Meu pai fumava cigarros Yolanda, que, por sinal, era o nome de minha mãe. Eu tomava banho com sabonete Eucalol e passava Antisardina no rosto, para eliminar aquelas malditas espinhas, e Gumex na cabeça, para assentar meus cabelos. Já minhas irmãs usavam Royal Briar, "o perfume que deixa saudade", até porque o Maderas Del Oriente era muito caro e a Água de Colônia, com estampa da catedral e tudo, era privilégio de nossa mãe, quando ia à missa.
Quando tomava o bonde, à saída do colégio, eu ficava no estribo, driblando o cobrador que vinha atrás da gurizada, com notas de dinheiro dobradas entre os dedos. De vez em quando ele registrava o dinheiro recebido, puxando uma alavanca que produzia um som específico. Nós, que notávamos que os toques eram em número menor do que as passagens vendidas, cantávamos : "blim, blim, dois pra Light e um pra mim". A Light era a proprietária da linha de bondes. Aliás, bond queria dizer qualquer coisa, menos referir-se ao veículo que a Electric Bond & Share havia colocado nos trilhos brasileiros. Quando o bonde chegava ao alto da rua Amaral Gama, depois de sair da Voluntários da Pátria, em Santana, já quase sem fôlego pela subida que havia vencido, nós aproveitávamos a diminuição da velocidade dele e saltávamos, como se aquilo fosse um avião e nós trouxéssemos nas costas um pára-quedas, que evitaria que nos esborrachássemos nos macadames, como por vezes acontecia. Macadame era o aportuguesamento da palavra McAdam, talvez o introdutor daqueles paralelepípedos com que eram calçadas as ruas, antes da introdução do asfalto, que teve a grande vantagem de impermeabilizar as ruas, impedindo que a água da chuva penetrasse na terra entre os vãos dos paralelepípedos, nome com que alguém havia batizado os tais macadames, aumentando, assim, o risco de inundação das casas que ficassem no fim de uma ladeira. Coisas do progresso.
Ninguém, absolutamente ninguém que tenha vivido em São Paulo naquele tempo deixará de recordar-se do belo poema que se lia na parede dos fundos do bonde :
"Veja, ilustre cavalheiro, Que belo tipo faceiroO senhor tem a seu lado.E, no entanto, acredite, Quase morreu de bronquite. Salvou-a o Rhum Creosotado".
Eu poderia ainda falar tanto do inconfundível perfume do sabonete Lifebuoy como do Edifício Balança Mas Não Cai, que chegava "ao recesso" de nosso lar pelas ondas sonoras da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, sob o prestigioso patrocínio das Casas da Banha e locução do Manoel Barcelos, transmitida em ondas curtas, com seus chiados característicos. Ou seria "sob os auspícios" do misterioso Regulador Xavier, "o remédio de confiança da mulher", cuja propaganda (reclame, se dizia então, fruto da influência francesa, palavra que, muitos anos depois, seria substituída pela norte-americana comercial) era para mim um enigma indecifrável : "número um, excesso; número dois, escassez".
Eu, naquela época, ainda não sabia que o criador do impagável edifício, que depois se bandeou para a televisão, era um cardiologista : Max Nunes.
O rádio nos trazia as "brigas" entre a Emilinha Borba e a Marlene, um expediente publicitário engrossado pelas reportagens da Revisa do Rádio e pelas fofocas do César de Alencar, que a revolução de 64 levou ao ostracismo, juntamente com o cantor Wilson Simonal, bem mais moço do que ele. E havia o vozeirão do Vicente Celestino, que nos explicava porque se havia tornado um ébrio. Mais o Francisco Alves, "o rei da voz", que se apresentava na mesma Rádio Nacional aos domingos, exatamente ao meio-dia, "quando os ponteiros do relógio se encontram". E ainda o Carlos Galhardo, "o rei da valsa", que havia trocado a profissão de alfaiate pela de cantor, com direito a peruca e cachimbo, à la Bing Crosby. Ou as patacoadas da PRK-30 e seus inesquecíveis personagens, como a fadista Maria Joaquina Dobradiça da Porta Baixa, que era apresentada pelo locutor Megatério Nababo d'Alicerce, e que tinha no repertório este emocionante fado:
"Tirei um retrato a cavalo.Ficou mesmo uma coisa fina.Ao vê-lo, alguém perguntou:Quem és tu ? O de baixo ou o de cima".
Ou est'outro :
"As águas dos mares salgados,donde nos vem tanto sal,são das lágrimas choradas,são das lágrimas choradas,das praias de Portugal".
E havia também aquela dupla extraordinária, que fazia meu pai, que, no cinema, só via filme do Gordo e o Magro, chorar de rir : Murilo Alvarenga, nascido em 1912, e Diésis dos Anjos Gaia, nascido em 1913. Seu avô, meu caro leitor, acaso se lembrará deles ?
Por mais de 50 anos eles formaram uma dupla caipira que de caipira não tinha nada, a não ser o forçado sotaque e a fantasia com camisa de tecido xadrez e chapéu de palha. Apareceram em mais de 20 filmes, mas gravaram pouquíssimas músicas. Faziam paródias e imitavam os repentistas nordestinos, coisa de um Zé Preá versus Mano Meira ou Ontõe Gago. No duelo mais famoso, eles se referiam a animais com duplo sentido. O burro do teu pai tem puxado muita carroça ? Não tanto quanto a galinha de tua irmã. Por falar nisso, a cadela de tua mãe está melhor? Morreu trasdantontem, atropelada pela elefoa da tua vó.
Começaram com isso nos anos trinta e vieram depois escolher Getúlio Vargas, o todo poderoso ex-membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul, para alvo de suas críticas políticas. Certo dia, um carrão preto parou diante do hotel onde Alvarenga e Ranchinho, esse o nome da "dupla que é uma navaia", estavam hospedados. Dois homens mal-encarados os levaram, com as respectivas violas, até o prédio do Catete, sede da Presidência da República. Getúlio, que era fã da dupla, queria uma apresentação especial, para ele e seus convidados. E lá ficaram cantando até alta madrugada.
Entre outras prospectivices, inventaram um bordão notável para o patrocinador do programa. Havia, na ocasião, duas fábricas de fogos de artifício: Adrianino e Caramuru. O programa era patrocinado pelo segundo, que fabricava "fogos que não dão chabu". "Mas que é chabu, compadre ?" perguntava um. "Sei lá, compadre. Eu só uso Caramuru !" respondia o outro. Vejam a inteligência do diálogo, que se utilizava de uma palavra inexistente sem dizer qual o seu significado.
Quando o Chico Buarque escreveu sua maravilhosa Construção, ele, certamente, se inspirou em certa música do Alvarenga e Ranchinho, cujos versos terminam sempre por uma proparoxítona. A antológica Drama da Angélica era uma valsinha sem qualquer complicação rítmica, compasso ternário, naquele pa pa pum, pa pa pum próprio dessas valsas. É uma letra longuíssima, quase impossível de ser decorada, da autoria de M. G. Barreto. Graças ao meritório registro que vem promovendo a gravadora Revivendo, é possível aos mais velhos matarem saudade e aos mais novos conhecerem a criatividade da dupla. Eis a longa letra da música:
"Ouve o meu cântico,quase sem ritmo,que é a voz de um tísicomagro, esquelético.
Poesia épica,em forma esdrúxula,feita sem métrica,com rima rápida
Amei Angélica,mulher anêmicade cores pálidase gestos tímidos.
Era malignae tinha ímpetosde fazer cócegasno meu esôfago.
Em noite frígida,fomos ao Líricoouvir um músico,pianista célebre.
Soprava o zéfiro,ventinho úmido, então Angélicaficou asmática.
Fomos a um médicode muita clínicacom muita práticae um preço módico.
Depois do inquérito, descobre o clínicoo mal atávico,mal sifilítico.
Mandou-me, célere,comprar noz vômicae ácido cítricopara o seu fígado.
O farmacêutico,mocinho estúpido,errou na fórmula,fez de propósito.
Não tendo escrúpulo,deu-me sem rótuloácido fênicoe ácido prússico.
Corri, mui lépido,mais de um quilômetronum bonde elétricode força múltipla.
O dia cálidodeixou-me tépido.Achei Angélicajá toda trêmula.
A terapêutica,dose alopática,dei-lhe uma xícarade ferro ágate.
Tomou num fôlego,triste e bucólica,essa estrambólicadroga fatídica.
Caiu no estômago,deixou-a lívida,dando-lhe cólicase morte trágica.
O pai de Angélica,chefe do tráfego,homem carnívoro,ficou perplexo.
Por ser estrábico,usava óculos:um vidro côncavo,outro convexo.
Morreu Angélicade um modo lúgubremoléstia crônicalevou-a ao túmulo.
Foi feita a autópsia.Todos os médicosforam unânimesno diagnóstico.
Fiz-lhe um sarcófago,assaz artísticotodo de mármore,da cor do ébano.
E sobre o túmulouma estatística,coisa metódicacomo Os Lusíadas.
E numa lápide,paralelepípedo, pus esse dísticoterno e simbólico:
"Cá jaz Angélica,moça hiperbólicabeleza helênica,morreu de cólica!"
"He, he, Caramuru !", como diziam eles enquanto eram aplaudidos.