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Circus

Crônicas e reflexões.

Adauto Suannes
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Cognatos

"Cunhado não é parente!" Leonel Brizola A palavra cognato serve para indicar, em português, aquele parente que não é bem um parente. É assim um parente de segunda mão. Não era parente, tornou-se parente e daqui a alguns anos voltará a deixar de ser parente. Estou falando do cunhado, aquela compensação que o destino lhe impõe por haver-se enamorado da bela irmã dele. Cognato, portanto, é algo que lembra um produto que fez muito sucesso no tempo de teu avô. Era um produto que "devolvia a cor do seu cabelo", eufemismo para designar uma tintura pura e simples. A propaganda malandra dizia que "parece remédio mas não é". Remédio contra que doença? Talvez a velhice. Os cunhados falsos são um tormento de nós todos. Já os falsos cognatos são o tormento de quem se põe a falar outra língua. Ou, pior, escrever em outra língua. Por exemplo, você se mete a ler um texto em francês. O tal texto alude a números, a quantidades enormes de estrelas existentes na Via Láctea. Algo como "des milliards d'étoiles". Você conclui, apressadamente, que o autor está dizendo que nossa galáxia possui milhares de estrelas. Certo? Indo humildemente ao dicionário você então descobre que aquela palavra se refere a mil vezes um milhão. Ou seja, ele dizia que a Via Láctea possui bilhões de estrelas. Lembro-me de que, há muitíssimos anos, um de meus amigos foi ver um filme japonês no falecido cine Tókio, ali na avenida da Liberdade. Lá pelas tantas a moça pega uma fruta de uma trepadeira e o rapaz pergunta a ela se ela pode mostrar-lhe aquilo que ela acaba de colher. O tradutor, certamente filho de japonês, colocou, porém, na boca do rapaz do filme uma frase lamentável. "Mostre-me o cabaço". O diabo é que a tal fruta, que é do gênero feminino, se chama cabaça e é utilizada, depois de cortada ao meio, para feitura de panelas em alguns estados do nordeste. Passando para o gênero masculino, a palavra designava, não sei se ainda designa, simplesmente o hímen. E tome gargalhada dos poucos brasileiros que assistiam ao filme. Logo que o Diego deixou o alvinegro da Vila Belmiro para jogar em Portugal, um jornal de lá noticiou que um colega dele havia rasgado a camisola do jogador brasileiro. Não faltou quem aqui pensasse que o Diego, depois que saíra do Brasil, resolvera sair também do armário, se tornara bicha, palavra que em Portugal se refere à fila, pois homossexual lá é chamado de paneleiro, palavra que, no Brasil, designa quem fabrica ou vende panelas. Sabedor disso, Diego certamente ficaria puto, o que em Portugal quer dizer criança. Sendo certo, outrossim, que armário era o lugar onde antigamente se guardavam as armas e não os pratos e xícaras como se faz hoje. O professor Jorge de Figueiredo Dias informou-nos que muita gente em Portugal aprecia muito as novelas que se passam no Nordeste brasileiro. Quando passava por lá uma dessas nossas Gabrielas da vida, era comum as pessoas se despedirem dizendo um "inté". Ou um impensável "tchau!" por força dos italianinhos que falavam com x no lugar do s numa outra novela das oito. Coisas de Ipanema. Segundo ele, certo jornal lisboeta publicava no dia seguinte um glossário, no qual esclarecia o sentido de algumas palavras mais raras utilizadas no capítulo anterior da novela. Entender a novela no dia seguinte deve ser um programão e tanto. Em Portugal. É verdade, porém, que graças às novelas, muitos portugueses, o Figueiredo Dias entre eles, aprenderam o óbvio: quando um brasileiro diz "pois não" ele está querendo dizer "sim"; quando ele diz "pois sim" ele está querendo dizer "não". Só mesmo os lusitanos para não entenderem uma coisa tão simples. Mania que eles têm de complicar as coisas, pá! La vecchiaia è bruta dizem os italianos, o que leva muito brasileiro, que já ouviu a expressão, especialmente quando a linguagem da cidade de São Paulo estava mais para Itália do que para Nordeste brasileiro, como hoje, a concluir que os velhos somos pessoas sem modos, que não atentamos para a segurança dos que nos cercam, que damos trombada, que ofendemos moralmente quem discorda de nós. Quando eu era criança, havia na casa ao lado da nossa uma senhora italiana que vivia dizendo ao filho que ele era bruto. Intrigado, perguntei certo dia à minha mãe porque aquela vizinha dizia aquilo e dona Yolanda Zanzotti, natural de Pordenone, Veneza, Itália, explicou ao curioso filho que bruto quer dizer feio. Era um modo carinhoso de aquela italiana dizer ao filho que não concordava com aquilo que a criança havia feito. O Alberto Silva Franco conta um caso mais complicado. Estando na Itália, ele mandou reformar uma calça. A costureira explicou o que iria fazer e ele, ingenuamente, perguntou, meio em português, meio em italiano, se aquilo ficaria bem feito. "Fica buono?" A costureira jogou a calça no rosto dele, pois aquele fica se referia a uma das partes mais delicadas da mulher. Ou seja, "è un termine volgare e di uso comune impiegato in alcune regioni per indicare l'apparato genitale femminile esterno." Apparato genitale, capice? Já narrei alhures este caso, mas não custa repetir, por sua pertinência. Antes disso, falo dessa última palavra. Não falo da palavra falo, que dá besteira; falo da palavra "pertinência". Eu presidia uma reunião, tendo em volta da mesa vários amigos meus, nenhum deles da área jurídica. Um primeiro item foi discutido e aprovado. Quando discutíamos um segundo item da longa pauta, um dos presentes, por sinal paraguaio, fez uma observação relativa ao item já aprovado. "Sua observação é impertinente" disse eu ao Dario Cabrera, usando um termo comum no fórum. A mulher do homem se pôs a chorar. Quando conseguiu falar ela lamentou que eu, que eles supunham ser seu amigo, tivesse ofendido daquela maneira o marido dela. E na frente de tanta gente. Expliquei-lhe então que "impertinente" significa apenas algo que não pertine, que não diz com aquele assunto, não pertence ao tópico que estava sendo agora discutido. Não sei se aceitaram a explicação. Acho que não. Agora conto a tal história que prometi acima: o brasileiro estava no Uruguai, onde foi recebido por um estancieiro. Estivesse no Texas e ele teria sido recebido no rancho do criador de gado, que é como se traduz a palavra ranch que aparece nos filmes de caubói e que corresponde à nossa palavra fazenda. Rancho, para nós, ou é uma casinha simples ou é a comida servida no quartel. No Texas tudo é muito maior. Pois o brasileiro estava na tal fazenda uruguaia e, por insistência do proprietário, aceitou ficar para jantar. Foi servida sopa e ele, gentil, valeu-se do indefectível portunhol. Dirigiu-se à filha do dono da casa e sapecou: "Passe-me la concha, por favor". Todos em volta da mesa mudam de cor e emudeceram. A visita, não entendendo nada, tenta esclarecer o ocorrido. "Veo que dejé tu hija embaraçada". Foi expulso da fazenda imediatamente a tiros de garrucha, que era para aprender a não ser tão grosseiro com as damas. Ele simplesmente desconhecia que embarazo significa gravidez e concha é como ali eles se referem ao órgão sexual feminino. A tal fica a que se refere o Silva Franco. Em suma, apparato genitale femminile esterno.
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Presunções

  "Não existe nenhum país no mundo que ofereça tamanha proteção (aos acusados). Portanto, se resolvermos politicamente - porque esta é uma decisão política que cabe à Corte Suprema decidir - que o réu só deve cumprir a pena depois de esgotados todos os recursos, ou seja, até o Recurso Extraordinário ser julgado por esta Corte, nós temos que assumir politicamente o ônus por essa decisão." Ministro Joaquim Barbosa(quando do julgamento do HC 84078/MG pelo STF) Se você conhece alguma coisa da vida sabe que o criminoso é alguém que demonstrou não respeitar as regras de convivência social. Se conhece alguma coisa do Direito Penal certamente sabe que uma das finalidades da pena é proporcionar a ressocialização de quem cometeu um crime. Imaginemos, porém, que você seja leigo em Direito. Você passa por uma avenida pela manhã e vê um automóvel inteiramente desfeito, com aqueles ferros retorcidos empilhados junto a um poste, sangue na calçada correspondendo ao passageiro que ali era transportado. Se você é um adulto que conhece as coisas naturais da vida, o que os juristas costumam chamar de illud quod plerumque accidit, aquilo que normalmente acontece, sabe que: a) automóveis não foram feitos para colidirem contra um poste, mas para trafegarem no chamado leito carroçável; b) os automóveis são construídos com material resistente e só se desmancham quando colidem contra um obstáculo, em alta velocidade. Aqueles dados à sua disposição permitirão que você chegue a algumas conclusões: a) o automóvel colidiu contra o poste por haver saído indevidamente do leito carroçável; b) os danos produzidos na colisão sugerem que ele estava trafegando em velocidade incompatível com a que seria razoável nas circunstâncias. Logo, concluirá você que esse motorista acaba de cometer um crime de trânsito, causando danos físicos ao passageiro ou sua morte. Se, entretanto, ao seu lado estiver um advogado criminalista, ele bradará: "Enquanto não for comprovada a culpa desse motorista em um processo judicial, assegurando-se a ele ampla defesa, com a possibilidade de interpor todos os recursos previstos em lei, ele deve ser considerado inocente". Você então concluirá que os operadores do Direito são gozadores ou débeis mentais, pois, de acordo com o citado illud quod plerumque accidit, a presunção evidente, decorrente daquilo que ali está exposto, é no sentido de que o motorista foi imprudente, ao imprimir velocidade inadequada ao veículo, e imperito, ao deixar o automóvel desgovernar-se. Logo, a menos que ele justifique cabalmente sua conduta, a presunção será de culpa, não de inocência, até porque o fato se passou na madrugada e não havia qualquer testemunha presencial. O tal advogado, ao ouvir isso, lhe entregará um cartão de visitas. "Não saia à rua sem ele", dirá a você, com um sorriso de mofa no rosto. Imaginemos agora que você more num prédio de apartamentos, no qual moram várias famílias, cujas crianças costumam brincar num playground situado nos fundos do terreno. No terceiro andar mora um rapaz, dono do apartamento, cujo quarto tem a janela voltada para o tal playground. Ele encontra-se em gozo de férias e, por isso, pretendia dormir até mais tarde, o que o barulho da criançada não permite. Ele então empunha sua espingarda de caça e vai abatendo, uma a uma, as perturbadoras crianças, como se estivesse em Columbine (clique aqui). Ele vem a ser preso, é lavrado o auto de prisão em flagrante e arbitrada fiança, pois ele é primário, tem residência fixa e emprego. Paga a fiança, ele é solto, voltando para casa. Vamos dramatizar ainda mais: uma das crianças mortas era seu único filho. Como você se sentiria cruzando diariamente com aquele vizinho no corredor do edifício ou subindo com ele no mesmo elevador? Que idéias lhe viriam à mente? Oferecida denúncia contra ele, o defensor arrola meia dúzia de testemunhas, dentre as quais Gisele Bündchen e Ricardo Izecson Santos Leite. Serão expedidas cartas rogatórias para ser tomado o depoimento da itinerante modelo onde quer que ela esteja desfilando e para ser ouvido o tal rapaz, que atua no futebol da Europa sob o nome de Kaká. Anos depois, quando voltarem as cartas rogatórias devidamente cumpridas, a defensoria requererá que o jogador e a modelo sejam submetidos a acareação, cujo indeferimento caracterizaria cerceamento de defesa. Quanto tempo mais será necessário? Imaginemos que um dia a instrução desse processo termine e sobrevenha uma sentença condenatória. Condenatória? Coisa nenhuma. Será uma sentença determinando que o réu seja submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. O acusado continuará a circular pelo edifício onde vocês dois moram, pois é primário e tem bons antecedentes. E continua sendo legalmente inocente. A primeira providência da defensoria será apresentar um recurso de Embargos de Declaração, para que o juiz explique melhor algum trecho da sentença. Esse recurso será rejeitado ou acolhido, publicando-se o resultado meses depois. Sobrevêm então o recurso propriamente dito, que deverá ser apreciado pelo Tribunal de Justiça, recurso esse no qual a defensoria certamente arguirá umas tantas nulidades e pedirá a despronúncia do recorrente, como é de praxe. Os autos do processo irão à Procuradoria de Justiça, de onde retornarão no ano seguinte. Enquanto isso você continua a cruzar com o mesmo vizinho no corredor do edifício onde ambos residem. Anos depois, o recurso será julgado, confirmando-se a decisão que mandara o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri. O Acórdão será então lavrado, assinado, registrado e publicado, o que exigirá uns tantos meses. A defensoria, então, apresentará recurso de Embargos de Declaração, para que seja esclarecido isto e mais aquilo. Meses depois os tais Embargos serão julgados, o respectivo Acórdão será lavrado, assinado, registrado e publicado, o que exigirá mais alguns meses. Enquanto isso você continua a cruzar com o recorrente no corredor do edifício onde ambos residem, pois ainda não é o caso de expedir-se mandado de prisão, já que o réu continua sendo legalmente inocente. Agora a defensoria apresenta não apenas um, mas dois novos recursos. No primeiro, dito Recurso Especial, ela invocará violação de algum preceito constante de lei federal; no outro, dito Recurso Extraordinário, a defensoria alegará violação de algum preceito constitucional, coisa que qualquer rábula sabe fazer. Os autos irão novamente à Procuradoria de Justiça, de onde retornarão no ano seguinte, com pareceres sobre um e outro desses recursos. Eles serão então despachados pelo Presidente do Tribunal de Justiça que ou manda que o recurso seja enviado ao tribunal de Brasília competente para apreciá-lo, ou indefere o recurso. Do indeferimento caberá novo recurso, dito Agravo de Instrumento, que será apreciado por um Ministro de um Tribunal Superior, em Brasília, sabe-se lá quando. Em Brasília caberão tantos recursos de Embargos de Declaração quantos a imaginação e a criatividade do Advogado conseguirem criar. Quando algum deles for indeferido liminarmente, sob a alegação de ser meramente protelatório, sempre caberá o recurso de Agravo Regimental, cuja decisão também admite novos Embargos Declaratórios. Enquanto isso você continua a cruzar no corredor do edifício, onde ambos ainda residem, com a pessoa que, anos atrás, quando os cabelos de tua esposa ainda não eram grisalhos e quando havia cabelos em tua cabeça, disparou contra crianças que faziam algazarra no playground do edifício onde você e ele já viviam. Lembra-se? Repare que até agora ele ainda não foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. Quando isso ocorrer e ele for condenado, finalmente ele será preso e começará a cumprir a pena. Certo? Errado. Ainda faltam ser interpostos muitos e muitos recursos (clique aqui). Quando tiver sido definitivamente julgado, o tal rapaz, agora um respeitável senhor, casado e bem empregado, deverá deixar o emprego e a família para passar uns tempos atrás das grades. Uns anos mais e ele sairá de lá presumivelmente ressocializado.
sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Coisa de Criança

Ele chegou, sem dizer oi, passou por mim, qual vento, subiu as escadas, pulando os degraus, dois a dois. Chamei seu nome. Mesmo que nada. Pensei em ir atrás, pegar no braço, ralhar, pensa que é gente?, talvez puxar pela orelha, levar de volta até a porta da frente, fazer bater nela, esperar abrir, cumprimentar, pois entre, respeitoso, vagaroso nos passos, educado na voz, como se deve. Só porque já usa calça comprida pensa que é gente! Cheguei a ensaiar o início do corretivo, dois degraus subidos, velocidade reprimida, avaliando prós e contras, vale a pena?, não valia. Tornado ao chão, girei nos calcanhares e, mão no queixo, dou de cara com a mulher. Espanto-me, ela ri, balança a cabeça, coisa de criança, diz, como se a idade tudo perdoasse, deixa pra lá que há muito tempo para a seriedade. Fosse a mãe dela e seria coisa de gente velha, a cachola já não funciona. A velha repetia insistentemente as mesmas perguntas, cuja resposta esquecia em seguida, para voltar a perguntar. Que dia é hoje, Nicanor? E o marido, prestativo, repetindo pela enésima vez, sem voz alteada. É compreender e perdoar. O pai dela, enquanto vivo, era a bonomia personificada, pagava boi pra não entrar na briga e até boiada pra continuar a não entrar, como ele mesmo dizia, com confirmação pelos fatos que todos conhecíamos. Agora vinha o neto deles com esses silêncios, esses modos ásperos de tratar os pais, coisa que nunca ensinamos, mesmo porque já viu alguém dar má educação aos filhos, homem?, como dizia minha mulher, compreensão em pessoa, sempre pronta a dar a última palavra, conciliadora, incapaz de asperezas no falar, sempre desmontando quem venha com fala grossa e gesto altivo. Bambu verga mas não quebra. Já o carvalho ... Era uma provocação, por força do meu nome de família, os tradicionais Carvalhos, de Monte Santo, gerações e gerações de plantadores de café, desse de se exportar sim, senhor, que era o que todos faziam, pai, avô, bisavô. Mas veio a perda de preço, o craque da bolsa, a queima do café, queima de dinheiro, os atrasos nos pagamentos, as falências dos devedores e, por conseqüência, a bancarrota dos credores. E eis meu pai tornado funcionário público, carimbador de guias de exportação, pouco lhe valendo os títulos universitários, desgostoso que se tornou de tudo. Calado ia, calado vinha, cumprindo uma rotina que ninguém invejaria. Sábados e domingos o radinho de pilha sobre o muro divisório, ouvindo o futebol enquanto podava as roseiras ou adubava os canteiros de plantas diversas. Ou enquanto trocava o pedaço de jornal que servia de tapete na gaiola de seus canários. A mulher seguia para a missa, levada por uma fé serena, que lhe valera tanto nas épocas de mais dificuldade. E o irmão, de quem ele avalizara os títulos no banco, safo da falência. "Ele faria por mim o que eu fiz por ele, se pudesse". E o filho do filho dele tão rebelde, tão incapaz de um beijo no meu rosto. No da mãe ele pespegava um, vez em quando, meio na carreira, que ela recebia como se fosse um buquê de rosas. "Ele dá o que pode, homem". E tinha a questão das drogas, que sempre me grilou a cuca. "Condor que não arrisca o salto não aprende a voar". Ela e seus aforismos, que eu não sei de onde ela tira. "Além do mais, meu velho, grilo na cuca é algo do teu tempo, não do dele". Ainda por cima tenho de ouvir que estou velho. Logo eu, que as mocinhas chamam de tio. Fosse velho e me chamariam de coroa. E suas reflexões continuariam se não bradasse a campainha da porta, que a mulher foi atender. Abriu a porta, falou com alguém, encostou a porta com ar sério, esticou o beiço pra baixo e apontou a porta balançando ritmadamente o polegar por cima do ombro, como quem diz "aí tem coisa". O homem que se desabafava comigo diz que foi abrir a porta e o outro, um negro mal ajambrado, mostrou-lhe uma carteira com o escudo da República, polícia!, que, antes mesmo que meu interlocutor pudesse examinar, foi guardada com estardalhaço no bolso do paletó, afastado o suficiente para mostrar o revólver dentro da calça. Já se preparava para entrar na sala, o que não logrou fazer porque no caminho havia o outro homem, dono da casa. "Vim pra levar teu filho pro distrito. Ele está devendo umas explicações aí. E não é porque é de menor que vai sair dessa". O homem olhou o outro nos olhos, mediu-o dos pés à cabeça, lentamente, como se se preparasse para briga, logo ele que nem em moleque sujou roupa por rolar no chão. "Diga ao doutor Noronha que amanhã o pai do garoto vai falar com ele. Diz que foi o doutor Carvalho quem deu o recado, o mesmo advogado que ele costuma consultar quando... Não diga nada não. Diga apenas que vou conversar com meu filho e, se for o caso, darei a ele o corretivo merecido". As narinas do policial se abriram, como as de um animal preparando o bote. Os olhos do advogado, porém, não só detiveram o visitante junto à soleira da porta como foram levando-o de costas até o portão. Despediram-se cordialmente e o homem, entrando em casa, foi subindo lentamente a escada, preparando o sermão que faria ao guri. Enquanto isso, no quarto, o jovem hacker acabava de formatar o novo disco rígido em seu computador, onde a perícia jamais encontraria sinais da transferência dos milhões de dólares que havia feito para a conta de seu pai e dali para a agência bancária do Panamá. Aplicação offshore, como diria seu pai. Quanto ao HD anterior, estava, a esta altura, divertindo algum jacaré no fundo do Tamanduateí. Agora era só retornar aos Estados Unidos e terminar o curso de informática. E acessar o banco do país vizinho vez em quando, para ver como andavam as gramíneas, the grass, como dizem lá seus colegas de malandragem. As verdinhas, mano. Não lhe causava qualquer preocupação a situação futura de seu pai, pois sabia ser ele um dos mais espertos advogados do país e certamente teria como explicar à polícia a passagem relâmpago daquela pequena fortuna por sua conta-corrente. Afinal de contas, advogado é pra isso mesmo. Diz se não é!
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Espelho (O)

  "Mirror, mirror on the wall, who is the fairest of us all?"1 Rainha Má, no desenho da Branca de Neve Toda história tem um personagem. Um ou mais de um. Mas pelo menos um. Ou uma. O ideal é que esse ou essa protagonista seja alguém viável. De preferência, inteligente como o leitor se supõe ser, ou bonita, como a leitora se considera. Claro que essa é uma afirmação machista, pois há homens pouco inteligentes e mulheres não tão belas. Mas o horroroso chavão que os antigos nos passavam, geração após geração, era que a mulher era um animal de cabelos longos e idéias curtas, enquanto os homens. Claro que era o modo de ver dos homens. Mulher publicava livros de receita, quando muito. Juíza? Nem pensar. Hoje é mais fácil encontrar homens de cabelos longos, sedosos, esvoaçando ao vento, do que mulheres com esse mesmo adorno capilar. E quanto à palavra inteligência, caiu em descrédito depois que lhe acrescentaram uns tantos adjetivos, distinguindo-se inteligência para isto de inteligência para aquilo. Até uma sigla foi inventada: E.I., para designar a inteligência emocional, o que quer que seja isso. Se é que isso é, de fato, alguma coisa. Se em relação à inteligência há essa relatividade, no que diz com a beleza basta ver como as modelos femininas foram-se modificando ao longo do tempo. Tanto as gordinhas que exibiam seus pneus e culotes na nudez lânguida das pinturas dos artistas clássicos até as anoréxicas que desfilam aquele requebrado mecânico para as câmeras dos retratistas atuais são escolhidas pelo mesmo critério: a beleza que, aos olhos desses artistas, elas possuem. O que deixa, agora e antes, à margem da vida e da história aquelas que, por oposição, chamaríamos de feias. E é sobre uma dessas que versa nossa história de hoje. Ela era, de fato, extremamente feia. A natureza não fora madrasta em relação a ela, pois jamais houve madrasta assim tão má. Escolher essa frase feita seria dizer muito pouco para classificar aquilo que com ela havia feito quem, lá onde isso é programado, escolheu as células que, ao final do processo de formação daquele ser humano, a fez ser assim como as pessoas a viam. Nem Pablo Picasso teria tido o atrevimento de colocar algo semelhante em alguma de suas centenas de quadros, nem mesmo naquela tela enorme, que mostra pessoas e animais destroçados e que despertou a atenção de um general franquista, a Guernica. "Foi o senhor quem fez?", teria indagado o militar. "Eu não. Foram os senhores" teria respondido o atrevido malagueño. Sei que é cruel trazer um fato desses para diversão dos leitores. Não me move esse propósito sádico, mas, ao reverso, a sadia intenção de mostrar-lhes que, por mais que não nos conformemos porque nosso rosto não é assim o de um Brad Pitt ou de uma Maria Sharapova, há pessoas que têm mais motivo do que nós para só sair à rua depois que o sol se põe. E andar por ruas sem iluminação. E usando burka. Certo juiz, que não era assim um Adônis, caçoava da feiúra de um desembargador, tido e havido como o mais feio dos juízes de São Paulo, talvez do Brasil. Feio por fora e por dentro, como diziam seus inúmeros desafetos. O Augustinho, que fora escrevente e depois juiz em Sorocaba, um gozador emérito, não teve dúvida em esclarecer o assunto ao comentarista: "O desembargador fulano é feio por antiguidade; você é feio por merecimento". Fosse por merecimento, fosse por antiguidade, nossa personagem só saía de casa à noite, o que não fazia se houvesse lua no céu, por mais minguante que fosse. E naquele dia fatídico lá foi ela, em caráter absolutamente excepcional, à inauguração da mais nova loja da cidade, em um bairro onde ela jamais encontraria algum conhecido. Loja granfiníssima, havia-lhe assegurado o material publicitário que lhe chegara pelo correio, essa inconveniente mala direta que nos alcança até numa ilha deserta. O que ela não sabia era que no hall de entrada da chiquérrima loja a infeliz decoradora mandara instalar um espelho enorme, desses cujo tamanho o fez entrar para o livro do Guinness. E os ignorantes convidados que ali chegavam eram recepcionados por ninguém menos do que eles mesmos, ali do outro lado daquela parede invisível. E assim se deu, como não poderia deixar de dar-se, com aquela senhora de quem aqui nos ocupamos. Por menos que ela o desejasse, soltou um grito estridente ao dar com aquela outra ela ali em sua frente, com uma cara tão assustada e tão assustadora quanto a sua. Toda a loja voltou-se para o centro do salão, identificando ali a espantada senhora. Ou as gêmeas espantadas, se se quiser. Viram então uma delas, a do lado de cá do espelho, tirar ambos os sapatos e, com golpes sobre golpes, pôr abaixo aquela indiscreta peça decorativa. Ela foi processada, como não poderia deixar de ser, pelo óbvio crime de dano que praticou contra a propriedade alheia. O juiz, de cabelos brancos e vivência muita, absolveu-a, sob o fundamento de que a ré agira sob legítima defesa. É esta, evidentemente, uma falsa história, uma invenção literária de quem não tem mais nada com que passar o tempo, como já deverão ter concluído os leitores. Realmente, não existem juízes assim tão compreensivos.   1No Brasil, a frase da rainha má foi assim traduzida: "Espelho, espelho meu, haverá no mundo mulher mais bela do que eu?"  
sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Flores

  "As rosas não falam,simplesmente exalamo perfume que roubam de ti." Angenor de Oliveira Aprendi a gostar de flores com minha mãe. Era com enorme pachorra que ela cuidava de suas samambaias de metro, com as quais conversava diariamente, enquanto despejava água nos vasos. Separava cascas e mais cascas de ovos e, depois de algum tempo, as colocava no forno aceso. Quando dali saíam, as cascas estavam estalando de secas. Minha mãe as colocava sobre um tabuleiro e, com o pau de macarrão, transformava aquilo tudo em um pó fino. Quando lavava a carne recém chegada do açougue, ela recolhia aquela água avermelhada, que misturava com o pó de casca de ovos, formando uma pasta, com a qual alimentava suas samambaias, que lhe agradeciam uns dias depois, exibindo novos rebentos. O jardim de nossa casa era demarcado por uma fileira ovalada de buchinho, umas arvorezinhas de folhas redondas duras, que estalavam quando atiradas no fogo. Sendo devidamente aparadas, formavam um murinho verde, que delimitava as dálias e as rosas que minha mãe ali havia plantado. Dália é uma flor que me parece ter saído de moda com o tempo, pois nunca mais vi. Quanto às roseiras, serviam para minhas experiências. Com uma gilete eu fazia um T no caule da roseira maior, coisa de um centímetro cada braço. Abria as duas laterais da perna vertical do T, como se aquilo fosse um casaco de lã sem zíper, e ali colocava um "olho" que havia sido retirado, com a mesma gilete, de outra roseira. Esse "olho" era o indicativo de que ali se estava formando um novo galho, que, graças à minha cirurgia, iria nascer na outra árvore, se a operação fosse bem sucedida. Resultado: havia no jardim roseiras que tinham braços com rosas vermelhas, outros com rosas brancas e outros ainda com rosas de uma outra cor, para espanto dos que não conheciam a técnica da enxertia. Por algum motivo que não sei explicar, vim a preferir as orquídeas. Li sobre as lélias, catléias, dendrobiuns, phalaenopsis e paphiopediluns principalmente, se me permitem o exibicionismo, além de freqüentar a feira periódica que se realiza no bairro da Liberdade, onde se aprende tudo sobre as orquidáceas. A única exigência é que você entenda japonês. Mero detalhe, como se vê. A flor do dendrobium é o popular "olho de boneca"; a flor do phalaenopsis são como borboletas em torno de uma haste; e a flor do paphiopedilum é a popular "sapatinho de Vênus". Embora moremos num apartamento típico de classe média, temos nas três varandas para mais de cem vasos com orquídeas. Visito diariamente uma a uma, verificando um novo botão que se está insinuando aqui, um novo ramo que está apontando ali, algum pulgão que precisa ser eliminado ou uma muda que desistiu de tentar tornar-se adulta e precisa ser substituída. Há pessoas que preferem flores de plástico, que têm a indiscutível vantagem de não exigir essas preocupações. Você não precisa incomodar-se com os pulgões, nem com as regas periódicas, nem com uma colherinha de vitamina a cada dois meses. A vantagem maior da flor de plástico é tornar seu proprietário alguém absolutamente desnecessário. Se ele morrer, as flores não perceberão. Pois num desses fins de semana de inverno, passamos, eu e a Maria Helena, em uma cidade do interior, na qual me chamou a atenção uma tabuleta: Orquidário. Era um espaço onde, além de ali se criarem e venderem orquídeas, há um amplo salão onde é servido um tal "chá colonial". Número incontável de chás, à sua escolha, mais geléias caseiras, doces e bolos também feitos ali, tudo mantido por uma senhora e sua filha, ambas já grisalhas e um tanto mal-tratadas pela vida. Parecem irmãs. Enquanto minha mulher se entretinha com os cheiros dos pacotinhos de sachês e sais de banho que ali também se fabricam, eu tomei o óbvio rumo do caramanchão, onde, certamente, me deslumbraria com as várias espécies de orquídeas ali oferecidas. Não havia ninguém lá dentro. Numa prateleira vi centenas de vasinhos de plástico, negros e vazios como a alma de um pecador. Sobre as bancadas um número incrível de vasos com orquídeas mortas, ressequidas como se tivessem chegado ontem do agreste nordestino. O mato completava a decoração do ambiente, invadindo tudo ali. Em suma: o orquidário era o reflexo do modo de ser das proprietárias. Se elas não encontram tempo para cuidar da própria aparência, como achar tempo para as plantas? O altruísmo começa pelo egoísmo, diz-nos a Ética. Consegui descobrir, depois de muito procurar, cinco vasos, nada mais do que cinco, cujas plantas ainda respiravam. Um deles tinha uma incrível dupla de flores azuis, dois tinham meros botões sugerindo que, bem cuidados, dariam em flor, enquanto que os demais eram apenas uma promessa de flor futura, cuja cor e forma eu não poderia imaginar. Trouxe-os para fora da estufa, tendo a impressão de que algumas das plantas que lá ficaram me acenaram as amarelecidas folhas, como a despedir-se. Ou pedindo-me socorro. Minha mulher terminava de separar os produtos que estava a comprar e eu perguntei à filha da dona qual era o preço das orquídeas que eu havia separado. A mãe dela arregalou os olhos e quase teve uma síncope: "Mas são minhas matrizes!" Enquanto a mãe saía aflita, para encaminhar suas preciosidades de volta à prisão e ao pão sem água anterior, de onde eu as libertara há pouco, a filha explicou que era com aqueles exemplares que elas produziam novos exemplares. "Exemplares de lixo, naturalmente" foi a sutileza que me saiu da boca, para desespero da minha mulher. Tentei amainar a merecida crítica parafraseando o ex-ministro Antonio Magri: "Pois saiba a senhora que as flores também são humanas!" Fosse ela budista e naturalmente saberia o que eu quis dizer. Cumprido o mandado de prisão, voltou até nós a tal senhora, que agora me pareceu ainda mais feia do que parecera antes do incidente. Trazia na mão uma vassoura, que eu fiquei em dúvida se ela utilizaria para me agredir ou para dar um passeio sobrevoando a cidade sentada nela. Pensei em perguntar, mas a Maria Helena certamente não aprovaria esse novo desabafo. A megera olhou-me nos olhos, bufou e embarafustou casa a dentro, talvez para preparar uma nova tabuleta, em substituição à que existia na entrada. Se eu voltar à tal cidadezinha, sou capaz de apostar que vou dar com uma nova advertência junto à entrada do orquidário: "É proibida a entrada de cães e de amantes de orquídeas". ______________
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Filmes

  Ao Cláudio Renato, que entende disso melhor do que eu. Imagino-me fazendo um curso de cinema na Universidade de Oslo, naquele ritmo slow motion próprio dos noruegueses. "Não deixe para amanhã o que pode ser feito depois de amanhã" foi o dístico que sugeri para a bandeira deles. Acho que ainda não deliberaram a respeito. Caberia bem aquele diálogo entre mãe e filho que ouvi alhures, substituindo-se os personagens originais por dois loiros: "Maínha, taturana queima a pele da gente?" Minutos depois: "Queima, sim, meu rei. Ela já encostou ni tu?" Mais alguns minutos: "Inda não, maínha, mas está perto". Você já viu algum filme norueguês? O Bergman não era norueguês, mas sueco, meu caro amigo. Precisas ler mais sobre cinema, rapaz. Mas eis que chega o fim de ano, devo apresentar meu projeto e me ocorre trabalhar o mito de Sísifo. Mitos, essas narrativas enigmáticas que nos proporcionam contato com nossas tradições arquetípicas. Com aquele algo profundo, que a cultura teima em abafar, em recalcar, como se dizia no tempo em que o Hitchcock resolveu nos dar aulas de psicologia no Spellbound, no qual a Ingrid Bergman, que, aliás, nunca foi casada com Ingmar, ao contrário do que você imagina, tira e põe os óculos, para interpretar uma mulher que não se limita às coisas triviais do lar, pesasse sua extraordinária beleza. Arguta, com pouquíssimas sessões de psicanálise descobre os motivos da dupla personalidade do Gregory Peck, que, devidamente curado, acaba casando-se com ela, tudo rodeado de cenário feito por ninguém menos do que nosso Salvador Dali. Se é para mostrar pesadelos é com ele mesmo. Casamento, aliás, que os códigos de ética dos que cuidam de nossas mentes não recomendam. Sabe lá o que é ficar sendo analisado o tempo todo pela companheira? Para cada projeção do cliente, uma contra-projeção do analista, eis a recomendação que nem todos observam. Nem o Jung, aliás, que levava para a cama suas clientes, contando com a compreensão científica da Emma. E depois se queixam de que o casamento é coisa difícil. Não penso tanto na narrativa clássica, mas num Sísifo aggiornato, ou, na linguagem hollywoodiana, um remake do mito. Em lugar do Gregory Peck escalaríamos o Anthony Hopkins. Ele seria um relojoeiro cego, que, padecendo de artrite, deve executar seu serviço calçando luvas de boxe. Cada vez que um freguês se aproxima do balcão, seu fiel papagaio, empoleirado junto à porta, antecipa-se ao relojoeiro: 'não está pronto! não está pronto!'. E o freguês, compreensivo, se retirará em silêncio, tal como fizera no dia anterior. E voltará no dia seguinte. And so on. Se o roteiro fosse rejeitado (o lobby dos fabricantes de relógios não concordaria com a vulgarização de uma atividade tão nobre, incapazes de perceber a mensagem sutil que estaria embutida no fato mesmo do decurso do tempo, aquilo que para os hindus é representado pelo minúsculo camundongo, que, lentamente, tudo rói; já para o Dali, é um relógio que se derrete), eu teria uma alternativa: num lago congelado da Noruega (clara referência ao Sétimo Selo do nosso vizinho Bergman, já se vê), o personagem (que tal Brad Pitt? Melhor o Tom Cruise, vestido de samurai) é encarregado de fixar sete lanças flexíveis no gelo do lago, cada uma situada a sete metros da outra. Sete: reparou no número cabalístico? Sobre a primeira ele coloca um prato, que, em face do giro cada vez mais rápido, contornará os efeitos da gravidade (há aí também uma mensagem implícita, que o espectador atento facilmente detectará: a vida como algo sem fim, que se renova sempre, à maneira da visão budista) evitando que o prato se espatife lá embaixo (não se esqueça de que o céu é em cima e o inferno é lá embaixo, nas profundas, onde o pecador também se espatifará, agora na visão cristã). A operação se repetirá em cada uma das demais lanças. Ao terminar de acionar a sétima lança, ele notará que o prato da primeira ameaça espatifar-se no chão e corre para lá, recomeçando a faina, que se repetirá vezes e vezes, simbolizando a Eternidade. Sete dias na semana, sete pragas no Egito, sete grandes potências mundiais, interprete como quiser. 'Isso o pessoal do Cirque du Soleil faz com um pé nas costas!', exclamará o produtor. 'Mas, usando chuteira de futebol?', obtempero, para mostrar minha cultura. 'E com travas de borracha?!' Tenho na manga um terceiro roteiro, bastante original, que ele certamente acolherá entusiasmado: o Matt Damon, calça toda rasgada e peito nu, é destacado para levar uma pedra enorme até o alto de um fjord. A inclinação do morro e o peso da pedra farão com que nosso herói leve exatos 365 dias para atingir o cume do monte. Colocando ali a pedra, no último dia do ano, ele retira de algum lugar (os assistentes de produção existem para isso mesmo) uma garrafa de champanhe, com cujo líquido ele esborrifa toda a equipe de filmagem, à moda dos pilotos de Fórmula 1. O filme dentro do filme, percebeu? Com isso a pedra se desgarra e volta ao lugar onde estivera no começo do filme. Ele não desanima e desce até o fundo da ribanceira, recomeçando a árdua tarefa, já agora num segundo filme. A que se seguirá um terceiro e assim por diante, sempre aproveitando boa parte do material do primeiro deles. Tudo se repetindo ao som dos Rolling Stones (só os iniciados entenderão o recado: pierre qui roule n'ammasse pas mousse! No close-caption em português do DVD: pedra que rola não junta musgo). E, assim, a pedra será levada ao alto do morro vezes sem conta, até o momento em que, ou porque a bilheteria minguou com tanta repetição, ou porque o nosso herói já está cansado da execução da tarefa, ele se sentará junto à pedra. Não ao lado, mas na parte de baixo, impedindo com isso que ela desça o barranco. Estagnada, ela permitirá que cresça o indesejável musgo, de que, aliás, falava a Mercedes Sosa, musgo esse que marcará o dia, mês e ano em que toda aquela labuta teve fim. A câmera fará um close sobre a pedra e recuará lentamente, mostrando sucessivamente o morro (e, com isso, a insignificância da outrora enorme pedra), a cidade de Bergen (e, conseqüentemente a insignificância do morro que custosamente o herói escalava), a Noruega, o planeta e, por fim, a via láctea (indicando a insignificância de tudo o mais, diante de algo maior, percebe?), transmitindo uma mensagem que o produtor não apreende muito bem, por mais que eu lhe explique. Ele me sugere algo mais cool. Deve ser algum trocadilho norueguês.  
sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Feliz Ano Velho

  Veja o lado positivo das crises, ainda que renais. Falo das renas do bom velhinho, evidentemente. Não me refiro ao Oscar Niemeyer, mas ao outro. Também não é o Levy-Strauss, minha senhora. Deixa pra lá. O que eu queria dizer é que nos idos e vividos tempos, reunião de Natal era um desfile de esbanjamento, no que diz com os infalíveis presentes. O convidado A vinha com cinco pacotes, que distribuía a B, C, E e F. Epa! Faltou um. B dava presente a A, C, D, E e F. C dava presente a D, E, F, A e B e assim seguia a ciranda. Você ia pra casa carregando quatro ou cinco LPs, se fosse do sexo masculino. Se mulher, eram duas ou três caixas de pó-de-arroz. Ou de perfume. Na certa, Royal Briar, "o perfume que deixa saudade", como se dizia na Rádio São Paulo. Com a crise (falo daquela longínqua), inventou-se o "amigo secreto". O convidado A dava presente a B; B dava presente a C; C dava presente a D e assim seguia a roda, com visível economia para todos. Com o atual crack da bolsa, batizado sub-prime, que mostrou que a economia não estava nas mãos de craques, eu acabo de propor uma revisão do instituto do "amigo secreto", inspirado no funcionamento das bolsas de valores. A coisa funcionou assim: em lugar de presentes concretos (vale dizer, CDs e perfume da Boticário), presentes virtuais. Secreto não será mais o amigo que recebe, mas o amigo que dá o presente. Eu, como amigo secreto, daria a alguém um vale, feito no computador, pois sou bom no paintbrush: "Vale uma Maserati vermelha", caso o sorteado fosse do sexo masculino; "Vale um colar de pérolas South Sea, com fecho de ouro branco e dois rubis", se o sorteado fosse do sexo feminino. O resultado foi um estouro. Com a grande vantagem de, sendo secreto o amigo presenteador, o sorteado não terá como identificar-me. Ele, então, na segunda-feira mandou colocar num quadro o tal vale, ao lado dos quadros onde ele já havia colocado os cheques sem fundo que tem recebido ultimamente e as cautelas de ações que ele comprou no boom da bolsa, o que ele fez, aliás, sem a mais mínima cautela. Já no que concerne ao final do inesquecível ano de 2008, sinceramente, eu gostaria de pagar o jantar do réveillon para todos os meus amigos. E certamente eu o faria se não tivesse havido o problema com a bolsa, que me afetou sensível, econômica e financeiramente. Desde que minha mulher escondeu a bolsa dela está difícil eu pagar as contas, que não param de vencer. Falo das minhas, é claro, cujo vencimento faz de mim um derrotado. Tenho recorrido aos bancos, mas fico sentado na Praça da Sé o dia todo e nada de cair alguma moeda no meu furado chapéu. Mudo de banco e no shopping é ainda pior, pois o guarda me manda levantar e circular. Eu, nesta idade, girando minhas pás pra lá e pra cá! Até pensei em bancar transportador de bebuns ao final de alguma festa do dia 31, mas não sabia como estaria, na tal data, o meu decrescente prestígio junto ao posto de gasolina da esquina, onde já sou atendido pelo trasista, pois o frentista nem me olha mais. É que ali ninguém mais acredita no meu cartão de crédito. Segunda-feira próxima farei uma derradeira tentativa: procurarei a caixa. Colocarei uma carta na caixa do correio, esperando sensibilizar o idiota, digo, o samaritano que a receberá, com votos disto e mais aquilo, talvez até luzinhas piscando, e sugestão no sentido de que ele envie cópia a mais dez pessoas, cada uma me remetendo, ao depois, a gentileza de um substancioso óbolo. Difícil será encontrar dez pessoas que saibam o que é óbolo e o que é substancioso. Enfim, se até o Ronaldo encontrou quem acreditasse nele, por que não haverei de encontrar quem acredite em mim, que não estou tão gordo? Bom mesmo foi 2007, quando éramos felizes e não sabíamos, ano digno de ser lembrado para sempre. Desejo pás na terra a todos os homens de boa vontade e com saúde para limpar as ruas da cidade onde moram, especialmente considerando que os servidores municipais têm coisa mais importante para fazer. Greve, por exemplo. Eu não me candidato a esse trabalho porque as pás me deixam as mãos inchadas. E adeus, pois minha inspiração foi-se.  
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Carpideiros

Isso para não falar naquela mocinha distraída que acabou por engravidar e olhe os pais dela, gente séria a mais não poder, a dar-lhe ordens a ela: tira essa criança! tira essa criança! tira essa criança! E ela agüentando os nove meses daquela importunação diária até que chegou o tal dia da dita délivrance e olha a moça indo pra maternidade aquele barrigão na frente dela os pais é que não lhe dariam carona à filha pecadora, que lá vai chorando e chorando desce do dito coletivo e mais chorando ainda entra na maternidade São Caetano, onde encontra prestimosa senhora de meia idade, ali nas vezes de enfermeira e conselheira, a lhe dizer chore não minha filha, chore não, que eu tenho um casal de São Paulo que está doidinho pra ter um filho e nada de a natureza lhe dar e agora vem você com esse filho mal querido de seus pais e pode deixar por minha conta que amanhã sem falta. E a criança nasce e lá vem o tal casal invadindo a pobre sala hospitalar com perfume importado e elegância a mais não poder. E a moça fica feliz ao saber que seu amado filhinho ficará nas mãos de gente que lhe proporcionará a ele um futuro dito radiante, coisa que ela, dependente dos incompreensivos pais, jamais nunca que lhe poderia dar a ele. Melhor assim, seja feita a sua vontade. E vai até o carro importado dar um adeus sentido ao filho que lá vai no carro que se afasta agora é só tomar o ônibus voltar pra casa, ali na Vila Gerti, e dizer aos pais, sou obediente, fiz o que me mandaram agora não me encham mais o saco. E ali estão os pais dela, junto ao portão, a esperar aflitos pela volta da filha, não é que pensaram muito e então. Cadê nosso neto? cadê nosso neto? cadê nosso neto? A pobre da moça pensou que iria enlouquecer pagando por ter cão e pagando por não ter cachorro se é que se pode assim falar seja tudo por conta da licença literária. E já no dia seguinte vai o trio à dita maternidade entrevistar a tal enfermeira dizendo-lhe isto e mais aquilo que o curador de menores não isto que o juiz de menores aquilo e a pobre senhora que julgava estar a fazer o bem acaba muito aflita por dar a eles nome e endereço do benemérito casal, talvez até um aqui está o telefone de casa mais o do trabalho, e dias depois lá vão eles, não mais um trio mas um quinteto que nada tem de violado, a criança, a mãe da criança, a enfermeira e o casal dito adotante à procura do juiz de menores que esse sim dirá quem aqui tem razão, homem sábio que é ouvi dizer que. Entra na sala do sábio juiz o tal quinteto, cada um falando ao mesmo tempo o que obriga o ponderado magistrado a dizer um por vez um por vez, menas a criança que inda não fala pois se soubesse falar diria que que eu vim fazer neste mundo de doidos, Deus meu? O juiz, que não tinha mais nada que fazer, nem processos mil para despachar nem gente esperando na outra sala a audiência que já está atrasada ouve todos com paciência e atenção, não fosse ele aquele um que. A essa altura, a criança, única ali a mostrar um mínimo de juízo, perdoado que seja o inevitável trocadilho, põe-se a fazer exatamente aquilo que as circunstâncias exigem: começa a chorar, no colo da enfermeira, que, neutra a mais não poder segura o bebê à espera de que o justíssimo magistrado decida a quem entregá-lo. A mãe, tocada pela chamada vocação materna, pega a criança no colo e põe-se a balançar o corpo pra lá e pra cá, como as mães todas entendem de fazer, por mais que eu desconheça o que isso significa, parece mais coisa de barman. E, contaminada pela chorona criança que traz agora nos seus finos braços, a mãe chora também. A enfermeira, esta, mulher calejada e vivida, faz o que as circunstâncias convidam a fazer: chora. Assim chora também a dupla final que, elegantíssimos e perfumados, abraçam a mãe e a filhinha que esta traz no seu maternal colo. E o juiz? Eu, para não destoar daquilo tudo, nada mais tenho a fazer senão chorar também. Vencidos os minutos necessários a que aquele carpidimento todo se esmoreça, eu bato delicadamente palmas, para trazer todos os presentes à ordem, que é como as circunstância exigem, law and order! law and order! eu diria culto se conhecesse o filme da televisão, e faço um sermão daqueles. Quer dizer que a senhorita engravidou quando não estava ainda preparada para fazê-lo? A senhora pôs-se a decidir a quem caberia a criança, indo além de suas enfermeirais atribuições? Vocês dois aí resolveram então fazer uma adoção à moda da casa, pensando que este país é um? E agora vocês todos querem que eu banque o Salomão, partindo a criança ao meio e distribuindo metade para cada um? Nem pensar, meus caros! Nem pensar! Minha decisão está tomada: a mãe que deu a luz é mãe e ponto final. O casal ali será o padrinho. Agora saiam da minha sala e vão direto para o cartório registrar a criança. Feito isso vão à igreja matriz de São Benedito, ali naquela praça mais adiante do fórum, marcar dia do batizado, que eu quero ser convidado para ele com tubaína e sanduíche de pão de metro. E à senhora, digo eu dirigindo-me à enfermeira em tom severo atemorizante, fique sabendo mais o seguinte: eu no seu lugar teria feito exatamente o mesmo que a senhora fez. E agora, fora!, fora!, fora!   1Do livro Menas Verdades - Causos forenses ou quase (no prelo)  
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Domingo no Parque

Chegamos ao parque e o rapaz que nos havia trazido deixou claro, se não me engano, que nos viria buscar dentro de umas duas horas e nos recolheria exatamente naquele lugar. Frisou bem essa informação, apontando com o dedo indicador da mão direita, fechada quanto ao mais, o chão em que nos havia deixado, como se imitasse um pica-pau. "Fui claro? Neste local." Toc, toc, toc. Eu instintivamente imitei o movimento da mão dele, improvisando outro pica-pau. "Podem passear à vontade por todo o parque, consultando os homens de roupa azul e aparelho de rádio na mão se tiverem alguma dificuldade. Fui claro? Vocês têm pendurado no pescoço uma ficha com o nome de vocês e serão encontrados pelos mesmos funcionários, se for o caso. Não se preocupem com isso e aproveitem o passeio", arrematou ele, antes de voltar para o ônibus azul que nos havia trazido. Quando passeava pelo parque, dei com aquela figura estranha ali plantada. Sua perna esquerda estava avançada, em relação ao restante do corpo, dobrada agudamente no joelho, de tal forma que, se ali fosse posto um fio de prumo, este tocaria o solo uns cinco ou seis centímetros mais adiante do que o local onde se imobilizara a ponta do pé da tal figura. Aliás, a planta do pé esquerdo não estava totalmente em contato com o solo. Calculo que apenas um terço da sola do pé apoiava-se no chão. O extremo oposto do tal pé estava ligeiramente elevado, calculando eu que aquilo que seria o calcanhar precisaria descer pelo menos uns três centímetros para tocar o solo. A parte do corpo que poderíamos chamar de tronco estava ligeiramente dobrada para a frente, como se estivesse participando de uma corrida. Sem saber como explicar aquilo, imaginei que o tal corredor fora surpreendido por um raio vindo das nuvens, arremessado por Júpiter. Um raio de gelo, certamente, pois, ao invés de dizimar o tal corredor, reduzindo-o a cinzas, congelou-o naquele momento da corrida em que estaria até então envolvido. O que seria seu braço esquerdo estava estendido para a frente, formando um ângulo de uns 45 graus em relação ao solo. Aquilo que seria a mão esquerda estava espalmada, com distância variável entre um dedo e outro. Dando a volta no corredor imóvel, no chamado sentido anti-horário, passando, portanto, pela sua traseira, notei que aquilo que seria a perna direita não estava dobrada como a outra, mas, ao contrário, estava estendida para trás. Não formava uma reta, pois o local correspondente ao joelho estava levemente dobrado, coisa mínima, formando um ângulo aberto, que estimei em uns 170 graus. Ela não tocava o solo em nenhum momento, sugerindo que a tendência, ao contrário, era a sua extremidade subir cada vez mais, à medida que aquele ângulo se agudizasse. Se o raio de gelo enviado por Zeus não tivesse imobilizado o tal corredor, à maneira daquela família que foi surpreendida em plena mesa de refeição quando as cinzas do Etna cobriram a cidade de Pompéia, onde chegaria o tal corredor? Caminhei mais um pouco, sempre no sentido anti-horário, e agora já podia ver o rosto do corredor congelado. Uns olhos agudos, fixados em algum alvo distante, talvez a fita de chegada, já próxima. A boca estava fechada e os cabelos voltados para trás, como se levantados pelo movimento do corpo para a frente, que os houvesse tirado da inércia. Só então reparei que não me havia ainda fixado naquilo que seria o braço direito do nosso corredor. Lá estava ele, completamente esticado para trás, sem a menor dobra à altura do cotovelo, terminando com o punho fechado. Puséssemos um aparelho para checar o nivelamento daquele braço e talvez ele mostrasse que o punho fechado estava uns dez ou quinze centímetros acima do nível em que se encontrava o ombro. E só depois de reparar muito vim a notar que o braço não terminava no punho, como seria natural. Além do punho havia uma estranha bola do tamanho aproximado de uma bola de futebol, porém sem ter qualquer ranhura. Era lisa como uma bola de bilhar. Que faria aquela bola colocada ali logo em seguida ao braço esticado do corredor, unida ao punho dele? Seria aquilo algum castigo, semelhante às bolas que se prendiam aos pés dos condenados? Dei mais uma volta, procurando descobrir outros pormenores que não me havia sido possível captar na primeira vez que examinara a estranha figura. Notei, então, que o pé esquerdo, sobre o qual se apoiava todo o corpo, estava apoiado em uma superfície plana, quase lisa, que mediria não mais de 1,80m por 1,00m, sendo que o comprimento correspondia ao sentido da corrida do tal personagem. Essa base, de não mais de cinco centímetros de altura, estava apoiada em uma base irregular, que parecia um pequeno monte de neve, consolidada pelo mesmo raio que teria congelado o nosso atleta. Intrigante aquela estátua de gelo! Se é que era de gelo. Digo isso porque, a certa altura, levado pela curiosidade, tirei a luva da mão direita e espalmei a mão sobre a enorme bola de bilhar ligada ao braço direito da estátua. Senti uma espécie de choque, tal a friagem que dali escapava, o que me fez recolocar a luva, depois de agitar a mão, para espantar aquele desconforto térmico. Uso essa luva por recomendação médica, pois o tratamento a que me submeto produz parestesia e, com ela, a alteração da minha sensibilidade digital, para repetir o que me disse o médico da clínica. Para melhor vislumbrar a estátua, fui-me afastando dela, parando de tempos em tempos e voltando a olhá-la, cada vez mais intrigado. Minha curiosidade era tamanha que cheguei a andar uns bons metros sem tirar os olhos do corredor congelado, caminhando de costas, o que provocava, com toda procedência, olhares de surpresa e risos de desconfiança das pessoas que também circulavam pelo mesmo parque, talvez trazidas por rapazes de branco como aquele que me havia trazido no ônibus que, segundo me parecia, já estava prestes a voltar para nos apanhar. Não me foi difícil chegar ao tal lugar que o rapaz havia assinalado com seu bico de pica-pau improvisado. Havia ali uma árvore muito antiga, cujo volume se destacava das demais. Não sou bom observador e nos últimos tempos não tenho tido memória para lembrar nem mesmo o que almocei ontem, se é que almocei. Mas alguma coisa me fez associar aquela velha árvore ao local a mim reservado. Talvez a psicóloga da clínica me explique isso na próxima sessão, que será amanhã, se não me engano. Ou depois de amanhã, não sei bem, até porque não sei se hoje é sábado, domingo ou feriado. Na estradinha que passa pelo parque agora aparece um veículo que, ao longe, parece um ônibus. Quando ele se aproxima, confirmo que, de fato, é um ônibus. Aquela cor azul dele me parece familiar. Acho que o conheço de algum lugar.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Vernissage

  Vernissage, dizem os nossos dicionários, é aquela festa que indica a inauguração de uma exposição de obras de arte. Um autêntico galicismo, diriam nossas avós. Francesismo, se quiserem. Por extensão, creio que se poderia empregá-la para designar o dia em que se dá o lançamento de um livro. Por que não? O dia em que se abre uma exposição de fotografias pode ser chamado de vernissage? Sim, me direis, culto que sois. E de uma exposição de esculturas? Idem, haveríeis de retrucar-me, digo-o eu em português bolorento. Pois saiba, se ainda não o sabe, que a palavra francesa decorre de um fato pitoresco: no dia da inauguração de uma exposição de pinturas a óleo, ainda se sente no ar o cheiro do verniz, que muitos artistas usam (ou usavam, vá lá) para conservar a tela. Daí nasceu a palavra vernissage, francesa, com certeza. Logo, como as fotografias, as gravuras e as esculturas não são, normalmente, envernizadas, não se poderia falar em vernissage quando a inauguração diz respeito a gravuras, fotografias e esculturas. Entretanto, se se usa, como de fato se usa, dessa palavra também para referir-se à inauguração de uma exposição dessas, por que não haveríamos de utilizá-la para designar a chamada noite de autógrafo? Eis minha proposta. Pois o Migalhas (clique aqui) vem de informar a seus mais de 300.000 leitores que no dia 10 de Dezembro, a partir das 19h, na livraria FNAC, situada na Avenida Paulista, fundos com a Alameda Santos, haverá a vernissage relativa ao lançamento do livro Justiça & Caos, da autoria de um certo migalheiro, cujo nome não me ocorre no momento. Julgo ter sido uma temeridade essa informação. Pensem comigo. Que dos mais de 300.000 destinatários do festejado jornal eletrônico, apenas metade dos leitores tenha tomado conhecimento daquele aviso. A outra metade é composta daqueles leitores que naquele dia tiveram um TPM que os impediu de ler a notícia. Refiro-me ao terror de advogadas e advogados: um Texto Para Minutar, seja ele de Apelação, Agravo ou um REsp. Ou tem hora marcada no dentista, ou seja lá o que for. Ainda assim, 150.000 pessoas tomaram conhecimento daquela informação. Digamos que a metade desse número corresponda a leitores que não vêm com bons olhos o autor do livro. Ou porque se convenceram de que ele não sabe escrever, ou porque ele é pernóstico, ou porque cuida de temas irrelevantes, ou. Nosso número já baixou para 75.000 pessoas. Admitamos que esses remanescentes não tenham maiores restrições ao autor, para sermos otimistas. Ou pessimistas, não sei bem. Mesmo assim, metade deles não está disposta a enfrentar o trânsito de São Paulo para dirigir-se à Alameda Santos, onde fica a ampla garagem da livraria FNAC, livraria na qual, como noticiado pelo Migalhas (clique aqui), em data de 10 de Dezembro haverá o lançamento do livro Justiça & Caos. Resta a outra metade, nada menos do que 37.500, se me não falha a matemática, mais gente do que a maioria dos torcedores que se dispõem a ver um Fla x Flu ou um San-São. Ou um Come-Fogo, para homenagearmos a brava gente de Ribeirão Preto. Se todo esse público se dispuser a vir à tal vernissage, que será do já caótico trânsito daquele trecho da cidade de São Paulo? Se passeata de professores, que reúne uma ínfima parte disso, já rende homenagens às mães deles, imagine o que será das orelhas da falecida mãe do autor daquela obra literária em tais circunstâncias? Pensemos, por tudo isso, em um número mais factível: 10%. Não me refiro a 10% do número de leitores que receberam aquele exemplar do Migalhas, mas à décima parte do último número levado em consideração para expressar o meu estado de quase pânico. Ou seja: 3.750 pessoas. Façam as contas. Uma fila de 3.750 pessoas exigiria qual espaço para acomodá-las todas ao mesmo tempo no mesmo lugar? Calcule, otimisticamente, 30 centímetros quadrados por pessoa, vá à máquina de calcular e terá a resposta em metros. Ou quilômetros, não sei bem. Talvez será melhor falar em pessimisticamente. Isso, porém, não é problema meu, mas do DSV. Ele que destaque para lá tantos marronzinhos quantos necessários forem para a boa ordem do tráfego. Meu problema é muito outro. De fato, qual a rotina em uma cerimônia dessas? Segundo minha pessoal experiência, o futuro leitor vai até o caixa com o livro que havia pego na prateleira, paga o livro e vem até a fila de autógrafo. O autor do livro lhe dá um sorriso e uma breve saudação, o que consome alguns preciosos segundos. Em seguida o candidato a leitor estende o livro, que é recolhido pelo autor, que o abre naquela página onde a moça do caixa havia posto um papelzinho com o nome do comprador, contando que o autor, naquela idade, não vai estar a lembrar o nome de toda pessoa que, no devido tempo, lhe dirá "Lembra-se de mim? Quanto tempo, hein? Você não mudou nada!". Mesmo que seja o irmão do escritor. E outras frases semelhantes que servem para inflar o ego do conceituado escritor e atrasar a cerimônia programada. Ato seguinte, o autografante lança no livro uma frase com letra ilegível, lança uma rubrica e a data, fecha o livro e o devolve ao futuro leitor. Com essa onda de telefone celular que mais parece um bombril, tantos são os mil e um instrumentos que abrigam, e como fatalmente haverá um ou uma acompanhante, a quem o futuro leitor ou futura leitora pedirá: "Benhê, pode fotografar a gente?", mais tempo a ser considerado. Aí o autografante levanta-se, fica ao lado do ou da adquirente da preciosa obra literária e fala "xixi", para aparecer sorrindo na foto. Se se cuidar de leitora, ele fatalmente encerrará aquela mini-cerimônia com um respeitoso ósculo na face esquerda. Mediram o tempo? Pois minha experiência mostra que é impossível dedicar a cada leitor menos do que um minuto de tempo, isso em média, considerando as moçoilas beijoqueiras numa ponta e os senhores de rosto grave e ar de crítico literário, a outra, teremos um minuto no meio da curva de Gauss, como diria a Maria Helena. Se a minha bexiga nesse dia se comportar como não costuma fazê-lo, eu não terei de levantar-me a cada meia hora para ir depositar a água que vou tomando enquanto fico ali sentado naquela prazerosa sauna que geralmente são as salas de autógrafo de livros, temeroso de uma desidratação. Isso significa que deverei valer-me de 3.750 minutos até que o último leitor, já com olheiras e barba crescida, seja por mim atendido. "No céu os últimos serão os primeiros" será a piadinha que lhe direi, para tentar compensar aquele tempo de espera. Qual tempo? Se a minha calculadora não me trai, 3.750 minutos equivalem a mais de 40 horas. Ou seja, o primeiro leitor já foi para casa, deitou-se na cama dele, dormiu, acordou no dia seguinte, tomou banho, barbeou-se, foi trabalhar, voltou para casa e eu ali, com um massagista ao meu lado, como se fosse aquilo uma partida de tênis de Roland Garros, a contornar as sucessivas câimbras na mão direita que tanto me atormentarão. Tomado de pânico, ante a absoluta falta de condições físicas para uma partida desse jaez, se me permitem a má palavra, estou pensando em reduzir meus cálculos, para que, chegando a uns 25 leitores, se tantos, minha saúde não corra os riscos que já me preocupam. Pensem nisso, antes de resolverem atender ao convite que lhes foi precipitadamente feito. Escrevo isso, estejam certos, exatamente para mostrar a todos a irresponsabilidade de quem resolveu divulgar que no dia 10 de Dezembro, a partir das 19h, na FNAC da Avenida Paulista, haverá o lançamento do aguardado livro Justiça & Caos. Se puder, não vá.  
sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Evolução

  "O carvão, o petróleo e o gás são chamados combustíveis fósseis porque são compostos principalmente dos resíduos fósseis de seres remotos. A nossa civilização funciona pela queima dos resíduos de criaturas humildes que habitaram a Terra centenas de milhões de anos antes que os primeiros humanos aparecessem na cena. Como num terrível culto canibal, subsistimos dos corpos de nossos ancestrais e parentes distantes." Carl SaganBilhões e bilhões Nossos bisavós acreditavam que a religião lhes servia para saber tudo o que precisava ser aprendido. E viviam muito felizes. Pelo menos foi essa a idéia que nos foi transmitida por nossos avós. Já os nossos pais, talvez já pensassem que a coisa não era bem assim. Alguns deles, mais exagerados, chegavam a negar qualquer valor àquelas verdades dogmáticas. "O que a ciência não comprova eu não aceito". Ou, como dizia o pai de um amigo meu, que, espelhando-se no exemplo paterno, um dia, jovem ainda, proclamou que ele também era ateu. Ou agnóstico, sei lá. "E você lá tem idade para não acreditar em Deus, fedelho?" foi o sábio conselho que ouviu na ocasião. Graças à ciência aprendemos que a vida começou no mar, o verdadeiro pulmão da Humanidade. Um dia os peixes se cansaram daquele ir e vir infernal e resolveram tentar a vida cá fora. Parece que, de início, deslumbrados com o tamanho do céu, os antigos peixes resolveram explorar todo aquele espaço. Mas logo descobriram que bater as asas vinte e quatro horas por dia não estava com nada. Até porque precisavam de comer e de beber, se quisessem sobreviver. Talvez até dormir, coisa que, segundo dizem, até os peixes fazem. Aliás, botar ovos na maciez das nuvens, nem pensar, concluíram eles, sabiamente. E os peixes, que haviam evoluído para aves, agora evoluíram para mamíferos, coisa, aliás, que as baleias e os golfinhos já eram. Disso segue que, rigorosamente, o morcego não é um rato que voa, como geralmente se diz. Ao contrário, repare que as asas do morcego, cujo esqueleto mostra isso, até mesmo com unhas nas pontas, é o prenúncio do que seriam as pernas dianteiras do rato. A rigor, o rato é que é uma "evolução" do morcego. O que acaba me levando de volta à religião. Ou, melhor, à sua forma disfarçada de invadir a área pretensamente científica, como a ciência do Direito, que se apóia em dogmas claramente religiosos. Obrigar um judeu ou um muçulmano a ser juiz em uma sala onde está pendurado o símbolo do cristianismo é, quando menos, um disparate. Mas que é mantido pelos nossos juízes, em nome de algo que o Gilberto Gil, se entendesse do assunto, chamaria de "cultura". Um desses dogmas está presente na idéia de que o homem não evolui: é hoje o que foi sempre. Ele não foi criado à imagem e semelhança de Deus, mesmo que não saibamos como é a imagem de Deus? Pois então. O problema será descobrirmos se essa mera semelhança não se tornou igualdade. Tudo o que nossos olhos e nosso olfato nos mostram é que os peixes e os macacos jamais haviam pensado em poluir o mar e os rios ou queimar as florestas para produzir mais gás carbono do que a atmosfera poderia suportar. Somente graças à "evolução" do ser humano é que esse "progresso" logrou ser alcançado. Os verdadeiros cientistas sabem e dizem que a ciência consiste em um conjunto de conclusões que se baseiam naquilo que pode ser conhecido hoje. O amanhã a Deus pertence, diriam eles se dissessem o que pensam. O Direito pretende ser ciência. Em nome disso proclama que homens e mulheres são iguais. Nem um cego de nascença faria uma afirmação disparatada dessas. Nem precisa chegar a Papa para sabê-lo. Nem ter lido São Paulo. Mas vá negar esse dogma jurídico para ver o que te acontece. Diz-se também que todos os homens são bons e que o pecado é coisa natural no ser humano, motivo pelo qual devemos ser tolerantes para com esse sinal de nossa fraqueza, demonstração de que ainda somos apenas imagem, ainda não atingimos a perfeição que só Deus possui. Acontece que "crime" e "pecado" são dois conceitos que não se confundem, cientificamente falando. A penitência, que a teologia católica vincula ao pecado, nada tem a ver com a pena, que o Direito Penal vincula ao crime. O "olho por olho", por sinal de origem religiosa, tinha por escopo, na área mundana, mostrar ao pecador o tamanho do mal que havia causado. Matou? pois que morra. Graças à contaminação religiosa, deu-se ao local onde os criminosos, nos países mais atrasados, devem ficar durante algum tempo, depois de condenados por uma autoridade civil, o sintomático nome de "penitenciária". O estrago estava feito. Roubou cem ou roubou um milhão? Pena de três anos, com direito de liberdade provisória depois de alguns dias do início do cumprimento. Só não imita o criminoso quem for muito besta. Ou muito medroso. Felizmente, para a sobrevivência de outros animais, a evolução do ser humano está a produzir o derretimento das geleiras do hemisfério norte da Terra. Com isso, o nível dos oceanos deve elevar-se até cinco metros nas próximas décadas, segundo os cálculos mais otimistas. O que bastará para fazer submergir as principais cidades que a inteligência humana fez construir nos litorais do mundo. Graças a isso os peixes voltarão a multiplicar-se, até porque não haverá o ser humano para dizimá-los. Com o tempo voltarão a voar. Depois terão as asas atrofiadas. Um belo dia aparecerá de novo na face da Terra um evoluído animal, andando sobre as patas traseiras, que se achará no direito de encerrar o ciclo evolutivo, dizendo-se o eleito de Deus. Com ele virá nova revolução industrial, produção industrial sempre crescente para atender ao consumismo desenfreado, países lutando para preservar suas fontes de combustível e seus mercados cativos e tudo o mais que já conhecemos. E tome poluição.
sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Coisas banais

Hoje pretendo falar de coisa séria. Os que me têm generosamente abonado os escritos, dando-me palmas e mais palmas a modo de estímulo, certamente para que eu não passe vergonha junto a meus familiares muitos e amigos pouquíssimos, que me cobram diuturnamente novos escritos, como se eu coisa outra de mais valia não tivesse para ocupar-me o parco tempo de que disponho para exercitar a arte da escrita, hão de concordar, refiro-me àquelas pessoas referidas logo no início da frase e que lá no alto ficaram ao abandono por força das necessárias explicações que me pareciam adequadas, as quais, em verdade, se seguiriam, como de fato se seguiram, volto a falar dos que me têm generosamente aplaudido, para complementar agora que haverão eles, que sois vós, de reconhecer que muito do temário por mim abordado em tais escritos diz com coisas menores, assuntos sem maior relevância, picuinhas, nonadas, no dizer do Guimarães, como, cito apenas um deles, por sinal dúplice, a vida e a morte. Com efeito, com a sinceridade que nossa amizade, se assim posso dizer-vos, nos permite, diga lá seu parecer a respeito da relevância que pode ter um tema desse jaez. Acaso falar da morte prolonga a vida? Falar da vida acaso assusta a morte? Sei-lhe a resposta, que outra não pode ser, a menos que eu esteja a ser lido por um asno de tamancas, coisa que em nada contribuiria para melhoria da imagem que tenho de mim próprio, que outra não pode ser, repito, do que um rotundo não. Um desses nões, se é que alguém me permitiria pluralizar um solidíssimo advérbio, máxime, não menos do que máxime, sendo ele de negação, um desses nões que põem termo à mais até então entusiasmante conversa. Um desses nões a que se segue um silêncio rotundo e opaco, desses de calar a mais tagarela das maritacas. É o caso do meu dileto amigo Caio, um santista de oito costados, menos por sua preferência clubística e mais por haver ele nascido naquela urbe praieira, o que, ele que não leve a mal a revelação, se deu quando o senhor João Ramos do Nascimento naturalmente ainda engatinhava nas ruas esburacadas de Três Corações, incapaz, certamente, de dar um chute numa bola de futebol, até porque ainda não atendia pelo pseudônimo de Dondinho, menos ainda estava em condições de sonhar que um dia teria um filho que, de tanto falar "Vai, Bilé; vai, Bilé", acabaria sendo apelidado de Pelé e, segundo dizem alguns, aí incluído o Edison Arantes, teria sido o maior craque de futebol de todos os tempos, os argentinos que me desculpem a sinceridade, entende? E que tem, falo do Caio, uma particularidade: é possuidor da mais sonora gargalhada que alguém já ouviu nesta vida, não sei se também na outra, pois, para evitar mal-entendidos, ele é proibido de ir a velórios. Vamos que algum parente do morto se deixe influenciar pela irresistível gargalhada do homem e adeus falsa seriedade. Nem o Paulo Autran conseguiria, se vivo fosse, interpretar o papel de pessoa compungida que a maioria dos parentes interpreta nos velórios, geralmente a usar óculos de lentes escuras, para que se não lhes vejamos os safados olhos. Daí a afastarem a mesa com o respectivo caixão e saírem com uma "vocês conhecem a última do Zé Simão?" seria um pulo. Pois o Caio está nessa idade em que espirro é sintoma de tuberculose. Eu mesmo, mais novo do que ele muitos e muitos dias, depois de pisar num cocô de cachorro, coisa que mais tem aqui nas ruas de Moema, passei a arrastar o pé esquerdo, para livrar-me daqueles resíduos mérdicos, despertei a atenção de minha mulher: "Você está bem? Dói alguma coisa? Quer que eu chame um táxi? A prestação do terreno no cemitério deste mês foi paga?" Imagine o Caio, tão assim mais velho! Alguém me disse que ele havia sido internado. Se dizem isso de uma moça, filha ou neta de um amigo nosso, damos um prazeroso sorriso, como que dizendo "e aquela moça por acaso precisa de lipoaspiração?" Se, no entretanto, o internado tiver sido o pai ou, pior ainda, o avô dela, nós pomos aquele terno escuro para tomar sol e ficamos aguardando a indicação do endereço aonde deveremos ir com aquela roupa agourenta. E se se passa uma semana sem termos notícia dele, distraidamente consultamos o jornal para sabermos onde vai ser celebrada a missa de sétimo dia. Eis aonde eu queria chegar: "o Caio foi internado" disse-me alguém, talvez o Alberto, que com ele gazeteou na mesmíssima praieira cidade, já lá vão séculos, fingindo-se ambos estudantes de Direito. Passa-se a tal semana, o mês, o semestre e não se fala mais nisso. Tenho outros amigos cuja idade também inspira cuidados nos herdeiros e nunca mais se falou no homem, para tristeza minha, saudoso de sua cascateante gargalhada. Pois passa-se o tempo, como reconhecia o Fiori Giglioti, hoje irradiando futebol em campos celestes, e eis que estou eu no desempenho de minhas atribuições maritais, empurrando carrinho com a mão esquerda e segurando lista de compras com a direita, ou vice-versa, que isso não vem ao caso, quando em sentido contrário vem outro carrinho, sendo empurrado por alguém parecidíssimo com o Caio. À medida que o carrinho se aproxima, o seu condutor vai deixando de ser parecido com o Caio, até que se materializa o próprio Caio à minha frente. "Mas eu soube que você" diz um. "Mas eu também soube que você" retruca o outro, ambos rindo, sendo que a minha gargalhada era um simples vagido de recém-nascido diante daquela cascata sonora do Caio, que petrificou as poucas senhoras que por ali também circulavam, vai ver são viúvas. Abraço demorado, um "que bom te ver" de cá, um "também estou morando em Moema" de lá, seguido de um "precisamos nos encontrar", troca de cartão e, certamente, um silêncio sepulcral, passe a aziaga palavra, nos próximos dias, semanas e meses. É uma pena pois logo agora estou experimentando um novo remédio que importei da Alemanha e eu queria perguntar a ele se conhece. Mas, como eu dizia no início, isso é tema que não interessa a ninguém. Nem ao Caio. Importante mesmo é o assunto que escolhi para hoje, já que eu queria falar, como deixei registrado acima, não sei se estarão lembrados, de coisa mais séria, como as modernas embalagens de leite, por exemplo. Houve tempo em que leite de vaca estava no redondo ubre da vaca ou na roliça garrafa de vidro que um ser misterioso deixava junto à porta de nossas casas ainda madrugadinha. Tertium non datur. Veio a tecnologia e inventou-se a melancia cúbica. "É pra caber mais no caminhão" justificaram os seus inventores, que aproveitaram a matriz e criaram o leite em caixa de papelão. Inicialmente a caixa vinha com duas orelinhas abaixadas, qual um coelho tímido, com indicação de que se elevasse uma delas e se lhe cortasse a ponta, para permitir a ordenha. O resultado era aquele ploc, ploc do leite a saltar coelhamente para além do copo, para gáudio das donas de casa. Conhecessem os inventores de tal embalagem, minimamente que fosse, a física e teriam indicado que se podassem ambas as duas, não menos do que ambas as duas orelhas do coelho em corpo de tijolo, o que permitiria que, à medida que o leite buscasse saída pelo lado de lá o ar entrasse pelo lado de cá, compensando-se assim uma coisa com outra, a impedir o desagradável ploc, ploc e tudo aquilo que nossa esposa diz depois disso. Querer, porém, que engenheiro saiba física parece demasia e, em lugar de solução tão simples, o que fizeram eles foi inventar tampinhas do mais diverso formato. Hoje uma que se rosqueia e desrosqueia; amanhã uma que se levanta e se abaixa; depois de amanhã uma que se puxa para fora da caixa. Se tantas são as soluções, claro está que nenhuma se mostra solução definitiva, mesmo porque a tampa que deveria desrosquear não obedece ao comando de tuas famintas e trêmulas mãos, a gerar impropérios matinais e outras inconveniências que acabam por tirar tua vontade de ter acesso ao conteúdo da lacradíssima caixa; a tampa que deveria subir e descer está de tal forma colada ao corpo da caixa que só usando a ponta da faca para tentar desgrudar aquilo. Se era para eu ter de usar a faca, para que o laticínio haveria de encarecer o preço do produto pagando royalty por aquele arremedo de solução? Melhor voltar ao supermercado. Menos para comprar leite em picassianas caixas do que para ver se encontro o Caio.
sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Deinde Philosophari

"Filosofia é uma xienza tale, senza la quale il mondo vá tale e quale." Juó Bananére(autor de La Divina Increnca,pseudônimo de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado) Se os filósofos servissem para outra coisa não ficariam perdendo tempo apenas pensando. Dê-me uma alavanca, um ponto de apoio, um bom salário e eu moverei o mundo. Há certos filhos que passam a vida ao lado da mãe, tão inúteis como uma flecha que não saísse de perto do arco. A famosa luz no fim do túnel pode ser apenas um bêbado que vem em sentido contrário, fumando seu cigarrinho. Um quadrado que não se conforma em ter apenas quatro lados e resolva aumentar o número deles, um dia será um círculo. O homem caminha da água para a cova, onde se eternizará. A tartaruga faz a caminhada no sentido inverso, e viverá enquanto der. O anzol, como as prostitutas, se fosse direito seria inútil. Dizer que os políticos são falsos é algo tão falso como todos os políticos. Quem nasceu primeiro: o ovo ou a tartaruga? A maioria das pessoas reclama porque a janela da sala está aberta, mas não se levanta para ir fechá-la. Pra mim, a revolução social será isto: os eleitores um belo dia sobem no palco, expulsam dali os palhaços e tomam, definitivamente, os seus lugares. E ficarão o tempo todo diante do espelho, rindo de si mesmos, vestidos, é claro, de palhaços. Quando atingi a sabedoria, fiquei em dúvida se parava por ali ou continuava, tentando encontrar a modéstia. Segundo o Carlos Drummond de Andrade, quando um dos irmãos Marx nasceu, um anjo torto lhe disse: "vá ser Groucho na vida!" Eis uma prova da discriminação social vigente em nosso país: dentre todos os filhos de lavadeira que nasceram no Brasil, apenas um se tornou presidente da Academia Brasileira de Letras. Talvez porque tenha sido o seu fundador. Há certos homens que são semelhantes a Plutão. Com esse nome pomposo, não era um planeta, mas um reles meteoro. Barriga masculina é abdômen. E a barriga feminina? Para os crentes, um e um sempre dará dois. Para o cético, talvez dê onze. Finalmente, depois de muito esforço, as mulheres conquistaram o direito de serem tão grosseiras como os homens. Quem entra em Roma na contramão, acaba descobrindo o amoR. Para os médicos, todos os males vêm para o seu bem. A bolsa ou a vida? Leva a vida, que da bolsa vou precisar para custear o enterro. Certos velhos arranjam namoradas tão moças, que elas parecem ser apenas um hobby. Hobby de chambre. Nem todos os políticos são ruins. Há alguns que são piores. Repare que o Leste é o Este. A vantagem da revolução militar é que nela a justiça farda mas não talha. Incrivelmente, embarcas num navio e navegas num barco. Duvido que consigas dizer o nome das quatro estações do ano sem começar por Primavera. Se o soldado não fosse ordinário, ele marcharia? Garçom, tem um pouco de chope na minha espuma! Os escritos de Leonardo da Vinci só podem ser lidos em um espelho. É que ele era canhoto e escrevia de trás para a frente. Cigarro é um tubinho de papel que tem uma brasa de um lado e um futuro canceroso do outro. Se o Santos Dumont não se tivesse suicidado, ao ver o destino que os homens deram ao avião na guerra, descobriria que o relógio, que ele ajudou a aperfeiçoar, tem sido utilizado como disparador de bombas caseiras. Queixa-te das tuas dores. Mas, se não fossem as penas, as aves morreriam de frio. Se o Cristo Redentor estivesse abençoando o Rio de Janeiro, o braço direito dele estaria voltado para a frente, dobrado em ângulo reto, com a mão para cima. Ironia: os advogados norte-americanos são punidos pela American Bar Association quando se tornam alcoólatras. Dize-me com quem andas e eu lhe direi quem és. A abelha faz o mel, do pinho se faz papel. Quem matou Caim? A vida que levas vai levar-te a vida. A zebra albina é um animal branco de listras brancas ou um animal negro de listras negras? No presídio de segurança máxima, ao ser levado semanalmente ao quintal, o preso exclama: "antes sol do que mal acompanhado!" Certos jogos de futebol são tão ruins, que a impressão que se tem é que a bola não foi jogada para fora do campo por um chute de um perna-de-pau. Ela é que quis ir embora, de vergonha. Os terrícolas são peixes que se cansaram de voar. Ontem, ontem tinha agá; hoje não tem. Mas hoje tem. A diferença entre o poeta e o filósofo é que ambos escrevem coisas que nós não entendemos. Eu não disse?   A frase completa é: primum panem deinde philosophari. Primeiro as coisas materiais, depois as coisas espirituais. Ou, primeiro a obrigação, depois a devoção.
sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Novo astro (Um)

  À Maria Helena,com muito amor. Eu deveria começar a crônica desta semana citando um desses ditos populares, tal como quem sai aos seus não degenera. Ou então filho de peixe nasce nadando. Aí apareceria um desses estraga-prazeres para contar a história da coruja que, para que o gavião, que ela havia tirado de uma situação embaraçosa e queria mostrar-se grato a ela, não lhe comesse as corujinhas filhas, orientou a rapinácea ave: "Meus filhos são os filhotes mais lindos da floresta. Se quer retribuir o favor, poupe-os". O que não impediu que o aparentemente ingrato gavião devorasse a ninhada corujal toda, como haveria ele de conhecer essas psicologias psitáceas? Como quer que seja, sempre nos restou a expressão mãe-coruja, designativa dessa incapacidade materna de olhar com olhos neutros sua ninhada. Coisa, aliás, que também se aplica a certas avós. Ou diria aquele chato, todo despeitado, que quem conta um conto aumenta um ponto. Pensei, pensei e resolvi não colocar qualquer nariz de cera, entrando diretamente no assunto: hoje falarei do Felipe. Quando nasceu, coisa aí de ano e meio passado, o garoto já prenunciava novidades. Não chorava em si bemol, como é comum nessa espécie de filhote, mas em dó maior. Fosse por ele, nem haveria necessidade de ginecologista, obstetra, parteira, pediatra e nutricionista. Ele mesmo iria à cozinha da maternidade e com o dedo indicador direito apontaria aquilo que queria comer e beber, depois de ter nascido com as próprias pernas e os próprios braços, auto-suficiente como ele só, e ido da sala de parto ao apartamento da maternidade por si mesmo, só não apertando o botão do elevador porque, em razão da imprevidência dos adultos, estavam tais botões muito acima de sua cabecinha. Mas certamente teria tentado apertá-los, como atestariam os vários pulos presenciados por uma ou duas enfermeiras, a demonstrarem essa sua disposição, falo dele, e sua auto-suficiência. Tudo narrado pela avó paterna. Pais modernos, metidos a intelectuais, lá vai o Felipe para o berçário da esquina, sendo então levado à sala onde pessoas ainda não auto-movimentáveis ficam o dia todo deitadas, a olhar o teto e a chupar chupeta, quando não o polegar. Ao passar por outra sala, onde crianças se divertiam estapeando-se mutuamente, o Felipe não deixou por menos: é aqui que eu quero ficar. Não disse isso em linguagem audível, mas as mocinhas da escola infantil precisariam ser sumamente estultas para não deduzirem isso do berreiro que ele aprontou, só abortável quando ele era posto junto das crianças maiores. "Mas elas sabem andar, ao passo que você só engatinha!" exclamou uma delas. Não seja por isso. Ele levantou-se sobre as duas pernas e, caindo e levantando-se, passou a acompanhar os marmanjos, inúmeros meses mais velhos do que ele. E vieram as descobertas que lhe iam saciando a curiosidade. "Que gosto terá a carne de gente?" indagou-se ele. Só experimentando, respondeu-se. E sapecou uma mordida, com os dois solitários dentes superiores e outros tantos inferiores, no braço de um colega que, contrariado por haver sido escolhido sem prévia consulta, se é que há consulta a posteriori, para aquela utilíssima experiência, põe-se a berrar, mostrando-se precocemente inimigo do progresso científico. Foi o que constou da cartinha que o futuro cientista levou para casa no fim do expediente escolar. Ciente de que os dias do nosso planeta estão contados, lá vai o Felipe explicando a esta plantinha os esforços que os adultos estão a fazer para impedir a chamada hecatombe, consolando aquela outra porque sua florzinha da esquerda não tem mais hoje o vigor que tinha ontem, ou lamentando que aquela folha amarelecida, que o vento destacou do talo, não possa ser colada a ele, por mais que isso seja por ele tentado. E com cada uma vai conversando, a explicar que zuzuzuba isto, calafita aquilo, gnosminuci algo mais. E que elas, pela atenção mostrada, estão todas a entender. E até lhe pedem algo para beber, o que exige que o ecologista pediátrico vá caçar alguém que lhe encha o baldezinho, que, devidamente provido de água, ele arrasta de cá para lá. E põe-se a distribuir o precioso líquido, valendo-se de uma colherinha de plástico, o que faz irmãmente, um pouco na própria roupa, outro tanto no chão e o sobejo nas já angustiadas plantas. E se estou com um belo chaveiro que tem um patinho de borracha amarelo na ponta, com um botãozinho que, devidamente premido, faz quac, quac, além de lançar uns raios azuis pela boquinha, lá vem o Felipe e decreta que aquilo deve ser desapropriado, mercê de um decreto expropriatório com apenas dois artigos: Artigo primeiro: É meu; Artigo segundo: Revogam-se as disposições em contrário. E lá vai ele, todo bamboleante, imitando meu expropriado pato, que ele mostra a cada flor, apertando com destreza o tal botãozinho na cara de cada uma delas. Se depender da avó paterna, cada enxadada uma minhoca. Explico: se vamos ao shopping ou à feira, uma blusinha de marinheiro ou uma fruta madura são a cara do Felipe. Isso quando não é um pianinho, mais colorido do que a roupa do seu colega Elton John (clique aqui). O que poderá gerar nele um consumismo desenfreado vendo nela uma provedora eterna. Ou um ataque de profunda decepção quando a avó algum dia vá visitá-lo com as mãos abanando, como lhe adverte a ela o sensatíssimo marido, ocasião em que ele, o Felipe, lhe mostrará a ela todo o seu desencanto abrindo as mãos e os braços e exclamando um solene "Cabô". Sem êxito, reconheço, minhas advertências. E já que falei no tal pianinho, diga-me lá: qual foi a reação de teu filhinho, de tua filhinha, de teu neto, de tua neta, ou da criancinha que fosse a quem algum dia deste um pianinho desses de presente? Se era uma criança normal, ela fechou a mão direita, deixou o indicador de fora e se pôs a agredir, com aquele solteiro dedo, o teclado, aquele espaço sagrado que o Paul McCartney comparou à harmonia (clique aqui)que deve imperar entre os habitantes do planeta, sempre com o mesmo plim. E o Felipe? Não fosse ele neto de quem é, sentou-se diante do instrumento, abriu ambas as mãos e despejou ali, delicadamente, nada menos do que os dez dedos, num acorde que certamente teria despertado palmas do Arrigo Barnabé. Não satisfeito, pôs-se o novel tecladista a repetir o acorde, ora mais à direita, ora mais à esquerda, marcando o compasso com o balançar da cabeça para este e para aquele lado, metrônomo humano sem a menor dúvida. Não bastasse isso, fechou seus belos olhos azuis, para que, como nos ensinam certos cantores (clique aqui), a visão das coisas materiais não lhe toldasse a inspiração interpretativa. É claro que você não acredita em nada disso, mas no dia em que isso aparecer momentaneamente no Fantástico ou no YouTube, ad perpetuam rei memoriam, como diz o pai do infante a seus alunos, com que cara você ficará? Eu poderia falar das curvas que ele faz com seu possante veículo, mas deixa isso prá lá. Até pretendia relatar agora o dia em que o José Francisco levou o filho à Faculdade de Direito, onde o pai leciona Direito Civil, e o rebento mostrou o propósito de dar uma aula sobre usucapião extraordinário, a julgar pela página do Código Civil que o garoto escolheu ao abrir aquele livrão, mas, diante de tua cara de descrédito, acho melhor parar por aqui. Eu poderia invocar mais uma vez o testemunho da avó paterna, mas você certamente contraditaria aquele testemunho e eu e ela não estamos aqui para sermos julgados. O futuro dirá quem de nós tem razão.  
sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Última Flor no Laço

  "O que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras." Clarice Lispector O Loyola Brandão diz que escreve para si próprio. Se alguém quiser ler o que ele escreve, isso é lá com o leitor. Grande mentira. Imagine um compositor, Bach ou Tom, por exemplo, compondo apenas para ele assobiar enquanto toma banho de chuveiro. Ou um Rodin dizendo que aquilo tudo que ele esculpiu era somente para pôr no seu jardim lá dele. "Quem teve essa infeliz idéia de abrir um museu com meu nome sem minha autorização?" talvez dissesse ele se vivo fosse. Diria? Eu que não sou digno de amarrar o avental do meu colega Rodin e tenho em comum com o colega Ignácio, meses mais velho que eu, apenas a circunstância de havermos morado ambos em Araraquara, ele por nascimento e eu laboris causa, confesso que me envaideço das cartas que recebo todas as semanas, embora nem sempre elogiosas, até porque quem consegue agradar a todos? Algumas pessoas aproveitam para pedir conselho, fiados nos meus cabelos brancos, como se isso fosse o suficiente para inspirar confiança. Santa ingenuidade, Batman! Tenho sempre procurado utilizar uma linguagem sem afetação, mesmo quando trate de tema, como direi? menos vulgar. E tomo sustos e ganho gratificações. Alguém me diz que, mesmo não tendo curso universitário, lê o que escrevo com proveito, "embora não dispense o dicionário", como se isso fosse demérito do leitor. Até eu, na minha idade, não o dispenso, se é que idade significa alguma coisa, minha cara. Uma leitora confessa que somente entendeu certos conceitos jurídicos quando eu resolvi expressá-los numa linguagem macarrônica. O que me traz séria dúvida: o problema estará na incapacidade do professor em transmitir ou na dificuldade do aluno em compreender? Alguém, impressionado com meu nome de família, me envia mensagem quase criptográfica, em celularês: "owww vc tem o msm sobre nome ki o meu. hsuashuahsa ki massa hehe. Abraçaum." Minha resposta: "A diferença é que eu escrevo em português." E ele, talvez franzindo o nariz: "ke???" Sem direito a tréplica. No livro Cristo Hoje, que saiu em 1982 e está fora de catálogo há muitos anos, tentei parodiar a célebre Torre de Babel, de que fala o Velho Testamento: "Eis que o povo é um e todos têm uma mesma língua. Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro." Qualquer semelhança entre esse texto do Gênesis e os torpedos internéticos será mera coincidência, mas acho que me antecipei à linguagem que se vê nos diálogos (sorry: chats) da Internet. Leia e diga se não foi: "Um corbunzel aproximou-se do esgarto, assim como quem não quer nada. Tens aí uns milhardos? perguntou entre-dentes, olhando de soslaio pra lá e pra cá. - Quantos queres? respondeu o outro, com naturalidade. Espantado e ainda olhando com desconfiança, tornou o corbunzel: traga-me aí uns três ou quatro, mas de bom tamanho. O esgarto, cantarolando uma passama recente, dirigiu-se ao fundo do javélio, levantou a panta do panacro cor de jumas e dali retirou quatro milhardos grandes, que trouxe ao recém-chegado. Os olhos arregalados do corbunzel não saíam dos milhardos. - Quanto é? Quanto é? Perguntou, algo impaciente, sempre olhando para um lado e para o outro, como se estivesse sendo observado. Trinta divacos, sentenciou o esgarto, sempre impassível. Trinta divacos? Caramba que estás exagerando, reclamou o corbunzel. - Pagar ou largar. Vais querer ou não? indagou o outro, muito senhor de si. - Não fazes ai um arremenho? gemeu aquele, sempre olhando muito assustado para um lado e outro. Nem arremenho, nem meio arremenho. Trinta divacos, fulminou o outro, preparando-se para levar de volta os milhardos para o fundo do javélio. O assustado corbunzel meteu as lábrigas nos sutores da calácia e contou os trinta divacos, sempre a tremer. Aí estão os trinta divacos, rosnou. Aí estão os teus milhardos, respondeu o esgarto. O corbunzel meteu rapidamente os milhardos nos sutores, saiu da trâmina e pôs-se a caminhar com pedicos rápidos. Mal dera trezentos pedicos e dois enormes malacheiros o interceptaram asperamente. - Que trazes ai nos sutores? O pobre corbunzel pôs-se a tremer mais ainda. Tentou falar mas a vácacha não lhe saiu da balga. Os malacheiros, então, metendo-lhe as lábrigas nos sutores, tiraram dali os milhardos. - Então era isso que transportavas, salámaco. Onde os conseguiste? - Foi na trâmina daquele esgarto que fica ali na ráviga. E apontou com o desmo da lábriga direita, pois a esquerda estava num dos sutores. - Pois vamos lá ver isso. E lá foram. O esgarto recebeu-os com incrível naturalidade. Serviu-lhes alguma bagruaca, que sorveram gostosamente. Depois, um dos malacheiros, que parecia ser o págnato, questionou: foi aqui que este salámaco conseguiu isto? - É evidente que não, afiançou o esgarto. - Foi sim, protestou o corbunzel, algo contrariado. E os retirou daquele panacro cor de jumas que está ali no fundo do javélio. Os malacheios dirigiram-se ao fundo do javélio e levantaram a panta do panacro. Somente encontraram ali facemas e junacas. - Além de salámaco és um trâmico, rugiu o que parecia ser o págnato, ao mesmo tempo que dava solene tracão na maçola do pobre corbunzel. - Queira desculpa-nos pelo desafato. Jamais duvidaríamos de um esgarto, não fosse este trâmico. E novo tracão na maçola do corbunzel. Dali saíram, ao que parece para a traquiventa mais próxima, onde o corbunzel já sabia o que o esperava. Quanto ao esgarto, continuou a cantarolar uma passama recente, feliz da sua condição de esgarto." Sacou, cara?  
sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Justiça

  "A injustiça é relativamente fácil de aturar; é a justiça que fere." Henry Louis Mencken Os nossos comentaristas esportivos vivem dizendo que o resultado do jogo de futebol foi justo. Ou então que foi injusto. É o caso de perguntar-lhes : que vocês entendem por justiça ? Vocês se consideram pessoas justas ? Por quê ? Lidando com essa palavra há mais de 50 anos, acho que tenho autoridade para dizer isto a eles : a Justiça, humanamente falando, não existe. Como ? Vejamos. Quando estávamos na Faculdade e os professores gostavam de esnobar-nos com citações latinas envolvendo Tício e Mélvio, se dizia que a justiça consiste em "suum cuique tribuere", "dar a cada um o que é seu". Eis a contradição evidente : se já é meu, por que alguém haveria de dar-me ? Não seria melhor dizer "assegurar a cada um aquilo que deve ser seu" ? E como ficaria isso na língua do Calígula ? Sei lá, meu latim foi-se com os meus cabelos pelo ralo do box do banheiro. Na verdade, a palavra justiça apareceu quando os reis se elevaram, atrevidamente, à condição de representantes de Deus na Terra. Como não podiam usar a auréola própria dos santos, inventaram algo parecido : a coroa. Sendo deuses, ou quase isso, eles baixavam as leis, fiscalizavam o cumprimento das leis e puniam quem não cumpria as leis, o Montesquieu que não me venha censurar por dizer isso. Isto é, mandavam para o inferno, literalmente, quem não se curvasse diante de Deus, isto é, diante do rei. Até espalharam que não tinham sangue vermelho, como nós, os pobres mortais, pois tinham sangue azul. Da cor do céu, perceberam a sutileza ? Romântico, não ? O problema é que o rei Henrique VIII gostava de trocar de esposa como quem muda de camisola em time de futebol português. Ocorre que o Papa não consentia nisso, o que levava o rei inglês a resolver a questão de um modo bastante prático : acusava a esposa de algum crime grave e passava a condenada pelo fio da espada. Hoje Ana Bolena, amanhã a Catarina Howard e vamos que vamos. Quem prestasse atenção nessas execuções, porém, descobriria que o sangue da executada não era azul coisa nenhuma. Mas vá dizer isso em público ! "Sempre cabe mais um", diria Sua Majestade, referindo-se menos ao sabonete e mais ao patíbulo. Repare que os juízes têm, no fundo, uma pose real. Nem poderia ser de outro jeito. O fórum se chama Palácio da Justiça, a roupa que eles usam mais parece uma batina e a padroeira deles é Têmis, também chamada Justitia. Não é de admirar que eles se considerem em condições de fazer aquilo que é atributo de Deus e dos reis : julgar. Lembre-se do Julgamento Final, quando o verdadeiro Juiz vai separar o joio do trigo, como se diz na Bíblia. Algum de nós acaso já viu esse tal de joio algum dia ? Pois então. Isto quer dizer que, para fazer justiça, só tendo os atributos de Deus, coisa que nenhum de nós tem, por mais que tentemos e por mais complicada que seja a redação das sentenças dos juízes. Aliás, dizem que a diferença entre Deus e um desembargador é que Deus tem a certeza absoluta de que não é desembargador. Na realidade, a atividade do juiz não tem nada a ver com a justiça divina, até porque se Deus for realmente justo, quem se salva? Ao juiz cabe apenas resolver conflitos entre pessoas, em torno dos chamados "bens da vida". Aquilo que o Candinho diz que se chama lide, caracterizada por um conflito de interesses. Pense na relação entre o dono da casa e o seu inquilino, dizia eu a meus alunos, já lá vão lustros a perder de vista. Qual o bem da vida para o inquilino ? "A casa, onde ele abrigará a si e a sua família" respondia a classe em uníssono. Isto é, todos eles com o mesmo sono. E para o dono ? "O dinheiro do aluguel" bocejavam eles. Logo, se o dono quer aumentar o valor do aluguel, ou se o inquilino não paga o aluguel, virá o juiz e tentará resolver aquele conflito. Era o que eu dizia em complemento. E aditava, todo otimista : tão melhor juiz será ele quanto mais depressa desatar aquele nó, mesmo porque, quem perder a causa jamais se conformará com isso. Ou vocês acham que quem perde a causa vai dizer que o juiz foi justo ? E tanto ele não é Deus nem aquilo merece o nome de justiça que de sua decisão cabe recurso, coisa que lá em cima não vai haver, segundo me dizem uns padres que eu consulto vez ou outra, por via das dúvidas. Voltando ao futebol : meu caro Juca, para se dizer que algo é justo ou é injusto, temos de ter em mente qual é o padrão da medida. Se alguém vem à minha lojinha de tecido comprar um metro de gabardine, eu, antes de mais nada, pego esse tal padrão, que se chama régua. Régua e regra provêm da mesma regula latina, que se pronunciava régula. Se eu coloco a tal régua, que tem um metro exato, sobre o tecido, eu saberei onde está o um metro justo que a minha freguesa quer comprar. Se em minha quitanda alguém quer um quilo de beterrabas, eu vou colocando as beterrabas naquele prato da direita até que os dois pratos fiquem equilibrados, pois no prato da esquerda está o padrão. "Um quilo justo, freguesa", digo eu todo pimpão. Ora, no futebol, qual é a regra ? É, salvo erro meu, esta : ganha o jogo quem fizer mais gols. Como não há regra alguma a dizer que o vencedor será aquele que jogar melhor, perder ou ganhar não tem nada a ver com o padrão fixado para isso. Logo, como falar em justo ou injusto, Zé Trajano ? Injusto, meu caro Juca, talvez seja o resultado de um concurso de Miss. Aí, segundo a regra, vencerá quem for a mais bonita e não aquela feiosa que conseguiu conquistar a simpatia dos jurados utilizando outros de seus inúmeros predicados. Ou, vindo mais ao chão, injusto é nomear-se juiz para algum Tribunal Superior algum político que sabidamente jamais poderia ser considerado alguém com "notável saber jurídico", até porque notável quer dizer "aquilo que dá para notar", o que geralmente será reconhecido pelas obras e obras publicadas pelo candidato. Esse é o padrão. Deu pra entender, ou quer que eu diga nomes ? E se algum desses comentaristas esportivos disser que esta crônica o deixou com a moral baixa, como eles dizem de jogadores que erram cobrança de pênalti, eu lhes direi que a moral não tem nada a ver com isso. Perder pênalti talvez abale o moral do jogador, palavra masculina que significa ânimo, brio, vergonha. Crônica esta, aliás, com algumas alternâncias, e não cheia de alternativas, como aqueles mesmos comentaristas se referem a alguns jogos que transmitem e no qual ora o time de cá está mais perto de marcar, ora o time de lá. Tudo dependendo da categoria dos jogadores e, em conseqüência, aí sim, das alternativas à disposição dos técnicos. Entendeu, Carlos Caetano Bledorn Verri ? Aliás, achas justo que continuem a te chamar de Dunga ?  
sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Coragem de ser Artista (A)

  "Quod natura relinquit imperfectum, ars perficit." Provérbio alquimista Em seu celebrado História da Arte, H. W. Janson procura, inicialmente, conceituar a Arte. Páginas e páginas depois você conclui que ele não explicou nada. Aí você tenta entender a diferença entre artista e artesão. O artista possui originalidade, coisa que falta ao artesão, diz ele. O problema é conceituarmos originalidade. Talvez a obra do artista seja única, enquanto o artesão repete a obra vezes sem conta, sugere ele. Se você considerar que uma gravura é igual a outra gravura da mesma série, voltaremos ao ponto de partida. Aliás, depois que se incluiu a fotografia na categoria de obra artística, adeus peça única, coisa para uma Mona Lisa ou uma Vitória de Samotrácia. Aliás, nosso Vik Muniz, que se bandeou para os EUA há mais de vinte anos, em sua auto-biografia, intitulada Reflex, fala das "origens dos múltiplos e a multiplicidade de originais", até porque ele é fotógrafo. E conclui : quem adquire uma peça única feita por Van Gogh, que, aliás, não vendeu mais do que dois quadros em vida, está mais interessado em revendê-la com bom lucro amanhã ou depois do que apreciá-la como obra de arte. Mesmo porque ela ficará guardada na caixa forte de algum banco, longe de olhares curiosos, nem que sejam os de seu atual dono. Que é mesmo arte ? "Todo dia ele faz tudo sempre igual", diria o Chico. Na biografia do artista catalão Joan Miró, batizada A Cor dos meus Sonhos, há algo assim : ele acordava, ficava na cama uma hora ou mais, programando mentalmente o que iria fazer durante aquele dia. Depois disso levantava-se, ia até o estúdio, onde se dirigia a um dos quadros inacabados, no qual ele trabalhará naquele dia. Alguns desses quadros inacabados esperavam há anos esse novo contato, incentivado pelo passeio mental dele naquele dia. "É hoje !" certamente era o que lhe dissera seu interlocutor intergalático em sua reflexão matinal nesse dia. Graças a essas tais reflexões matinais, que não são privilégio do Miró, descobri, a duras penas, que sou artista e quanto isso dói. Quem contribuiu muito para essa constatação foi o Rollo May, no seu A Coragem de Criar, livro de leitura obrigatória para todo aquele que ainda não assumiu os pendores criativos que acha que tem. O que a natureza deixou imperfeito, a arte aperfeiçoa, diziam os alquimistas. Não é isso que todos nós, que nos rotulamos artistas, fazemos, assumindo, falsamente, um tom de modéstia ? Ou passando-nos falsamente por tema de capa de revista badalada, para impressionar os incautos ? Cada um tem a Caras que merece ! Sim, meus caros, como todo artista é um insatisfeito com a obra de Deus, é necessária muita coragem para completar o que Ele deixou incompleto. Aliás, nós, artistas, estamos convencidos de que Ele produziu essa incompletude exatamente pensando em nós. Para nos dar oportunidade de completá-la. Estivesse tudo pronto o que faríamos com nossa eterna e insolúvel insatisfação ? Quando aquela famosa senhora dirigiu-se ao Matisse, reclamando que ele havia pintado, num de seus quadros, uma mulher verde, ela, certamente, estava com o pensamento ligado na obra acabada. Deus locuto, causa finita. Ele, porém, estava completando o que faltava na Natureza. Ao dizer a ela "minha senhora, isto não é uma mulher, é uma pintura" ele deixava claro isso : "Deus faz do jeito d'Ele; eu faço do meu". O artista é alguém que poderia muito bem intitular-se um pontífice, tanto quanto o Papa. É, também ele (somos, também nós, eis o que eu queria dizer), um construtor de pontes. Pontes de corda, que ele atira longe, na esperança de que as garras dela se enganchem na sensibilidade de quem vê seus quadros, toca suas esculturas, ouve sua música, lê seus textos. E é por essa escada, nem sempre firme, nem sempre segura, que o destinatário toma conhecimento da obra de arte, que lhe produzirá um sorriso, ou um esgar, pouco importando quem seja o autor de quê. A obra de arte, quando o é, fala por si. Encantar-se diante de um pôr-do-sol sobre o mar de um Turner ou horrorizar-se diante de uma Guernica ? Faça sua escolha. O fato é que não há texto sem leitor, nem música sem ouvinte. Quem faz o artista não é sua obra, é o outro, aquele que entrará em contato com ela. Imagine um pintor fazendo quadros e mais quadros, numa ilha deserta. Ele enlouquecerá, certamente. Só um artista será capaz de imaginar o que seja você se perder num dos labirintos do prédio do antigo I Tribunal de Alçada Civil de São Paulo e, num repente, chegar a um pequenino hall, graciosamente decorado, e ver sobre uma mesinha encostada na parede uma escultura de bronze que lhe é familiar, obra de que, como um pai desnaturado, você já se havia esquecido, tanto tempo faz que ela partiu, cativada pelo presidente daquela Casa, que a pedira em casamento. Nesse momento você entende, emocionalmente, o que significa a expressão feedback. É um retorno que te alimenta. Poderíamos dizer de nossas obras de arte aquilo que o Gibran Kahlil falou de nossos filhos : "Ils viennent par vous, mais non de vous ; et bien qu'ils soient avec vous, ce n'est pas à vous qu'ils appartiennent". Elas surgem por nosso intermédio, mas não nos pertencem; ainda que elas estejam conosco, não é a nós, os artistas, que elas pertencem. Acho que nem o Gibran tinha percebido isso. Ou quando, na sala de espera de seu psicoterapeuta, você ouve da secretária a surpreendente pergunta : "O senhor tem escrito muitas poesias ?" Tudo que eu consigo pensar é: Essa mocinha evidentemente está a me confundir com o Paulo Bomfim, que nem sei se é cliente do Gilberto Franco. São tantos os juízes que já encontrei na sala de espera do meu analista que encontrar ali o chamado "poeta de São Paulo", funcionário honorário do Tribunal de Justiça, não me surpreenderia nem um pouco. Educadamente dou continuidade ao diálogo e ela, um incrível sorriso no rosto, abre uma gaveta, tira dali um pedaço de papel, que desdobra cuidadosamente. Em seguida, lê o seu conteúdo : "Segue o rio e nele o barco,segue o barco e nele a gente,segue a gente e nela o sonho, segue o sonho e nele eu rio." Tudo o que eu consigo fazer é chorar. Nunca imaginei que meu poema ficaria tão bonito sendo recitado por uma sensível jovem secretária de um médico psiquiatra. Artista sofre !
sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Máscaras e Papéis

  "A luz negra de um destino cruelilumina o teatro sem coronde estou representando o papelde palhaço do amor". Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardoso Recebo texto enviado por uma psicoterapeuta, jovem e inteligente, que escreve como gente grande e discorre sobre um caso que tem em mãos. É, sem tirar nem pôr, o enredo do filme Kramer vs. Kramer, cuja interpretação rendeu-lhe o Oscar. Conhece ? Meryl Streep é a mãe que abandona o marido, papel do Dustin Hoffman, com quem deixa o filho. Tempos depois, a Meryl volta à cidadezinha onde ficaram o marido e o filho, e reivindica a guarda da criança. "Os fatos que me levaram a sair de casa não existem mais e, portanto, eu tenho o direito de ter o filho de volta" peticiona ela ao juiz. Você deferiria o pedido da Meryl ? (clique aqui) Em primeiro lugar, não resisto ao lugar comum : "a vida imita a arte, minha cara". A jovem psicóloga ri, como quem diz, "pra mim você vem dizer isso ?" Em segundo lugar, a nossa Meryl brasileira declara que é má esposa. Como mãe, não é melhor. Ela emprega o verbo no tempo presente e justifica que, por ser má, o filho tem motivos para não querer procurá-la, pois, embora morem na mesma cidadezinha e mesma rua, distante uma casa da outra não mais do que quatro quarteirões, o filho nunca veio visitá-la. E você tem ido visitá-lo ? "Claro que não. Ele não gosta de mim. Mas eu tenho muita saudade dele." Esclarece que o marido jamais se opôs a que ela entrasse na casa, mas, ao contrário, tem insistido com ela para ir visitar o filho, tentar reatar o laço primitivo. A nossa Meryl insiste no qualificativo "eu sou má" para justificar a rejeição que diz sofrer. Mas quer que a psicóloga lhe faça um favor : que procure a juíza que decidirá seu pedido, mostrando a ela quem de fato a consulente é. "Se eu disser a ela que você é má como mãe e má como esposa, você acha que mesmo assim ela lhe dará razão ?" indaga a psicóloga. "Acho que sim, pois ela é mulher e mulher entende dessas coisas. Foi por isso que procurei outra mulher para me orientar" responde a paciente. Esses são os dados que trago à nossa reflexão. Note-se, em primeiro lugar, que a queixosa não diz que agiu de modo inadequado como esposa e como mãe. Ela se qualifica, em termos genéricos, introjetando um conceito que, evidentemente, lhe foi passado por alguém com autoridade para julgá-la : "eu sou má". Ao mesmo tempo, ela não vê isso como impedimento suficiente para ter a seu lado o filho, que ela não consegue ir visitar, mesmo residindo ambos na mesma rua. O que importa, segundo esse raciocínio, não é o fato de ela ser má, mas o fato de ser mãe. Que é ser mãe ? Qualquer um de nós, homem ou mulher, tem aptidão para jogar futebol. Ser um Pelé ou uma Marta são outros três a zero. Você se disporia a botar uniforme, calçar chuteira e ficar correndo daqui para lá por noventa minutos ? Matar no peito um chute, dominar a bola e driblar um adversário ou uma adversária ? Levar um carrinho e levantar-se em seguida, depois do spray mágico trazido pelo atendente médico ? Todas as mulheres têm aptidão para ser mãe. É o que se diz por aí, acenando com o que ocorre no reino animal. Claro que o fato de uma leoa ou uma ursa branca abandonar o filho doente naquela imensidão gelada, quando ele mais precisa de cuidados, não é levado em conta. Como quer que seja, a fêmea é programada para isso : procriar. Com a mulher ocorre algo um pouco mais complexo, principalmente nos dias que correm. Além de desempenhar o papel de companheira, amante, confidente e secretária, como são todas as esposas em relação a seu marido, ela deve cuidar da prole, da cozinha, da arrumação da casa e ainda responder pelo expediente no escritório, na loja ou na fábrica onde trabalha. As focas e as leoas foram dispensadas desses encargos. Outrora, o patrimônio, isto é, a aquisição de recursos para o sustento da família, era encargo do homem (patris munus) enquanto à mulher tocava assumir os encargos domésticos decorrentes do casamento, ou matrimônio (matris munus). Quando a mulher se deixou cair no conto da emancipação feminina e, com isso, pôs-se a imitar o homem, ela acabou ficando com os encargos da maternidade e também com parte ou com a totalidade dos encargos da paternidade. Eis a ironia dos tempos modernos. Todos nós conhecemos médicas, balconistas, advogadas e artistas de TV que não deveriam estar a interpretar o papel que escolheram no chamado teatro da vida. Há nas novelas belas moças cariocas interpretando papel de paulistas sem conseguir escapar dos seus RRs e XXs que utilizam quando estão longe das câmeras. Ou bem mudem de atividade ou não aceitem esse tipo de papel. O que não se pode aceitar é que, em lugar de colocarem no rosto a máscara do personagem (per sonare, como se fazia no teatro grego, quando a voz soava através de uma máscara), queiram colocar sua própria máscara no rosto do personagem. Como diz o Paulo Autran, precisei ensaiar a vida toda para interpretar com naturalidade. Carl Rogers (clique aqui), que lecionou durante muitos anos em Faculdade de Psicoterapia, nos EUA, indagava a si mesmo quais seriam os requisitos para que alguém pudesse clinicar nessa área. Sua conclusão : a faculdade pode dar ao aluno noções teóricas e alguma experiência adquirida nos chamados laboratórios, mas não tem como dar sensibilidade a quem não traz esse pré-requisito. E, a seu ver, não é possível termos um bom psicoterapeuta sem esse requisito básico. Nem uma boa juíza, nem uma boa advogada, nem uma boa balconista, digo eu. Quais seriam, então, os requisitos para que alguém interprete o papel de mãe, meu caro Carl ? Todos nós já ouvimos mãe de primeiro filho responder, ao ser indagada quando virá o segundo : "E eu sou louca ? Passar por tudo aquilo outra vez ? Jamais !" Algumas não dizem bem isso mas é isso que pensam. É fácil imaginar o que será a vida sexual daquele casal, pois, por maiores que sejam os cuidados, o risco de nova gravidez sempre estará rondando. E tome frigidez ! É claro que o problema não está na má personalidade daquela mulher. Simplesmente ela não consegue ser a mãe que gostaria de ser, da mesma forma como outras mulheres não conseguiriam acertar um chute numa bola ou sensibilizar-se diante do drama de um cliente que a procure, como médica, advogada, psicóloga ou que tais. Ao tomar consciência disso, ela certamente não insistirá em ser médica, ou advogada, ou balconista. Ou mãe, por que não ? Poderá, no entanto, vir a ser uma excelente médica quem não consegue ser uma razoável mãe. Por que não ? Se ela tiver tido a graça de casar-se num templo católico, certamente ela terá ouvido que a mulher nada mais é do que a parte mínima de um homem, uma mísera costela, que, por maior que fosse, foi dele retirada durante o sono sem que ele percebesse isso quando acordou. Mais insignificante do que isso só se Eva fosse elaborada com material extraído do dedão do pé esquerdo do Adão. E não tenha dúvida que isso não foi tudo o que ela ouviu naquela ocasião festiva. O sacerdote certamente comparou a esposa à Igreja, donde o dever dela de submeter-se, sem tugir, nem mugir, nem fugir, dia e noite a seu Senhor. Falo da esposa. Aliás, cônjuges significa "aqueles que estão presos pelo mesmo jugo", que é aquilo que se coloca na junta de bois para que caminhem juntos, tal qual deve ocorrer no casamento. Lembro-me de que certa ocasião ouvi de uma senhora um comentário feito, numa festa, aos presentes, diante de duas meninas, ambas irmãs. "Esta é a menina mais bonita que já vi na vida" disse ela. Depois, notando a presença da irmã, completou : "E esta menina é muito boazinha." Com essa minha mania de tirar conclusões, tive ímpetos de mostrar àquela senhora o que ela havia dito. A primeira menina não precisa preocupar-se em ser "boa", o que quer que isso signifique, para ser aceita pela comunidade a que pertence. No limite, pode até ser "má", que sua beleza compensará isso. Já a irmã, ai dela se, além de feia (ou, "não tão bonita"), ainda tiver o atrevimento de ser "não boa" (para não dizer "ser má"). Vai purgar no inferno em vida ! Aliás, não é verdade que ser mãe é padecer ? Para dourar a pílula, diz-se que isso se dará "no Paraíso". Antes ou depois da morte ? É, acima de tudo, desfibrar fibra por fibra o coração. Prazer mesmo, nenhum, até porque, "filhos? melhor não tê-los !" Quem se habilita a desempenhar o papel ?   Com o trabalho aqui mencionado, a psicoterapeuta Cláudia Amaral Mello Suannes acaba de conquistar, com nota 10, o título de mestra na Pontifícia Universidade de São Paulo, tendo como orientador o renomado Dr. Renato Mezan (clique aqui)  
sexta-feira, 3 de outubro de 2008

A(na)lfabetização

"Pesquisa Datafolha realizada em dez cidades mostra que maioria dos brasileiros prefere assistir aos filmes dublados" Folha de S.Pauloedição de 29.8.2008 A notícia acima é bastante sintomática. Que explicação você dá a ela ? Eu, de mim, como diz o amigo Ranulfo, informo que, há muitos anos atrás, quando eu ainda tinha paciência para lecionar, costumava entregar aos alunos de Direito, no primeiro dia de aula, uma folha que dizia mais ou menos o seguinte : " - Leia com atenção a presente folha e depois faça o que está determinado - a) Qual o seu nome ? _____________________b) A que turma da Faculdade você pertence ?_____c) Se você for canhoto, levante a mão esquerda.d) Se você for destro, levante a mão direita.e) Se você não for paulista fique de pé.f) Se você for corinthiano, dê um giro sem sair do lugar.g) Se você for do sexo feminino dê um gritinho. Agora que você já leu tudo, atenda apenas ao contido nas letras a) e b), não levando em consideração o contido nas demais letras." É fácil imaginar a cara dos apressados que, antes de ler todo o conteúdo da página, como lhes havia sido determinado, tinham ficado de pé ou dado rodopio ou gritinhos. Desnecessário esclarecer que a finalidade da proposta não era a de humilhar os alunos, mas, sim, mostrar a eles a diferença que há entre ler e assimilar o que se lê. Ler procurando entender o que se lê. A maioria das pessoas que se considera alfabetizada não aprendeu a desenvolver o senso crítico. Passam os olhos em um texto e depois não conseguem resumir aquilo que leram. Estão efetivamente alfabetizados ? Isso é culpa deles ? As escolas, de modo geral, transmitem aos alunos a idéia de que as matérias a serem por eles aprendidas são um castigo a que foram eles condenados sem que saibam o motivo. "Fazer conta ? Pra quê, se já tem calculadora ?" Usar o verbo haver, nem pensar. "Aprender gramática ? Pra que se a gente já sabemos se comunicar ?" O pronome nós é menos pronunciado do que muita palavra de baixo calão. Se é que hoje ainda existem as outrora chamadas palavras de baixo calão. Certo juiz enviara o motorista do fórum para buscar o filho que sairia da escola dali a pouco e o serviço excessivo do magistrado não permitiria ao pai cumprir pessoalmente o seu dever. Trazido o garoto ao fórum, o pai lhe pergunta como se saiu na prova de português. "Acho que se fudi" foi o que o pai e seus colegas ouviram. Não cito nomes porque parece que o garoto agora também é magistrado. Vi e ainda vejo, por força da profissão, advogados incapazes de desenvolver uma argumentação lógica e razoável. Ora, a atividade dos profissionais da advocacia é eminentemente lógica. Ela trabalha com o silogismo. E tocava explicar a meus alunos o que é isso. O silogismo, dizia-lhes eu, utiliza dois conceitos : um geral e um particular. Ou, dito de outra forma, um genérico e um específico. A primeira idéia é genérica : por exemplo, "nosso país tem um Código de Defesa do Consumidor". A segunda idéia é específica : "eu sou consumidor". Daí surge a conclusão : "o Código do Consumidor se aplica às compras que eu faço". Tecnicamente, dizemos que o silogismo compreende três afirmações : a premissa maior (a afirmação genérica), a premissa menor (a afirmação específica) e a conclusão lógica. O profissional do Direito, principalmente mas não só ele, deve prestar muita atenção nisso, para não ser vítima (ou cometer) um sofisma, que é um falso silogismo. E punha no quadro negro estas afirmações : "a) Todos os gatos têm bigode (premissa maior);b) Janjão tem bigode (premissa menor);c) Logo, Janjão é... ?" E escrevia, depois de uma estratégica pausa : "Janjão é meu tio (conclusão lógica)." A essa altura, diante do murmúrio dos alunos, eu desafiava a classe a descobrir o que saíra errado, transformando-se um silogismo num sofisma. Discutem de cá, discutem de lá e vinha a explicação : a premissa maior não disse que "todos os gatos e só os gatos têm bigode". Logo, ficou aberta a possibilidade de que os cães, as focas e meu tio fossem incluídos na premissa menor. Por que faço essas considerações prévias ? Explico. Os meios de comunicação, em especial jornal e TV, utilizam, no geral, um caçanje. Que é isso ? Era a designação do português falado pelos escravos trazidos para o Brasil. Posteriormente, a palavra passou a aplicar-se para designar o português mal falado. Por exemplo, em bom português, a frase que aparece acima do texto deveria dizer "a maioria prefere", mas, imitando o modo sintético de escrever dos jornalistas norte-americanos, seus colegas brasileiros atropelam a língua, eliminando, no caso, o necessário artigo. Vem aí a tal reforma ortográfica. Onde as pessoas vão reaprender a escrever ? Se muitas delas não lêem (usemos o chapéu até 31 de dezembro) livros, nem revistas, nem jornais, o letreiro dos filmes é uma fonte de aprendizado quase obrigatória. Pois, ao mesmo tempo em que se oficializa a tal reforma, depois de quase 20 anos de ter sido ela decidida pelos países lusófonos, cogita-se de dublar os filmes estrangeiros. Qual o benefício disso para a população ? Nos programas de rádio e de televisão, nos quais em geral não há um trabalho de revisão, ouvem-se barbaridades, coisa que os gramáticos chamam de solecismos. Logo logo algumas dessas barbaridades passam a ser repetidas por pessoas que não sabem ou não gostam de ler. Ou não têm senso crítico. Narrador de futebol dizendo que o jogador estava "com-ple-ta-men-te impedido" ouve-se a todo instante, como se algum jogador pudesse vir a estar "par-ci-al-men-te impedido". Se essas pessoas não têm o hábito de ler, aprender o certo como ? Ouvindo filme dublado ? Pois, por incrível que pareça, há exceções. Além de inúmeros programas que se dispõem a ensinar a Língua Portuguesa, um dos quais apresentado pelo músico e escritor Tony Bellotto, que o faz numa linguagem nada sofisticada, descobri um humorista que simplesmente dá uma aula de Português em um show comum, abordando, para fazer o público rir, nada menos do que o Pleonasmo (clique aqui). Inúmeras tautologias apontadas por ele são cometidas, um pouco mais, um pouco menos, por todos nós diariamente. Aquele show é, quando menos, uma ótima ocasião para um mea culpa de muitos de nós. Aliás, eu mesmo, propositadamente, coloquei um evidente pleonasmo no texto que se acaba de ler, apenas para permitir um comentário jocoso de algum leitor mais atento com um colega de leitura, do tipo : "Viu só ? Façam o que eu digo mas não façam o que eu faço". Será você esse leitor ?
sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Palavrão (O)

  Sou freqüentador de banco. Minhas filhas não se conformam com isso, pois lançam suas contas na Internet e dormem o sono dos justos. Eu, um homem tão moderno, ainda fazendo esses périplos desnecessários. O que elas não sabem é que o gosto está justamente nesses passeios pelas ruas do bairro, vendo o que se passa nas cercanias. Ver aquela senhora levando, ou sendo levada, por seu cão, que deposita, sem cerimônia, seu cocô no lugar que lhe dê na telha e eu ficar observando se a previdente senhora traz ou não na mão direita o saquinho de plástico, no qual recolherá aquela preciosidade mérdica, é algo que me dá um prazer cívico. Ou então ralhar com a mocinha que, em lugar de usar vassoura, varre a calçada desperdiçando rios de água potável. "E que diabos é isso ?" responde ela ao ser questionada. Outra continua a desperdiçar água, com uma explicação que me leva ao silêncio : "Só obedeço a meu patrão." Também me divirto descobrindo os mais recentes buracos aparecidos na calçada. Fico pensando o que será daquele ceguinho que, dia sim dia não, passa por mim, todo serelepe, com sua bengalinha fazendo toc, toc, toc na calçada. Vá confiando nos nossos prefeitos, vá, meu caro. Eu queria ver o Francimar testando as ruas de São Paulo, já que ele escreveu em seu precioso livro que os cegos devem, por princípio, andar sem guia outro que não seja a bengala. Só se for em Carazinho ou em Porto Alegre. E há o prazer de estar no banco. O primeiro deles é desfrutar da fila dos privilegiados. Quem não gosta, no íntimo, no íntimo, de sentir-se alguém diferenciado ? Alguém que foi especificamente lembrado pelos nossos tão esquecidos legisladores ? Especialmente quando isso incomoda os não privilegiados. Como desabafou certo office-boy, na deliciosa irreverência dos jovens : "Eles que são aposentados e têm todo o tempo do mundo são atendidos antes de nós, que estamos trabalhando ? Acho essa lei injusta." Ponto para ele. Que, entretanto, não contou com nenhum aplauso de sua grei. Ao reverso, os manos continuaram a rodar sua pasta de contas a pagar na ponta do dedo maior da mão direita, para me matarem de inveja, pois já tentei, várias vezes, na solidão de meu quarto, reproduzir aquele malabarismo, sem êxito algum. E eles continuando a falar de futebol na longa fila. E houve o caso daquela velhinha que foi chegando, foi chegando e, quando vimos, colocou-se na ponta da fila, passando a perna em nós todos, tão gentis para com ela. Voltou-se para nós e sentenciou, apontando com a sombrinha a tabuleta pendurada sobre a cabeça da atônita caixa : "O privilégio é a idade, não é ? Logo, quem tem mais idade tem mais privilégio. Eu indago se alguém aí tem mais de 83 anos de idade. Ninguém ? Pois então eu sou a próxima." Mesmo diante do silêncio de todos nós, ela tirou do bolso uma cédula de identidade, desafiando-nos : "Se alguém estiver em dúvida quanto a isso, venha consultar meus documentos." Colocou de volta a tal cédula na bolsa e entregou à moça do caixa os documentos relativos às contas que desejava pagar. Feitos os pagamentos, passou por nós com o nariz empinado, como se fosse a rainha da Inglaterra. Esse, ao menos, foi o comentário de outra senhora, que parecia tão velha quanto, mas se recusara a participar daquele concurso de vetustez. Na tarde de ontem, o personagem foi um senhor de nossa idade, falo pela média dos privilegiados então presentes, elegantíssimo, com chapéu na cabeça e um bigode grosso sob o nariz, com as pontas voltadas para os céus. Não havíamos dado por sua presença até que ele, voz alterada, sapecou um solene "e quer saber de uma coisa ? Esse presidente da República não passa de um monoglota !" Dezenas de olhos despejaram-se sobre o elegante senhor, que seria injusto apodar de macróbio nas circunstâncias. Um homem tão elegante dizendo algo assim em público. E em voz alta ! Uma senhora perto de mim fez um ar de espanto, como se tivesse visto o próprio demo. Arreceei que ela tivesse um ataque de apoplexia, o que nos daria muito trabalho, pois, quantas daquelas pessoas ali presentes haveriam de saber o que é isso ? "Monoglota ?" sussurrou alguém, temendo certamente ser identificado. Lembrei-me, como não poderia deixar de lembrar, daquela delicioso conto do nosso Guimarães Rosa, no qual um chefe de cangaço vai com toda a jagunçada à casa do professor primário local, para fazer-lhe uma só pergunta. O professor vem até a varanda da casinha e o cangaceiro, sem desapear, indaga-lhe o que quer dizer famigerado. É coisa de se ofender ? Será elogio ? O professor, como quem acaba de levantar-se da cama, não está entendendo nada. O jagunço então explica : constou-lhe que certa pessoa teria dito ser o justiceiro chefe de tropa ali presente um "homem famigerado", veja o senhor. Antes de ofender-se ou de orgulhar-se com o adjetivo, ele, justo como é, precisa de saber qual o significado disso. O professor dá-lhe a explicação que qualquer dicionário lhe daria, se o ignorante, falo com todo respeito, resolvesse e pudesse consultar um desses livros que meu pai chamava de "pai dos burros". Diante da explicação dada pelo professor, o cangaceiro consulta seus homens, indagando se todos ouviram a explicação dada pelo professor. Ante o assentimento cabeçal de todos, ele agradece a gentileza e parte para os providenciamentos que aquele sujeito merece. Pois ali está, na fila dos privilegiados do meu banco, um senhor, com pinta de senador aposentado, deflagrando um monoglota sem que ninguém tome nenhuma providência. Onde está o gerente ? Tudo que temos é um silêncio respeitoso, coisa assim de um Leonardo Boff. Agora, mais contido, o tal senador continua a conversa com seu colega de fila, em voz mais baixa, que nós, com nossos precários dotes auditivos, não conseguimos ouvir, por mais que tentássemos. Agora é a vez de ele ser atendido. Gentilmente ele entrega as contas e o cheque respectivo à caixa. A moçoila desmancha-se em sorrisos e conclui com um "pronto, até o próximo mês". Ele recolhe seus recibos, leva três dedos da mão direita até a aba do chapéu, que imaginávamos fosse tirar. Nada disso. Ele apenas coloca o polegar na parte de baixo da aba e o indicador e o dedo maior na parte de cima. Faz uma leve reverência com seu corpo esbelto e se despede com um gratuito conselho à moça : "entrementes, não descure da cultura". Reverenciosamente todos nós nos afastamos, para dar lugar àquele elegante companheiro de fila de banco, que acabara de dar ao presidente da República o tratamento de que ele é merecedor, esse insigne monoglota. O homem marcha até a porta giratória, que o engole num átimo de segundo. E voltamos todos ao silêncio de nossa insignificância.  
sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Sexto conto

  As crianças vivem a surpreender-nos com suas tiradas espirituosas, que demonstram a presença nelas da inteligência, coisa que nos deixa envaidecidos, como se fôssemos os responsáveis por isso, o que não deveria admirar-nos, pois até em animais irracionais os cientistas já encontram reações demonstrativas da presença de algo muito semelhante à inteligência humana. Os macacos não aprendem, uns com outros, a utilizar duas pedras grandes para quebrar a casca dura de pequenas nozes que eles encontram caídas das árvores ? Não se utilizam de uma vareta para recolher formigas, enfiando a varinha no formigueiro e esperando as formigas subirem por ela ? Eu mesmo não tinha coragem de dirigir automóvel, o que, aliás, ocorre com muita gente, tanto que há psicólogos especializados em lidar com essa espécie de medo. Indo a um circo, lá eu vi um enorme urso dirigindo uma motocicleta, dando voltas e mais voltas no picadeiro. Saí do circo decidido : no dia seguinte matriculei-me em uma auto-escola. "- Vô, fala mais alto que, com a televisão ligada, eu não ouvo o que você está me dizendo." "- Ovo ? Você disse ovo ? Mas ovo é de galinha, de pata, de marreca. O certo é ouço. Ouviu bem ? Ouço" corrige o avô, elevando a voz justamente por causa do som da televisão. "- Mas, vozinho. Osso também é de galinha, de pata, de marreca." E faz um riso debochado, como a dizer te peguei, espertinho. É comum dizerem que as crianças de hoje já nascem sabendo. Não sei se isso é verdade, mas um amigo meu, passeando com a família no zoológico, contava aos netos a velha história da cegonha, que tem aquele bico enorme que vocês estão vendo porque carrega com ele os bebês que lhe são encomendados. Quando ele pegou no colo o mais novo, para mostrar-lhe o que havia além do muro, onde estavam as aves, ouviu um dos netos sussurrar a outro : "não conte a verdade ao vovô que ele já não tem idade para essas revelações." Certa ocasião, o André levantou-se, tirou o pijama, que jogou sobre a cama, tomou banho, vestiu o uniforme do colégio e desceu para o café da manhã. A Patrícia repreendeu-o : "Você não sabe que deve guardar o pijama na gaveta ?" E ele, a título de explicação : "Então você não sabe que eu não sou perfeito ?" Para aguçar ainda mais a inteligência de meus netos, reuni-os certo dia na sala de visitas e lhes fiz esta pergunta, dramatizando a apresentação : você entra em casa à noite e a luz está apagada. A casa está toda no escuro porque acabou a força naquele quarteirão e ainda não foram acesas velas, como se faz necessário nessas ocasiões. Você vê um vulto no corredor e balbucia "sua bênção, vovô." O vulto responde : "Deus te abençoe, meu neto, mas eu não sou seu avô." Pergunto : quem era aquele vulto ? Meus netos passaram a analisar o problema e, enquanto não chegassem a uma resposta que satisfizesse a todos, nenhum deles arriscaria uma resposta qualquer. Ponto para eles, pois é comum adultos inventarem respostas, especialmente nossos alunos universitários, como se o seu professor fosse um débil mental. Aliás, os testes utilizados nos concursos públicos incentivam essa conduta reprovável, pois o fato de o candidato errar o seu palpite não lhe traz qualquer prejuízo. No meu tempo, cada três respostas erradas do teste eliminava uma resposta certa. Isso acabou. É assim que hoje se vai formando o caráter dos nossos jovens. Pois eu, que imaginei que teria uns bons minutos para apreciar o meu cachimbo lá fora na varanda da casa, sou surpreendido pelo neto mais velho, já com jeito de rapaz e modos de galã de televisão, que se sai com esta : "- Vozão, já que você não vai ter o que fazer enquanto aguarda que seus netos decifrem a charada apresentada, posso apresentar-lhe também uma charada para ocupar seu tempo ?" Notem a habilidade do garoto. Eu havia apresentado um teste para avaliar a inteligência deles, como lhes havia dito, mas o meu neto primogênito, com muita sagacidade, em lugar de dizer que também está testando a minha inteligência, enfeita o teste de inteligência dizendo ser ele um simples passatempo. Tem tudo para ser advogado ou, melhor ainda, diplomata. "- Que venha o teu teste de inteligência" disse eu, dando o nome correto aos bois. "- Pois lá vai. Pense que você é um pesquisador, que descobriu que em certa selva existe uma tribo cujos componentes só falam a verdade. Você viaja para aquela selva a fim de entrevistar alguns de seus membros. Mas você é avisado de que, perto daquela, há uma outra tribo cujos componentes só dizem mentira. Eles são incapazes de dizer a verdade em qualquer circunstância." Devo registrar aqui, por dever de justiça, que fiquei muito impressionado com a fluência verbal do meu primogênito, que até outro dia era um bebê gatinhando pela casa de minha filha. Como essas crianças envelhecem rápido, Deus meu ! Pois ele, já anunciando um futuro orador de júri, prossegue em sua exposição. "- Quando você chega a certo ponto da selva, sempre caminhando, nota que a estrada se divide em duas : um ramo segue para a esquerda e outro segue para a direita." Nós dizemos que a estrada se bifurcou, esclareci, professoral. "- Que seja. Você então conclui, acertadamente, que uma daquelas duas novas estradas vai dar na tribo que só fala verdade, enquanto a outra estrada te levará para a tribo que não te interessa. Enquanto você medita sobre o problema, aparece um rapaz, vindo pela estrada da esquerda. Então você pergunta a ele : você vem vindo de qual das duas tribos?" Alto lá. Digamos que o recém-chegado dissesse que pertence à tribo que fala só a verdade. Se ele, de fato, está dizendo a verdade, ele pertence à tribo que só fala a verdade, mas, se ele estiver dizendo uma mentira, ele pertence à outra tribo. Ou seja, a resposta dele não me servirá para nada, antecipei. "- Grande, vozão. Aí é que vem o problema que o senhor deve resolver. Ele diz, de fato, que pertence à tribo que só fala a verdade. Eis a questão : você deve fazer a ele outra pergunta, cuja resposta lhe dirá se ele está falando a verdade ou mentindo. Que pergunta você faria a ele ?" Ora, ora, ora. Criamos filhos, mimamos netos para sermos, a esta altura da vida, encostados na parede com uma charada dessas ? Fui à varanda saborear o meu cachimbo, pedindo às estrelas que me inspirassem, para que eu não passasse vergonha diante daqueles fedelhos. Lá dentro, certamente felizes com a esnucada que me haviam dado, eles discutiam a solução do problema que eu lhes havia proposto.   1O livro Descontos para Meus Netos, em preparação.  
sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Arte do Non-sense (A)

"Atrás de todo homem bem-sucedido, existe uma mulher. E, atrás desta, existe a mulher dele." Groucho Marx(Clique aqui) 1. Não sei se ela é dos Correios. Mas tem cara de sê-lo. 2. O lavrador, sob o sol, sobe o morro, a pé, a cavá-lo. 3. Se ela bater, não abra a porta à Berta. 4. Têmis, a Justiça ? Temo ! 5. A sabedoria de Palas Atena me enerva. 6. Já nela não pensas ? Pouco importa. 7. A bolsa ou a vida ? Leve a vida que da bolsa vou precisar para custear o funeral. 8. Segundo dizem os marinheiros, lula engana o polvo. 9. Ascensorista com dor-de-dente ? Fique em casa, pois seu trabalho eleva a dor. 10. Ele era assim : pão pão, queijo queijo, manteiga manteiga, salame salame, mortadela mortadela. 11. Sou cabra decente : mato a cobra e mostro o revólver. 12. O Papa, com sua autoridade de representante de Deus na Terra, afiança que todos os papas são representantes de Deus na Terra. 13. Há muitas rosas que não são cor-de-rosa. 14. Quem nasceu primeiro : o ovo ou a tartaruga? 15. A vida é uma rede, feita de nós górdios. 16. Diga não às drogas : desligue a TV. 17. Todos são iguais perante a lei, dizia o anão ao general. 18. Sibéria : o clima não compensa. 19. O sol, na verdade, não passa de uma estrela candente. 20. Quase sempre quem pergunta não quer saber; quer apenas uma resposta. 21. Meu reino, meu reino por um carvalho. 22. Os gêmeos César e Ana nasceram de parto normal. 23. Meu bem-querer só me quer mal. 24. Pela décima vez eu te digo : até nunca mais. 25. Político diz a verdade ? Somente ! 26. Não beba antes de dirigir ! Só enquanto dirige. 27. A justiça falha mas, quando vem, já é tarde. 28. Nem tudo o que não reluz não é ouro. 29. Aquele era um monge de maus hábitos. 30. Tudo vale a pena se a arma não for pequena. 31. Onde foi que o Roque errou ? 32. O Karl Marx gostava da capital, mas morava no interior. 33. Treino é treino, jogo é jogo, pênalti é pênalti, escanteio é escanteio, empate é empate. 34. Dize-me com quem andas e eu lhe direi quem és. 35. Navegamos num barco, mas embarcamos num navio. 36. O juiz apelou ao prefeito, pois o fórum estava em petição de miséria. 37. Quando as paralelas se encontrarem, no infinito, não serão mais paralelas. 38. Para quem não gosta do som de harpa, o céu é um inferno. 39. Quem entra em Roma na contramão acaba encontrando o amoR. 40. O tubarão nada porque quer tudo.
sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Publicidade

  Dizem as más línguas que publicitário é alguém que procura te vender algo de que você não precisa e pelo qual você pagará um preço que a coisa não vale. Pergunte aí ao meu filho Alexandre e veja o que ele pensa a respeito. Os publicitários contra-atacam : o ovo da pata é muito mais nutritivo do que o ovo da galinha. Por que, então, o ovo da galinha está nos supermercados e os ovos das patas têm destino que desconhecemos ? Simplesmente porque a galinha faz um escândalo danado depois que bota, enquanto que a pata continua tão silenciosa que o dono da chácara só se dá conta de que ela bota ovos quando ela aparece com a ninhada de patinhos balançando o traseiro em fila indiana. "Quem não anuncia se esconde", diziam os elegantes publicitários, o que o conhecido especialista em comunicação José Abelardo Barbosa de Medeiros traduziu por "quem não se comunica se trumbica", com direito a ser literalmente citado no dicionário do Aurélio. Houve tempo em que nossos publicitários conquistavam palmas e salvas em festivais internacionais. Até que se descobriu que muitas das tais "peças publicitárias", como eles gostam de denominar seus trabalhos, eram meros produtos de laboratório, que jamais haviam sido exibidos no país. Eram como esses automóveis escalafobéticos que aparecem em certas exposições e jamais circularão por nossas cidades. Ou certas fantasias que algum costureiro famoso resolve pendurar em suas modelos, como se alguém minimamente são da cabeça fosse pagar um real por aquilo. A julgar pelo declínio da qualidade da maioria das peças publicitárias que hoje aparecem na televisão (algumas ainda são de extremo bom gosto e de muito requinte, há que se reconhecer, mas constituem exceção), muitos de nossos empresários preferem entregar o trabalho a algum sobrinho que acaba de ingressar numa escola de propaganda aberta num desses ermos da periferia e que são meras fabriquetas de diploma, em lugar de gastar dinheiro com profissionais, cujo trabalho, pelo jeito, não levam muito a sério. O resultado é um insulto à sensibilidade do telespectador. Como o caso da dupla de sertanejos que resolveu fazer propaganda da própria churrascaria. No que me concerne, diante daquela propaganda, simplesmente perdi a vontade de comer carne. Ou a propaganda do cartão de crédito que mostra a alegria com que o pai da mocinha aceitou a notícia de que o namorado dela passará a morar na casa do não ainda sogro, até terminar a faculdade. Eis a mensagem que me ficou : o cartão preferido dos idiotas. Isso, aliás, é sobejamente conhecido dos professores de publicidade, que até lhe dão nome requintado : reversão de expectativa. E citam cases que ilustram isso. Escrevi case, que é como eles se referem a seus casos, suas peças publicitárias ou que nome mais inventem para isso. Clássica ilustração do tema é o caso do tecido sintético que, na minha juventude, quando a calça rancheiro ainda não havia atingido o status que conquistou hoje, talvez por haver sido traduzida para jeans, que veio para concorrer com as calças de alpaca, de gabardine, de casimira, de tropical ou de que outro tecido fosse e que tinham algo em comum : usou, amassou. O que levou o sargento do quartel onde eu fazia serviço militar, por sinal irmão do conhecido maestro Rui Rey, que teu avô conheceu, a advertir os soldados : "quero todo mundo com as calças vinculadas". E insistia no adjetivo : "eu disse calças vinculadas !" Perguntei, na ocasião, ao Kamel Abude, meu colega de Companhia de Comando, hoje ilustre advogado criminalista, como eu conseguiria andar se ligasse (vinculasse) uma calça a outra. Ele não achava que eu deveria levantar o braço e esclarecer que a palavra certa é "vincada", isto é, calça com o vinco acentuado ? "Já viste o tamanho da cela que aguarda soldado metido a besta ?" foi o conselho do meu companheiro de farda, que, com isso, conquistou o meu silêncio e minha eterna amizade. Pois o sucesso das calças de tergal foi de tal monta que apareceu um tecido concorrente, o nycron, cujos fabricantes contrataram um gênio para divulgá-lo, distinguindo-o do outro tecido. E o homem bolou um bordão, como dizem eles, que era despejado em nossos ouvidos noite e dia : senta/levanta, senta/levanta, senta/levanta. Ou seja, você não precisaria mais preocupar-se em vincular suas calças. O resultado foi estrondoso : as vendas das calças de tergal simplesmente triplicaram e do nycron ninguém mais voltou a falar. Há também aquela propaganda de pomada contra hemorróidas, que mostrava um garboso cavaleiro a galopar um mais garboso ainda corcel, para dizer que o remédio havia produzido efeito. Exibida em certo país europeu de língua portuguesa, a tal peça publicitária teria ocasionado casos e mais casos de hemorragia anal, pois os espectadores pensavam que o remédio consistia simplesmente em cavalgar. Mentira, certamente inventada pelos espanhóis, que não têm mais nada a fazer do que mangar dos vizinhos. Há outro case que é contado de forma diversa, conforme o narrador seja algum fã ou inimigo da publicidade. Um filme, como sabeis, é apenas e tão somente uma sucessão de fotografias, ou frames, como se diz em publicitês. Sendo exibidos em alta velocidade, isto é, cerca de 24 frames por segundo, o olho humano não tem tempo de perceber o espaço que existe entre um e outro frame. Daí o movimento de pessoas, animais e coisas que vemos na tela. Pois certo publicitário pensou em utilizar isso para transmitir mensagens subliminares. Como seria isso ? Depois de cada 23 frames normais, ele introduziu uma fotografia de um garoto de blusa amarela, tendo um sorriso no rosto e na mão direita um suculento pacote de pipoca. Lá fora, o tal publicitário colocou, como parte do teste, vários carrinhos com pacotes iguais ao que o feliz garoto de blusa amarela empunhava. O cérebro do espectador captaria a mensagem subliminar e o condicionaria a fazer o que o publicitário havia pretendido que ele fizesse. Não deu outra. Terminado o filme, as pessoas se encaminharam rapidamente para fora do cinema, procurando uma loja onde pudessem comprar uma camisa amarela igual à que usava o tal menino. Devo reconhecer, no entanto, que atualmente há na TV uma série de peças publicitárias que muito me agrada, pela criatividade. Uma informação vai passando de grupo em grupo e, ao final, o resultado é o mais absoluto non-sense. Já imaginou os autores desse comercial utilizando essa mesma criatividade para algo que não fosse a venda de bebida alcoólica ?  
sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Herói Adormecido (O)

  "Sei que meu trabalho é apenas uma gota d'água num oceano, mas sem ele o oceano seria menor." Madre Tereza de Calcutá Joseph Campbell brindou-nos com notável reflexão a respeito da saga do herói, esse repositório de virtudes que, ao longo da História, preenche narrativas que passam de geração a geração. A figura arquetípica de que fala Jung. Aquele modelo de ser humano que, superando as limitações humanas, dá à sua (e à nossa) existência um sentido cuja dimensão nem sempre percebemos. Para Campbell, o tecnicismo da sociedade contemporânea conduz as pessoas ao tédio e à alienação, incapazes de assumir o herói que cada um traz dentro de si, envolto por um ambiente de competição que a todos nos massacra. O heroísmo, assim, passa a ser entendido como o esforço para a vivência da vida em sua plenitude, como assunção de sua história pessoal exclusiva e única, vivida com intensidade. Quem se habilita ? Deixando de lado o aspecto religioso (não por ser menor, mas por suscitar discussões que aqui não cabem), será fácil invocar as figuras heróicas de Moisés, de Jesus, de Maomé ou do Buda, vendo-se neles apenas suas qualidades, como é próprio de todo herói autêntico. Heróis que não chegaram aonde chegaram graças a poderes especiais, mas em razão de um caminho extremamente espinhoso. Per aspera ad astra, como se dizia outrora. E é justamente o inatingível desses personagens (cuja historicidade também não importa, pois eles sempre serão maiores do que a História) que nos afasta, não poucas vezes, da chamada religião, pois as figuras desses heróis passam a se tornar como que propriedade de grupos humanos que, no limite, cometem atrocidades em nome de quem representaria a elevação máxima do ser humano. Despreza-se o fato mais importante, que é o substrato do herói, que o torna superior a qualquer nome que se lhe dê. A profundidade da mensagem mitológica passa então a ser substituída por narrativas pretensamente históricas. Meros contos de fadas, até porque, como nos ensina Jung, quando dizemos "Deus", estamos apenas enunciando uma palavra, não um conceito. O máximo a que conseguimos chegar é à imagem de uma figura antropomorfa. Como dizia o filósofo grego, se os cavalos soubessem pintar, pintariam Deus com cabeça de cavalo. Os hinduístas que o digam. O que nos encanta nas narrativas dos feitos desses heróis é, de certa forma, uma projeção especular, se me permitem o pernosticismo : vemos o herói como quem se vê num espelho. Sua saga é, no geral, um morrer e um renascer dentro da mesma vida, a nos convidar a superar as dificuldades que nossas limitações humanas nos impõem diuturnamente. A vida, rigorosamente, alimenta-se da vida, o que o sacramento da eucaristia ilustra perfeitamente. O cinema, é ainda Campbell quem faz o reparo, trabalha desde sempre com essas figuras arquetípicas. A quantas pessoas ocorrerá que o vilão de Guerra nas Estrelas chama-se Darth Vader (corruptela de Dark Father), para expressar o anti-herói, o Pai Sombrio que o filho Skywalker (textualmente, "caminhante do céu") tenta resgatar na hora da morte (do pai) ? A força interior do filho naquela narrativa mitológica não lhe é dada de graça, sendo, antes, fruto de longo caminho de aprendizado e superação de obstáculos, muitos dos quais ligados à sua condição de ser humano, até convencer-se de que "eu tenho a força", como poderia ser "eu tenho a fé". Os jesuítas não fazem exercícios espirituais ? Quando o nome do filme Shane, de George Stevens, foi traduzido para o português como Os Brutos também amam, tudo o que podemos concluir é que o tradutor não tinha o mais remoto conhecimento de psicologia nem de mitologia. A figura do homem sem passado nem futuro, que assume, com desassombro, o papel de justiceiro, de enviado dos deuses, não diz com um homem real, mas com aquele herói que todos temos dentro de nós e que, por motivos os mais variados, nem sempre vem à tona. Não nos esquecendo de que o filme narra a história tal como é vista por um garoto, não sendo demasia concluir que o heroísmo de Shane seria mera projeção do heroísmo que o garoto esperava do pai, essa figura mítica de que todos necessitamos para desenvolvermos uma personalidade tão sadia quanto possível. Infelizmente, os resumos dos jornais e das revistas mostram-se, no geral, incapazes de apreender a grande mensagem trazida por muitos filmes, como esse maravilhoso O Último Samurai, em que o próprio título é propositadamente ambíguo. Quem é o capitão Nathan Algren ? É um ser humano chegado à mais insuportável degradação, que se prostitui para sobreviver e se embriaga para suportar uma vida insuportável. Algo que Aurélio Agostinho conheceu muito bem. Como todo herói mítico, o capitão Nathan tem sua Estrada de Damasco, onde as Parcas lhe poupam a vida, para dar-lhe a oportunidade de dar a ela um sentido condizente com sua condição de herói, tanto quanto Aurélio Agostinho, que veio a tornar-se bispo de Hipona e doutor da Igreja católica. Quem poderá deixar de lembrar-se também do inesquecível Augusto Matraga, de nosso Guimarães Rosa ? Não estivéssemos diante de figuras arquetípicas e até se poderia pensar num plágio. Matraga, como Nathan, cometera toda sorte de atrocidades em sua vida pretérita de cangaceiro. Emboscado pelo destino, é jogado em uma ribanceira, dado como morto pelos desafetos. Ressuscita e dá à sua vida um sentido heróico, com o declarado propósito de entrar no céu, nem que tenha de arrombar suas portas a coice. "Cada um tem a sua hora, e há de chegar a minha vez !". E ela chega pelas mãos de Joãozinho Bem-Bem, vivido magistralmente no cinema por Jofre Soares. Tanto Augusto Matraga como Nathan Algren (e como, certamente, qualquer um de nós) têm sua hora e vez (quantos comentadores, desatentos das sutilezas do grande escritor, colocam entre esses dois substantivos um inexistente a), aquele momento de conversão íntima, a partir da qual a vida passa a ter o seu real sentido. Em suma : todos nós teremos sempre uma hora e vez, aquela oportunidade de nosso herói adormecido despertar e dizer a que veio.  
sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Ele e Nós

  "O Direito é um processo social de adaptação. O Direito regula, mas regula, especificamente, segundo o seu critério. Como todo processo de adaptação, elabora-se ele entre termos que variam a cada momento. Por isso mesmo, não pode ser definitivo, nem ser perfeito, se bem que possa tender a maior perdurabilidade e à perfeição." Pontes de Miranda(Tratado de Direito Internacional Privado, tomo I, Editora José Olympio, 1935, p. 3) Nosso Supremo Tribunal tem, atualmente, sido objeto de considerações críticas não apenas por parte dos juristas. Como todo mundo no Brasil se considera técnico de futebol e acha que conhece Direito, cada um de nós tem o direito de dizer o que bem entenda sobre as decisões de nossa Suprema Corte e os meninos do Dunga. Se você pensou que eu fosse cuidar disso, enganou-se. O buraco é mais acima. Quero falar do chamado ativismo da Suprema Corte norte-americana, o STF lá deles. Que é isso ? Ativismo judiciário é o nome que se dá ao fato de o juiz interpretar as normas jurídicas de acordo com as convicções pessoais do intérprete. Ou, na expressão bem-humorada de um jurista norte-americano : ativista é o juiz que faz aquilo com que você não concorda.1 Em 1965, julgando o caso Pointer v. Texas, afirmou a Suprema Corte deles que o direito de reperguntar a testemunha se inclui no due processo of law, não podendo uma condenação basear-se em depoimento meramente escrito, como autorizava a legislação do Texas. "The defendant's ability to confront witnesses against him, like the protection against self-incrimination, was a national right, and federal rules governed its practice in all state courts", comenta Bodenhamer2. Compare-se isso com a facilidade com que, entre nós, se condena com base em elementos colhidos no inquérito policial, cuja ratificação em Juízo é, na maior parte das vezes, meramente rotineira. Em 1966, no case Miranda v. Arizona, a Corte definiu mais três elementos fundamentais do "processo justo" (fair trial): a presunção de inocência, o conseqüente direito ao silêncio e a assistência por advogado, sendo certo que o agente policial, no ato da prisão, está obrigado a advertir o detido não só desses seus direitos como de que tudo aquilo que o suspeito venha a afirmar poderá ser utilizado contra ele no seu julgamento. Vejam o ano : 1966. No voto do Juiz Warren é posto em destaque o fato de que a atuação policial não se faz, em geral, com observância de preceitos éticos. "Police manuals and comments by law enforcement officials revealed that beatings, intimidation, psychologial pressure, false statements, and denial of food and sleep were standard tchniques used to secure the suspect's confession". Tais técnicas, ainda segundo o relator, sugerem que o propósito da atuação policial em relação ao suspeito não é outra senão submeter a vontade do subjugado à vontade do seu interrogador ("subjugate the individual to the will of his examiner").3 No Brasil, no entanto, esse "zelo" policial tem sido elogiado pelo Judiciário, que não vê contradição alguma no fato de o policial ser testemunha confirmatória da regularidade do ato praticado pelo próprio dependente !4. Ora, se um agente policial está sujeito a ser processado pela prática do crime de "abuso de autoridade"5, é de todo em todo evidente ter ele interesse em "testemunhar" a favor da legalidade do ato por ele praticado. Logo, sua palavra não pode ter a qualidade daquela de alguém que não corra tal risco, esta sim uma pessoa desinteressada. A importância desse julgamento foi tanta que a expressão Miranda warnings passou a ser de utilização corriqueira para indicar aquelas garantias. Bodenhamer dá conta de que representantes da polícia, promotores, juristas e políticos rapidamente se puseram contra o conteúdo das garantias explicitadas no famoso case. É sintomático que tanto o radical senador George Wallace - que mais tarde abjuraria de suas primitivas convicções segregacionistas - como o futuro Presidente Richard Nixon - cujo rumoroso caso envolvendo conduta eticamente discutível e no qual se afirmou que os documentos governamentais não poderiam ser considerados papéis indevassáveis, o levaria à renúncia6 -, expressos adeptos da ideologia da law and order, defendiam a necessária limitação daquelas exigências. Segundo Nixon, por todo lado criminosos caminham livremente, o que sugere que algo está errado na América ("all across the land, guilty men walk free from hundreds of courtroom. Something has gone terribly wrong in America")7. A julgarmos pelas circunstâncias em que se deu sua renúncia, nem tudo andava tão errado "na América". O fato é que, em face dessa resistência, em 1968, o Congresso norte-americano promulgou o Omnibus Crime Control and Safe Streets Act, com o evidente propósito de enfraquecer o contido naquele questionado julgamento, passando o Legislativo a definir as circunstâncias em que a atuação policial deveria ser respeitada, mesmo se não tivessem sido observadas as Miranda warnings. Por força desse ato, as confissões voluntárias poderiam ser levadas em conta, a critério dos jurados, e a polícia poderia deter suspeitos por seis horas ou até mais sem mandado específico nem flagrante, se as circunstâncias concretas justificassem o ato. Além disso, aludido ato legislativo passou a permitir o uso de escuta telefônica. "Despite protests that these measures were unconstitutional", a opinião pública claramente aprovou a medida, embora a natureza dela não permitisse sua aplicação automática no que se referia aos processos estaduais, anota Bodenhamer. Como havia muita desordem, muitos homicídios e muita propriedade violada, o lema agora era "order not rights"8, princípio que bem se pode aplicar a muitos julgados de nossos Tribunais. A composição daquela Corte nas décadas mais recentes tem-se caracterizado pelo conservadorismo, o que tem evitado seja ampliado o alcance das civil liberties, que não se aplica aos estrangeiros, como se vê do case envolvendo os prisioneiros de Guantánamo. Ainda assim, as principais conquistas obtidas na era Warren não foram revogadas, embora algumas delas contem com interpretação restritiva. No Brasil, o pêndulo do ativismo caminha atualmente em sentido contrário.   1"Judicial activism is what the other guy does that you dont like" é a literal observação de Joel Grossman (apud Lawrence Baum, The Supreme Court, Ed. Congressional Quaterly Inc., 1998, pág. 7).2"A possibilidade de o acusado contraditar a acusação, tanto quanto a proteção contra a auto-acusação, são direitos de caráter nacional e, portanto, devem ser observados pelos tribunais dos Estados." (Fair Trial - Rights of the Accused in American History, pág. 120)3Bodenhamer, ob. cit., pág. 1224cf. "PRISÃO EM FLAGRANTE - Testemunha - Policial que participou do flagrante - Impedimento inocorrente - Validade do ato - Recurso de habeas corpus improvido" (STJ RT 683/363, rel. o Min. José Cândido); "PROVA - Testemunha - Depoimentos de policiais - Valor probante pleno" (TJSP RT 733/566, rel. o Des. Jarbas Mazzoni); "PROVA - Testemunha - Condenação baseada nos depoimentos de policiais - Admissibilidade - Falta de comprovação de fatos que os possam desabonar - Decisão confirmada" (TJSP RT 634/276, rel. o Des. Jarbas Mazzoni).5cf. lei nº 4.898/65, artºs 3º e 4º6Dos quatro juízes por ele indicados para a Suprema Corte, apenas um se deu por impedido, sendo que os restantes votaram no sentido do reconhecimento de que os documentos em tela não eram particulares, donde o dever do Presidente de dar ao Congresso conhecimento de seu conteúdo (cf. case United States v. Nixon, 1974, in Lawrence Baum, The Supreme Court, pág. 46).7Id., pág. 1278cf. Bodenhamer, ob. cit., pág. 127  
sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Idiotices

  "Pensar incomoda,como andar à chuvaquando o vento crescee parece que chove mais." Alberto Caeiro(pela mão de Fernando Pessoa) Graças às leituras feitas na mocidade, acabei enveredando pelo campo da ética, dos direitos fundamentais do ser humano e pelo socialismo. Qual socialismo ? Qualquer deles seria melhor do que uma ideologia que propõe o individualismo mais irresponsável, o louco empenho para a conquista do primeiro milhão e, acima de tudo, a procura do lucro ilimitável, nem que seja estimulando candidatos notoriamente corruptos a conquistarem o governo de seus países e, depois, pagarem aos "estimuladores" a conta, nem que seja à custa do bem estar de seu povo. Isso, naquele tempo, se chamava imperialismo. Se você tem perdido seu tempo lendo o balanço dos bancos que operam no Brasil e é vítima do lamentável serviço prestado pelos bancos em nosso país terá uma pálida idéia daquilo a que me estou a referir. Tudo isso era a negação do que os franceses haviam sintetizado no liberté, egalité et fraternité. O tempo foi passando e descobri que liberdade, como tudo mais, era apenas um mero conceito. Cheguei a colocar num livrinho esta historieta: King Kong é capturado na África e trazido numa gaiola à América. Ele tem um olhar triste, pelos limites que lhe impõem as grades da gaiola. Certo dia, o tratador se distrai e o gorila foge da gaiola. Ele conquistou a liberdade ? Sim e não. É que a gaiola está dentro de um quarto, que tem as portas trancadas e as janelas gradeadas. Agarrado às grades da janela, ele lança um olhar triste lá para fora do quarto onde se encontra preso, sonhando com a liberdade e os familiares que deixou na África. Seu tratador, que não se emendou, um dia deixa a porta do quarto aberta e o gorila foge dali. Ele conquistou a liberdade ? Sim e não. É que a casa, onde está o tal quarto e que tem outros cômodos, está com todas as portas trancadas e todas as janelas gradeadas. Agarrado às grades de uma dessas janelas, ele lança um olhar triste lá para fora da casa onde se encontra preso, sonhando com a liberdade e tudo mais que ela representa. Seu tratador, que, positivamente, está querendo ser despedido por justa causa, um dia deixa a porta da casa aberta e o gorila foge dali. Ele conquistou a liberdade ? Sim e não. É que tal casa fica numa ilha, não havendo ponte que a ligue ao continente nem o continente americano à África. Prossiga você agora a história e verá que sempre haverá um limite a ser transposto, até porque nós não sabemos o que um gorila pensa quando vê as estrelas no céu noturno. E você, que pensa ? Tive oportunidade de conhecer uma tentativa de igualdade visitando Cuba. Ali não vi crianças sem uniforme escolar, nem jovens vendendo quinquilharias junto aos semáforos, seja noite seja dia. Não vi velhos caídos na calçada nem pedindo esmolas. Não vi famílias morando na rua nem em "cidades de lata", como em alguns países são eufemicamente chamadas as nossas sempre crescentes favelas, que alguns de nossos compositores populares, irresponsavelmente, pintaram com cores fantasiosas. Cada casa dessas é, na verdade, um "barracão de zinco, tradição de meu país; barracão de zinco, pobre e tão infeliz", como disseram Luis Antonio de Pádua Vieira da Costa e Oldemar Magalhães, há tantos lustros, em samba com direito a ser cantado pela Eliseth Cardoso, ao som do Jacob do Bandolim, que, além de ter sido o maior bandolinista que o Brasil já produziu, ainda se dava o luxo de ser serventuário da Justiça no Rio de Janeiro nas horas vagas. Em Cuba, por motivos vários, aquela igualdade ficou apenas no primeiro patamar, ao contrário do que ocorreu na Noruega, onde, graças ao petróleo do Mar do Norte, temos um socialismo alguns degraus acima. Em ambas aquelas sociedades, porém, o mesmo preço: uma juventude sem estímulo algum para um crescimento integral das personalidades que as compõem. Ser igual é, segundo se aprende naqueles países, algo profundamente desestimulante. Quem trabalha tem o que comer e onde morar; quem não trabalha também. Tal como numa comunidade religiosa, sintetizou-me um padre brasileiro que residiu em Cuba por muitos anos. Quanto à fraternidade, nem os filhos de mesmos pais costumam acreditar nela. Não trago o testemunho cínico do Mário Monicelli e seu Parente é Serpente, mas a própria Bíblia. Claro que eu não teria o mau gosto de citar a dupla Caim e Abel, mas seus vizinhos Isaú e Jacó, nome de dupla de violeiros. Se não conhece essa fraternidade, pergunte ao Google que ele lhe mostra. Isso se não preferir a ironia de mestre Machado de Assis. Sobre o socialismo e as decepções que despejou, como água gelada, sobre tantos idealistas, eu poderia indicar o livro do trio Mendoza/Llosa/Montaner e seu Manual do Perfeito Idiota Latino Americano, no qual eles falam exatamente da demagogia que parece inseparável dos políticos latino-americanos. Aliás, eles, que parecem escalação de seleção uruguaia de futebol, vêm agora com a carga toda no recente A Volta do Idiota, no qual não poupam nossa gente. Não quero, entretanto, falar dos políticos brasileiros, mas de gente como eu e você, que criamos e alimentamos esses demagogos, que de idiotas não têm nada, até porque os idiotas, no caso, somos nós. Um dos pontos focados por aqueles três autores, de currículos tão diversos e conclusões tão semelhantes, diz respeito ao vício do latino-americano de contar com o Estado como o Grande Benfeitor, algo muito próximo do que ocorre na religião, onde tudo está nas mãos de Deus. Os profissionais do Direito que vêm tentando resolver conflitos de interesses na base da conciliação e da arbitragem sabem do que falo. Se uma decisão não tiver o selo sagrado do Judiciário, ela vale, para a maioria dos brasileiros, menos do que um traque. Veja-se o barulho que se fez quando o nosso legislador pretendeu retirar dos trâmites judiciais os procedimentos relativos ao inventário de bens se o de cujus deixou apenas herdeiros capazes, sem os famigerados decujinhos da velha piada. E o divórcio a vínculo conjugal, quando a ser realizado consensualmente, precisa de intervenção de juiz por quê ? Rigorosamente, deveria haver juiz e promotor antes da celebração do casamento, para advertir os nubentes do risco que estão a correr. Isso para não falar na frustração do ministro Hélio Beltrão e sua tentativa de desburocratizar o Serviço Público brasileiro. A propósito: você aceita um recibo de quitação sem que a firma do signatário esteja reconhecida por um cartorário ? Não é, porém, sobre nada disso que desejo falar, nesta dança de louco bêbado, mas de um outro tema, que tudo tem a ver com o acima dito. Sabem os que conhecem a cidade de São Paulo que o bairro da Vila Nova Conceição é famoso por seus apartamentos suntuosos, mesmo porque, segundo se diz, o metro quadrado naquele bairro seria o mais caro do país. Fácil, pois, imaginar o nível social das pessoas que ali moram. Há no bairro uma praça, onde babás, com suas impecáveis roupas brancas, levam aquelas belas e saudáveis crianças que ali residem, muitas delas de tenra idade, para distraírem-se e ali brincar todas as manhãs. Pois bem: tal pracinha está tomada pelo mato, e as plantas que ali um dia foram plantadas, talvez pela Prefeitura, não são visitadas por jardineiro há muito tempo. O aspecto geral daquilo é de abandono. Qual a explicação para isso ? Simples: a Prefeitura Municipal esqueceu-se do bairro. Certamente os moradores do tal rico bairro estão inconformados com isso. Mas aí entram as reflexões do trio de autores acima referidos : quanto os proprietários dos riquíssimos apartamentos que ali se encontram gastariam por mês para criar e manter uma Associação dos Amigos da Vila Nova Conceição e, assim, proporcionar a seus próprios filhos um ambiente mais decente para tais crianças passarem as manhãs, enquanto os pais se ocupam em aumentar o seu já enorme patrimônio individual? Menos da metade do que gastam numa refeição ligeira feita num dos restaurantes do bairro. Isso me lembra a ocasião em que fui convidado para dar uma palestra em outro Estado sobre algum tema que se incluía em meu limitado repertório. Uma comitiva foi buscar-me no aeroporto e, ao levar-me para o local da tal palestra, seus membros fizeram questão de passar pelo bairro mais elegante da cidade. Ao iniciar a palestra, após os agradecimentos do costume, registrei que ainda não conhecia aquela cidade, mas levaria comigo uma certeza. Havia-me sido mostrado o bairro mais rico da cidade e eu tinha notado que, de fato, apresentava ele belíssimos sobrados construídos em ambos os lados de elegantíssima avenida. Ao longo do centro desta havia um pequeno córrego, no qual os moradores dos tais riquíssimos sobrados despejavam o esgoto de suas casas. Isso me dava uma certeza, disse-lhes eu: os moradores desta cidade são apreciadores do cheiro de merda. Se não fossem, teriam providenciado, às suas custas, a canalização daquele fétido córrego. Quando terminei a palestra, obviamente não apareceu ninguém para levar-me ao aeroporto. Se eu não tivesse alguns trocados no bolso para o táxi ...  
sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Matemática e Lógica

"A matemática parece ser uma faculdade da mente humana destinada a suplementar a brevidade da vida e a imperfeição dos sentidos." Joseph Fourier(citado por Carl Sagan em Bilhões e bilhões) Nos meus tempos de colegial, aprendíamos Filosofia e, conseqüentemente, lógica, um de seus capítulos. Não sei se isso ainda é assim, pois o Armand Cuvillier falava até de Psicologia em seu manual, ciência que acabou se tornando autônoma, veja o tempo que isso faz. Aliás, nem sei se ainda existe curso colegial, pois nossas reformas educacionais geralmente têm como primeira preocupação mudar o nome de algo. Depois, se der, muda-se o conteúdo. Pois nosso professor Hugo Recchimuzzi falava a respeito do silogismo, mostrando sua importância para raciocinarmos adequadamente. Há nele uma afirmação genérica, também chamada "premissa maior", depois vem uma afirmação específica, dita "premissa menor", e a conclusão inabalável. O exemplo clássico era este, acho que ainda é, se é que hoje, com tanto pragmatismo à solta, se perde tempo com essas coisas : a) todo homem é mortal; b) eu sou homem; c) logo, um dia eu morrerei. Havia em nossa classe uma garota que tinha sido candidata a miss qualquer coisa e, por causa disso, era só pose, o que, naqueles tempos idos e vividos, se chamava "entojo". Ela era um entojo, segundo diziam suas colegas. Isso ainda se chama assim ? Os rapazes, compreensivelmente, dispensavam à tal loira aguada todas as atenções que ela imerecia, a meu abalizado entender. Ainda que eu admirasse a Marilyn Monroe, minha pin-up girl, como então se dizia, pois afixávamos a fotografia de nossa atriz predileta no alto da parede do quarto com um alfinete de cabeça que, em inglês, era, e acho que ainda é, chamado pin, imitando os soldados norte-americanos que se divertiam na Coréia, minha paixão era a magérrima Audrey Hepburn, um autêntico caniço, pela qual eu havia sucumbido vendo A Princesa e o Plebeu (Roman Holiday), sendo o plebeu ninguém menos do que o Gregory Peck, cuja classe eu procurava imitar, enquanto não aparecesse um James Dean em meu caminho, com aquele irresistível modo de mastigar marlonbrandamente as palavras, no papel de um moderno Caim, que acaba mandando seu irmão para a guerra, a leste do Éden. Nada, portanto, de admirar que a tal colega não me excitasse minimamente. Pois ela se aproveitou da aula do professor Recchimuzzi para vir à forra, mandando-me um bilhetinho : a) todo homem gosta de mulher; b) fulano não gosta de mim; c) logo... Ela era boa aluna, sem dúvida alguma. Parti para a ignorância, como então se dizia, devolvendo o bilhete com um adendo : eu não tenho amostra grátis mas faço demonstração sem compromisso. Ela nunca me pediu que lhe demonstrasse alguma coisa ou lhe mostrasse o teorema de Pitágoras que eu trazia no bolso da calça. Já professor, eu tentava mostrar a meus alunos a importância da lógica e do silogismo, fossem eles ser advogados, promotores ou juízes, até porque delegado não precisa dessas filigranas, brincava eu. Dava-lhes este exemplo : a) todo gato tem bigodes; b) Tiago tem bigodes; c) logo, Tiago é meu tio. Epa ! Onde a coisa desandou? Agora não estamos diante de um silogismo, mas diante de um sofisma, que é um falso silogismo, mostrava eu, muito útil aos advogados, provocava. E onde está a falsidade ? Na premissa maior. Eu não disse que todos os gatos "e só os gatos" têm bigodes. Logo, o fato de os gatos terem bigodes não significa que os cães e as focas também não os tenham. Logo, aí estão os bigodes do meu tio para complicar a coisa, mesmo não sendo ele gato, nem cão, nem foca. Os matemáticos, como meu dileto Luis França, gabam-se da precisão do raciocínio matemático. Por exemplo : se 1=5, 2=10, 3=15, 4=20 qual será a resposta para isto : 5=? Resposta ao pé da página. Os lógicos, porém, se esquecem, da problemática corrida entre o coelho e a tartaruga. Sendo mais rápido, o coelho permitiu que a tartaruga chegasse à metade do percurso, que era de 100 metros, para só então começar a correr. Na prática, o coelho vence a corrida de lavada. Matematicamente, porém, não. É que, como a tartaruga está em movimento contínuo, quando o coelho chega aos 50m, ela já estará nos 50,10m; quando ele chega aos 50,10m, a tartaruga estará nos 50,11m. E assim sucessivamente. Para explicar o fenômeno, eles afirmam, com o apadrinhamento do Einstein, que, a certa altura, a tartaruga estará "relativamente" imóvel, ocasião em que ela será ultrapassada pelo coelho. Aliás, isso ocorre até mesmo em corridas de automóvel, onde as tartarugas são os retardatários. Se todos os carros estão em movimento, como é possível que o líder seja ultrapassado sem ter ido parar na caixa de brita ? Cartas para o Barrichello. E nas estações ferroviárias ? Se você está dentro de um vagão de trem parado e a seu lado está outro trem parado, quando um deles começa a movimentar-se, você não sabe se é o seu ou se é o outro trem que se está movimentando. Se, no entanto, os dois trens se movimentarem ao mesmo tempo, na mesma direção, com mesma velocidade, você imaginará que ambos continuam parados. Se você, aproveitando essa falsa situação de equivalência, tentar pular deste trem para aquele, certamente não terá outra oportunidade de fazer essa tentativa. E temos a situação inversa : um operário leva 6 horas para cavar um poço que tem 6m de profundidade por 1m de diâmetro. Pergunta-se : quanto tempo levarão 6 operários para cavar um poço de mesma dimensão, trabalhando ao mesmo tempo ? Meu amigo Luis certamente responderá : 1 hora. Matematicamente a resposta está corretíssima, mas ponha seis operários cavando um poço desses ao mesmo tempo e veja o que acontece. Agora é a prática que desmente a teoria. Imagine que você tenha um monte de grãos de café e tenha de contá-los um a um. Se você levar um segundo para separar cada grão, quando você chegar ao milionésimo grão se terão passado doze dias. E se houver 1 bilhão de grãos para contar ? Segundo os cálculos do Carl Sagan, você levaria 32 anos para isso. Sem comer, sem beber e sem dormir. Quem se habilita a demonstrar que ele está errado ? A Dalila brinda-me com um problema capcioso, cujo deslinde deixo para os leitores : três amigos querem passar a noite num hotel, que cobra US$ 300.00 o pernoite. Cada um entrega US$ 100.00 ao encarregado da portaria e segue para o quarto. Ocorre que o encarregado descobre que se enganara, pois o pernoite no quarto escolhido é de US$ 250.00, motivo pelo qual entrega a seu auxiliar cinco notas de US$ 10.00, mandando-o devolver os US$ 50.00 aos hóspedes. Como o garoto não sabe dividir 50 por 3, ele age pragmaticamente : entrega uma nota de US$ 10.00 a cada um dos três hóspedes, embolsando os US$ 20.00 restantes. Assim, cada hóspede, que havia desembolsado US$ 100.00, acabou desembolsando, na prática, US$ 90.00. Os três amigos gastaram, portanto, no total, US$ 270.00. Somando-se a isso os US$ 20.00 embolsados pelo garoto, temos US$ 290.00. Cadê os US$ 10.00 restantes, Luis ? Quanto à pergunta lá de cima, se 1=5, logicamente 5=1.
sexta-feira, 25 de julho de 2008

Epístola Cibernética

  Meu prezado amigo. Hoje venci a preguiça e tomei da pena para escrever-te, tal como se fazia outrora, quando as facilidades da Internet não nos sonegavam esse prazer epistolar. Nestas mal traçadas linhas mostro-me algo saudosista, reflexo talvez do veículo escolhido para esta breve prestação de contas, démodé a mais não poder, como diria teu pai. Espero que mais uma vez me compreendas e me releves este anacronismo, até porque tenho notórias dificuldades em adaptar-me a esses novos tempos. Quando nos conhecemos, já lá vai um par de anos, eu deixei claros os meus propósitos. Se não te lembras, refresco-te a memória (clique aqui). Depois disso, fui passar um tempo fora do país, não sei se te lembras, e entendi que a liberdade poética me autorizaria a inventar pretextos, como certamente faria o Machado. Sabias disso ? (clique aqui). É claro que não havia ali congresso algum. Inventei-o para impressionar os amigos. Antes o fazíamos enviando cartões postais, com a mensagem implícita : "Eu aqui gozando a vida e você aí a estafar-se". Agora valemo-nos dos recursos da Internet. É o progresso, como dizem os mais jovens. O fato é que a distância nos faz dar valor a pessoas às quais os afazeres diários nem sempre nos permitem expressar o nosso amor. Tomei então emprestado ao Vinicius umas reflexões e dei-lhes um colorido pessoal (clique aqui). Como me saí ? Aproveitei o isolamento escandinavo para umas considerações sobre o sentido da vida, o que sempre vai bem, especialmente nestes dias de tumulto globalizado. Não sei se te mostrei. (Clique aqui) Um tanto blasé, talvez, mas sempre há os amigos para incentivar-nos. Como sempre eu digo, tendo amigos não precisamos ter qualidades; para os inimigos, de que adianta tê-las ? (Clique aqui). Generoso o homem, não? Para encerrar, quero matar-te de inveja. Sou, como tu, fã incondicional do Fernando "várias" Pessoas, que até já homenageei num poema que não me lembro de te haver mostrado (clique aqui). Pois saiba que em Portugal comemoraram-se os 120 anos de nascimento do gajo em grande estilo. Até fado feito de um poema dele nos apresentaram ! Pode ? E a voz e interpretação da Mariza nada devem à eterna Amália Rodrigues, pá (clique aqui). Sabendo como sou chorão, não preciso dizer-te quão emocionante aquilo me foi. Quem me mostrou foi a poetisa Inês Ramos, que precisas de conhecer. Despeço-me, que o tempo ruge, como sempre dizes. (Clique aqui) Até breve.  
sexta-feira, 18 de julho de 2008

Gênios

  "O nível de QI pelo qual alguém pode ser chamado de gênio é geralmente definido como 140 ou superior. Se eu precisar de tanta gente assim para me indicar para alguma coisa, jamais serei reconhecido como gênio." Luiz Fernando Veríssimo Ou Woody Allen, sei lá. O Noam Chomsky, quando não está escrevendo a respeito dos desmandos do George W., dá aulas e conferências sobre lingüística, uma ciência da qual ele é um dos papas mundiais. A senhora não sabe que ciência é essa ? Ele explica : o ser humano utiliza não mais do que trinta sons para expressar-se. Com esses fonemas ele forma palavras, que distribui uma ao lado de outra, formando frases. Até aí tudo bem. O problema surge agora : como fazer para conseguir que outra pessoa saiba o que aquela frase que eu inventei quer dizer ? Deve haver entre ambos um código que permita esse entendimento. Por exemplo : se eu disser que vi um iaque de cor âmbar passeando junto a um gêiser, quantos leitores conseguirão fazer um desenho mental representando essa figura exatamente com essa cor naquele lugar ? Ir ao dicionário servirá para obter o tal código. Mas isso não explica como a coisa funciona. O que leva o conceituado lingüista a concluir, sem medo de parecer piegas : "Qualquer pessoa comprometida com a crença de que os humanos são organismos biológicos, e não anjos, reconhecerá que a inteligência humana tem alcance e limites específicos, e que boa parte do que procuramos entender poderá estar além desses limites." Se a ciência não consegue explicar como se forma isso que chamamos de "inteligência", quando se cuida da "genialidade" os cientistas nem tentam. O Jô Soares, por exemplo, é uma das poucas pessoas que pode dizer ao espelho aquilo que qualquer um de nós, e ele em especial, pensa de si próprio : Eu-gênio. Ele e o Jay Greenberg. A senhora ainda não conhece o Jay ? Que lástima ! Mas antes de falar desse compositor, refiro-me ao Jay, não ao Jô, permita falar de mim, meu personagem predileto. Dois testes para a tua inteligência. O primeiro teria sido apresentado em um exame vestibular recente : nesta seqüência de números, diga qual deve ser, logicamente, o próximo : 2, 10, 12, 16, 17, 18 e 19. Se você pronunciar os números em voz alta mata a charada : dois, dez, doze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove e duzentos. Ou seja, todos os nomes começam com a mesma letra. O próximo número, portanto, deverá ser 200. Diga francamente : esse teste tem a ver com medição de inteligência do candidato ou serve para medir a cretinice de quem o propôs ? O outro teste, mais fácil de responder : diga, se não achar a pergunta indiscreta, quantos anos a senhora tem ? 20 ? 40 ? 60 ? E quantas composições musicais já escreveu ? 5 ? 2 ? Nenhuma ? Pois aí é que está. Tanto eu quanto o Greenberg já escrevemos várias. Cito a mais importante das que escrevi, fazendo, porém, antes disso, todo um circunlóquio, palavra que sempre desejei incluir numa crônica mas não havia ainda tido oportunidade até hoje de fazê-lo. Tempos de TACrim. Eu mais o Zé Celso fomos designados para representar o Egrégio numa solenidade em Sertãozinho e adjacências. Na direção do carro do tribunal ninguém menos do que o simpático Cipriano, cuja tez, pelo nome, não preciso especificar ser negra. Preconceito ? Não. Isso terá relevância no desenrolar de nossa história, senhoras e senhores. Quando o carro dito oficial segue célere pela rodovia doutor não sei quê de Almeida, eis que um treminhão resolve atravessá-la, vindo do acostamento da direita. Não sabe o que é um treminhão ? Digo-lhe : é um caminhão enorme que, de quebra, tem ligado a si uma carreta mais enorme ainda, e tome cana de açúcar em ambos. Quando vimos aquele monstro cruzando a estrada, eu e o Zé puxamos de nossos terços e nos pusemos a invocar os santos conhecidos em São Paulo e em Ibitinga. Pensei em mandar o Cipriano tentar passar por baixo do caminhão. O Zé nem sei se pensou alguma coisa. O fato é que o nosso bravo cinesíforo, sem licença prévia de qualquer de nós dois, resolveu acelerar o carro, levando-o para o acostamento da esquerda. E ali, pelo acostamento, a uma velocidade cinematográfica, ele passou rente à frente do lento caminhão, impedindo, com isso, que a magistratura de São Paulo perdesse dois de seus mais valorosos baluartes, se me permitem a modéstia. Feito isso, ele parou o carro, pois estava mais branco do que alguma coisa muito branca que no momento não sei precisar o que seria, e tomou fôlego para as chamadas vicissitudes que o resto da viagem talvez trouxesse. Eu e o Zé Celso demos um beijo de agradecimento em cada bochecha do Cipriano e dali para a frente eu sempre o cumprimentava assim como alguém que convivesse com seu anjo da guarda, coisa que não é para qualquer um, concorda ? Meses ou anos depois, o Cipriano me informa que agora se chamava simplesmente Cipri e havia formado um conjunto musical, donde aquele cabelo black-power que ele agora exibia. A senhora não sabe o que é isso ? Procure uma fotografia do Michael Jackson, do tempo em que ele ela negro, tinha lábios de negro e cabelo de negro, formava com seus irmãos negros o Jackson Five e a senhora vai saber do que eu estou falando. Cabelo black-power era assim uma espécie de capacete peludo, inventado por uns ativistas norte-americanos, salvo erro meu. Pois o Cipri e suas cipriotas, ou que nome tivesse o conjunto musical, adotava aquele visual, no que fazia muito bem. "E estou gravando meu primeiro elepê", informa-me o meu anjo protetor. Pois me cante aí algum dos sambas do disco, digo-lhe eu, entusiasmante. Ele canta um dos sambas do tal disco e eu não deixo por menos : "melhor do que esse eu já compus." O bravo Cipri não sabia se me mandava para ou se apenas deveria rir de minha pilhéria. Por cautela, prefere rir. Quer ouvi-la ? Sim. Pois lá vai : "Toda minha alegria acabou/ Fantasia rasgou/ Carnaval/ terminou/ quarta-feira/ e toda a brincadeira/ no chão, a final. Inda ontem passei por aqui/ era um rei/ hoje simples gari. Etc. e tal." A Excelência tá brincando ? Tou não, Cipri. Pois vou incluir no meu disco. E toca levarmos aquilo ao maestro fulano de tal, que escreveu a partitura, e agora vamos registrar isso no, o senhor me traga cópia do RG, do CIC, prova de residência, vacina contra sarampo e tome espera. Um belo dia, lá vem o Cipri com o disco pronto debaixo do braço. Acho que só eu e o Mazzoni, que adquiria até disco de comercial, compramos. E posso dizer orgulhosamente que, graças a meu samba, o obscuro conjunto musical Cipri e suas cipriotas despontou para o anonimato. E a senhora aí rindo, mesmo sem ter jamais feito um sambinha desses, é ou não é ? Tenho outros, mas cadê motorista pra gravá-los ? Ocorre que eu comecei falando de um colega e me desviei do tema. Esse meu egocentrismo ainda me mata. Pois o colega Jay Greenberg, nascido em 1991, já antes dos cinco anos de idade rabiscava notas musicais numa pauta improvisada. Ou nas paredes da casa. A senhora quando tinha aquela idade se limitava a solos de chupeta, com direito a marias-chiquinhas, é ou não é ? E o nosso colega, meu e do Mozart, já compondo suas áreas e seus quintais. Em 28 de novembro de 2004, faça aí as contas, o respeitável programa da CBS News 60 Minutes já dava notícias da precocidade do garoto. Em agosto de 2006, continue a fazer suas contas, a Sony BMG incluiu em sua série Masterworks, isto é, Obras-primas, um disco do jovem compositor. Não deixe o Cipri ler isto. É claro que a ciência, tanto quanto as religiões, passaram a dedicar-se ao fato com a curiosidade que não poderia ser diferente. Reencarnação do Mozart, dizem alguns, com aquela invejável segurança de quem já sabe tudo sobre o aquém e o além. Isso só pode ser milagre ! É impossível a uma criança, que ainda não tem formação musical, distinguir os solos que devem caber ao violoncelo dos que devem caber ao oboé, pontifica o doutor fulano, mui digno titular de. Se você não tem algo menos importante a fazer do que perder tempo com essas coisas irrelevantes, enquanto não começa o BBB ou o jornal nacional, vá ao site (clique aqui), onde não só verá o rosto adolescente do Bluejay, como ele é carinhosamente chamado, como poderá ouvir algumas de suas composições. Talvez você também tenha alguma teoria sobre um fenômeno desses. Eu, de mim, como diz o Ranulfo, limito-me a observar que algumas pessoas, quando vêem uma rosa, ficam fazendo cálculos matemáticos para tentar entender como aquelas pétalas foram colocadas umas ao lado das outras, umas camadas depois das outras, com aquela precisão, aquela harmonia toda. E por quem ? Eu não digo que também não tenha essa curiosidade, muito pelo contrário. Mas, a esta altura de minha vida, descobri que se eu ficar fazendo esses cálculos, o tempo vai passar, a rosa vai acabar secando e eu não terei aproveitado a oportunidade que me havia sido oferecida de apreciar a beleza e o perfume dela. Nada de tentar compreender; apenas apreciar.