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Circus

Crônicas e reflexões.

Adauto Suannes
sexta-feira, 11 de junho de 2010

Ele

"Criança tem cada uma!" Pedro Block (clique aqui) Quando falei nele (clique aqui) a primeira vez, os despeitados de plantão torceram o nariz, baseando-se na experiência que tiveram ou têm em casa. Outros, mais atrevidos, me chamaram de "avô babão", o que, na verdade, não chega a ser uma ofensa, muito pelo contrário. O tempo passou, ele foi crescendo e sua biografia sendo composta. Em seus 3 anos de idade, já tem seu computador, com o qual se exibe a todas as visitas, especialmente quando a voz misteriosa, saída do fundo daquela caixa azul ("cor-de-rosa é pra menina, fofó" esclareceu ele, precocemente preconceituoso, quando levado pela avó paterna à loja onde escolheria tal presente) bate palmas e diz "muito bem! Você acertou a resposta", tem sua biblioteca (que certamente tem mais livros do que a da candidata ex pectore, que é levada pra baixo e pra cima pelo "cara", tal como, aliás, faz o Felipe com algum de seus bonecos de pano, mais simpáticos do que ela) com vários volumes, cujo conteúdo ele esclarece para quem se dispuser a ouvi-lo, repondo-o depois no lugar devido, só faltando dizer que tem noções de biblioteconomia e de ubicações. Dia desses, quando a avó materna exibiu-lhe uma cesta com belas frutas que acabara de trazer-lhe de Monte Alegre, onde, com o Ivã, é vizinha de meu preclaro amigo Azevedo Franceschini, ele não teve dúvidas: tirou-as todas e as recolocou de volta à cesta, uma a uma, contando-as, para espanto da avó: one, two, three etc. e tal, twenty. Nada de mais. Hoje em dia, qualquer criança de 3 anos fala inglês, como sabemos. A questão é a pronúncia britânica que ele empresta a seu discurso. Andando com a avó pelo Parque do Ibirapuera, algo chama sua atenção. Ele vai até ali adiante e vem andando com os olhos pregados no chão. Volta até lá e vem até cá. "Que se passa, Felipe?" diz ela. "Fumigas. Elas vêm de lá e entram neste buraquinho. Acho que aqui é a casinha delas." "E quantas você viu?" "Six, fofó." E, mostrando cada dedo: "One, two, three, four, five e six. Six fumigas, fofó." Tudo com a maior naturalidade. A troca do v pelo f justifica uma consulta à fonoaudióloga. Depois de muita conversa ela passa a exibir-lhe fotos de objetos e animais. Ele vai identificando cada objeto e cada animal à medida que lhe são exibidos. Só empaca na foto do rinoceronte. Fim da consulta, a fonoaudióloga cumprimenta o "rapazinho" por haver identificado todas as fotos exibidas. "Todas não. O rinoceronte eu não conhecia." Esse, pelo jeito, jamais vai entrar para a política. O pai é sampaulino roxo e, como todo pai que se preza, quer transmitir ao filho os valores em que acredita, mesmo os meramente futebolísticos. Fomos outro dia a um restaurante e, ao saber que o garçom tinha o mesmo defeito do pai do Felipe, provoquei o garoto: "Cante o hino do teu time para o homem ouvir". O pobre do garçom caiu de joelhos quando ouviu aquele esboço de gente sapecar um "Salve o tricolor paulista,amado clube brasileiro,tu és forte, tu és grande,dentre os grandes o primeiro."(clique aqui) Saiu do restaurante com um pacote de biscoitos, mimo dado pelo emocionado funcionário. Como tudo tem seu reverso, deu-se que o pai, que uma vez por semana costuma fingir que ainda tem pernas e fôlego para jogar futebol com os amigos, explicou longamente os motivos pelos quais não poderia levar o filho ao clube àquela hora. Argumento de cá, contra-argumento de lá até que o petiz aceitou o veto à sua saída de casa a desoras. Despediu-se, com ar de superioridade, do José Francisco e saiu, em direção ao quarto, cantarolando, mais afinado do que muita torcida por aí: "Salve o Corinthians,o campeão dos campeões,eternamente ..."(clique aqui) Quando tem fome, simplesmente abre o armário ou a geladeira e faz sua própria refeição. Quando não, orienta a avó: "é só ponhar água naquele copo grande, três colheres de leite em pó, chacoalhar bem e está pronta minha mamadeira". O ponhar é por conta da Neide, com quem ele aprendeu que o tanque do apartamento tem o apelido de açude. Tem já suas noções de higiene. A mãe tomava refrigerante num copo e notou os olhos do guri fixados no copo. Esticou o braço em direção a ele, indagando: "Quer um gole?" E ele: "Quero, mas num copo limpo." Ele deve ter lido na Enciclopédia Britânica os riscos de contaminação pela saliva. Sobre o mesmo tema: precisando fazer xixi, pediu a alguém que lhe abrisse a porta do banheiro, sendo atendido. A pessoa, em natural complemento, pretendeu auxiliá-lo quanto ao mais. Foi dispensada. "Pode deixar que eu xei fazer". Levantou a tampa do vaso sanitário, baixou o shortinho, depois a cueca com a estampa do Batman, direcionou devidamente o pênis, exerceu o prazeroso ato da micção, deu as três balançadinhas finais, subiu a cueca, depois o short e saiu do banheiro. A tia indagou: "Mas você não vai lavar as mãozinhas?" E ele, sem perturbar-se: "Por que? Meu pintinho está limpo." Esse é o Felipe, racional a mais não poder. A avó contava-lhe a história de um rei, que morava num castelo, que ficava no alto de uma montanha, de onde ele saía montado num cavalo alado, o Pégaso. E ele, contestando a fábula: "Mas cavalo não voa, fofó. Quem voa é paxarinho!" Quer vê-lo perder o eterno bom humor? Interrompa seu sono. A Neide, que cuida dele desde que nasceu, cometeu essa imprudência dia desses. Ainda sonolento, estalou um tapa de protesto no rosto da moça, que, fazendo cara de muchocho, ameaçou renunciar ao cargo. "Se você continuar a me tratar assim, vou cuidar do Mateo, que não faz essas coisas." Ele, sem demonstrar o menor abalo com a ameaça, definiu as coisas, referindo-se ao primo, de míseros ano e meio de idade, em termos claros: "O Mateo é bebê, Neide. Ele ainda não anda e gomita quando toma mamadeira." A Neide, espantada, para não perder a autoridade: "Então me prometa que não me baterá mais." E ele, sugerindo o que será o futuro argumentador dos fóruns paulistas: "Xó xe voxê prometer não me acordar mais assim."  
sexta-feira, 28 de maio de 2010

Grandes exemplos

  "Pedro Conde Filho, ex-aluno da faculdade, diz lamentar a reação dos alunos e afirma que não esperava os protestos contra o nome de seu pai. "A faculdade precisa se modernizar, mas o Estado não tem condições de arcar com isso. Por que ex-alunos bem-sucedidos seriam impedidos de colaborar? Muitas faculdades, no Brasil e no mundo, adotam esse modelo. Agora, não dá para pedir contribuição e não dar nada em troca." Folha de S.Paulo, 14/5 Fui aluno, dentre outros luminares, do inesquecível professor Goffredo da Silva Telles Junior. Você tem ideia de quem foi o Goffredo? Ainda não se vê o nome dele em alguma porta da faculdade, mas isso é questão de sou menos. Goffredo (clique aqui), jovem e tímido, pouco mais velho do que a maioria de nós e bem mais novo do que alguns de nossos colegas da turma de 60, o Jafet, por exemplo, abriu-nos as portas da percepção para um mundo encantado, que existia mais em sua imaginação de sonhador do que na dura realidade que viríamos a conhecer depois de formados. Como sua matéria era Introdução à Ciência do Direito e como o Pinto Antunes dava aulas de Economia, não faltava quem dissesse, maldosamente, que as moças, poucas naquela época, não gostavam da Economia do Pinto, preferindo a Introdução do Goffredo. Falava-nos ele da importância do Direito na vida das sociedades, tanto que tinha ele, o Direito não o Goffredo, uma característica, que o Vadim da Costa Arsky, compositor que, dente outros sucessos musicais, é autor do hino do CPOR, imortalizou num sambinha de breque: era um imperativo atributivo. Ou seja, fez? pagou! Santa ingenuidade, Batman. A sonhadora ideia era a seguinte: quando a lei reconhece que alguém tem o poder de desfrutar de determinado bem da vida, seja ele um sorvete de coco, seja ele a direção de uma entidade qualquer, a lei reconhece também que, se alguém quer lamber o meu sorvete sem minha autorização, ou vem a revogar indevidamente, quando no exercício eventual daquela presidência, algum ato meu, realizado por mim no exercício da presidência da Escola de Samba Unidos de Piraporinha, tenho eu o poder de chamar a autoridade judiciária de plantão e esta, certamente, dará concretude àquilo, observando o que os pais da pátria inglesa disseram em latim mesmo: "ne corpus liberi hominis capiatur, nec imprisonetur, nec dissuasietur, nec utlagetur, nec exsuletur, nec aliquo modo destruatur, nec rex eat vel mittat super eum vi, nisi per juditium parium suorum vel per legem terrae", coisa que o Bispo William Stubbs, que também era historiador, traduziu para língua de gente viva, quando o texto assim ficou redigido: "no freeman shall be taken, or imprisioned, or disseised, or outlawed, or exiled, or any wise destroyed". Ou seja, justiça pelas próprias mãos? nem pensar. Em outras palavras, o poder de desfrutar do tal bem da vida traz a tiracolo um outro poder: o de invocar a autoridade judiciária para que esta, em prazo razoável, diga quem tem razão, asseguradas umas tantas garantias aos contendores, mesmo porque "no man, of what state or condition soever he be, shall be put out of his lands, or tenements, nor taken, nor imprisioned, nor indicted, nor put to death, without he be brought in to answer by due process of law". Leram bem? "Prazo razoável". Advertia-nos ele que longe estava o tempo em que "judges were the neutral protectors of an accused's right and the potential threat to order was too great to allow the obfuscation of lawyers to delay or deny justice". Ou seja, nada de advogado no processo para procrastinar o feito, retardar o julgamento e negar a realização da justiça. Coisa do tempo da sacrossanta Inquisição. Um tal Jacques Crokaert, quem quer que tenha sido, deslumbrado a mais não poder, comparava os reis ingleses a um semi-deus: "Voici donc un homme, un homme comme les autres, que arrive dans l'immense nef de Westminster. Il n'est encore revêtu d'aucune dignité. Mais l'onction saint fait de lui le délégué de Dieu, l'interprète du Seigneur sur cette Terre; il se crée alors un lieu mystique entre le Pouvoir, que est d'essence divine et y trouve sa pleine justification, et la Divinité: il est Roi par la grace de Dieu, quoique avec l'assentiment de peuples immenses". Eis que veio uma tal Magna Carta Libertatum, seu Concordia inter regem Johannem et Barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni Angliæ e o soberano (ou soberana, como comprova a imortal Elizabeth) passou a suspirar de saudade dos bons tempos em que se acreditava que the King can do no wrong. E deu no que deu. É claro que a maioria de nós não entendia patavina dessa lenga-lenga, que nem sei se foi mesmo com ele que aprendi. O fato é que um de nós, atrevido a mais não poder, indagou-lhe: "Caro mestre. Se a toda regra descumprida segue-se a aplicação da respectiva sanção, para, com isso, manter-se a sociedade, como ficará a sociedade na seguinte hipótese: para efeitos eugênicos, baixa-se uma lei dizendo que toda pessoa deve matar outra pessoa, sob pena de ser condenado à forca. Assim, todos os moradores desse hipotético país passarão a cumprir a lei. B mata A, C mata B e assim vai até que Z mata Y. Quem sobra nessa sociedade?" Ele teria dado um tímido risinho e balançado a cabeça para a esquerda e para a direita sucessivamente. "Imagino os advogados, os juízes e os promotores que sairão dessa turma" terá ele pensado. O fato é que hoje temos muitos daqueles alunos pontificando por aí, alguns já encontrei sentados em banco de jardim, à espera de que a geração atual venha a reconhecer sua importância, batizando-se salas e mais salas com seus excelsos nomes, menos a do térreo, fundão da direita, que nossa irreverência chamava de sala Alexandre Correia, onde se liam poemas maravilhosos, como este: "Tenho andado pelo mundo / nunca vi banheiro assim. / Não sou eu que mijo nele, / ele é que mija ni mim". Ou este, de um tal O. Bilac: "Ora, direis, ouvir estrelas. / Certo perdeste o senso. / Se desejas mesmo vê-las / Por que não metes a cabeça na parede?" Logo logo teremos ali sala Zé Celso Martinez Correa, sala Renato Borghi, sala Amir Haddad e sei lá quantos mais que tiveram o bom senso de entregar o diploma ao pai e ir interpretar noutra freguesia, inspirados certamente no Paulo Autran (clique aqui), patrono deles todos. É quase certo que, a exemplo daquele personagem do Guy de Maupassant (ou outro escritor francês, talvez o Prosper Mérrimée, todos eles colegas do Modesto Carone, mais um não-advogado da gloriosa turma de 60 e tradutor de um tal de Kafka, que, coincidentemente, entendia de processo judicial como poucos), na falta de l'argent, eles, felizes da vida, resolvam retribuir tal justa homenagem ("não dá para pedir contribuição e não dar nada em troca", eis a regra de ouro do franciscanismo moderno) com cabriolas e saltos mortais. Acho que vou sugerir isso ao meu prezado amigo Antonio Magalhães Gomes Filho, zelador atual de nossas Arcadas.  
sexta-feira, 21 de maio de 2010

Pontos de fuga

  Lembro-me de Ching-Tsu como quem se apega a um frágil galho de árvore para tentar escapar da correnteza, mesmo pressentindo que ele não resistirá por muito tempo, a água é muita e minhas forças já não são o que eram. Ching-Tsu, com seu olhar misterioso, que o próprio nome sugeria, seu corpo bem torneado, qual o de um animal selvagem, ágil qual um felino. Cabelos negros, que as fugas constantes, as correrias loucas, as aventuras por becos e ruas faziam desfraldar ao vento, bandeira de revolta e coragem. Seu sorriso largo, repuxando ainda mais os olhos, incisões simétricas sob as sobrancelhas bem desenhadas. Neste cubículo gelado, enquanto tirito de frio e de indignação, aquele nome traz um calor maior do que o das labaredas do colchão incendiado na cela produziam até há pouco. Sinto, pelo tato, que as feridas já cicatrizaram. A língua, roçando os dentes, me revela a presença de alguns tocos na gengiva, ainda dolorida. Sorrio, pensando menos no preço do meu atrevimento do que no prazer sentido em razão dele. E paguei com gosto. Pagaria com todos os dentes, que o prazer merecia. O riso dos seus colegas de farda, diante do meganha com a cara cuspida, a explosão de seu ódio que se seguiu a isso, socos e mais socos, a fúria de um animal, ou de um insano, que a irresponsabilidade e a impunidade tornaram ainda mais louco. A lenta perda da consciência, os golpes, agora distantes, que não me diziam mais respeito, como se o corpo socado não mais me pertencesse. O vazio. A porta de ferro não deixa passar luz alguma, nem mesmo junto ao chão. A grade de iluminação, se aquilo pode ser chamado de iluminação, reflete a luz do corredor, quando alguém acende. Esse acende-apaga ocorre com freqüência, mas a tempos variados, de modo que nuca sei se é dia ou se é noite. Atualmente, a luz está apagada mas minha falta de sono me faz supor que seja dia. Grito várias vezes, dizendo coisas desconexas. Menos para ser ouvido, quem me ouviria?, do que para saborear o retorno de minha voz. Modulo a voz, buscando somar novos sons ao som que retorna das paredes de cimento. Assustados pelo som, ou atraídos por ele, pés miúdos correm daqui para ali. Suponho que sejam ratos entrando ou saindo da cela por algum buraco no chão. Silencio. Os pezinhos continuam a correr, riscando o chão com as unhas. Tento descobrir pelo som quantos ratos seriam. Dois? Três? Como ecos, os sons dos passos miúdos ora estão num canto, ora em outro canto do cubículo. Procuro adivinhar de onde virá o próximo som, apostando comigo mesmo. Suponho que os ratos estejam rindo de minha tolice. Volto à realidade dos primeiros pensamentos, como a recriminar-me por haver-me esquecido de Ching-Tsu. Acho ridícula essa vergonha. Como se eu tivesse o dever de lembrar-me sempre de alguém que nem sei onde anda, se é pessoa viva ou morta. Como se o amor. Fixo-me, porém, na lembrança de Ching-Tsu, para afastar o pensamento incômodo, que teima em penetrar em meu cubículo. Ching-Tsu, uma lembrança amarelada, uma imagem que se vai desbotando em minha mente. Luto para conservar ainda as emoções de nossos primeiros contatos. Seu rosto liso, que eu acariciava com um misto de atração e reverência. Aquela juventude que me fascinava. Fecho os olhos para vivenciar o devaneio. Eu preciso fechar os olhos para não ver algo nesta escuridão? Abro e fecho os olhos, procurando notar se o rosto de Ching-Tsu se altera. Tenho pálpebras feitas de vidro. Tento levantar-me e sinto o corpo dolorido. Apoio as mãos no chão, mas o esforço é inútil. Peso toneladas. Ching-Tsu, Ching-Tsu, sussurro, como se rezasse. Solto o corpo e sinto, à minha volta, o chão pegajoso. Só então começo a sentir o mau-cheiro. Tenho o olfato nas palmas das mãos. Tateio-me, emporcalhando-me ainda mais. Essa tomada de consciência me traz desespero, diante de minha impotência. Sou um monte de feridas deixado em um canto qualquer de um lugar qualquer. Quem me encontrará aqui? Grito e torno a gritar. Por milagre, aparecem no alto da parede as silhuetas da grade de ventilação. Tento ouvir passos. Para iludir-me penso que o visitante está calçando tênis. Ou estaria descalço? Grito novamente. A luz continua acesa, mas não ouço qualquer ruído. Parece-me agora ver um anjo minúsculo descendo nas réstias de luz. O anjo tem o rosto de Chig-Tsu. Tem o mesmo corpo atlético de um anjo exterminador, sem a espada na mão. Choro, e a figura de Ching-Tsu baila nos meus olhos. Eu te amo, Chig-Tsu. Nunca lhe disse isso, mas quero dizer isso agora antes que seja tarde. Lutei contra esse pensamento incômodo mais do que contra todas as muralhas que tentavam nos prender. Tentei fugir desse sentimento estranho, que me apequenava e me enqrandecia, que me aturdia e me animava. Lutei contra tantos, para não lutar contra mim mesmo. Para fugir de uma luta que já estava perdida antes mesmo de começar. Eu te amo, Ching-Tsu. A luz se apaga antes que minha voz ecoe. Chig-Tsu, onde está você? Os pezinhos voltam a correr de um canto para outro do cubículo, como se quisessem responder à minha indagação. Estou em paz. Canto uma canção antiga, certamente inventando palavras sem sentido, para não perder a melodia. Revejo minha mãe, à beira de meu berço. A canção é a mesma. Cantamos em dueto.  
sexta-feira, 14 de maio de 2010

Carpinteiros e marceneiros

"Nessa casa do carpinteiro, a vida, apesar de tudo, era tranqüila, e na mesa, ainda que sem farturas de prosperidade, não faltara nunca o pão de cada dia e o mais de conduto que ajuda a alma a manter-se agarrada ao corpo." José Saramago, O Evangelho segundo Jesus CristoEditora Companhia das Letras 2005, p. 109 "A sincronicidade é um conjunto de relações acausais, com muito de caótico, na medida em que um mesmo elemento aparece repetido em sistemas diversos sem que possamos identificar o ponto de ligação entre eles, que, à primeira vista, nos parecem independer um do outro." Carl Jung, Sincronicidade: um Princípio de Relações Acausais, Ed. Vozes, 2005. V. Marie-Louise von Franz, Adivinhação e Sincronicidade - A Psicologia da Probabilidade Significativa, Ed. Cultrix, 1980 Os que de mim tinham algum conhecimento profissional, desses mais íntimos, indagavam-me que estava eu fazendo ali no Tribunal de Alçada Criminal, se nunca antes eu demonstrara pendor pela matéria que ali corria. Respondi-lhes então, e o faço agora que ninguém perde tempo a perguntar-me isso: foi o papa João XXIII. Explico: tentando entender o incompreensível sentido da vida humana, sempre dividi meu tempo em leituras várias, algumas dizendo respeito àquilo que, à falta de melhor palavra, denominam religião. Como nasci no Ocidente, teria enormes dificuldades em aprofundar-me nas religiões orientais, por mais que me atraíssem (clique aqui). Fiquei no Cristianismo, tentando distinguir as verdadeiras re-ligações de suas caricaturas, que proliferam por esses cantos de Deus, graças principalmente à televisão. João XXIII foi uma dessas figuras maiúsculas da religião católica, atraindo-me principalmente pelo aggiornamento por ele proposto, coisa que o papa atual faz de tudo para transformar em lixo, ou, pelo menos, em vecchiume, meras velharias. Não fosse ele teutônico e de formação militar, certamente diria a respeito do ecumenismo: una bruta fezaria. Eu tremia com o aviso papal - "estai atentos aos sinais dos tempos" - especialmente como vem exposto na Mater et Magistra, publicada há 50 anos. Deu-se que, pelo justo critério do merecimento da antiguidade, sem dever favor a político algum nem a má consciência de haver presenteado mulher de desembargador, fui parar em nosso falecido mas inesquecível TACrim. Ali certamente eu ficaria apenas alguns meses, talvez semanas ou, volente Deo, meros dias. E veio o primeiro dia de sessão. Era uma revisão criminal. Relator e revisor divergiam, um acolhendo para absolver e o outro mantendo o requerente atrás das grades. Como terceiro juiz, fiz o que qualquer juiz minimamente consciente costuma fazer: pedi vista dos autos. No dia seguinte, lá estão sobre minha mesa de trabalho os autos do tal processo. Abro-o e tenho um choque. Um choque que me fez jamais deixar de ser juiz criminal, a ponto de aposentar-me, em silencioso protesto, porque, promovido a desembargador, tive recusado (única vez em toda a história do Tribunal de Justiça de São Paulo) meu requerimento de transferência de uma câmara civil para uma câmara criminal. O que se dizia ali é que a 5ª Câmara do TACrim era composta de juízes novidadeiros, sendo o corifeu ninguém menos do que este que vos fala, que, por sinal, nem sei o que quer dizer isso. A barca que levava fofoca era a mesma que fofoca trazia: "Um dos desembargadores ponderou que a seção criminal é composta de juízes que não mais estão na idade de voltar para os bancos escolares." "Ou juiz criminal ou pensionista do Estado" teria eu dito aos meus colegas desembargadores, se me dessem alguma satisfação a respeito de seu veto a meu nome, não me bastando o consolo de alguns amigos ("você é melhor juiz civil do que criminal ao ver deles"). Consumou-se, por larga maioria, o descabido veto e resolvi presenteá-los com minha vitalícia ausência, depois de por em mesa todos, absolutamente todos os processos que estavam até então comigo para estudo e voto. Tenho plena convicção de que eles também não estavam mais na idade de fazer um tal tour de force, trabalhando durante todos os dias do mês de julho, manhã, tarde e noite, para não ter de restituir autos sem voto. Quantos deles podem dizer o mesmo? Encerrando: o nome do réu cuja libertação eu iria conceder ou não era Jesus. Passam-se décadas e cai-me nas mãos um acórdão que me faz chorar todas as vezes que o leio e que honra o Tribunal de Justiça de São Paulo, sua 36ª. Câmara Cível e, acima de tudo, seu relator, o desembargador José Luis Palma Bisson (clique aqui). Eu diria uma vez mais, se me permitisse o amigo Cleanto, ser algo digno de ir para a gaveta das sincronicidades junguianas, que ele anda a colecionar. Ei-lo: "Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna. Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador - legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em pau-brasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina. Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é. O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante. Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres. Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou. Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos... Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir. Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal. É como, marceneiro, eu voto." Precisa comentar?
sexta-feira, 7 de maio de 2010

Ser poeta

  "A poesia não nasce da inspiração; nasce do espanto." José Ribamar Ferreira Gullar Perguntam ao poeta como é possível ele ser cronista, apresentador de televisão, tocar outros 97 instrumentos e ainda encontrar tempo para fazer poesia. "Ela que consiga seu espaço", responde ele, com aqueles dentes encavalados e aquela cabeleira branca despejando-se-lhe pelos ombros abaixo, argêntea cascata de ideias mil, como diria algum colega dele sem muita inspiração. A técnica mata a poesia, porque lhe impõe regras, tornando a escada mais importante do que a subida, a moldura mais importante do que a pintura, o músico mais importante do que as notas que lhe saiam da alma, diz ele. "Mas aquilo não é poesia", afirma alguém diante dos versos de pé quebrado que todos já cometemos. Mas quem se atreverá a dizer o que é e o que não é poesia? O Chico, por exemplo, diz, modestamente, que letra de música não se confunde com poesia. Logo ele que musicou poesias do Vinicius. O caminho para a Distância, por exemplo, primeiro livro de poesia do poetinha, surgiu em 1933. Já Orfeu da Conceição, primeiro disco da dupla Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim, surgiu em 1956, quando o Chico tinha míseros 12 anos de idade, pois nasceu em 1944. E não é do Chico este poema? Amou daquela vez como se fosse o último, beijou sua mulher como se fosse a únicae cada filho seu como se fosse o pródigo.E atravessou a rua com seu passo bêbado, subiu a construção como se fosse sólido, eergueu no patamar quatro paredes mágicas: tijolo com tijolo num desenho lógico,seus olhos embotados de cimento e tráfego. Sentou pra descansar como se fosse um príncipe. comeu feijão com arroz como se fosse o máximo.Sonhou matar a fome, então, nuns seios túrgidos.No catre remendado ele se achou um príncipe:por manto de arminho ele vestiu a túnica,que fora do seu pai, quando servira o exército,morrera e lhe deixara como herança única. Buzinas na avenida ressoaram lúgubres:do sonho não voltou porque morrera eufórico;no rosto inda se via um como riso cínico,no gesto inda se via uma postura cívica.Viveu só por viver, como se fosse autômato. Epa! Tem penetra no baile. Que o poeta é um fingidor (clique aqui) disse-nos um dos inúmeros Fernandos Pessoas, tantos que nem sabemos se já fomos apresentados a todos. Eis um poema: "Morre um pouco de mimno sepulcro de meu pai. Aquele olhar tão pessoal,não trago eu no meu rosto? A minha voz, meu sorriso, acaso são tão só meus? A sabedoria dos tempos,a onisciência que ele tinha,herdar como? Partes de mim hoje dormem sob a lápide,na partilha da partida final,entre as flores plásticas das alamedas- homenagem dos que têm menos tempodo que saudade -. Sinto-me ficado alienquanto volto. Ouço aindaas pás socando a terra e imagino os coveiros cobrindo muito maisdo que supõem." Quem escreveu isso? Quando mostrei esse poema a um amigo, desses amigos a quem se podem mostrar certas intimidades, como a cicatriz no peito depois das safenas, sabedores de que não se limitarão ao elogio pegajoso nem à censura idiota, ele, emocionado, confessou que havia tentado exprimir isso desde que perdera o pai, mas não havia conseguido fazê-lo. "Obrigado por me libertar dessa angústia", concluiu, emocionado. Como funciona isso? Há quem não suporte Adélia Prado. E têm toda razão. Ela tem o desplante de viver aquilo em que acredita! Quem de nós consegue? "Minha mãe achava estudoa coisa mais fina do mundo.Não é.A coisa mais fina do mundo é o sentimento.Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,ela falou comigo:'Coitado, até essa hora no serviço pesado'.Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.Não me falou em amor.Essa palavra de luxo." "E isso lá é poesia?", me indaga o entendido. Então veja isto, digo-lhe procurando não perder a paciência: "Há dentro de mim uma paisagementre meio-dia e duas horas da tarde.Aves pernaltas,os bicos mergulhados na água,entram e não neste lugar de memória,uma lagoa rasa com caniço na margem." E a rima? insiste o entendido. Pois então tome esta, onde a rima está presente: "Eu fui no Itororó,beber água e não achei.Achei bela morena, vim sozinho, ela era um gay". Ele ri de minha provocação. Se prefere uma de que eu não seja o suspeito autor, então aí vai: "Batatinha, quando nasce,esparrama a rama pelo chão;já a menina, quando dorme, põe a mão no coração." Feliz com minha escolha?  
sexta-feira, 30 de abril de 2010

Ela

"Sou uma mulher dura cercada por ministros meigos." Revista Época, Edição de 11 de julho de 2009citada no site abaixo Cada um tem o biógrafo que merece. Com o conteúdo que o autor entende adequado. A célebre biografia de Jesus, de autoria de Daniel-Rops, editada por Luis de Caralt em Barcelona, Jesús en su Tiempo, derrama-se por mais de 630 páginas de bom tamanho. Só a introdução, na qual ele explica como conocemos a Jesús, vai da página 07 à página 76, iniciando-se com a célebre frase "La existencia de aquel hombre es un hecho indiscutible." E, ao fazer as indicações bibliográficas, dentre as fontes consultadas por ele, desculpa-se Daniel-Rops: "Una biografia de la vida y de la doctrina de Jesús, incluso sumaria, es apenas concedible; harían falta para ello libros interos. Nos limitamos aqui, por tanto, a indicar las obras que nos han sido útiles y sobre todo las que pueden permitir al lector proseguir más adelante sus estudios." A Internet, como sabemos, é o instrumento que todos os preguiçosos do mundo pediram a Deus. Eu que me esgoelava baixando minha Barsa do alto da prateleira quando a ignorância pesava muito, hoje vou à Internet e, num piscar de olhos sei qual é a capital da Zâmbia, algo muito útil nesses dias de globalização. Ou o ano em que o Randolph Scott e o Cary Grant se separaram. Ou para saber o nome que se dá ao desvio de bens públicos para si ou para terceiros, por exemplo. A Wikipédia, como sabem alguns, é uma enciclopédia sensacional: você escreve sua própria biografia, coloca lá, e o mundo inteiro fica sabendo o que você acha de você. É só tomar cuidado para não deixar passar alguma frase ou palavra que traiam seu entusiasmo pelo próprio umbigo. Enviam-me a biografia de uma senhora que, tempos passados, chegou a cativar-me. Já que o sexo masculino tem produzido os políticos que temos, os quais, juntados, poderiam ser úteis num desses vasos de sete ervas que colocamos do lado de fora da porta, para espantar o azar, quem sabe valeria a pena variar. Sempre achei que era hora do ingresso de pessoas do sexo feminino na política e na magistratura, muito embora meu amigo e colega Braguinha me comprovasse, de Bíblia em punho, que há absoluta incompatibilidade entre o sexo feminino e a chamada coisa pública. Depois da Marta em São Paulo, a Benedita em Brasília e a Ieda no Sul, fico a cismar se o homem não teria razão. A propósito: alguém aí conhece alguma juíza que vestiu a toga mas deixou a arrogância no armário? Não quero dizer que não exista. Iaque e ornitorrinco, segundo dizem, também existem, mas esses eu só vi em fotografia. Pois a tal autobiografada é filha de um advogado e empreendedor búlgaro naturalizado brasileiro. (Que é um empreendedor? Cartas à redação.) Seu pai manteve estreita amizade com a poetisa búlgara Elisaveta Bagriana, foi filiado ao Partido Comunista da Bulgária e frequentava os círculos literários nos anos 1920. (Que é "manter estreita amizade"? Quais reflexos disso na biografia da moça? Ela alguma vez frequentou "círculos literários"? Quais? Idem.) Ele chegou ao Brasil no fim da década de 1930, já viúvo, tendo deixado um filho em sua terra natal, Luben, morto em 2007, mas se mudou para Buenos Aires e anos depois retornou ao Brasil, fixando-se em São Paulo, onde prosperou. (É importantíssimo que ao redigir sua própria biografia você deixe de lado familiares que só são importantes para você. Que interessa a alguém se meu tio morreu aos 59 anos de idade de escarlatina?) Em uma viagem a Uberaba conheceu Dilma Jane Silva, moça fluminense de Nova Friburgo, professora de vinte anos, criada no interior de Minas Gerais, onde seus pais eram pecuaristas. Casaram-se e fixaram residência em Belo Horizonte, onde tiveram três filhos. (Qual a importância de eu saber que a mãe da moça era de Nova Friburgo e que seus pais eram pecuaristas? Mais cartas à redação.) Pedro Roussef trabalhou para a siderúrgica Mannesmann, além de construir e vender imóveis. (Que significa "trabalhou para"? E ainda tinha tempo para "construir" imóveis!) A família vivia em uma casa espaçosa, servida por três empregadas, onde as refeições eram servidas à francesa. (Mensagem embutida: "Tão pensano que eu sou uma pé rapada ou o quê?") Os filhos tiveram uma formação clássica, tendo aulas de piano e francês. (Que você entende por "formação clássica"? Ibidem.) Vencida a resistência inicial da sociedade local contra os estrangeiros, passaram a frequentar os clubes e as escolas mais tradicionais. Incentivada pelo pai, a moça adquiriu cedo o gosto pela leitura. Falecido em 1962, Pedro Roussef deixou de herança por volta de 15 imóveis de valor. (Era, de fato, um homem que sabia juntar dinheiro.) Régis Debray escreveu Revolução na Revolução, livro que incentivou Dilma a ingressar na luta armada. (Epa! Filha de um ricaço renuncia a tudo depois de ter lido um único livro? Aí tem. Me explica, Freud.) Em 1965, ao ingressar no ensino médio, ela trocou o conservador Colégio Sion pelo Colégio Estadual Central, escola pública mista onde o movimento estudantil era ativo, especialmente por conta do recente golpe militar. (Se ela nasceu em 1947, em 1965 quantos anos teria? E bastou o livro do Debray para convertê-la?) De acordo com ela (sic), foi nesta escola que ficou "bem subversiva" (sic) e que percebeu que o mundo não era para "debutante", iniciando sua educação política (sic). Em 1967, ingressou na Política Operária - POLOP, uma organização fundada em 1961, oriunda do Partido Socialista Brasileiro. Seus militantes logo viram-se divididos em relação ao método a ser utilizado para a implantação do socialismo: enquanto alguns defendiam a luta pela convocação de uma assembleia constituinte, outros preferiam a luta armada. Dilma ficou com o segundo grupo, que deu origem ao Comando de Libertação Nacional (COLINA). Para Apolo Heringer, que foi dirigente do COLINA em 1968 e havia sido professor de Dilma na escola secundária, a jovem escolheu a luta armada depois que leu Revolução na Revolução, de Régis Debray, um francês que havia se mudado para Cuba e ficado amigo de Fidel Castro. (A biblioteca da moça, como se vê, era vasta, composta de quase dois volumes. E Regis Debray (clique aqui) é apenas "um francês", mero figurante, como um tal de Daniel Marc Cohn-Bendit) Foi nessa época que conheceu Cláudio Galeno Linhares, cinco anos mais velho, que também defendia a luta armada. Galeno ingressara na POLOP em 1962, havia servido no Exército, participara da sublevação dos marinheiros por ocasião do golpe militar e fora preso na Ilha das Cobras. Casaram-se em 1967, apenas no civil, depois de um ano de namoro. (Aqui estão as digitais da autobiografada: é importante ressalvar que uma jovem revolucionária não casou no religioso. E que, como toda mineira, subversiva ou não, "namorou". Tão pensano u quê, uai.) Fico por aqui, que tenho coisa mais importante a fazer e, além do mais, gozo de isenção etária de pleitos eleitorais, que isso é, segundo nossos congressistas, coisa para jovens, como o Zé Dirceu. Mas, se quiser divertir-se, dê um pulinho na autobiografia da moça (clique aqui). Estando ali, repare neste mea culpa: "O site oficial da Casa Civil informava erroneamente que Dilma era mestre em teoria econômica pela Unicamp e doutoranda em economia monetária e financeira pela mesma universidade. Na Plataforma Lattes, Dilma estava identificada como mestra, com título obtido em 1979, e doutoranda em ciências sociais aplicadas desde 1998. Conforme informações da Unicamp, Dilma cumpriu os créditos (cursou as disciplinas e demais requisitos) referentes aos cursos, mas não defendeu as teses, não obtendo assim os títulos. A assessoria de imprensa da Casa Civil reconheceu que informara errado a titulação da ministra, trocando primeiro para 'cursou mestrado e doutorado pela Unicamp' e depois para 'foi aluna de mestrado e doutorado em ciências econômicas pela Unicamp, onde concluiu os respectivos créditos'." Talvez seja o caso de reproduzir a irreverência do humorista jornalístico: ela, ao fim e ao cabo, não passa di ulma grandessíssima filha de um esquema perverso e perigoso.
sexta-feira, 23 de abril de 2010

Capetas F. C.

Ao Edson Franco, com inveja Menino, tava eu na casa do seu Durvalindo, acompanhano a muié que lá foi levá uns frango de encomenda, e não é que o home me manda eu vim pra sala e me assentá? Inda ele me serve um suco sei lá di quê. E gente muita na casa. Falaro de tudo, inté que vei a hora do jogo. E eu que não via jogo de futebor des que eles desfizero o nosso Barrense efe cê, lá vão quantos ano? Os home que mataro o comendador Eustáquio já foro preso, jurgado pelo júri, ocê se alembra o pampér? Foi um tedéo. Foro condenado, nóis inté se esquecemo deles, e adespois foro sorto, imagine o tempão! Se bem que hoje cadeia não é mais pra criminoso não. Sem o comendadô fiquemo sem a usina; sem a usina fiquemo fora do futebor. Televisão, então, isso é que eu não via faiz a cara do tempo. Alembro que o meu de menor nem tinha chegado ainda, a muié só tinha me dado o Dorvar. Quantos ano ele tem hoje? Me diz: quantos ano? Pois a alembrança que eu tenho é que, adespois de nascê o segundo, nunca mais que eu vi televisão, meu cumpadre. Vô perguntá pra ele, quando vorte do quarté, em que ano ele nasceu. Pois o jogo era da finar do campeonato de São Paulo, meu compadre. Briga de cachorro grande. São duas partida: uma eles joga lá, outra eles joga cá. Soma os gors e taí o campião. Começa o jogo e aparece uns negrinho magrelo passano de cá pra lá, de lá pra cá, ca nem raio. E cadê a bola? Sei lá. Só sei que são uns moleque endiabrado, que não respeita nem idade nem fortura. Leva um tranco de um daqueles um baita, rola no chão, se alevanta, se espadana e já sai pra otra. Eita! E eles tem tudo o mermo desmazelo de penteado, parece que fartô dinhero. Eu já nem sei quar foi o capeta da veiz, dexe ele se virá que vô tentá vê o número nas costa da camisa. Nem nos tempo do Mengárvio eu vi coisa inguar. Te alembra do Mengárvio, aquele um negão que jogava o fino? Que Pelé nem mei Pelé. A arma do time da minha época era o Mengárvio. E é mais bola de lá pra cá, moleque daqui prá lá, rastera num capetinha daqueles, juiz bravo de cartão na mão, isfregano na cara daqueles homão. E lá vai otro moleque se pinchano na área e o juiz marcano pênis. Quem vai batê? Um dos negrinho capeta, é craro. Corre pra bola, faiz que vai mais não vai, golero sarta, quage bate a cara na trave, e a diaba da bola entrano de mansinho no otro canto. Cinco a zero! Cinco a zero, cumpadre. Nos meus bons tempo, treis a zero já era motivo pra acabá o jogo na porrada. Arrancava ripa da cerca e haja lombo. Home que é home não leva um desaforo desses pra casa. Como um vai oiá o fiinho adespois de uma goleada dessas? E a muié? Tem coisa mais broxante do que isso pra uma muié de jogadô de futebor? Tem não. Agaranto que não tem. E diz que inda farta o segundo jogo. Se o otro time fizé seis a zero ele é que será o campião. Acho graça. Com cinco de vantage é esperá deitado, assistino o jogo dos outro contra o desespero. Mais fácir do que isso só mijá favô do vento. Como Deus é bão, mano. Uns capeta daqueles e Deus permite que eles jogue num time com aquele nome?
sexta-feira, 16 de abril de 2010

Estados alterados

  E quem não gosta de fugir deste quase insuportável mundo, escondendo-se num outro, ainda que por breve tempo, onde não há doença, nem morte, nem guerra, nem preocupação, nem vigaristas inventando formas as mais diversas de nos enfiar a mão no bolso? Até as crianças sabem disso, pois, aparentemente sem o menor motivo, passam a girar, e girar, e girar, até perder o equilíbrio e cair dando uma eloquente gargalhada, que também não tem explicação. Deixei de frequentar baile de carnaval quando vi uns jovens imitando aquelas crianças, mas potencializando a tontura com lenço empapado sabe-se lá de quê. Ronaldinho, dia desses, foi crucificado por haver promovido uma "festa de embalo" que atravessou a noite e o dia, segundo dizem. Só ele faz isso? O Sigmund, que não era criança, carnavalesco nem jogador do Bayern de Munique, descobriu as maravilhas da cocaína, cantada em prosa e verso desde meados de 1800, chegando até a ceder seu nome a certo refrigerante cuja fórmula secreta talvez explique o número incrível de adeptos no mundo todo. Até o Papai Noel entrou na história, sendo-lhe imposta uma fantasia da cor oficial da tal bebida, que nem carro da Ferrari era. Em 1860 foi lançado na Itália o vinho Mariani, que se tornou famoso porque tinha como um dos seus bebedores habituais ninguém menos do que o cardeal Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci Prosperi Buzzi. Não conhece? E se eu disser que ele a certa altura da vida passou a chamar-se Leão XIII? Era tão fissurado no tal vinho, que chegou a condecorar seu fabricante, Ângelo Mariani. Pois dizem as más línguas que aquele Papa ainda não foi canonizado porque não conseguiu libertar-se daquele pozinho que ficava no fundo do copo do tal vinho. Pois Freud descobriu as maravilhas terapêuticas desse mesmo pó, receitando-o a seus pacientes, certamente para trazer para a luz do dia os fantasmas guardados nos porões e nos sótãos das mentes desses pacientes. O mais famoso deles talvez tenha sido Ernst von Fleischl-Marxow, que se encantou tanto pelo remédio que morreu de overdose. E olhe que nem era roqueiro nem ator de cinema com direito a Oscar póstumo. Na minha juventude, o papa era outro, Aldous Huxley, que, em 1954, publicou sua experiência com drogas que alteram a mente, principalmente a mescalina, num livro chamado As portas da percepção, que causou alvoroço por ser ele quem era, membro da elite intelectual inglesa e autor de um livro premonitório, Admirável mundo novo, publicado 22 anos antes. Experimentou outros alucinógenos, com a finalidade de "abrir a mente", inclusive o Lysergic acid diethylamide, conhecido por suas iniciais: LSD, celebrizada na Lucy in the Sky with Diamonds, dos Beatles (clique aqui). Epa! Como é que L., S. e D. podem ser as iniciais de Lysergic acid diethylamide? Isso só pode ser coisa de gente chapada. O fato é que eu sou de 37 e o ácido lisérgico é de 1938, crescemos juntos, ele fazendo mais estragos do que eu, especialmente no meio artístico, pois poucos foram os artistas que não embarcaram numa trip patrocinada pelo tal ácido. Um desses roqueiros confundiu os bolsos e cheirou as cinzas do pai, mesmo porque pedras que rolam não juntam musgo, como diz o nome do conjunto a que pertence ele. O nome do conjunto de rock The Doors, por exemplo, foi uma homenagem ao escritor. Muitos dos usuários dessas drogas não voltaram de uma bad trip. Tão alucinadas podem ser essas viagens que o produto está na prateleira dos alucinógenos, como o Ecstasy, o Peyote (ou Mescalina) e o Ayahuasca. As substâncias alucinógenas (ou psicodélicas) são de efeito imprevisível, pois formam um conjunto de experiências estimuladas pela privação sensorial, daí a semelhança com os efeitos de algumas drogas lícitas (psicotrópicos), ministradas por médicos, especialmente psiquiatras. Essas experiências incluem alucinações, mudanças de percepção e estados alterados de consciência semelhantes a sonho e êxtase religioso. Muitas religiões primitivas utilizavam esse estímulo químico em seus rituais, coisa que os entendidos, como o Mircea Eliade (clique aqui), denomina xamanismo. A questão que se coloca é: se esses produtos têm o efeito de alterar o estado da mente, podem ser utilizados em rituais religiosos sem fiscalização médica? Conheci um padre que tinha autorização especial do Vaticano para celebrar missa sem beber o vinho, pois era alcoólatra e bastava uma dose para alterar seu modo de agir. Foi preso certa vez em flagrante por haver furtado um ônibus. Certamente achando que ninguém notaria. Também conheci mais de um juiz que apresentavam a mesma doença. Aliás, o filme Coração Louco (Crazy Heart), que deu a Jeff Bridges o merecido Oscar de melhor ator este ano, aborda exatamente as possíveis consequências da descontrolada ingestão do álcool, que, tanto quanto o cigarro, sempre foram personagens constantes das produções cinematográficas, fossem norte-americanas, fossem francesas. Cito, por todos esses atores, o Humphrey Bogart, que pertencia aos dois times, só se livrando da dependência alcoólica em razão da insistência de uma atriz 25 anos mais nova do que ele, com quem, aliás, veio a casar-se, Lauren Bacall, que ele, por motivos óbvios, chamava de my baby e com quem viveu até a morte. Pois se até o cinema está revendo a cultura dos chamados vícios sociais, como justificar-se que a chamada sociedade civil feche os olhos para a utilização indiscriminada dos alucinógenos, em nome do respeito que se deve às convicções religiosas? Aliás, sendo o Brasil um Estado laico, caberia aos nossos legisladores definir o que se deve entende por religião, pois qualquer pessoa pode abrir um espaço de culto onde até outro dia era uma oficina mecânica e praticar ali o que bem entenda, em nome da constitucional liberdade de escolha religiosa. As consequências práticas disso são do conhecimento geral. Demais disso, algumas dessas religiões não têm compromisso algum com o além. O negócio (a palavra só pode ser essa) deles é com o aquém e o agora. Conheci várias pessoas de baixa condição econômico-financeira que entregavam o pouco de que dispunham aos membros dessas religiões, algumas das quais chegam a empregar leões de chácara, que, em lugar de ficar do lado de fora do templo, para evitar a entrada de pessoas inconvenientes, ficam do lado de dentro, encostados acintosamente na porta fechada, intimidando essas pessoas simples, que só sairão se vencerem aquela barreira humana ou se depositar dinheiro numa urna durante cerimônia que faz lembrar o bordão de um personagem de Chico Anísio sobre uma tal sacolinha. Só falta o pastor mandar abrir a Bíblia no Evangelho de Nelson Hungria, versículo 171. Todos sabemos de pessoas que foram lesadas por esses cristãos de fancaria, mas, ao que eu saiba, o Ministério Público de nosso Estado nunca havia tido em suas mãos as provas que andam circulando na Internet a respeito desses apóstolos de Cristo pós-moderno. Ei-las: clique aqui. Com a palavra o Dr. Fernando Grella Vieira.  
sexta-feira, 9 de abril de 2010

Adeus, menina

Desde criança ela apresentava deficiência respiratória, que os médicos diagnosticaram e batizaram de um nome complicado, com uma advertência à família: doença incurável. Prognóstico: poucos anos de vida. Quantos ? Só Deus sabe, não fosse a mãe a mulher de fé adulta que sempre foi. Entre crises de tosse e sorriso angelical no rosto, lá foi ela vivendo a vida disponível, até graduar-se. Foi cuidar de crianças. Quem não a conhecesse suporia ser uma criança brincando com crianças menores do que ela. E sempre sorrindo, incapaz de comentar suas dificuldades respiratórias. Levando vida normal, tanto quanto possível, conheceu um jovem médico, com quem veio a casar-se, produzindo o casal um belo filho, absolutamente saudável, como assegurara o pai ser possível, ante os compreensíveis temores da jovem esposa. Para quem não chegaria aos 20, aquela jovem mãe viu seu filho completar seus 8 anos. É claro que agora seu estado de saúde piorava sensivelmente, a ponto de incluir-se ela numa fila de transplante de pulmões, coisa difícil de obter, pois, embora adulta, tinha ela compleição física inferior àquela própria de sua idade. O avanço da doença agora era num ritmo assustador, exigindo reiteradas internações hospitalares, que prenunciavam o pior. O depauperamento tornara-se tal que, quando apareceram os esperados pulmões correspondentes a seu tipo físico, o médico recusou-se a tentar o implante. Ela não tinha condições de suportar uma cirurgia de 18 horas. Seria um sacrifício inútil a ser imposto a ela e um óbvio desperdício do material que poderia salvar a vida de outra pessoa. O marido, agindo mais como o esposo amoroso que sempre foi do que como o médico sereno que todos nele reconheciam, desmandou-se e interpelou em termos ácidos seu colega. Sabia, porém, que nada mais havia a fazer, como veio finalmente a reconhecer. "Mas, que é a morte senão o portal que nos leva a uma vida mais plena?" há de ter-lhe indagado a cristianíssima sogra, que ele carinhosamente chamava de mãe. Assim partiu a Paulinha, anjo de asas douradas, que a levaram para junto dos seus, de onde viera por tão breve tempo apenas para ensinar-nos o que é a vontade de viver. Uma flor a menos no carente jardim deste mundo.
sexta-feira, 26 de março de 2010

Lei de Talião (A)

  Diante de um desses crimes escabrosos, uma amiga minha, mulher de missa diária, levantava a bandeira da pena de morte. E como se tratasse de um crime de violência sexual contra criança, ela não queria menos: o pênis do réu deveria ser extirpado com um cortador de unha. Olho por olho, pênis por pênis, brinquei. Ela não achou graça nenhuma. Num filme recente, de final surpreendente, "A Vida de David Gale", volta-se a falar na pena de Talião, como fundamento da pena de morte. Há os que sustentam que Talião foi um grande legislador, que teria baixado umas tantas regras de comportamento destinadas a coibir condutas criminais, uma das quais aquela de todos nós conhecida. Não se sabe qual seu nome completo, tanto quanto jamais alguém aludiu ao nome de família de um Justiniano, ou de um Moisés. De São Pedro sabemos que nem Pedro se chamava. Era Simão, o pescador. E era filho de Jonas. Donde o nome Simão Barjonas, assim como quem diz Maria de Souza, para dizer que o marido dela é o padeiro Souza. Ou Rudolf von Jhering, para dizer que o Rodolfinho era filho do velho e conceituado advogado Jhering, mas que um dia ficaria famoso publicando o seu Kampf urns Recht, que todos nós lemos um dia. Ainda que em espanhol. Falsa cultura, nada mais. Ao que parece, a palavra "talio, talionis" era empregada no sentido de que o castigo, o talião, deveria corresponder ao dano realizado. Tal crime tal pena. Ou, dito de outra forma, uma pena que deveria ser tal e qual o dano causado. Curiosamente, ao contrário do que se pode imaginar, era, ao que dizem alguns otimistas, um princípio garantidor: ele visava a impedir que o ofendido impusesse ao ofensor, a título de pena, mal superior ao dano que havia sofrido. A igualdade no castigo (talio) era uma garantia de que o causador do dano não receberia dano maior do que o causado. Nem mais, nem menos. A fórmula clássica da lei de talião, constantemente lembrada, está prevista no Velho Testamento, cuja data de edição perde-se nos confins dos tempos: "se dois homens brigarem um com o outro, e um deles ferir uma mulher grávida, que venha a abortar, será condenado a pagar quanto o marido da mulher quiser e quanto ordenarem os árbitros. Mas se a mãe morreu da ferida, dará vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, nódoa negra (seria esperar muito que aí se escrevesse hematoma) por nódoa negra". Isso pode ser conferido no Êxodo, capítulo 21, versículos 22 a 25. Considerando que a chamada visão veterotestamentária (que é como os teólogos se referem às coisas do Velho Testamento) da Humanidade não se caracteriza pela caridade e o perdão que se tem na visão neotestamentária (Cristo seria o ômega de que Adão seria o alfa, a mostrar uma evolução do homem no caminho da amorização, para ficarmos com o velho Teilhard de Chardin, que, ao contrário do nosso Leonardo Boff, foi cumprir, não nos aprazíveis morros de Petrópolis, mas nas tundras da Ásia seu voto de silêncio obsequioso, para aprender a não colocar na cabecinha de fiéis essas coisas complicadas de evolucionismo), fica meio difícil imaginar que se pensasse em algo que não fosse vingança ao contemplar aquela regra punitiva. Já no Código de Hamurabi diz-se que, "se um homem arrancar o olho de outro homem, o olho do primeiro deverá ser arrancado" (artigo 196) e que "se um homem quebrar o osso de outro homem, o primeiro terá também seu osso quebrado" (artigo 197). Como esse código teria sido baixado pelo imperador babilônico por volta de 1.600 antes de Cristo, alguns anos antes do nascimento do Luigi Ferrajoli, fica meio difícil imaginar que as ideias do grande garantista italiano já tivessem chegado à Babilônia naquela época. Com a palavra o Salo de Carvalho. Por sua vez, a Lei das XII Tábuas dispunha que "contra aquele que destruiu o membro de outrem e não transigiu com o mutilado, seja aplicada a pena de talião" (Tábua VIII, nº II), o que faz supor que a prática já era conhecida, tanto que apenas há referência ao nome, mesmo porque já agora estamos por volta de 450 AC, ainda antes do nascimento do autor de "Direito e Razão", mas com muito olho e muito dente rolado nessa empreitada punitiva. Penso, porém, que a pena de morte tem uma consequência prática: ela mostra que dentro de nós há mais de animal veterotestamentário do que do homem novo que o Cristo teria tentado criar. Ou os jornais de televisão não apresentariam tanta matança como nos mostram, a alimentar visualmente aquele animal primitivo.  
sexta-feira, 19 de março de 2010

Homem de Fé (Um)

  Pensei em escrever algo sobre a fé, essa coisa misteriosa de que os mais jovens conseguem prescindir, em sua auto-suficiência, e de que nós, os menos jovens, ai de nós!, tanto necessitamos. Veio-me, porém, à mente um fato absolutamente real, que tudo tem a ver com o tema. Ele se chamava Melquisedeque, era baiano e testemunha de Jeová. Acredite que é verdade. Está aí a doutora Renata Maria que pode confirmar tudo o que vou contar. Ele nos procurou aflito porque seu filho, que faria 18 anos em outubro, havia marcado o casamento no civil para o mês de agosto. O funcionário encarregado dos proclamas não havia reparado no pormenor, os convites já haviam sido providenciados, contratado bifê e conjunto musical, e agora, quando foi retirar os papéis no cartório, ele ficou sabendo que o casamento só poderia ocorrer na data marcada se tivesse autorização judicial. Devidamente esclarecido por nós sobre o assunto, informou que a moça era virgem, pois a religião deles não permitia essas antecipações não, senhor. "Então não vai sair casamento no mês de agosto", concluí sem rodeios. "Ou então eles se casam primeiro no religioso e, em outubro, confirmam o casamento no civil", sugeri, solucionático. "Nossa religião não permite. Primeiro é o casamento civil depois o religioso", esclareceu o pai do noivo. Não tive como deixar de repetir: "Pois então não vai sair casamento!" O homem perguntou quanto cobraríamos para tentarmos obter o imprescindível alvará judicial. Ponderei que não poderia ajuizar uma ação temerária, pois a lei só excepcionalmente autorizava o casamento do menor de 18 anos. O caso mais comum é a gravidez da noiva. Sem isso era causa perdida. "Eu pago para o senhor tentar", afirmou categórico, já tirando do bolso o talão de cheques. Lavrei um contrato de prestação de serviços advocatícios, no qual ficava ressalvado que o contratante estava ciente da dificuldade da empreitada, recebi a metade dos honorários e solicitei que me trouxesse uns tantos documentos. Redigi, sem o menor entusiasmo, a petição, historiando os fatos com lealdade e solicitando que, em caráter excepcionalíssimo, fosse concedido o alvará para que o casamento se realizasse no mês de agosto, dado o erro a que havia sido levado o interessado. Distribuí a causa e esperei pelo pior. Minha primeira surpresa: ouvido sobre o pedido, o curador, em lugar de opinar pelo indeferimento liminar da pretensão, requereu a designação de audiência para ouvir os interessados. Segunda surpresa: o juiz designou a tal audiência, na qual foram ouvidos a noiva, seus pais e o pai do noivo, ficando o rapaz para ser ouvido por fim. Ele entrou na sala, trajando seu melhor terno de roupa, empertigado, mas respeitoso. O juiz, jovem ainda, fez ver a ele, educadamente, que a lei não permitia o deferimento do pedido. Ainda se ele tivesse deflorado a moça... O rapaz ficou em pé e fez um discurso. Desde os catorze anos ele trabalhava para se manter. Era programador de computação e dava aulas de guitarra, conforme documentos que exibia. A casa onde ele e a esposa iriam morar havia sido adquirida por ele, graças às suas economias. "O senhor está me dizendo que se eu tivesse agido mal contra minha noiva a Justiça nos ampararia. Como eu me portei com dignidade, ela nos abandona?" Um silêncio se estabeleceu na sala. Antes que o juiz respondesse, o rapaz continuou sua candente argumentação. "O senhor pode me esclarecer o que é que dois meses a mais na minha vida vão me dar que eu ainda não tenho?", concluiu, para meu espanto, e sentou-se, muito sério. Antes que o juiz, sempre calmo, dissesse alguma coisa, o curador, tão jovem quanto, ergueu-se e fez outro discurso, dizendo que, como curador, ele deveria zelar pelos interesses dos menores e incapazes. Aquele rapaz que ali estava era menor só formalmente, mas não precisava, positivamente, de ser protegido. A rigor, não era, de fato, nem menor nem incapaz. Concluindo, opinava pela concessão do alvará, mesmo porque, como dissera o rapaz, não era razoável que uma conduta inadequada da parte dele lhe permitisse obter o que, por seu comportamento correto, lhe estaria sendo negado. Saindo o rapaz da sala de audiência, ali ficamos, porta fechada, os três personagens daquele drama, juiz, curador e advogado, buscando a melhor redação da decisão concessiva do alvará, pois o vade-mecum do Theotônio não trazia qualquer hipótese semelhante a essa. Por fim, alguma coisa como bonus paterfamilias serviu de lastro jurídico para a concessão do almejado alvará. O importante da narrativa, porém, é o que veio depois. No dia seguinte, lá estava o Melquisedeque em nosso escritório, para pagar a outra parcela dos honorários. Vinha com compreensível ar vitorioso. Eu procurei dar-lhe todas as explicações possíveis, citei o velho "cabeça de juiz, espingarda velha...", mas realmente ele não me ouvia. Interrompeu-me cordialmente com a mão espalmada. "Agora vou-lhe dizer uma coisa, seu doutor. O nosso pastor também é advogado, e quando eu levei o problema a ele, ele me disse o mesmo que o senhor: eu jamais conseguiria o tal alvará. Eu então lhe disse a ele: meu caro pastor, com todo o respeito que lhe devo, tua fé é bem menor do que a minha!"  
sexta-feira, 12 de março de 2010

Jus Fofocandi

  Certamente cada um de nós pode contar numa só mão o número de pessoas conhecidas que detestam uma fofoca, aquele mexerico, aquela intriga ou bisbilhotice de que fala o mestre Aurélio. Não é preciso muito conhecimento de psicologia para saber a causa disso: o mau conceito que se tem sobre si mesmo. Se eu confiasse em minhas qualidades, não precisaria desmerecer as demais pessoas para só assim eu vir a ser notado. Aliás, vi num para-barro de caminhão (sim, minha senhora, para-barro é aquela peça de borracha que os donos dos caminhões conscientes instalam logo após os pneus traseiros, para evitar que o para-brisa do carro que vem atrás fique todo emporcalhado, da mesma forma como o para-supositório é aquela barra horizontal que os caminhões possuem para evitar que automóveis com motoristas sonolentos lhes avancem pelas entranhas adentro) algo que me parece a melhor explicação psicológica para a fofoca: "para cada dedo teu que me aponta há três dedos teus te apontando". Eis aí a atualização da velha comparação: "é mais fácil apagar a minha vela do que aumentar a luz do teu fósforo". É claro que cada um de nós tem o direito de fazer de sua vida o que bem entenda, desde que isso não implique avanço sobre a esfera jurídica de outrem, diria mestre Goffredo. Por exemplo, quando alguém exagera na ingestão de bebida alcoólica, estará pondo em risco sua vida ou, pelo menos, sua saúde. No entanto, quando isso se faça em público, olha todos nós correndo risco de vida. Nada mais óbvio do que isso, algo digno do velho Conselheiro Acácio, aquele que, depois de muito meditar, concluiu que a chuva molha. Pois eu queria falar é precisamente disso: daquilo que certa revista, com sobriedade, abordou em reportagem de capa, a qual continha o grande achado: "tempestade num copo". Eis a inteligência do capista, ao sugerir ao leitor que conclua a frase, colocando no tal copo a bebida que melhor lhe apraça, como diria nosso Presidente Jânio Quadros, de lembrança oportuníssima a esta altura. Uma boa ideia, como diria o Arthur Vieira de Morais Neto. Não conhece? Não sabe o boa praça que está perdendo. Vá a Pirassununga e pergunte por ele. Se a primeira pessoa não souber dizer, o segundo certamente lhe dirá que ele mora ali logo depois do bar da curva. Se um homem público tem conduta pouco condizente com aquela que é lícito dele esperar, abre ele o flanco às pilhérias, às bisbilhotices, aos mexericos de que fala mestre Aurélio quando conceitua a fofoca. Dizer que o avião do Vinicius de Morais deveria sair do aeroporto de Viracopos não é algo que se possa considerar ofensa, já que o próprio alvejado se gabava de ser "bom de copo", assim como o Presidente Kennedy poderia gabar-se de ser "bom de cama", ainda que algumas vezes desse vazão ao seu notório e já histórico priapismo atrás da cortina do Salão Oval. Certamente Jackie ficava possessa com isso de ter de mandar lavar a cortina, dia sim, dia não. Mas poucas pessoas se orgulharão de serem chamadas de alcoólatras, que é apenas o sintoma de uma doença muito grave, como nos explicava o criminalista Roberto Llyra, que propunha a abolição de toda forma de propaganda desse tipo de bebida, como uma das muitas formas de prevenir a criminalidade. Alguém aí leu? Pior é quando a fofoca acaba atingindo quem nada teve com o fato desabonador, como ocorreu com aquele magistrado que, tendo um quase homônimo na magistratura, e havendo-se este segundo separado da esposa, mulher de família influente, veio a ser com ele confundido. Pois não é que o quase homônimo veio a ser rejeitado em promoção, "por interesse público", uma punição que tinha por alvo o outro, o tal que trocara uma de quarenta por duas de vinte? Ambos estão aí vivos e lúcidos e podem confirmar o fato, se o desejarem. É claro que eles não têm interesse em identificar-se, nem eu ganharia nada soletrando seus nomes. Fique apenas o registro. Eu mesmo já me vi em algumas situações constrangedoras, motivadas por essa leviandade dos fofoqueiros. Um juiz de uma comarca do interior do Estado, prospectivamente, no dia 1º de abril de 1964, hasteou no fórum a bandeira brasileira a meio-pau. Deu-se que tinha ele na comarca um desafeto que, zás!, fotografou a cena e enviou a comprovação ao Tribunal de Justiça. Chamado a explicar-se, o bravo juiz, que, para safar-se, poderia ter incriminado o porteiro do prédio, assumiu, galhardamente, a autoria do feito, pois sabia no que daria o golpe de 64, tendo, por isso, cassados os seus direitos políticos, numa satisfação dada pelo Judiciário aos militares, então no poder. Adivinhe quem foi convocado para assumir a tal comarca. E talvez tenha vindo daí minha fama de comunista, logo eu que jamais me deixei seduzir pelo stalinismo. O máximo a que cheguei foi a leitura dos livros do Fromm e as meditações de D. Hélder Câmara, que o Papa, de fato, chamava, jocosamente, de "meu querido bispo vermelho". Quando me chamavam de "juiz vermelho", no entanto, omitiam o outro adjetivo empregado pelo Papa. De outra feita, fui convocado para assumir comarca cujo titular havia sido promovido compulsoriamente (esse tipo de punição existe, sim, meu caro senhor). É que havia um boato de que ele era sócio de um advogado num escritório imobiliário. Pelo sim ou pelo não, promoção nele. E lá fiquei eu na comarca, quiçá confundido com meu antecessor e sua má fama. Talvez fosse o caso de fazer uma declaração à praça: "A quem interessar possa. Informo a todos os comarcanos que não sou sócio ostensivo nem oculto de nenhuma empresa que tenha como sócio algum advogado. Especialmente de alguma sociedade imobiliária". Ele promovido e eu condenado por crime contra a honra, na forma que a doutrina chama de "ofensa por exclusão". Comunista e safado! Em outra comarca, um dos magistrados era dipsomaníaco. Tentei convencê-lo a tratar-se, chegando até a levar gente da A.A. para, assim como quem não quer nada, dar uma palestra sobre o tema. Ele, lamentavelmente, como tinha outro compromisso naquele mesmo dia e naquela mesma hora, não poder comparecer. Houve, no fim do ano, uma churrascada na comarca, promovida pelo pessoal do fórum, e compareci com minha mulher. Enquanto ela conversava com algumas gentis comarcanas, que mal nos conheciam, eu circulava por ali, conversando com um aqui e outro ali. "Fazendo um social", como se dizia na época. Deu-se que eu passei perto do local onde elas estavam e fiz um sinal a elas, em razão de ali estar minha esposa. Uma delas, sem conhecer os juizes da comarca, não deixou por menos: "Esse é juiz na comarca, não é? Ouvi dizer que toma todas!" Em suma, a julgar por alguns dos meus ex-comarcanos, sou um comunista, um prevaricador e um alcoólatra. Isso para não falar nos demais adjetivos que me não chegaram ainda ao conhecimento.  
sexta-feira, 5 de março de 2010

Potocas e patacoadas

  Como divulgado neste vespertino, realizou-se recentemente o lançamento da segunda edição de modesta obra literária, na qual o atrevido autor se põe a discretear sobre temas vários, o que somente a idade e o atrevimento justificam fazer-se. Insta, no entanto, seja divulgado o presente relato porque alguns candidatos a leitores que lá compareceram tiveram de aguardar por mais tempo do que, razoavelmente, seria o previsto para o desembaraço da obra por eles adquirida a peso de oiro. De fato, ante o precipitado esgotamento dos exemplares então ali disponíveis, tornou-se necessário requisitar da editora, que assiste em outra freguesia, mais uns tantos livros, o que, mesmo contando-se com a eficiência de nossas empresas de transporte aéreo, não seria possível executar-se em minutos. Demais disso, como sabem os viventes, em razão da oração fervorosa dos nordestinos, clamando por mais chuva nas cidades que habitam, São Paulo vem sendo o alvo principal de tal dádiva, não fosse essa cidade aquela que, no Brasil, possui o maior número desses brasileiros, coisa de 3.500.000, coisa que nenhuma cidade nordestina apresenta, já que Fortaleza, a mais populosa delas, mal chega aos 2.500.000 habitantes. Daí que, trazidos desde o aeroporto em barco a motor, tais livros lograram chegar a seu destino somente quando já havia sido servida a sobremesa, um finíssimo Poire au vin avec morceaux de Roquefor, que se seguiu ao lauto banquete compartilhado pelos convivas que lá foram, se não para adquirir a valiosa obra literária, ao menos para dar ao seu famoso autor o amplexo que a amizade e os interesses subalternos justificam, ou desfrutar do ágape, que se antecipava magnífico. Aliás, Pierre Bocuse, que se havia comprometido a trazer pessoalmente o vol-au-vent de escargot por ele especialmente confeccionado para a ocasião, chamado às pressas pelo Príncipe Alberto, o Calvo, encarregou seu primeiro cozinheiro, Helmut von Gestetner, de representá-lo na efeméride, o que causou certa barafunda, pois este aludia a um tal Blätterteigpastete, nome que, como sabemos todos, tem aquela iguaria na terra natal de Immanuel Kant, coisa que o maître destacado para o local teve dificuldade de entender, por causa do sotaque bávaro do enviado de Bocuse, segundo declarou na ocasião aquele serviçal. Quanto ao vinho, um autêntico Gewurztraminer, safra 1965, a opinião unânime dos connoisseurs presentes foi no sentido de que dificilmente se formaria uma dupla tão afinada como aquela estabelecida por Herr Gestetner para a ocasião. Nem Renato Machado lhe poria reparos. Entrevistados pela reportagem, alguns desses entendidos mal puderam balbuciar alguma palavra inteligível, limitando-se a engrolar palavras elogiosas, entremeadas de gargalhadas inesperadas, o que, segundo nos parece, dispensa maiores considerações. Como quer que seja, os louvaminheiros de sempre, como soe ocorrer, não deixaram em brancas nuvens a acurácia do insigne restaurateur, ao qual entoaram loas mais do que propositadas. Aliás, não foi registrado nenhum caso de coma alcoólico, limitando-se os paramédicos presentes a atender duas ou três senhoras que alegaram terem vindo de países frios e haverem estranhado o calor aqui reinante, não lhes bastasse já os efeitos do inevitável jet-leg. Outrossim, o número de personalidades do jet-set presentes foi tal que deixamos de registrar seus nomes, para não sermos injustos com aqueles e aquelas que, menos salientes, limitaram-se a permanecer em seus camarotes, abanando-se discretamente. Digno, porém, de registrar a presença da cantora Madona, que se encantou com a obra literária e sua capa, determinando a seu coach que aproveite seu título para o próximo hit que ela deve gravar até o fim do semestre, segundo segredou ao governador Serra. God bless you, darling, como disse o autor do livro quando lho entregou. You know that Jesus loves you, acrescentou ele na ocasião, criando um jeu-de-mots, que foi muito apreciado pela colega Beyoncé, cujas palavras, entretanto, não foram muito bem interpretadas pela socialite que a acompanhava, a qual desconhecia que trocadilho em inglês é pun. Dentre os ausentes, Roberto enviou telegrama, lamentando que imprevisto de última hora (aliás, imprevisto é sempre de última hora, caro Roberto) o retivesse no Rio de Janeiro, mas enviou um belíssimo buquê de flores azuis. Indagou, no telegrama, como anda sua biografia não-autorizada, "Doces tardes de Domingo", pois Erasmo, o pessimista da dupla, acha que a obra não ficará pronta até o fim do ano, como havia sido programado. O homenageado ficou de responder ao telegrama tão logo termine seu périplo pelas principais capitais do país. Muito mais haveria a dizer daquele inesquecível acontecimento, tivéssemos nós o cálamo de um Baron Münchausen.
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Desconfiança

Ouço muita gente respeitável dizer que é preciso confiar desconfiando. Biblicamente falando, "sede mansos como as pombas e espertos como as serpentes". Confesso minha dificuldade em seguir esse estranho preceito. Por exemplo, quando o governo federal iniciou a campanha de prevenção da Aids, fez um estardalhaço danado, recomendando que os homens usassem sempre camisinha de Vênus (no meu tempo elas tinham nome e sobrenome) nas suas relações sexuais. "Sempre?", indaguei do locutor, que nada me respondeu, fazendo-se de desentendido. Quer dizer que quando eu vou manter relação sexual com minha mulher eu devo confiar nela mas desconfiando dela? Sabe-se lá o que ela anda fazendo por aí quando diz que vai trabalhar! Ou ao dentista. E vice-versa: imagine-se minha mulher a exigir que eu use caminha para não contaminá-la. "Sei não, aquela secretária dele tão ajeitadinha ..." Quando se cuida de empregada doméstica meu sofrimento é enorme. Temos um compartimento na área de serviço onde guardamos estoque de produtos para o uso mensal. É aquela coisa burguesa da "compra para o mês". Por vezes minha mulher se preparava para fazer um prato especial, e quando ia procurar o atum ou a lata de ervilha, eis que se surpreendia: eles haviam-se escafedido. Haviam criado pernas, como dizia ela. "Deixa pra lá, minha querida, eles também têm fome. Furto famélico", brincava eu, trabalhando com a hipótese menos favorável à nossa funcionária. Mas, e quando desapareciam peças de roupa? "A máquina de lavar roupa deve de ter engolido as meias da senhora", explica a serviçal. Desgraçadamente, o tipo físico da empregada era o mesmo da minha mulher. "Quem sabe tua blusa comprada na França está extraviada por aí. Um dia desses ela aparece. Perna que leva é perna que traz." Era eu, todo complacente. E quem disse que as roupas retornavam? A solução, disse-me alguém bem prático, é revistar a empregada quando ela se despede ao fim do dia de trabalho. "Não precisa ser todo dia não. Dê umas incertas, que elas se assustam!" E a coragem de submeter a moça a esse vexame? Certa vez deu-se o impensável: a empregada, entusiasmadíssima, trouxe para nos mostrar as fotografias da festa de aniversário de seu filhinho caçula. Lá está ele todo pimpão pedalando o carrinho de plástico colorido. "Que bela criança!", diz a patroa, solícita. Lá está o bolo de aniversário, velinhas acesas, com o pessoal em volta da mesa. Até dava para ouvir o parabenza, como diz meu neto. E lá está também a nossa empregada, usando uma bela blusa com uma estampa inconfundível, pois somente na França era possível comprar aquele tipo de roupa. "Bela camisa, Fernandinha!", digo eu, recordando um antiquíssimo comercial, quase matando minha mulher de raiva. De outra feita, a empregada compareceu ao serviço com um vistoso par de tênis. Exatamente do número, da cor e da marca daquele de que minha filha tinha dado falta. Exigir que a empregada mostrasse a nota fiscal seria ridículo. "Se nem nós guardamos nota fiscal das compras que fazemos, como exigir isso dela?", ponderei. O jeito foi engolir mais essa. Pois passado algum tempo, uma dessas moças que havia trabalhado em nossa casa me telefona toda aflita, reclamando meus serviços profissionais. "Seguinte: minha patroa foi revistar minha bolsa e encontrou ali um cinto de seda de um vestido dela que tinha desaparecido. Ela afirma que eu é que levei o vestido e quer me levar pra delegacia. Não adianta eu jurar que não fui eu. Eu só peguei o cinto por causo de que ele não tem mais utilidade sem o vestido. É ou não é?" Dava-se que o filho da tal patroa era simplesmente delegado de polícia e a moça, salvo melhor juízo, teria na delegacia um tratamento que não era bem aquele que não seria bem o que se costuma ter em um spa. Pensei nos bons momentos que ela nos proporcionara (cozinhava muito bem, era muito bem humorada e sempre tratara nossos filhos com muito afeto), afugentei as lembranças das coisas desaparecidas, e pedi-lhe que me pusesse em contato com a patroa. A senhora veio até o telefone e dei as melhores referências a respeito da moça. Ponderei de cá, insinuei de lá e, por fim, pedi-lhe que concedesse à suspeita o benefício da dúvida. Ela estranhou a expressão. Disse-lhe que tinha algum conhecimento de Direito e sugeri-lhe, então, que discutisse o assunto com o filho. E nos despedimos cordialmente. Uns dias mais tarde, quando eu já arquivara o incidente no escaninho dos fatos encerrados, eis que aparece nossa ex-empregada com um presente com que pretendia expressar sua gratidão por minha exitosa interferência: um par de abotoaduras douradas, dentro do respectivo estojo, revestido de veludo. Seria de ouro? Não seria? Eu e minha mulher nos entreolhamos, eu mandei às favas o meu anjo da guarda, que teimava em me recordar aquele artigo do Código Penal que fala em receptação, qual é mesmo?, e trocamos com a empregada um outrora impensável abraço de reconciliação. Até porque o Natal era logo uns meses depois.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Vigiar e Orar

  "Rezo para manter a fé e penso que os ateus devotos são como carolas científicos." João Sayad Conhecemo-nos nos bons tempos dos Cursilhos da Cristandade, movimento católico espanhol que no Brasil foi considerado movimento de esquerda, por um desses caprichos do Espírito Santo. Eu, de minha parte, procurava conscientizar aquele bando de incréus de seus escondidos talentos, enquanto ele, padre redentorista, era nosso diretor espiritual. Nos intervalos das palestras (rollos, como se chamavam então), quando não havia quem confessar, ele me chamava e, num canto do belo jardim da casa da rua Marcondésia, nós falávamos de Hélder Câmara e Maritain. Ele era um sacerdote que desenvolvia um belo trabalho na periferia da cidade, envolvido na pastoral operária. Com a ascensão do cardeal Woytila, nossos sonhos de cristianizar a sociedade foi-se esmorecendo, a Teologia da Libertação foi considerada cripto-comunista até por quem jamais havia lido os livros que tratavam disso e eu achei que, entre a saída do Papa e a minha saída, seria melhor para a Igreja Católica que saísse o mais pecador. Ele trocou a batina pela beca, e hoje atua em algum movimento em prol dos chamados direitos humanos. Eu andei por aí, falando menos e agindo mais. Reencontramo-nos depois de tanto tempo e eu não dispenso a oportunidade de provocá-lo. "Como se sente, sendo atacado pelos dois flancos?" Ele faz uma careta, a de quem não entendeu a pergunta. "De um lado, teus antigos colegas sendo acusados de pedofilia; de outro, teus atuais colegas sendo apontados como membros de quadrilhas de assaltantes". Ele ri e parece mudar de assunto. Não sou muito chegado a óperas, diz ele. Especialmente agora, com o expediente de colocarem legenda na cantoria, acontece algo que me faz lembrar o velho tempo das missas em latim. "Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada" não tem, positivamente, o impacto do texto original, onde o domus tanto poderia referir-se à casa propriamente dita, como ao interior da pessoa. Eu não sou digno de que meu mísero corpo se torne templo de Teu espírito. Era assim que entendíamos o texto nos velhos tempos do seminário, lá em Nepomuceno. Domus e dominus, a casa, o senhor da casa e o dono de tudo. Não nego, no entanto, continua ele, que Giacomo Puccini é autor de obras magníficas, tais como Tosca, Madame Butterfly, La Bohème e Turandot. A história da oriental que se apaixona pelo soldado estrangeiro e depois é deixada em seu país de origem, não poucas vezes com o fruto daquele amor, é mais universal do que se pode supor. As vietnamitas que o digam. Pois Puccini escreveu também um tríptico pouco encenado entre nós, que nosso causídico conheceu quando estagiava no Vaticano, algumas décadas faz. É o que ele diz. São três mini-óperas distintas, cada qual de um único ato: na primeira, Il Tabarro, narra ele a tragédia de um triângulo amoroso; na segunda, que se destaca por belíssimo solo da soprano, enfoca, de modo corajoso para a época, a trajetória de Soror Angélica, membro da nobreza que, havendo-se engravidado sem as bênçãos da Igreja, é destinada pela família à vida religiosa (nossos pais choraram lágrimas copiosas com a história de Albertinho Limonta e seu direito de nascer, claramente decalcado no episódio constante dessa ópera pucciniana, cópia que o cubano escritor D. Félix Cagnet jamais confessou ter feito). Interessa-nos, porém, diz ele, falar da terceira parte daquele tríptico, chamada Gianni Schicchi. Nela narra o autor a história de um moribundo, proprietário de muitos bens, que é cuidado pelos sobrinhos, claramente interessados na herança do velho, como ocorre nas famílias normais. Parente é serpente, como sintetizou o conterrâneo do velho Puccini, o Mário Monicelli, que ainda outro dia vi na televisão fazendo uma pontinha no filme "Sob o céu da Toscana", que me matou a saudade da Itália, continua o hoje causídico. Pois vindo a falecer o tal moribundo, descobrem os tais parentes, ainda quente o corpo, que toda a herança fora destinada aos padres da igreja local, aqueles safados que se valeram da ascendência sobre o moribundo para aumentar a sua já enorme riqueza. Pobres padres! Depois de amaldiçoarem o cadáver e os padres, os quase herdeiros recordam-se de que o pai da namorada de um deles (que contava com a herança para com ela casar-se) é um ilustre advogado, cujo nome dá título à mini-ópera. Convocado às pressas, o dottore Schicchi verifica que o testamento está formalmente em ordem, nada podendo ser feito para impugná-lo judicialmente. Entretanto, valendo-se de seus dotes histriônicos (certa vez, acrescenta o narrador, quando um inglês me perguntou qual a minha profissão, eu, surpreendido com a pergunta, respondi "I'm a liar". Ele se surpreendeu com minha resposta, e eu, notando a confusão verbal, corrigi: "I'm a lawyer". Ao que ele retrucou sem se dar por achado: "Same thing!"), o bacharel Schicchi mostra aos clientes toda sua verve, emprestando a voz ao cadáver quando da visita do médico, que se espanta com seu excelente estado de saúde. Encorajados pelo sagaz causídico, chamam imediatamente o escrivão, que, comparecendo à casa do falecido (que é escondido enquanto o advogado ocupa seu lugar no leito e se põe a imitar sua entonação de voz), acompanhado de duas testemunhas, lavra em suas notas o testamento que, fazendo-se passar pelo moribundo, lhe é ditado por Gianni. Claro que o testador tem o cuidado de destinar a casa onde todos se encontram a seu particular amigo o ilustre Dr. Gianni Schicchi. Terminada a encenação, após assinada a escritura, devidamente testemunhada pelos acompanhantes do notário, o advogado expulsa todos da casa que, agora, por vontade do moribundo, lhe pertence, como honorários pelo serviço feito aos até então deserdados. Triste fama essa dos nossos colegas, conclui o ex-sacerdote. Conto-lhe, então, que chegaram ao céu, ao mesmo tempo, um bispo e um advogado. Ao bispo foi indicado um ponto de ônibus, onde ele tomaria a condução que o levaria à merecida Eternidade. Já ao advogado, foi-lhe posta à disposição uma limusine, com motorista particular. Compreensivelmente, o bispo foi queixar-se ao responsável pelo Paraíso, invocando o princípio da isonomia. Pelo menos isso, se não fosse para reconhecer sua preferência em face de seu mísero subalterno espiritual. E recebeu a santa explicação: bispos aqui nós temos centenas, enquanto que advogados ... Para consolá-lo, digo que Puccini não estava só em sua avaliação dos atributos da maioria dos causídicos. Comprova-se isso pela observação feita por um ilustre conhecedor do tema ao decálogo em que Santo Afonso de Liguori, superior hierárquico do nosso ex-redentorista, resumiu os deveres de seus colegas (il dottore Afonso fora advogado em Nápoles e sabia muito bem do que falava). Depois de reproduzir os mandamentos do advogado, o professor Gabriel de Rezende Filho, em seu Curso de Direito Processual Civil, anota: "se Afonso, enquanto advogado, cumpriu o seu decálogo, mereceu, certamente, ser canonizado!" ___________________
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Propagandas Enganosas

  A verdade, como exata adequação entre o pensado e a realidade externa a que o pensamento se refere, é algo concretamente alcançável. Sempre que se fala em verdade (e, por contraposição, em mentira), vem à mente a velha indagação do juiz diante do réu excelso. "Quid est veritas?", teria indagado ele, segundo a versão corrente, que supõe tivesse o diálogo sido travado em latim, certamente sem legendas. E todos nós, certamente, em muitas ocasiões nos fizemos essa mesma pergunta, mesmo sem que tenhamos de entrar no perigoso campo da religião. Muitos imaginam, por exemplo, que a finalidade do processo judicial seja a busca da verdade real, o que também parte de uma suposição que a muitos não ocorre: cuida-se, no processo, de reproduzir algo que existiu e, na mor parte das vezes, não mais existe, a não ser em raríssimos casos, onde é possível detectar a flagrância do fato em sua mesma ocorrência. Entretanto, o Calamandrei nos relatava que, havendo presenciado um homicídio, ficou horrorizado com a brutalidade do assassino. Foi só os policiais botarem algemas no homem e ele passou a horrorizar-se com a brutalidade dos policiais. O flagrante, convenhamos, é exceção, coisa rara, pois o que se tem, no geral, são pessoas, documentos e opiniões com que os interessados buscam, qual numa tela de mosaico, reproduzir uma pálida imagem de algo que já não há. Figure-se a hipótese de um réu denunciado por triplo furto: a carteira de A, o relógio de B e a caneta de C. O juiz dá por provados os três fatos e o condena por furto em concurso material, pois são vítimas e circunstâncias diversas. Temos aí a opinião de uma pessoa respeitável. Recorre o defensor e o caso passa a ser julgado por três juízes. O primeiro entende que a prova do furto da carteira é robusta, o que não ocorre em relação aos demais objetos; o revisor, ao contrário, entende frágil a prova quanto ao furto da carteira e da caneta, mas entende suficiente a prova do furto do relógio. O vogal, por seu turno, discorda de ambos: o fato que está provado acima de qualquer dúvida é apenas o que diz com a caneta de C. Temos, portanto, três experientes juízes de um tribunal, mais aquele quarto que assinara a sentença, afirmando que aquele réu é um ladrão. Qual, então, será a pena que nele deverá ser aplicada? Simplesmente nenhuma, pois não havendo dois votos a favor de alguma das três teses, esse réu deverá ser absolvido. Para cada afirmação da existência de um dos crimes há duas negações de sua existência. Eis aonde chega a verdade processual: quatro juízes afirmam que alguém é um ladrão e esse réu, por motivos formais, vem a ser absolvido, para escândalo dos leigos! Ubi veritas? Fora do campo criminal, impressiona-me a facilidade com que certos personagens pontificam sobre determinados assuntos. Quando uso a palavra personagem aqui quero referir-me a certas figuras que os meios de comunicação nos tornam familiares. Tão familiares que fazem o que os publicitários chamam de testemunhais. Realçam as qualidades de certo produto ou determinado serviço. Exemplifico: quem é Pelé? Ele, a rigor, não existe. É apenas o personagem criado pelo cidadão Edson Arantes do Nascimento. E a personalidade desse personagem é tão marcante que o próprio Edson não se refere a si próprio, em determinadas situações, mas ao "Pelé", seu alter ego. A famigerada lista da FIFA, sobre os melhores futebolistas vivos, por exemplo, não foi elaborada por Pelé, mas pelo Edson, que não entende nada de futebol. E há os atores que, pelos mais variados motivos, em lugar de usarem seu nome de batismo, valem-se de um nom de guerre. Quantos telespectadores saberão quem foi Pelópidas Guimarães Brandão? Ou quem é Ariclenes Venâncio Martins? Imagine-se então que Paulo Gracindo tivesse sido convencido a tentar convencer telespectadores a aplicarem seu numerário em boi gordo, ou em porcos gordos, ou frangos gordos. Claro que o Paulo Gracindo receberia polpuda soma em dinheiro para tal missão, a ser desempenhada pelo seu personagem. Imagine-se, apenas se imagine, que aquilo era uma vigarice, que tal investimento e os lucros anunciados fossem claramente irreais, donde o prejuízo dos que acreditaram no personagem. Ora, se o empregador (outrora se dizia "patrão, amo ou comitente") responde pelos atos danosos causados pelo empregado, mesmo sem demonstração de culpa, em nome de que princípio ético se sustentará que a pessoa física Pelópidas Guimarães Brandão não deva responder pelos atos praticados por seu personagem Paulo Gracindo? Imagine-se que Lima Duarte buscasse, mediante robusta remuneração, convencer telespectadores a experimentarem cigarros de determinada marca. Levados pelo poder indutor do personagem, número incalculável de pessoas acabariam contraindo câncer, como demonstram as estatísticas que efetivamente ocorre em tais casos. Repete-se a pergunta: em nome de que argumento ético Ariclenes Venâncio Martins se safaria de uma acusação de responsabilidade pelo ato de seu personagem Lima Duarte? Dizem que a propaganda é a arte de fazer alguém comprar algo de que não precisa por um preço que não pode pagar. Quando um Zeca Malandrinho qualquer resolve expor à luz do dia isso que todos sabemos, vendendo sua imagem para convencer alguém a beber isto hoje, aquilo amanhã e, certamente, outra bebida na semana que vem, dependendo de quanto lhe paguem, eriçam-se pelos, rangem dentes, clamando por um código de ética mais rigoroso. Como se a publicidade tivesse compromisso com a verdade. Ou você acredita que o Ronaldinho acerta a trave com a bola e faz esta retornar depois a seu pé, como se estivesse jogando bilhar? Pois que se leve a ética às últimas consequências: quem se disponha a colocar sua imagem pública a serviço de um produto ou um serviço, a peso de ouro, que tenha a responsabilidade de certificar-se se o produto ou o serviço anunciados têm efetivamente as qualidades anunciadas. Caso não, que sejam responsabilizados civilmente não apenas o fornecedor, mas também quem se prestou a intermediar a relação entre a fonte de produção e o consumidor. Do jeito como as coisas estão, acho que poderíamos dizer: Quanto custa fazer propaganda de cerveja, de cigarro, de banco, de automóvel? Alguns milhões de dólares. Responder pela qualidade daquilo que eles anunciam? Isso não tem preço.  
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Conto surreal

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Sobre a Normalidade

  "Louco é alguém que perdeu tudo, menos o juízo." Gilbert Keith Chesterton Tenho um respeito muito grande pelos perturbados mentais, talvez porque tenha conhecido, há tantos lustros, os tormentos da síndrome do pânico, essa doença elitista que já atormentou gente muito mais importante do que eu. Está aí o divertido Mário Prata que não me deixa mentir. Quando se enamorou de uma bela cantora portuguesa, lá se foi ele de mala e bagagem para a santa terrinha dela. Bateu-lhe o pânico e ele veio correndo para o solo materno. Tempos depois descreveu, com humor, os conselhos que os pretensos amigos lhe deram para sair daquilo. Alguns diziam que aquilo era excesso de mulheres em sua vida; outros diziam que era carência de mulher. Uns diziam que ele estava bebendo muito; outros recomendavam um porre. Alguns atores e atrizes que você não mais vê na tela ou no palco devem essas férias forçadas ao angustiante pânico, que vem a partir de nada, racionalmente falando. De repente, a pessoa se convence de que aquele satélite espacial que os jornais dizem que se está desintegrando vai cair na cabeça dela. E por mais que os amigos argumentem que isso não tem lógica, a pobre senhora respondia com toda lógica: que ele vai cair na Terra todos garantem; pode cair no mar ou em terra firme; quem garante que esse lugar em terra firme não é justamente aquele local em que eu vou estar quando isso ocorrer. "Bem, quer dizer." Viu como eu tenho razão? Também conheci as não menos tormentosas noites infindáveis da depressão, que um filme delicado retrata à perfeição. A fotografia e a música de As Horas, com interpretações magníficas de três atrizes de primeira grandeza, mostram que aquilo é mais do que apenas uma homenagem a Virgínia Wolf, uma dentre tantos escritores atormentados por seus demônios interiores, que a escrita não conseguiu exorcizar completamente, mas uma autêntica moção de respeito a todos os que conheceram esse terrível caminho em direção às trevas, como disse um deles, o escritor William Styron, autor do emocionante livro Escolha de Sofia, que, transformado em filme, tem, coincidentemente, como atriz principal uma das três a que me referi acima, a Meryl Streep. O fato real é que, em 1941, em uma crise de depressão profunda, Virgínia, tal como se mostra no filme, encheu os bolsos da roupa com pedras e entrou no rio que passava perto de sua casa, para afogar os seus fantasmas, e de lá não retornou viva. Para quem não imagina o que seja isso, faço uma comparação: imagine que você está dentro de uma gaiola de vidro. As pessoas passam próximo à gaiola e não ouvem o que você diz. Nem te olham. Em compensação, você também não ouve o que elas te querem dizer. Com isso, você vai-se voltando para si mesmo e, no limite, fala apenas consigo. "Não adianta eu falar, pois eles não escutam", eis o que você diria em tal situação. E tome introversão. Em todas as cidades sempre há um louquinho, como o Zé do Arquinho, em Nova Granada, que, passando diante da janela de meu escritório, na casa onde ele sabia que eu morava, me mostrava as duas mãos espalmadas e os oito dedos cruzados quatro a quatro, a significar a cela para onde eu estaria mandando algum réu. Era atencioso com todos. Alguém que ainda não o conhecia estava a manobrar o automóvel e ele, solícito: "vem!, vem!, vem!". Até que o confiante motorista, sempre indo em ré, bateu seu automóvel no carro estacionado atrás dele. "Vem que bate!" disse agora o doido, dando pulos e batendo palmas de satisfação. No bairro em que moro há um que carrega no carrinho de feira pacotes e mais pacotes. Como reside na rua, aquilo parece coisa de Sísifo. Pergunto-lhe o que traz naquele carrinho e ele desconversa, preferindo falar do telefonema que irá dar ao Prefeito, para que mande limpar aquela rua, que está muito suja, onde já se viu um desmazelo desses, o senhor não acha? O que ele arrasta para cima e para baixo é o seu segredo e o seu tesouro. Conheço um outro personagem, que todos os conhecidos reputam lúcido, e que pagou uma fortuna por um quadro pintado por alguém famoso. Deixa-o, porém, guardado no cofre forte de um banco, pois se pendurar na parede da sala ou do escritório, poderão roubá-lo. Qual a diferença entre esses dois doidos? Minha sogra apresenta há muitos anos um quadro de demência, que alguém já diagnosticou com nome pomposo: Mal de Alzheimer. Um jovem psiquiatra, muito prático, foi curto e grosso: para saber se realmente é isso um autêntico Alzheimer, eu teria de submetê-la a muitos exame e testes. Será necessário? É claro que não. O que importa é que ela não tem memória para fatos presentes. Se você viu o filme Procurando Nemo, lembra-se daquela simpática peixinha que vivia perguntando vezes e vezes a mesma coisa ao pobre pai do Nemo, este também um ser apresentava um defeito, este físico, numa das nadadeiras, o que mostra a sensibilidade do diretor do desenho animado, a falar de coisas que muitas pessoas preferem esconder. Pois aquela simpática peixinha deve ter sido inspirada na dona Adélia, que faz a mesma pergunta vezes e vezes, irritando quem, achando-se pessoa normal, é incapaz de entender uma coisa tão simples: a memória daquela octogenária não tem mais espaço para armazenar mais nada. Não é assim com o computador? Meu interesse por pessoas desse tipo me leva a fazer com minha sogra algumas experiências, o que me obriga a entrar no mundo dela, até porque ela não tem condição de vir até o meu. Quem desconhece meu real propósito, pode ver nisso um exercício de sadismo. Paciência! Em um jantar de fim de ano que celebramos com o casal de velhos em um restaurante da cidade, fazia parte da refeição uma taça de champanhe, como é de praxe. "Que é isso?" ela me pergunta. "É guaraná" digo a ela, que leva a taça à boca e toma um gole. Faz uma careta e me chama de mentiroso. Menos de dois minutos depois ela faz a mesma pergunta e eu lhe dou a mesma resposta. Ela leva a taça à boca, toma um gole, faz uma careta e novamente me xinga. Essa maluquice repete-se cinco, seis vezes e eu tentando saber quanto da experiência desagradável poderia produzir, pavlovianamente, um desbloqueio naquele cérebro. Inútil. Se eu não resolvo afastar a taça, aquilo se repetiria interminavelmente a noite toda, para desencanto do cientista russo e meu. Por vezes faço uma de minhas especialidades sonoras: imito Orlando Silva ou Nélson Gonçalves, pois ela gosta muito de música, dizem que tocava piano muito bem quando era moça e parecia a Elizabeth Taylor: "Boemia,aqui me tens de regresso,e, suplicante, te peço..." E dona Adélia, no mesmo tom e no mesmo ritmo: .. a minha nova inscrição." Impressiona-me também que ela, que consta haver sido uma mulher muito inteligente, ainda tenha lapsos disso, o que surpreende os desavisados. Vínhamos da praia no mesmo automóvel e ao lado de nossa estrada aparecia a nova pista da Rodovia dos Imigrantes. Ela se surpreende. "Aonde vai aquela estrada?", indaga. "Dona Adélia, acho que ela não vai a lugar nenhum. Vai ficar sempre parada aí." Ela imediatamente estoura numa gargalhada e me dá um carinhoso tapa nas costas. "As pessoas falam tanta besteira quando não pensam antes de abrir a boca, é ou não é?", observa a sábia.  
sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Adúltero (O)

Quem vê o doutor Francisco José da Silva Junqueira Júnior não diz que ele é um juiz. O modo calmo de falar, os passos lentos, aqueles pés abertos, que lhe haviam valido no seminário o apelido de "dez pras duas", aquela capa negra esvoaçando pelo corredor do tribunal, mais parecem dizer respeito a um padre do que a um magistrado. Reparando bem dá até para adivinhar o breviário que ele traz nas mãos em concha, cumprindo o prazeroso dever das horas santas. Na verdade, desde criança o Chico prenunciava uma vida sacerdotal, para alegria de dona Domitila, sua fervorosa genitora, e tristeza do pai, um homem mais prático, pouco afeito a rezas e promessas. Nada de vir pra casa com a roupa suja de lama, com as pernas lanhadas, ou com algum animalzinho que houvesse caçado, como fazia o irmão mais velho. Nem formiga ele matava, respeitando o direito à vida daqueles pequeninos seres de Deus. Desviava-se dos formigueiros, com o incrível argumento de que elas haviam chegado ao sítio antes deles. Logo, tinham precedência. Prius in tempore, prius in jure, viria a dizer no futuro. A família, à exceção da mãe, não via com bons olhos aquele modo precoce do garoto, que foi crescendo enfiado com a cara nos livros. Nem namorada ele parecia querer, o que, naquele tempo, era motivo de escândalo. Não tinha isso de o rapaz apresentar aos orgulhosos pais "este é o Carlinhos, meu novo namorado". Isso dava surra de cinta! Os irmãos e os colegas bem que o levavam às festinhas, regadas a cuba-libre, mas ele ficava no seu guaraná, para desespero de todos. Se o arrastavam para uma dança, era um desânimo só, o que afastava dele qualquer garota. Certa vez, na aula de filosofia, uma colega de classe, cortejada por dez entre dez colegas, inconformada com a indiferença do Chico, sapecou, em voz alta, um exemplo de raciocínio lógico, um silogismo: "todo homem gosta de moça; o Chico não gosta de moça; logo ...". A risada dos colegas foi o que bastou para que ele tomasse uma decisão drástica: fez as malas e se mudou para o seminário, numa cidadezinha no sul de Minas. E ali ficou alguns anos, fazendo aquilo de que mais gostava: ler, ouvir música e dedicar seu tempo livre à contemplação da natureza. A cada semestre rumava para a cidadezinha natal, onde ficava o tempo suficiente para matar a saudade e receber da mãe os afagos que despertavam a ciumeira dos irmãos. Quando menos esperavam, ele se despedia e retornava ao seminário, o seu agora verdadeiro lar. Ocorreu - e sempre ocorre alguma tentação na vida dos santos - que numa dessas idas ao lar materno o nosso futuro sacerdote foi vítima da tentação do demo. Foi assim: os irmãos conseguiram convencê-lo a ver a fonte luminosa que o novo Prefeito havia inaugurado, há pouco, na praça central, dita praça da matriz. Ali, como em tantas cidades do interior, ocorria, nas noites dos fins de semana o chamado "roça-roça", que consistia num ritual bem conhecido de quantos já moraram em alguma dessas cidades. As moças, em dupla, trio ou quarteto, caminham pela calçada, indo daqui para lá e de lá para cá, assim como quem circula numa passarela. O segredo está em fazer um ar de indiferença, como se não houvesse os rapazes, também em dupla, trio ou quarteto, plantados no centro da praça, conversando como quem não quer nada com aquelas oferecidas que por ali passam e repassam, casamenteiras. Pois lá está o Chico seminarista, com aquele seu jeito beato, incapaz de produzir o ar de indiferença que as circunstâncias exigem. Ao contrário, enquanto finge ouvir aquela conversa desagradável de quem conta vantagem na suposição de que os circunstantes vão dar crédito, seus olhos cruzam com um par de olhos verdes que, na falta de melhor figura de retórica, atuaram como as luzes de um semáforo. Eu sei que a imagem é pobre, mas foi isso que ocorreu ao nosso seminarista, que, encabulado, mudou logo a luz para o vermelho e deu à insuportável conversa mais atenção do que ela merecia, apressando o retorno para o lar paterno. Naquela noite o rapaz não dormiu o sono dos justos. Antecipou, com alguma desculpa, o retorno ao seu edênico refúgio, onde o padre Napoleão lhe assegurou que a vida sem tentação é insípida. Que desse graças a Deus por aquele par de olhos verdes, que serviriam, quando mais não fosse, para testar sua vocação sacerdotal. A partir daí, nosso seminarista encarava os sonhos que passou a ter como mensagens divinas, a testar-lhe a real vocação sacerdotal. E acordava com um inescondível sorriso nos lábios. Surpreendentemente, o Chico apareceu na cidadezinha natal num desses chamados feriados prolongados, coisa que jamais havia feito antes. Pretextou estar à procura de certo documento, mentira que levou à conta de meio ilícito que justifica um fim justo. Quem reparasse bem notaria uma certa ansiedade no rapaz, especialmente quando se aproximava a noite do sábado. Procurou mostrar naturalidade quando os irmãos fizeram o convite para o passeio na praça. Até fingiu uma certa indiferença, preferindo passar a noite na companhia da mãe, pobre ingênua que insistiu para que ele fizesse exatamente aquilo por que ele tanto ansiava, o cínico. E lá vão eles para o "roça-roça". Animados na conversa, os parceiros do Chico não repararam em sua ausência. Quando dão de si, lá está ele em conversa com a filha do coletor estadual, como então se chamava o arrecadador de impostos estaduais, cujos olhos verdes mais verdes pareciam emolduradas por um vestido negro, que realçavam sua pele clara, cujo rosto jamais conhecera make-ups e que tais. E agora os dois se encaminham - péssimo sinal! - para a sorveteria da Rita, onde se tomava o mais delicioso sorvete artesanal da cidade. E onde muitos pais e avós haviam feito os primeiros elogios à que viria a ser sua companheira de toda a vida. Que deu no Chico de ir tomar sorvete, senhor? Agora eles se encaminham para a casa da moça, naquele passinho de quem pretende impedir que as estrelas caminhem, de quem deseja parar o tempo, de quem busca a eternidade do amor. Claro que ele não havia chegado ainda a essa conclusão, mas o calor que trazia nos lábios, mesmo diante do sorvete que se lhe derretia na mão, afogado que estava naqueles dois laguinhos verdes, seria por ele mais tarde facilmente identificado. Sua carreira sacerdotal derreteu-se como o delicioso sorvete da sorveteria da Rita. Para não fugir do hábito negro, tornou-se advogado. Mas logo descobriu que não era a beca que lhe substituiria a batina, mas a toga. E eis o Chico seminarista convertido em Sua Excelência o doutor Francisco Junqueira. O fato de haver deixado o seminário não o afastou, seguramente, das práticas religiosas. Ao contrário, com mulher e os vários filhos, era comum vê-lo na missa dominical, humildemente aguardando sua vez na fila da comunhão, para gozo das velhinhas que, com suas fitas de Filhas de Maria, o encaravam com compreensível orgulho. Era "um dos nossos", como certamente comentavam entre si. E tudo iria na mais sacrossanta paz não fosse aquela terrível audiência. Dessas audiências inesquecíveis, que mais inesquecível ficou depois do incidente a que me vou referir. Foi assim: a sala de audiências estava apinhada de gente. Eram os clássicos autor e réu, mais seus patronos. E havia litisconsorte ativo, com seu advogado, e denunciado à lide, também com seu procurador judicial. E, para não dizer que exagero, vou dizer que o curador de menores também estava presente. E depondo estava justamente uma das acima citadas Filhas de Maria, que respondia às perguntas com o mesmo sorriso beatíssimo que usava aos domingos, embora fosse dia de semana. Perguntas, respostas, impugnações, deferimentos, indeferimentos, um pandemônio. A certa altura, aparece na porta da sala a figura feminina mais conhecida da pequena cidade. Botas e mini-saia negras, blusa decotadíssima, lábios num vermelho fogo exagerado, olhos sombreados a mais não poder. Todos os presentes, sem qualquer exceção, voltaram-se para ela, fazendo-se um silêncio de morte. Animada pela recepção, Shirley, a mais notória inquilina da casa de madame Rosita, avança em direção à mesa do juiz, sobre a qual, sem a menor cerimônia, deposita a bolsa, que ela se põe a abrir com lentidão de slow motion. Silêncio absoluto, só quebrado pelo ventilador que não respeitava aquela homenagem. Ela retira um cartão da bolsa e, com gesto exagerado, dando um rodopio na mão, entrega ao juiz. "Estou de mudança para a Capital e vim lhe entregar este cartão com meu novo endereço", eis o que todos ali ouviram. Agora até o ventilador silenciou. O escrevente foi ficando vermelho, na mesma proporção em que o juiz ficava pálido. No rosto dos presentes era possível adivinhar os pensamentos, principalmente do Dr. Silveirinha, um notório desafeto do juiz, cuja catolice ele não aceitava, pois lhe tirava a necessária neutralidade. E no rosto do brilhante causídico se poderia ler algo como "esse tipo nunca me enganou". Nos olhos da filha de Maria se poderiam descobrir duas gotinhas d'água se avolumando. Os demais eram estátuas de pedra. Ou de sal. O escrevente, com uma voz vinda lá das catacumbas, tentou falar alguma coisa. "Excelência! Excelência!". E quem ouvia? Foi necessário que ele ficasse de pé, entre a Shirley e o juiz, e, num esforço supremo, quase gritando, explicasse: "É o seguinte, Excelência. Essa senhora esteve depondo aqui, num processo criminal, há uns dois meses. E eu adverti que, se ela mudasse de residência, deveria, nos termos do artigo 224 do Código de Processo, avisar o Juízo." E enfatizou bem: "o Juízo!" O rosto do Dr. Silveirinha agora era ódio puro. Seu olhar fuzilava o escrevente, cuja rapidez mental o levara a construir tão notável álibi a favor daquele carola adúltero.   Do livro Menos Verdades - Causos Forenses ou quase (inédito)
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Tantas Emoções

"Mulher de Tiger Woods pede US$ 300 milhões no divórcio." Dos jornais Tenho notado que nos últimos tempos estou mais chorão do que quando tinha mais cabelos e a cor deles era outra. Isso não condiz com meu currículo, eu que sempre me ufanei de tratar dos dentes sem anestesia. A própria dentista um dia ficou pálida diante dessa minha resistência, sugerindo, discretamente, que um bom psiquiatra daria jeito na coisa. "Seu colega fulano de tal (e me deu o nome completo dele, que não mais está em atividade por aí e, por isso, não poderá confirmar o que eu digo) toma anestesia antes de entrar na sala. Sem estar anestesiado ele não cruza aquela porta!", segredou-me ela, apontando a entrada fatal. Referindo-se justamente a alguém que tem como lema - ele é e sempre foi juiz criminal - "réu inocente, pena mínima!" Não chego ao ponto do caboclão Zuia (curioso apelido de alguém chamado Jesus), lá de São Pedro, que havendo acordado certo dia com dor de dente, não teve a menor dúvida: pegou do alicate e, anestesiado apenas por um gole a mais de cachaça, arrancou o próprio molar sem a menor cerimônia. E rindo, com os poucos dentes que lhe restavam, adicionou: "Quer saber? Como a dor não passava, arranquei também o do lado dele". Diante do Zuia, me sinto meio maricas indo ao dentista para fazer algo que qualquer um pode fazer em casa mesmo. Não choro com beijos de novela, como o Zeca Baleiro, por vários motivos, sendo o mais relevante este: eu não vejo novela. É como a história do soldado do Napoleão que dizia ter dez motivos para não ter disparado o canhão, sendo o primeiro deles a falta de pólvora. "Sendo assim, está dispensado, que eu não tenho tempo a perder com os outros nove motivos", teria dito o caporal corso ao trêmulo subalterno. Quanto às novelas, bem que tenho tentado acompanhá-las, confesso, até mesmo por dever cívico. Mas quando vejo certas atrizes vestidas como grande dama paulista, mas incluindo "x" no plural de todas as palavras, meu cérebro tem um tilt, entende? Tento entrar no clima, mas não tem jeito. Passo então para os programas esportivos. E eis-me de olhos marejados vendo a final de uma partida de golf. O Tiger Woods está a um ponto do primeiro colocado e está agora no green para dar um put em direção ao hole dezoito. Ele precisa fazer um birdie para alcançar o primeiro colocado e, assim, levar a partida para o play off. É um put de apenas nove jardas, esclarece o locutor, que tem como assessor ninguém menos do que o neto do D. Pedro II, aquele que era filho do outro mas tinha estampa de avô dele. Se você não tem ideia dessa distância, pois só assiste as pedaladas do Robinho, imagine que a distância entre a bola em que o Tiger vai dar sua tacada e o 18th hole é a mesma que separa o batedor de falta da barreira. Pois ele faz o put e a bola vai rolando de mansinho pelo green. O suspense é tal que eu fico imaginando onde estava o Hitchcock que não usou isso em um de seus filmes. Nem ele nem seus inúmeros imitadores. Vejam que cena: nós da platéia sabemos que dentro do buraco 18 há um dispositivo que, tocado pela bola, acionará uma bomba que está instalada no palanque onde o primeiro ministro de Israel e o presidente da Organização Palestina estão sentados, numa pausa a mais na 54ª rodada de negociações de paz para o Oriente. Pois a bola do Tiger Woods vem descendo lentamente o green, traçando aquele caminho que vai diminuindo, pouco a pouco, a vida dos dois líderes mundiais. O Obama também está no palanque, mas isso não tem tanta importância. Pois a bola se aproxima lentamente, em câmara lentíssima, como aquela que o Brian de Palma, um dos inúmero sub-Hitch, utilizou na cena da escadaria no Intocáveis, que, por sinal, tomou emprestada, sem a menor cerimônia, do encouraçado do Eisenstein. A bolinha branca, cor da paz, corre pelo campo verde, cor da esperança, eis a mensagem subliminar da cena, emoldurada por dúzias de violinos. Um close ao rés-do-chão (pausa cultural: em Portugal o andar térreo é indicado, nos elevadores, pelas iniciais RC; quando interpelei o lusitano, dizendo ser mais lógico usar o T, de térreo, ele me ensinou que lá o rés-do-chão é ladrilhado, pá) mostra o buraco, que parece enorme, e a bolinha, vindo de lá para cá. Ela se aproxima do tal buraco e para exatamente na borda. Alguma formiga, contratada pelo Greenpeace, impediu que o desastre ocorresse. O birdie não foi alcançado e o Tiger deverá conformar-se com o segundo lugar. Ele atira o boné, que por sinal traz o seu logotipo, no chão, simbolizando a instrumentalidade dos seres humanos diante das forças da natureza. Aquilo que ele supõe ser um fracasso é, na verdade, a vitória contra o terrorismo, pois logo chega o pessoal do FBI, que recolhe a bolinha e mostra aos atônitos players do que é capaz a maldade humana. Que, felizmente, tem contra si a organização e a inteligência que, ao fim e ao cabo, acabam vitoriosas. Enquanto isso a mulher do Tiger contratava detetives para saber a quem mais ele anda mostrando o taco. Responda: dá pra não chorar diante disso?  
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Diálogo (à maneira do Woody Allen)

O jovem casal está ali, diante da igreja, certamente saindo da missa das seis. Ou preparando-se para entrar e assistir à missa das sete. Ambos têm na mão esquerda um copinho de sorvete. Na mão direita um pequeno objeto que, desta distância, não dá para precisar bem o que seja. Como eles, cadenciadamente, levam a mão direita fechada até a altura da respectiva boca, pode-se presumir que o que eles seguram é uma pazinha de madeira ou de plástico, destinada a retirar do copinho o que ali dentro se encontra. - Missa, que missa?, meu rapaz. Meça bem tuas palavras. Então nós temos cara de quem vai à missa? Olhe bem nos meus olhos. Vocês escritores - se é que cronista merece o nome de escritor - têm essa leviandade de pôr no papel a primeira impressão que lhes ocorre, como se o mundo fosse terminar amanhã. Quer dizer, com o efeito estufa que aí está e com a saúde de ferro do George W., isso é bem possível acontecer, falo do fim do mundo, tudo indica que virá mesmo, mais hoje mais amanhã, mas, até prova em contrário, ainda teremos mais algumas décadas, ou, pelo menos, alguns anos para continuarmos a tomar o nosso sorvete de açaí, como eu e a Annie aqui do lado, minha noiva... - Muito prazer! ... O prazer certamente não é dela, que só lhe deu esse sorriso por força de um condicionamento cultural, já que mostrar os dentes para um estranho é, entre os animais, uma forma de impor distâncias. O sorriso é a sublimação do rosnar. Aliás, que motivo ela teria para mostrar-se alegre diante de um estranho? Especialmente sendo ele um bisbilhotador da vida alheia, como o senhor? Já leu Gramsci? Voltando ao Bush - falo agora com você, amorzinho - repare: esses anos todos com a poluição se acumulando, a imprensa livre amordaçada pelo capitalismo mais selvagem que já houve - veja a opressão do povo livre do Iraque - o nosso povo ordeiro e trabalhador sendo alienado pelas forças oligárquicas imperialistas que mais não fazem do que despejar pão e circo pelos meios de comunicação diariamente, seja valendo-se da televisão, a invadir, sem escrúpulos - veja o caso emblemático do BBB - os lares da classe obreira, aproveitando-se de jornadas de trabalho estafantes e que retira do povo - retira, não: diminui - sua capacidade de resistir e lutar por uma sociedade mais justa, seja o cinema... - O seu sorvete vai derreter. ... Obrigado. Bom esse sorvete de açaí, né bem? Eu ainda não tinha experimentado. Ele me fez pensar em mudar o enfoque da minha tese. Em lugar de escrever sobre a possibilidade e evidência de que Deus não toma sorvete, eu reconsiderarei a extenção da obra, ... - Extensão é com s e não com ç. ... considerando que ainda não é minha tese de doutorado. Mas, como eu lhe dizia, minha querida, antes de ser interrompido por esse, esse. - Desculpe. Pois veja bem: se Deus é infinito, tudo n'Ele é infinito. Inclusive sua sede e seu bom gosto. Ora, quem tem bom gosto e tem sede toma sorvete. Sei que, dito assim, fora do contexto e sem os prolegômenos próprios de uma tese acadêmica, pode parecer anúncio da Kibon. Ou do sindicato dos fabricantes de sorvete. O Mezan disse que eu não me preocupasse com esses aspectos formais. "O que conta é a essência! O que conta é a essência! Depois a gente vê isso." Simpático o Mezan, sabia? Eu achava aquilo de ele escrever no Estadão uma concessão pequeno-burguesa, mas nada como enfrentar a fera cara a cara, olho no olho. Sabe que ele leva jeito? Estou usando expressões dele. "Você leva jeito, Vladimir". Foi o que o Mezan me disse. Não entendi porque ele me chamou de Vladimir, mas você há de concordar que é um nome um tanto..., um tanto..., como direi?, revolucionário, é ou não é? Bom isso, né? Sabia que ele não é formado em Psicologia? Lá na PUC o pessoal chama ele de epistemólogo. Bom ele me aceitar como orientando, cê não acha? Voltando à minha tese: se Deus tem fome e sede, como admito, ex ante, que Ele tem, então não haveria sorvete no mundo, pois todo sorvete produzido seria destinado a satisfazer essa sede infinita. Sacou? O problema é que hoje foi já a quarta vez que eu pedi sorvete de coco e o rapaz disse que de coco ele não tem. "Outra vez?", eu perguntei. Ele fez uma cara de quem sabe mas não quer contar. Você reparou, bem? Eu ainda insisti: "mas quando chega?" E ele: "Só Deus sabe!" O ônibus para no ponto situado diante da igreja. Os dois jovens atiram os respectivos copos plásticos no jardinzinho ali mais ao lado esquerdo, considerando a posição de quem entra na igreja. Ele passa, várias vezes, a palma da mão direita na lateral da calça, segura, com a mão esquerda, o braço direito da noiva - coisa que o Mezan certamente diria que é exercício de posse e domínio - e ambos se apressam para tomar o ônibus, pois o próximo sabe-se lá quando passa. Antes de subir, o rapaz ainda me dá uma olhada, com ar de superioridade. Parece-me que ele me exibe o pulso direito fechado, com um dos dedos voltado para o alto. Não tenho muita certeza, pois não deu pra ver muito bem. Acho que devo ir ao oftalmologista.   A coluna Circus, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo ilustre migalheiro Adauto Suannes, autor do livro "Justiça & Caos" (clique aqui). Conheça também o blog do colunista clicando aqui. 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Ao deputado federal Antonio Carlos de Mendes Thame, um oásis moral perdido no deserto brasiliense Rubem Alves, com sua dupla autoridade de psicólogo e entendedor das coisas divinas, nos diz, no excelente O Velho que acordou Menino, que todas as pessoas normais têm o ímpeto de furtar. Antes de falar de seu primeiro furto, afirmação que nos faz supor que deve ter havido outros, ele traz o aval de ninguém menos do que Santo Agostinho, que, mesmo tendo no quintal de casa frutas deliciosas, não se pejava de pular o muro, apenas pelo prazer de provar da fruta alheia. E o santo certamente não desconhecia que a Humanidade é fruto do furto de uma fruta, se me permites o deboche. Aliás, se a tendência do ser humano fosse a de respeitar a vida e o patrimônio alheios, para que se perderia tempo contemplando isso no Decálogo? Quem faz a pergunta não sou eu, mas o Rubens, mineiro bom de prosa, o que é uma redundância. O A Arte de Furtar não foi atribuído a ninguém menos do que o padre Vieira? Pois então. Consciência tranquila ante minha normalidade, vou buscar em minha biografia aquilo que me equipara ao autor do Confiteor. Se Agostinho podia furtar e depois invocar sua pecadora humanidade, quia non ego? Veja lá, meu caro Príncipe Credídio, se a ferrugem do tempo não me comprometeu, dentre outras coisas, também o latinório. Se o bispo de Hipona, que era tudo aquilo, podia, certamente eu, ligeiramente mais pecador do que ele, também poderei. Nem que seja à custa de uma tal isonomia, o que quer que isso signifique em grego. Era o que eu certamente teria dito, pro domo mea, se tivesse lido o Rubem Alves em minha juventude. E se o livro dele já tivesse sido escrito, é claro. In illo tempore, falo do meu tempo de menino, nossa turma, inspirada no personagem do Edgard Rice Burroughs, que jamais esteve na África, personagem aquele vivido nas telas pelo campeão olímpico Johnny Weissmuller, disparadamente o melhor Tarzan de todos os tempos, inventou uma brincadeira de pega-pega na qual, em lugar de alguém ter de procurar os que se escondiam no mato, o sorteado, depois de contar até 21 de abril e dizer "quem não se escondeu não se esconde mais", deveria alcançar alguém da turma dentre os que se encontravam encarapitados no alto de alguma das árvores da "chácara do alemão". Esse tal alemão era ninguém menos do que o patriarca da família Baumgarten, que depois se notabilizou e enriqueceu fabricando um impermeabilizante que se mistura no reboco, coisa que o Leonardo Da Vinci desconhecia quando resolveu pintar a Santa Ceia, hoje definitivamente comprometida pela umidade e o bolor, rico filão (mais um) para o Maurício de Souza. O fato é que subíamos nessas árvores, na maioria altíssimos pinheiros, e, à medida que fazíamos isso, o galho vergava e caía sobre a árvore mais próxima, para a qual passávamos, qual bando de macacos. De vez em quando o galho estalava e um de nós despencava diretamente ao solo. Não me consta que alguém tenha sofrido algum dano físico em decorrência da queda. Agora o furto. A vida não é só subir e descer de árvores. O tal alemão tinha um pequeno pomar, onde plantava abacaxi, que, segundo a lenda, era protegido à custa de tiros de sal. Pois depois da emoção do pega-pega, nada como a emoção de furtarmos abacaxis da chácara do homem. Não me lembro de termos furtado uma única, uma só que fosse fruta madura. O abacaxi furtado sempre estava verde, circunstância que seria contornada despejando-se sal nas rodelas. Que nenhum de nós, mesmo assim, ou por causa disso, conseguia comer. Parece até coisa do Jô Soares, que, no tempo em que era menos chato (acho que foi a queda da moto), apresentava uns standings shows (naquele tempo, a língua paralela do Brasil ainda não era o Inglês) deliciosos. Num deles, ele abria uma lata de cerveja, que dizia estar na temperatura ambiente, como lhe havia ensinado um alemão, despejava sumo de limão, tomava um gole e suspirava: "que merda!". Nosso abacaxi não era diferente. O prazer, porém, como diz o Rubem, não estava no objeto, mas no ato. Coisa hormonal, certamente. Já adulto e lidando com as coisas do Direito, impressionava-me o fato de os ladrões não se contentarem com o butim conseguido, por maior que fosse. Já naquele tempo eu não engolia isso de a pobreza estar por trás desses crimes. Fosse isso e não teríamos a horda de políticos que temos, até com direito a vaso de sete ervas. Faça uma lista dos teus preferidos e procure conhecer o montante do patrimônio deles. Ou espere que algum deles morra e os seus herdeiros venham a público brigar pelo patrimônio amealhado apenas com a atividade política do de cujus. Ou o auxiliar mais próximo, lesado na partilha. Que sente um ladrão ao conseguir consumar o ato de rapinagem? Eis uma pergunta que sempre me intrigava. Deve haver aí um prazer que compensa o risco. Para tentar respondê-la, nada como fazer o mesmo. Pronto, o pretexto científico estava arranjado. Agora era focar o objeto do furto. Eu e todas as pessoas normais sempre tivemos a tendência de colecionar alguma coisa, a começar pelas Balas Futebol de nossa infância ou as figurinhas que vinham dentro do Café Jardim. Pois eu agora, já adulto, colecionaria paliteiros com grife. Logo eu que tenho horror de quem palita os dentes em público, eis a ironia. E só colecionaria paliteiros furtados. Para tanto, desenvolvi uma técnica complicada: eu, inicialmente, limpava os lábios com o guardanapo, que depois jogava sobre a mesa. Ele caía exatamente sobre o paliteiro. Terminada a refeição, eu pegava novamente o guardanapo, agora recheado com o paliteiro, e trazia à boca. Com a outra mão eu recolhia o paliteiro, que seria escondido dentro da meia (hoje transformada em porta-dólares), com receio de uma revista por parte de algum maitre mais desconfiado, até porque era importante cercar aquilo de toda emoção possível, como eu havia visto no filme francês Du Rififi chez les Hommes, dirigido pelo Jules Dassin, que, como teu avô não sabe, não era francês, mas norte-americano, auto-exilando-se na França por conta do macartismo. Foram dezenas de paliteiros enfeitando o barzinho de casa, furtados em cidades diferentes, que eu exibia envaidecido a meus atônitos e incrédulos amigos. Por fim, o impensável: furtei um paliteiro de um restaurante norte-americano. Quando dei conta de meu atrevimento, concluí que era hora de parar com aquela estupidez. Imaginem o que ocorreria se alguém me surpreendesse no cometimento de um tal furto no território da law and order, da tolerância zero? Só de pensar nas possíveis manchetes dos jornais eu tinha calafrios. O tempo passou e me dou conta de que outra pessoa respeitabilíssima se confessa vítima da, digamos assim, síndrome de Santo Agostinho. Em sua autobiografia, Um homem Um Rabino, Henry Sobel, de tantos serviços prestados à causa da Justiça, relata o famoso episódio das gravatas, ocorrido, aliás, nos Estados Unidos, como amplamente noticiado pela imprensa. E diz mais no mesmo livro: vinte anos antes desse recente fato ele já havia tido experiência semelhante com gravatas também nos EUA. Positivamente, deve haver alguma explicação teológica para a coisa.   A coluna Circus, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo ilustre migalheiro Adauto Suannes, autor do livro "Justiça & Caos" (clique aqui). Conheça também o blog do colunista clicando aqui. 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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Presunções

  "Ex-Secretário liga tucano a mensalão."Jornal Folha de S.Paulo, edição de 1° de Dezembro de 2009 "Número 2 da polícia científica de SP é acusado de mais fraudes."Jornal Folha de S.Paulo, edição de 1° de Dezembro de 2009 "CPI pede investigação sobre diretor da Aneel."Jornal Folha de S.Paulo, edição de 1° de Dezembro de 2009 "Procuradoria acusa de novos crimes diretores de empreiteira."Jornal Folha de S.Paulo, edição de 1° de Dezembro de 2009 "Depois do PT e PSDB, Democratas enfrentam escândalo de pagamento de propinas a aliados de Roberto Arruda."Jornal Folha de S.Paulo, edição de 1° de Dezembro de 2009 "Não existe nenhum país no mundo que ofereça tamanha proteção (aos acusados). Portanto, se resolvermos politicamente - porque esta é uma decisão política que cabe à Corte Suprema decidir - que o réu só deve cumprir a pena depois de esgotados todos os recursos, ou seja, até o Recurso Extraordinário ser julgado por esta Corte, nós temos que assumir politicamente o ônus por essa decisão."Ministro Joaquim Barbosa, quando do julgamento do HC 84078/MG pelo STF Se você conhece alguma coisa da vida sabe que o criminoso é alguém que demonstrou não respeitar as regras de convivência social. Se conhece alguma coisa do Direito Penal certamente sabe que uma das finalidades da pena é proporcionar a ressocialização de quem cometeu um crime. Imaginemos, porém, que você seja leigo em Direito. Você passa por uma avenida pela manhã e vê um automóvel inteiramente desfeito, com aqueles ferros retorcidos empilhados junto a um poste, sangue na calçada correspondendo ao passageiro que ali era transportado. Se você é um adulto que conhece as coisas naturais da vida, o que os juristas costumam chamar de illud quod plerumque accidit, aquilo que normalmente acontece, sabe que: a) automóveis não foram feitos para colidirem contra um poste, mas para trafegarem no chamado leito carroçável; b) os automóveis são construídos com material resistente e só se desmancham quando colidem contra um obstáculo, em alta velocidade. Aqueles dados à sua disposição permitirão que você chegue a algumas conclusões: a) o automóvel colidiu contra o poste por haver saído indevidamente do leito carroçável; b) os danos produzidos na colisão sugerem que ele estava trafegando em velocidade incompatível com a que seria razoável nas circunstâncias. Logo, concluirá você que esse motorista acaba de cometer um crime de trânsito, causando danos físicos ao passageiro ou sua morte. Se, entretanto, ao seu lado estiver um advogado criminalista, ele bradará: "Enquanto não for comprovada a culpa desse motorista em um processo judicial, assegurando-se a ele ampla defesa, com a possibilidade de interpor todos os recursos previstos em lei, ele deve ser considerado inocente". Circula por nossa rua o Pepeu, um desses homeless (dito em inglês dói menos no ouvido) que há em todos os bairros, que arrasta consigo, além das conseqüências da falta de banho, um carrinho de feira repleto de pacotes e mais pacotes, todos cheios de inutilidades que ele colhe nas ruas. Imagine que amanhã, em lugar de um carrinho desses, ele aparecesse dirigindo uma Mercedes-Benz. Que você pensaria? Se fosse advogado, diria que não podemos prejulgá-lo, confundindo Código Penal com Evangelho. Você então concluirá que os operadores do Direito são gozadores ou débeis mentais, pois, de acordo com o citado illud quod plerumque accidit, a presunção evidente, decorrente daquilo que ali está exposto, é no sentido de que o motorista foi imprudente, ao imprimir velocidade inadequada ao veículo, e imperito, ao deixar o automóvel desgovernar-se. Logo, a menos que ele justifique cabalmente sua conduta, a presunção será de culpa, não de inocência, até porque o fato se passou na madrugada e não havia qualquer testemunha presencial. O tal advogado, ao ouvir isso, lhe entregará um cartão de visitas. "Não saia à rua sem ele", dirá a você, com um sorriso de mofa no rosto. Imaginemos agora que você more num prédio de apartamentos, no qual moram várias famílias, cujas crianças costumam brincar num playground situado nos fundos do terreno. No terceiro andar mora um rapaz, dono do apartamento, cujo quarto tem a janela voltada para o tal playground. Ele encontra-se em gozo de férias e, por isso, pretendia dormir até mais tarde, o que o barulho da criançada não permite. Ele então empunha sua espingarda de caça e vai abatendo, uma a uma, as perturbadoras crianças, como se estivesse em Columbine. (clique aqui) Ele vem a ser preso, é lavrado o auto de prisão em flagrante e arbitrada fiança, pois ele é primário, tem residência fixa e emprego. Paga a fiança, ele é solto, voltando para casa. Vamos dramatizar ainda mais: uma das crianças mortas era seu único filho. Como você se sentiria cruzando diariamente com aquele vizinho no corredor do edifício ou subindo com ele no mesmo elevador? Que ideias lhe viriam à mente? Oferecida denúncia contra ele, o defensor arrola meia dúzia de testemunhas, dentre as quais Gisele Bündchen e Ricardo Izecson Santos Leite. Serão expedidas cartas rogatórias para ser tomado o depoimento da itinerante modelo onde quer que ela esteja desfilando e para ser ouvido o tal rapaz, que atua no futebol da Europa sob o nome de Kaká. Anos depois, quando voltarem as cartas rogatórias devidamente cumpridas, a defensoria requererá que o jogador e a modelo sejam submetidos a acareação, cujo indeferimento caracterizaria cerceamento de defesa. Quanto tempo mais será necessário? Imaginemos que um dia a instrução desse processo termine e sobrevenha uma sentença condenatória. Condenatória? Coisa nenhuma. Será uma sentença determinando que o réu seja submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. O acusado continuará a circular pelo edifício onde vocês dois moram, pois é primário e tem bons antecedentes. E continua sendo legalmente inocente. A primeira providência da defensoria será apresentar um recurso de Embargos de Declaração, para que o juiz explique melhor algum trecho da sentença. Esse recurso será rejeitado ou acolhido, publicando-se o resultado meses depois. Sobrevem então o recurso propriamente dito, que deverá ser apreciado pelo Tribunal de Justiça, recurso esse no qual a defensoria certamente arguirá umas tantas nulidades e pedirá a despronúncia do recorrente, como é de praxe. Os autos do processo irão à Procuradoria de Justiça, de onde retornarão no ano seguinte. Enquanto isso você continua a cruzar com o mesmo vizinho no corredor do edifício onde ambos residem. Anos depois, o recurso será julgado, confirmando-se a decisão que mandara o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri. O Acórdão será então lavrado, assinado, registrado e publicado, o que exigirá uns tantos meses. A defensoria, então, apresentará recurso de Embargos de Declaração, para que seja esclarecido isto e mais aquilo. Meses depois os tais Embargos serão julgados, o respectivo Acórdão será lavrado, assinado, registrado e publicado, o que exigirá mais alguns meses. Enquanto isso você continua a cruzar com o recorrente no corredor do edifício onde ambos residem, pois ainda não é o caso de expedir-se mandado de prisão, já que o réu continua sendo legalmente inocente. Agora a defensoria apresenta não apenas um, mas dois novos recursos. No primeiro, dito Recurso Especial, ela invocará violação de algum preceito constante de lei federal; no outro, dito Recurso Extraordinário, a defensoria alegará violação de algum preceito constitucional, coisa que qualquer rábula sabe fazer. Os autos irão novamente à Procuradoria de Justiça, de onde retornarão no ano seguinte, com pareceres sobre um e outro desses recursos. Eles serão então despachados pelo Presidente do Tribunal de Justiça que ou manda que o recurso seja enviado ao tribunal de Brasília competente para apreciá-lo, ou indefere o recurso. Do indeferimento caberá novo recurso, dito Agravo de Instrumento, que será apreciado por um Ministro de um Tribunal Superior, em Brasília, sabe-se lá quando. Em Brasília caberão tantos recursos de Embargos de Declaração quantos a imaginação e a criatividade do Advogado conseguirem criar. Quando algum deles for indeferido liminarmente, sob a alegação de ser meramente protelatório, sempre caberá o recurso de Agravo Regimental, cuja decisão também admite novos Embargos Declaratórios. Enquanto isso você continua a cruzar no corredor do edifício, onde ambos ainda residem, com a pessoa que, anos atrás, quando os cabelos de tua esposa ainda não eram grisalhos e quando havia cabelos em tua cabeça, disparou contra crianças que faziam algazarra no playground do edifício onde você e ele já viviam. Lembra-se? Repare que até agora ele ainda não foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. Quando isso ocorrer e ele for condenado, finalmente ele será preso e começará a cumprir a pena. Certo? Errado. Ainda faltam ser interpostos muitos e muitos recursos. (clique aqui) Quando tiver sido definitivamente julgado, o tal rapaz, agora um respeitável senhor, casado e bem empregado, deverá deixar o emprego e a família para passar uns tempos atrás das grades. Uns anos mais e ele sairá de lá presumivelmente ressocializado. Esse trabalho merece uma crítica técnica: enquanto o Tribunal do Júri não afirma sua culpa, o homicida deve ser considerado tecnicamente inocente. Acontece que mesmo depois de condenado pelo Júri, sabe-se lá quando, ele continua em liberdade. Depois de confirmada a condenação no Tribunal de Justiça, ele continua solto. Rejeitado o Recurso Especial pelo Superior Tribunal de Justiça, ele continua solto. Denegado Recurso Extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal, ele ainda continuará solto. E tanto num como em outro desses tribunais caberão ainda recursos e mais recursos. Tudo em nome das "garantias do acusado". E como ficam as garantias da sociedade?
sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Assalto (O)

"A humanidade tem medo da morte, mas incertamente." Bernardo Soares(nascido Fernando Pessoa) E se eu lhe disser que era uma ruazinha muito estreita, com casinhas antigas, pintadas de verde, de rosa, de amarelo? Pintura ainda mais antiga, já desbotando? Casas geminadas, com janelas fronteiras junto à calçada, de tal sorte que os passantes adquiriam certa familiaridade com as moradoras, o dia todo pendurados na janela, peitos apoiados nos braços cruzados, olhando para cima e para baixo. Pois, além de estreita, a ruazinha era uma ladeira. Cá de baixo a impressão era que as casas se juntariam, frente com frente, antes de subirmos aquele aclive todo. Um ou outro sobrado quebrava a monotonia daquela geminação que não terminava nunca. Pintura de Volpi? Talvez. E se, além disso tudo, eu lhe disser que naquela ruazinha insignificante havia um banco? Não falo desses bancos de praça pública, mas de um autêntico estabelecimento bancário. Pois havia. Dirá você que era uma agenciazinha, perdida ali naquele ermo para satisfazer algum político local. E eu lhe direi que era uma agência com um razoável movimento, que provinha especialmente da fábrica de brinquedos de plástico que havia no bairro. Sim, porque havia, na rua paralela, uma enorme fábrica, que praticamente empregava a cidadezinha toda. Via-se da ruazinha a chaminé, resfolegando aquela fumaça acinzentada lá pelas quatro horas da tarde. Havia horário certo para isso, que os moradores iriam à sala do Promotor, se fumo rolasse mais de uma vez ao dia. Ou pela manhã, onde já se viu isso? O horário acertado para a descarga daqueles resíduos havia sido combinado na Delegacia de Polícia, que ficava umas quatro ou cinco quadras além. Crianças com bronquite, velhos com asma, senhoras com olhos lacrimosos, empregados com doença do trabalho. E o delegado procurando contornar a situação mais o gerente da agência bancária, que não era besta de perder aquele movimento mensal e suas comissões sobre a receita do banco. Quatro da tarde fechavam-se as janelas das casas. Quem olhou, olhou. Pois saiba que era uma agência com um movimento enorme de dinheiro já que a fábrica despejava ali seus débitos e créditos. O décimo dia útil do mês era dia de romaria. A ruazinha não dava para o povaréu que ia receber o salário. Vinham dois ou três soldados, pondo ordem naquela fila que crescia ladeira abaixo. Nos outros dias, a afluência nem merecia esse nome pomposo, bastando o guarda particular para impor respeito, mesmo ficando dentro da cabina a ler o jornal com o radinho berrando algum sucesso musical do momento. Vez ou outra o responsável pela segurança dos correntistas saía da cabina, esticava as pernas e os braços, como um gato que tivesse estado a dormir a tarde toda sobre sacos de batatas. Girava pelo banco, com a solerte mão na coronha da arma. Também se permitia ir até o bar, quase sempre rodando o revólver no indicador da mão direita, Gary Cooper sem desafeto à vista, como pensaria ele, se fosse mais velho. Deu-se que o nosso caubói retornava de uma dessas escapadelas quando divisou no alto da ladeira um fusca largando uma fumaceira doida, como diria uma testemunha mais tarde, mineira, já se vê. E lá vem o carro, turíbulo motorizado, diria o padre, despencando ladeira abaixo. O guarda mal chegou a notar que eram dois rapazes os ocupantes do fumegante objeto quando este parou, praticamente defronte ao banco. Pela inércia, a fumaça envolveu o automóvel, de onde saltaram os dois rapazes, compreensivelmente tossindo. O guarda, antes de prestar socorro aos atribulados recém-chegados, ainda auxiliou uma senhora muito idosa, a julgar pela dificuldade com que se movimentava, a atravessar a rua e entrar no sobredito estabelecimento bancário. Não chegou a notar, como declararia ao Delegado algumas horas depois, se havia muitos ou poucos clientes na agência bancária. Sua preocupação, naturalmente, senhor Delegado, era retirar das proximidades do estabelecimento aquele veículo, pois as normas de segurança, o senhor sabe, impedem que se estacione ou apenas se pare veículo motorizado diante de agências bancárias. O Delegado sabia. "Mas não lhe passou pela cabeça que aquilo poderia ser um golpe?" Não, senhor Delegado, em momento algum em suspeitei de algo, declarou o guarda, como narraria o escrivão à sua esposa horas mais tarde, imitando o tom pernóstico do depoente. "Mas, querido, quem iria supor que aquela fumaceira danada era produzida por gelo seco dentro de uma latinha d'água? Imaginação os rapazes tiveram." E ousadia, rematou ele. Tudo preparado, tudo muito bem preparado, minha cara. Enquanto um deles desarmava o pateta do guarda, o outro corria para dentro do banco. Era o sinal para que um terceiro elemento tirasse do casaco (quem diria? e o detector de metais?) uma escopeta. Uma escopeta! Tudo cinematograficamente preparado. Não faltou nem mesmo o "todos para o banheiro". O gerente quis ajudar a velhinha, que se movia com extrema dificuldade, como diria uma senhora depois, e acabou levando uma pancada na testa. Sangue rolando e equilibrando-se no enorme nariz do gerente, as pessoas limitaram-se a um oh! e nada mais. O pior não foi isso, doutor. Um dos facínoras passou o braço pelo pescoço da velhota, deu uma gravata nela, como eles dizem na televisão, xingando a pobre da velha de múmia inútil. Apontou a magnum, magnum!, minha filha, olha só onde estamos!, para a cabeça da já assustadíssima velha e perguntou quem ali já tinha visto miolo esclerosado ao vivo. É por isso que eu sou favorável à pena de morte! Miolo esclerosado! Isso é coisa que se diga a alguém com idade provecta? Diga, minha filha, isso é coisa que se diga? A repórter preferiu não responder. O fato é que a velha foi levada até o outro lado da rua, tropeçando nos paralelepípedos, pois o prefeito não arruma essas ruas, é só promessa em véspera de eleição, doutor, sem ter bengala em que se apoiar. O guarda declarou que, enquanto o carro soltava fumaça de gelo seco, coisa que ele desconhecia, ele deu o braço à velha e a levou até a mesa do gerente, diante de quem ela se sentou, pois estava com falta de ar. Uma velha de aspecto cândido, disse o gerente em seu depoimento. Aspecto muito cândido, disso eu me lembro muito bem. Ela trazia um casaco de cor cinza, parece que todas as velhas usam casaco de cor cinza. Os cabelos estavam presos em um coque, acho que é esse o nome daquilo. O que também me parece comum a todas as velhas. O que me chamou a atenção nela, porém, eram seus olhos. Uns olhinhos azuis, muito vivos. Enquanto ela falava comigo, pedindo desculpas pela ousadia, como ela dizia, os seus olhinhos percorriam o interior da agência. Eu tenho a cadeira da gerência situada em um ponto estratégico, para que eu possa ver tudo o que se passa no banco. O botão de alarme, que me liga à Delegacia, fica a pouco mais de um metro de minha cadeira. Se eu não estivesse ocupado atendendo a simpática velhinha, certamente eu teria visto quando o rapaz se aproximou de nós dois, muito gentil, dizendo que estava tendo uma dificuldade no caixa e que eu deveria resolver. Abriu a pasta e, quando eu pensei que ele iria me mostrar algum papel, mostrou-me uma arma. Uma arma, seu delegado! Claro que eu não posso dizer se era de verdade ou de brinquedo. Eu lá entendo de arma, doutor? O delegado fez outras indagações sobre o sistema de segurança do banco, mas o gerente desconversava. Eu não sei informar se era Taurus ou Rossi, calibre 32 ou 45. Nem a cor dela eu sei lhe dizer, doutor. Nem a cor! Naquele nervosismo, meus pensamentos estavam divididos, mesmo porque foi a primeira vez que isso me aconteceu. Eu não sabia se pensava na velha, se pensava no dinheiro da empresa que estava no cofre, para o pagamento do pessoal no dia seguinte, ou se pensava, sou sincero, na minha segurança pessoal. Mas, quem saberia que a empresa costumava trazer dinheiro na véspera? Quem? Nossa agência tem pouco movimento, seu delegado, praticamente aquela agência só existe em função da fábrica. Eu não descarto a hipótese de algum funcionário, com raiva da diretoria, ter dado aquelas informações aos assaltantes. Tudo corria normal, seu doutor. Mesmo as saídas do guarda, para se espreguiçar, é coisa de rotina. Quem suporta ficar horas e horas trancado naquele cubículo? Quem, seu delegado? Dizer que isso poderia fazer parte do plano é coisa que não me cabe avaliar, mas eu conheço aquele guarda há alguns anos e não me parece que ele tenha algo a ver com aquilo tudo. Ele é uma pessoa meio beócia. Para ser mais justo: ele é atencioso demais. Era bem capaz de atender a algum pedido de auxílio, como ele diz ter feito, mesmo diante do banco. Sei lá. Parece que os exames psicotécnicos não servem mais para nada. Admitir como guarda alguém sem malícia? Ele me disse que nem o rosto dos rapazes chegou a guardar! Veja só o senhor. Não guardei a fisionomia dos rapazes do carro, doutor delegado. Como eu iria esperar que aquilo tudo fazia parte de um golpe? Eu sei que deveria estar preparado para tudo, mas eu acho que aquela velhinha amoleceu meu coração. Acho que foi isso. Quando eu vi aquela velhinha atravessando a rua e aquele carro despencando ladeira abaixo, eu ainda perguntei a meus botões: se aquele maldito fumacento não diminuir a marcha, como é que essa velhinha, que parece minha mãe, vai chegar do outro lado da rua? Iria chegar sem meu auxílio? Mas nunca, seu doutor. A velha ali parada no meio da rua, sem saber se avançava ou recuava, com o carro despencando. O que que o senhor faria, doutor? Diga. O que o senhor teria feito foi aquilo que eu fiz: ajudei a velha a atravessar a rua. E não me arrependo. Me mandaram embora, me chamando de trouxa, de irresponsável. Acontece que o dinheiro do banco estava no seguro. E a vida da velha, estava? Mas o senhor não precisava levá-la até o gerente, precisava? Foi ela quem me pediu. Ela tinha um cheque que precisava ser visado. Visto de cheque é com o gerente. Como é que eu poderia imaginar que aquilo era para distrair o homem? Também disseram que eu não deveria ter tentado ajudar os rapazes a tirar o carro esfumaçado dali. Se eu não providenciasse a retirada do automóvel, seria punido por isso; como fui providenciar a retirada ao carro, fui mandado embora por desídia. Quem entende isso, doutor? E os bombeiros? Por que o senhor não chamou os bombeiros? Eu poderia ter chamado os bombeiros, realmente, mas o senhor sabe quanto demoram os bombeiros? Faça os cálculos: daquela ruazinha até o posto dos bombeiros são uns cinco quilômetros. Mas, e o trânsito? Quase seis horas da tarde? Eu sei que o expediente do banco vai até as quatro, mas que diferença faz o trânsito depois das quatro horas? É tudo igual, seu doutor. Ali, no meio daquela fumaceira da moléstia, o rapaz me tira da cintura um trinta e oito, seu delegado. Eu até cheguei a pensar que aquilo fosse uma chave inglesa ou um alicate. Ia dizer a ele "pra que isso?", mas quem fala alguma coisa naquele momento? Ele tirou a minha arma da cintura e eu lhe garanto que me tiraria também as calças, se quisesse. "Você sabe que não estamos aqui para brincadeira", ele me disse, assim com essa voz forte. Foram legais comigo, não me agrediram, apenas me falou assim, solene. E a arma encostada nas minhas costelas. O senhor reagiria? Claro que não. Enquanto ele me levava para dentro do banco, as pessoas ali em volta do carro, tentando apagar o fogo que nem existia. Aí eles nos levaram todos para o banheiro. Um cubículo daqueles e coubemos eu, o gerente, as três caixas, a dona Zefa da limpeza e mais dois clientes. Foi a dona Zefa quem fez um curativo na testa do seu Lindonor. Um cortinho de nada, mas pegou uma veia e fez aquele rio na cara dele. E a velha ficou onde? A velhinha não veio, não, senhor. Acho que eles devem ter matado ela. Eu vi um deles dando uma gravata nela e falar alguma coisa de miolo, mas eu não sei o que foi. A velha foi ficando branca, mas não veio para o banheiro com a gente. Acho que ela morreu nas mãos deles. Fui eu que fiz o curativo na testa do gerente, sim, senhor. Lá no banheiro havia uma caixa de primeiros socorros e eu peguei o curativo lá. Eu vi quando os rapazes saíram do banco arrastando a velhinha pelo pescoço, assim como se fosse coisa de filme de televisão. Eu ainda pensei em dar uma vassourada num dos rapazes, mas o que que isso iria adiantar, seu delegado? Aí eles me mandaram ir com os outros para o banheiro. Que eu poderia fazer com uma vassoura se eles tinham até espingarda? Além disso, eu sofro de asma, desde que dei à luz meu caçula. Aquela maldita fábrica ali perto. Eu moro, de favor, nos fundos da agência bancária. Logo cedinho eu varro tudo ali. Sou viúva e moro sozinha. Mas, depois desse assalto e com o que eles fizeram com aquela pobre velhinha, eu não sei se continuo a morar ali, não, senhor. Além da asma, assalto. É demais para uma mulher da minha idade. Eu posso dizer tudo o que eu vi, mas só o que eu vi. Eu enxergo mal, veja as lentes dos meus óculos, não posso fixar os olhos na claridade. Por isso, só me chamou a atenção aquele grito de "todos pro banheiro, todos pro banheiro, rápido". Até ali eu não tinha percebido nada. A velhinha não entrou no banheiro, acho que eles levaram a velha com eles. Eu vi quando o rapaz que segurava a velha caminhava de costas, sempre com ela na frente dele, sendo arrastada como se fosse uma coisa. Agora eu posso ir, doutor? Estou tão nervosa! Pode ir, dona Zefa. O caso está encerrado. O seu depoimento foi o último. O Sanches aí vai dar uma tinta para a senhora apor no fim da folha a sua impressão digital. Da próxima vez quero ver a senhora assinar seu nome. Que que está esperando para aprender a ler? Caso encerrado, doutor Fagundes? Caso encerrado, Sanches. Em vinte anos de escrivão você já havia pensado em um caso assim? Uma senhora não tão velha veste-se como se fosse muito velha, para despertar o amor filial de um pobre diabo que não viaja ao Nordeste há muitos anos, para ver sua velha mãe. Esperta, não? A senha para o assalto era a ida do homem ao bar, tomar o café habitual. Dois dos filhos da velha descem com o automóvel, enquanto a falsa velhinha se põe a atravessar a rua em estudado passo de cágado manco. Dentro do banco a velha é estrategicamente colocada diante do gerente, enquanto um terceiro filho dela, vindo por trás, recebe a escopeta que ela trazia dentro do casaco. Os outros dois entram na agência, com o guarda dominado. Eles teatralizam o sequestro da própria mãe, para fins óbvios: "se eles fazem isso com uma velha indefesa, que farão comigo?", pensará cada um deles. Para mostrar que não estão brincando, agridem desnecessariamente o gerente do banco. Trancados todos no banheiro, os quatro saem pela porta dos fundos, onde haviam deixado outro automóvel. Que tal isso? Família que rouba unida permanece unida. No dia seguinte, a grande manchete do jornalzinho da cidade não era o assalto à agência bancária, mas o corpo de uma velhinha, vestindo um casaco cinza, encontrado a boiar nas águas plácidas do riacho local. Seus olhos estavam fechados, diz a notícia.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Rec, rec, rec

  "O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho." João Guimarães RosaSagarana "Quase sempre, a sombra do bicho é maior do que o bicho." apud Cláudia Suannes - Você sente medo, vô? Vou-lhe contar uma história sobre o medo. Quando eu era criança, um pouquinho mais velho do que você ... - Mas eu não sou velho, vô. Velho é o senhor. Tens razão. Eu mudo a frase. Quando eu não era mais tão novinho como você é hoje ... - Assim está melhor. Continuando: quando eu já não era tão criança como meus queridos netos, eu dormia sozinho num quarto, que era também o meu escritório. Lá eu tinha, além da cama e de armário de roupas, uma escrivaninha e uma estante de livros, até porque eu sempre gostei muito de ler. Livros com histórias do Tarzan, o rei da selva, ou com as narrativas do Monteiro Lobato eram os meus preferidos. Ali eu fazia lições de casa, e aproveitava para treinar bola-ao-cesto. - No quarto, vô? Que maneiro! É que, quando eu errava o que estava tentando escrever, eu amassava a folha de papel, formando uma bola, que eu arremessava na cesta de papel que havia no canto da parede. Não conte pra ninguém, mas às vezes eu errava e a bola ficava no chão, fora da cesta. Quando terminava de fazer a lição, eu recolhia todas aquelas bolas de papel e arrumava o quarto, para não merecer o castigo que a fera da minha mãe me impunha. - A bisa te batia, vô? Quando era preciso, sim. Mas geralmente o castigo era ficar sem sobremesa. - Eu prefiro um puxão de orelha. Mas eu devo dizer que os castigos eram raros. Pois certa noite, eu fiquei fazendo a lição até muito tarde. Aquilo me deixou tão cansado que eu fui dormir sem arrumar o quarto. Acho que nem pijama eu pus. - Que exagero, vô! Podes crer. O fato é que eu caí no sono logo, mas acordei de madrugada, tudo ali muito escuro e um barulho estranho no quarto. Era um rec, rec, rec, como se alguém estivesse serrando madeira. - Maior medão! Bota medo nisso. Eu pensei que fosse um ladrão querendo serrar a porta para entrar no meu quarto. Veja se pode. - E não era, vô?. Eu fiquei com tanto medo que não conseguia sair da cama. Acho até que fiz xixi no lençol. E aquele rec, rec, rec não parava. E aquela escuridão que parecia cada vez maior. Acho que sua mãe está chamando. Amanhã eu conto o resto. - Não vem com essa, vozão. Minha mãe não está me chamando nada. Isso é invenção sua. Se você ficar sem sobremesa, não ponha a culpa em mim. - E eu lá sou homem de não assumir o que eu faço, vô? Senti firmeza, guri. Então vamos em frente ... - ... que atrás vem gente! Aprendeu, hein? Pois bem. Aí o macaco perguntou à coruja: - Nem macaco, nem meio macaco, vozão. Não mude de história, que esse teu truque é muito manjado. Você mistura duas histórias, pensando que eu sou bobo pra cair nessa. Quero saber se o ladrão entrou ou não entrou no teu quarto. Você parou a história quando estava fazendo xixi na cama. É verdade. Ainda bem que eu tenho você para me ajudar. Eu estava na cama, embaixo das cobertas, morrendo de medo, e aquele rec, rec, rec ecoando no quarto. Fechei os olhos e rezei todas as orações que eu conhecia. Sabe que aquilo me deu coragem? Eu disse a mim mesmo: afinal de contas, você é um homem ou um rato? - E que foi que você respondeu pra você, vô? Eu disse: qüim, qüim, qüim. - Já sei: você se achava um rato. É isso aí. Mas, em seguida, eu mesmo respondi: o Mickey também é um rato, mas ele tem coragem. Empurrei as cobertas, sentei-me na cama, enchi o peito de ar e pensei: se o Tarzan pode, por que eu não haverei de poder? - Esse é o meu vozão! Obrigado. Levantei-me da cama e avancei na direção do interruptor de luz, que ficava na parede do outro lado do quarto, sem me importar com o rec, rec, rec. Tás pensando o quê? - Grande, vô! Acendi a luz e descobri de onde vinha aquele barulho. - Não era um ladrão? Qual ladrão nem meio ladrão, como diz você. Era um escaravelho. - Escara-velho? Não conhece? Esse inseto é um pouco maior do que o besouro e tem uma particularidade: ele se parece com o rinoceronte. Conhece? - Claro. Então eu não vejo o Animal Planet? Tremendo trator! Então você deve saber que rinoceronte significa "chifre no nariz". Pois o escaravelho também tem uma espécie de chifre na cabeça, voltado para trás. E os dois têm outra particularidade: eles só avançam. Eles não conseguem andar para trás. - Já saquei. O câmbio deles não tem marcha à ré. Mais ou menos isso. Aí é que estava a origem daquele rec, rec, rec. - Não saquei, vozão. Eu explico. O tal escaravelho entrou no meu quarto, vindo do jardim da casa. No fim da tarde alguém fechou a janela e ele não pode voltar para lá. À noite ele se pôs a andar pelo assoalho e trombou com uma das bolas de papel que havia ficado no chão. Ele foi avançando e levando a bola sempre para a frente. Quando a bola encostou na parede e parou, o escaravelho, cujo câmbio não tinha marcha à ré, continuou a pisar no acelerador, patinando dentro da bola de papel. Aquele rec, rec, rec era o barulho produzido pelas patas dianteiras dele contra o papel. - Legal! Aí você matou o mini-rinoceronte e foi dormir. Matar por que? Ele é um inseto inofensivo. Eu retirei o bichinho da bola onde ele estava preso, pus na palma da minha mão, abri a janela e ele voou para a casa dele. Vai ver que naquela noite o neto dele teve de dormir sem ouvir alguma história interessante. - E ele levou com ele o teu medo, não foi?   1Do livro Descontos para Meus Netos (inédito)  
sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Verdades e mentiras

  À Dilma, sem o menor entusiasmo. Não sei se já dei esse título a outra crônica, pois sou não só vidrado no tema como suficientemente preguiçoso para ir conferir isso nos meus arquivos. Verdade ou mentira? Eu já falei dele e sua precocidade (clique aqui), assunto que mereceria não outra crônica, mas um livro. Pois com menos de três anos de idade, o Felipe se mostra um intransigente inimigo da mentira. A avó, en passant, dissera à mãe dele que, na terça-feira próxima, iria visitá-los. Ninguém sabe como ele soube disso. Na terça-feira, ele salta do berço cantando que "Hoje a vovó vem aqui, vem aqui, vem aqui". Quem disse a ele que estávamos na terça-feira? Mistério! Quando voltou da escola, colocou sua melhor roupa (ele é que escolhe as roupas que vai usar no seu dia a dia, inda mais agora que aboliu a fralda, coisa de nenê, segundo seu elevado parecer) e ficou vendo, impaciente, o desenho do Pocoyo para driblar a ansiedade, com um olho na tela da TV e outro na porta de entrada. A mãe, preocupada, resolveu telefonar à avó, dando conta do fato, e lá fomos nós cumprir a promessa, para sermos recebidos com um "Eu não disse?" Festa de aniversário da mesma avó, que distribui às crianças belas mixigas (pronúncia dele) em forma de estrelas. Um dos garotos deixa escapar sua bexiga, que rapidamente ganha os céus. O Felipe vem procurar-nos aflitíssimo, pois alguém ali, gaiatamente, afirmara que a bexiga iria colidir com um avião e haveria explosão e fogo no céu. Queria que fizéssemos algo para impedir o desastre. Isso me fez lembrar de uma passagem na vida de Santo Tomás de Aquino. Diz a lenda que, ainda seminarista, ele já se destacava entre os colegas, que não perdiam oportunidade para pregar-lhe alguma peça (tempos depois Freud explicaria o que está por trás dos chistes). Certo dia um deles pôs-se a gritar no pátio do seminário: "Vejam, um burro voando! Olhem o burro! Um burro voando!" Tomás desceu as escadas correndo e pôs-se a vasculhar o céu, em vão, provocando a gargalhada dos colegas. "Então já viste um burro voar, homem?" Ao que ele teria respondido: "Sempre achei mais fácil um burro voar do que um homem mentir." Ainda o Felipe: o pai deixara o celular, desses que trazem até canivete e palito de dente feito de marfim, sobre a pia do banheiro e lá foi buscá-lo. O menino alcança o telefone antes e ameaça: "Olha que eu jogo ele dentro da privada." O pai apenas sorri e estende a mão direita, sem êxito. "Duvida que eu jogo?" O pai aumenta o sorriso e mantém a mão estendida, em silêncio. Nada de o garoto entregar o telefone (não vou entrar em psicologismos, tentando explicar o que está por trás disso). O pai então abaixa o braço e gira o corpo para sair do banheiro. É quando se ouve um som inconfundível: "Ploc!" E uma afirmação: "Eu não disse?" Luis Fernando Veríssimo tem uma página notável (como se as demais não o fossem) na qual discorre sobre os seios de silicone, que, para muitas pobretonas despeitadas (passe o inevitável trocadilho) são seios falsos. Ele discorda. Falso é aquilo que quer parecer verdadeiro, mas, segundo ele, nem é preciso apalpar para saber que aquele é um verdadeiro seio de silicone. Falsos eram os seios cobertos de soutiens acolchoados, fonte de inúmeras decepções aos coevos de nossos pais e avôs. "Cadê o resto?" devem ter indagado muitos deles em determinadas circunstâncias. Vejam-se os seios da Dóris Day, por exemplo, com aquelas pontas mais agressivas do que convidativas. Naquele filme em que ela estufa o peito, para berrar o "que será, será", a fim de que seu filho, presumivelmente preso no andar de cima, soubesse que ela ali está para salvá-lo, temos um autêntico suspense Hitchcockiano: temos a quase certeza de que aquelas agulhas perfurarão a blusa de seda que ela usa quando a Dóris aumentar o som da música. Para o Veríssimo, nada há na mulher mais verdadeiro do que o seio de silicone. Vou prestar mais atenção no tema, com o elevado propósito de escrever outra crônica a respeito. Aliás, parece que algumas siliconam também as nádegas.
sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Gestos

  "Galileu considerou a descoberta de um meio de comunicar nossos pensamentos mais secretos a qualquer outra pessoa com 24 caracteres a maior das invenções humanas." Noam Chomsky(Novos horizontes no estudo da linguagem e da mente) Ela nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, burgo tornado famoso por ter sido o berço de dois outros personagens. Eles bastante conhecidos; ela nem tanto. Tal como o Roberto Carlos e o Rubem Braga, a Lurian não ficou na cidadezinha capixaba, preferindo tentar a vida em outras paragens. Tímida, olhar triste, marcado pelas olheiras de nascença, ei-la cursando a Faculdade de Psicologia na cidade grande. Seu projeto é concluir o curso e voltar à sua cidade natal, onde passará o resto da vida tentando dar alento aos tristes e mal amados que a procurarem. Mas as Parcas tecem suas armadilhas sem a mais mínima consideração pelos projetos pessoais. Tomam de um jornalista norte-americano e o removem de sua terra natal para um país exótico do sul do continente, de onde ele enviará periodicamente notícias sobre a incompreensível economia local. E onde ele conhecerá, enquanto se aclimata, a psicóloga de olhar triste. E onde se enredarão em romance inimaginável, que dará em casamento. Coisa de cinema! E as mesmas Parcas o chamam de volta a seu país de origem, para onde ele levará a esposa, que, modesta em suas ambições, jamais se havia ocupado de aprender língua que não fosse a materna. E onde ela tentará encontrar o tempo perdido. E ei-la perdida na terra longínqua, buscando meios e modos de comunicar-se. E se marca encontro com o marido no restaurante, lá está ela, com toda antecedência sentada junto à janela, olhos aflitos postos no estacionamento, naquele vem/não-vem aflitivo, já pensando em como sair dali se ele não chega. E eis que se aproxima o garçom e lhe faz pergunta em língua que lhe soa como diálogo cinematográfico. Que ela responde com todo o inglês de que dispõe no momento. "I hope my husband!" é tudo o que ela consegue dizer ao atônito serviçal. Que mais atônito fica quando chega o jovem loiro, sorriso no rosto, que a cumprimenta com intimidade, demonstrando que os céus ouviram as preces da moça estranha. O tempo passa e, com ele, vêm os filhos, a integração dela no novo ambiente cultural, o domínio da nova língua, a adaptação gostosa a novos hábitos, o conhecimento da diferença de significado entre esperar e ter esperança. E com o tempo vem o convite para que a avó materna das crianças venha conviver por uns tempos com os netos. "Nem pensar" é tudo o que a velha senhora pode responder, sem mais condições psicológicas para adaptar-se a uma vida fora dos limites de sua cidadezinha, recanto seguro onde nasceu, viveu e pretende morrer, ressabiada pelas experiências quase traumáticas por que passara a filha, considerando-se ela estar, falo agora da mãe, fora de época para novos aprendizados. Com a promessa de que se cuidará apenas de uma visita, a velha, por fim, acede ao convite. E a filha, ainda na terra natal, se põe a orientá-la, não fosse a mãe repetir os equívocos inúmeros que aquela cometera nos primeiros tempos no país estranho. Se for referir-se a "folha de papel" ou "lençol", não se esquecer de esticar bem o som da vogal, para a coisa não ficar mal cheirosa. "E cuidado com os gestos!" recomendava a filha aflita, esclarecendo, ao fim e ao cabo, que o encontro da ponta do polegar com a ponta do indicador, formando um círculo, a ser exibido com os demais dedos esticados, é a grafia gestual do OK, com que os encarregados do tráfego aéreo dos aeroportos autorizam aos pilotos a partida das aeronaves, a significar que está tudo bem. Que ela não se assustasse com isso. Espantada com algo tão descabido, mais espantada ela ficaria com o que o pai dos burros lhe mostraria: ou aquilo provinha de Zero Killed, que era escrito abreviadamente na entrada do quartel quando nenhum dos soldados amigos havia sido morto na última investida contra os inimigos; ou poderia ser a abreviatura da forma primitiva "oll korrect", com que os nativos caçoavam da pronúncia dos primeiros imigrantes. Como quer que fosse, promete a senhora a si mesmo manter silêncio absoluto e conservar as mãos enrodilhadas em auto-abraço durante toda sua breve estadia no estranho país do norte. Que é para não dar vexame. Silêncio é de ouro, como lhe ensinara sua falecida mãe, que Deus a guarde. E lá está a velha convivendo com os netos, que se comunicam com as crianças vizinhas, cujos pais se mostram afetuosos com a filha da visitante, e que com ela trocam ininteligíveis expressões, emolduradas por sorriso de lado a lado, a mostrar amizade e integração. E dá-se que a veneranda senhora vai com a filha ao supermercado e ali, naquele estacionamento enorme, quem se mostra prestes a entrar no carro senão a descontraída vizinha? E que, ao ver mãe e filha, se põe a falar lá de longe coisas que a velha não entende, mas que a filha responde alegremente, e as duas riem um riso gostoso. E a vizinha agora levanta o braço direito e balança a mão, como se fosse ela uma bandeirinha, dessas que eles acenam nas paradas cívicas, que por certo expressa a satisfação da nativa pela presença ali da estrangeira. E a estrangeira descruza os inúteis braços, retribui com seu melhor sorriso, mas se convence de que aquilo é pouco para expressar sua satisfação retributiva. E em complemento estende o braço direito, que dobra em ângulo reto. O punho fechado continua fechado, menos o dedo médio, com que a alegre senhora ergue e aponta os céus, no mais efusivo cumprimento com que poderia brindar a gentileza da alegre vizinha, algo muito maior do que um burocrático "tudo bem": "que Aquele que está lá no alto te proteja". E a vizinha agora está sendo procurada pela aflita filha da velha senhora, que lhe explica, como pode, a confusão gestual que a mãe havia feito, coisa de gente velha, espera que ela compreenda. E vê que a vizinha compreende, e ri muito disso, dobrando o corpo para a frente, braços batendo na coxa ritmadamente. E a filha agora já sabe que a vizinha contará o incidente a seus outros amigos nas inúmeras festas a que irá, a mostrar como são estranhos esses brasileiros com seus hábitos e seus costumes ainda tão primitivos, incapazes de assimilar conceitos tão óbvios, nem hábitos e costumes novos, em sua insuperável e sobejamente conhecida barbárie.  
sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Sonhos sonhos são

  "Sonho meu,sonho meu,vá buscar quem mora longe,sonho meu." D. Ivone Lara Carl Jung conta-nos que, na África, encontrou uma tribo cujos componentes negavam que sonhassem. Com sua habilidade, ele entrevistou membros dessa tribo e descobriu que isso não era verdade. O que ocorria era que apenas o cacique e o feiticeiro da tribo estavam autorizados a sonhar, pois, nos sonhos, eles recebiam mensagens sobre o melhor modo de administrarem a tribo. Aos demais membros da comunidade não cabia esse privilégio. Há pessoas civilizadas que têm medo semelhante dos seus sonhos. Pode-se dizer que foi graças a Sigmund Freud que os sonhos adquiriram real importância, ao serem considerados um instrumento pelo qual a pessoa procura transmitir a si mesma alguma mensagem, no geral uma mensagem cifrada. Muito embora o sonho seja elaborado pelo sonhador, ele muitas vezes utiliza nisso elementos que não estão no lado consciente da nossa mente. Por outro lado, não temos como conhecer o conteúdo do lado inconsciente da mente, até porque, quando isso acontece, deixamos de falar de algo inconsciente para falarmos de algo de que agora temos consciência. De certa forma, o trabalho do psicoterapeuta consiste principalmente em auxiliar o paciente a decifrar aquela mensagem cifrada, trazendo-a do obscuro campo da inconsciência para o da consciência. Tarefa das mais difíceis, como reconheceu Jung já no fim da vida. "Nenhum símbolo onírico pode ser separado da pessoa que sonhou, assim como não existem interpretações definitivas e específicas para qualquer sonho" escreveu ele em seu derradeiro trabalho. Nos nossos sonhos aparecem principalmente elementos simbólicos, que Freud denominava "resíduos arcaicos", o que poderia sugerir que estamos diante de material imprestável, como o que se joga na lata de lixo. Justamente por isso, Jung preferiu falar em "arquétipos", pois, embora aceitasse que esse material fosse, muitas vezes, arcaico, entendia que seu conteúdo apresenta atualidade e é extremamente útil para o autoconhecimento do sonhador, desde que devidamente interpretado. Façamos uma comparação. Nosso físico apresenta "resíduos arcaicos", como os dedos do pé, ou artelhos. Tais órgãos atualmente não têm utilidade alguma para o ser humano, ao contrário do que ocorre com os pés dos demais primatas, que deles ainda se utilizam para apreender objetos ou agarrar-se em galhos. Depois que o nosso "tetetetravô" resolveu descer da árvore, esses órgãos, por perderem a utilidade, foram-se atrofiando. A necessidade cria o órgão, mas a sua inutilidade acaba por atrofiá-lo. O mesmo ocorre com nossas unhas que não mais utilizamos para cavar, como ainda fazem outros animais. Resultado, tirantes os violeiros, que encontram nelas alguma utilidade, e os motoristas de caminhão, que utilizam a unha do mindinho para coçar o ouvido, quem mais precisa delas? O mesmo podemos dizer dos mamilos dos primatas machos. Meu pai brincava, dizendo que se Deus fosse perfeito, homem não nascia com tetas. Ocorre que, quando o feto se vai formando, ainda não há uma definição do gênero a que pertencerá a criatura que se está desenvolvendo. Isso só ocorre quando o elemento X ou Y do cromossoma vier a determinar quais os hormônios que aquele organismo deverá produzir para que ali tenhamos um homem ou uma mulher. Os mamilos do homem, portanto, são esboços de seios, que não se formaram por falta de estímulo hormonal. De certa forma, um "resíduo arcaico". Nossa mente é bem maior do que nosso cérebro. Enquanto o cérebro se vai formando a partir do encontro entre o espermatozóide e o óvulo, a mente já está programada em nosso DNA. A formiga e a abelha, ao nascerem, já trazem no cérebro o sentido de organização, que não adquirem "culturalmente", como os humanos. Isso lhes é transmitido desde tempos imemoriais, passando de geração a geração. O mesmo ocorre com as aves que já nascem sabendo voar ou sabendo nadar. Essa capacidade é, de certa forma, anterior a sua formação. Ora, se isso ocorre com insetos e aves, por que o nosso cérebro somente conteria aquilo que a cultura nos ensina? Quando ele incorpora a mente, esta traz consigo um estoque de informações que estavam, ao que tudo indica, armazenados, em estado de latência, no DNA, tanto quanto as informações que determinarão o formato do nosso rosto, a cor dos nossos cabelos e dos nossos olhos. O problema é que muitos desses símbolos arquetípicos já nada significam para o homem moderno, como é óbvio, donde a ininteligibilidade aparente de muitos de nossos sonhos. Muito embora seja "uma tolice acreditar-se em guias pré-fabricados e sistematizados para a interpretação dos sonhos", como diz mestre Jung, reconhece ele que, independentemente de condição cultural ou localização geográfica, alguns elementos são comuns às narrativas oníricas, como a "queda" ou o sonhador se encontrar no meio da multidão sem roupa ou com trajes inadequados. Sou testemunha disso. Quando jovem, eu sonhava freqüentemente que estava rolando em um telhado ou à beira de um precipício. Antes de esborrachar-me lá embaixo, eu acordava muito assustado. Meus pais, tão assustados quanto eu, levaram-me a um médico, que nos tranqüilizou: aquilo era coisa comum em crianças em fase de crescimento. A relação entre uma coisa e outra, porém, jamais me foi explicada. Estar andando no centro da cidade inteiramente nu ou sem sapatos, não produzindo qualquer reação nos passantes, é outro dos meus sonhos recorrentes. Há variações, que até hoje me ocorrem, especialmente quando estou diante de um novo projeto. Nelas, eu entro na sala de aula e descubro que deixei em casa o caderno com a lição de casa. Ou sonho que estou sendo convocado para voltar à Faculdade para fazer exame relativo a determinada matéria que descobriram que eu não havia feito. Geralmente no próprio sonho eu me indigno, dizendo que já sou um profissional bem sucedido e aquilo é um absurdo. A relação entre isso tudo (o meu parcial despreparo) e minha preocupação com o novo projeto (será que eu consigo?) é evidente. Em seu A Interpretação dos Sonhos, mestre Freud diz textualmente que "todos aqueles que fizeram exames para universidades foram perseguidos por este mesmo pesadelo: iam ser reprovados, teriam que repetir o ano etc. Para os que fizeram provas de estudos superiores, este sonho típico é substituído por um outro: vão ter de fazer de novo um concurso difícil e objetam inutilmente, dentro do sonho, que já são há anos médicos, professores ou servidores públicos". Como é agradável sabermos que somos normais até mesmo em nossas esquisitices! Aliás, meu neto mais velho, em vias de mudar de colégio, acaba de me informar que teve o tal sonho que o exibia sem roupa em público. Demos muita risada quando eu lhe contei que esse sonho é meu velho companheiro. Jung registra que não apenas nos sonhos podem aparecer os tais símbolos, mas também em nossa vida desperta. Também aí tenho algo a dizer. Certa ocasião, eu participava de um congresso de juristas, em outro Estado, sendo eu um dos mais moços dos participantes. Fui escolhido para fazer o discurso de encerramento do congresso, o que me apavorou, pois eu não tinha ali o apoio dos meus livros nem estava no meu natural ambiente de trabalho. Após o jantar, esbocei o tal discurso e fui deitar. No dia seguinte eu não conseguia sair da cama, reação que faria qualquer psicólogo rir muito, pois é a construção inconsciente de um álibi: eu bem que gostaria de ir, mas esta repentina paralisia não me deixa. Meu amigo Cezar Peluso, informado do fato, veio ao meu quarto e me deu um tratamento digno do célebre analista de Bagé, à base do joelhaço. Enquanto ele despejava aquele monte de desaforos, uma pomba assentou-se no parapeito da janela, olhou-me fixamente, rodou nos calcanhares, se é que pomba tem calcanhar, e voou para o além. Imediatamente eu saltei da cama, redigi o tal discurso, que foi apresentado à noite e mereceu aplausos generosos dos presentes, alguns dos quais até hoje se lembram desta ou daquela frase. Está aí o Sérgio Couto que não me deixa mentir. Jung certamente vibraria com essa narrativa, pois a pomba é um símbolo caro aos cristãos, representando o Espírito de Deus, que, dentre outros atributos, seria a origem de nossas inspirações e de nossa fortaleza.
sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Legehjelp

  Dizem que os erros médicos são cobertos pela terra. Na Noruega isso não ocorre. Ali, tais erros são cobertos pela neve. O que sempre nos enche de coragem toda vez que precisamos ir a um consultório médico ou mesmo a um hospital de lá. Saber se alguém morreu de pneumonia dupla ou de mera pneumonia simples pode interessar a algum estatístico, não à família e aos amigos do morto. Menos ainda ao morto. Logo, não saindo vivo de uma cirurgia, que me transformem em cinza e façam dela um bom adubo para minhas orquídeas, eis meu último desejo. Pelo menos se lembrarão de mim cada vez que ela florir, sem terem o trabalho de ir até o cemitério conferir se ainda estou lá bem guardado. É o que as pessoas geralmente fazem, pois levar flores para quem não pode cheirá-las é perda de tempo e de dinheiro. Igual aos japoneses, que levam arroz para o morto, que teima em permanecer deitado e sem apetite. E saber que ainda serei útil depois de morto me dá uma certa tranqüilidade que compensará eventual erro médico que me tenha tirado de cena antes do tempo previsto. Aliás, os cemitérios da Noruega são tão simpáticos que não me parece que seus habitantes tenham do que reclamar. Eles não chegam a ser magníficos hotéis cinco estrelas, com espaço cultural e biblioteca circulante como os hospitais de lá, mesmo porque é discutível que os mortos queiram ler alguma coisa. Mas é até prazeroso visitar as campas, todas muito discretas, como convém à igualdade das caveiras que lá estão guardadas, pois não podemos esquecer que aquilo é uma sociedade socialista, uma espécie de Cuba, mas de primeira classe. E aquelas inscrições tão simpáticas, dizendo coisas que talvez faltou dizer em vida. E às vezes há uma igrejinha medieval ao lado, para fazermos nossas orações pelos que se foram. Isso é algo que sempre me intriga: ou bem acreditamos que haja alma ou não acreditamos. Se acreditamos, sabemos que ela certamente não estará confinada às quatro paredes da sepultura. Se não acreditamos, sabemos que tudo o que há ali embaixo é um corpo em decomposição ou um esqueleto. Logo, para que ir ao cemitério? Nos Estados Unidos, como é bastante sabido, o pavor de serem obrigados a pagar indenizações astronômicas tem afastado bons cirurgiões das salas de cirurgia. Eles preferem fazer pesquisa ou ministrar medicamentos do que correr o risco de serem chamados à Corte para explicar a morte do paciente ou algum dano sobrevindo da cirurgia. "O paciente queixa-se de que a cicatriz deixada no abdômen dele está um centímetro maior do que o necessário. E pede um milhão de dólares de indenização. O senhor é inocente ou culpado?" E tome acordo, patrocinado pela companhia de seguros, cujo prêmio o médico paga o ano todo. Antes os médicos inventaram a alergia para diagnosticar tudo aquilo cuja causa desconheciam. Hoje falam em virose, um novo nome para a mesma ignorância. Em compensação, os advogados inventaram a palavra iatrogenia. Esta é utilizável contra os médicos. "Efeito secundário danoso ao paciente, decorrente da atividade médica" segundo qualquer dicionário médico. Previsível e evitável, segundo se diz na petição inicial. E tome pedido de indenização por dano moral. Amigo meu que passeava nos States, sentiu-se mal e foi levado às pressas a um daqueles hospitais de nome famoso. Feito o diagnóstico, o médico indicou cirurgia de urgência. Meu amigo ficou apavorado, pois não conhecia o tal médico. Foi acalmado pela delicada esposa: "Veja o lado positivo da coisa, querido. Vamos imaginar que ele cometa um erro e você morra. Já imaginou o valor da indenização que eles vão me pagar?" Ele deve ter ficado muito feliz com essa possibilidade! Eu, acontecesse isso comigo, chamaria o escrivão e faria um testamento, deixando meus bens para o taxista que me levou ao hospital! Os países latinos têm uma atração pela especialização, que consiste em alguém saber cada vez mais sobre cada vez menos, até o dia em que saberá praticamente tudo sobre praticamente nada, no dizer de um humorista, o nosso professor de Medicina Legal, o Almeidinha, lá vão alguns anos. E isso tem produzido situações curiosas, como a daquela senhora que, estando no banho preparando-se para ir a uma festa importante, deparou-se com um caroço no seio esquerdo. Terminou o banho, arrumou-se para a festa, mas a idéia de um câncer de mama não lhe saía da cabeça, o que foi percebido por uma amiga. "Ora", diz a tal amiga, "tenho um cancerologista extraordinário, ali na Avenida Paulista. Vá ao consultório dele no prédio número 47 e fale com o doutor Xavier". No dia seguinte, a ainda nervosa senhora lá se foi para a Paulista, mas seu estado de ânimo a fez confundir-se e entrou no prédio número 74, onde funcionava um escritório de advocacia, talvez o do Approbato Machado, insigne corinthiano e juiz desportivo. A aflita mulher foi-se logo dirigindo à secretária: "Eu tenho um câncer no seio esquerdo e quero um doutor que me atenda com urgência". A secretária, sem entender nada, foi logo dizendo: "Mas a senhora está enganada. O doutor Approbato é especialista em Direito". E a mulher, surpresa: "Mas isso é especialização demasiada!" Tal situação certamente jamais ocorreria na Noruega, onde os médicos têm uma visão holística do organismo humano. É como mecânico de automóvel: ou entende de tudo ou não nos serve. Modestamente, um desses mecânicos, num país da América do Sul, colocou uma placa na frente da oficina: "Especializado em carros nacionais e importados". Ou seja, especializado em tudo, como muitos médicos noruegueses. Imagine a cena: alguém chega ao consultório do médico, que eles chamam de lege, e informa: "Doutor, eu senti uma vertigem, caí sobre o braço, que se partiu, e, com isso, perdi o apetite." Fosse no Brasil, seriam três, pelo menos, os médicos a serem consultados: o tomografista, para verificar a origem da vertigem, talvez um tumor no cérebro; o radiologista, para ver se a lesão no braço não seria uma fratura cominutiva; e o nutricionista, para elaborar uma dieta alimentar para o paciente readquirir o prazer de comer. Além do clínico geral que atendera inicialmente o paciente, é claro. Sendo na Noruega, a secretária do médico retira sangue de teu braço, faz os exames ali mesmo, na salinha contígua, e ele, em seguida, diagnostica, pelo exame de sangue, que a vertigem foi devida à brusca mudança do tempo, o braço deve ser engessado e o paciente deve tomar óleo de fígado de bacalhau para suprir as deficiências alimentares decorrentes da inapetência. "E volte daqui a três meses." Em outros países, a coleta de material para exame é feita no laboratório, com toda assepsia possível. Imagino-me indo fazer um exame de urina aqui no Brasil e sendo orientado pela enfermeira. "Com este gaze úmido o senhor lava o seu como-direi? Com este outro, seco, o senhor enxuga o como-direi? e colhe o material com todo cuidado para não haver contaminação. Depois de colhido o material, o senhor o coloca neste frasco sem tocar na parte interna, pois ele está esterilizado. Depois, o senhor fecha o frasco com esta tampa, tomando cuidado para não tocar na parte interna, porque ela também está esterilizada. Feito isso, o senhor me traz o frasco fechado para fazermos o exame". Já na Noruega o procedimento é diferente. "O senhor compra na farmácia um frasquinho, urina dentro e me traz tudo aqui". Eu compro o tal frasquinho, abro, colho o material, fecho o frasquinho e levo ao consultório. Ali mesmo o material é examinado e se conclui que eu tenho sabonete na urina. "Se o senhor me disser a marca do sabonete talvez eu confira se não seria aquele com que lavei a mão antes de iniciar o tal procedimento. Vai ver não enxagüei devidamente o como-direi." Imagino como deve ser uma curetagem. Ou uma operação cardíaca. Nesta, talvez o cirurgião abra o peito do paciente, retira o órgão a ser operado e pede ao próprio paciente: "O senhor segure um instante enquanto eu pego a tesoura". Essa integração entre paciente e médico é muito valiosa para a recuperação do operado. Feita a cirurgia e costurado o peito do paciente, uma surpresa. "Doutor, que faço com este pedaço de safena que o senhor me pediu para segurar?" "Xii! Vai ver que eu usei o caninho plástico da bolsa d'água destilada para fazer a ponte cardíaca!"   Legehjelp: tratamento médico, em norueguês  
sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Viagem (Uma)

Naquela época eu trabalhava no interior do Estado. Viagem de trem, cansativa ao extremo. Lecionava lá. Professor primário. Por concurso, diga-se. Agradava-me sobremaneira o magistério, posto que como sói ocorrer hodiernamente, um tanto mal remunerado. Como sempre, aliás. Gasta-se mais com Forças Armadas do que com escolas, dizia um colega, desanimado. E o magistério era ainda mais desgastante porque minha mulher recusava-se a acompanhar-me, não queria morar no interior. Gente de roça. Gentinha. Era a expressão desprimorosa com que minha consorte se referia a meus alunos e colegas. Coisa de moça mimada, compreende o senhor? Neta de nobres arruinados, como poderia entender a simplicidade daquela gente humilde e sincera. Como ter olhos para ver por trás daqueles rostos encarquilhados e curtidos pelo sol a bondade e a disponibilidade daquela gente despretensiosa? Difícil, em verdade. Em uma dessas viagens, de ordinário demoradas e extremamente cansativas, ocorreram fatos invulgares, deveras estranhos, que eu não me atrevo a contar a qualquer pessoa. Conto-lhe porque estamos sós e eu não me arreceio de que me tome por, como direi?, mitômano. Explicação para aquele insólito acontecimento jamais tive. Alucinação? Talvez. Refiro-me ao cansaço da viajem. Tantas horas ali sentado no vagão, após uma semana de trabalho exaustivo. Talvez a tensão acumulada. Fim de ano. Alunos suplicando notas. Provas a serem corrigidas. Pelo amor de Deus, preciso de 4,5 para não ficar reprovado, escreviam alguns alunos na prova. Aquela fantasia (ou que nome se lhe dê) quiçá fosse uma tentativa de alienação, de fuga de um modo de ser sempre igual, rotineiro. O fato é que hoje não logrei interpretação razoável para aquilo, que me parece, no recôndito da memória, um acontecimento real. Nem comentei com a Rita. Ela não me entenderia. Ou me julgaria mal, o que é mais certo. Você precisa de umas férias, como costumava ela dizer, quando queria encerrar algum assunto que não lhe trazia interesse. Não é que vivêssemos mal. Ao contrário. Dávamo-nos às mil maravilhas, como se diz vulgarmente. Eu passando a semana inteira no interior e ela cá na cidade, com sua roda de amigos, suas rodas de buraco, seus chás beneficientes. Cansei-me de corrigir os convites: beneficente, do latim beneficentia. Pois os convites eram sempre impressos com aquele maldito i excedente que tanto me irritava. Então os chás eram beneficientes, misto de entidades assistidas e embolsamento de oitenta por cento de lucro líquido. Era efetivamente uma eficiência e tanto. Não era à toa que se viam tantas festas beneficientes, como azedamente constatava (o galicismo é dele, não meu) o marido de uma delas. Pois o vagão em que nos encontrávamos, eu e aquela mole humana, não trazia, daquela vez, os bancos distribuídos como ordinariamente ocorre. Não. Todos os bancos estavam com as costas contra as paredes do vagão. Isto é, as pessoas não se sentavam dando as costas às de trás. Não havia "as de trás", já que todas estávamos de frente para as pessoas sentadas do outro lado do vagão encostadas na parede oposta. Todas as pessoas sentadas lado a lado, em toda a volta do vagão, volvidas para o centro dele. Algo inusitado, de feito. Era, deveras, uma posição estranha, que nos obrigava a encarar as outras pessoas. Pessoas que, de modo geral, não conhecíamos. Aqueles rostos à nossa frente, olhando-nos e sendo olhados. Examinando-nos e sendo examinados. Os gestos contidos, como que paralisados pelo olhar em frente. Uma situação incrível. Como o trem balouçava (e como balouçava!), não deixava de ser divertido ver as pessoas, como um todo, sendo jogadas para lá e para cá, naquele fluxo e refluxo de maré humana, sem terem condições de impedir o movimento compulsivo. Por vezes alguém procurava um jeito de olhar lá fora, além da janela, talvez para evitar a cena que se passava ali dentro. Talvez para encontrar a própria identidade. Ou para evitar os olhos de quem estava à sua frente. Ou pela dificuldade de olhar as pessoas nos olhos. Quando o trem parava ou dava partida, saindo de alguma estação, a situação quedava algo ridícula. Na partida, as pessoas que viajavam de costas para o local de destino (isto é, de costas para a locomotiva) eram arrancadas do lugar e arremetidas para diante. Algumas, mais distraídas, ou que ainda não haviam atentado para isso, vinham parar no meio do vagão, expostas ao julgamento das demais. Procuravam, em tal ocasião, equilibrar-se e adaptar-se às contingências, para não colidir com as pessoas sentadas à sua frente, lá adiante, no fim do vagão. Em vista do inesperado, a solução era rir, um riso meio sem graça, tratando de retornar rápido ao lugar vago, misturando-se com os demais passageiros. Quando o trem estancava de súbito, as pessoas de lá é que vinham para o meio do vagão, repetindo o riso, como a pedir desculpas pelo susto que haviam provocado nas demais. As pessoas que viajavam sentadas ao longo do vagão caíam umas sobre as outras. Ora daqui para lá, ora de lá para cá, conforme o trem tivesse partindo ou chegando, acelerando ou frenando. As pessoas que suportavam o peso daquele amontoado humano olhavam para as outras com ar sério, grave, como a repreendê-las pela brincadeira involuntária, ao mesmo tempo em que ajeitavam a roupa, imaginariamente amassada pelo incidente. Logo mais, porém, eram elas que estavam caindo sobre aquelas outras, que, por sua vez, restituíram a carranca, como num ritual, esquecendo o passado recente. Havia crianças no trem. Havia senhores e havia senhoras. Uma velhinha, impávida, a folhas tantas retirou de um cesto de vime uma bola feita com linhas de lã, duas agulhas de madeira grossas e começou a tricotar. A essa altura, as pessoas parece que já havíamo-nos acostumado com os solavancos, avançados e recuos. Instintivamente dávamos um contragolpe no momento azado, neutralizado assim o efeito produzido pelo balouçar do vagão. Em um desses solavancos, contudo, a bola de lã da veneranda senhora caiu ao solo e rolou para o meio do vagão. Um garoto, aí dos seus seis ou sete anos, levantou-se e foi ao encontro da bola. Quando pensávamos que ele iria restituir a bola à vovozinha, eis que o guri se põe a impulsioná-la com o pé, levantando-a ora com o direito ora com o esquerdo, sem deixá-la cair. Fazendo embaixada, como se diz na gíria futebolística. Os adultos (a velhinha inclusa) acharam graça naquilo. E o garoto sentiu-se incentivado, prosseguindo no seu malabarismo. Um casal de mulatos trazia um filho, de idade equivalente à do "embaixador". O pai cotovelou o mulatinho, provocativamente, apontando o loirinho da embaixada com um golpe de sobrancelhas. O pelezinho - relevem-me o símile - entendeu a mensagem e adentrou o campo, com disposição, ovacionado pelo sorriso paterno. Tomou, com os pés, a bola do loirinho e passou a manobrá-la com a cabeça. Uma, duas, cinco vezes. A esta altura as pessoas à volta cantavam alto o número de vezes que o menino conseguiu cabecear a bola sem deixá-la cair. Dezoito, dezenove. E o garoto mantendo a bola de lã no ar. Trinta e seis, trinta e sete. A velhinha do tricô achava muita graça naquilo. Ria e batia com a mão na perna, balouçando o corpo ritmadamente, para a frente e para trás, interrompendo, por uns instantes, a blusa que já se insinuava do seu trabalho. Alguém quis interferir, para resgatar o novelo de lã, mas ela pediu-lhe que deixasse os pequenos brincar. Deles é o reino dos céus, lembrou-lhe, zombeteira. Outros garotos, estimulados pelo precedente, vieram para o centro do vagão e a bola passou a ser chutada por eles também. Logo, formaram duas turmas, uma delas com os garotos tirando as camisas, para distinguirem-se dos da outra, todos encamisados. O fiscal do trem, que havia entrado no vagão para picotar as passagens, resolveu arbitrar a peleja. Tomou da bola e levou-a para o meio do vagão. Com ar sério, advertiu os jogadores quanto ao comportamento que deles esperava durante o desenrolar do jogo, a denominada refrega. Começada a partida, surpreendentemente para mim, as pessoas mostravam-se mais desinteressadas pelo que estava ocorrendo. A velhinha voltou ao seu tricô (pois a bola estava presa por um fio à blusa que estava sendo formada), indiferente ao uso que estava sendo feito de sua matéria prima. Um e outro passageiro pegou no sono, aproveitando o embalo do trem. Esse o meu caso. Aquele tilinc-talenc, tilinc-talenc das rodas de ferro passando sobre as emendas dos trilhos, de tão cadenciado, atuava, de fato, como um suporífero. Adormeci. Quanto tempo? Não sei. Súbito aquele grito forte que me acordou. Goooool! Abri os olhos de um salto, assustado, e os garotos comemorando o tento marcado. O fiscal (ou, mais exatamente, o árbitro) levava a bola para o meio do campo. A partida iria recomeçar. A quanto está o jogo? O vizinho também não sabia. Havia adormecido como eu e acordara igualmente com aquele grito de comemoração. Novos lances se sucederam até que adormeci novamente. Novo tento, novo grito e novo despertar assustado. Fui notando que, à medida que aqueles gols se sucediam o humor das pessoas parece que ia se degenerando. O despertar era seguido de uma carranca silenciosa, mas bastante significativa. A alegria alheia quase sempre nos incomoda muito, realmente. Verdade que, agora, dos jogadores que haviam começado o jogo poucos continuavam. O loirinho estava sentado em um canto, com a perna esquerda enfaixada e um ar muito cansado. Ali do seu descanso o guerreiro continuava a assistir ao corre-corre dos outros guris. Não vi ali o mulatinho nem seus pais. A bola de lã estava bem menor do que no começo da partida. Talvez a metade do tamanho original. Mas o jogo continuava. Mais um cochilo e acordei de vez. Uns dois ou três garotos ainda brincavam com o que restava da bola. Era um quase nada, que eles teimavam em chutar. A vovozinha já havia concluído quase toda a blusa. Era uma linda blusa azul, em dois tons: mais claro o tom uns dez centímetros de baixo para cima. À medida que subia, o tom escurecia, em um degradê. A gola era quase preta. Ela experimentava o presente no marido (ou aquele que parecia ser seu marido). O tilinc-telenc continuava noite dentro. As pessoas iam descendo aqui e ali. As que se levantavam para descer lançavam um olhar às que ficavam, como se pretendessem despedir-se, dizer alguma coisa. Mas ficavam naquele olhar indeciso, a boca fechada, aguardando a iniciativa do outro. Que também ficava mirando como a querer dizer algo. Era um instante. Um segundo, talvez. Era como se a gente desejasse rever aquela pessoa, para comentar a estranha experiência, marcar um novo encontro, uma nova viagem, onde a participação fosse maior. Quem sabe da próxima vez. Mas, ao mesmo tempo, era como se já soubéssemos que aquela experiência não se repetiria. O momento havia sido aquele. Bom ou mau, muito ou pouco, tinha passado. Quem dele não se aproveitou, paciência.Quando o vagão ficou quase inteiramente vazio, entreguei-me de vez ao tilinc-telenc, tilinc-telenc, tilinc-telenc. __________________ 1Do livro Cristo hoje, Editora Loyola (esgotado)