorriso oriental enigmático, entre feliz e incrédulo. Um jarro chinês daqueles não se compra em qualquer esquina, meu filho, diria a mãe, se ela falasse. Quando atirasse um dos gatinhos pela janela do apartamento, o pai o repreenderia. Mas uma repreensão pro forma. Aos amigos ele já teria a desculpa. Com um nome desses, só poderia ser terrível. E beberiam à saúde do jovem czar. A tez morena da mãe daria ao jovem sansei um rosto belo, a que as moças do bairro não resistiriam. Teria de comprar outro telefone, pois o de casa mal daria para os namoros do galã. Não se falava ainda em telefone celular, uma pena. Freqüentando a academia, o nosso Bruce Lee desenvolveria a musculatura. Mens sana. A frase era idiota, ele reconhecia, mas a síntese dos latinos, nessas horas, é inigualável. O filho seria um ás na computação, que mal engatinhava no outro lado do mundo. O pai, modesto servidor público, certamente obteria uma bolsa de estudos para o jovem. Esses políticos que vivem nos pedindo votos, que se colocam à disposição, apareça, apareça, tapinha nas costas. Queria ver agora. Tenho um filho que é uma fera. No Brasil não há curso para ele. Preciso de uma bolsa para alguma faculdade no Japão. A melhor. Prova seletiva ? Ele vai tirar de letra. E vai voltar pê-agá-dê. Bota cargo na frente dele ! O pai sonhava, como sonham os pais de primeiro filho. A realidade foge dos pés e quem se disponha a botar-lhes sapatos de chumbo corre risco de vida. "Você diz isso porque já tem quatro. E nenhum saiu ao que você desejava. Você é um despeitado, isso é o que você é. Espere só para ver. Tomaremos juntos a primeira bebedeira dele. Um brinde ao sucesso !" E os copos se tocariam enquanto o álcool aumentaria a emoção do mais recente pai do quarteirão. Ou da rua, ou do bairro, ou do mundo. Porque os sonhos não se medem em anos, dias ou horas. Pára o tempo. E corre o tempo. Sonha-se com séculos em segundos. E vivem-se os séculos sonhados. Chegou do trabalho exausto. Fora um dia e tanto. Ele ainda se via chegando da maternidade, caixa de bombons na mão, presenteando cada funcionária. Feliz Natal, Feliz Natal. Para o senhor também. Um garotão e tanto. Papai Noel foi generoso com o senhor. Parabéns. Feliz Natal. Parabéns, hein ? Feliz Natal para vocês todos. Foi dormir como quem voltasse de festa de formatura. Tateou no escuro o interruptor da luz e ainda teve lucidez para regular o despertador para as oito horas. Talvez a mulher já tivesse alta no dia seguinte. O parto não fora normal ? Tudo não correra bem ? "O senhor tenha paciência que é para o bem do nenê. A mãe vai para casa mas o bebê fica, para uns exames. Coisa de rotina". Como rotina ? Acaso estavam supondo estarem a lidar com um débil mental ? Como uma coisa normal exige a permanência do filho na maternidade ? Que raio de rotina é essa ? A mãe nada falava. Ele já se acostumara aos silêncios dela, como que aprendidos da sogra. Uma baiana com paciência oriental. Mais que paciência: sabedoria. Não é necessário exame algum para que uma mãe saiba o que ocorre com o filho. Há uma ligação telepática entre eles. Talvez até mesmo durante a gestação a mãe intuíra alguma rejeição inconsciente dela mesma quanto ao seu bebê. Ela não se culpava pelo que estava ocorrendo. Era jovem e saudável, mas sabia que os cromossomos têm lá os seus caprichos. A incidência de tantos desvios em pais de idade mais avançada não significava, ela bem o sabia, que pais mais novos não corressem tal risco. Risco ! A palavra lhe soou dura. Como se ter um filho com síndrome de Down fosse uma tragédia. Ou seria efetivamente uma tragédia ? Lera muito sobre isso. Talvez por pura intuição. Ela acreditava nessas cosas. Sabia até que alguns pais assumiram com coragem os filhos nessas condições e ela se dispunha a fazê-lo. Mas, e o marido ? As bebedeiras constantes foram rareando com o nascimento das filhas. Quando nasceu a terceira, desistiu de vez dos planos que reservara para seu sucessor. Aceitou, com resignação, a sorte madrasta e a vasectomia. A expressão era batida mas para os amigos só encontrava essa quando comentava a terceira decepção. Era aceitar o que viera. Não estavam com saúde ? Pois isso é o que basta. "Falar é fácil, meu caro". E assim o Ivan foi crescendo fisicamente, sempre ligado à mãe, que decifrava os sons guturais que ela dizia serem palavras. Silenciosamente, Ivan ia aprendendo coisas. E ele sabia coisas como o pai jamais imaginaria. Sabia distinguir amor de desprezo. Sabia entender o gesto entediado do pai quando o filho tentava aproximar-se dele, perguntando algo com aquele vocabulário ininteligível que irritava o próprio garoto. Sabia reconhecer a vergonha das irmãs, quando aparecia alguma colega e ele ficava ali na sala, parado, olhar vidrado, boca aberta, onde não cabia a língua enorme, sem noção de oportunidade nem de discrição. Mas ele ia aprendendo coisas. Sem que ninguém ensinasse, deu para ligar a televisão. O pai na repartição, a mãe fazendo compras, as irmãs no colégio e ele aprendendo coisas ali na sala. Talvez os métodos mais modernos, a utilização do visual em lugar do gráfico é que tivesse despertado no garoto uma inteligência embutida. Ele agora distinguia mais do que nunca antes. Ele sentia mais do que nunca sentira antes. Ele aprendia a ser. E sabia, sabia cada vez mais. Em sua solitária sala de aula, ele desdobrava-se de atenção nas experiências químicas. A repetição das aulas televisivas era praticamente desnecessária, no caso dele. Ele seria capaz de reproduzir gesto a gesto as experiências da aula que estava sendo reprisada pela enésima vez. Os pais não notaram quanto ele se mostrava menos irritadiço agora. Nem mesmo a mãe, outrora tão arguta em acompanhar os seus tão poucos progressos, achava agora tempo especial para dedicar a ele. Passou a ser um dentre os filhos, mesmo não tendo, aparentemente embora, a mesma capacidade das irmãs de aprender e comunicar-se. O que a mãe não sabia é que ele aprendia mais depressa do que elas. E Ivan sabia o que queria saber. Cada vez mais. O Natal daquele ano seria especial. Os familiares do interior do Estado, depois de tantos anos, viriam à Capital desfrutar do convívio dos parentes distantes. Mais distantes ainda após a decepção que o filho lhes dera. O nome da família se extinguiria. E foram anos e anos de mágoa. Chegara a hora de tentar reunir a família, dando-se por inevitável o que inevitável fora. Os velhos, desta vez, aceitaram o convite. Os preparativos começaram alguns meses antes. Os pais e as meninas se reuniam à noite, uma vez por semana, para programar, nos mínimos detalhes, a grande festa de reconciliação. Ivan tudo via e tudo entendia. E também compreendia que naquela festa não haveria lugar para ele. Falava-se nos presentes dos avós, nos pedidos das meninas, nas surpresas que cada um faria. Ninguém pensou em Ivan como amigo secreto de alguém. Nem se Ivan desejaria ter um amigo secreto. Mas ele tinha. Jamais se soube como ele reuniu o material no sótão da garagem. Mas ali, silenciosamente, ele se pôs a preparar o presente que destinaria a alguém, na noite de Natal. Ninguém percebera ele apropriar-se de uns fios de cobre e de um interruptor de luz sem uso. Experimentou seu disparador automático, utilizando-se da porta da garagem. O funcionamento deu-lhe um ar de vitória e um sorriso que ninguém diria ser angelical. Palmas para si. Mas faltava a pólvora. Ele sabia que tudo viria a seu tempo. E sabia certo. Mês de dezembro, chegaram os fogos de artifício, com os quais se comemoraria, como nos velhos tempos, a passagem de ano. Tudo programado e providenciado com toda antecedência. Com o aumento das preocupações com os últimos preparativos da família para a festa não foi difícil para o garoto surrupiar pó dos artefatos. Não cometeria a imprudência de subtraí-los, como fariam pessoas menos inteligentes do que ele. Isso despertaria a atenção do pai. Preferiu retirar de cada peça uma pequena porção de material explosivo, drenando-o para uma lata de bolacha. Tinha todo o tempo do mundo para a delicada operação. Após dias e dias de paciente garimpagem, lá estava a lata com a munição suficiente para a conclusão do presente natalício. E veio o grande dia. Na sala, em clima de festa e animação, a excitação pelo momento das revelações. Os nomes iam sendo retirados do vaso, lendo-se cada papelzinho, com indicações das pistas para que o presenteado lograsse alcançar a surpresa que seu secreto amigo havia preparado. Tudo após alguns risos, procuras e descobertas, com beijos e abraços de confraternização, a que o garoto permanecia alheio. Até que surge o papelote tão aguardado por ele. "Papai quarto" dizia o bilhete, com aqueles garranchos que tornavam impossível adivinhar quem seria o amigo secreto. Ou que revelariam quem era o amigo secreto, dependendo dos olhos de quem lesse o bilhete. Mas a mensagem era óbvia: o amigo secreto era o pai, o chefe da casa. E o local onde ele deveria procurá-lo era o quarto do casal. Procurando dramatizar sua fingida satisfação, o escolhido acendeu a luz das escadas e subiu apressadamente, pulando os degraus, dois a dois. Intimamente não lhe agradava a idéia de pôr-se a procurar por todo o quarto um presentinho qualquer. Aquelas brincadeiras intermináveis iam minando-lhe a paciência, logo dele que se prometera comportar-se na noite de hoje. Chegou ao patamar e girou com disposição o trinco da porta, vamos logo acabar com isso. Quando os pingentes do lustre da sala tilintaram, as pessoas não se deram conta de que a explosão fora no andar de cima. O avô, já meio surdo, chegou a falar em chuva próxima. Na cadeira de balanço, até então de uso exclusivo do chefe da casa, o sorriso do Ivan, permanentemente pendurado no rosto, tornou-se agora um pouco maior. Ele aumentou os movimentos do seu brinquedo, sem tirar os olhos do alto da escada, de onde um rolo enorme de fumaça começava a querer descer os degraus. As pessoas corriam de um lado para outro, quais formigas na chuva. E o garoto balançando-se na cadeira que agora seria só sua. Ele sabia e sentia coisas. Mais, cada vez mais.
sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Lendas Reais

  As pessoas que nos honram com sua atenção, lendo o que escrevemos, costumam fazer os melhores juízos daqueles que se atrevem a narrar-lhes fatos. "Que imaginação prodigiosa tem fulano !" Por vezes chegam a expressar isso que se poderia chamar de inveja : "Quem me dera escrever com tanta facilidade como você !" Ou, tentando ser originais: "Você usa mais a inspiração ou mais a transpiração ?" O que eles não supõem é que a maioria das histórias que inventamos, eu e todos os que escrevem, está ali, ao lado de quem nos lê. Prestassem mais atenção e descobririam isso. Podemos acrescentar ou retirar um dado mais revelador, nunca empregamos o nome batismal dos envolvidos, alteramos o sexo e a nacionalidade dos personagens, quando isso se mostre conveniente, mas a imaginação do escritor geralmente se encerra aí. Somos como esses fabricantes de rede de pesca : amarramos espaços com barbante. Veja o caso desse incensado "Caçador de Pipas", da autoria de um escritor cujo nome nenhum de nós consegue guardar, por mais que tenha apreciado o livro dele. Algumas pessoas que haviam lido o livro antes de mim juraram que era autobiográfico. O personagem é um afegão que foge para os Estados Unidos, onde se torna escritor. O autor, que nasceu no Afeganistão, fez o mesmo roteiro. O personagem casa-se com uma conterrânea, ao fim de peripécias de toda sorte. O autor é casado com uma afegã, cujo nome tem quase o mesmo som do nome da personagem do livro. E daí ? Imaginemos que eu lhes fosse falar da importância do nosso anjo da guarda. Então eu citaria a história de um homem casado que viajava para uma cidade do interior, por uma estrada mal conservada, como tantas em nosso país. Ao desviar-se de um buraco, o carro, desgovernado, sai pelo acostamento, bate numa pedra e capota. O motorista, embora meio atordoado, verifica que não sofreu dano físico nenhum. Quando ele tenta sair do veículo, este começa a rolar, e segue ribanceira abaixo, dando voltas e mais voltas em torno de si. O motorista, mais tonto ainda, continua vivo, agradecendo a seu anjo da guarda por aquela segunda ajuda. Para exagerar minha narrativa, direi que, num derradeiro giro, o automóvel cai no rio que passava, exatamente nesse momento, lá no fundo do vale, e se põe a afundar, com o motorista lá dentro. O anjo da guarda providencia a abertura da porta do lado do motorista, que consegue sair do automóvel e nada até a margem do rio, satisfeito por ter um anjo da guarda daqueles. Ali, exausto, ele estende o corpo e cai no sono. Seu anjo da guarda, mais cansado do que ele, deita-se a seu lado, e cai num sono ainda mais profundo. Graças a isso, nenhum dos dois percebeu a aproximação de uma cascavel, que pica o pescoço do motorista, que, finalmente, morre. É ou não é uma história bem inventada ? Se achar que sim, cumprimente a filha do tal motorista, a Vivi, que trabalha no Soho e me apara as madeixas de vez em quando. Foi ela quem me contou essa história incrível, quando lhe perguntei como seu pai havia morrido. Querem mais ? Imaginem uma dentista brasileira passeando, em gozo de férias num desses países exóticos que nossa ignorância chama de Arábia. Pode ser o Egito, o Paquistão, a Índia ou qualquer outro daqueles nos quais as mulheres vestem até o rosto e os homens usam turbantes. Fazendo um parêntese, uma das cenas mais incríveis que eu não tive coragem de fotografar, foi ver numa loja de Paris uma mulher, numa loja elegantíssima, trajando burka, abrindo e experimentando o conteúdo de frascos de perfume, sem jamais exibir o rosto. Imagino uma cena dessas num filme do Woody Allen ! Voltando à minha personagem. Ela está numa grande praça, cansada das visitas a lugares onde se permite o ingresso de pessoas do sexo feminino. Senta-se num banco de jardim, para continuar logo mais aquela peregrinação turística. Aproxima-se um senhor mais velho do que ela, que estende logo ali um tapete. Ela imagina que ele se ajoelhará no tapete, dobrará o corpo na direção de Meca e passará a entoar algum cântico, como se fosse um mantra islâmico. La illaha il Allah, Muhammad u rasul lullah. Ou qualquer coisa semelhante. Para surpresa dela, não é bem isso o que acontece. Ele, que trazia nos ombros dois sacos de couro, um amarrado no outro, à moda do que faziam os garimpeiros no velho oeste norte-americano, um na frente do corpo e o outro fazendo contrapeso, nas costas, desce os dois sacos. Abre o primeiro deles e dali retira um número inacreditável de dentes. Repito: ela é dentista. Logo, não tem dificuldade em diagnosticar que aqueles dentes, a maioria cariados, são dentes humanos. Ele espalha os caninos, os molares e os incisivos alheios sobre uma das metades do tapete. Depois disso, abre o outro saco e dali retira número incalculável de dentaduras, que enfileira delicadamente uma ao lado da outra. Ela se põe a fotografar aquela incrível obra de arte, mesmo não atinando com a mensagem que aquele artista pretendeu transmitir. Ele fala um inglês bastante razoável e ela se põe a falar sobre obra de arte. Ele não está entendendo nada, até porque, como diz a ela, mal entende de sua arte. "Qual a sua arte ?" é a indagação óbvia. Sou dentista, diz ele. Ela, desconfiada, põe-se, delicadamente, a fazer algumas indagações técnicas e conclui que, de fato, ele é seu colega. Se aquilo não é uma bizarra exposição de arte, que diabos é aquilo ? É a indicação aos passantes de que ele é dentista. Apenas isso. Vendo o número de dentes que ele já extraiu, os interessados terão mais confiança em entregar a boca aberta ao boticão do homem. Simples, não ? E as dentaduras ? Antes que ele responda, uma senhora, bem velhinha, abaixa-se e começa a experimentar uma a uma as dentaduras, pois lhe faltam na boca todos os dentes. Devolve uma, muito apertada, depois devolve outra, um tanto folgada, e, finalmente, com um novo sorriso no rosto, pergunta a ele qual é o preço da dentadura que lhe serviu nas murchas gengivas. Ele diz o preço, o marido dela tira de uma trouxa algumas notas e lá vai a velhinha exibindo seu novo sorriso aos circunstantes. "Mas como o senhor consegue fazer tantas dentaduras ?" Ele não faz. Ele as compra. De quem ? Dos familiares dos defuntos, claro. Qual a necessidade que um morto tem de ser enterrado com os dentes postiços ? Além de poderem servir a novos donos, sempre proporcionam aos herdeiros um dinheirinho extra, pondera com toda propriedade. Que escritor teria imaginado uma história dessas ? Eu de mim apenas lhes transmito a explicação que a doutora Junqueira me deu quando me admirei das estranhas fotos pendurados nas paredes da sala de espera de seu consultório dentário. E que ela havia tirado em sua recente viagem ao Egito. Ou à Índia. Ou ao Paquistão, sei lá. PS - Já que você não acreditou na veracidade do que acaba de ser lido, clique aqui.  
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Secretárias do Lar

  "A FALTA QUE ELA ME FAZ" Título de livro de crônicas do Fernando Sabino, de 1980, onde ele não se refere nem à mãe, nem à esposa, nem à amante, nem à namorada Na Europa, as casas não possuem mais a chamada empregada doméstica. Sinal da evolução social, pois se cuida de função humilhante, incompatível com a chamada dignidade humana, dizem os esquerdistas brasileiros, que conhecem o problema apenas por fotografia. Mais digno do que isso é essas moças e senhoras pedirem esmola junto ao semáforo e fazer careta quando você as ameaça com algum emprego. Como os filhos delas têm a promissora e incipiente carreira de malabarista, com direito a foguinho nas extremidades da vareta que eles giram diante do teu carro parado enquanto a luz verde não chega, logo logo as mães deles vão nos brindar com algum espetáculo de strip-tease. Quem viver verá. Na Noruega, que conheci ao vivo e a cores, funcionária da embaixada de certo país sul-americano teve problemas com o Departamento de Imigração, pois havia levado na bagagem uma brasileira para exercer lá a tal humilhante função, apresentada então, como convém a brasileiros, como parente do casal. Como a cor da pele dos membros do casal não combinava com a da sua alegada familiar, os fiscais do tal Serviço de Imigração fizeram a chamada campana durante algumas semanas e descobriram que ali estava uma imigrante ilegal, que foi deportada para o país de origem. Ter imigrante ilegal em casa só sendo senadora norte-americana, esposa de presidente que gosta de charutos e futura candidata à presidência do país. Para alegria das vizinhas, falo novamente da Escandinávia, que não suportavam aquela absurda exibição de poder econômico por parte do casal sul-americano. Devem ser traficante de alguma coisa para um gasto desses, teriam cochichado. Quando digo que na Noruega a faxina da casa é feita uma vez por ano, as pessoas mais sensíveis saem de perto. "Só pode estar bêbado para querer que acreditemos nisso !" Essa faxina é feita na véspera da Páscoa, pois eles levam isso de "passagem" ao pé da letra. Não houvesse a Páscoa, nem haveria a tal faxina anual. Feita, aliás, pelos donos da casa. Quando muito, os vizinhos fazem um mutirão, na base do eu ajudo a limpar a tua e você ajuda a limpar a minha. E aquilo vira uma festa de congraçamento, que até tem nome específico que, como não acontece com mais freqüência, não entrou para o meu magérrimo vocabulário norueguês. Espero que o Terje Borresen, que está aprendendo português apenas para ler o Circus no original, se manque e me ajude. Aproveitando, é claro, para perguntar à esposa brasileira por que motivo deverá andar ele a fingir que é aleijado físico para me atender. Acho que quem deu uma mancada fui eu, Terje. No Brasil, de fato, graças aos sindicatos petistas, as empregadas domésticas descobriram seus direitos, o que só pode ser aplaudido pelos que dizem acreditar em igualdade social. "Isso que a senhora está mandando que eu faça não se inclui entre os deveres de uma secretária do lar" disse uma delas a uma amiga nossa, que lhe havia pedido que lhe fritasse um ovo, algo próprio de uma cozinheira, como sabemos. Como colocar naquele apartamento minúsculo uma empregada doméstica, uma lavadeira, uma passadeira, uma cozinheira e uma mordoma é um problema que não pertine a elas, como diriam se tivessem sido alunas da professora Fonseca Rolim. Pena que os sindicatos petistas não se lembrassem de que jus et obligatio sunt correlata, coisa que não traduzo porque não mais sei o que isso quer dizer. Bacharelices ? Never, never more ! A Noruega, aliás, atingiu tal ponto de evolução que um funcionário encarregado da limpeza das salas da Universidade de Oslo ganha cerca de 1/3 do que ganha um professor da mesma universidade. E se acha tão importante quanto o diretor, já que ninguém se apresenta para aquele serviço altamente relevante. Minha mulher ocupava uma sala com direito a seu belo nome numa plaqueta na porta. Dentro da confortável sala, mesa, computador, estante para os inúmeros livros e o indefectível sofá, onde todo ser humano dá suas cochiladas depois do almoço. Diante da nudez do assoalho, dei a ela de presente, num acesso de saudade dos rincões sudamericanos, um tapete peruano, com não mais de 1m por 0,50m. O diretor administrativo, delicadamente, ponderou que aquilo certamente traria problema, pois quando o encarregado da limpeza semanal da sala foi contratado não havia aquela fonte de trabalho adicional. Ou ela tirasse dali o tapete ou o enrolasse na véspera da limpeza semanal. Aliás, os empregados noruegueses recusam promoção, pois o adicional mínimo que lhes será posto no salário não compensa o aumento de responsabilidade. Os efeitos deletérios do "bolsa família" já são lá conhecidos há muitas décadas. Voltemos, porém, ao Brasil. Amigo nosso, em viagem de negócios pela Europa, telefona à mulher, para ter notícias da família que aqui deixou, disposto a pagar a dinheirama que isso custa a um membro da outrora chamada classe média, hoje trilhando a mesma senda dos dinossauros, do macaco leão dourado, das baleias e outros animais menores. A empregada, toda solícita: "vou chamar". Larga o telefone e anda três ou quatro quarteirões para avisar a patroa, que estava no cabeleireiro, que o patrão queria falar com ela. Que não demorasse. Deve ser a mesma secretária do lar que, nova na casa assobradada, quando do outro lado da linha perguntaram "de onde falam", não teve dúvida: "de debaixo da escada", que era onde ficava a mesinha do telefone. Já o Zé Francisco, membro da mesma classe em extinção, graças à vagabundagem oficial proporcionada pela demagógica "bolsa família", paga, aliás, pelo imposto que não temos mais coragem de sonegar, economizou e foi com a mulher até Buenos Aires, aproveitando que a gangorra cambial pende a nosso favor atualmente, graças aos demagogos do lado de lá da fronteira, que isso não falta na América latina. Como todo turista brasileiro que se preza, trouxe um casaco de couro legítimo, coisa mais fina. Que certo dia deixou inadvertidamente fora do armário e foi parar na máquina de lavar roupa. Sorte do porteiro do prédio, que teve neste inverno as noites mais bem agasalhadas de sua vida. Até porque o que conta é matar o frio e não a belezura, né não, doutor, como explicou ele ao generoso doador. E houve aquela faxineira que era um azougue. No que a Maria Helena foi dar suas aulas de Direito Espacial, ela resolveu limpar os livros das estantes, onde já se viu aquela poeirada toda, dona professora. Quando a distinta professora voltou, à noite, quase teve um chilique: os livros estavam todos limpíssimos, agora arrumadinhos de acordo com o tamanho e a cor da lombada. Isso de "assunto" é coisa que a Zenóbia nem sabe como que se escreve. Quando a dona da casa conseguir arrumá-los novamente tal como estavam antes da tal faxina, certamente já será hora de limpá-los novamente. E aí, salve-se quem puder! A ignorância, certamente, não é privilégio das empregadas domésticas. Em nome da contenção de gastos, empresas contratam pessoas que não têm a menor familiaridade com a atividade que vão desempenhar. Numa das lojas de uma rede de supermercado de nome francês, por exemplo, atendia, na seção de pães, uma moçoila cujo sotaque mostrava não ser francesa nem paulista. Perguntei-lhe quanto custava o croissant. A cara que ela fez daria a impressão de que lhe fiz alguma proposta indecorosa. Outra casa de nome elegante, de finíssima aparência, nos chiquérrimos jardins, serve doces estupendos. Pedi à moça que me preparasse um frappé de coco. "Nós não temos". Então ponha uma colher de sorvete de coco num copo alto, complete com leite e bata no liquidificador. "Mas isso é milk-shake", diz ela. Em inglês, o verbo é to shake; em francês, é frapper, digo-lhe eu. Querer que uma simples atendente de balcão saiba essas coisas é ranzinzice de velho. Mas quem cobra o que eles cobram por um reles sorvete deveria retribuir com um serviço à altura. Pelo menos uma balconista trilingüe. Não acha a senhora ?
sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Ordem e Progresso

"Se um observador de Marte pudesse examinar o comportamento dos homens na Terra, jamais esse observador teria a idéia de que o comportamento humano pudesse estar sendo dirigido pela razão; menos ainda por uma moral responsável." Konrad Lorenz Há um filme do Sam Peckinpah, que era neto de um cacique navajo e que morreu, precocemente, aos sessenta anos de idade, alcunhado pela crítica de "poeta da violência", pois iniciou isso de mostrar as cenas mais cruas em slow motion, o que dilui o impacto daquilo que ali é mostrado, no qual filme, logo no início, umas crianças brincam pondo fogo nuns insetos e divertindo-se com os escorpiões contorcendo-se antes de morrer. The Wild Bunch, em inglês, o filme chamou-se Meu Ódio será sua Herança, no Brasil. Embora de 1969, o filme é de uma atualidade impressionante, no que diz com a desmistificação dos heróis, coisa que os faroestes dirigidos pelos brancos até então não haviam feito, considerando que os verdadeiros donos da terra, os indígenas, é que eram mostrados como os vilões da história. Como seria a biografia de um Buffalo Bill mostrada por um pele-vermelha ? Não é, porém, de escorpião que pretendo falar, mas de formigas. Uma de minhas diversões de criança era perturbar a caminhada ordeira das formigas cortadeiras. Impressionava-me isso de elas saírem de casa, em fila indiana, subirem na árvore, cortar um pedaço de folha, cujo tamanho é maior do que qualquer delas, e voltarem, sempre em fila indiana, para dentro da toca, onde depositarão aquele pedaço de folha naquele cantinho ali à esquerda, como diz uma tabuleta posta logo depois da entrada, onde outras folhas estão produzindo o fungo que alimentará a colônia, que, assim, produzirá novas formigas, que colherão mais folhas, que. Eu interrompia com o dedo aquela fila, fazendo um risco perpendicular a ela, apenas para observar a corrida circular frenética das formigas, temporariamente privadas da segurança do caminho que a primeira da fila havia traçado. A ordem imposta tem essas desvantagens, filosofava eu ainda criança. E falo também de outros insetos. No verão, em dia e hora previamente traçados, de um buraco do chão saía um enxame de siriris, que é como eram chamados uns insetos alados que, mais tarde, vim a saber pertencerem à família das térmitas. Eles voavam em nuvem, tentando escapar dos passarinhos que, previamente avisados por algum quinta-coluna infiltrado na toca, os caçavam aos magotes. Ao fim da revoada os que se salvavam perdiam as asas e iniciavam nova vida, infestando os móveis de madeira de alguma casa próxima, já sob o nome de cupins. Também me atraíam as abelhas, um inseto extremamente simpático, que, sem haver feito curso de engenharia, havia descoberto que os casulos hexagonais permitem o melhor aproveitamento do espaço da colméia, ao contrário do que ocorreria se essas casinhas fossem redondas. E resistem melhor ao impacto do peso, mais do que se fossem uns cubos. E eu ainda não sabia que o cérebro de uma abelha é do tamanho da ponta de uma agulha de costura. Com o tempo vim a aprender que tanto as formigas, como os cupins e as abelhas apresentam invejável organização social. Aquela dança, formando um oito (aliás, o 8, deitado, é o símbolo do infinito), que elas fazem não é algo gratuito. A posição da figura funciona como uma agulha de ímã, indicando às colegas de profissão onde se encontra a fonte de pólen e mel que a dançarina acaba de encontrar. E o tamanho da figura desenhada indica se o estoque da fonte pode ser considerado pequeno, médio, grande ou extra large, como se estivéssemos experimentando cueca. Além disso, as tarefas são distribuídas entre os membros da colônia, onde há nítida distinção entre operários e soldados, coisa que os chineses conhecem muito bem. Isso para não falar na rainha, que, tanto quanto as súditas, é predestinada a isso desde o momento do nascimento. Konrad Lorenz nos ensina que esses insetos não precisam de um Moisés a descer de um monte com as tábuas da lei a ser mostrada aos seus liderados. Os dez mandamentos, no caso dos insetos, já vêm impressos no cérebro (!) deles quando nascem. Ele chama isso de imprinting, o que me faz pensar no tamanho do carimbo que imprimiu essas regras no cérebro (!!) dos insetos. Ele descobriu também que não há, entre os patos e seus familiares, qualquer escola de natação, ao contrário do que pensávamos. Saiu do ovo, o patinho, tanto quanto o marrequinho e seus demais primos todos, se encaminha para a água e passa a dar show aquático, sem isso de ter mãe por perto avisando para prender a respiração, mover esta perna, agora aquela outra, cuidado com a câimbra !, você está cansado ?, quer que eu peça pro professor para tirar você da água ? Mãe de pato simplesmente confia na Natureza e naquilo que foi impresso no cérebro de seu filhinho querido. Ao contrário das nossas, aquela chatice !, que de tanto nos mimar nos deixou nessa insegurança que anos de psicoterapia não conseguem eliminar. Aliás, o Lorenz jamais encontrou pato com complexo de Édipo. Eis o que eu queria dizer: os insetos e as aves não precisam colocar pavilhão nacional por todo lado para aprenderem que a ordem não leva necessariamente ao progresso. Se levasse, as abelhas hoje produziriam mel light e as patas botariam ovos com menos colesterol. Os edifícios altíssimos construídos pelos cupins ainda não contam com elevador nem escada rolante. Que progresso é esse ? Aliás, que é progresso ? Em compensação, à medida que os cérebros foram aumentando de tamanho, as possibilidades de combinações entre os estímulos recebidos foram atingindo proporções assustadoras. À meia dúzia de ordens impressas pela natureza no cérebro (!!!) dos insetos seguiu-se um número incontável de regras de conduta, muitas delas adquiridas pelo aprendizado, à medida que o cérebro aumentava de tamanho. Uma dessas regras diz respeito à liderança do grupo. Enquanto entre as formigas e as abelhas o líder é predestinado, entre as aves e os animais há todo um ritual para a escolha desse líder. Durante muito tempo se pensou que imperasse a lei do mais forte. E isso tinha sua lógica. Quando dois cabritos monteses trocam testadas, embate cujo som ecoa por todo o vale, excitando as fêmeas, que aguardam com qual deles acasalará, para produzir rebentos da melhor linhagem, a finalidade não é o mais forte eliminar o mais fraco. É apenas isso: decidir quem está em condições de liderar ao bando e produzir filhotes sadios. Entre alguns animais, é o mesmo Lorenz quem nos adverte, essa luta não é tão incruenta assim. Chifradas, mordidas e coices podem, de fato, produzir nos disputantes tantos ferimentos que só o mais robusto sobrevive, se algum deles vier a sobreviver. A regra na Natureza, porém, continua a mesma: é preciso selecionar bem o macho, para a perpetuação da espécie. Algo bem diferente quando se cuida da escolha de um presidente da República, por exemplo. Descobriu-se, porém, que entre os primatas inferiores (não nos esqueçamos de que o ser humano é classificado, por ele próprio, de primata superior) há uma variante dessa regra: um dos candidatos à liderança utiliza de algum estratagema que não implica a presença de mais força. É o trunfo da esperteza. Torna-se líder, então, não o mais forte, mas o mais esperto. E isso não nos deveria surpreender, pois essa malandragem é fácil de constatar na vida animal. De onde vem a palavra "estelionato" ? Do latim, claro: stelio, stelionis. E a que se referia esse nome ? Simplesmente ao camaleão. Tanto que a palavra também era empregada para designar alguém safado. Quibus modis stelionem istum cohibeam ? "De que modo vamos enquadrar esse patife ?", como diríamos hoje de algum de nossos políticos. E a patifaria do camaleão consiste precisamente nisso: ele se adapta ao ambiente, mudando de cor, como, para ser repetitivo, a maioria de nossos políticos. Mas não é ele o único a proceder assim. Falo do camaleão. O polvo também tem esse dom de adaptar-se ao ambiente em que se encontra. É cinza se está no meio de rochas, vermelho se circula por entre corais. Há insetos que parecem folhas de árvore; outros parecem galhos secos. E tudo isso com uma finalidade: disfarçar-se para poder dar o bote; ou para prevenir-se diante da possibilidade de um bote alheio. Não dá para não deixar de comparar com a política, é ou não é ? Noto que a conversa apenas começou e a página já chegou ao fim. Eu pretendia falar ainda do tal "primata superior" e de algo que a Rita Lee certamente definiria com uma pergunta: "onde foi que o Roque errou ?" Fica para outra semana.
sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Dia de Prova

A voz da mãe ecoou pelo corredor. "Levante-se que já é tarde e hoje é dia de prova". A moça sentou-se na cama. Frase perfeita, pensou. Caso típico de ênclise. Não se começa frase com pronome oblíquo. Próclise obrigatória. A partícula apassivadora está sento atraída pelo advérbio de negação. Não se começa. E o sujeito ? Evidentemente é frase. Frase não é começada por pronome oblíquo. Nota dez. Eu falo da primeira. Da frase da tua mãe. Dentro da cabeça da moça as duas vozes se entrecruzavam. Perguntava uma, respondia a outra. E ela imóvel na cama, olhar parado, atravessando a janela. Já é tarde. Sujeito indeterminado. Simplesmente é. Reforçado pelo advérbio de tempo. Ma também poderia ser tarde. A tarde é que é. Muito bem, muito bem, mas, me diga: e aquele que: Que já é tarde. Como se classifica ele ? Próclise outra vez. O como atrai a partícula se. Ele não está na forma oblíqua porque é o sujeito da frase. Ele é classificado como. Não fuja da pergunta. Eu quero saber a função sintática daquele que. Que já é tarde. Enquanto saía do pijama, lentamente, com gestos de slow motion, ela ia recordando as funções do que. Nenhuma se encaixava. Próclise novamente. Nenhuma é pronome negativo que atrai a partícula apassivadora. Está fugindo novamente, garota. A função sintática do que ! A função sintática do que, guria. Começou a ficar nervosa. "Levanta, menina. Levanta que você vai chegar atrasada na escola". Uma batidinha na porta mostrava a preocupação da mãe. Dois erros em uma única frase, concluiu a aluna. Mamãe estaria ferrada se estivesse no meu lugar. Levanta você ? Onde estamos, dona Maria ? Chegar na escola ? Quem chega, chega a algum lugar, Pode chegar em ônibus, em bicicleta, em trem. Mas chega a, dona Maria. Ela se espantou repetindo, mentalmente, as palavras do professor. Reparou, bem reparado, que o que lhe perseguia. Lhe perseguia ? Mas isso é linguagem de jornal, menina ! Que a perseguia ! Que você vai chegar atrasada. Mas esse que é diferente. É o porque, em forma sintética. Porque você vai chegar atrasada. Síncope ! Seria síncope ? Levou a mão ao peito. Palavra mais azíaga! Azíaga ou aziaga ? Notou que o nervosismo aumentava, por menos que o quizesse. Ou seria quisesse ? Não era a primeira vez que isso lhe acontecia. Noite em claro estudando e na manhã do dia seguinte esse repentino esquecimento, essa sensação de que faltava alguma coisa para ainda estudar. Ou faltava muito. Ou faltava tudo. E o nervosismo, ela bem o sabia, poria todo o seu esforço a perder. As palavras não lhe sairiam com naturalidade. Erros paumares como esses poriam tudo por água à baixo. Aquela confiansa em si ir-se-ia esgarçando. Ou próclise ? Aquela confiança em si se iria esgarçando ? Mas, e o cacófato ? Meu Deus ! E crase diante de palavra masculina ! Água à baixo. Você está mal, guria! Muito mal. Apreçou-se ainda mais. Agora era um filme do Carlitos, ela enfiando as meias, calçando os sapatos aos pulos, como se a preça impediria a cabeça de pençar. Impediria ? Ou impedisse ? A guria paçou pela cosinha xispando. Ou teria sido pela cozinha ? A mãe dissi qualquer coisa sobre alimentar-se bem, não vá desmaiar outra vez, boa prova, confiansa em ci. Ela não ouvia mais nada. Estava correndo em diressão ao ponto de ônibus. Paratodos. Do latim omnis, omne, dizia o ex-seminarista que lecionava português no colégio. Omnibus. Dativo: para todos. A flor do Lácio, a despresada flor cujas sementes geraram tantas árvores ingratas. A menina admirou-se do seu discurço. Estava introjetando o mestre. Intro-jetar. Lançar para dentro. Olha aí o latim perseguindo-a novamente. Per-seguir. Raios de seminarista imbessil ! Seminário, lugar de muito sêmen. Riu interiormente da piada que o próprio profesor uzara em aula, maliciozamente. A aproximação do ônibus devolveu-a à realidade. O coração disparou. Perseguindo-a ? Você disse perseguindo-a ? Próclise em caso de um particípio ? Mas seria aquilo de fato um particípio ? Achou que estava com taquicardia. Latim, de novo. Latim, não, sua burra: grego. Cardios é coração e taqui é pequeno, porém em grego. Lembre-se de taquigrafa: aquela que escreve com pequenos sinais. Escrita curta. Caligrafia, escrita bonita. Como é feia a sua caligrafia ! Se é cali, não pode ser feia, menina. Ainda uma vez era a voz introjetada do afetado professor. O pensamento era um barco sem rumo, tentando pousar em algum porto. Pousar ? Barco pousa ? Estendeu o brasso. Ou extendeu o braço, sei lá. Já não sabia mais o que dizer, o que pensar. Alguém governa o pensamento ? Subiu os degraus e entrou no veículo. Frase correta, pois ninguém sobe no ônibus. A não ser que se trate de alguém que vá viajar no teto do coletivo, um desses pingentes atrevidos que de vez em quando se esborracham lá embaixo. Coletivo: adjetivo designativo da finalidade do meio de transporte, veículo destinado não a transporte individual como o automóvel, mas ao transporte de muitos ao mesmo tempo. Transporte coletivo. O adjetivo coletivo se torna o substantivo coletivo. Como é mesmo o nome dessa figura de linguagem ? Pensou consultar a gramática do Luft, mas o ônibus estava apinhado de gente. Pensou consultar ou pensou em consultar, ein, diga lá. Chegou à catraca e abriu a bolsa à procura do pace escolar. Ou passe escolar. Ou bolça. A cabessa agora rodava. Dentro dela havia um carroucel. Ou caroussel. Ou carroceu. Ou carrosseu. Ou. Meu Deus ! As pessoa dentro do ônibus olharam assustadas quando o grito saiu. A senhorita está passando bem ? Sim, obrigada. Iço paça. Ou passa. Sei não. Não passou. A cabessa continuava a jirar. Abriram a janela. Uma arajenzinha é bom pra isso, disse alguém. Uma senhora ofesseu-lhe o lugar. Ênclise, claro, ênclise. Ou isso seria uma próclise ? Ela já não via nem ouvia nada. Um ruído surdo atravessava seus ouvidos. Uma escuridão diante dos olhos. O suor frio gotejando na testa. Ela está muito branca, gente. Pare o ônibus, pare o ônibus ! Inútil. Aquele rádio berrando um rock daqueles, quem ouviria a ordem ? As pessoas iam subindo e descendo. E ela ali sentada, imóvel, olhar perdido além da janela. O carrossel agora girava mais lentamente. As luzes do parque de diversões iam-se acendendo. Ênclise. A cor voltava-se-lhe às faces. Bonito isso ! Mesóclise, é claro. O lhe substituindo o deselegante suas. A cor estava de volta às faces dela. Frase de quitandeiro, menina. Não esperava isso de uma aluna como você ! Como você é uma frase ambígua, professor. Ele corou. Sabe o que é, dona Norma ? Não é que ela não estude. Estuda até demais. Eu acho que é isso: minha filha estuda demais. Mas ela deve de ter algum problema psíquico, porque ela fala tão bem, tudo tão certinho, mas na hora da prova eu não sei o que se passa na cabeça dela. "Eu não sei, dona Norma. Volta pra casa triste, se tranca no quarto e não diz quase nada. Não chora, não ri, não faz comentário nenhum. Outra vez, mãe. Outra vez. É só isso que ela me diz".