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Circus

Crônicas e reflexões.

Adauto Suannes
sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Bondade

Bondade me lembra o Ranulfo com sua marca na testa ISO 9000 que lhe foi vincado na face para que se saiba que pode haver outrem apenas e somente parecido, homem impossível de condenar alguém como fazê-lo sem caminhar quilômetros dentro das alpercatas do outro, não foi assim que lhe ensinaram em Ventania? E que tinha tudo para continuar sendo juiz de família não fossem as Parcas mandá-lo para o Alçada Criminal onde quem o conhecesse lhe perguntava atônito: que faz você aqui? E ele lá com seu sorriso que não diz nem sim nem não mineirissimamente. E se um casal se desavinha e isso dava em processo judicial lá está ele ouvindo sacramentalmente sem batina porém o homem que se explica: e deu-se que a mulher em lugar de fazer o almoço se pusera a tagarelar mais a comadre dela a tal que batizou o do mei e quando volto da roça cadê o feijão? e o arroz? e a couve? E aí eu lhe dei uns tapas mesmo que era por amor do escarmento não vão as filhas aprender com ela essa deslição que é o não trabalho, não foi Deus que falou no suor do teu rosto? então não vê que eu sou homem da roça? Mostra as mãos calosas ao juiz compassivo que tudo ouve para espanto da escrevente que mal o conhecia naquele época, isso se deu nos antanhos. Diga se eu não merecia de exemplar ela mais as meninas que tudo viram e que pequenas ainda não podem fazer os que-fazeres da casa mas há que aprender. E deu-se que lhe arrancou meu modo bruto algum sangue lá da boca dela e ela se assustou e foi até a casa da tal comadre que lhe disse isso não pode ficar assim! procure o doutor promotor da comarca! E isso ela diz por causa da televisão que ela vê lá na casa dela e que mudou a cabeça de muita mulher que não quer mais se dar ao respeito da obediência. Mas o senhor não pode bater em sua esposa, diz o juiz compreensivo paternalmente aquilo que se diz que pai deve de ser e o outro arrebenta nuns bugalhos enormes: Nãããão? Quer dizer, bater com soco e com produção de sangue vosmicê não deve, dê aí nela uns empurrõezinhos! Esse é o Ranulfo. Lembra meu vero pai naquilo de entregar o dinheiro todo do salário mensal nas mãos da Marina lá dele como o meu fazia com a dele, que Marina não se chamava, e que quando se saísse de casa: velha, me vê aí uns trocados para a condução. E não é que ele o meu pai chegava à noite transformado o dinheiro da condução em livros raros descobertos num sebo qualquer do caminho talvez até em francês sendo e o filho universitário sem entender aquilo como pode um homem que mal e mal fez o grupo escolar ler livro escrito em francês? Acho que o Ranulfo deve de fazer igual com aquele cheque solteiro que a Marina destaca do talão que lhe fica na bolsa dela e lhe diz a ele: tome. Não tivesse sido ele carpidor de café na mocidade. E havia quem dissesse que o homem era admirador do Marx mais o Fidel mais outros tantos comunistas pois jamais que o vissem em missa na comarca a menos que de sétimo dia fosse não tendo ele embora cara de quem gostasse de ensopado de criancinha com quiabo e outros acepipes para lhe realçar o sabor da comida como se diz que na Rússia se fazia amiúde não é que o homem até em Cuba esteve? mal sabendo os ignaros mal informados ou maledicentes profissionais que ele se ali esteve foi menos pelo prazer político e mais por força do vitiligo que lhe mancha a pele não fosse aquilo algo que degenerasse em coisa mais profunda e comprometedora de sua perfeita saúde não fosse ele o hipocondríaco que todos lhe reconhecemos e que se contamina até por palavras, emprenhado pelas oiças no dizer da jocosa Marina, não é que até inflamação do útero ele supôs que tivesse quando morreu a mulher do colega fulano de tal de uma doença dessas? Esse é o Ranulfo. E se falei em Cuba informo aos interessados que lá a doutora fulana especialista em coisas de pele é extremamente minuciosa mandando nosso Ranulfo tirar a roupa toda e então ele fica só de cuecas, cujo modelo eu não revelo para não ser indiscreto, e ela educadamente: yo no sé cómo se dice nudo en Brasil pero acá nudo quiere decir sin ninguna pieça de la ropa! E que quando viu ele o Tácito Morbach Góes Nobre caminhando pelo tapete vermelho afamado tendo ao lado o Alves Braga a conversarem sobre amenidades ele lhes apodou Preta de Neve e um dos sete onde estão os outros seis? o que ele desmente categoricamente com dizer que isso foi invenção do Rodrigues de Alckmin, então desembargador depois Ministro do Supremo homem de fino humor e verdadeiro autor da bem lançada boutade, grande juiz mesmo sendo da opus dei. E enquanto juiz familiar eis que lhe chega às mãos do sobredito Ranulfo envelope com papel timbrado Tribunal de Justiça de São Paulo Conselho Superior da Magistratura Palácio da Justiça e ele lá pensa que será isso? pensa nada! vai abrindo o envelope bem devagarzinho como se se cuidasse de doce de leite e lê ao depois a convocatória a Vossa Excelência para comparecer à sala tal no dia tal para prestar esclarecimentos nos autos do processo tal. E no dia tal lá vai ele sem a menor pressa e o gentil porteiro boa tarde excelência! boa tarde meu jovem! e o porteiro sorridente lhe abre a porta alta e pesada da sala da Presidência e ele diz licença! Vamos entrando e lá vem o Young da Costa Manso estendendo-lhe amistoso a mão direita como vai o senhor? Bem obrigado e Vossa Excelência? Como Deus é servido! Sente-se sente-se e eles ambos se sentam naquele sofá de couro preto muito bonito que ainda está lá até hoje a resistir a bundas e bundas importantes e o Presidente lhe mostra uns papéis dizendo o doutor fulano presidente da câmara tal desta Colenda Corte me enviou este ofício dizendo que o senhor não costuma assinar suas decisões, veja só! Mas como senhor Presidente? diz o Ranulfo obsequioso e o outro pois é! E eles mandaram cópia de sentença onde se vê que realmente não há ali assinatura sua mas apenas rubrica em todas as folhas inclusive na principal veja! E o Ranulfo olha os papéis e dá uma risada bem mineira saca do bolso a carteira funcional que mostra ao Young veja se não é a mesma assinatura e é graças a ela que me pagam até cheques, brinca. E o Presidente do Colendo Tribunal de Justiça e do Egrégio Conselho Superior de Magistratura diz ora, ora, ora! E confere isto com aquilo e coça seus brancos cabelos bastos e lhe diz ao Ranulfo: vamos então fazer o seguinte a partir de hoje o senhor encomprida um pouquinho mais, coisa pouca, esta perninha aqui de sua assinatura para distingui-la da rubrica propriamente dita para que não me venham novamente esses desocupados a me tomar o pouco tempo que tenho com um ofício dispensável como este. E a propósito como vai a fazenda? e o nelore? Ouvi dizer que agora estão ganhando muito dinheiro é com criação de cavalo manga larga eu porém.   1 Do livro Menas Verdades - Causos forenses ou quase (inédito)
sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Mais uma

  "Saber que se está com câncer é um choque. Sentimo-nos traídos pela vida e pelo próprio corpo. Mas ficar sabendo de uma recaída é terrível. É como se descobríssemos de repente que o monstro, que acreditávamos ter abatido, não está morto, e não havia parado de nos seguir na sombra, e terminou nos pegando." David Servan-SchreiberAnticâncer, Editora Fontanar, p. 114 Você já ouviu falar no Carlo Lorenzini? Não? Depois eu lhe apresento. Por enquanto, mudemos de assunto. Ou não. Quando o currículo da moça apareceu na Internet, houve alguns chatos que se puseram a esmiuçá-lo. Já não houve o caso daquele político, não sei quê Cabral, dançador de bolero com ministra, que foi espinafrado pelo Saulo em seu boquirroto livro porque o tal senador incluiu em seu CV um curso na Sorbonne, nem sei onde fica isso, quando, na verdade, o tal dançarino havia apenas, num passeio turístico, ido visitar a biblioteca ou o banheiro da tal universidade dizem que francesa? Pois foi. Aliás, CV, nos meus tempos de jovem, era abreviatura de "Camisinha de Vênus", coisa de que não se falava com essa liberdade de hoje, não, senhora. Lembro-me do dia em que fui comprar uma na farmácia da esquina e quem estava atendendo era a mulher do dono. Pedi um envelope de melhoral, para pedir alguma coisa. E nada de o homem aparecer. Comprei gilete, sabonete, fio dental, sempre demorando o máximo para fazer novo pedido. "O seu Manoel vai demorar?" digo, por fim, como quem não quer nada. "Ele está de cama." Como se escreve o verbo brochar? Pois no currículo da tal ministra apareceu mais título do que em edital de cartório de protesto. Exagero, é claro. Mas que lá no blog da moça apareceram alguns títulos sem fundo isso apareceram. E vieram as explicações de praxe, que incluem culpa do caseiro, do mordomo, da secretária, do ajudante de ordens. Só que dessa vez não devassaram a conta bancária de ninguém. E tudo ficou por isso mesmo. Passa-se o tempo, a campanha eleitoral comendo solto ilegalmente, o Ministério Público Eleitoral pedindo emprestada a venda de Têmis, e vamos que vamos. "Filhinha, dê um pulinho aqui no meu gabinete que eu quero ter um particular contigo". E lá vai a moça da Receita Federal, em carro dirigido por fulano de tal, que se identifica para entrar no securíssimo prédio, sorria que você está sendo filmado, quem deseja? e outras miudezas próprias da burocracia. A convidada entra naquela sala ali da esquerda, a terceira daqui pra lá, senta-se na poltrona de couro falso, lê o editorial da revista tal, edição do ano passado, que ali está como simples enfeite, até que a mesma ministra do currículo equivocado entra, senta-se à sua frente e passam quarenta e sete minutos discutindo como se faz bolo de fubá. Chegam a algum acordo, ou não, despedem-se sem os protocolares beijinhos, e a convidada, meses depois, descobre que o bolo de fubá queimou e alguém tem de pagar por isso. Adivinhe quem. Até aí eu estou cá de fora do circo, mais distante dos fatos do que o petróleo das insondáveis profundezas pressalinas está de nós outros. Eis, porém, que sou chamado a entrar no palco. Explico. O doutor Paulo Marcelo Hoff é homem de uma timidez rara, desses que pedem licença até para olhar nos teus olhos ou te cumprimentar. E é um dos mais renomados cancerologistas do país, cuíca do mundo, como teria dito certo político, ao pretender usar um substantivo para a surrada palavra talvez e que ele havia ouvido num bolero cantado pelo Nat King Cole. É, aliás, co-autor de livro célebre sobre câncer, sendo o outro co- ninguém menos do que o filho do nosso professor Alfredo Buzaid, que, sendo elevado a ministro do STF pela redentora, falo do míope pai, deu lição de direitos humanos fundamentais a muito esquerdista, tenha este o sogro que tiver, se é que percebeu o jeux de mots, meu caro Bernardo Cabral. Volto ao Paulo Hoff, recentemente homenageado por nosso exemplar vice-presidente da República, de cujo recidivíssimo câncer vem cuidando com zelo e esperança, até porque, "quando Deus quiser me levar, ele não vai precisar de câncer pra isso", como disse o invejável Zé Alencar. Quando, lá se vão dois anos, resolvi brincar de vice-presidente da República e chamei o Walter Sobrado para retirar trinta centímetros de meu longo intestino, coube ao Dr. Hoff e equipe acompanhar as subsequentes sessões de quimioterapia, o que me fazia cruzar com o verdadeiro vice-presidente no festivo hall do Sírio-Libanês, dirigido por meu dileto amigo Jorge Mattar, veja se isso é nome de médico. Encerradas as sessões, venho fazendo acompanhamentos semestrais, sem que nunca, jamais, em tempo nenhum aquele médico tivesse usado a palavra curar ou sugerido que eu estivesse curado. E veja que não uso peruca. Ora, quando a (im)paciente Dilma Roussef, que nem os cabelos ainda recuperou, afirma que o mesmíssimo Dr. Paulo Marcelo Hoff afirmou estar ela curada do câncer, não posso deixar de lançar o meu protesto, pois está ela, uma vez mais, praticando seu esporte favorito, a dano no nome de um homem seriíssimo, que lhe havia de merecer mais respeito. Antes de encerrar, volto ao início. O italiano acima referido não era dono de trattoria nem cantor lírico, mas escritor. Sob o pseudônimo de Carlo Collodi ele escreveu um livrinho infantil que nossa ministra certamente nunca leu. Ele narra a história de um hábil carpinteiro que faz um boneco de madeira. Como a madeira viera do pinheiro, ele dá ao boneco o nome de Pinhão, que, em italiano, se diz Pinocchio.
sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Currículos

Quando pertencia ao Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados de São Paulo, tive oportunidade de lançar um parecer no qual demonstrava o descabimento de todos os advogados poderem usar o título de "doutor", coisa que vinha do Império, mais exatamente quando, em 11 de agosto de 1827, criaram-se os primeiros cursos jurídicos no país. De acordo com as leis da República, doutor é aquele que defende tese original perante banca autorizada a aprová-la, como diz a lei nº 9.394/96, dita Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A lei n° 8.906/94, que é o Estatuto da OAB, não repete o que vinha na lei imperial, que passou a ser incompatível com a legislação que rege a outorga de tal título, como é óbvio. Pura questão de hermenêutica. Ou de exegese, se quiseres. Por falar nisso, já ouviu falar de Carlos Maximiliano Pereira dos Santos? Não? Então procure no Google e você descobrirá quem foi ele e o que fez na vida. Dentre outras coisas, saberá que foi nomeado, aos 63 anos, Ministro do Supremo Tribunal Federal, graças a seu "notável saber jurídico" e sua "conduta ilibada". Está bem, você já tem quarenta anos e nunca tinha lido a palavra ilibado. Nem ouvido. Talvez porque os hábitos atuais das pessoas não incluem mais a ilibação, que é o "ato ou efeito de ilibar". Mas a palavra notável você certamente conhece. Se arável é o terreno que dá para ser arado, comestível é aquilo que dá para ser comido, notável é aquilo que dá para ser notado. Uma gravidez de 8 meses é uma coisa notável. Livros jurídicos, artigos jurídicos, teses jurídicas são trabalhos que nos permitem notar se seu autor possui ou não "saber jurídico". De acordo, Nelson Jobim? Carlos Maximiliano, aos 52 anos de idade, publicou Hermenêutica e Aplicação do Direito, obra de tal importância que até hoje, já na 19ª edição, é consultada por quem leva o Direito e o Poder Judiciário a sério. As edições que se seguiram à aposentadoria do autor trazem um capítulo final que é a reprodução do discurso por ele pronunciado quando se despediu do STF. Entre outras coisas, ele diz que, a partir de agora, voltará a gozar da vida social, que julgava algo incompatível com a relevância do cargo que até então ocupava. Sua conduta, antes, durante e depois foi, sem a menor dúvida, limpíssima. E seu saber jurídico pôde e pode ser apreciado dos trabalhos escritos que deixou. Imaginemos que Carlos Maximiliano houvesse tentado por duas vezes ingressar na Magistratura por concurso. Reprovado, desistiu de uma terceira tentativa, quando, certamente, mais bem preparado, não teria tido dificuldade em ser aprovado, chegando, com o tempo, a desembargador, "como toda a gente", com a licença do Eça. Faltou-lhe coragem? Reconheceu seu despreparo? Descobriu não ser essa sua verdadeira vocação? Nunca saberemos, pois estamos no campo das conjecturas. Digamos que, por motivos vários, não houvesse ele subscrito os lapidares pareceres que lavrou como Consultor-Geral da República e seu Procurador-Geral, cargo que ocupou até tornar-se Ministro do STF. Nem tivesse publicado seus Comentários à Constituição Brasileira de 1891, seu inigualável Direito das Sucessões ou seu conhecidíssimo estudo sobre a propriedade condominial. Alguém, sem trair o que dizem os dicionários, poderia dizer ter ele "notável saber jurídico"? Digamos mais: mesmo sem ter o chamado "notável saber jurídico", nem merecer o título de "doutor" pelas leis da República, nem o título de "mestre", nem o de "pós-doutorado" (lato ou stricto sensu), nem de especialização em coisa nenhuma, que diríamos se houvesse Carlos Maximiliano sido contratado para dar assistência a algum governo estadual ou municipal, durante um ano, recebendo, por mês, valor correspondente a 140% daquilo que viria a receber no Supremo Tribunal Federal, mesmo tendo o tal Estado ou o tal Município um corpo de advogados que são remunerados exatamente para defendê-lo? No caso, o serviço a ser prestado por Carlos Maximiliano não se revestiria "de natureza singular, nem considerados os serviços em si, nem considerado o seu prestador, de quem não se requeria notória especialização, visto tratar-se de demandas com temática rotineira", como registraria o juiz que, eventualmente, viesse a julgar ilegal aquela hipotética contratação. Quem dará a resposta a tais indagações não serei eu. Deixo-a a cargo do Superior Tribunal de Justiça, intérprete máximo das leis federais, como sabe qualquer Advogado-geral da União: "Pode a Administração Pública, excepcional e motivadamente, mesmo quando conta com consultoria jurídica própria, contratar advogados. Mas, para fazê-lo, precisa licitar, exceto quando notável o saber jurídico do Advogado e absolutamente singular o serviço a ser prestado. Quanto a este último requisito, o que se observa in casu é que a Prefeitura de Itatiba buscou singularidade no atacado, como forma de disfarçar a terceirização em bloco de atividades que são próprias e bem podem ser executadas pelos Advogados que integram, com vínculo público, a Administração. Já no que tange ao primeiro requisito, cabe lembrar que, em Direito, notória especialização é aquela de caráter absolutamente extraordinário e incontestável. Ela fala por si. É posição excepcional, que põe o profissional no ápice de sua carreira e do reconhecimento, espontâneo, do mundo jurídico, mesmo que regional, seja pela longa e profunda dedicação a um tema, seja pela publicação de obras e exercício da atividade docente em instituições de prestígio". É o que se lê no Recurso Especial n° 488.842/SP (2002/0163048-3), relator o Ministro Castro Meira.
sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Carta aberta a um camafeu

"O Supremo, por maioria de votos, rejeita denúncia contra Palocci." Dos jornais Quando seu porte ereto assomou a curul dessa insigne Corte, pareceu-me ver ali uma Têmis desvendada. Rosto impassível, expressão sempre séria, votos declamados sem a mais remota sombra de emoção, menos ainda de paixão. Dir-se-ia estar ali um cérebro que julga, enquanto um coração descansa. De muitos advogados que tiveram o privilégio de ter o processo apreciado por Vossa Excelência, ouvi a mesma expressão: é nossa Margareth Thatcher, o que diz tudo. Ainda outro dia, por dever profissional, topei com estas palavras escritas por Vossa Excelência: "A denúncia, apesar de sucinta, atende às exigências formais e materiais contidas no art° 41 do Código de Processo Penal, possibilitando o pleno exercício da ampla defesa. No presente caso, encontram-se presentes todos os pressupostos e condições de procedibilidade para o ajuizamento e prosseguimento da ação penal em face do recorrente, sendo certo que a sua efetiva participação nos delitos deverá ser analisada após a instrução criminal, por ocasião da sentença". Isso está dito no RHC 97.598/SC, relatado por Vossa Excelência, citando votos de seus ilustres colegas Celso de Mello e Cármen Lúcia. Não apenas citou, na recentíssima sessão do dia 4 de Agosto último, sua eminente colega, de porte mais modesto mas de firmeza equiparável, como endossou-lhe às claras a dureza de argumentação: "A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que o trancamento de ação penal só se verifica nos casos em que há prova evidente de justa causa, seja pela atipicidade do fato, seja pela absoluta carência de indício de autoria, ou por outra circunstância qualquer que conduza, com segurança, à conclusão firme da inviabilidade da ação penal." Expressões como firmeza, prova evidente de justa causa, atipicidade, carência absoluta e segurança não necessitam de dicionário para serem entendidas. "Mudou o Natal ou mudei eu?" indagaria, se vivo fosse, o patrono de Migalhas. Seria uma descabida grosseria alguém, a esta altura, recordar o justo sonho que recentemente sonhou Vossa Excelência que, consciente de seus jamais duvidados predicados intelectuais, fê-la ausentar-se vezes e vezes desse Augusto Sodalício para, com o estímulo e o carinho de seus ilustres colegas e com todo o empenho do Senhor Presidente da República e sua máquina administrativa incontrastável, buscar concretizá-lo, transformando Vossa Excelência, certamente, num Ruy ressuscitado, o que nos faria mais orgulhosos de havermos nascido neste solo, onde, graças à generosidade natural de nossa gente, os nomes quase impronunciáveis jamais foram nem serão empecilho para que seus portadores sejam respeitados pelo que são, tão brasileiros como as Marias e os Silvas. Naquela ocasião, sua justa decepção foi a decepção de todos aqueles que acreditamos na imprescindibilidade de juízes sérios, aquém e além de nossas fronteiras. Dizia Pontes de Miranda que, se o intérprete não tiver um mínimo de boa vontade, nenhuma lei será do seu agrado. Transportando esse pensamento para o nosso decepcionante Poder Judiciário, escrevi já há algum tempo: "Quando o desmando dos homenste cobrir de cicatrizes,pensando as dores, reflete:ainda temos juízes! Autoridades corruptas,tantos homens infelizes.Não cede à desesperança:ainda temos juízes! Legalistas, burocratas,ou venais, quais meretrizes.Maioria ou minoria ?Ainda temos juízes! Tão moços, mal preparados,agindo qual aprendizes.Melhor isso do que nada:ainda temos juízes ! Ubi homo, ibi peccata.Releva dele os deslizes.Perfeição só cabe em Deus.Ainda temos juizes !" Confesso-lhe que esse poema é recitado por mim quase diariamente e, se estou certo, se-lo-ia, se o conhecessem, por muitos dos advogados sérios que não conseguem aceitar os descaminhos do nosso Judiciário, assim como quem reza um mantra que lhe tolde os sentidos por minutos ou por horas, quando a vida lhe parece algo insuportável. Sabemos quase todos que os juízes existem, desde a Magna Carta, para diminuir a força do poder dos poderosos, qualquer seja a base desse poder. Não fosse isso e o juiz seria apenas mais um opressor, ocupe ele o posto que ocupar, intra ou extra muros. Não estou aqui para julgar ninguém, mas se as lições que aprendi no manual de Direito Constitucional do professor José Celso de Mello Filho ainda valem alguma coisa, todos temos o direito de desabafar, como ora faço, expressando publicamente seu desencanto, especialmente diante da conduta de alguém que havia alçado, ao meu sentir, talvez ingenuamente, páramos inacessíveis aos comuns mortais. Desnecessariamente recordando a matriz desse sagrado princípio, "Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances." Se toda pessoa tem o direito de recorrer às autoridades judiciárias para ver reparadas as ofensas reais ou temidas a seu status dignitais, tem também, diz-se ali, o direito à liberdade da palavra, fundamental a que as autoridades públicas pensem duas ou mais vezes antes de expor sua biografia à maledicência humana. Como, aliás, acaba de fazer o ilustre constitucionalista acima citado, ao recusar-se, por razões públicas de foro íntimo, a participar do julgamento de uma figura pública com quem não tem, ao que se saiba, a mais remota intimidade, mas a quem tem o nome ligado por haver sido, sabe-se lá há quanto tempo, por ele nomeado Ministro de nossa Suprema Corte, que só tem engrandecido com sua postura e sua cultura. Talvez tenha sido Mário Quintana, mestre da síntese, quem nos tenha advertido de que "viver é decepcionar-se". Graças a Vossa Excelência, tomei, uma vez mais, consciência de que ainda me falta muito para o descanso de que falava San Juan de La Cruz: "Lloraré mi muerte yay lamentaré mi vida,en tanto que detenidapor mis pecados está.¡Oh mi Dios!, ¿cuándo serácuándo yo diga de vero:vivo ya porque no muero?" Deus guarde Vossa Excelência.
sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Reflexões ao Espelho

  Todas as manhãs, ele gasta cerca de meia hora diante do espelho. Enquanto faz a barba, conversa consigo mesmo, naquela manifestação esquizóide que todos temos de vez em quando, pensando na vida e na morte, nos processos e na justiça, na verdade e na mentira. "Aquela preliminar daquela ação anulatória está difícil de derrubar, mas creio que encontrarei no Theotônio alguma coisa que." Admira sua bela imagem ali refletida, procurando esquecer que aquilo que ali aparece é ela invertida. O inverso do bonito é o feio? Na verdade, se esquecermos o volume de feitos que aguardam distribuição, a fita da máquina do escrevente (ainda se usa máquina de escrever nesta nossa distante comarca, Deus meu!) que deveria ter sido trocada há dois meses, a goteira na sala de audiência que nos obriga a lançar mão de bules e panelas para não termos os pés encharcados, o ventilador que está sem uma das pás, o porteiro do auditório que é surdo, o promotor que não aparece no fórum há quatro dias, o advogado dativo que se esqueceu de passar no fim do expediente para assinar todos os termos das audiências criminais, o degrau que range cada vez que alguém sobe a escada, a juíza que passa boa parte do tempo namorando ao telefone, no mais a Justiça vai muito bem, obrigado. "Os juízes deveriam pedir a algum vereador, ou deputado, senador, sei lá, não entendo muito dessas coisas, que instituíssem o dia dos presos. Sem eles, o leite de nossas crianças, de nós, os criminalistas, talvez demorasse um pouco mais para chegar", pondera. "É na gaiola que o canário canta", aconselha um advogado bastante calejado. "Habeas corpus é habeas pernas. Solta ele, e quem mais acha? E o teu, quem paga? Parta de um pressuposto básico, meu jovem: se ele não está preso por este crime, deve estar pagando o que nós não conhecemos. Mas Deus conhece tudo e todos. E nada acontece sem que Ele permita, é ou não é? Não conhece a história de Santo Efren? Pergunta ali ao Galli que ele te conta." O Galli a que ele se refere é um advogado novato, que tem uma visão fatalista das coisas. É maçom, e aquele olho dentro do esquadro persegue o homem noite e dia. Até na escuridão do quarto ele consegue ver aquele olho acompanhando tudo o que ele sonha. Mais umas escanhoadas e ele conclui que sabonete é supérfluo, espuma automática de barbear é supérflua, ar condicionado no automóvel é supérfluo, revista pornô é supérflua, caixão de defunto feito de jacarandá da Bahia é supérfluo, anticoncepcional é supérfluo, gaiola de passarinho é supérflua, semáforo é supérfluo, deputado é supérfluo, papel higiênico é supérfluo. Necessária mesmo só a liberdade. "Poesia é supérflua", completaria o veterano causídico. O homem nasce com a rapidez da tartaruga, a paciência de um leão faminto, a determinação de um bicho-preguiça, a capacidade de transigir de uma mula, a sobranceria de uma hiena, o desamor de uma elefoa. Só o sadismo é realmente humano. "Não me comovo um átimo com a dor alheia. Dor é purgação, purificação. Faça um doce de leite sem submeter os ingredientes ao suplício do fogo se for capaz. E a pinga? Como transformar aquela garapa suja, avinagrada à custa do cadáver putrefato de alguma ave, naquela água translúcida, que nos desce pela goela, generosa no prazer que nos concede, sem o fogo da destilação? Que seria de nosso prazer diário sem o fogo?", pergunta sem fazer trocadilho, que ele não é dessas coisas. "Só bebo socialmente, pergunte ali à patroa", desafia. "E se tens o mau gosto de rejeitar a branquinha, diga-me qual a origem da água que brota na tua torneira? Acaso já estiveste em alguma estação de tratamento de água? Ou, mais exatamente, estação de tratamento de esgoto? Pois a água que te chega nos encanamentos nada mais é do que esgoto depurado quimicamente. E que antes de beber tu farás passar pelo fogo purificador da fervura esterilizadora. É ou não é? Memento, homo, quia merda est et in merdis reverteris!" Ele não pára por aí. "Aliás, sabias que em Nova Iorque há uma empresa que recolhe o esgoto da cidade, dá-lhe um tratamento e a gordura obtida é transformada em margarina? O que os olhos não vêem ..." Sim, irmão, quando vemos nossos filhos e netos com nossa cara, parece que isso é a vingança que a Natureza nos preparou, uma condenação a sermos eternamente lembrados pelos que aqui ficarão. Mesmo após a nossa morte, todos se lembrarão do mal que fizemos, vendo-nos estampados no rosto daqueles inocentes que aqui ficaram. Esse mesmo rosto que agora me sorri lá do espelho, mesmo estando eu tão sério como penso que estou. Um rosto que me lembra meu pai, sempre incapaz de rir quando estava em nossa casa, mas que não rejeitava os galanteios das alunas, que o faziam dar sonoras gargalhadas e que vibravam com os atrevimentos das mãos dele. Um rosto bifronte, jânico, menos por homenagem ao ex-presidente e suas maluquices, e mais pelo personagem mitológico que nos retrata a todos e nos mostra como somos. Ao fim da barba, a loção que, ardendo pra cacete, vai cicatrizar os lanhos produzidos pela gilete nova. "Já reparou que gilete é como juiz criminal? Tem de ficar mais velha para não produzir tanto sofrimento", filosofa. Ele hoje vem com tudo. O promotor que se prepare.
sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Orquídeas

  "Tudo aqui manda pecar e peca - desde a cigana-do-mato e a mucama, cipós libidinosos, de flores poliandras, até os cogumelos cinzentos, de aspirações mui terrenas, e a erótica catuaba, cujas folhas, por mais amarrotadas que sejam, sempre voltam, bruscas, a se retesar." João Guimarães RosaSagarana Não sei bem o que se passa comigo. As ideias vão e vêm com incrível facilidade. Começo a pensar em alguma coisa e logo vem outra ideia, atropelando a primeira. E eu não consigo concluir o primeiro pensamento, que vai de roldão naquele tropel, dando-se uma sensação de desperdício. E também perco o segundo, preocupada em retornar ao primeiro. Parece que estou ficando louca. É isso: ficando maluca. As pessoas me olham, tratam-me como uma pessoa normal. Mas, no fundo, fica sempre aquela impressão de que elas perceberam o que se passa comigo. Nada comentam certamente com medo de que eu me torne violenta. Possuída por uma legião de espíritos imundos que me arrastem para o mar. Mas eu nunca me enfureço. Nunca. Sou considerada uma pessoa extremamente controlada, prestativa, sempre sorridente. Não consigo ter raiva das pessoas. Pois não. Não há de quê. Não precisa se incomodar. Deixe que eu faço. São expressões que me saem da boca automaticamente. Nem preciso pensar para dizê-las. Mas o que me mata são esses pensamentos que vão e se perdem, como se uma estrada, de repente, ficasse coberta de neblina. O senhor entende, não é? Conhece aqueles filmes italianos, de bangue-bangue, com gaitinha tocando ao fundo. Pois é. Aquele areal danado, uma secura sem tamanho, um vento soprando rente ao chão. Num relance, rolos de mato seco sendo arrastados pelo vento. Os rolos vão em bando, como a galope, e se perdem no infinito. Ou passam pela tela, da direita para a esquerda, em seqüência. Pois meus pensamentos por vezes são assim, doutor. Rolos de ideias que vão e se perdem. Não têm raiz, não se fixam. O senhor entende, doutor? Entende, não é? Tento explicar isso ao meu marido. Marido! Ele me olha com ar pachorrento, como se visse uma enceradeira elétrica. Ou um toca-discos que ele gostaria de desligar. Isso passa. Menopausa é assim mesmo. Tento gritar, dizer o que penso, o que sinto, o que vai dentro de mim. Esses anos todos de casados, essa rotina, essa falta de emoção. Servir a filhos, servir a marido. Deveres, deveres, deveres. O corpo se deformando, flácido como um vasilhame sem serventia. Sem serventia! Os seios murchos, sem vida, sem encanto, sem a atração de antes. E esse calor, que me sobe pelo corpo até a cabeça, são como gado em bando, tentando passar pela porteira estreita. São tantos que uns atrapalham os outros. Sai gado nenhum. Nenhuma palavra. Só esse silêncio indignado. Ele é um bom marido, dizia minha mãe. Um bom marido! Não deixa faltar nada na casa. E quem disse que eu quero televisão? Ou máquina de lavar isto? Ou máquina de lavar aquilo? Alguém me perguntou? Sabe qual foi meu presente no primeiro aniversário de casamento? Sabe? Uma máquina de costura. Elétrica, enfatizou bem ele. Um cinto de castidade teria mais serventia. E pensa que eu demonstrei a minha contrariedade, minha decepção? Pois sim. De que eu falava mesmo, doutor? Das emoções, creio. Coisas banais me trazem emoções paradoxais. Como as flores, por exemplo. Gosto de flores. Em meu jardim tenho várias plantas, muito floridas. Acácias, baunilhas, quaresmeira. Aquele roxo da quaresmeira, mais parece a luz negra de uma boate. O senhor conhece quaresmeira? Miosótis. Flores pequenas, discretas e muitas. E os hibiscos. Os hibiscos, doutor, me parecem uma flor obscena. É isso mesmo: obscena. Claro que não sou tão ignorante que desconheça que uma flor é o órgão sexual das plantas. Mas há plantas discretas, cuja natureza sexual é compensada por uma certa beleza assexuada. Uma rosa branca, qual uma vestal. Quem imaginaria ali um órgão sexual? Quem, doutor? Já um hibisco, doutor... Aquele pendão saindo lá de dentro. As pétalas escancaradas, sem a mínima vergonha, sem compostura. Sabe, doutor, que quando estou admirando uma flor de hibisco (daqueles hibiscos vermelhos), se alguém fala comigo eu sinto o rosto ficar corado. Um afogueado subindo pelas faces. Maus pensamentos? Isso é grave, doutor? (Cotovelos apoiados no tampo de vidro da mesa, as mãos entrelaçadas, apoiando o queixo, o moço de branco apenas ouvia, atento, aqueles desabafos. Ouvia com atenção e grande dose de compreensão. Não analisava, não esboçava qualquer sinal de enfado ou aprovação. Era como admirar uma torneira aberta jorrando. Olhava com interesse profissional aquela mulher de meia idade, bem vestida, com traços delicados, sentada elegantemente à sua frente. Diria que era ainda bonita, se a máscara de sofrimento permitisse a ela mostrar o seu rosto natural. As mãos dela seguravam firmes os braços de madeira da poltrona onde estava sentada, como se a mulher quisesse impedir-se de levantar. Vez por outra, durante a exposição, as mãos se desgrudavam dali, como que arrancada, e gesticulavam fartamente. Logo em seguida, dando pelo excesso, uma força interior trazia as mãos para a posição primitiva. Elas crispavam contra o braço do móvel, aprisionando o corpo, que aparentava querer soltar-se.) Ultimamente, doutor, a coisa é com as orquídeas. A princípio, as orquídeas brancas, as catléias imaculadas. Aquelas flores leitosas me encantaram. Aquele alvor de pureza. Eu ficava horas (acredite, doutor: horas) na loja do shopping observando aquelas enormes pétalas (ou sépalas, não sei) que se abrem aos pares. O labelo caindo para fora. A orquídea exercia uma atração inexplicável. Eu ficava enfeitiçada, olhando ali parada. Os empregados da loja, que vieram a me conhecer, nem estranhavam mais aquela minha postura. Parada, pregada ali, como um pássaro diante da serpente. Passei a comprar orquídeas. Deixava de comprar coisas para mim, comida até, para levar para casa orquídeas. O jardim foi-se enchendo de vasos. Fiz um ripado para protegê-las. E a cada dia aquela adoração, aquele enfeitiçamento. Meu marido inteiramente indiferente àquela minha obsessão. Incapaz de perceber que alguma coisa não ia bem comigo. Aquilo não era normal, como perceberia qualquer pessoa que tivesse um mínimo de sensibilidade. Hoje aconteceu algo que me fez vir aqui, doutor. Não sei bem como descrever. Algo tão ridículo, tão descabido. Mas aconteceu. E eu me decidi a vir consultá-lo. Antes que enlouqueça de vez. Eu olhava uma catléia branca, com um sombreado no seu interior, em torno do labelo. Aproximei-me dela a ela continuou a me atrair, como se me chamasse. E eu cada vez mais perto. Aí (a mulher procurava as palavras, sem levantar os olhos) eu passei a beijar aquela flor. Beijar uma flor, doutor! Olha a loucura. Eu beijando uma flor. Beijei, lambi, chupei aquela flor, com uma ansiedade, uma emoção envolvente, insopitável mesmo. É isso, doutor: insopitável. (O médico notava a alteração da respiração. O peito arfante da cliente denotava a revivência da experiência narrada. A fronte apresentava gotículas de suor, não percebidas, por certo, pela senhora. As narinas dilatavam-se, naquele respirar ritmado. As mãos crispavam-se com mais intensidade, à medida que a narrativa prosseguia.) A coisa não parou aí doutor. Ainda não era o bastante. A medida que eu me excitava, ia ficando furiosa. Aquele beijar, aquele lamber não me satisfaziam. Havia alguma necessidade interior, que eu não sei qual seja, que ainda estava longe de ser saciada. Aquele estado de loucura foi crescendo e eu me pus a morder aquelas pétalas. Como se elas fossem coisa viva. Coisa humana, quero dizer. Mordi, estraçalhei aquela primeira orquídea. E depois a seguinte, e outra, e outra. E a insatisfação continuava. E eu mordi folhas, mordi troncos. O senhor não imagina como é agradável sentir os dentes penetrando no tronco da árvore. Retirar bocados da casaca de ipê, por exemplo. Aquele gosto agridoce na boca. (Os olhos da mulher estavam fechados. Ela agora falava para si própria. O corpo ia-se entesando, as mãos pregadas nos braços da cadeira, como raízes de orquídea presa no tronco de uma árvore; os braços esticando, empurrando o corpo para trás. A cabeça sendo jogada para além do espaldar apoiando-se na nuca. Qual um plano inclinado, apoiado apenas nos calcanhares, a mulher retesou-se ao máximo. O corpo ondulou convulsivamente. Um dramático suspiro, como a sorver todo o oxigênio da sala, seguido de um grito saído lá do fundo daquela mulher sofrida. Um urro animal, que atravessou a parede e ribombou lá longe, no distante. O médico, com ar grave, levantou-se e deu a volta à mesa. Ao chegar do outro lado, a cliente, tensão aliviada, respirava placidamente. O corpo agora estava flácido, invertebrado, esparramado na poltrona. A cabeça também pendia, olhos semicerrados. Pareceu-lhe ouvir algum sussurro. Nos lábios, um sorriso de prazer. Um sorriso que, por certo, o marido há muito que não via.)
sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Palmas

  Meu gorducho amigo Ítalo, aquele um que me deve, há mais de cinquenta anos, um trote acadêmico, que jamais me pagará, se continuar a engordar desse jeito, questionou minha afirmação no sentido de que já gorjeei com o Ministro Sydney Sanches por esses brasis afora. Segundo ele, eu desafino até quando espirro, afirmação que só é digna de desculpa se considerarmos que, como ex-integrante do Ministério Público, não teria o meu cordial desafeto compromisso algum com a verdade. Já Sua Excelência o Ministro, diz ele, nascido em Rincão e tendo sido jogador de futebol e escrevente em Araraquara, esse é mel de boa cepa. Esquece meu rotundo amigo, pelo jeito, que o ministro já se encontra no ócio com dignidade e que a primeira coisa que acontece quando um juiz se aposenta é crescer a grama que está na frente da porta da casa dele. Datas vênias a esta altura é desperdício. De fato, conhecesse aquele distinto advogado araraquarense e criador de peixe no Mato Grosso a história de nossa tradicional e sempre amada academia do largo de S. Francisco, por força de cujo vestibular bem sucedido eu carreguei esse mesmo Ítalo, há muitos quilos atrás, nas costas escada rolante acima, no largo do Patriarca, e saberia que, na segunda metade dos anos 50, lá estava eu na fila aguardando ser submetido a um rigoroso teste, a ser executado pelo ínclito maestro Davi Reis, emérito fundador de corais e que, dentre outras qualidades, tinha um T.O.C. que consistia em puxar o tempo todo a manga da camisa esquerda para fora da manga idem do paletó. Pois me submergi a tão rigoroso teste, como diria o Vicente Mateus, tornando-me, sem a menor dúvida, o mais alto baixo que já passou pelo Coral do XI de Agosto. E, na qualidade de membro nato, prestei minha modesta colaboração em páginas memoráveis, como a execução da Ave Maria de Soma, que pouca gente conhece e que não canto aqui porque o espaço e a ocasião não permitem. E lá íamos nós bajular o governador do Estado, dando uma récita natalina no Palácio dos Campos Elíseos (nem sempre, minha senhora, o governador do Estado precisou esconder-se nos matagais do Morumbi), recebidos pelo professor Carvalho Pinto, aquele mesmo cidadão que num futuro não muito distante dali se apresentaria com duas costelas quebradas, fruto de um estranho abraço que o renunciante presidente Jânio Quadros lhe teria desfechado quando o governador foi recebê-lo no aeroporto que o trouxe de Brasília, sem que ele justificasse cabalmente a tal renúncia, a confirmar seu dito preferido: "Fi-lo porque qui-lo". E se isso for pouco, lembro ao insigne taquaritinguense de nascença que aquele mesmo Sydney, ao criar na Associação de Magistrados de São Paulo (e cuja logomarca atual foi criada por um conceituado artista plástico cuja modéstia o impede de identificar-se neste momento), como presidente de fato, uma boitezinha ("Onde estamos! Boate em clube de Juiz! Onde isso vai parar, meu Deus!" exclamou-se na ocasião), à qual demos o adequado nome de Repicão, em homenagem a uma estranha matemática que o Boris, não fosse ele Kauffman, acabara de inventar (contrariando as mais conhecidas leis de Newton e Einstein, o que fez para fins que justificavam os meios, como diria o Tomás de Aquino), boate essa onde se apresentavam notáveis ídolos da música brasileira, tal como Paulinho Nogueira, Sócrates (o jogador, claro) e suas louras espumantes, Celso Camargo (a recitar Vinícius), Nélson Cerqueira e seu violão, ale da Excelentíssima Senhora. Celso Limongi (cuja interpretação de Tiro ao Álvaro rivalizava com a execução célebre da mãe da Maria Rita) e o diretor social da mencionada entidade, que, vez ou outra, brindava os presentes com uma canja, pela qual jamais cobrei cachê. Quem duvidar, pergunte ao Milton Gordo, que, por sinal, está cada dia mais magro. E não apenas ali se fazia notar a indiscutível vocação do presente escriba para o bel canto. Quando o promissor sambista Cipriano, que nos transportava de casa para o TACrim e vice-versa, nos confessou que, sob o nome artístico de Cipri, estava para gravar um disco (vinil, sim senhora, que ainda não havia essas facilidades de hoje), algum de nós resolveu reptá-lo: "Melhor do que essas músicas eu tenho em meu repertório". E eis o valente Cipri providenciando arranjo e gravando o belíssimo samba que leva por título Quarta-feira, algo de que o Paulo Vanzolini certamente muito se orgulharia de haver feito, mesmo achando ele que o Zeca Pagodinho é mais cantor do que o Caetano Veloso, a quem nunca perdoou por haver transformado Ronda no hino da cidade de São Paulo dando-lhe, claro, outro nome. Pois o mencionado samba assim dizia lá pelas tantas: "Inda ontem passei por aqui/ era um rei, hoje simples gari/ de vassoura na mão, recolhendo a ilusão/ que sambando vivi". E foi graças a esse belíssimo samba, sobre cuja autoria prefiro silenciar, que o Cipri finalmente despontou para o anonimato. E isso porque a sempre ressalvada modéstia me impede de recordar o dia em que, no hall do hotel Friendship, em Beijing (é assim que eles lá chamam a capital da China, aqueles ignorantes), onde se apresentavam dois guitarristas chineses que não tinham a menor idéia de onde ficava o Brasil, menos ainda que língua aqui se fala, nem jamais haviam ouvido falar em bossa nova, acabaram eles por acompanhar, entusiasmadíssimos, aquele mesmo ex-diretor social da Apamagis interpretando, senhoras e senhores, de Lennon e McCartney, "Yes-ter-day". (Neste momento, se nosso ensaio produzir algum efeito, uma mocinha levantará, para os leitores, uma placa com o dizer "Aplausos", como ocorre nos estúdios da TV.)  
sexta-feira, 21 de agosto de 2009

No Bolso do Colete

  Quando prestei concurso para ingresso na magistratura, a inquirição no exame oral ainda era pela ordem alfabética do nome dos candidatos. Adivinhe quem foi que estreou a nossa banca? Pela Ordem dos Advogados estava presente um processualista que começava a despontar nos meios acadêmicos, falecido há pouco tempo, depois de uma carreira brilhante: o Celso Neves. Já escrevi isso, mas não custa lembrar. Ele me cumprimentou educadamente, como era de seu feitio, e, como quem me perguntasse "que dia é hoje?" lançou o seu petardo, uma espécie de saque do Roger Federer, como se diria hoje. E o saque não veio com violência, mas com um venenoso back-spin, como dizem os entendidos em tênis: "Fale-me sobre o princípio da efetividade". Dei dois passos para a esquerda, como recomendam os bons treinadores, esperando o efeito do spin, e devolvi a bola em um lob de direita, que pegou o Celso desprevenido. Zero a quinze, teria dito o Márcio Martins Ferreira, presidente da banca examinadora, lá consigo. O que eles não sabiam é que o meu treinador havia sido o José Frederico Marques, que, num obscuro rodapé de uma página 79 qualquer, fazia referência a tal princípio, algo tão importante que nem do texto oficial do livro ele constava, meus caros ouvintes. E, de certa forma, fui aprovado por haver dado ao processualista da banca a equivocada idéia de que eu estava em condições de ombrear-me com ele. Logo eu que, em condições normais, depois do exame oral poderia dizer, com carradas de razão, o que disse um adversário do Nadal depois de sua desclassificação num torneio da Austrália: "levei uma surra!" Pensando bem, acho que aquilo estava mais para pôquer ou truco do que jogo de tênis. O que eu quero reprisar é que fui juiz por mais de vinte anos e nunca jamais em tempo nenhum precisei daquele princípio para decidir causa alguma, nem incidente processual, nem para dar algum despacho. Perguntei a inúmeros colegas ao longo da carreira e nenhum deles me soube dar uma resposta aceitável. E eu poderia ter sido reprovado por causa daquela inutilidade, que, tal como um saque de um bom tenista, pode tirar a concentração de um adversário menos focado no jogo, para repetir o jargão de outro Márcio, o Campos. O que me reporta ao primeiro ano da Faculdade, quando o professor substituto de Direito Civil, Nicolau Nazo, pois o titular era o Vicente Rao, me determina: "Dê-me a definição clássica de estado". Malandramente, eu começo com alguns exemplos: "o estado civil das pessoas compreende ..." Eu lhe pedi uma definição, diz o Nazo, enfático. Eu tento uma paralela pela esquerda dele, mas, atento, ele devolve o golpe com uma cruzada: "O senhor não conhece a definição clássica do Clóvis?", indaga ele com uma familiaridade que me obriga a dizer um solene "não" e me indagar onde meti o meu nariz, pois o dele todos sabiam onde estava. E ele: "estado é o modo de ser das pessoas". Nunca fui perguntar ao Clóvis se ele disse algo tão profundo. Mais recentemente, caiu o mundo porque alguém não sabia a diferença entre ab-rogar e ad-rogar. Onde já se viu alguém não saber uma coisa tão fácil como essa? Enquanto ab-rogar é fazer cair em desuso, cancelar, revogar, como me ensina o Aurélio que tenho aqui ao meu lado, ad-rogar, mui diversamente, é utilizado quando nós. Dizia-me um desembargador que isso de o candidato estar bem preparado é coisa relativa. Se me chega um João ou José com terno cor-de-rosa, cabelo tingido de loiro, brincos na orelha a dizer que boi malhado conhece boi malhado, minha obrigação é achar um fundamento para reprová-lo. Para isso, tenho algumas perguntas especiais que trago no bolso do colete, disse-me ele, com a seriedade que as circunstâncias exigem. Venho pensando muito nisso e, como tenho inúmeros amigos que já estão chegando lá, isto é, que estão sendo chamados para compor a banca examinadora, pensei em facilitar o serviço deles, trazendo alguns slices ou spins que, sob a rubrica de "conhecimentos gerais", lhes permitirão eliminar do concurso pessoas que eles tenham por inaceitáveis, pese embora a cultura do candidato ou da candidata, nunca se sabe o que aquele vestidinho esconde. O Direito, como sabemos, não é tudo, dirá ele ao ensejo. Ofereço-lhes, então, graciosamente as seguintes questões, de relevância tão grande ou ainda maior do que saber o que é ad-rogação ou princípio da efetividade. Ei-las: a) qual o nome completo do Pato Donald? b) qual o único animal que limpa as próprias orelhas com a língua? c) qual o tipo de sorvete mais consumido no mundo? d) qual o único alimento que não se deteriora com o tempo? e) qual o animal que tem o olho maior do que o cérebro? f) qual o único animal, além do ser humano, que se queima quando fica exposto ao sol? g) qual o músculo mais potente do corpo humano? h) quais os dois únicos animais, além do ser humano, que se reconhecem quando estão diante de um espelho? i) qual a única letra do nosso alfabeto que não aparece na tabela periódica dos compêndios de química? j) qual o nome completo de Allan Kardec? Façamos o seguinte. Como eu sei que nenhum membro de alguma banca examinadora vai chegar ao desplante de querer derrubar um candidato ou candidata com alguma dessas perguntas, embora já tenha havido quem mandasse os candidatos a juiz discorrer sobre a literatura alemã do pós-guerra, ou coisa que o valha, eu entregarei um livro autografado pelo autor a quem acertar pelo menos metade dessas questões relevantíssimas. O livro talvez não valha grande coisa, mas a assinatura tem permitido alguns saques fora das quadras de tênis. A Nádia, gerente da Nossa Caixa, que o diga. Cartas à redação.  
sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Pretensão e Água Benta

Se eu tivesse vez e voz no assunto, não teria a menor dúvida: imporia ditatorialmente minha vontade. Nada de Jô Soares nem Chico Buarque. O nome a ser escolhido, diria eu do alto de minha prosopopéia, seria bem outro. Nada pessoal contra o Chico, de quem me tenho afirmado e confirmado ser uma das muitíssimas viúvas musicais. Nosso querido rapazinho de belos olhos verdes, o maior letrista que o país já produziu, deu pra envelhecer, tornar-se até avô, veja que disparate!, e resolveu fazer o caminho inverso daquele percorrido pelo amigo de seu pai. Em lugar de evoluir de literato para cantor popular, com direito a um copo de uísque em cada mão, ou a passar o dia inteiro dentro de uma banheira telefonando para meio-mundo, como fazia o Vinicius, não é que o rapaz resolve fazer o contrário? Não mais achados extraordinários como esta definição antológica: "saudade é o revés de um parto, saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu". O ex-futuro-arquiteto agora, duplamente balzaquiano na idade, quer sê-lo também na vida literária. Em lugar de caipirinha num bar do Leblon agora é um copo de kir num bistrô parisiense. Pode? Fôssemos falar de sua junguiana anima, que, já no início da carreira, o fez compor "com açúcar, com afeto, fiz teu doce predileto, pra você parar em casa", que ele só gravaria muitíssimos anos depois, suspiraríamos, desanimados: "essa moça 'tá diferente!'" A verdade é que monsieur Holandá jamais mentiu sobre a atração que o Velho Mundo exercia sobre ele. "Tu ris, tu mens trop; tu pleures, tu meurs trop. Tu as le tropique dans le sang et sur la peau" reclamava ele languidamente em Joana Francesa, misturando a língua de ontem com a língua de hoje. Prenúncio do que nos aguardava. Já o José Eugênio Soares é da mesma estirpe do Caetano Veloso. Ninguém em sã consciência irá negar o valor indiscutível deles, como artistas. Mas ambos, tão distintos fisicamente, têm em comum a mesma megalomania. Sugiro-lhe, caro leitor: quer enriquecer? Então compre qualquer um deles por aquilo que ele efetivamente vale no mercado e, depois, o revenda por aquilo que ele pensa que vale. Você ficará milionário! Pois nenhum deles seria meu candidato à Academia Brasileira de Letras. Ligasse ele para essas coisas e eu faria lobby pelo Millôr Fernandes, este, sim, o brasileiro mais adequado a ocupar uma das cadeiras daquela casa que já recebeu até outro distinto velhinho, que, embora não seja escritor, tem uma qualidade rara entre os brasileiros de hoje: é amante dos livros. O Millôr, que nasceu Milton e já foi Emmanuel Vão Gôgo, deu à cultura brasileira tanto que muito Fernando Morais só está esperando o homem dar seu último suspiro (o que ele fará somente daqui a muitos anos) para biografá-lo. Em livro de vários tomos. Um para o "Dicionovário", outro para o "Ministério de perguntas cretinas", outro para suas "Composições Infantis" e mais não sei quantos para seus desenhos, que, fosse ele norte-americano, e estariam no New Yorker, a fazer sombra ao Saul Steinberg. Mas isso fica por conta do Fernando Morais. É claro que eu poderia fazer lobby para mim mesmo. Bastaria uma dose diária do mesmo tônico que o Jô e o Caê tomam em silêncio e lá estaria eu percorrendo os corredores da Casa de Machado de Assis a mostrar a meus futuros colegas o respeitável currículo que ostento. Livros de contos? Tenho vários. De crônicas? De Poesia? Infantis? Em português ou em outra língua? Viktor var en meget kvikk og livlig gutt. Han var nærmere fem år gammel, og var beveget av en uforstoppelig nysgjerrighet, como eles iniciaram, na Noruega, um livro infantil chamado Doc Vik. "Quer que traduza?", perguntaria eu ao Paulo Coelho, vingando-me das prateleiras e mais prateleiras dos livros do homem que aparecem em todas as livrarias de Oslo. Sabemos, aliás, todos os que escrevemos como é terrível esse momento de quererem publicar nossos livros em outro país. Imagine alguém pretendendo mostrar aos japoneses, amantes que são da bossa nova, algum trecho meu, em que, com a ironia que me compete, falo de coisas mundanas. Como seria isso dito na língua deles? E como eu poderia saber se o tradutor foi fiel às minhas idéias e a meus propósitos? Sei muito bem que tradutore, traditore, mas ser traído por algum samurai é morte na certa! Não ocorra comigo o que aconteceu com um grupo de nipônicos, caso que lhes asseguro ser absolutamente verdadeiro. A multinacional empresa YKK (Yoshida Kogyo Kabushikikaisha) é universalmente conhecida também como fabricante de slide fastener, nosso popular zíper, que os cariocas chamam de fechecler (corruptela de fecho éclair). Pretendendo estabelecer-se no Brasil, contratou um escritório brasileiro para registrar seu produto no INPI. Como os japoneses fabricam slides, o tal escritório, que se dizia especializado, não teve a menor dúvida: incluiu o fabricante no setor de artigos fotográficos. Se duvidar, pergunte ao Jo Tatsumi. Melhor eu continuar anônimo, ainda que, ao contrário do Millôr, eu seja um escritor com estilo. E sem modéstia. Aliás, coleguinha nosso que foi esnobado por três vezes pelos imortais que já haviam recebido na Academia Brasileira de Letras grandes literatos como Getúlio Vargas, Lira Tavares, José Sarney e outros da mesma estirpe, definiu isso magistralmente, não se chamasse ele Mário Quintana: "Não é que eu seja modesto. É que eu sou muito orgulhoso para demonstrar minha vaidade".
sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Cerimônia (A)

Ela estava junto à janela, olhando o jardim. Absorta. Que lhe dizer na hora da despedida? Procurava mudar as ideias. Mas, qual um tema musical, a antevisão dele ali na sala, mala na mão, ia e vinha. Allegro, ma non tropo. Que dizer-lhe? Tantos anos juntos, tantas tristezas somadas, quanta alegria sonegada em nome de um futuro radiante. E o futuro se vai no próximo trem. O olhar perdido no meio da grama alta, invadida pelo mato, como a procurar ali, naquele símbolo do seu desleixo e de sua apatia, a resposta para suas indagações. Os olhos parados, sem piscar, imóveis, tal qual ela. Não havia sol, nem frio, nem manhã, nem tarde. Nem tempo. Ela parara no tempo e no espaço. Quando ele viera, com aquele sorriso maroto de garotinho deslumbrado, nada pedira a ele. Ele também nada prometera. Ninguém nada exigira. Na verdade, talvez tivesse sido ela que, movida por um sentimento jamais experimentado antes, passou a interpretar como compromisso aquele estado de vida em comum. Ou quase em comum. Ele vinha, sempre trazendo um ramo de rosas, ficava ali uns dias. Dormiam juntos, acordavam sorridentes. Café na cama. Manhãs longas e alegres. Uma vida de telenovela. Riu com o canto da boca, ante o pensamento ridículo, sem mover músculo. Um instante apenas. E a máscara da impassividade voltou. - Como vai o galã? As outras manicures, entre invejosas e despeitadas, não regateavam adjetivos. Que agora soavam em seus ouvidos como agulhadas. E o tempo foi passando. Seu envolvimento cada vez maior. Sua entrega também. De um vendedor semi-analfabeto ela fizera dele alguém, como diziam as colegas mais velhas. Incentivou-o a concluir o colegial. Estudavam juntos quando ele voltava do cursinho. Sofreram juntos a angústia do vestibular e se abraçaram felizes quando se deu o ingresso na faculdade. Era no interior do Estado, mas era uma faculdade. E quem custeara tudo isso? - Deixa pra lá, dona Eufrásia. Fiz por ele o que ele faria por mim. Amar não é isso? Sim, mas quem se prepara para a ingratidão? - Sabe, meu bem. Lá eu poderei freqüentar faculdade e trabalhar, sem precisar viajar todos os dias e sem depender de suas economias. Eu também tenho amor próprio. Afinal, são apenas alguns anos. O tempo passa logo, não é, meu bem? Ela bem que deixaria o emprego na capital para acompanhar o garboso universitário. - Você ficou louca? Quem deixaria um emprego desses para enfiar-se numa cidadezinha daquelas? E eu não estou ainda em condições de arcar com as despesas da casa. Você sabe, não é, meu bem? Não está, nunca esteve e nunca estará, era o que ela desejava dizer. Verdade que hoje se abre faculdade em qualquer cidadezinha perdida no interior. Mas será que uma cidade que possui faculdade não terá emprego para uma manicure? - Claro que não, meu bem. Isso é coisa de grandes centros. Seja razoável, meu bem. O tratamento amoroso já virara cacoete há muito tempo. Relembrá-lo agora era como sentir chicotadas. Ela sabia de tudo. O bem dele era outro. Dela tirara o que pudera. A filha de um fazendeiro seria a próxima etapa para a sede de poder que aquele. O ranger dos dentes foi tão forte que ela despertou do torpor em que se encontrava. Olhou em torno. Quantas horas seriam? Insetos esvoaçavam aqui e ali, freneticamente, aproveitando o calor da tarde, até caírem exaustos no gramado. Seguindo-os, deu com um louva-deus. Ele carregava uma pequena mosca na boca e caminhava com muita elegância, qual um noivo em direção ao altar. Altar!? Seria sua imaginação, tangida por sua dor, ou aquela postura do inseto era mesmo a de um noivo? Ali estava um bom pretexto para espantar os pensamentos que teimavam em retornar, girando e girando como os insetos. Voltou-se para o louva-deus a caminho do altar. Tinha graça! Ele foi subindo a folhagem, naquela marcha solene, carregando a carga preciosa. Em seu delírio ela ouvia a marcha triunfal da Aída. Deixou a imaginação correr solta. A quem se destinaria a carga preciosa transportada pelo inseto? Ao fim da longa caminhada, obteve a resposta: a um outro louva-deus, porém de tamanho um pouco menor. Seria a mãe alimentando o filho? Não era. O presente foi entregue cerimoniosamente. Pelo menos assim lhe pareceu. O louva-deus menor devorou a oferta com sofreguidão. Terminado o repasto, voltou-se para o companheiro, que aguardava pacientemente, com a paciência dos predestinados. Abraçaram-se longamente. E realizaram a cópula mais demorada que ela já presenciara, se é que presenciara antes algo assim. Ela sentiu um arrepio com aquele romance que se realizava ali, bem diante dos seus olhos, diante de sua dor, diante de sua carência afetiva. Podia sentir o bater mais rápido do coração dos amantes, a respiração ofegante. Talvez até um gemido abafado. Palavras de amor sendo sussurradas durante a penetração. Era um especial encontro de amor. O primeiro? O último? Os dois insetos, com a calma fatalista das coisas da Natureza, envolviam-se cada vez mais naquele jogo amoroso, naquela entrega recíproca que ela tão bem conhecia. Consumavam o ato amoroso, garantindo a continuidade da vida. Por fim, quedaram imóveis, abraçados, como a transmitirem-se palavras de despedida. Separaram-se, por fim. A continuidade da vida estava assegurada. Ele deixara nela a semente que perpetuaria sua presença na terra. Se assim era, para que novos encontros? Para que novos atos de amor, novos abraços, novos instantes de prazer? A função do macho estava consumada. E a fêmea começaria agora a preparar-se para a maternidade. Seu interesse agora seria evidentemente outro. Levada tão somente pela força das coisas naturais, a fêmea dirigia-se agora até onde estava o macho, esgotado. Mordeu-lhe a cabeça. Ele não tinha forças para reagir. Ou não deveria mesmo reagir? Seria aquilo uma agressão ou a simples consumação de um ritual? Petrificada, a moça viu a fêmea retirar bocados do antigo companheiro, devorando-o, literalmente, pedaço a pedaço. Primeiro a cabeça, depois o restante do corpo, os membros por fim. Dentro de algum tempo (quanto tempo?) não havia ali sinal algum do amor que unira tão estreitamente os dois seres. Ficou apenas a vida, perpetuando-se após o ritual macabro. Eram dois que se tornaram um. Não é isso que diz o celebrante na cerimônia de casamento? A visão daquela celebração deixou-a profundamente perturbada. Fechou a janela e correu para dentro de casa, assustada. Assustada com quê? Atirou-se na cama e chorou intensamente. Um choro muito sentido, profundo. Como se lhe viessem à tona todos os sentimentos que abafara até agora. O despeito, a indignação, o ódio, a inveja. A consciência de que fora utilizada, esgotada, exaurida vinha-lhe agora à mente. O choro fez-lhe bem. Dormiu ali mesmo, banhada em lágrimas, como se diz. Acordou despertada com o soar da campainha da porta. Recompôs-se rapidamente. Penteou os cabelos com os dedos e foi atender ao chamado. Mala na mão, vestido com invulgar aprumo, um sorriso no rosto bem barbeado, ali estava o seu galã. Ele pousou a mala no chão e se encaminhou para ela, com a mão direita às costas, escondendo algo, que não despertava a menor curiosidade nela. Parou apenas alguns centímetros do local onde ela permanecia imóvel, indiferente àquela encenação quase teatral. Ele estendeu a mão com a caixinha fechada. - Abra. É para que você sempre se recorde de mim. A moça não teve coragem de tocar a caixa. Um pressentimento estranho fê-la permanecer estancada. Viu-se no jardim, cercada pela grama alta, como se estivesse em um altar. A roupa nupcial do moço à sua frente agora era verde, com reflexos brilhantes, que ofuscavam a vista dela. Ela pensou que iria desmaiar. Diante da indecisão dela, ele mesmo se dispôs a abrir a caixinha. Ela ainda tentou impedir, sabe-se lá por quê, mas não conseguiu mover-se. As pernas não obedeceram. Os braços permaneceram colados junto ao corpo. Não podia falar. Balbuciou apenas. Uns sons estranhos, sem sentido, que ele nem notou. Quando o noivo abriu a caixa, apareceu o terrível presente: uma pequena mosca de ouro, com dois olhinhos de brilhantes. Uma bela jóia, sem dúvida, digna de uma cerimônia nupcial. A respiração dela foi voltando ao normal. Tomou a caixa nas mãos, aceitando a oferenda. Com toda naturalidade, tirou dela o inseto, que levou à boca. E, sem tirar os olhos do homem, que nada compreendia, começou a mastigar lentamente a mosca de ouro.
sexta-feira, 31 de julho de 2009

Invasor (O)

  "Cuidai que ninguém vos seduza" Mt 24,4 Quando ele apareceu lá em casa, quase nem notei. Insinuou-se rastejante pela cozinha, onde beliscava algum resto de alimento que caía de nossa mesa. Arredio a princípio, escondia-se sob os móveis. Notávamos sua presença, já que a quebra do silêncio, especialmente à noite, traía suas andanças por ali. Vencida a primeira impressão, passamos a conviver com aquele fantasma. Vez ou outra víamos seus olhos brilhantes, no escuro, debaixo dos móveis. Parecia não dormir nunca, sempre atento ao movimento das pessoas da casa. Já agora roçava nossos pés, quando corria de um esconderijo para outro. Parecia-nos algo divertido aquilo. Nem reparávamos no seu crescimento. Somente nos dávamos conta disso quando ele se esforçava por esconder-se sob algum móvel menor, causando estragos com seus modos desajeitados. Com o tempo, ele já não se limitava ao território primitivo. Atrevidamente, valendo-se de algum descuido, vinha até a sala, naquele seu modo próprio de correr, deslizando sobre o assoalho. Quando enxotado, voltava para a cozinha, consciente de que expulsá-lo da sala já era admissão de que estava aceito na casa. Não se abalava com isso. Muito ao contrário, parecia mostrar certo prazer no enxotamento, pois as suas escapadas para a sala agora já eram mais freqüentes. Deixa estar. Ele não incomoda ninguém. Afinal, que prejuízo ele traz? dizia minha mulher. Eu poderia ter argumentado com sua voracidade, porque ele estava comendo nas refeições porções maiores do que a de qualquer outro membro da família. Membro da família! Era assim que nós já o considerávamos. Sim, agora ele já era membro da nossa família. Não cabia mais sob os móveis, tal o seu tamanho. A solução foi admiti-lo no sofá da sala, sentado conosco, partilhando conosco dos programas de televisão, de nossas conversas, ouvindo nossas discussões, sempre atento. Os vizinhos, conhecedores do fato, evitavam visitar-nos. Não nos censuravam abertamente, mas sentíamos que para eles era difícil imaginar o convívio de pessoas com aquela criatura. Éramos loucos, sem dúvida alguma Tal o pensamento deles, com toda certeza. Ele sempre foi voluntarioso. Desde o princípio. Agora, quando se assentava na poltrona central da sala, ninguém conseguia tirá-lo dali. O remédio era corrermos para tomar de assalto aquela cadeira antes dele. Nessas ocasiões, quando se via vencido, ele amuava e aceitava, de mau grado, outro lugar. O mau humor, contudo, não era objeto de disfarce. Ao contrário, ele fazia questão de que soubéssemos de sua contrariedade. Percebíamos isso, mas não éramos capazes de identificar o risco que corríamos, contrariando-o, pois sempre nos parecera inofensivo. Seu tamanho, entretanto, com o passar do tempo, tornou-se tal que já agora era muito mais forte do que qualquer um de nós. Se encontrasse alguém em sua poltrona (sim, agora já considerava sua a poltrona principal), ele, sem qualquer cerimônia, limitava-se a parar diante dela, com ar ameaçador. E, se acaso não fosse entendido, não tenham dúvida, ele poria o atrevido no chão, como fez várias vezes. Tudo isso era motivo de muito riso, todos achando que ele não fazia aquilo por mal. Era inofensivo, brincalhão, sem maldade. Apenas algo desajeitado. O tempo passava e a convivência parecia dar-lhe, a cada dia, um ar mais senhorial. Não mais pernoitava na área de serviço do apartamento. Passara-se para a sala e somente dormia após o último programa de televisão que lhe interessasse. Ainda que o barulho pudesse nos incomodar a princípio, fomo-nos acostumando também com isso, como nos afeiçoáramos a tudo o mais que ele trouxera de modificação em nossos hábitos. Não permitia que o acordássemos antes do almoço, o que impedia que o serviço de limpeza da casa se fizesse pela manhã. Quando isso era necessário, levantava de péssimo humor, oscilando a longa causa, ameaçadoramente. Pouco lhe importavam os objetos que era sacrificados em honra à sua santa ira. E ainda nos rejubilávamos por não termos sido atingidos por aquela arma mortífera. Sentava-se diante do aparelho de televisão e ali ficava, escolhendo seus programas com o controle remoto, sem levar em consideração se alguém estava interessado no que estava sendo exibido naquele momento. Vez ou outra, nas raras vezes em que aparentava bom humor, permitia que partilhássemos de sua presença. Na maior parte das vezes, entretanto, ficávamos na cozinha, preparando as suas refeições, agora cada vez mais numerosas. Ele crescera tanto que mal conseguia acomodar-se sobre o sofá. Mais algum tempo e aquilo que nos havíamos recusado a prever efetivamente veio a acontecer: ele, certa noite, passou-se para o quarto das crianças. Elas acharam aquilo divertidíssimo. Ele era paciente com elas. Sabia como agradá-las, prestava-se a toda sorte de brincadeira. Tentamos adverti-las, mostrando-lhes o risco daquela intimidade, mas tudo o que conseguimos foi obter aliados a favor do invasor. Lentamente as crianças se acomodaram aos hábitos dele, seus horários, suas invasões. Tornaram-se quase iguais a ele. Não fosse a cor da pele, o rastejar reptilino e a diferença de tamanho e diríamos serem todos a mesma coisa. Sem a cauda, naturalmente. Por fim, o impensável: certa noite, ao voltarmos para casa, minha mulher e eu demos com ele em nosso quarto, preparando-se para deitar. Dormiria em nossa cama de casal! Mas vocês enlouqueceram? Aonde vai dar tudo isso? As crianças não me responderam. Seguiram para seu quarto, sem o tradicional boa noite. Fecharam a porta com estrondo, deixando-me do lado de fora, com minha mulher, apalermados. Quanto a ele, seguiu-lhes o exemplo. Quando tentei apoderar-me do meu quarto, ele empurrou-me para fora, com aquele corpanzil incontrastável. Que fazer? Lutar, para defender o que era meu? Mas, se meus filhos, que são os meus herdeiros, razão de ser de tudo o que fiz e o que tenho, estão do lado dele!? Deixei-os lá. Covardemente, se quiserem. Sensatamente, penso eu. E estou aqui, sentado na borda deste parapeito, aguardando que algum anjo me arrebate para além da vida.   1Do livro Cristo hoje, Editora Loyola (esgotado)  
sexta-feira, 24 de julho de 2009

Reencontro

  "Há textos que deveríamos ler de olhos fechados". Mário Quintana(em algum livro que eu ainda não sei qual é e nem sei se algum dia foi escrito) Você não conhece a Olívia? Que pena! Pense numa casa que desmorona, em Cabul ou Nova Iorque. Sob os escombros um vaso de flor esmagado pelos muitos cacos e pela imensa poeira. Alguém, meio desajeitadamente, resgata o vasinho e leva para uma estufa, onde lhe dedicam alimentação e afeto, que é outra espécie de alimento. Passam-se dezoito dias, ou dezoito meses ou dezoito anos e você reencontra uma inacreditável flor, de uns olhos vivos, um rosto suave e um sorriso que expressa quão bem alimentada ela foi e é. Física e espiritualmente, por duas jardineiras que entendem, olha o destino!, dessa coisa delicadíssima que é a alma humana. Da cara dela vem uma luz que não é humana. E você chora, como se deve chorar diante dos milagres de Deus. Não tente entender o que leu. Você já tentou entender uma sinfonia? Por que aqueles violinos solando alucinadamente? E, agora, aquelas trompas? E o tímpano? Qual! Desisto. Melhor apenas ouvir. Creio que, de vez em quando, Deus destaca um dos seus querubins, daqueles que trazem na mão direita uma espada pontiaguda, pois, como sabemos todos, não existem anjos canhotos, para despertar compositores preguiçosos. O querubim vai à casa do Ravel, entra no quarto, como sabem fazer os anjos, mesmo sem terem a chave da porta de entrada, os arcanjos, os serafins e os querubins, e cutuca as costelas do compositor. "Maurice, Maurice. Réveillez-vous! Réveillez-vous, petit morceau de paresseux!" diz o anjo, num francês apenas sofrível. Pule já dessa cama, seu preguiçoso, e vá ao piano compor uma música com economia de notas. Não precisa usar muitas. Use as mesmas sempre e vá repetindo, repetindo, repetindo, como se o vento leve do outono erguesse do solo folhas que descrevessem círculos, sempre novas folhas e sempre os mesmos círculos. Mostre ao mundo o poder da simplicidade sonora. E lhe dê o nome de Boléro. Com o Pachelbel aconteceu o mesmo. Como o arcanjo da vez não falava alemão, ele disse ao compositor: "Já para a escrivaninha e componha um Canon and Gigue in D major for three Violins and Basso Continuo." Ele relutou: "Mas se eu compor uma obra dessas que você me pede, no futuro as pessoas vão pensar que eu não compus mais nada. Serei conhecido como o compositor de um cânon só! Uma espécie de Jobim dos ricos." Dois erros numa só frase, corrigiu o anjo. Em primeiro lugar, não se diz "se eu compor", mas "se eu compuser". Em segundo lugar, eu não estou pedindo, estou mandando. E tem mais: não é uma peça para ser entendida, mas apenas para ser ouvida. Melhor, apenas para ser sentida. Se você duvida da autenticidade desse diálogo, ponha o Cânon do homem no CD player, aperte a tecla correta, cerre a cortina (com C, meu amigo, com C!), repouse a cabeça num confortável travesseiro, feche a luz, apague os olhos e deixe o diálogo dos três violinos invadir o ambiente. De que falam aqueles três tagarelas? Talvez da saúde de suas cordas, pois um deles estava em dúvida se aquela corda mi agüentaria um apertãozinho mais na cravelha. Ou do velho companheiro, o arco de crina de cavalo árabe, amigo inseparável, com o qual já fez excursões fantásticas, como aquela vez em que. Érico Veríssimo jurou de pés juntos que era ateu, mas que, quando ouvia Bach, quase acabava acreditando na existência de Deus. Não sei se o pai do Luiz Fernando teve tempo de vida suficiente para ouvir mais árias sobre a quarta corda ou se preferiu ficar nos concertos de Brandenburgo. O fato é que, se ele não se encontrou com Deus, a culpa não foi do João Sebastião. Isso para não falarmos dos poetas, essas pessoas privilegiadas em cujos ouvidos arcanjos de outra ordem celeste assopram coisas ininteligíveis, que os poetas e as poetisas (desculpe, Olívia, mas eu sou dos antigos) se põem a repetir, imaginando que aquilo é para ser entendido. Não é. Se os homens tivessem juízo, não se estudaria poesia nas aulas de literatura, mas nas escolas de música. "Antes, todos os caminhos iam. Agora, todos os caminhos vêm. A casa é acolhedora, os livros poucos. E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas". Isso não é para ser compreendido. É para apenas ficarmos pasmos. "Es mi casa de remiendos, tan tremendos sus galpones, tan incómodos sus soles, pues sus lunas giran lentas. Es mi casa sin paredes, verdes campos que se esprayan; donde hay flores y no hay frutos, y la gente tiene paz. Está ella abandonada y así quedada al reliento; quién visita allí no queda: sale y deja sus secretos. Dormitorio de nostalgias, canta el viento unas berceuses, pa' arrullar a quién ya duerme." Isso não é para ser entendido, Olívia. A poesia, como os milagres de Deus, não se destinam ao intelecto. De que serviria a nosso espírito a ciência comprovar que Lázaro era epilético ou que, na verdade, estava sob o efeito de um choque de catalepsia, coisa que a pobre da irmã não tinha conhecimentos para compreender, até a chegada do visitante ilustre o trouxe de volta à vida? Assim é com a música, Olívia. Deveria haver uma lei, com penas severas, proibindo as pessoas de ouvirem Bach de olhos abertos. Beethoven não precisava nem dos ouvidos para sentir as maravilhas que sua surdez física o fazia compor. Pois então. Que cientista se atreveria a explicar esse milagre que é você, Olívia? Tudo o que podemos fazer na tua presença é nos admirarmos, ajoelharmos e chorarmos. Chorarmos como choraremos de emoção no dia do abraço final, que os teólogos chamam de parusia, Olívia. Acho que teu avô concorda comigo.
sexta-feira, 17 de julho de 2009

Como escrever

"Escrevo para mim. Escrever é uma viagem minha; quem quiser que pegue carona." Ignácio de Loyola Brandão Tenho pensado seriamente em publicar um livro intitulado "Como escrever crônicas - teoria e prática", que poderia ser vendido em livrarias de aeroporto, em supermercados, bancas de jornal e açougues juntamente com um outro que estou tentado a escrever: "Como vender livros de crônicas". No livro eu citaria casos famosos de escritores e suas manias, como o Balzac, por exemplo. Ele supunha que a inspiração estava na sola dos pés. Inteligentemente, ele punha os dois pés numa bacia com água gelada e isso fazia com que as idéias subissem lá para o cimo da cabeça. Aí era só acessar o teclado do computador e teríamos uma Divina Comédia em questão de dias. Ou seria Comédia Humana? A única dificuldade para isso é que o computador pessoal ainda não havia sido inventado. Nem mesmo as canetas Bic. Ou será que elas já teriam sido? Preciso consultar o Google. Incluirei no meu livro o colega João Ubaldo Ribeiro, a falar de sua esquizofrenia criadora. Diz ele que há dois Joões: o que ficaria sempre no bar, tomando água de coco e proseando com os amigos e o outro João, aquele que lhe cobra o serviço que deve entregar ao jornal ou à editora. "Que folga é essa, seu vagabundo?" E lá vai o bom baiano, qual cachorro escorraçado, de volta ao quarto, ou escritório, ou estúdio dele, para fazer brotar da folha de papel em branco o necessário a que a crônica da próxima semana esteja pronta a tempo. Falarei também do Régis Bonvicino, colega do Sebastião Amorim e do Stroppa, todos os três sendo juízes e poetas. Diz o Régis que não sabe escrever quando recluso. Anda pelas ruas, catando, qual um Chico Buarque qualquer, as palavras que os distraídos entornam no chão. "Hoje em dia estou ficando com medo de andar. Isso empobrece tudo. Antes andava tranqüilamente, agora já penso que posso ser morto, seqüestrado." E olha que o homem é juiz! Falarei também, é claro, do meu método de produção literária, um registro para a posteridade e um incentivo a todos aqueles que reputam que Rubem Braga e Luis Fernando Veríssimo só existiram um. Ou dois, vá lá. Geralmente a coisa funciona assim: não tenho qualquer idéia prévia do tema que abordarei nesta semana. Deito-me em confortável cama de colchão ortopédico, pijama de mangas e pernas curtas, se estiver calor; longo se aquele ventinho noroeste começar a penetrar no quarto pelas frestas da porta-balcão, fazendo aquele assovio que nós chamamos de ventos uivantes. Por vezes coloco um CD no respectivo player, para dar ao quarto um ambiente aconchegante. Nada de rock nem de forró. É um violino do Jascha Heifetz, ou violoncelo do Yo-Yo-Ma. Talvez um piano do como é mesmo o nome dele? Preciso consultar o CD antes de enviar esta crônica para publicação. Ou um Frank Sinatra, naquelas baladas fossentas dos anos cinqüenta, It Was a Very Good Year, por exemplo, só faltando a Doris Day ali ao lado, segurando o cinzeiro enquanto ele finge que toca piano. Já o Nature boy, a very young, enchanted boy, simplesmente me faz chorar. Assim, ao som do In the Wee Small Hours of the Morning, por exemplo, eu adormeço em berço esplêndido. A menos que a Maria Helena chegue antes de eu pegar no sono, quando ela manda o Sinatra para o chuveiro e eu fico ali fingindo que já peguei no sono. Lá pela madrugada, a indefectível hora da micção noturna, como convém. Faço-o e aproveito para ir até a cozinha recolocar mais água na bexiga. Volto para o quarto e, quando não meto a testa na quina do batente da porta, vou direto para o meu lado da cama, na qual me deito em decúbito dorsal (com a barriga para cima, diz o Manual Merck) e fico a imaginar o que haveria no teto do quarto, escuro como breu. As ideias vêm pingando dali e eu vou juntando palavras e frases, formando poesias, crônicas, discursos, contos, novelas, romances e peças de teatro até que o Morfeu dê um basta àquilo tudo e no dia seguinte eu não me lembro praticamente de nada daquilo. Justamente por isso tenho ao lado da cabeceira, sobre o criado-mudo, um bloco de notas e uma caneta com a qual anoto o título da crônica, se se cuidar de crônica, e algumas palavras-chave. No dia seguinte, toca relembrar o que eu queria mesmo dizer com aquelas palavras para que o texto merecesse aquele título. Claro que quase nunca o texto que vai aparecer no monitor do computador se compara ao candidato ao prêmio Pulitzer da véspera. Mas, para meu consolo, ouvi que compositores como o Chico Buarque e o Djavan consideram suas melhores letras aquelas de que eles se esqueceram antes de poderem escrevê-las ou registrá-las no gravador. Estou bem acompanhado, concorda? Em novo capítulo do tal livro recomendarei aos candidatos a cronista que não se esqueçam de mandar o texto para a geladeira, assim que concluído. Darei meu importante testemunho: vezes sem conta, quando trago de volta o texto ao monitor, semanas depois, descubro que havia escrito menos do que o texto propiciava. Essa reedição me faz supor que ele será mais legível. É como a massa de pão ou de pizza: nada de levar ao forno imediatamente. Deixe o livro dormir por alguns dias e depois. No capítulo final do livro, responderei a algumas perguntas que os leitores certamente me fariam, se entrassem em contato comigo, o que não ocorre com a freqüência que seria esperável. O que mostra que poucos leitores pretendem enveredar por esse promissor ramo profissional. Está aí o Loyola Brandão publicando livro sob encomenda que não me deixa mentir. O Lobato não fez o mesmo, por mais esquerdista que fosse? Ou vai me dizer que ele acreditava mesmo nas propriedades medicinais do licor que anunciava? Uma dessas perguntas será: quando o escritor está convencido de que o seu texto não precisa mais ser revisto? Responderei curto e grosso: nunca, minha filha. Sabe aquele pintor famoso que ia à galeria onde estavam expostos seus quadros, levando um estojo, de onde tirava, vez ou outra, pincel e tubo de tinta, para corrigir imperfeições de seu quadro? Pois quem escreve tem a mesma neura. Daí muitos de nós nos recusarmos a ler o que escrevemos, depois da publicação de nossa importante obra. Quando temos o azar de ver sair uma segunda edição do livro, olha a nossa vergonha tendo de retificar aqui, corrigir ali e completar lá adiante. E pedir desculpas aos que haviam comprado livro da primeira edição, é claro. Isso quando não dizem de nossos textos o que os críticos profissionais disseram do primeiro livro do Guimarães Rosa, um médico de interior de Minas pensando que é um novo James Joyce. Pois não é que o tempo mostrou quem ele de fato era? Ou para não reproduzir a fala do Chico, autor do delicioso "Leite Derramado", se não sabeis, depondo na mais recente FLIP: "escrever é uma chatice."
sexta-feira, 10 de julho de 2009

Neurobiótica

  O avanço das ciências serve para nos mostrar que somos menos normais do que pensávamos. Ou, dito de outra forma, aquelas maluquices que cometíamos já em criança não era privilégio nosso, mas sim uma característica de muitos dos nossos semelhantes, que se julgam tão normais como nós nos supomos. Ainda de calças curtas, fiquei a imaginar o que ocorreria se eu, num desastre, viesse a perder o braço direito. Uma pessoa pessimista pensaria que um desastre o levaria à morte. Eu, otimista, pensava em apenas perder um dos braços. E logo o direito, com o qual eu escrevia e cutucava o nariz. Para evitar as conseqüências daquele fato lamentável, passei a fazer com a mão esquerda tudo aquilo que eu normalmente fazia com a outra, tal como tentar escrever com ela. O resultado foi pífio, mas eu ainda tinha muito tempo pela frente. Eis que um dia leio numa dessas revistas mundanas que certo artista norte-americano, maluco certamente, declarava solenemente que, tendo em vista a possibilidade de vir a perder a mão direita num desastre e patati patatá. Caramba! Nem na loucura eu sou original! concluí e abandonei de vez aquele projeto. Quando surgiu o computador, vi-me mudando a posição dos botões dele e, muito embora eu seja destro, me divertia acessando os programas com a mão esquerda, numa variação da mesma maluquice da infância, a confirmar que tornar-se adulto é aperfeiçoar-se nos defeitos que se tinha na infância. Pois acabo de descobrir que não estou sozinho neste hospício em que me encontro. Os cientistas Lawrence Katz e Manning Rubin, depois de estudos e mais estudos, nos ensinam que é necessário fazer exercício físico para manter a forma. Até aí, morreu Tancredo. O que eles patentearam é uma tal de "neurobiótica", isto é, exercício aeróbico para os neurônios, que é o apelido científico das células cerebrais. A senhora que todos os dias levanta sucessiva e alternadamente as pernas, ao som dos berros de sua personal trainer, que pensa que a senhora é surda, o que é feito pela senhora com as conhecidas dificuldades que lhe impõe a idade, mesmo que todos nós sempre digamos que a senhora não aparente a idade que efetivamente tem, agora também deve ocupar-se daquilo que eles chamam de "uma nova forma de exercício cerebral projetada para manter o cérebro ágil e saudável, criando novos e diferentes padrões de atividades dos neurônios em seu cérebro". Ou seja, para que aumente a produção de neurotrofina, esse o nome do estimulante natural de nossas células cerebrais. São exercícios bem mais fáceis do que o supino esforço de levantar um cano com um peso em cada extremidade, se é que a senhora percebeu o trocadilho embutido na frase. Se não percebeu, cuide melhor do cérebro. Ou de seu vocabulário. Em lugar de levantar peso, o que eles estão propondo é que nós troquemos de mão quando vamos escovar os dentes. És destro? Pois de agora em diante segure a escova com a mão esquerda. Canhoto? Passe a usar a inútil mão direita. Segundo eles, o simples gesto de trocar de mão para escovar os dentes, contrariando a rotina e obrigando a estimulação do cérebro, é uma nova técnica para melhorar a concentração, treinando a criatividade e inteligência e assim. Eles descobriram que o cérebro tem uma capacidade extraordinária de adaptar-se diante de novos estímulos e mudar o padrão de suas conexões. Ou seja, aquilo que, pela rotina, não era usado, passa agora a ser estimulado. Cerca de 80% do nosso dia-a-dia é ocupado por rotinas que, apesar de terem a vantagem de reduzir o esforço intelectual, escondem um efeito perverso: limitam o cérebro. Para contrariar essa tendência, é necessário praticar exercícios cerebrais, que farão as pessoas pensarem somente no que estão fazendo, concentrando-se na nova tarefa, o que. É o que escreve a tal dupla dinâmica. Em suma: a proposta da neurobiótica é você fazer tudo aquilo que possa contrariar as rotinas, dando um drible no cérebro, obrigando-o a um trabalho adicional, o que ocorrerá se você passar a usar o relógio de pulso no braço direito, andar pela casa de trás para a frente, vestir-se de olhos fechados, estimular o paladar, comendo coisas diferentes. Há conselhos aparentemente banais no manual da nova ciência, tal como ver fotos de cabeça para baixo, ver as horas olhando o relógio num espelho, fazer um caminho novo a cada dia, quando vai para o trabalho. Acho que podemos aperfeiçoar esse manual, adicionando novas rotinas a nossas vidas, como as que a seguir indico, tudo para estimularmos nosso cansado cérebro, especialmente se você tem, como eu, problemas com a sua DNA. Isto é, data de nascimento antiga. Recomendo-lhe inverter a mão com que você dá partida no automóvel. Ou com que você pega o pente para ajeitar seus cabelos, se ainda os tiver. Se é destro, penteie os cabelos com a mão esquerda e vice-versa. Se a risca era do lado direito, passe-a para o lado esquerdo. Se era no meio da cabeça, da testa à nuca, faça a risca da orelha direita para a orelha esquerda. Pode não melhorar o teu cérebro mas vai fazer a alegria dos teus amigos. Se você costuma abrir o zíper da calça com a mão direita, passe a abri-lo com a esquerda. Se você for canhoto, abra então com a mão direita. E continue a operar com a mão invertida depois de baixar a calça e fazer aqueles atos rotineiros que você conhece bem. E não se esqueça de limpar o chão do banheiro, antes que tua mulher descubra aqueles pingos por todo lado. Segurando o pano de chão também com a mão invertida, é claro. E à senhora, que está rindo do seu marido por causa do conselho anterior, recomendo que faça um bolo. Simples, não? Reúna todo o material sobre a mesa da pia e passe a usar a mão esquerda naquilo em que antes usava a mão direita. Quebrar a casca do ovo com uma só das mãos, como fazem os cozinheiros nos programas de televisão, pra começar. Só que a senhora fará isso com a outra mão, não com aquela de uso comum. Bater clara de ovo com a mão esquerda, para quem é destro, também não é das coisas mais fáceis, mas, com o tempo a senhora consegue. Um aviso final: aqueles que pensam que tudo isso é bobagem, recomendo que prestem atenção no George W. Bush. Ele vem há anos pondo em prática as lições que conseguiu ler, mesmo com o livro de cabeça para baixo, escrito por aquela dupla citada lá em cima. Foi depois da leitura do Helth, Mind and Body que ele conseguiu ver o mundo sob outro ângulo. O mundo pode ter piorado muito por causa disso, mas o cérebro dele está melhor do que nunca. O pai dele que o diga. Para a senhora ter uma idéia, ele batia continência com a mão esquerda quando da Guerra do Vietnã, onde serviu mesmo sem ter de sair do Texas, onde ajudava crianças a atravessar a rua. Temos de reconhecer: servir na guerra do Vietnã sem sair dos Estados Unidos é levar a quebra da rotina a alturas estratosféricas.
sexta-feira, 26 de junho de 2009

Publicidade

  A publicidade é muito importante. Se não fosse ela, como os publicitários enriqueceriam como enriquecem? E lá vêm eles com teorias demonstrativas de sua importância, distinguindo entre quem precisa e deseja, quem precisa mas não deseja, quem deseja mas não precisa e os ajuizados: aqueles que nem precisam nem desejam. Donde dizer o humorista que o publicitário é alguém que procura vender, a quem disso não precisa, alguma coisa, que o consumidor não quer comprar, por um preço que a coisa não vale e que a pessoa a ser convencida não pode pagar. E, depois disso tudo, um deles ainda publica um livro com aquilo que ele mesmo chama de "os piores textos que já escrevi"! Leve isso para o campo político e veja o que acontece. Não admira que de vez em quando apareça um deles publicando uma autobiografia, na qual reconhece que foi apenas um personagem de uma encenação quase teatral. "Leiam este livro e esqueçam os outros que escrevi antes deste", diria a propaganda. As escolas de propaganda e marketing procuram motivar os alunos, com um exemplo tirado da natureza. O ovo da marreca é muito mais nutritivo do que o ovo da galinha, entretanto, você não encontra ovo de marreca à venda nos supermercados. "Por que?" indagam eles, solenes. E explicam, professoralmente, depois de um longo silêncio: exatamente porque a marreca não fez curso de propaganda. Lá no tal curso a galinha aprendeu que "quem não anuncia se esconde" e que "quem não se comunica se estrumbica", como dizia aquele palhaço de circo, elevado às alturas como gênio da comunicação, porque atirava bacalhau na cara dos que o aplaudiam. É por isso, concluem os mestres da comunicação, que a galinha cacareja. Quando lançaram um tecido chamado nycron, os meios de comunicação despejaram sobre nossos ombros as chamadas peças publicitárias (no meu tempo de moleque isso se chamava reclame, palavra que saiu de moda por ser francesismo, sendo substituída por comercial, que, por sinal, é um norteamericanismo) mostrando que o terno de nycron não amarrotava. "Senta, levanta! Senta, levanta!" dizia uma das tais peças, buscando convencer o consumidor. O efeito foi fulminante: nunca se vendeu tanto terno de tergal como depois que esses comerciais apareceram! E o tergal era simplesmente o concorrente do tal nycron. Ocorreu algo semelhante ao que o Delfim Neto, para explicar sua substituição pelo Clodovil, chamou de "reversão de expectativa". Um dos luminares da propaganda ensina a seus alunos: Podemos distinguir três fases durante todo o processo de venda. Na primeira fase, em função do entusiasmo do cliente, o vendedor deverá deixá-lo falar, aproveitando a oportunidade para obter o maior número possível de informações que utilizará no momento adequado. Na etapa seguinte poderão surgir dúvidas na mente do cliente, fazendo desaparecer o entusiasmo inicial. Nesse instante o vendedor precisará argumentar de forma a reconduzir o cliente ao estado de ansiedade anterior, tentando manter em evidência a necessidade declarada. Levar o cliente a concordar com algumas afirmações positivas, do tipo "O Senhor concorda que esse produto resolve todos os problemas levantados, não concorda?" costumam dar bom resultado. Em outras palavras, engane o mais que puder. Aliás, eu gosto de consultar cartomante exatamente por isso. Ela tenta me convencer a falar e eu só nos monossílabos. Como não dou a ela "material" para ela inventar o meu futuro, fica aquele jogo de cerca Lourenço, ao fim do qual ela me faz um elogio genérico e recebe o dinheiro da consulta. A aula, porém, continua: fechada a venda, não se esqueça de fazer com que o cliente se sinta seguro pelo bom negócio que acabou de fazer. Você perceberá imediatamente o efeito da serotonina circulando pelas veias dele quando disser "Tenha certeza que o senhor acabou de fazer um excelente negócio". Por muito menos do que isso muito juiz mandou para a cadeia alguém a quem a sentença rotulou de estelionatário. Houve em São Paulo, anos passados, uma quadrilha que enganava modestos sitiantes. Era uma operação complicada, na qual um dos comparsas visitava os tais sítios, ele muito bem vestido, dizendo que um grupo internacional iria comprar aquilo tudo, para fazer uma megafazenda de gado e que os sitiantes iriam ganhar muito dinheiro, pois os dólares pagariam o dobro ou o triplo do valor real dos pequenos sítios. Dias depois lá vinha outro membro da quadrilha, com fala arrastada, fingindo-se gringo e admirando-se do preço irrisório que estavam pedindo pelos terrenos. Isso gerou uma inflação enorme nos preços dos tais sítios, ao fim do qual os malandros acabavam lucrando, pois, despertados em sua ganância, os caipiras, os tais jacus, acabavam pagando aos malandros um valor absurdo por terrenos que não valiam a metade. Choveram hábeas corpus, sob a alegação de que aquilo era apenas uma relação comercial, regida pelas leis civis. O relator do acórdão não deixou por menos: "melhor deixar os caçadores na cadeia antes que eliminem todos os jacus". Há muitos artistas de novela que, bem analisados, poderiam ser qualificados de caçadores de jacus. Apregoam qualidades inimagináveis nos produtos que anunciam, levando os ingênuos a comprar tais produtos que, como logo verificarão, não correspondem àquilo que o cínico propagandista havia apregoado. Queixar-se agora a quem, se a novela já se encerrou?
sexta-feira, 19 de junho de 2009

Chame o Ladrão! Chame o Ladrão!

Com o avanço nos trabalhos de decifração do DNA do ser humano acabamos por verificar que a distância entre ele e a ameba não é tão grande como se imaginava até agora. Se levarmos em conta, na comparação, os nossos parentes primatas, a distância é quase nula. Menos mal que venhamos a saber disso, pois muita coisa que não conseguíamos entender no comportamento humano parece agora ter sentido. Ou, mais exatamente: a falta de sentido para muita coisa de estranha no comportamento humano é tão incompreensível como tanta coisa no comportamento dos demais animais que tanto intrigam os estudiosos. Dizia-se outrora que o que distingue o ser humano dos demais animais era a inteligência, que somente o homo sapiens possuiria. Discute-se hoje se os demais seres animados não possuiriam isso que conhecemos como inteligência. A capacidade de criar instrumentos para atingir determinados objetivos (por exemplo, um orangotango que introduz um graveto num formigueiro para dali retirá-lo com insetos presos nele está realizando um ato inteligente, pois está diante de um problema e constrói, mentalmente, sua possível solução), ou a capacidade de contornar obstáculos (um elefante asiático, no qual fora pendurado um sino de bambu, para que, à noite, o barulho do aparelho denunciasse a presença do animal na plantação que ele costumava invadir para comer bananas, valeu-se de lama, que colocou no sino, para imobilizar o badalo deste, como vimos no Animal Planet) sugere que a inteligência não é privilégio dos seres humanos, como se pensava até recentemente. Em sendo isso assim, quem se disponha a colocar vinte ou trinta macacos em um ambiente, deverá contar com a possibilidade de eles desenvolverem algum tipo de atividade que lhes permita melhorar as condições de vida que ali têm. Ou dali fugir. A sociedade contemporânea não consegue mais justificar os motivos pelos quais tranca em cubículos infectos não vinte ou trinta macacos mas milhares de seres humanos. Teoricamente, diz-se que eles ali estão para serem "ressocializados". Não lhe havia ocorrido até aqui que não se ressocializa alguém dando-lhe condições de vida diversa daquela que ele irá ter quando dali sair, na "sociedade" em que viverá? Seria mais lógico supor que eles preferissem continuar a viver, quando dali saírem, no ambiente em que, durante tantos anos, conviviam com seus semelhantes. "Ressocializa-se" permitindo que eles criem um tipo de sociedade marginal, no sentido de que ela está à margem daquela sociedade em que os condenamos a viver. A idéia de que eles podem associar-se e, conscientes das condições desumanas em que são mantidos, revoltar-se, mesmo quando não expressem isso, justifica os olhos fechados do sistema prisional diante do tráfico de drogas que campeia em tal ambiente. Preso drogado é preso que não incomoda. Assim, quanto mais droga, mais tranqüilidade para todos. Não passava pela cabeça dos responsáveis por esse sistema absurdo que ali estavam animais pensantes? Se um macaco ou um elefante tem capacidade para criar instrumentos ou afastar obstáculos que o impedem de atingir seus objetivos, parecerá estranho que os seres humanos venham a agir diferentemente? E ainda há legisladores que aprovam o cumprimento da pena em regime integralmente fechado! Pois ganha um doce de leite, vindo da fazenda do Ranulfo, quem acertar o nome do autor das considerações seguintes: "Tão incongruente com o princípio da individualização da pena, da readaptação dos condenados, tão ilógica e irracional se desvela a disciplina instaurada pela chamada Lei dos Crimes Hediondos, que, hoje, temos situação insólita: o condenado por crimes hediondos não pode progredir no regime, mas pode obter livramento condicional, tanto que cumpridos três quartos da pena. Ou seja, sem que se possa avaliar o seu grau de ressocialização e/ou proporcionar ao condenado condições para sua harmônica integração social por meio da progressão para regimes menos severos (semi-aberto e aberto), sai ele diretamente de estabelecimento prisional de segurança máxima para as ruas!" E o Ministro Cezar Peluso, que, para vergonha nossa, jamais foi criminalista, conclui seu voto, dado no julgamento do HC 82.959-7/SP, com as palavras irrespondíveis de Luiz Vicente Cernicchiaro: "Só se aprende a viver em sociedade vivendo na sociedade!" Charles Darwin, em uma de suas famosas viagens, recolheu alguns selvagens, que levou para a Inglaterra, onde foram educados e se tornaram distintos cavalheiros. Seus modos, seus trajes, sua elegância não lembravam em nada os selvagens que eram até há pouco tempo. Anos depois, devolveu-os à tribo, para que ensinassem boas-maneiras a seus irmãos de sangue. Nova viagem do Charles até a tal ilha, para ele descobrir que os tais rapazes agora estavam semi-nus, com os cabelos desgrenhados como os de seus conterrâneos, comendo carne cru como eles. Acho que nossos criminalistas deveriam ler outros livros, além dos livros jurídicos.
sexta-feira, 5 de junho de 2009

Maldade (A)

  Naqueles tempos nenhuma "dona de casa" deixava de sintonizar a Rádio São Paulo, onde as vozes do Odair Marzano (cujos olhos verdes se revezavam com o sorriso da Marlene ou da Emilinha Borba na capa da Revista do Rádio) e do Maurício de Oliveira arrebatavam corações. O Maurício, por sinal, foi nosso colega no largo de São Francisco. Turma de 60. Verdade que eu e o Botallo estávamos entre os mais novos, enquanto que o Maurício faria companhia ao Dante Nese (que já era médico naquela época) e ao Gladston Jafet (que só esperou a formatura para falecer) no outro lado do espectro, não fossem estes ainda mais velhos do que o radialista. Mas era ele o nosso (inclua-se aí o Ítalo Fucci, que até hoje me deve um trote acadêmico, pois jamais conseguiu, com sua pequena estatura e aquela barriga enorme, carregar-me no ombro tal como eu o havia carregado, descendo a escadaria rolante da galeria da praça do Patriarca. No sentido inverso ao do movimento normal dos degraus, é claro!) orientador, como um irmão mais velho, já pai de filhos, um dos quais hoje é jornalista. Justamente por sua experiência, o Maurício (que já era, desde sempre, casado com sua colega de microfone, a elegante Lenita Helena) jamais se envolveu diretamente nas coisas do Direito, preferindo, inteligentemente, embarafustar-se pelos corredores da Volkswagen, onde chegou a Diretor, com direito a aposentadoria paga em marcos alemães (ou euros, não sei bem), isso depois de discutir vezes sem conta com um metalúrgico barbudo e de língua presa que o tempo levou para muito longe dali. A voz, porém, que me ficou grudada na memória não era a dos galãs das novelas ouvidas por minha mãe, enquanto lavava a cozinha. Era a de um locutor, cujo nome desconheço, e que nos assegurava, com toda gravidade: "ninguém sabe da maldade que habita o coração dos homens; mas o Sombra sabe!". Aquilo me causava arrepios, ao generalizar afirmação tão severa. Aliás, muitos anos depois descobri, decepcionado, que aquilo era tradução da apresentação de uma série norte-americana, apresentada nos anos 30 e 40, onde se dizia exatamente isso: "Who knows what evil lurks in the hearts of men? The Shadow knows!" Só não ficou claro na mente da criança quem seria essa misteriosa "sombra". Durante anos meus psicoterapeutas (a Artemísia, por exemplo, sendo junguiana de carteirinha, atribuía à sombra muito mais feitos do que eu, crente na bondade humana, poderia imaginar que ela fosse capaz de realizar!) procuraram-me incutir que o dia em que eu me convencesse de que há muitas e relevantes diferenças entre um homem e um anjo eu estaria salvo. "Salvo" aí talvez quisesse dizer que eu não precisaria mais deixar o dízimo mensalmente nas mãos da secretária deles, como eu de fato fiz durante tantos anos. Sobre o tema: os economistas norte-americanos discutem a moralidade do chamado wal-martismo (técnica de produção e venda que consiste em impor o preço ao fornecedor, com encomendas em larga escala, obrigando o fornecedor a reduzir drasticamente a remuneração paga aos seus empregados, dado o lucro a ser obtido pela quantidade de mercadoria encomendada; e que, no limite, aceita o emprego de estrangeiros em situação irregular no país, ao argumento de que não cabe ao empregador envolver-se em questões sociais, que devem ser encaradas exclusivamente pelo governo, que, para tanto, já lhes cobra impostos suficientes) e as possíveis conseqüências de sua adoção indiscriminada no mundo todo. Ao mesmo tempo, o cinema nos traz de presente de Natal, graças ao DVD, esse "Coisas Belas e Sujas", de Stephen Frears, onde temos, ainda uma vez, como se vai tornando comum no cinema contemporâneo, uma discussão de fundo ético: o contra-ponto entre "ser humano" e "ser santo". Tanto assim, que, a folhas tantas, o personagem mais cínico do filme (um tipo realmente asqueroso, mas que nada tem de impossível) chega a exclamar ao resistente herói, que aceita violar seus princípios éticos: "Bem-vindo ao mundo dos seres humanos!" A significar que aproveitar-se da situação de fragilidade das pessoas para tirar proveito (pobre Gerson, que maldiz até hoje o mísero cachê que recebeu para batizar a lei do proveito a qualquer custo, num prosaico comercial de cigarros, cujo nome ninguém mais é capaz de recordar!) faz parte das relações humanas. E que a generosidade, a compaixão e o altruísmo estão banidos da sociedade humana. Será? É que, se na sociedade capitalista tudo tem seu preço e tudo pode converter-se em mercadoria, por que não incluir nessa lista o corpo humano? Se a cirurgia plástica já se converteu em "escultura corporal" (o Código de Ética Médica até há pouco tempo não concordava com a realização de cirurgia para fins meramente estéticos, que lhe parecia mercantilização da medicina e da ars curandi, acabando por dobrar-se à realidade do pragmatismo) e se partes do corpo humano são utilizadas como chamariz de consumo e promoção (regiamente remunerada) de seus/suas titulares (certa ocasião estranhou-se que em certo filme o ator principal exibisse mais músculos do que ele efetivamente tem, esquecidos tais críticos de que existem books de partes do corpo de modelos, que são convocadas (as partes!) para suprir as deficiências físicas do ator ou da atriz, como ocorreu com a magrinha Júlia Roberts no badalado "Uma Linda Mulher", que a projetou, ou com Janet Leigh, na celebérrima cena do chuveiro, no hitchcockiano "Psicose", pois, quando a cena foi filmada em Hollywood, utilizando-se uma "dublê de corpo", aquela atriz estava em Nova York, a passeio), a venda (e, como não pode deixar de ocorrer, o tráfico) de órgãos humanos será apenas um desdobramento do mesmo princípio. Ceder (por generosidade) o rim ao irmão que não suporta mais a diálise ou vender (para o bem estar econômico da família) algum órgão para poder quitar as prestações da casa: qual a diferença ética? Ou, dito de outra forma, capitalisticamente falando: que mal há nisso?
sexta-feira, 29 de maio de 2009

Lógica Elementar

  O professor pergunta ao aluno: "Quantos rins nós temos?" "Temos quatro!" responde o aluno. "Quatro?" replica o professor, um desses arrogantes que adoram tripudiar sobre os erros dos alunos. "Traga um feixe de capim, pois temos um asno na sala" ordena o professor ao bedel. "E pra mim um cafezinho" acrescenta o aluno ao auxiliar do mestre. Irado, o professor expulsou o aluno da sala. Esse aluno era, segundo dizem seus biógrafos, o futuro humorista Aparício Torelly Aporelly, mais conhecido como Barão de Itararé, que, já adulto, como jornalista, criticava duramente o governo Vargas. Uns policiais entraram na sala dele, quebraram móveis e rasgaram tudo o que puderam. No dia seguinte o Barão, depois de recompor a sala, teria colocado um cartaz na porta: "Entre sem bater". O incidente na escola não ficou naquilo. Antes de deixar a sala de aula, o Aparício esclareceu: "O senhor me perguntou quantos rins nós temos. Nós, eu mais o senhor, temos quatro: dois meus e dois teus. Tenha um bom apetite." Qualquer professor sensato teria elogiado a lógica da resposta e retirado a ordem de expulsão. Mas, quem ainda espera que professores tenham humildade e raciocínio lógico? Falo agora de outro professor, cujo nome se perdeu no tempo e eu não estou aqui para mentir e inventar fatos. Era um homem de meia-idade, essa idade onde as mocinhas mais bonitas nos chamam de tio, mesmo com o cabelo tingido e a malhação na academia de ginástica. Meia-idade, na verdade, é um eufemismo que esconde a verdade: idade inteira, mesmo porque a velhice é idade em dobro. A esposa aceitava isso como próprio da idade do lobo, coisa com que ela se divertia muito, uma espécie de último adeus à mocidade, pelo qual passam, segundo dizem, todos os homens. Ou passavam, antes do Viagra e sucessores. Isso até o dia em que o marido chegou pilotando uma motocicleta, dessas em que só faltam som estereofônico, ar condicionado e frigobar. "Agora você extrapolou de vez. Isso é fábrica de acidente. Nem seguradora cobre os riscos de danos. Caminhoneiro não respeita." E tantas outras frases feitas a que ele fazia ouvidos de mercador. A expressão era do tempo do onça, certamente, sendo Onça o apelido daquele governador do Rio de Janeiro que não tinha papas na língua. E papas na língua nada tem a ver com o Vaticano. Pois um dia, para real tristeza da esposa, que nem se utilizou do apropriado "eu não disse?", numa disputa de preferência entre a moto e uma C-14, adivinhe quem se impôs? Pois lá está nosso herói no hospital, perna gessada suspensa, à espera de uma cirurgia que lhe repare as tais fraturas cominutivas, palavra que ele repetia de boca cheia, para surpresa das visitas, que não imaginavam que o estilhaçamento dos ossos tinha tal nome técnico. Que se preparasse para meses sem movimentação após a cirurgia, disse-lhe o ortopedista. Temos de reconhecer que ele era um homem conformado. Obteve licença no emprego e se dispôs a curtir aqueles meses todos da melhor maneira possível, mesmo porque o psicoterapeuta hospitalar lhe assegurara que manter a cabeça fresca seria o melhor remédio para a restauração dos ossos esfrangalhados. Valendo-se da esposa e da Internet, encomendou uns tantos livros, dentre os que sempre desejou ler mas que, dados seus afazeres normais, jamais havia adquirido. Agora ele iria estudar Lógica. E assim foi. Quem o visitasse veria sobre o criado-mudo uma pilha de livros encadernados, quase todos com pedaços de jornal marcando páginas especiais, que ele lia para a esposa ou para os amigos que o visitavam, o que fazia com vivo entusiasmo. E todos se admiravam de seu alto astral, mesmo tendo agora na perna uma coleção de pinos, que saíam por todos os lados e eram ligados uns a outros por uma cinta de aço circular. Por mais que os médicos tentassem, a restauração da perna lesionada não foi completa. Sua deambulação estaria parcialmente prejudicada, como diria um deles, naquela linguagem incompreensível. Em bom português, ele agora mancaria, para tristeza da esposa, que perderia as matinês dançantes no Clube Homs, ali na Paulista. Nada, porém, que o afetasse. "É verdade que tenho uma perna mais curta do que a outra; em compensação, também tenho uma perna mais comprida do que a outra. Logo, uma coisa compensa a outra". Quando a mulher disse que estava indo ao shopping "comprar sapato" ele sugeriu que ela comprasse um par, pois não pegaria bem ela sair à rua com um pé descalço. Ela disse-lhe que teria de descer os lances de escada, pois o elevador, que apresentara defeito, ainda estava "em manutenção". E o marido: "então nunca vai voltar a funcionar, pois manter é conservar a coisa como está". De outra feita propôs-lhes o seguinte problema: imaginem uma banheira cheia de água. Eu lhe dou uma colher de sopa e uma xícara de café, dessas menores que existem. Qual o modo mais rápido de esvaziar a banheira? Uns escolheram esvaziá-la com a colher, outros com a xícara. E ele: "o modo mais rápido de esvaziar a banheira é, logicamente, retirando o tampão". A mulher e os amigos já estavam começando a lembrar-se do velho Alonso Quijano e o resultado de sua leitura desbragada, que o transformou no Cavaleiro da Triste Figura. Estariam eles diante de um novo D. Quixote? Ele, porém, estava mais "lógico" do que nunca, o que o tal psicoterapeuta achou de muita conveniência, pois ficar imobilizado, como era necessário, sem algo que o distraísse seria abrir a porta para uma depressão pós-traumática. E as conseqüências seriam, podiam crer, muito piores. Certo dia sua mulher informou que iria até a papelaria da esquina obter umas tantas xerocópias de uns documentos, para apresentar em uma repartição pública. "Quanto eles cobram cada cópia?" indagou ele, para surpresa da mulher. "Dez centavos a unidade, até um total de 100 cópias" respondeu ela. "E se forem mais de 100 cópias de um mesmo original?" quis saber ele. "Aí o preço cai para oito centavos a cópia" foi a resposta. "Supondo que acima de 200 cópias cada uma custe seis centavos e assim sucessivamente, se você tirar mais de 1.000 cópias, elas lhe sairão de graça. Use as que vai precisar e utilize as outras para embrulhar peixe". Positivamente, o marido tinha enlouquecido. Ela, porém, saiu à rua para fazer as tais cópias e, aproveitando a oportunidade, passou pelo supermercado ao lado, onde comprou mais artigos do que imaginava fazer. Com os dois braços cheios de pacotes, abriu a porta da sala com extrema dificuldade e foi direto à cozinha guardar o que havia comprado, deixando para fechar a porta logo em seguida. Era inverno e ele, ainda imobilizado, queixou-se à mulher: "Feche a porta porque está muito frio lá fora". Pois foi a senha para a recuperação total dele, que ouviu dela o que jamais esperara ouvir. Finalmente ele estava sendo compreendido pela esposa. Não havia pregado num deserto, como lhe havia parecido tantas vezes. Era sua consagração como professor de lógica que vinha tentando ser há tantos meses. De fato, ela, muito séria, as duas mãos nos quadris e as pernas afastadas uma da outra, chegou-se à porta que separava a cozinha da sala, e sapecou: "O senhor vai querer me convencer de que, se eu fechar a porta, vai ficar menos frio lá fora?"
sexta-feira, 22 de maio de 2009

Homem e sua dor (Um)

  Antenor era um homem só. Tinha o aspecto de um livro antigo, desses encadernados em couro, um couro que se foi esgarçando com o tempo, sem que saibamos se isso se deveu ao manuseio constante ou ao desprezo dos leitores. Assim como se o couro se vingasse de haver sido empregado em um objeto tão sem utilidade. Os dizeres na lombada já esmaecidos, como a sugerir que logo deveria ser reencadernado, se alguém visse nele alguma utilidade, o que, no caso, parecia improvável. Não sei bem como se aproximou de nós. Jogávamos dominó na mesa do fundo do bar todas as quartas-feiras à noite. Um grupo de três pessoas que nos conhecíamos desde tempos imemoriais. As pedras do jogo, amareladas pelo uso constante, com os pontos meio-apagados, circulavam céleres pela mesa, provocando, de tempos em tempos, gritos de indignação deste ou daquele. Vez ou outra saltava um palavrão e alguém exibia seu segredo, com o qual estava a um passo de ganhar aquela rodada. O preço da derrota era mais uma garrafa de cerveja na conta. Esses eram os raros momentos em que o silêncio era quebrado. E ali ficávamos até que o último freguês se retirasse e o velho Manoel se aproximasse, como quem viesse sapear o jogo. Era sua delicada senha de que já estava com sono. Compreendíamos e, como em uma litania, mandávamos vir a última garrafa, de cujo desfrute ele também participava. Anos e anos naquela rotina silenciosa. Pouco sabíamos um dos outros, na sua intimidade. Este era casado com uma mulher bem mais nova, que ficava em casa, vendo novela, o que ele não suportava. Por vezes reclamava daquela situação constrangedora. "Ser traído por um aparelho eletrônico é demais!". Ríamos, mas um riso triste, pois aquilo era mais do que uma piada. Era o desabafo de quem sabia que se a mulher tivesse um mínimo de condição econômica, fugiria com o aparelho para uma ilha deserta, onde viveriam felizes para sempre. E ele, fosse pela idade, fosse porque ainda alimentasse a ilusão dos primeiros tempos, fosse pela rotina, entregara os pontos, aceitando aquele ménage à trois. "No princípio cheguei a desligar o aparelho, mas a falta de assunto nos punha um olhando para o outro, sem nada dizer. Aí eu pegava o jornal, instintivamente, e ela me pedia se podia ligar o aparelho. Eu deixava e ficava olhando pelo canto dos olhos a satisfação dela quando aquela luz azulada lhe batia no rosto. Aquele rosto tão sofrido de alguém que parecia participar da vida daqueles personagens. Parei de implicar com aquilo, assim como alguém que, mesmo sabendo-se inocente, aceita a condição de corno". Isso fora dito há muito tempo, aos poucos, como uma novela em capítulos, e nós fomos juntando os pedaços daquela queixa homeopática, que poderia ser a queixa de qualquer um de nós. Aquele outro era viúvo. Parece que tinha filhos, mas pouco falava deles. Uma carta recebida era anunciada sem grande entusiasmo. Ao contrário, isso era dito assim como quem anuncia algo indesejável, uma urticária que lhe saiu na perna ou a queda de um dente podre. Seu conteúdo jamais era revelado. "Meu filho me escreveu" era tudo o que dizia. Onde morava? Estaria necessitando de algo? Ninguém se atrevia a indagar-lhe. Ainda hoje me pergunto por que guardávamos tanta solenidade uns com os outros, se nos considerávamos amigos. Ou talvez não nos achássemos dignos do título. Talvez fôssemos apenas isso: companheiros de rodadas de dominó e cerveja nas noites de quarta-feira. "Parece que minha filha vai ter um bebê" e nada mais era dito nem lhe era indagado, mesmo depois de meses, quando a tal criança certamente já teria nascido. Era um estranho pacto de silêncio que nos irmanava. E o barulho monótono das pedras circulando, como o pulsar incômodo do sangue nas têmporas a nos mostrar, nas madrugadas de insônia, que ainda estávamos vivos. Se a tristeza era a marca dos membros do grupo, Antenor certamente levava a palma. Desse não sabíamos absolutamente nada. Entrava no bar e pedia uma cerveja, que tomava de pé no balcão, sozinho, lentamente, sorvendo cada gole, com o olhar parado, que se projetava para além da porta, além da rua, além do mundo. Acendia um cigarro, que raramente levava à boca, a cinza acumulando-se, sem cair, tal sua imobilidade. Como que tocado por um anjo, vez ou outra pegava o copo, que lentamente levava à boca, em um movimento mecânico do braço, que lembrava, pela precisão, uma pá carregadeira. Interrompíamos o jogo para aguardar a queda da cinza, contando mentalmente os segundos, os minutos que aquilo demoraria. Era um jogo dentro do jogo. Um de nós, depois de muito tempo, teve a idéia de oferecer-lhe uma das cadeiras vazias de nossa mesa, que ele aceitou com um lento gesto de cabeça, agradecido. Passou a beber junto conosco, ainda olhando a porta do bar, como se esperasse a chegada de alguém. Gentilmente recusava o convite de participar da roda de dominó. Ele estava ali, mas era apenas parte dele. Uma parte insignificante. Sua maior parte estava longe, perdida sabe-se lá onde. Um dia, vimos aparecer um sorriso em seu rosto, sempre voltado para a porta. Um tímido sorriso, desses que não querem ser notados. Mas era um sorriso, sem dúvida alguma. O inusitado do fato fez suspendermos o jogo, para desfrutarmos, algo invejosos, daquela sombra de alegria. Dali de onde estávamos podíamos ver a rua que praticamente terminava na esquina onde se situava o bar. Na rua vazia, tudo o que vimos foi um cão, sem raça nem cor definida, que se encaminhava altivo em nossa direção. Ele entrou no estabelecimento e não chamaria a atenção de ninguém, se não fosse o olhar fixo do Antenor, que atraiu o animal até nossa mesa sem dizer palavra. Na verdade, não era bem um cão, mas uma cadela, muito limpa, que se aproximou dele e lhe lambeu a mão direita, praticamente ignorando a presença dos demais. Havia na mesa um prato com umas fatias de salame que ele serviu ao animal, enquanto lhe acariciava a cabeça com a outra mão. Ali nasceu uma estranha amizade, cujo conteúdo nenhum de nós jamais conheceu em sua profundidade, em seus mistérios. Aquele livro empoeirado renovou-se, readquirindo o brilho que um dia, muito distante, certamente já tivera. E assim, em todas as quartas-feiras, enquanto jogávamos nosso dominó, podíamos apreciar o rosto daquele homem exibindo sua enorme ansiedade pela chegada breve de sua amiga. Pontualmente, lá vinha ela desde o fim da rua, o que era por nós percebido pelo sorriso daquele rosto outrora tão enigmático. Passamos a vivenciar sua ansiedade, por menos que o desejássemos, e a vivenciar também seu alívio com a chegada da visita. Em uma das quartas-feiras ele não veio ao bar. Quando a Lady chegou - era assim que nos referíamos à cadela -, sua decepção foi visível. Foi de mesa em mesa consultando os presentes, sem mostrar com nenhum de nós o afeto que dedicava ao Antenor. Chamei-a e ofereci-lhe o salame. Ela cheirou e rejeitou o presente, como se respeitasse a ausência de quem lhe era tão caro. Sentou-se nas patas de trás e ficou olhando a porta do bar, tal como o Antenor havia feito tantas vezes. Quando o seu Manoel se aproximou, ela olhou-nos com uns olhos tristes e se retirou dali, deixando no ar um resto daquela tristeza, como se ela se houvesse tornado um de nós. Em várias quartas-feiras seguintes, o olhar do Antenor voltou a ficar perdido no horizonte, como se não contasse mais com a vinda de sua amiga. Sua dor era tão grande que nenhum de nós tinha coragem de tocar no assunto. Alguém menos sensível ou menos sofrido do que nós teria feito piada daquele desencontro amoroso. Nós nos limitávamos a respeitar aquela dor, que sabíamos ser enorme, pois o jogo terminava e a visita não aparecia. O que ele parecia prever que de fato ocorreria. Certa noite, Antenor pôs-se de pé em um salto, como se tivesse levado um choque elétrico. Paramos o jogo e nos voltamos para o fim da rua. Lá vinha Lady, caminhando apressada, acompanhada de um bando de cães. Ela estava, evidentemente, no cio e aquela matilha se disputava a prioridade de cobri-la. Quando ela chegou diante da porta do bar e viu ali o Antenor, estancou, como que admirada. Um dos cães aproveitou-se para colocar as duas patas dianteiras sobre seu dorso. Aquele animal de olhar sereno e aspecto dócil, renegando a lei da natureza, avançou sobre o atrevido, agarrou seu pescoço com a boca e pôs-se a balançá-lo no ar, com uma fúria inimaginável, até que o arremessou longe, como um simples fardo, que permaneceu imóvel onde caiu. Outros cães se aproximaram e foram enxotados por ela com igual e incompreensível fúria. Ela e Antenor trocaram um longo olhar, sem que um se dispusesse a se aproximar do outro. Ele saiu do bar, passou por ela e seguiu pela rua, com os passos apressados, como quem foge de si mesmo. Ela, contrariando tudo o que seria esperável, não o seguiu. Ficou ali, na rua, sentada sobre as patas traseiras, como quem vê partir um navio. Antenor, desde aquele dia, nunca mais voltou ao bar. Lady, segundo comentários do seu Manoel, teria sido atropelada por um caminhão de cerveja. Para espanto do motorista, segundo lhe contara, ela praticamente se atirara sob as rodas dianteiras do veículo.
sexta-feira, 15 de maio de 2009

Suspeito (O)

As duas mulheres caminhavam pela rua Direita, apinhada de gente, no ritmo ditado pela mais velha, que se detinha diante de cada loja, apreciando vestidos aqui, sapatos ali, brinquedos mais adiante, livros acolá, contando com a paciência da mais nova, em cujo braço a velha permanecia enganchada. No meio da multidão apareceu um rapaz correndo. Correr como, com toda aquela gente ocupando calçadas e leito carroçável, onde apenas trafegava, vez que outra, algum veículo oficial, com a buzina insistindo em pedir passagem pelo meio da multidão de pessoas indo e vindo? A solução foi ele dar dois ou três disparos, provocando a queda de toda aquela gente, como se a centena de pessoas que por ali circulavam apressadamente, exceção daquelas duas mulheres, que não tinham pressa alguma, tivesse sido atingida pelos poucos disparos efetuados. Deitados no chão, os que permaneceram vivos viram o rapaz, sempre a correr, entrar numa travessa, à direita, umas três quadras adiante. Passado o susto, as pessoas foram-se levantando apressadamente, para retomar a caminhada frenética, sem se importar se havia alguém ferido, pois tinham coisa mais importante para fazer. A moça mais nova levantou-se, mas a mais velha permaneceu deitada no chão. Você se machucou, mãe?, perguntou ela. Machucar-me com quê? disse a velha, ainda deitada no chão. Com os tiros? Qual tiro, qual nada, aquilo eram fogos de São João. E você não se levanta por quê? Porque ainda é cedo, e você bem que poderia deitar-se aqui comigo. Pacientemente a filha convenceu a mãe a levantar-se, prometendo-lhe comprar-lhe uma blusa na loja de departamentos que havia mais adiante, ao lado do consultório médico, onde tinham hora marcada para logo mais com o psiquiatra. A senhora está lembrada? Uma vez ali, enquanto a filha escolhia a tal blusa, na bancada de saldos, a mãe embarafustou-se pela loja adentro, entrevistando as pessoas que encontrava, sempre terminando a conversa com indicação de seu nome e endereço e um convite para um chá da tarde no dia seguinte. Não aceito desculpas para sua ausência, hein?, insistia. Às quatro em ponto. Agora, a velha está na secção de perfumaria, abrindo e experimentando batons de todas as cores, sem levar em consideração a presença da demonstradora, com o mostruário inútil nas mãos. Imagine se eu vou passar nos lábios um batom que já foi experimentado por outra mulher, explicava a velha. Chamada a gerente, mulher tarimbada, notou ela que aquela freguesa deveria ser abordada de modo especial. Com muito jeito, convenceu-a a irem até a lanchonete, onde. Lá ficaram por um bom tempo, até que a freguesa dali se retirou sem despedir-se. A filha não notou a aproximação da mãe, que lhe sussurrou algo que ela não entendeu. Tudo bem com a senhora, mãe? Mais ou menos, disse a velha. Acabo de ver na lanchonete o tal rapaz que fez os disparos. Acho que ele vai assaltar a loja. Ele está com dois comparsas. Devemos avisar a gerência. A filha procurou desconversar, mas quando a velha lhe disse que iria procurar os guardas, a moça resolveu, como tantas vezes fazia, entrar no jogo da mãe. Vamos juntas, que eu explico tudo ao guarda, disse a filha. A partir de informações dos funcionários, a dupla chegou até onde estava o homem de roupa azul e quepe na cabeça. A moça explicou ao guarda que sua mãe padecia da doença de Alzheimer e, por isso, não podia ser contrariada, pois ela se enfureceria se isso acontecesse. Que ele, com muito jeito, dissesse à senhora que tomaria providências sobre o caso, para acalmá-la. Solícito, ele se apresentou à velha, agradecendo sua colaboração. Informou-lhe que ela se parecia com a mãe dele, que ficava em casa tomando conta dos dois filhos do casal, pois sua esposa também trabalhava fora. Ele iria investigar a denúncia feita por ela sem demora e reiterava seu agradecimento pela colaboração dela. A velha prontificou-se a acompanhá-lo, para dizer qual dos três rapazes estava armado, mas sua filha, a muito custo, conseguiu convencê-la de que aquilo era desnecessário, pois o guarda era homem experiente e cuidaria do caso. Ele se despediu de ambas, tomando o rumo da lanchonete e as duas mulheres seguiram para o caixa, já que a hora da consulta se aproximava. A moça ainda não havia pago a conta quando se ouviram dois disparos e um grito vindo da lanchonete, ao mesmo tempo em que três rapazes passavam por elas chispando, a caminho da saída. Instintivamente, todos ali se atiraram ao chão, procurando esconder-se atrás dos balcões. Todos, menos a velha, que, muito agitada, censurava a filha por haver impedido que ela auxiliasse o guarda. Como ele haveria de saber qual dos três estava armado? Como? Quem agora vai cuidar da mãe dele e das duas crianças? Quem? Você? Você? Lentamente, os fregueses foram-se levantando, ainda ressabiados. A filha da velha, porém, permanecia deitada no chão, o corpo dobrado em posição fetal, chorando copiosamente. Era como se o teto da loja tivesse caído sobre seu frágil corpo.
sexta-feira, 8 de maio de 2009

Coisas do Telégrafo

"Chegamos capital sábado pt Beto farah exame juiz pt Beijos Ana". O velho releu várias vezes o telegrama, que passou, por fim, à esposa. Ela diminuiu o som da televisão, perdendo a conclusão da receita de cóc-o-van, de que estava tomando nota e pela qual esperara tanto. Tomara que isso valha a pena, disse ela a meia voz, mais para consolar-se da perda do que irritada pela interrupção feita pelo marido. Depois de tantos anos de casados, se não nos acostumarmos com essas inconveniências, a vida vira um inferno, é ou não é dona Cida? Era a observação que ela fazia constantemente à vizinha, uma viúva tão velha quanto ela, que já presenciara diatribes inúmeras, talvez já esquecida das que lhe aprontava o falecido, que Deus o tenha. A esposa leu e releu a mensagem, que segurava na mão, como se aguardasse que novas palavras dali brotassem e esclarecessem o que significava aquela economia de palavras. É que no telegrama a gente paga por palavra, explicou-lhe o marido, pacientemente. Ela virou o papel e leu no verso o nome da cidade de origem. Mas eu não conheço ninguém em Nhandeara! Nem sei onde fica isso. E quem é Ana? E Beto? Eu não conheço Alberto nenhum. Tem certeza de que esse telegrama era para nós? O velho tentou ajudar: Ana é a nossa filha, Juliana, que nós chamávamos de Ana, não se lembra mais? Que Juliana nem meio Juliana! Nossa filha se chama Sebastiana e tinha, e pelo jeito ainda tem, um horror a esse nome. Tanto nome bonito no mundo e foram-me dar um nome de cozinheira, era o que ela sempre dizia. Não se alembra disso? E foi você quem escolheu esse nome horroroso, meu caro. O velho tentou justificar-se: mas que eu fiz isso por causo da promessa pro São Sebastião quando você estava pra perder o rebento, que era justamente a Ana, você esquece. Mas meu velho (ela agora tentava amenizar a crítica) com tanto nome de santa, você foi logo se apegar a um santo todo flechado! Eu sempre lhe agradeci a promessa, mas nunca entendi a escolha do santo, é só isso. Deram-se um sorriso de reconciliação, como tantas vezes ocorria, e voltaram ao telegrama. E Beto deve ser como eles chamam o Humberto, filho dela. Também, pudera, tanto tempo longe, nem se interessaram se estávamos vivos ou mortos durante todos esses anos. Nem quando do meu infarto quiseram saber de nós, queixou-se o homem. A velha, porém, toda maternal: pobrezinha, a vida dela não tem sido fácil. Mal nasceu o filho, o marido se escafedeu com aquela sirigaita, sumindo de Fernandópli. Diz que a Ana ficou muito doente, internada, o filho sendo cuidado no colégio interno. Pobrezinho! Veja como é o destino: agora ele está pensando em ser juiz. Não é uma alegria para uma mãe? Isso compensa todo sofrimento dela! Ele vai dar em dobro tudo o que ela tem feito por ele. Eu sempre rezei pra que isso acontecesse. Quer dizer que meu neto vai ser juiz, disse o velho, mãos nas costas, olhando para além da janela. E juiz de direito, nada de juiz de futebol, que eu não estou para ouvir xingação contra minha filha, sentenciou o avô. Hoje até mulher já é juiz de futebol, veja que esculhambação. A velha acudiu, sensata: mas para ser juiz carece de ter idade. E nosso neto não tem idade para ser juiz. Como não tem?, voltou o velho. Nossa filha se casou há mais de quinze anos, e quando casou já estava grave. Faça as contas: o Beto deve ter, no mimo, no mimo, uns dezasseis ou dezassete anos. Ainda assim, isso não é idade para ser juiz, ponderou a avó. Por mais que eles digam que estão precisando de gente, não vão abrindo a caixa preta assim sem mais nem menos. O velho riu muito da jocosa observação da esposa, lembrança da já velha campanha presidencial. Um riso que se convolou em tosse e um quase engasgo. Ele se conteve e tentou concatenar o pensamento. Deve de ser o seguinte: eles virão pra São Paulo, para que ele estude e despois faça exame para juiz. Só pode ser isso. Doutor Humberto. Até que o nome vai bem num juiz. Humberto Alencar. Se é que ele não tem apenas o nome do desinfeliz do pai, disse a velha, diminuindo o entusiasmo do marido. Ficaram a fazer conjecturas até tarde. Por fim, foram deitar felizes com a paz que finalmente caíra sobre o lar da filha, aquela sofrida filha que não merecia tudo o que tinha já passado. Mas Deus escreve direito por linhas tortas. O colchão, porém, nunca lhes pareceu mais duro. Rolaram de lá pra cá, e de cá pra lá, e nada de pegarem no sono. O velho, dando-se por vencido, acendeu o abajur e passou a descrever a carreira do neto. Só quando o desembargador Humberto Alencar estava para ser eleito presidente do Tribunal foi que o avô caiu no sono. A velha, esta havia acompanhado apenas metade da carreira do neto. Dia seguinte o pedreiro aposentado atreveu-se a caiar o quartinho que servira de dormitório da empregada, dispensada por medida de economia, pois, nesses tempos bicudos em que vivemos, a infeliz comia por três, dona Cida. Por três! E a vizinha achara, de fato, prudente que os parcos rendimentos do casal não servissem para alimentar aquele mulherão, que bem podia pegar no cabo de uma enxada, em lugar de esvaziar a geladeira como fazia. Comia por três, dona Cida! Pois agora o quartinho havia adquirido um ar mais alegre, ainda que à custa de um lumbago, em que qualquer emplastro Sabiá e chá de losna dariam jeito. Nossa filha não iria aceitar menos que isso, não é mesmo, minha velha? Pena que não dá pra trocar os móveis. O dinheiro só deu para um colchão novo. De casal. Finalmente, o sábado. Um vaso de violeta sobre o pichinchê e excesso de bom-ar pela sala, para afastar o cheiro de gordura, pois a filha talvez ainda fosse alérgica. A última coisa que eles queriam é que a Ana se pusesse a espirrar feito bode velho, reclamando do cheiro de mofo da casa, ou do cigarro do pai, como fazia quando era criança. Ainda mais agora que morava no sertão, curtindo o ar puro daquela cidade cujo nome a velha não conseguira guardar. Cada automóvel que entrava na rua esburacada, em geral de pouco tráfego, era um solavanco no coração dos dois velhos, debruçados sobre a mureta do jardim. Lá pelas tantas um táxi dobrou a esquina, vindo em marcha lenta, como a indicar que seus ocupantes procurassem o número da casa. Depois de tantos anos, era natural que a filha já não soubesse direito onde os pais moravam. Com tanto progresso! E lá vem o táxi bem devagar, que só se apressa quando o velho lhe faz sinal com o braço, indicando o local da parada. Fim da viagem. O motorista salta do automóvel, para retirar do porta-malas duas sacolas de lona, que coloca na calçada. A passageira, finalmente, dá o ar da graça. É uma velha, mais parecendo irmã do que filha da dona da casa. Os cabelos brancos, desgrenhados, estão parcialmente contidos por uma tiara de plástico. O rosto é grave, a voz é rouca. "Sai logo daí, seu imprestável!" É como ela se dirige ao filho, que parece acuado no banco de traz do carro. Finalmente, ele sai lentamente do táxi, muito assustado. É um garoto meio desajeitado, que a mãe puxa pelo braço e praticamente arrasta até o casal de velhos. "Pede bênção pra os avô, muleque!" O quarteto entra na casa e o pai tenta mostrar a satisfação pela visita. Foi muita honra ela lembrar-se dos velhos. Uma pessoa tão ocupada como nossa querida Ana. Eles esperam que a presença dela signifique esquecimento de tantos desentendimentos do passado e que agora eles, os quatro, possam viver como uma autêntica família. A família com que ele sempre havia sonhado. A velha, muda de emoção, concordava com o marido, pelo que se colhia dos reiterados acenos de cabeça, fazendo suas as palavras do velho. Não será por muito tempo essa importunação, diz a filha, curta e grossa. É só o tempo desse paspalhão fazer os exames do juízo que o diretor da escola encomendou. Ele já repetiu de ano umas três vezes e eu quero saber se isso tem jeito, concluiu a megera. Se essa cabeça tem arrumação. Os velhos, petrificados, não sabiam o que dizer. Olharam-se e do fundo do coração deles saiu ao mesmo tempo a mesma interrogação: juízo? Já na semana seguinte havia no lado de fora do portão uma tabuleta dizendo que ali havia um colchão quase sem uso a venda.
sexta-feira, 24 de abril de 2009

Obscenidades nossas de cada dia

  Mostrei certa ocasião a meus alunos como as palavras e as expressões têm um destino. Nascem, crescem e, muitas vezes, acabam morrendo. Outras vezes se prostituem, ou, quem sabe?, se regeneram. O exemplo clássico é a palavra formidável, que qualquer garota ficaria feliz de ouvir, referindo-se a ela. Será? Vamos ao dicionário: "formidável - que inspira grande temor, que é perigoso/a, que tem aspecto terrificante". E você sempre dizendo que tem uma sogra formidável, é ou não é? Pois se o Jarbas não tivesse enterrado o latim, dizendo que a sepultura era o destino de uma língua morta, você saberia que formido, em latim, era o nome que se dava ao nosso conhecido espantalho, destinado justamente a causar medo aos pássaros. Formidável, né não? A propósito, pergunte aos manos ai da sua rua que vem a ser galera. Onze entre dez deles dirá que é um conjunto de torcedores de uma partida de futebol ou de um show de forró ou de rock. Se você disser a eles que, na verdade, galera é "um antigo navio a vela, de mastreação constituída de gurupés e três mastros de brigue", como diz tio Aurélio, eles te cobrirão de porradas. Palavra, por sinal, que provém de porrete (é uma síncope de porretada) e não deriva de porra, como muita senhora imagina, ao censurar seu uso pelo neto, aquele boca-suja, supondo que estejamos falando do líquido fecundante produzido pelos órgãos sexuais dos animais machos, o esperma, a que, em linguagem chula, porra se refere, tanto quanto esporro e langonha, ainda segundo o mesmo pai-dos-burros, muito embora eu jamais tenha ouvido esta última e medonha palavra, que mais parece nome de ex-diretor do Banco Central. Aliás, muito embora registre que porra! seja uma interjeição, mestre Aurélio dá a ela o sentido de enfado, impaciência, o que é menas verdade, como se diz por aí. Se alguém se admira com algo, lá vem o pô!, que, segundo o mesmo professor, é forma sincopada do termo que ele xinga de chulo. Se eu digo "pô, que mulherão que virou aquela mina!" eu não estarei mostrando impaciência, nem enfado, mas algo muito diverso, como sabeis. Pois voltemos à minha sala de aula. Para confirmar o preconceito que encobre as chamadas chulices (na verdade, quando falamos em "baixo calão" estamos admitindo a existência de um "alto calão", que são os palavrões utilizados pelas classes "superiores"), contei aos alunos a história da Tereza, uma prostituta que engravidou e deu à luz o José. Ela era conhecida na região como Terê, uma abreviatura de seu nome, da mesma forma como o filho passará a ser o Zé. E escrevi na lousa: "José é filho da prostituta Tereza". A classe, a meu pedido, leu a frase, sem atentar para o destino que os aguardava. Depois de algumas considerações, suprimi o nome da mãe, risquei o José e escrevi no alto "Zé", seu apelido. E fui suprimindo da profissão da mãe dele todas as letras desnecessárias, pois, da mesma forma como de Tereza ela se tornara Terê, eliminando várias letras do nome de sua profissão, teríamos uma abreviatura do nome da tal profissão, composto apenas da primeira e das três últimas letras da palavra prostituta. E pedi à classe que lesse o resultado. "José é filho da ..." O número de alunos que conseguiram falar foi mínimo, embora eu estivesse querendo dizer a mesma coisa que eles haviam dito antes. Isso para não falar da aluna que eu havia reprovado e que se expressou sem meias palavras: "mestre, você me fudeu!" Verbo esse, aliás, empregado por um advogado para ameaçar um oficial de justiça: "você comigo está fodido!" Pois tal ameaça redundou em denúncia e condenação. O recurso caiu nas mãos de ninguém menos do que o Alberto Silva Franco, que deu por não caracterizada ameaça alguma, pois a palavra empregada era inespecífica. Ou, mais exatamente, plurívoca. E pode até mesmo ser elogiosa, conforme as circunstâncias, como quando designa valentia: "fulano é um sujeito fodido!" No dia do tal julgamento, a galeria (conjunto de espectadores, que os americanófilos e os comedores de mac-lanche denominam "audiência", que, como sabemos, é sessão de julgamento judicial) estava repleta, para ter o prazer de ouvir o Silva Franco falar, vezes e vezes, a tal obscenidade. E ele, que é, de fato, um cara fodido, assim o fez. Quem diria! Falo também (o trocadilho foi involuntário) da distinta senhora que, numa festa, se gabava de haver esculhambado seu desafeto em uma discussão. Apenas por curiosidade, perguntei-lhe o que ela havia feito com os colhões do homem, o que gerou um esporro daqueles, para continuarmos na chulice. E eu fui obrigado a recuar, sem que os presentes percebessem que eu estava indo com o cu para trás, mesmo porque poucos se dão conta da origem da tal palavra. E se numa reunião os componentes de um grupo também forem recuando e alguém ficar sozinho, ele certamente comentará que "ficou na mão", sem atentar que se está referindo à situação de alguém que, tendo sido abandonado pelo companheiro ou a companheira, não terá outra forma de aplacar a inaplacável libido senão pela masturbação. E olhe que eu poderia falar sobre as flores, essas maravilhas que Deus espalhou na Terra para encanto de nós todos, que não atentamos para o fato de serem elas, ao fim e ao cabo, o órgão sexual da planta. Olhe para um hibisco, por exemplo, e veja se há algo mais obsceno na Natureza. Ou uma orquídea. Cujo nome, aliás, lembra uma espécie que continha um talo e duas bolotas embaixo, donde o nome escolhido pelo seu nominador: orchis (em grego, "pênis") e idéa (em grego, "aparência"). Pensando bem, como as crianças estão entrando na sala, acho melhor fechar o meu dicionário, esse repositório de obscenidades, escrito pelo Aurélio, aquele fescenino, cujo primo nos mandou jogar bosta na pobre da Geni (clique aqui).
sexta-feira, 17 de abril de 2009

Perdedor as baratas (Ao)

  Fiquem sabendo que acabo de ganhar o prêmio acumulado da Sena. Minha primeira providência, acreditem, foi comprar o CD do Jorge Veiga, aquele do Etelvina! Acertei no milhar. Sempre é bom saber o que fez alguém que passou pela mesma experiência nossa. O Jorge diz que comprou um bungalow no outeiro da Glória. Minha providência será ir, não à agência da Caixa, mas ao dicionário saber o que eu deverei comprar e onde. Bangalô? Que é isso? Ou pedir ao Abílio Neto que me informe, pois ele é chegado a essas músicas menos novas. Vou pensar nisso. Segunda providência será mudar-me para um bairro mais tranquilo. O Morumbi, por exemplo. Com aquelas subidas e descidas, minha mulher vai adorar, logo agora que ela resolveu levar a sério aquelas caminhadas que o outro Jorge, o Mattar, vem insistindo com ela nos últimos anos. Vi um sobrado maravilhoso no alto de um daqueles morros. Já vejo a pobrezinha chegando a bufar, molhada em bicas, dizendo, com a maior dificuldade, "eu mato o Jorge". Culpa dele. Quem mandou ter esse sobrenome? Lá do alto teremos a grande vantagem de vermos uma enorme favela, que se derrama pela encosta abaixo. Ou acima, conforme sejam as convicções e o ponto de vista do sociólogo de plantão. Eu ficaria na sacada, exibindo minha riqueza e apontando com um dos dedos da mão direita para a nuvem que passa sobre a minha cabeça. Não sei se o mano lá embaixo vai entender o meu gesto poético. Mas, por cautela, estarei usando colete de malha de lorigão, tal como me aconselharia o Eça de Queiroz, à maneira dos guerreiros medievais. E atrás de um vidro de uns três ou quatro milímetros de espessura, preciso me certificar do poder de fogo dos meus vizinhos. Na parte de baixo do quintal está o canil, onde dois belos rottweilers me olham com seus olhinhos lânguidos. O problema é que a minha esposa sofre de cinofobia. Se você sabe que um cinófobo não é quem tem medo do Joaquim Lavado, pai da imorredoura Mafalda, aquela menina argentina que conhece mais a história universal do que muito presidente da República, você sabe muito bem de quem eu estou falando. Ela não pode ver cachorro, nem que seja da raça daquele que o maestro Xavier Cugat carregava no bolso, enquanto sua orquestra tocava aqueles sambas marotos que faziam as delícias dos teus pais, caro leitor. Samba com bailarinos usando sombreros e roçando maracas. E tocava uns mambos que nem chegavam aos sapatos do Perez Prado, como lhe dirão seus pais. Vá ao YouTube e veja o que você perdeu. Mas, como a minha consorte não suporta cachorros, terei de optar entre ela e eles. O sorriso deles e o dela me encantam, mas ela tem a vantagem de não babar pela borda dos beiços como os cães. Os olhos dela são maravilhosamente verdes, enquanto os olhos deles. Sabem que nunca tive coragem de chegar perto deles para ver a cor dos olhos? Eles balançam o rabinho quando me veem, enquanto que a minha esposa tudo o que me conseguia agitar era o rabo de cavalo, antes do corte que fez naquele coiffeur ali da place Pigalle, sabe quando a gente sai do Trocadero, passando pela Maison Gucci? Pois é bem ali. Resolvido: vendo os cachorros e contrato um guarda-costas, como aquela amiga norte-americana, que mora sozinha ali mesmo no Morumbi, um casarão que vou te contar, com sala disto e mais daquilo, piscina de água fria, outra de água quente e acho que tem uma de água morna, não fui até lá. Você ali tomando sol ou uísque e lá vem o bonitão marchando por dentro da casa, vendo se não tem algum suspeito no telhado, dentro da água da piscina ou do chafariz que tem uma réplica do manequinho famoso. Em ouro, queridinho, em ouro, como diz ela. "O manequinho ou teu guarda-costas e guarda o resto?" Ela finge que não entende português. Ela cobra em dólares. Coitadinha, com essa desvalorização!, e faz mapa anual, mapa mensal, mapa semanal e mapa diário. "Mas, com tanto mapa assim, você precisa de guarda-costas?" Você está sabendo que eu cobro US$ 40,00 por pergunta, não é? "Tudo isso?" digo eu. Com essa pergunta são mais US$ 40,00 na minha conta, pois meu computador está programado para identificar essa elevação da voz que vocês brasileiros colocam no final da frase interrogativa, diz ela com seu delicioso sotaque. "O que eu queria dizer é que se você sabe que ali naquela esquina há um trombadinha à tua espera, segundo diz o teu mapa astral de hoje, seria mais lógico dispensar o dinheiro gasto com o guarda-costas e não sair de casa" esclareço, com um cuidado extremo para não acessar o computador. What a piece of shit like you knows about love? Hein? diz ela. "Quem, eu?", espanto-me. Mais US$ 40,00 dólares para a conta dela. Acontece, meus caros telespectadores, que, tal qual como ocorre na música do Jorge Veiga, inventor do samba de breque, como lhes explicará o Abílio, acabo de ouvir algo como "como é que é? Não vai levantar hoje?" e minha casa do Morumbi voltou a ser um quarto num apartamento de classe média. Em lugar do mordomo, minha mulher abrindo a janela do nosso minúsculo quarto, aquele sol das dez horas batendo no meu rosto. Dormir ouvindo esses discos da Revivendo acaba dando nisso.
sexta-feira, 3 de abril de 2009

Indícios

  "Nenhum homem é grande para o seu criado de quarto." Napoleão Bonaparte Não sei se ainda ensinam isso nas Faculdades de Direito, mas a palavra "indício" provém de "index", que era o nome latino do dedo indicador, aquele com que apontamos alguém e dizemos: "Foi esse aí!". Sempre tive horror a tal reconhecimento, principalmente quando é feito sobre uma estática fotografia, e muito denunciado acabou ganhando com isso, pois minha experiência pessoal me mostrou que tomar a nuvem por Juno, como se diz elegantemente nos meios acadêmicos, não é apenas frase de efeito. Prova indiciária? estou fora, como diz a moçada. Eu ainda usava calça curta e gozava de grande prestígio na vizinhança. Bom filho, estudioso, ponderado e tudo aquilo que os olhos bondosos daquelas senhoras viam em mim, mesmo não estando eu muito de acordo com isso. Em suma, como dizem muitos juízes, eu tinha "bons antecedentes". E era, já naquela época, muito brincalhão. Morava umas duas quadras depois de nossa casa uma garotinha, de uns 4 ou 5 anos, com cabelos loiros cacheados, que falava pelos cotovelos. Era a Malu, cujo nome verdadeiro eu jamais soube, neta do seu Benedito, com quem ela morava. Minha distração era provocar a garota, esperando o troco, que não falhava. Era mês de dezembro e eu, ao passar pela frente da casa, reparei que havia no jardim um belo pinheiro, tipicamente uma dessas árvores natalinas que cobrimos com bolas coloridas e neve de algodão, tal como não havia em Jerusalém e que o Jung diz que é uma representação da cruz em que morrerá quem vai nascer no Natal. Veio-me à mente a notícia que havia corrido na véspera: seu Benedito havia dado uns tiros para o ar, para afugentar uns ladrões que tinham, na noite anterior, tentado arrombar a porta dos fundos da casa. "Diga a seu avô pra preparar a espingarda que eu venho buscar essa árvore de Natal hoje à noite" disse eu e segui meu caminho, com a menina despejando seu protesto lá atrás. Dia seguinte, como era de rotina, fui à padaria buscar o leite e o pão fresco. Dona Mariana, nossa vizinha, comentava com o vendeiro o absurdo que havia ocorrido naquela noite: "Levaram a árvore que o seu Benedito estava reservando para o Natal! Olha que absurdo, seu fulano!" Minhas pernas ficaram geladas. Peguei a mercadoria e fiz um esforço enorme para chegar à minha casa, pois as pernas se recusavam a caminhar. Logo que entrei, minha mãe, com ar neutro, disse-me que o seu Benedito queria falar comigo. Que eu passasse na casa dele logo mais. Achei que fosse desmaiar, mas não disse nada. Seja tudo o que Deus quiser. Fui recebido com a atenção costumeira, quer uma água? um café? seguindo-se o compreensível nariz de cera: "nós conhecemos você há tanto tempo e sabemos ser incapaz de fazer uma coisa dessas, mas, evidentemente, quando você brincou com a Malu, dizendo que viria buscar aquele pinheirinho, havia alguém por perto, que ouviu a conversa e então". Eu mal ouvia o que o seu Benedito falava, não havia nada que eu pudesse dizer, pois aquilo tinha sido uma brincadeira boba etc. e tal. A tal árvore apareceu uns dias depois, jogada num terreno ermo. Olha que maldade, dona fulana. Muitíssimos anos mais tarde, os parapsicólogos me ensinaram que isso se chama pré-cognição, que é a capacidade que algumas pessoas têm de conhecer algo antes que isso efetivamente ocorra. O Einstein entrou por esse caminho, quando questionou os conceitos absolutos de tempo e espaço. Que é o antes e o depois? Se você voar a uma velocidade supersônica, voltará à Terra mais moço do que quando dela saiu. Dá pra entender? O Jung também tocou nisso, ao abordar o que ele chamou de sincronicidade ("ao mesmo tempo", da raiz grega kronos, tempo). Felizmente, não é todo dia que isso ocorre, mas, como diz o próprio Jung, apenas quando convergem determinadas circunstâncias psíquicas, caso contrário nossa vida seria um inferno, como a daquele padre que, contou-me seu colega Odilon Paulo Silveira, que percebia, pela cor da aura da pessoa, quem estava próximo da morte. Isso passou a aterrorizá-lo tanto que ele quase não mais saía de casa, para evitar essa experiência dramática. E olhe que o padre Silveira não simpatizava com os espíritas e só usava batina. Ainda sobre indícios: eu mesmo reconhecia que era muito parecido com um cantor de música popular, Jairo Aguiar, que era apenas um mês mais velho do que eu, semelhança que era motivo de comentários de meus amigos. Certo dia, quando eu caminhava pelo Viaduto do Chá, uma senhora, fã de carteirinha do cantor, me agarra e se põe a fazer uma declaração de amor ali mesmo no meio daquelas pessoas que iam e vinham, indiferentes àquela paixão. Tentei desvencilhar-me da senhora, mas a paixão dela ela maior do que as minhas forças. Limitei-me a ouvir aquilo, receber alguns abraços e dar-lhe, por fim, um "autógrafo", que ela saiu a beijar pelo caminho, enquanto eu imaginava o que me ocorreria se o cantor estivesse a merecer o ódio dela. Isso para não falar do processo criminal que eu tinha em mãos, quando no TACrim, no qual o réu havia sido reconhecido por fotografia. Havia quatro fotografias nos autos, uma de pior qualidade do que outra. E o réu havia sido reconhecido por aquilo! Não tive dúvida: num dia de sessão plenária, em que todos os juízes da casa estavam ali, indaguei de um por um se aquelas quatro fotografias se referiam a quatro pessoas, três, duas ou eram todas relativas à mesma pessoa. Acredite: recebi todas as respostas possíveis! E eram homens que haviam passado grande parte da vida apreciando indícios! E ainda vejo pessoas serem condenadas por força de um reconhecimento perigoso como esse. Trago estas recordações por causa de certo rapaz, tempos já lá vão, que teve a infelicidade de passar diante das câmeras do posto de gasolina logo depois de o posto haver sido assaltado. Um dos assaltantes usava camisa pólo negra, calça jeans e tênis preto. O tal rapaz também. Como todos sabemos que "o criminoso sempre volta ao local do crime", algo que não sei qual sábio inventou, tome prisão preventiva no rapaz. E lá vem um perito a fazer algo que não havia passado pela cabeça de delegado nenhum, nem de promotor nem de juiz: mediu, pelas imagens da tela, a proporção corporal do tal assaltante e do suspeito, concluindo, enfático, em rede nacional de televisão: "não é a mesma pessoa!". Fico imaginando de onde saiu esse anjo da guarda, sem o qual é fácil sabermos qual seria o futuro do tal rapaz. E, para concluir: a Beatriz, hoje aposentada, era assistente social no fórum, casada com juiz criminal. Naquele dia, ela precisou ir falar com o marido, que estava às voltas com uma audiência em caso de roubo, na qual a assustada vítima explicava como o bando havia agido. Eram uns tantos rapazes e uma moça, de meia idade, que não havia sido presa. A Beatriz, muito sem cerimônia, pede licença aos presentes e se dirige ao marido, para falar de um cheque ou coisa que o valha, com aquele nariz empinado dela. A vítima, sem a mais mínima dúvida, aponta o indicador para a Bia: "era essa a moça que estava com eles!" Todos riram daquele evidente equívoco da vítima e a minha querida amiga escapou de um processo criminal. Imaginemos, porém, que ela não fosse esposa do juiz e - azar dos azares! - tivesse já tido alguma condenação anterior por crime contra o patrimônio. Qual advogado a livraria de um cento e cinqüenta e sete no lombo?
sexta-feira, 27 de março de 2009

Homens e números

  O velho Marx dizia que ele jamais aceitaria pertencer a um clube que tivesse o mau gosto de aceitá-lo como sócio. Isso, que o Marotta Rangel chamaria de boutade, tem uma profundidade que poderíamos dizer filosófica, se soubéssemos o que quer dizer exatamente isso. Aliás, qual a diferença entre humorista e filósofo? Reconheço que o humor do Groucho era mais fino do que o meu, o que Zepo chamaria de pun, nome que, em inglês, significa o que jeux-de-mots significa em francês. Ou seja, trocadilho, palavra idiota que não diz coisa nenhuma e só serve mesmo para o Saramago mudar-se de Cabo Verde para as Canárias, quando dirá que fez uma troca d'ilhas. Criar uma palavra só para aproveitá-la em um trocadilho desses, faça-me o favor! Já em inglês, a coisa é muito diferente: imagino o Groucho perguntando a um dos irmãos: "Did you make some pun?" e o Zepo, o trocadilhista do quarteto, tapando o nariz: "not me, my bro. Not me!". Registre-se que a biografia dos Irmãos Marx diz que os comediantes eram cinco: Chico (Adolph Arthur), Groucho (Julius Henry), Gummo (Milton), Zeppo (Herbert) e Manfred. O último não teve apelido porque morreu ainda criança. Como talvez dissesse um dos sobreviventes: os quatro filhos de Adão eram três, Isaó e Jacu. O ancestral deles, que gostava tanto da vida interiorana que escreveu contra o capital, dizia que a revolução industrial havia acabado com o lado erótico do trabalho. O que ele queria dizer era que o operário e a operária tinham orgulho daquilo que produziam, tal como o pai e a mãe olham para o filho com aqueles olhos que exclamam: fui eu quem fez! A toalhinha de crochê sobre a mesa da sala, a carriola de vender verduras pelas ruazinhas da cidade, o telhado da casinha do vizinho, tudo isso o operário olhava e dizia lá para dentro de si: eis-me projetado. Isso se ele fosse filósofo. Ou humorista. Graças ao avanço tecnológico, porém, esse prazer, também esse, foi roubado dos trabalhadores, no dizer do avô dos irmãos Marx. E não me perguntem Karl, porque eu detesto puns. Inda mais com as janelas da sala fechadas. Pois o que o humanista alemão queria dizer era que o homem acabou sendo instrumentalizado. Aquela separação entre ele e o martelo, ele e o serrote ou ele e a colher de pedreiro que havia até então, foi cancelada. A partir da automação da indústria, o homem passou a ser apenas mais uma peça dentro de uma engrenagem composta de peças. E não me peças mais explicações, diria o Zepo. O ser humano agora é uma peça tão descartável quanto as demais que giram, tanto quanto o operário, dentro da fábrica do filme Tempos Modernos, de autoria e com o filósofo Sir Charles Spencer Chaplin, não sei se conheces? Pois graças à denúncia do capitalismo, como coisificador do ser humano, feita naquele filme e à gozação que ele faz da mentalidade narrow mind dos norte-americanos numa gag impagável (Carlitos, que encontrara um pano vermelho que havia caído de um caminhão, corre atrás do veículo para devolvê-lo, mas se vê à frente de um grupo de operários em greve, agitando a bandeira vermelha), Chaplin precisou de muitos anos para poder entrar novamente na pátria da tolerância, embora nunca tivesse sido comunista. Ver a estátua dita da liberdade, só em cartões postais, meu caro. Não é para rir? O que me espanta, entretanto, é essa vocação que o ser humano tem para ser apenas uma peça, uma coisa, um número. Vejo rapazes e moças bem vestidos, carregando no pescoço uma tabuleta com uma indicação semelhante à indicação dos móveis do escritório em que trabalham. E saem para almoçar todo pimpões, com aquela plaqueta ao pescoço, orgulhosos de sua condição de não-humanos. E é com aquela extensão de seu corpo que ele abre portas e catracas, tudo mecanicamente, como impõe o avanço tecnológico. Pois há coisa pior do que isso. Recebo diariamente um monte de "mensagens". Que dizem elas? Nada. São anexos e mais anexos, contendo bobagens que nada me significam, pois ou são falsos textos do Veríssimo ou do Jabor, ou são fotos de lugares exóticos, ou são coisa pior. Até aí, pode parecer que aquilo foi enviado por alguma pessoa, meu conhecido ou minha conhecida, interessados em manter contato comigo. Que bom! Ingenuamente, eu aproveito a mensagem recebida e respondo de volta, indagando a respeito da saúde do remetente e dos seus familiares. Ele ou ela, na maioria dos casos, jamais me responde. Simplesmente, parece que esse tipo de contato está proibido na internet. O ser humano, como uma máquina, recebe e repassa blocos de informações neutras, impessoais, que, no limite, transformam um instrumento de comunicação num veículo que se utiliza dos seres humanos para fazerem circular inutilidades e mais inutilidades, num prazer auto-erótico, se eu puder assim dizer. É o mesmo Carlitos saindo à rua, após o expediente, movendo o braço como se ainda tivesse na mão a chave de parafuso que havia usado o dia inteiro para fazer sempre o mesmo movimento, como se ainda apertasse parafusos invisíveis (clique aqui). Recentemente, comentei com um desses meus conhecidos a respeito de certa mensagem que ele me havia enviado. Ele não sabia do que eu estava falando. "Sabe que por vezes eu passo adiante mensagens que recebo sem mesmo abri-las. Eu lá tenho tempo para isso?" Como o Kubrick mostrou no filme 2001, no futuro próximo não será o computador que servirá o homem, mas o homem é que será escravo do computador. E esse futuro está ali adiante. Aliás, o computador do filme chamava-se, se estão lembrados, HAL. Por quê? Substitua cada letra do nome pela letra seguinte e descubra a sutileza do homem.
sexta-feira, 20 de março de 2009

Letra e o espírito (A)

  "O Papa, com sua autoridade de representante de Deus na Terra, afirma: todos os Papas são representantes de Deus na Terra." Do Livro das Sínteses Fui criado num lar cristão, mas jamais me foi imposto aderir a este ou àquele ramo do Cristianismo. Na minha juventude, quando ainda não se dizia que a única religião digna de tal nome era o catolicismo, sendo as demais meras seitas, travei contato com autores sérios, como Jacques Maritain, que me mostraram não haver incompatibilidade entre fé e inteligência. A honestidade do padre Paul-Eugène Charbonneau, ao reconhecer que eles padres haviam tantas vezes metido os pés pelas mãos, desgraçando a vida de muitas pessoas que se deixaram levar por alguns de seus descabidos conselhos, encantou-me. Em seu "Moral Conjugal no Século XX" ele não deixa por menos: "Quisemos fazer cristãos onde ainda não havia homens. O fato é que hoje não temos nem homens nem cristãos". Li Alceu Amoroso Lima e me encantei com sua visão humanista da fé, a mesma visão que havia levado o advogado Sobral Pinto, católico de missa diária, a defender comunistas, jamais por serem comunistas e sempre por serem seus irmãos em Cristo. Entre o estilo duro do Tristão de Ataíde e a leitura aprazível de um "Lições de Abismo", do Gustavo Corção, eu creio que sabia distinguir entre fundo e forma. Li tanto as obras de Helder Câmara como as de João Mohana. A leitura do "Catecismo Holandês" convenceu-me de que era possível declarar-me católico e partir para leituras que meu despreparo e falta de atrevimento até ali não me haviam permitido. Um movimento de cristianização de lideranças, nascido na Espanha, onde era considerado "de direita", deu com os costados no Brasil e, por força da influência da Teologia da Libertação, passou a ser aqui considerado de "esquerda", simplesmente porque falava em "direitos fundamentais do ser humano". Arrebatado pelos "Cursilhos da Cristandade", procurei acelerar meus conhecimentos da teologia católica, valendo-me do pouco tempo que minhas atividades profissionais me permitiam. Tornei-me "rollista" e passei a divulgar, juntamente com outros leigos e sacerdotes, os preceitos evangélicos nas trabalhosas e cansativas sessões de fim de semana, para "cristianizarmos os ambientes", como se dizia. Conservou-se no Brasil o termo "rollo" para designar cada um dos cinco sermões diários com os quais procurávamos incutir nos candidatos a "líderes cristãos" aqueles preceitos. Dentre tantos nomes conhecidos, ali estava o Eugênio Soares, cujo nome artístico já era sinônimo de inteligência e sensibilidade. Tornou-se, graças aos Cursilhos, "ministro extraordinário da eucaristia", mister que desempenhava nas missas dominicais das dez horas na Igreja de S. Gabriel, no Itaim Bibi. O fato de a fila de fiéis que preferiam receber a hóstia das mãos do Jô Soares enquanto o sacerdote ficava segurando a hóstia à espera de quem quisesse recebê-la de suas mãos era apenas um pormenor folclórico. João XIII dizia que deveríamos estar despertos para a movimentação dos ventos. E os novos ventos trouxeram o polonês Woytila, figura carismática que sabia utilizar sua inegável vocação para o teatro a serviço da Igreja. Muito embora batalhasse com afinco para mudar o regime político de sua Polônia, proibiu os católicos da América latina de misturar religião e política, algo que estava na base dos Cursilhos. Nosso líder Leonardo Boff pagou com um primeiro "silêncio obsequioso", imposto por um bispo de formação teutônica, sua insistência em tentar identificar "cidade de Deus" com "cidade dos homens". Quando o mesmo cardeal Ratzinger tentou ir mais adiante em sua blitzkrieg contra a Teologia da Libertação (clique aqui), Boff preferiu falar de águias e galinhas e concentrar-se na salvação do planeta. Ironicamente, ninguém menos do que o mesmo Ratzinger é escolhido pelo Espírito Santo para guiar o atônito rebanho, que vê os templos católicos, em todo o mundo, transformarem-se em locais de peregrinação meramente turística, ao mesmo tempo em que as "igrejas eletrônicas" proliferam por toda parte, à custa da ignorância pragmática dos ingênuos e da passividade das autoridades públicas civis. Minha ignorância não é tanta que eu desconheça a história da Igreja Católica e de seus principais Papas, dentre os quais o insuperável Rodrigo Gil de Borja i Borja, convertido, em inexplicável descuido do Espírito Santo, em Alexandre VI, pai de Cesar Bórgia e Lucrécia Bórgia, três nomes que dispensam apresentação. Aprendi com Agostinho de Hipona que a fé nos testa a todo o tempo, o que ele expressou numa frase paradoxal: "Pai, que eu creia!" Com S. Juán de la Cruz identifiquei-me na descoberta de que entre a fé que tenho hoje e aquela que talvez eu volte a ter amanhã ou depois de amanhã podem medear noches oscuras, o que até me levou a desabafar: Se tudo fosse como um faz de conta,cabeça tonta que girasse ao ventoe o pensamento nos levasse longee a voz de um monge, de serena face,nos ensinasse coisas do viver? Talvez não ter com que preocupar-se;melhor calar-se que dizer tolice.E quem nos diz se tudo isso é mentira? E o mundo gira, qual um carrossel, eu num corcel, saído do meu sonho, onde inda ponho toda essa esperança. Quem hoje dança? Que é da alegria?Houvera um dia onde todos rimos;depois saímos nós da juventude. E quem se ilude quando há só velhice?Quem foi que disse que há outra vida?Gente iludida. A morte é que contae desaponta. Acabou-se o doce. Tivesse eu o talento inspirado do grande santo espanhol expressaria minha impaciência com coisas belas como: "¡Sácame de aquesta muerte,mi Dios, y dame la vida;no me tengas impedidaen este lazo tan fuerte;mira que peno por verte,y mi mal es tan entero,que muero porque no muero! Lloraré mi muerte yay lamentaré mi vida,en tanto que detenidapor mis pecados está. ¡Oh, mi Dios! ¿Cuándo serácuando yo diga de vero:vivo ya porque no muero?" Assim é a vida. O dia-a-dia testando-nos em nossas convicções mais profundas. Quando, em nome da lei, submeteram a adúltera a julgamento, quem atirou a primeira pedra? Você atiraria, cumprindo ao pé da letra a lei de Deus? Aquele que os católicos dizem ser o Filho de Deus limitou-se a dizer "Vai-te e não tornes a pecar" (João 8,11), dando mais importância ao espírito do que à letra da lei. Como diria Saulo de Tarso, "a letra mata, o espírito vivifica". Que faria aquele mesmo Jesus se uma aflita mãe lhe pedisse que salvasse a vida da filha, uma menina de míseros 9 anos de idade, grávida (de gêmeos!) por força de um estupro contínuo praticado por quem deveria dar a ela exemplos de vida? Será que exigiria que aquela gravidez de altíssimo risco chegasse a termo, talvez com a morte das três crianças? Exigiria que aquela criança, caso chegássemos ao inesperável parto, visse pelo resto de seus dias aquela lembrança viva da violência animalesca a que foi submetida por quem traiu seus deveres mínimos de pai? Qual seria o valor maior a ser preservado? (clique aqui) Não será descabido recordar que esse apego à letra da lei era uma característica dos fariseus, que o mesmo Jesus de Nazaré chamou de "sepulcros caiados", pois eram, segundo ele, "brancos por fora e podres por dentro" (Mateus 23,27).
sexta-feira, 13 de março de 2009

La Ley y el Órden

  Quem disser que sala de espera de consultório médico ou de dentista nada tem a ver com cultura merecerá minha total desaprovação, pois está redondamente enganado. Não saberia contar de quantos fatos importantíssimos já tomei conhecimento em razão daquelas revistas que ali somos praticamente obrigados a folhear. Ainda agora fiquei sabendo, graças a uma dor de dente que me levou ao consultório do Pedro Paulo, que a princesa Diana sofreu um acidente fatal. O carro, aparentemente dirigido por um motorista alcoolizado, colidiu contra um poste ou um barranco, a reportagem não esclarece isso muito bem. Daqui a alguns meses talvez eu fique sabendo se o motorista teve culpa ou não, dúvida que me assalta no momento. É só ter uma nova dor de dente. O importante para mim não é a data, mas o fato. Não era assim que aprendíamos história na escola? Creio que o leitor não conhece, como eu não conhecia até minha última visita ao cardiologista, o John Mendez. Nem jamais dele ouviu falar, tanto quanto eu. A julgar pelo prenome, cuida-se de cidadão norte-americano, já que reside nos Estados Unidos da América do Norte. O nome de família, no entanto, deixa claro que se cuida de descendente de um dentre tantos latinos que subiram o continente para proporcionar melhor padrão de vida aos seus familiares, cruzando o rio Grande. Suporá o leitor que talvez estejamos diante de um desses jogadores de baseball que, vindos de Cuba ou São Domingos, fazem carreira no Eldorado do esporte profissional praticando esse jogo de taco que nos parece tão enfadonho e nos remete à infância. Ou um desses atores, como um Antonio Rudolfo Oaxaca, que, vindo do México, encantou o mundo com os personagens marcantes que interpretou em Hollywood tanto quanto na Europa. Não conhece? A senhora nunca ouviu falar do Rudolfo Oaxaca? Pois saiba que um dos personagens mais famosos por ele interpretado foi Zorba, o grego, sob o nome artístico de Anthony Quinn. Que, aliás, era também um conceituado pintor. De telas, acrescento. E que publicou uma auto-biografia na qual nos dá uma pálida idéia do que é ser ator famoso. Você termina o livro adorando ser anônimo. Informo, porém, que Mendez não é artista. O motivo que o levou ao noticiário televisivo foi, talvez, uma expressão que teria tudo para enquadrar-se nessa categoria, a julgar pelos feitos de um Pollock, por exemplo, aquele que brincava de pintar, salpicando tela, chão e parede de borrifos de tinta. Pena que as autoridades norte-americanas assim não pensassem. De fato, a arte de John Mendez (arte naquele sentido que nossas mães e avós empregavam para rotular nossa falta de modos) foi pouco menos do aquilo que fez Miró, ao aproveitar-se de fezes humanas para dar a uma de suas telas a cor exata que procurava, como revela em sua longa entrevista publicada como A Cor dos Meus Sonhos. Pois a arte de Mendez consistiu nisto: deu, por motivos que não vêm ao caso, uma solene cusparada no rosto de um policial. Algo que Nélson Rodrigues, comentando incidente semelhante ocorrido num Flamengo versus Canto do Rio, ocorrido nos idos de 1957, chamou de "cusparada metafísica", muito embora naquele longínquo episódio o alvo não fosse uma autoridade, nem intra nem extra-campo, mas simplesmente a bola, que, humilhada pelo deboche, desviou-se da trave, num lance que "envergonharia até mesmo uma cambaxirra", no dizer do mesmo cronista. Mendez, por força do inoportuno gesto, foi levado a julgamento, como seria alguém que fizesse o mesmo por aqui. Talvez aqui isso fosse conceituado como um crime de injúria (que os técnicos chamam, no caso, de injúria real, pelo contato físico entre o que arremessou o autor e a vítima) ou, em derradeiro caso, um desacato, a girafa do Código Penal, ao juízo do Edmeu Carmesini, crimes para os quais a pena imposta por um juiz brasileiro seria a imposição de multa, ou, na pior das hipóteses, prestação de serviços à comunidade. O azar de Mendez é que ele não reside no Brasil, onde os juizes costumam aplicar em casos tais o chamado princípio da proporcionalidade, que aprenderam, ironicamente, com os signatários da Declaração Norte-americana dos Direitos Fundamentais (na verdade, um conjunto de emendas introduzidas na Constituição Federal dos EUA). Lá, uma cusparada metafísica como essa custou ao cucaracha condenado nada menos do que o resto de sua vida. Prisão perpétua, eis a pena que, em nome da necessidade de se manter a ordem e fazer obedecer a lei, foi imposta ao cuspidor. Foi o que aprendi na sala de espera do consultório do Feltrin. A revista não informa que aqueles soldados norte-americanos que impuseram tanto sofrimento a prisioneiros paquistaneses foram condenados, pelos equilibradíssimos juízes norte-americanos, a apenas alguns meses de recolhimento. Nada a ver com isso, mas vem-me à lembrança, sei lá por que, episódio envolvendo nosso famigerado Lampião. Diz a crônica que, doidinho pra fumar, o cangaceiro entrou num boteco e se dirigiu ao primeiro conterrâneo que ali encontrou, indagando com sua voz grave: "Vosmicê fuma?". E o conterrâneo, todo gaguejante, pelo sim, pelo não, respeitando a autoridade (coisa que nosso cucaracha não fez), não teve dúvida: "Até hoje fumei sim, senhor. Mas, se o capitão quiser, eu paro agorim mesmo". Quando for aos Estados Unidos da América do Norte não se esqueça dessa historinha.
sexta-feira, 6 de março de 2009

Script

  "Não é que eu tenha medo da morte. Eu apenas não gostaria de estar lá quando isso acontecesse." Allan Stewart Königsberg(vulgo Woody Allen) Se você reparar bem, os filmes do Woody Allen seguem um mesmo roteiro. Ele pode até trocar Manhattan por Londres ou Barcelona, mas o jeitão desajeitado do personagem é sempre o mesmo. Rigorosamente, ele fala de si mesmo o tempo todo. E quem de nós não é assim? Pois o personagem de nossa proposta cinematográfica de hoje é exatamente o Woody Allen, que está se dirigindo, com toda pressa, ao banheiro de uma dessas lojinhas de beira de estrada, onde se vende desde pneu até camisinha. Ele, evidentemente, tem junto ao ouvido direito seu inseparável telefone celular, no qual ele trava um diálogo incompreensível, como é próprio dos personagens interpretados por ele, tendo do outro lado alguém que não se descobre se é um homem, uma mulher, um elefante ou um cachorro. Ainda falando ao telefone, ele se dirige ao local adequado e com a mão esquerda abre a braguilha da calça. Em seguida discute ao telefone e depois leva a mão esquerda até a calça, fechando o zíper da mencionada braguilha. Sempre falando e falando, ele para diante de um espelho enorme, que o mostra de corpo inteiro. Que faz um espelho daquele tamanho naquele minúsculo banheiro? Mistério! O fato é que o nosso personagem está falando ao telefone e, ao mesmo tempo, admirando seus traços fisionômicos, aqueles mesmos traços que sua mãe teria apalpado logo que ele nasceu, pois ela era cega. Com as duas mãos sobre o rosto da criança, ela teria perguntado à enfermeira: "Mas onde está a parte de cima?" Morreu de desgosto alguns dias depois, segundo contaria a Dianne Keaton em sua autobiografia, onde ela incluiria a biografia dele, vingando-se porque ele havia publicado sua autobiografia dele, incluindo aí a biografia dela. Isso se ela escrevesse uma autobiografia. E se me consultasse antes. Finalmente, sempre dentro do banheiro e diante do tal espelho, o tal personagem encerra a conversa e leva o celular até o bolso da calça, quando toma conhecimento que não havia dado as tradicionais três balançadinhas no outrora chamado órgão viril, não hoje, com essa expansão do. Resultado: a cabeça do mencionado órgão, descansando sobre a cueca, liberou o restante do líquido disponível, que, agora, produz uma mancha oval, que a câmera faz questão de mostrar em close. Ele, claro, tem um chilique daqueles que já teve em inúmeros outros filmes e procura, com o mesmo desajeito, remediar a situação, com um expediente mais inadequado do que outro, como tentar sair do banheiro carregando a lata de papel usado com as duas mãos diante do corpo. Desiste da idéia ao notar que a vendinha está vazia. Deixa ali a tal lata e dirige-se então à prateleira de livros, onde procura algum livro de filosofia, já que o Königsberg se acha grande conhecedor dos clássicos, coisa que ele deixa claro em seus filmes, a conselho do psiquiatra que ele visita, sem resultado palpável, há mais de trinta anos, tudo segundo o depoimento da Dianne. Pega um livro de bolso que tem por autor um tal de Platão. "Deste tamanho, deveria chamar-se Platinho" diz ele e devolve o livro à prateleira. Com seu jeito desajeitado, ao devolver o livro, esbarra numa prateleira ao lado, derrubando ao solo um pacote que contém carne de coelho, logo coelho, que lhe dá urticárias. Em sua imaginação fértil, a caixa, quando cai ao solo, se abre e partes do coelho são arremessadas para todo lado, mexendo-se como se estivessem vivas. Uma senhora gorda, sempre há uma senhora gorda em seus filmes! desmaia ao ver aquilo. Ele se ajoelha e se põe a chamar os pedaços de coelho de volta para a caixa, dizendo cúti, cúti, cúti, como diria se estivesse recolhendo pintinhos de volta à saia da mamãe galinha. Passado o delírio, ele pega a caixa, que permaneceu fielmente fechada o tempo todo em que esteve no solo, e se dirige ao caixa da loja. Na verdade, a pequena loja possui dois caixas. O mais próximo é um homem de cara mal-humorada, que está envolto em fumaça, que toma conta daquele aquário onde ele lê o jornal do dia, com um charuto entre os dedos da mão direita. - Fumante? indaga o caixa. - Deus me livre! Morrer de câncer, nem pensar. Prefiro infarto do miocárdio, ou derrame cerebral, ou Aids, ou ser atropelado por uma bicicleta na ponte do Brooklin. - Então dirija-se ao outro caixa, diz o homem sem tirar os olhos do jornal. O outro caixa não tem cara mais amigável do que o primeiro. Aliás, em todo filme do Woody Allen o caixa é sempre um homem, coisa ligada à infância do autor, figura paterna, provedor da família, pão duro filho de uma égua etc. Aliás, recomendação de seu psicoterapeuta, segundo nos diz a mesma Diane, cuja palavra sempre deve ser recebida com reservas, como a palavra de toda ex-esposa que se preze, mas que serve para umas fofocas dessas. O fato é que o nosso personagem coloca a caixa de mercadoria sobre o balcão e o caixa faz cara de nojo. - Você também não gosta de coelho? - Só se estiver vivo. E na horta do meu vizinho, responde o caixa, sem esboçar o sorriso que a piada merecia. Por falar em estar vivo, com essa sua cara, o senhor bem que está precisando de um formicida. Temos doses individuais. - Aquela queimação goela abaixo? nem pensar, diz o Woody. - Tenho, para casos assim de pessoas com pressa, um estoque de revólveres da pior qualidade, alguns deles custando até menos do que uma dose de formicida. Tudo o que ele consegue fazer é dar um ou, no máximo, três tiros. Não mais. Se lhe interessa, está ali naquela prateleira, ao lado dos doces e das chupetas. - E acha que ficaria bem eu morto no assoalho da sala tendo ao lado um revólver que não fosse de aço sueco, cabo de madrepérola e pelo menos cinco balas intactas no tambor? - São US$ 3,37, diz o caixa com o mesmo entusiasmo. - Com as balas ou sem elas? - Estou falando do, argh!, coelho, diz o caixa. O nosso personagem pega um cartão do bolso e coloca na maquineta, enquanto o caixa volta a ler o jornal, parece que os caixas daquela lojinha fazem questão de estar bem informados mesmo vivendo naquele fim de mundo. Ao virar a página, nota que a maquineta não liberou a papeleta para ser assinada. O comprador retira o cartão e descobre que é da Blockbuster. - Não consigo me livrar da concorrência dos blockbusters, diz o Woody, em uma de suas conhecidas frases dúbias que só entende quem sabe que ele não consegue colocar seus filmes em mais do que quatro cinemas no dia do lançamento, ao contrário do que ocorre com os arrasa-quarteirões, tradução de blockbuster, se me permite o esclarecimento. Com seu jeito estabanado, o personagem vai retirando de cada bolso outros cartões, sendo três de drogarias, dois de sex-shops, cinco de livrarias e um de outra casa de aluguel de filmes, especializada em clássicos, a E Pur Se Movie, trocadilho que só alguns pouquíssimos espectadores vão entender, mas que se danem os espectadores, eu faço filmes é para mim mesmo, dirá ele depois em entrevista coletiva, antes de ir tocar saxofone naquele barzinho da Quinta Avenida, imitando o Luis Fernando Veríssimo, que nunca dirigiu filme algum. - Este cartão caiu de seu bolso, diz-lhe uma senhora gorda e feia, que lhe entrega um cartão da American Card. Ele olha para o cartão e exclama: "Não caia na rua sem ele". Talvez alguns espectadores entendam a piada. A senhora gorda, pela cara mais feia que faz, certamente não entendeu. Terminada a compra ele procura um modo de segurar o, argh!, pacote de modo a cobrir a mancha ovalada da parte dianteira da calça, que decorreu da desatenção dele ao conselho paterno: As três batidinhas são a segunda coisa mais importante que você vai fazer com esse membro. A primeira é a circuncisão. Surpresa das surpresas, com o passar do tempo, a tal mancha simplesmente desapareceu! Feliz da vida ele atira o maldito pacote na lata de lixo existente ao lado da porta da saída, sob a pia, onde ele lavará as mãos, para se livrar de vez daquele maldito cheiro de, argh!, coelho. Antes que o caixa pudesse avisá-lo, se é que algum caixa estaria disposto a avisá-lo, ele descobre que a torneira da tal pia está com defeito e, assim que acionada, despeja água para todos os lados. Especialmente na parte da frente de sua calça. Onde produz uma mancha escura ovalada.
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Bobagens Internéticas

"Os meninos de hoje têm uma espécie de secura em seu imaginário. Passaram a ser consumidores de uma coisa que já vem pronta, empacotada. Deixaram de ser produtores de si mesmos." Mia Couto O Joseph Carl Robnet Licklider, que não tinha mais nada de importante para fazer no MIT, resolveu que seria possível estabelecer um sistema mundial de comunicação instantânea. Isso nos idos de 60. Verdade que o patriota aí de cima via no tal sistema um remédio para evitar a comunização dos States. Tanto que vendeu a idéia a ninguém menos do que o Pentágono. Como o comunismo saiu de moda, eis-nos vítimas da Internet. Tudo culpa do J.C. Falo do homem do MIT evidentemente. E tome esse festival de besteiras que nos caem na rede diariamente. Há quem nos envie cinco ou seis mensagens no mesmo dia, fórmula excelente para que o destinatário, sendo eu, apague todas sem abrir nenhuma. Em um desses informativos internéticos aprendi umas tantas coisas bem interessantes, o que serviu para mostrar o tamanho de minha ignorância. Faça o teste você também e veja se sua cultura geral já lhe havia permitido saber que: 01 - O nome completo do Pato Donald é Donald Fauntleroy Duck. 02 - Em 1997, as linhas aéreas americanas economizaram US$ 40,000.00 eliminando uma azeitona de cada salada. 03 - Uma girafa pode limpar suas próprias orelhas com a língua. 04 - Milhões de árvores no mundo são plantadas acidentalmente por esquilos que enterram nozes e depois não se lembram de onde as esconderam. 05 - Comer uma maçã é mais eficiente que tomar café para se manter acordado. 06 - As formigas se espreguiçam pela manhã, quando acordam. 07 - As escovas de dente azuis são mais usadas que as vermelhas. 08 - O porco é o único animal que se queima com o sol, além do homem. 09 - Ninguém consegue lamber o próprio cotovelo. 10 - Só um alimento não se deteriora: o mel. 11 - Os golfinhos dormem com um olho aberto. 12 - Um terço de todo o sorvete vendido no mundo é de baunilha. 13 - As unhas da mão crescem aproximadamente quatro vezes mais rápido que as unhas do pé. 14 - O olho do avestruz é maior que seu cérebro. 15 - Os destros vivem, em média, nove anos mais que os canhotos. 16 - O "quack" de um pato não produz eco, e ninguém sabe porquê. 17 - O músculo mais potente do corpo humano é a língua. 18 - É impossível espirrar com os olhos abertos. 19 - O "j" é a única letra que não aparece na tabela periódica dos livros de química. 20 - Os chimpanzés e os golfinhos são os únicos animais capazes de se reconhecer na frente de um espelho. Pronto. Graças ao J.C. e ao Pentágono, você agora está mais culto do que estava há meia hora. Acha pouco? Outro desocupado me enviou uma série de "Perguntas irrespondíveis", das quais destaco estas que partilho com meus leitores: 1. Por que os jogadores de tênis pedem desculpa quando a bola, antes de bater por duas vezes na quadra adversária, toca na rede? 2. Por que os filmes de batalhas espaciais têm explosões tão barulhentas, se o som não se propaga no vácuo? 3. Se depois do banho estamos limpos, por que lavamos a toalha apenas molhada? 4. Por que as luas dos outros planetas têm nome, mas a nossa se chama apenas Lua ? 5. Quando inventaram o relógio, como sabiam que horas eram, para poder acertá-lo ? 6. Se "É Proibido Pisar na Grama", como diz a placa, como aquela placa foi colocada no meio do gramado ? 7. Se todos os espectadores de uma partida de futebol estão a ver qual o jogador que entrará em campo, por que seu número aparece na placa, juntamente com a do jogador que será por ele substituído? E há, é claro, também as "histórias verdadeiras", como a que reproduzo a seguir, que o remetente jura haver ocorrido com ele, o de que eu duvido. Diz que o tal remetente, viajando pelo interior do país, viu um plantel de vacas muito bonitas. Algumas com manchas pretas e outras com manchas vermelhas. Aproximou-se do homem que ali estava e perguntou-lhe: - Qual a raça dessas vacas? O homem interpelado, com seu jeito simples, respondeu com outra pergunta: - Quais vacas? - As de manchas vermelhas, responde o turista. - Essas são holandesas, responde o camponês. - E as de manchas pretas? indaga o turista. - Também são holandesas, responde o outro, rodando o chapéu na mão. - E quanto dão de leite por dia? insiste o turista curioso, a esta altura já fora do automóvel. - Quais? indaga o caboclo, sempre girando o chapéu na mão. - As de manchas vermelhas, responde o turista, já denotando certa impaciência. - Essas dão uns 20 litros de leite por dia em média, diz o interiorano. - E as com manchas pretas?, torna o turista - Essas também dão 20 litros, responde o caboclo, continuando a rodar o chapéu que traz na mão. O turista se irrita: - Sempre que eu lhe pergunto alguma coisa você me responde "quais?" e depois me diz "também". Por que é que você me responde desse jeito? O caboclo, meio sem jeito: - É que as vacas manchadas de preto são minhas. Volta o turista às suas perguntas: - E as de manchas vermelhas? E o caboclo, sempre rodando o chapéu na mão: - Também são minhas. Acho que foi por isso que aqueles terroristas tentaram atirar o avião sobre o prédio do Pentágono.