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Circus

Crônicas e reflexões.

Adauto Suannes
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Receita de macarronada

  "À memória do João Rubinato, que, se vivo fosse, estaria a completar 100 anos, certamente com uma baita festa na casa do Nicola, na rua Major, onde, lá pelas tantas, seria só pizza avoando, junto co as brachola." A minha manhe se deixou nascer no Pordenonne, capiche? Fazia o macarô ela mesma co as mão dela, belo. Hoje, quem se adispõe de fazer massa, com toda aquela lambança, pendurando adespois adonde? Na sala? É melhor comprar ela pronta, belo. Você vai no supermercado e não me vai escolher macarrão gravatinha nem penne. Compra aqueles comprido, que você encontra fácil fácil porque o saquinho tem uma janela transparente. Pode ser chatinho ou roliço. Mas que seja comprido. Escolha o molho, que também tem muitos hoje em dia, não precisa de ficar amassando tomate com o garfo, belo. Ele vem num pote de vidro de boca larga, que é pra caber drento uma colher de sopa. Se não gostar, da vez próxima você escolhe outro tipo, até acertar com algum que lhe agrade, belo. Chegando na sua casa (digo sua casa, mas pode de ser apartamento e ser alugado, o gosto da macarronada vai ser o mesmo, belo) você acende o fogo e logo me põe em cima dele uma panela grande com água quase até a boca, me põe. Despeja um montinho de sal e algumas gota de azeite, que diz que é para os macarrão não entreverar, uns cos outros. Isso de entreverar quem dizia era a negra Zanóbia e eu gostei da palavra, gostei eu. Quando a água ferver, você tira o macarrão do saquinho e despeja ele na água fervente, belo. Não me vá quebrar ele antes de jogar lá dentro, seu pazzo. E quem falou que era pra jogar fora o saquinho, ô? Vai lá e pega ele de volta pra saber o tempo de cozimento. Eu disse cozimento e não cosimento, que é costurar, seu inguinorante. Agora que a água voltou de ferver, marque o tempo previsto no saquinho, pra que a massa fique al dente. Tempo vencido, desliga o fogo, pega a panela (Olha as luva, belo. Ta quereno se deixar queimar as mão?) e despeja aquilo tudo no passador de macarrão. Não sabe o que é isso? Mamma mia! Adonde que eu vim parar! É uma panela de alumínio (também tem umas de plástico, belo, mas essas estraga o gosto da macarronada) cheia de furinho por donde a água se deixa de escorrer. Agora que saiu toda a água, despeja o macarrão numa panela de louça ou de vidro refratário e joga o molho por cima, joga. Quanto? Depende das fome da turma, belo. Leva aquilo pra sala, não se esquecendo de gritar bem alto "Pasta pronta! Pasta pronta!", que é pros vizinho morrer de inveja, aqueles mortefame. Pra comer, você em antes despeja queijo ralado por em cima. Feito isso, dá uma bruta de uma garfada no monte de pasta e adespois enrola ele apoiando o garfo numa colher de sopa que você segura co a outra mão, segura. Não me vá cortar o macarrão com faca, que eu te dou um squiafo, te dou eu. Entre uma garfada e outra, que você enfia na boca e chupa rápido, até as pontinha do macarrão adespejar molho na tua camisa (ou na tua blusa), de preferência branca, não te esquece do gole de vinho, que pode ser o chileno mesmo, já que o vinho italiano que atravessa o mar tem lá drento dele uns produto químico que estraga o gosto que ele tem lá na Itália, belo. Paciência. Ma que seje o tinto, da vero? Terminada a terceira sessão, não me vá esquecer de esfregar uns naco de pão no molho do prato. É uma homenage ao cozinhere, belo. Agora bota as duas mão na barriga e me solta um belo dum arroto. É pra dizer que gostou. Se alevanta sem pedir licença, senta no sofá da sala, adespois de ligar a televisão, que o jogo vai começar daqui umas três hora mas aqueles tagarela vão ficar falando um monte de fezzaria sobre o campeonato, coisa que você não vai ouvir, pois já caiu no sono, belo. E vê se não me esquece de roncar, me esquece.
sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Linguagem nossa de cada dia (A)

  "Se o leitor de livros, aquele que gosta de ler, não se limitar àquilo que se faz agora, se ele andar pra trás, se ele começar do princípio, se ele pode ler os primitivos, e os grandes cronistas e depois os grandes poetas, a língua passa a ser algo mais que um mero instrumento de comunicação. Transforma-se numa, digamos, mina inesgotável de beleza e de valor". José Saramago "Devo muito de minha cultura à televisão. Cada vez que o aparelho lá de casa era ligado, eu ia para o meu quarto ler um livro". Grouxo Marx "Juiz mato-grossense deixa de lado o latim e usa até letra de música da cantora Kelly Key em suas decisões". Migalhas(Edição de 14/7/10) "Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprova exigência de linguagem acessível em sentença judicial". Dos jornais Muitas pessoas supõem que a linguagem foi por nós inventada para permitir a comunicação entre as pessoas, coisa, aliás, de que se valem outros animais, porém de modo primitivo. Não preciso conhecer cachorrês para entender o que um cão quer dizer ao latir quando me aproximo do local guardado por ele. Sendo ele um street dog, vulgo vira-lata, certamente me diria: "nun vem que nun tem, mano". Já um Yorkshire Terrier latiria: "get out from here, sir". Nem preciso ter feito curso de passarinhês para saber que o sabiá que vem comer o alpiste que deixo na varanda do apartamento canta não para me agradecer, mas para dizer aos demais machos que não se aproximem de seu território. A questão é: o cachorro e o sabiá são capazes de formular alguma ideia, por mais simples que seja? Segundo alguns linguistas, como Noam Chomsky (clique aqui), antes de comunicar uma ideia, o ser humano forma essa ideia para si próprio, para saber se ela tem fundamento lógico. Só depois de aprovada por ele é que a frase será verbalizada pela linguagem. Claro que você e eu conhecemos pessoas que primeiro falam e depois pensam, mas essas constituem exceção à regra. O ambiente onde vive e convive a criança vai contribuindo para que seu vocabulário se enriqueça e as frases observem a construção vigente no meio onde ela interage. O progresso, que contribui para o acesso de pessoas de baixa renda às fontes formais de aprendizado, traz um problema que muita gente desconhece. É que essa criança, em princípio, se desenvolverá em dois ambientes distintos, no que diz com a comunicação oral. Entre o "nóis vai" que ela ouve em casa e o "nós iremos" que lhe ensinam na escola, qual dessas lições será assimilada? Ou prevalece a ligação afetiva que une a criança aos pais ou quem lhes faça as vezes, ou se submete ela à autoridade do professor, dono do saber. A mãe de um rapaz que eu havia admitido como telefonista no escritório procurou-me tempos depois e, com a liberdade de ser nossa faxineira há muitos anos, indagou-me se o seu filho não estava "virando gay". É que ele estava agora falando "de um modo afrescalhado". Passei a reparar no modo como o Antonio Pedro atendia o telefone e descobri, espantadíssimo, que ele imitava o meu jeito de falar. Sem comentários. Talvez por força do peso da rotina, ou para exibir cultura, os profissionais do Direito costumam expressar-se em um arremedo de língua culta, que o vulgo apelidou de juridiquês. Todos nós já cedemos a essa tentação. Eu, por exemplo, que sempre fui metido a besta, para usar uma expressão das mais vulgares, e, portanto, absolutamente "acessível" aos iletrados, quando estudante de Direito tive em mãos um acórdão relatado pelo Orozimbo Nonato, "profundo conhecedor do idioma português", segundo sua biografia oficial, inserta (particípio passado do verbo inserir, na forma feminina, digo em "linguagem acessível") no site do STF, que nos diz ainda que "todas as suas manifestações, em votos, pareceres, conferências e obras publicadas, possuem um estilo peculiar, que identifica o purista da linguagem". A referência a "estilo peculiar" já diz tudo. É uma forma eufêmica (eufemismo: "palavra, locução ou acepção mais agradável, de que se lança mão para suavizar ou minimizar o peso conotador de outra palavra, locução ou acepção menos agradável") de dizer que sua linguagem era incompreensível. E eu, estudante atrevido, punha-me a dizer, imitando-o, que tal tema era mera questiúncula indigna de dar ensanchas a disceptações. E quem quisesse entender que fosse ao dicionário, que meu pai chamava de pai dos burros. Já houve no Tribunal Federal de Recursos e, ao depois, no Superior Tribunal de Justiça, quem redigia votos com coisas como "Os registros processuais avivam que, em Mandado de Segurança, no julgamento da apelação, sem provimento, o v. Acórdão sob ferrete estadeou, em suma: ..."; ou: "Aberto o pórtico processual para o exame, convém aprumar a narrativa da Recorrente na via Especial, conforme o enredo recursal, sem rebate eficaz da parte recorrida, explicando: ..." Os gramáticos sempre sustentaram que a língua é feita pelo povo. A última flor nascida nos jardins do Lácio que o diga. O português não passa de um latim mal falado, como dizia nosso professor Alexandre Correia, até porque foi levado, às terras conquistadas, pelos soldados romanos, que não dominavam a fala culta, mas o latim falado pela ralé. Ocorre, no entanto, que, depois de Gutenberg, passaram a existir repositórios de textos que os antigos chamavam de livros e que a moçada atual chama de kindle (clique aqui). Com isso, lendo narrativas feitas por autores respeitáveis, passou a ser possível conhecer melhor a língua pátria, aprimorando o modo de expressar o nosso pensamento. Gramáticas e dicionários (no meu tempo de criança se dizia que "nenhuma família que se preza pode deixar de ter em casa uma bíblia e um dicionário") passaram a complementar essas "fontes de conhecimento", levando àquilo que se conhece como "cultura". Ora, quando um homem inculto chega à Presidência da República e, ao fim de seu duplo mandato, tem aprovação de quase 100% dos seus administrados, todos os nossos preconceitos devem ser revistos, a começar por uma indagação básica: para que serve a cultura? Cultura, em termos simples, é o conjunto de conhecimentos teóricos e práticos que nós adquirimos e transmitimos aos nossos contemporâneos. A cultura nos mostra como os diversos grupos humanos vão equacionando e resolvendo os problemas que a vida lhes vai apresentando. Graças aos meios de registro (até agora, as bibliotecas), esses conhecimentos passam a ser passíveis de estudo mesmo quando o tempo nos afastou daquela primitivas experiências. A rigor, pois, o registro da cultura não é feito "pelo povo", mas por pessoas que, graças a seu saber (cultura acadêmica), estão em condições de efetuar tais registros. Exemplifiquemos isso. Súmula do nosso STJ (em "linguagem acessível", Superior Tribunal de Justiça), não redigida, aliás, pelo Min. Milton Luiz Pereira, diz que "A exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória". Mostre esse texto à sua secretária, ou à sua manicure, ou ao seu motorista, ou ao seu dentista, ou ao seu médico e peça que lhe expliquem o que o STJ está querendo dizer. Certamente essa pessoa indagará: "Que é uma exceção de pré-executividade?" Você, se puder, lhe explicará. "Mas que é uma execução fiscal"? Essa é fácil de explicar. "Que é de oficio?" "Que é dilação probatória?" A súmula n° 393 do STJ pertence a um campo limitado chamado "cultura jurídica", que, obviamente, é privilégio daqueles que se dispuseram a ser "operadores do Direito", da mesma forma como outras pessoas resolveram ser carpinteiros, balconistas, criadores de codornas ou jogadores de futebol. Cada atividade profissional dessas possui sua cultura específica, que, logicamente, interessa apenas, em princípo, aos que se dedicam a tal atividade. Quando minha mãe, que era costureira, comentava com uma cliente que aquele vestido ficaria melhor com um debrum vermelho, ou que ela iria chulear a borda interior da saia, que, aliás, ficaria melhor se fosse plissada, eu me limitava a ouvir. A cliente entendeu? Fim de papo (para empregar a tal "linguagem acessível"). Ora, as decisões judiciais não se destinam, enquanto peças formais, aos interessados, mas a seus procuradores judiciais, mesmo porque é obrigatória a presença do advogado no processo. O que interessa ao cliente é o resultado da decisão. Ora, para que o cliente saiba qual foi o resultado da causa, basta que pergunte a seu advogado, que, segundo é lícito presumir, está afeito ao linguajar técnico que se emprega no foro. Quando o tal projeto de lei limita-se a falar em "linguagem acessível" mostra o grau de ignorância de quem o redigiu. Acessível a quem? Nada melhor para ilustrar essa ridicularia legislativa do que um caso real. Nos velhos tempos de estágio no Departamento Jurídico do XI de Agosto, patrocinamos judicialmente uma causa do interesse de várias famílias de favelados. Alguns dos interessados quiseram assistir à sessão de julgamento do recurso e lá foram conosco. Falou o relator, falaram os advogados, foi proferido o voto do relator, manifestaram-se outros julgadores e o presidente da sessão anunciou o resultado. Nossos clientes ali calados, prestando atenção a tudo aquilo. Encerrado o julgamento, já no corredor do tribunal um deles não se conteve: "Então, doutor, nóis ganhemo o nóis perdemo?" Acho que foi aí que me veio a ideia de um Tratado de Direito Favelário (clique aqui).
sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Pessimismo ou otimismo?

  Alguns leitores dos meus textos me escrevem para referir-se ao meu pessimismo quanto à Magistratura brasileira. Não sou a melhor pessoa para julgar tais julgamentos mas tenho a consciência de haver procurado, ao longo desses setenta anos de vida, manter-me longe de dois extremos: o pessimismo e o otimismo. A meu ver, o pessimista, no fundo, é alguém que não tem coragem de suicidar-se nem de arregaçar as mangas e ir à luta. Quanto ao otimista, é um idiota com miopia. Diante de um copo com vinho pela metade, dirá o tal otimista: "Oba! Tenho meio copo de vinho." Ao que o pessimista diria: "Puxa. Lá se foi meio copo de vinho." Rigorosamente, ambos estão certos: "Eu tinha um copo de vinho, agora tenho metade de um copo de vinho porque já bebi meio copo de vinho." É o que diria uma pessoa realista. Dizer que, no fundo, tudo, a final, dará certo, como se espera de um otimista, é desconhecer a história do universo. Muitas das estrelas que admiramos à noite não mais existem, o que só saberemos daqui a alguns séculos/luz. Viver é iludir-se? Ou então não sabe explicar devidamente o que quer dizer esse "dará certo". Se a espingarda do caçador, diante do tigre, falha, pode não ter dado certo para ele, mas, pergunte ao tigre o que ele acha disso. De outra parte, pensar sempre no pior é desconhecer tudo o que, ao longo da História, homens e mulheres notáveis nos trouxeram no sentido de aperfeiçoamento da obra que receberam de seus antepassados. Falemos da Magistratura. "O CNJ decidiu, nesta terça-feira (20/4), aposentar compulsoriamente a juíza Clarice Maria de Andrade, que manteve por 26 dias uma adolescente presa em cela masculina com cerca de 30 homens, na delegacia de polícia de Abaetetuba/PA. Os conselheiros do CNJ acataram por unanimidade o voto do conselheiro Felipe Locke Cavalcanti que é relator do Processo Administrativo Disciplinar (200910000007880) contra a juíza. 'Este é um caso doloroso e emblemático, que chama atenção para a responsabilidade dos juízes sobre o que ocorre no sistema prisional', enfatizou o presidente do CNJ, ministro Gilmar Mendes, que acompanhou o voto do relator." Acredite ou não, o que se transcreveu e sobre o que se poderia derramar muita tinta, está no site do CNJ (clique aqui). Deixo aos leitores os comentários que, certamente, o caso merece. Essa notícia te deixa "mais pessimista" ("o Poder Judiciário está cada vez pior") ou "mais otimista" ("agora a coisa vai")? Realisticamente, digo apenas que muito do que eu tinha a dizer sobre isso está num livrinho recente, que tem feito algumas pessoas me escreverem para concordar ou discordar do que ali está escrito. Para compararmos nossas experiências, enfim. No mesmo site lê-se que: "O presidente do CNJ e do STF, ministro Gilmar Mendes, assinou na tarde desta terça-feira (20/4), durante a 103ª sessão plenária do CNJ, acordo de cooperação técnica com o TSE, o MJ e outros órgãos e entidades que estabelece a garantia do direito de voto para presos provisórios e adolescentes em conflito com a lei privados de liberdade. 'Certamente, vamos marcar as próximas eleições a partir desse importante passo em respeito à valorização da Constituição Federal e ao fortalecimento da cidadania', destacou o ministro." Aposentei-me há alguns bons lustros, depois de chegar a desembargador, como sabeis. Como simples juiz de Vara e, cumulativamente, Juiz Eleitoral, enviei certa ocasião ao TRE/SP um ofício dizendo mais ou menos o que disse agora o Ministro Gilmar Mendes. A resposta ao ofício só me chegou às mãos depois da eleição, fazendo referência às dificuldades que o reconhecimento do óbvio direito de voto dos que não perderam os direitos políticos traria se seus titulares estivessem presos. Ou seja, cumpre-se ou não se cumpre a Constituição conforme seja fácil ou difícil. É isso? Há pouco mais de um ano, como advogado e cidadão, dei ciência, em nome da cliente, ao TRE/SP de um fato que, certamente, ocorre em muitos (ou todos) os municípios do Estado. Em síntese, cuida-se disto: a Justiça Eleitoral de certo município paulista apresenta singularidade que insta seja expressamente apreciada por aquele Tribunal. Sabe-se que o Código Eleitoral, no art. 30, XII, diz competir privativamente aos Tribunais Regionais "autorizar, no Distrito Federal e nas Capitais dos Estados, ao seu presidente e, no interior, aos Juízes eleitorais, a requisição de funcionários federais, estaduais ou municipais para auxiliarem os escrivães eleitorais, quando o exigir o acúmulo ocasional do serviço." A lei é clara: a requisição de servidor de outro Poder se dará em caráter excepcional, pois a regra é a Justiça Eleitoral funcionar com servidores do Poder Judiciário. Só em caso de "acúmulo ocasional" é que se justifica esse absurdo: uma atividade importantíssima, como é o serviço eleitoral, sendo exercido, "por delegação", por membros do Poder Executivo Municipal. De fato, o tal município possui duas zonas eleitorais. A chefe do cartório da segunda Zona Eleitoral é a Sra. Fulana de Tal, funcionária concursada pelo TRE/SP. Entretanto, todos os demais funcionários que ali trabalham são funcionários públicos municipais, na sua maioria ocupando cargos em comissão, ou seja, são pessoas da mais absoluta confiança do Alcaide. Não trabalham ali temporariamente, em face de "acúmulo do serviço", mas o fazem em caráter permanente. Na outra Zona Eleitoral daquele município a coisa é pior: todos os que ali trabalham são funcionários públicos municipais que exercem cargo em comissão, de confiança do Prefeito Municipal, inclusive a chefe do cartório. Naquele município (só lá?), a exceção virou regra: a não ser a chefe de um dos dois cartórios eleitorais, todos os servidores que ali prestam serviço estão hierarquicamente subordinados ao Prefeito. Sendo ele candidato à reeleição, praticamente todos os servidores da Justiça Eleitoral ficarão sob o poder de um dos candidatos a Prefeito, violando a regra constitucional e as normas legais que exigem o tratamento isonômico dos candidatos. O mesmo se diga dos candidatos a outros cargos apoiados pelo Prefeito. Talvez porque ainda seja difícil cumprir a Constituição, salvo engano, a situação continua a mesma até hoje e será a mesma sabe-se lá até quando. Deixando de lado otimismo e pessimismo, peço ao leitor que vá ao cartório eleitoral do município onde mora, conte quantos funcionários ali trabalham e procure saber quantos deles não estão sujeitos hierarquicamente ao Prefeito. Aproveite e meça qual a distância entre o gabinete do juiz e aquele cartório e, se não for pedir muito, pergunte quantas vezes ao mês o juiz eleitoral visita correcionalmente tal repartição sujeita, em tese, à sua fiscalização. E tire suas próprias conclusões.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Grãos de areia

    "Telescópio Hubble é utilizado para prever a movimentação de 100 mil estrelas pelos próximos 10 mil anos." Folha de S.Paulo(edição de 4/11/10) "O valor da descoberta de que o número de astros é o triplo do que se pensou até agora talvez seja a confirmação de que há um elemento além da compreensão humana em um céu estrelado." Veja(edição de 15/11/10) "De longe, o melhor jeito que conheço de deflagrar a sensação religiosa, o sentimento de temor, é olhar para o céu numa noite clara." Carl Sagan(Variedades da Experiência CientíficaUma visão pessoal da busca por DeusEd. Companhia das Letras) Há momentos em que me vejo como um grão de areia. Se você pensou em "sentimento de insignificância", saiba que acertou, pois, pensando bem, a vida de um grão de areia costuma ser bem maior do que será a minha, que venho despedindo-me de companheiros de jornada com alguma frequência, Deus conserve a saúde e a capacidade profissional dos médicos que vou encontrando em meu caminho. Você me contestará, dizendo que a palavra "vida" só se aplica aos animais e aos vegetais. Pois a ciência deveria rever isso, já que os grãos de areia, quando submetidos a elevadíssimas temperaturas, transformam-se em vidro, "perdendo-se no grande todo", como dizem alguns entendidos que acontece com nossa alma (clique aqui), quando a hora fatal chega e se acreditamos na existência da alma. Pois ali estava ainda agora um grão de areia que, diante de meus olhos, acaba de ser bicado e engolido por uma ave. Teria ela confundido aquele mineral com alguma semente? Ou sábia e conscientemente o engoliu para auxiliar na digestão do alimento anteriormente ingerido? Não sei dizer. O que sei é que, mais hora, menos hora, aquele grão será devolvido à terra, envolto por um minúsculo monturo, que ficará exposto a sol e chuva, até desintegrar-se e, ele também, passar a fazer parte do "grande todo" da natureza. Mas o grão ali ficará até não sei quando. Penso no que acontecerá se um ser minúsculo, não necessariamente unicelular, topar com esse grão. Não será certamente diferente da minha experiência quando topei com a muralha da China, única obra humana que pode ser vista a olho nu desde a Lua, segundo me diz a Maria Helena, que circula com desenvoltura entre o Direito do Espaço (clique aqui) e o Direito do Mar (clique aqui). Positivamente, ela gosta das imensidões. Foi com ela que aprendi que, em vista de tratado internacional, nosso satélite natural é "patrimônio comum da humanidade". Bonito isso! Por outro lado, para aqueles mesmos olhos nus eu serei tão invisível quanto aquele grão de areia, irmanados assim, inexoravelmente, na mesma insignificância cósmica. Ouçamos quem entende do assunto: "Se estamos confinados a um planeta, se só conhecemos este planeta, ficamos extremamente limitados até mesmo na nossa compreensão deste planeta. Se só conhecemos um tipo de vida, somos extremamente limitados até mesmo na compreensão daquele tipo de vida. Se só conhecemos um tipo de inteligência, somos extremamente limitados até mesmo em entender aquele único tipo de inteligência. Mas buscar equivalentes a nós mesmos em outros lugares, ampliar nossas perspectivas, mesmo que não encontremos o que estamos procurando, é algo que nos fornece parâmetros dentro dos quais conseguimos nos compreender muito melhor." Esse mesmo autor, o astrônomo Carl Sagan, diz, em outro trecho, que "existem mais galáxias no universo do que estrelas dentro da galáxia da Via Láctea". Sabendo-se que uma viagem pela Via Láctea, que tem a forma oval, do extremo Oeste para o extremo Leste, levaria cerca de 100.000 anos-luz, quanto de tecnologia será necessário para esquadrinhá-la por inteiro? De outra parte, sabendo-se que a luz se movimenta a 300.000k por segundo, quantos quilômetros ela percorrerá em um dia? Em um mês? Em um ano? Por outro lado, quanto tempo ainda deverá decorrer até que a tecnologia nos leve a isso? Nosso exaurido planeta, que James Lovelock considera "um planeta doente", terá condições de esperar tanto tempo? Pierre Teilhard de Chardin (1881 - 1955), com sua autoridade de teólogo e paleontólogo, não fosse também padre jesuíta, em livro (clique aqui) onde expõe a compatibilidade entre crença e ciência, sustenta que "milhares de séculos antes que um ser pensante aparecesse sobre a Terra, a vida aqui já formigava, com seus instintos e paixões, suas dores e suas mortes. E entre milhões de Vias Lácteas que se agitam no espaço, é quase impossível imaginar que nenhuma tenha conhecido ou conhecerá a vida consciente." Algo de escandalizar muito cristão, até porque ele era evolucionista. Há mais: da mesma forma como a Terra é um ente vivo (há quem a chame carinhosamente de Gaia, como o citado Lovelock - clique aqui), assim também o é a Via Láctea. Se ela possui cerca de 100 bilhões de estrelas e tem cerca de 10 bilhões de anos de vida, é razoável entender que a formação dessas estrelas foi na ordem de 10 por ano, na média. "Todo ano há dez novas estrelas nascendo na galáxia da Via Láctea, e muitas delas, provavelmente, com sistemas planetários", ensina o sempre citado Sagan. Por outro lado, segundo nos diz a ciência de hoje, o número de galáxias existentes para lá da Via Láctea soma bem mais dos milhões afirmados pelo teólogo francês. Para a ciência de hoje (ou de ontem, pois esses cálculos estão sempre sendo revistos) são, no mínimo, um trilhão de galáxias, cada uma com um número de estrelas mais ou menos comparável ao de nossa própria galáxia, segundo podemos supor. Portanto, se multiplicarmos o número provável de galáxias pelo número de estrelas que isso representaria, obteremos um número como 1 seguido de 23 zeros, sendo o Sol apenas uma delas, como nos diz o mesmo astrofísico. Simpático, não? Se acreditarmos na lei das probabilidades, quantas dessas estrelas terão em torno de si alguns corpos celestes semelhantes aos que gravitam em torno do Sol? E quantos deles terão condições semelhantes às que existem na Terra, para possibilitar algo que se possa chamar "vida" (clique aqui)? São números simplesmente acachapantes, especialmente se considerarmos que a idade média do ser humano é de cerca de 80 anos, um nada diante disso tudo. Fico por aqui, pois não quero levar ninguém a uma crise de depressão. Termino, fazendo uma sugestão: na próxima noite estrelada, deite na relva, apoie a cabeça nas mãos em concha e compare aquilo tudo que está acima de seus olhos com o tempo de vida média de um ser humano, durante a qual, segundo nos diz Carl Sagan, cerca de 800 novas estrelas se incorporam ao nosso firmamento. Talvez com exercícios como esse aprendamos com quantas letras se escreve a palavra "humildade".  
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Gato triste e o rato alegre (O)

Pense numa casa velha. Mais, muito mais do que isso, coisa aí de 150 anos, no mínimo. Dessas cujo proprietário, se é que tem algum, não sabe que tinta desbota nem que assoalho enruga com o tempo. Há uma varanda na parte da frente, coisa aí de meio metro acima do nível do jardim, nome que se dava àquela imensidão de mato rasteiro e que, num passado muito remoto, deve ter abrigado alguns pés de rosa. Sobe-se uma escada de madeira rangente, na quase certeza de que não se chegará lá em cima são e salvo, ainda que você escolha adequadamente onde botar o pé na hora de mudar o passo, sempre apoiando-se num arremedo de corrimão, não menos balouçante. Pronto. Uma vez lá em cima, ainda olhando com o máximo cuidado onde pisar, chega-se à porta de entrada que, obviamente, não está trancada. É girar a maçaneta e empurrar a porta com o ombro e a sala se apresenta, com aquele desfile de teias inimagináveis (ou imagináveis, depende de sua experiência passada, mesmo porque não há experiência futura), ligando parede a parede, como lhes compete. Você, com algum esforço, consegue abrir a janela e alguma luminosidade penetra no salão, mostrando-lhe que ele é mais medonho do que teu otimismo havia suposto. Os olhos vão-se adaptando ao ambiente, conseguindo distinguir isto daquilo, embora o conjunto não mereça nome outro que o de lixo. Quem mora ali? Evidentemente, ninguém que seja deste mundo. Num canto do rodapé teus olhos dão com um pequeno buraco, que chamou tua atenção porque, ao lado dele, há um gato magérrimo, tremendo de frio e, ao que se supõe, de fome. Olhos fixos no tal buraco, numa postura que seu psicoterapeuta chamaria de estase, ele nem dá pela tua presença. Eis que, vindo não se sabe de onde, talvez aproveitando a porta recém-aberta, aparece um gato gordo, de pelo brilhante e de olhos mais brilhantes ainda. Sem a menor cerimônia ele vasculha a sala, até aproximar-se do outro felino, que, agora menos estático, lhe estende a pata direita aberta, num sinal que entre os humanos significa "Alto lá". Ignorando a ordem, ele avança lentamente na direção do outro, que, agora, nervosamente, aponta com o polegar da mão direita o tal buraco, a sugerir que ali havia entrado um rato, que, mais hora menos hora, dali sairá, a menos que haja uma passagem secreta que ele, tiritando de frio e fome, não tivera tempo de averiguar. "Você me entende, não?", sugere ele com olhar súplice. Sentado ao lado do outro, tendo entre eles o tal buraco, quem agora estende a mão espalmada é o gato visitante. Finge limpar as cordas vocais com alguns grunhidos e, aproximando a boca do tal buraco, não diz menos do que "Au! Au! Au!" "Mas como", pensa o trêmulo felino, "com tanto lugar no mundo me vem visitar um louco desses? É azar em demasia." Antes que ele verbalize sua indignação, o visitante levanta a cara para o alto e, com voz menos severa, diz algo como "Au! Au!" Uma pausa para meditação. Ponha-se no lugar do rato, se é que há de fato um rato naquele buraco, que eu não me perca pelos solavancos do inevitável eco. Você ali se homiziara depois de driblar aquele magrela que não mostrava boas intenções nos dentes que lhe exibira e que eram inconfundíveis com um amistoso sorriso. É claro que o gato ficou junto ao buraco aguardando que, tangido pela claustrofobia, que, aliás, te levara a procurar tratamento psicoterapêutico, você resolva vir cá fora tomar um pouco de ar fresco, ocasião em que aqueles tais dentes mostrarão ao mundo sua serventia. Eis que lhe chegam aos ouvidos inconfundíveis latidos, partidos de algum animal que também se encontrava ali junto à abertura da parede. Salvo engano, cuida-se de um cão, inimigo ferrenho, como sabemos ambos, dos gatos. Já os segundos latidos vieram de mais longe, a sugerir que o tal cachorro expulsou aquele felino malandro dali. E lá se vai o confiante rato, cabeça erguida, a caminho da liberdade. Pois mal dá dois passos além do limiar do rodapé e nhac! Devorado o ingênuo ratinho, o gato gordo, enquanto palita os dentes com a unha, aconselha o outro, professoralmente: "Nos dias de hoje, meu caro, quem não fala pelo menos duas línguas (clique aqui) está frito. Por mais capenga que isso seja."  
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Basta!

"Certamente, há graus na desonestidade, como em tudo." Migalhas de Rui Barbosa(vol. 1, n. 202) "Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro apura desvio de armas e drogas no complexo do Alemão." Dos jornais Quando fui ao Rio de Janeiro pela última vez, voltei de lá horrorizado, prometendo nunca mais lá voltar (clique aqui). Como era possível tanta passividade diante daquele clima de guerra que ali se instaurara? Que faziam os governantes que permitiam aquele acinte? E as chamadas "autoridades civis", que parecem valer-se do cargo público apenas para seu benefício pessoal, pouco lhes importando a notória degradação da cidade? Passaram-se os anos e surge este autêntico "Tropa de Elite 3", que todos acompanhamos pela televisão, como se fosse um jogo de vídeo-game. Para muitos otimistas, ou ingênuos, a cinematográfica ação da polícia estadual carioca, com decisivo apoio das Forças Armadas no chamado "complexo do Alemão", área que compreende cerca de 40 favelas, pôs fim ao império do crime. O simples desdobramento dos fatos posteriores, como noticiam os jornais, demonstra que a coisa não é assim tão fácil. Na verdade, a desassombrosa atuação do governador Sérgio Cabral consagra-o como um dos melhores governadores do país, tão carente de líderes dignos do nome. No futuro, certamente, terá ele sua imagem no mesmo panteão em que está Oswaldo Cruz, que, enfrentando os céticos, conseguiu realizar uma limpeza sanitária naquele mesmo Estado (clique aqui). Tenho, porém, para mim que só a ingenuidade justifica falar em responsabilidade exclusiva do tráfico de drogas pelo estado de coisas a que chegou aquele Estado. Para mim, o fator mais importante é a nossa tradicional tolerância em relação ao "jeitinho brasileiro", que um sociólogo norte-americano chamou de "bypass of the law", um hábil modo de exercer isso que sempre foi louvado nos sambas de morro: a malandragem. Todos nós temos casos e mais casos a contar a respeito desse atalho da lei, mesmo não sendo carioca. É o famoso engarrafamento de carros na estrada e o "espertinho" de plantão nos ultrapassando pelo acostamento, dando, com isso, a nossos filhos a ideia de que somos idiotas. Esse desrespeito pela lei, que deveria ser algo tão sagrado como o respeito aos símbolos religiosos, não é privilégio de componentes desta ou daquela classe social, nem desta ou daquela profissão. Recentemente os jornais noticiaram o caso da promotora pública que tinha um cofre enterrado no quintal da casa. Pode haver alguém mais esperto, no que diz com esconder as provas de seu crime? Que irá lhe acontecer? Não se espere muito, com a leniência de nossas autoridades judiciais e o espírito de corpo que permeia a instituição a que ela pertence. Sabe-se que os juízes, por determinação legal, devem, quando se candidatam a promoção, comprovar, por certidão de seu escrivão, não terem em seu poder autos de ação fora do prazo legal. Quando assumiu a comarca, o novo juiz verificou que o colega promovido havia anexado ao requerimento uma certidão falsa, pois lhe deixara uma "herança" daquelas. Instaurado o processo administrativo, o juiz faltoso foi punido (?) com advertência, enquanto o escrivão foi punido com 30 dias de suspensão, que é para que, na próxima vez, deixe dessa besteira de temor reverencial. Se estar com o serviço em ordem é condição para ser promovido, como ficou aquela promoção se a condição não existia? Se os dirigentes de nossos tribunais costumassem vir a público para esclarecimentos que a todos nós, que lhes pagam o salário, interessa, nós ficaríamos sabendo. Se o Judiciário age assim, que dizer das demais autoridades? Aliás, quanto a isso, cedo a palavra à Ministra Eliana Calmon, do STJ, que não deixa por menos e de quem não sou digno de afivelar suas alpercatas: "Não é incomum um desembargador corrupto usar o juiz de primeira instância como escudo para suas ações. Ele telefona para o juiz e lhe pede uma liminar, um habeas corpus ou uma sentença. Os juízes que se sujeitam a isso são candidatos naturais a futuras promoções. Os que se negam a fazer esse tipo de coisa, os corretos, ficam onde estão." (clique aqui) Precisa mais? Certo médico, notabilizado por seu envolvimento sexual com clientes, vem de ser condenado a quase 300 anos de prisão. Sabe quantos desses anos ele vai cumprir? Certamente nenhum, pois tem hábeis advogados que impetrarão recurso sobre recurso, até que ocorra a prescrição da execução, cujo prazo, aliás, deve estar a correr pela metade, benefício que a lei concede aos setuagenários, numa falsa suposição de que a velhice traz juízo a quem não a tinha. Esse "basta!" que se concretizou no Morro do Alemão deveria espalhar-se por todo o país, em todos os setores da vida pública, punindo-se severamente os desviantes, pois só o efeito intimidador dela conduz as pessoas a respeitar a lei. A quase certeza da impunidade é, como vemos diariamente, um incentivo à delinquência.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Adivinhação

Sou chegado a um brechó, onde já vi coisas surpreendentes à venda, como a cama em que morreu Tiradentes. Eu até estranhei o tamanho dela, pois imaginava que o alferes fosse maior. Mas aprendi com ela que ele era um homem simples, a julgar pela precariedade da peça à venda. Brechó é cultura, saiba a senhora. Há alguns anos vi numa dessas casas de velharias uma enorme esfera de vidro, apoiada numa base de madeira. "Vidro coisa nenhuma. Isso é legítimo cristal da boemia. Da boemia! Sabe aquele samba do Nelson Gonçalves?" diz o dono da loja, com bigodes e sotaque russos. Eu não sabia, que não sou bom nisso. O fato é que o preço era convidativo, eu tinha na sala uma mesinha de canto que servia para porem sobre ela desde lista telefônica até pinguim de geladeira e achei que aquela bola de cristal da boemia do Nelson Gonçalves não faria feio ali, como elemento de decoração. O tal russo me chamou do lado e me preveniu que, se eu visse no interior da tal bola de vidro, quer dizer de cristal, alguma imagem em movimento, como se fosse coisa do Youtube, que naquele tempo nem ele nem eu sabíamos o que era, acho que nem existia, que eu não estranhasse. "Quem me vendeu esta bola de cristal foi uma cigana armênia" segredou-me ele, depois de olhar para a direita e para a esquerda, mesmo não havendo ninguém mais na loja. "Quiromante e leitora de búzios" disse-me ele, como se eu soubesse que diabos queria dizer aquilo. O que importa é que, alguns anos depois, uns seis meses antes da copa do mundo de futebol que ocorreria na Alemanha, deu-se algo que me deixou meio preocupado. Apareceu uma goteira na sala, bem em cima da tal bola translúcida. Chamei o pedreiro, que puxou a mesinha mais para perto da janela, para poder cuidar do tal furo no teto. A luz do sol, incidindo sobre a tal bola, fazia aparecerem ali dentro dela uns vultos, que me pareciam o Kaká, o Ronaldinho e outros craques de nossa seleção. Como sabeis todos, a seleção já era campeã do mundo antes de sair do Brasil. Era ir à Alemanha, apanhar o caneco e voltar. O filósofo encarregado de orientar os jogadores afirmava em público e raso que um maestro que tem músicos como aqueles pode guardar a batuta. Pois as imagens que apareciam no fundo da bola da cigana armênia mostravam exatamente o contrário disso. Prestando-se bem atenção, os movimentos dos jogadores não conseguiam sincronizar com a bola. No meu Youtube particular, jogador ia para um lado e a bola para o outro. Para culminar, quando o pedreiro terminou a correção do teto, ele também viu uma cena estranha dentro da bola: pessoas morenas rasgavam e queimavam a bandeira brasileira nas arquibancadas de um evidente estádio de futebol. "Maneiro!" foi tudo o que o Chicão disse antes de devolver a mesinha a seu lugar. O tempo passou e, com essa chuvarada que tem assolado a nossa cidade, me aparece outra goteira naquele mesmo canto. O que significa que a tal mesinha voltou para perto da janela. O que vale dizer que o Youtube veio com tudo. Agora não é mais filme de futebol que eu e o Chicão assistimos ali. É um filme em preto e branco, passado na Alemanha, como se pode deduzir de algumas tabuletas que ali aparecem. Ele inicialmente mostrava pessoas loiras saindo de casa empurrando carrinho de feira, dentro do qual levavam notas e mais notas de marcos alemães. Essas pessoas entravam em casas comerciais e de lá saíam com meia batata cada um, cara de desânimo igual em todos. Com o passar dos dias, o volume de notas de marcos nos carrinhos ia diminuindo e o número de batatas aumentando. Já agora os rostos eram menos graves. O Chicão terminou o serviço, a mesa voltou a seu lugar e o resto do filme sumiu. Vem aí nova Copa do Mundo. Agora é esperar pela próxima chuvarada.  
sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Palavras que mordem

  Dia desses um articulista de jornal discorria a respeito das palavras "peido" e "flatulência", pois alguém teria utilizado a primeira para ilustrar as inúmeras causas do aquecimento terrestre. Falar em "flatus bovino" teria sido mais delicado? E talvez menos inteligível. Certa ocasião, já nem me lembro a que pretexto, escrevi no quadro-negro uma frase e pedi aos meus alunos que lessem em voz alta. A frase era esta: "José é filho da prostituta Tereza". Como a Tereza é conhecida por Terê e o José é conhecido por Zé, reescrevi a frase, usando agora os apelidos deles. Como os norte-americanos, para não perderem tempo, abreviam tanta coisa, lá um "professor" é um "pro", propus que fizéssemos o mesmo com a profissão da Terê. Assim, a frase ficou: "O Zé é filho da puta Terê". Agora pouquíssimos alunos se dispuseram a colaborar comigo. Por que? Porque certas palavras nos mostram os dentes e, se nos distrairmos, nos mordem. Quando o Chico Buarque disse que a bailarina não tinha pentelhos, a censura implicou com os pelos da moça. Ou talvez com o Chico. Mas quando ele nos mandou jogarmos bosta na Geny, isso constou do disco, para escândalo de muitas matronas. "Um rapaz tão bonito, aqueles olhos verdes, dizendo uma coisa dessas. Que pecado!" Era uma mulher que havia sido mordida. Não sintonizo rádio AM há muitos anos, pois aquela voz esganiçada dos gritantes locutores me foi proibida por meu médico. Mas dia desses, como carona educado, tive de ouvir uma dessas músicas da moda, cantada sei lá por quem. O que eu ouvi só se dizia, no meu tempo, atrás do muro do cemitério. E em voz baixa, para os defuntos não ouvirem. O baixo calão foi promovido a médio calão. Ou alto calão, sei lá. O mordido dessa vez fui eu. Como sabemos, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida em Portugal - mania que eles têm de complicar as coisas, pá - é conhecida por SIDA. No Brasil, porém, leva o pitoresco nome de AIDS, talvez por pressão das Marias Aparessidas. Ainda se o nome da doença por aqui fosse Acquired Immunodeficiency Syndrome ... Os homossexuais masculinos estão, com ou sem razão, incluídos no rol dos chamados "grupos de risco" no que diz com tal doença. Entre eles, no entanto, a tal doença não se chama nem um coisa nem outra. É "a maldita". Por que? Medo da mordida. Com o câncer ocorre o mesmo. O indivíduo chega à casa abatido e a esposa pergunta: "O médico lhe disse se você tem alguma doença?" E ele: "Vá dizendo os nomes dos signos do horóscopo até eu mandar parar." Eu trocava mensagens de apoio recíproco com um amigo italiano, que extraiu um câncer e submeteu-se também à quimioterapia, que, por pior que seja, é nada perto dos estragos que a doença pode fazer. Ele concordou comigo: "Realmente, aquilo é bem pior." Penso que a primeira coisa que devemos fazer quando temos um inimigo é conhecê-lo bem, para melhor enfrentá-lo e talvez derrotá-lo. O primeiro passo é conhecer seu nome e repeti-lo várias vezes, para mostrar que não nos intimidamos com sua presença. Se eu disser aquilo, aquilo, aquilo, em lugar de câncer, câncer, câncer eu estarei fazendo exatamente o contrário: estarei exibindo meu pavor diante da presença dele nas imediações. Ponto para o inimigo. Tenho algo que muitos acham um grave defeito: o bom humor. Cumprimento homens e mulheres com palavras carinhosas. "Obrigado, minha querida" digo a pessoas do sexo feminino, moças ou velhas. Já houve uma senhora problemática que veio tirar satisfações: "Como um homem da minha idade se permitia tomar essas liberdade com a filha dela?" Dizer que a moça tinha idade para ser minha neta não resolveria, pois sempre há o rótulo de pedófilo pronto para vir à tona. Preferi responder com ironia: "Se o problema é esse, da próxima vez me dirigirei a ela chamando-a de minha odiada". Embora a velhice não seja, só por só uma doença, acho que nem todos pensam como eu, a julgar pelos apelidos que lhe dão. Eu não devo dizer que sou velho nos meus setenta anos, mas apenas idoso. Ou devo dizer que estou na terceira idade. Qual é a primeira idade? E a segunda? E a quarta idade? Alguém, mais cínico, diz que o certo será dizermos que estamos na "melhor idade". Melhor para quem? Só se for para os meus médicos. Cito o exemplo de um homem velho simplesmente exemplar, que jamais se ofendeu com esse título. Com mais de cem anos de idade, já deixou a terceira idade para os filhos dele, ainda fuma seu cigarrinho, toma seu vinho e trabalha como poucos. E, até onde me consta, é um exemplo de honradez e coerência. Falo, é claro do Oscar Niemeyer. "Mas você foi citar logo um comunista?" repreende-me meu indignado interlocutor, usando uma palavra que, hoje em dia, já não morde mais.
sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Twist

"Eu invento, mas invento com a secreta esperança de estar inventando certo." Lygia Fagundes Telles Contemos uma fábula. No tempo em que as coisas falavam, o marido da bateria de telefone celular, para encerrar uma discussão, diz à mulher: "E vá para o diabo que a recarregue!" Qual a reação do leitor diante de um disparate desses? Analise-se e conclua. O autor do texto pretendeu conduzir o leitor para um caminho e, repentinamente, tomou um rumo inesperado, deixando-o a ver navios. Ou no mato sem cachorro, como também se diz. Experimente, durante uma discussão, dizer ao seu adversário: "Quer saber do que mais? Vá pra santa que te pariu!" Ele, certamente, partirá para as vias de fato, não por aquilo que você disse, mas por aquilo que ele imaginou que você diria, ao completar a frase. Você acabará pagando não por aquilo que disse, mas por aquilo que o ouvinte imaginou que você teria pensado antes de dizer o que disse. Literatura é isso. O. Henry, pseudônimo do contista norte-americano William Sydney Porter, que, por sinal, teve uma vida desgraçada, morrendo precocemente, por causa do álcool, tem um livro, Páginas da Vida, no qual todos os contos têm um final surpreendente, absolutamente inesperado. Houve, aliás, um filme contendo alguns desses belos contos, O. Henry's Full House, mas, por esses mistérios que só a estupidez humana pode explicar, jamais foi convertido em DVD no Brasil. Charles Laughton como um mendigo que assedia uma sensual e solitária Marilyn Monroe, na véspera do Natal, para poder passar o geladíssimo fim de ano na aquecida cadeia local, é algo simplesmente inesquecível. Um ladrão de bancos, agora regenerado, vê-se obrigado a "voltar à ativa" no dia em que a filha do dono do banco onde ele agora trabalha fica preso no cofre novo, cujo segredo ninguém ainda conhece. Um casal de namorados que trocam presentes de Natal, imaginando estar a complementar algo que falta ao outro. Ela vende os. Não vou estragar a surpresa. São contos que vale serem lidos ou relidos. É a técnica do twist, que não só os escritores costumam usar, mas também os teatrólogos e os cineastas. No filme Spellbound, que significa Enfeitiçado (o nome que lhe deram em português não poderia ser mais horroroso: Quando fala o Coração), Alfred Hitchcock fez uma dessas brincadeiras: Gregory Peck considera-se um criminoso e, por isso, Ingrid Bergman, que põe e tira os óculos para nos mostrar que é uma psiquiatra, está empenhada em demonstrar-lhe que isso é uma ilusão, fruto de um trauma da infância e outras freudianices que têm, de quebra, pesadelos ilustrados por ninguém menos do que o Salvador Dali, que, aliás, não resistiria a uma boa sessão de psicoterapia. A certa altura do filme, a câmera nos mostra, do alto da escada, o velho professor esparramado na cadeira, lá no centro da biblioteca, a sugerir-nos que teria ele sido mais uma vítima daquele criminoso. Entretanto. Carrie, a estranha, que consagrou o hitchcockiano Brian de Palma, tem uma cena célebre, que, na ocasião em que foi exibido, há 30 anos, despertou, como não poderia deixar de ser, um grito uníssono dos espectadores, eu incluído. A habilidade do diretor estava justamente em colocar a cena em um momento em que ela não seria jamais esperada. Um inesperado twist. É claro que também não vou tirar o prazer do leitor antecipando-lhe o susto. O mesmo ocorreu com Black-out (em português, Um Clarão nas Trevas), no qual Audrey Hepburn interpreta uma cega que, vinda do Exterior, transporta, sem o saber, numa boneca, certa porção de cocaína, que depois é procurada, em seu apartamento, por traficantes, um deles um sádico. Tema atualíssimo, não fosse o filme de 1967, filmagem, aliás, de uma peça teatral, que, exibida no Brasil, teve, no papel da cega, Regina Duarte, em uma de suas raras interpretações no palco, ainda mocinha. Em ambos os filmes a técnica do twist funciona à maravilha. Tanto que minha acompanhante apertou-a com tanta intensidade que a unha dela se cravou na palma da minha mão. Dia desses recebi uma mensagem eletrônica de um ex-aluno, que mostra como algumas coisas que dizemos em aula ficam guardadas na memória dos nossos alunos. Eu lecionava, naquela ocasião, Noções de Direito Público e Privado em curso de Administração de Empresas. O tal aluno agora me informa que, motivado por aquelas aulas, foi fazer o curso de Direito, tanto quanto seu filho, que eu não cheguei a conhecer, tornando-se ambos advogados. "Lembro-me de uma resposta que você dava diante de toda pergunta que um de nós fazia: depende!" De fato, eu dizia que não é tão importante alguém dizer que tem direito a este ou àquele bem da vida. Importante é ele provar isso. Logo, a possibilidade de ele vir ou não a desfrutar de tal direito depende menos de ele afirmar ter direito a isso do que da prova que ele faça a respeito de ter esse direito. Cinemaníaco que sempre fui, utilizei-me do expediente do twist em uma de minhas aulas, com propósitos pretensamente didático. Foi assim: quando falava dos chamados frutos civis, perguntei quem ali gostava de chupar laranja, fruto da laranjeira. Obtida a resposta, repeti a pergunta usando agora outra fruta, uva que seja. Havendo obtido a atenção da classe, renovei a mesma questão a um terceiro aluno: "Se eu lhe desse agora uma manga, você chuparia?" Ante a resposta afirmativa do aluno, apresentei-lhe, num autêntico twist, a manga de meu paletó. Ele apenas olhou-me atônito, sem saber o que dizer ou fazer. Na verdade, eu havia condicionado a resposta futura, ao falar, antes, de frutas, produzindo a associação de idéias dele, necessária para minha surpreendente pergunta. A lição que eles jamais esqueceriam: há frutos e frutos. Expedientes desse tipo, com fins didáticos, tinham um efeito extraordinário, embora me custasse muito esforço mental, pois tinha de inventar sempre alguma coisa nova, para motivar a classe, já que muitos alunos, havendo trabalhado durante o dia, chegavam sonolentos para a aula. Sempre que possível eu introduzia na exposição um chiste desses, também com finalidade mnemônica. Lembrando-se da anedota, o aluno, quase sempre, se lembraria da matéria onde ela havia sido incluída. O que não impediu que um dos alunos, muito espirituoso, durante uma prova, indagasse: "Mestre, eu não me lembro da resposta à quinta questão, mas me lembro perfeitamente da piada que você contou naquela ocasião. Posso apenas escrever a piada?" Uma gag digna de um Hitchcock.
sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Aborto: sim ou não?

"Dilma, pressionada por evangélicos, muda discurso sobre aborto." Dos jornais "O governante (o Príncipe) não precisa possuir todas as qualidades, bastando que aparente possuí-las. Antes, teria eu a audácia de afirmar que, possuindo-as e usando-as todas, essas qualidades seriam prejudiciais, ao passo que, aparentando possuí-las, são benéficas. Por exemplo: de um lado, parecer efetivamente piedoso, leal, humano, íntegro, religioso, e, de outro, ter o ânimo de, sendo obrigado pelas circunstâncias a não ser, tornar-se o contrário." Nicolau MaquiavelO Príncipe, Capítulo XVIII"De que forma os Príncipes devem manter a palavra" Confesso que há alguns temas jurídicos que me causam insuportável mal-estar. A pena de morte é um deles, embora eu tenha de admitir que, se a China adotasse um Código de Processo Penal semelhante ao nosso (tal como interpretado pelos nossos tolerantes tribunais superiores, é claro), não seria a potência que, neste século, terá a hegemonia que foi dos EUA por quase todo o século passado. Quanto seria necessário investir para construir presídios modernos que abrigassem todos aqueles que, incentivados pela leniência do Judiciário, chegassem à óbvia conclusão de que a vida criminal lhes trará condições de vida bem melhores do que viver com um salário meramente simbólico, uma espécie de "bolsa família" que, porém, não dispensa o beneficiário do dever de trabalhar, ao reverso do que ocorre em outras partes do mundo ocidental. Imagine o que seria assegurar a um bilhão e pico de habitantes (só esse "pico" é maior do que a população do Brasil) uma absurda presunção de inocência que faz de um réu confesso, com condenação confirmada em segunda instância, alguém que circula normalmente pelas ruas, enquanto seu enésimo recurso ainda não foi julgado pelo atolado Supremo Tribunal, dando aos que não estão nem aí para a Ética uma sonora demonstração de que "o crime não compensa" não passa, hoje, do nome de um programa que a rádio Record transmitia há muitas e muitas décadas. Se a certeza da condenação tinha, em nosso tempo de estudantes do Direito, um sentido escarmental (no sentido de que aquele que foi condenado aprendeu com a experiência dolorosa, que, por isso mesmo, serviu de advertência aos demais membros da comunidade), a certeza da impunidade, em termos práticos, só pode levar a uma função "desescarmental", como acintosamente nos mostram muitos de nossos políticos, seja por sua conduta pessoal, seja pelos auxiliares de confiança que trazem para seu staff. Quando não agem como ventríloquos, colocando a esposa no colo, tentando convencer os espectadores de que é dela a voz que ouvem. Como dizia Carnelutti, no As Misérias do Processo Penal (clique aqui), "todo julgamento é a revelação da miserável condição humana. O processo morre sem alcançar a verdade. Cria-se, então, um substitutivo para a verdade: a coisa julgada. Os fatos têm comprovado que as penas tradicionais raramente curam o condenado. A prisão é o maior exemplo. Ela pune, mortifica, degenera, faz aumentar o ócio, multiplica os ressentimentos e as revoltas. A prisão só não recupera." O que nem ele nem ninguém nos esclarece é: qual a alternativa para ela? Os argumentos em favor da possibilidade da interrupção voluntária da gravidez são, no geral, de ordem prática: proibido ou não, o aborto é feito diuturnamente, seja em clínicas elegantes, por quem tem condição econômica para assim proceder, seja em algum pardieiro de periferia, onde o risco de uma infecção a ser contraída pela gestante é enorme. É justo que haja tal distinção entre quem tem recursos econômicos e quem não os tem? Posto em tais termos o problema, o feto passa ao largo, como se ele fosse culpado por haver surgido de uma relação sexual descompromissada. É ele um simples e incômodo objeto, tal como os cálculos biliares ou um tumor canceroso. Insta extirpá-lo, sem maiores discussões éticas, como ocorre sempre que se invoca o pragmatismo, como fazem os magistrados chineses, que, além de mandarem executar os condenados com um tiro na nuca, ainda cobram da família do morto o preço da bala utilizada na execução. Ética e pragmatismo são como água e azeite. Ou um, ou outro. Certa ocasião, participei de um debate na OAB a respeito da possibilidade de descriminalização do aborto. Os argumentos iam desde o fato de nossa legislação não considerar o feto titular de direitos, um dos quais o direito à vida, até a discussão teológica a respeito do instante em que a alma se incorpora no feto, não faltando quem trouxesse o pragmatismo: já que tantas gestantes o praticam será cínico não reconhecer isso. Mal comparando, sendo tão comum nossos políticos misturarem o patrimônio público ao seu próprio, talvez devêssemos regular isso, definindo-se, em lei, qual deve ser o percentual razoável que um corrupto (ache-se um nome mais palatável para eles) pode receber para não vir a ser processado criminalmente a tempo de serem condenados. Fiz, naquela ocasião, as considerações que me pareceram adequadas e, ao encerrar, fui elegantemente aparteado por uma advogada, que me acusou de "haver raciocinado como homem", por ser incapaz de avaliar o sofrimento de uma mãe que, premida pelas circunstâncias, tem de livrar-se daquele futuro filho. Sem contradizê-la, até porque não me seria muito fácil raciocinar como uma mulher, lembrei-lhe a reação de um médico ginecologista que foi procurado por uma gestante, que queria porque queria que ele "retirasse o feto", pois a família "não tinha condições econômicas para alimentar mais uma boca", sem lhe indagar previamente quais as convicções dele sobre o tema. Indagou-lhe ele quantos filhos o casal já tinha. "Dois", disse ela. Um menino de 5 e uma menina de 9 anos. "Então traga-me aqui a menina, que certamente gasta mais em comida do que um recém-nascido. Se a questão é meramente econômica, vamos resolvê-la economicamente". E mais eu não disse nem me foi perguntado.
sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Menas Verdades - o livro

  "A Turma formada em 1960 pela Faculdade de Direito da USP, a velha e sempre nova Academia, será homenageada pela OAB/SP, por seu Jubileu de Cinquentenário, em solenidade a realizar-se no dia 15/10, sexta-feira próxima, seguida de almoço de confraternização. E para sua simpatia, o que é? O Quim quim querum!" Elias Katudjian(Migalhas dos leitores14 de outubro de 2010) Já que és um grandessíssimo mão-de-vaca, desses que ficam de pé diante da banca de jornais da esquina para ler as notícias do dia e economizar uns trocados para o cigarro, certamente não vais gastar 35 pratas (clique aqui) para adquirir o livro. Assim, faço a gentileza de exibir-lhe a apresentação dele feita pelo Juca Kfouri, que poderá ser lida a leite de pato, como se dizia no tempo do teu avô. Quando mais não seja, para mostrar quão importante é termos amigos. " - Meu filho, procure passar o mais longe que você puder do fórum. Evite ter contatos com a Justiça até como testemunha. Porque eu sei como ela é feita. Pobre Dr. Carlos Alberto Gouvêa Kfouri, meu pai, promotor público, procurador de Justiça. Estivesse vivo e sei lá como reagiria ao saber que o filho é, ou já foi, réu em mais de uma centena de processos, por crimes de imprensa, injúria, calúnia e difamação, essas coisas. Liberal, democrata convicto, erudito, o velho morreu desencantado com a justiça (assim mesmo, em minúscula e adiante, no livro, você entenderá por quê). A justiça dos homens só poderia mesmo ser imperfeita e como não acredito na divina fico no mato sem cachorro, o que não é de todo mau, porque entre meus inúmeros defeitos está o de não gostar de animais pequenos. Embora adore cavalos - e foi como se estivesse montado num de raça que li o que você lerá a seguir. Prepare-se para rir (muito), ficar deprimido (mas só se tiver tendência) e, principalmente, para tomar uma boa dose de realismo. Porque o meu caro Dr. Adauto Suannes (antiquíssimo novo amigo) não deixa pedra sobre pedra. Herético, dirão os adeptos da impostura. Ácido, dirá alguém com dificuldade de digestão. Crítico, qualquer um constatará. Mas, sobretudo, realista. E muito bem-humorado. Realista, garanto eu, que já fui condenado em primeira instância por uma jovem juíza que simplesmente inverteu o depoimento de uma das minhas testemunhas. A sentença, a bem da verdade, foi anulada por vício insanável 15 dias depois. A juíza, eu soube depois, era filha de um desembargador carioca, velho freguês dos voos da alegria da CBF em Copas do Mundo. Nomes? Melhor nem dá-los, para não magoá-los. Ou porque cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça. Mas voltemos ao Menas Verdades. Dr. Suannes e eu temos muitas convergências e algumas poucas divergências, estas de menas importância, diga-se de passagem, embora ele fustigue até algumas pessoas que me são caras. Fiquemos, no entanto, no que nos une, como dizíamos nos tempos da ditadura militar. A começar pelo basquete, que ambos jogamos. E posso testemunhar, pelo menos de minha parte, já que não o vi jogar, com brilho. A continuar pelo corintianismo que ambos professamos. Quase a terminar, pelo repúdio ao autoritarismo e à falta de ética. E não são poucas as pessoas bem citadas que fazem parte da minha vida, colegas queridos de meu pai com os quais convivi intimamente. Ou com quem aprendi as rarefeitas noções de Direito que tenho, como Nelson Hungria, op. cit., pág. 72, jargão a que tive de me acostumar quando ajudava na revisão dos pareceres de meu velho. E quantos casos deliciosos, exemplares, para o bem e para o mal, são aqui contados. Do alcoolismo, que é doença sim senhor, ao plágio; dos maçons aos católicos; do você sabe com quem está falando às ponderações sobre o delicado tema do nepotismo, tudo num texto com personalidade e ritmo de tirar o fôlego - e que ridiculariza desde o preconceito (e os que juram que nem sabem o que é isso) até o famoso juridiquês, pior até que letra de médico. Passaria horas aqui esmiuçando coisas e loisas e mariposas até correr o risco de estragar o prazer da descoberta. Razão pela qual fico por aqui, com uma frase que diz tudo e que aprendi com o Dr. Suannes: Se não consigo mudar o mundo, que o mundo não me mude." Se o texto não lhe serviu para muita coisa, ponha no toca CD aquele disco do MPB4, onde eles dizem que amigo é pra essas coisas e que o apreço não tem preço.
sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ordem e Progresso

  "Dois PMS da Unidade de Polícia Pacificadora (RJ) são presos ao invadir casa da zona oeste." Dos jornais Volto ao tema, questionando se isso de os positivistas, como meu amigo Gilberto Franco, para quem é Auguste Comte no céu e Jesus Cristo na Terra, dizerem que o progresso decorre da ordem tem alguma base científica. Penso que não. E volto ao Konrad Lorenz, que tem uma afirmação curiosa: infelizmente, para o destino da Terra, diz ele, o homem não pode ser classificado como carnívoro. Como é isso, mestre? Ele explica: a um de nossos antepassados mais ilustres, o "homem de Pequim", ou sinanthropus pekinensis, se atribui essa invenção maravilhosa, o fogo, coisa que os australopitecos africanos ainda não conheciam, pois haviam chegado apenas à invenção das peças feitas com pedra, graças às quais eles conseguiam matar os seus semelhantes, coisa que assombrou os demais habitantes do reino animal, pois, até ali, nenhum deles matava membros de sua própria espécie. E eis mais um passo importantíssimo no longo caminho para a construção da civilização, coisa aí de um Napoleão, um Hitler, um Stalin, um Bush: se os bisavôs dos africanos eram enterrados tendo ao lado seus instrumentos de guerra, como as tais lanças e machados de granito, os bisavôs dos chineses eram enterrados com claros sinais de que haviam sido não apenas mutilados mas também churrasqueados! Isso não ocorre com os que ele chama de "carnívoros profissionais", pois estes apresentam freios naturais que os impede de voltar sua agressividade contra os de sua própria espécie. Já viu leão comendo leão? A não ser em especiais situações de estresse, uma hiena não come outra hiena, nem um urubu devora outro urubu. A Natureza imprimiu neles esse mandamento: se vocês se matarem uns aos outros, a espécie de vocês se extingue. Isso é bom? "Claro que não", responderam os animais irracionais. Como o "primata superior", que foi criado "à imagem e semelhança do Criador", não teve os mandamentos impressos em seu cérebro antes de seu nascimento, ele se tornou um onívoro, comendo tudo o que aparece em sua frente. E destruindo os membros de sua própria espécie, pois não tem compromisso "natural" com a preservação da espécie nem com o meio ambiente. Muito pelo contrário. Qual o animal que transforma fonte de água potável em veículo de esgotamento de resíduos alimentares, como o Fernando Henrique denomina o esgoto? Isso tudo está dito pelo etólogo alemão num livro cujo título diz tudo: A Agressão. E é claro que essa destrutividade latente no ser humano e essa falta de compromisso com sua espécie e com o meio ambiente levou ao aparecimento da religião, da moral e bons costumes, das Cruzadas, da liga das senhoras católicas, do suspensório dos homens protestantes, e, no limite, da law and order. Quanto mais lei, mais ordem. Mas, que é ordem? A palavra admite mais de um sentido. Um deles diz com a organização. Colocando, na minha biblioteca, os livros de acordo com uma ordem determinada, isso me facilita administrar os livros e a biblioteca. Livro com encadernação descascada, ou jogo fora ou mando à oficina, para que volte novinho em folha, sendo devidamente ubicado, como dizem as biblioteconomistas, para estar devidamente adequado à ordem que eu impus à minha biblioteca. Se eu quero reler o D. Quixote, é só ir ao escaninho 23.121.429 e lá está meu velho xará Alonso, tão quixotescco quanto eu, a me esperar. Se você é de tão tenra idade que não sabe o que significa a palavra "livro", pense no seu computador e seus drives, cada qual com suas "pastas", seus "programas" e seus "arquivos". Pois tudo aquilo está "organizado", isto é, obedece a uma certa "ordem". Acesse "pesquisar", indique duas ou três palavras e, zas!, o computador te mostra o texto procurado. Isso me remete a uma empregada doméstica da minha querida Maria Helena. Dia de faxina e a zelosa funcionária resolveu arrumar os livros das estantes da biblioteca da ilustre professora, principalmente os que estavam escandalosamente abertos sobre a mesa de trabalho, nunca vi bagunça igual àquela, patroinha! Baixou todos eles das respectivas estantes, limpou-os um a um e, depois de tirar o pó das prateleiras, colocou-os de volta lá, em perfeita ordem. Quando a Maria Helena, voltando da Faculdade do largo de São Francisco, onde ensinava aos seus alunos que o Direito Internacional Privado nem é internacional nem é privado, topando com aquela "arrumação", deu um berro que foi ouvido quatro quadras adiante. A cuidadosa moça explicou então: os livros de capa vermelha estão nas prateleiras da esquerda, os de capa preta nas prateleiras da frente e os de outras cores nas prateleiras da direita. Eu bem que ia jogar fora aqueles que não têm capa colorida, pois eles destoam dos demais e nem combinam com o tapete, mas resolvi esperar a senhora voltar. Eles estão ali no canto. É só mandar que eu jogo tudo no lixo. Aliás, tem ali uns bem velhinhos! Para muita gente, é esse tipo de ordem que os governantes devem impor aos seus súditos. Ordem também é a determinação que se faz a algum subordinado. Faça isto, não faça aquilo, tire o dedo do nariz, teje preso!, abra as pernas. Fala-se até em "ordem de prisão", não é mesmo? Ordena quem pode e obedece quem tem juízo, diz o vulgo. Isso nada tem a ver com algum fundamento axiológico, se é que me faço compreender. Ordem, nesse caso, não supõe organização, mas autoridade, palavra que nos levaria a tantos desvios que. Os conceitos de ordem que conhecemos dizem com a organização social? Que está por trás disso? Mandamentos divinos e regras humanas têm em comum algo facilmente perceptível e que não conta ponto a nosso favor: "se deixarmos a coisa por conta dos seres humanos, salve-se quem puder!" Que outro motivo haveria para dizer o óbvio? "Não se deve matar!" "Não se deve roubar" "Deve-se pagar imposto" e tudo aquilo que a imaginação do legislador, humano ou divino, sabe que não pode ficar a critério da liberdade humana. Imagine Deus tendo de dizer aos pássaros: "e não se esqueçam de abrir as asas, ein?" No que diz com o homo sapiens, deixou sem regulamentação? Aguente as consequências. Na Noruega, por exemplo, com toda aquela pose de país de Primeiro Mundo, petróleo sobrando no Mar do Norte, licença maternidade de um ano com salário integral, caderneta de poupança custeada para o recém-nascido até os dezesseis anos e tudo mais, a bebida alcoólica só é vendida onde e quando a rainha autorizar. Aqueles marmanjões de cabelo cor de fogo, capazes de pegar bacalhau à unha, abrir garrafa de cerveja com os dentes e nadar pelados nos fjords, só podem comprar vinho até as 14 horas do sábado. Chegou à loja da rainha (a venda de bebida alcoólica é monopólio do Estado) um minuto depois, volte na segunda-feira, depois das dez. Prestasse mais atenção na hora. Eu poderia falar do que se passa na China, nos Estados Unidos, na Europa, França e Bahia, além do Paquistão e do Iraque. Preciso? Acho que posso deixar a escolha ao critério do leitor. O fato é que, quando algum país resolve afrouxar esse regramento todo ("sabe que na Holanda o cara pode ficar chapado, sem ir em cana? Maior legal, mano!"), olha a cara de espanto dos idiotas de plantão! Chegado até aqui, noto que ainda não foi desta vez que consegui concluir meu raciocínio sobre essa falácia do "ordem e progresso". Deve ser coisa da idade. Os neurônios vão ficando desorganizados. Ou, se preferirem, fora de ordem. O que nos servirá para questionar se, de fato, a desordem dos fatores não altera o produto final.  
quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sim, nós podemos

  O ser humano tem medo do futuro, o que o leva a inventar os mais diferentes artifícios para não ter surpresas, seja do lado de cá, seja do lado de lá. Estão aí os horoscopistas, com suas afirmações ambíguas, que me não deixam mentir. No limite, temos os comentaristas esportivos, com suas previsões e suas quebradas de cara, como o Geraldo Bretas, que o teu avô certamente conheceu. Ele era um crítico acerbo da seleção brasileira dos anos cinquenta, embora ele mesmo não soubesse que sua crítica fosse acerba, e garantiu, com aquela voz anasalada lá dele, que deixaria de ser comentarista esportivo se aquele time de merda ganhasse de alguém. Ele não disse merda mas pelo modo como ele se expressou pouco faltou para ter dito a palavra inadequada a programas radiofônicos, que locutor de rádio prefere chamar bunda de bumbum, coisa mais feia, em lugar de nádegas, coisa mais elegante. E o tal comentarista garantiu que nunca mais, nunca mesmo, ele faria comentários esportivos se aquela seleçãozinha ali ganhasse a copa do mundo. Como Deus e o eleitor costumam escrever direito por tortas linhas, lá está o capitão da seleção brasileira, Hideraldo Luiz Bellini, levantando o caneco, como dizem os tais comentaristas referindo-se à taça, para desgosto do tal Bretas, que prefere passar umas longas férias na Europa, voltando depois de meses à mesma rádio Tupi com uma cara não sei bem de quê, a fazer comentários esportivos como se nada tivesse ele dito antes. Verba volant diria o Mário Moraes, que era o príncipe dos comentaristas esportivos naqueles idos, fazendo dupla com o Pedro Luís, o príncipe dos narradores, mesmo porque nunca eu soube quem seria o rei, talvez o Ari Barroso e aquela sua gaitinha fluri flurá fluri flurá quando o Flamengo marcava gols, que flamenguista ele era até a medula, mesmo porque banha ele tinha era nenhuma, Juca Kfouri perto dele é um Jô Soares. E vem o Juca para corrigir-me: o homem era, de fato, torcedor do América F.C., clube que, segundo sempre me pareceu, só tinha como torcedor o José Trajano. Como a gente se engana! Ou a Conceição Tavares, ilustre economista portuguesa que jurou que voltaria para Portugal se o plano Collor não desse certo e o plano foi por água abaixo, com PC Faria et caterva e ela está até hoje dando aulas e mais aulas na televisão brasileira aos que nela ainda acreditam, ela com sua cara de peixeira do Algarve e aquele seu sotaque de quem entende tudo de economia mas palavra de honra mesmo é nenhuma. Pois inda agora os comentaristas políticos começaram a semana dizendo que não disseram o que haviam dito e que urna e barriga de grávida só depois de abertas é que mostram o que lá elas têm dentro. Coisa mais antiquada isso! Ou saindo-se com algo em que eles mesmos não haviam reparado: a pesquisa de opinião pública mostra apenas e tão somente a tendência dos eleitores consultados no momento da consulta, coisa que até meu neto mais novo já sabia. Aliás, consultar 1.000 ou 2.000 eleitores e, com base nisso, projetar o que pensam milhões de eleitores será o mesmo que examinar os dentes de 1.000 ou 2.000 pessoas e, a partir daí, diagnosticar a saúde bucal dos brasileiros. Até porque se isso de amostragem tivesse alguma base científica, o IBGE não precisaria gastar o que gasta para entrevistar pessoa a pessoa em todas as cidades do país. Verdade que muitos de nós já estávamos meio que esquecidos de que as grandes caminhadas começam num primeiro passo, trôpego que seja. Dizer que uma mulher que se alfabetizou quando a infância já ia embora e chegou aonde ela chegou iria arrebatar 20 milhões de votos era coisa de algum otimista maluco. A hipótese de fazermos dela um Barack Obama de saias igualmente não nos teria motivado tanto. Felizmente, graças principalmente à imprensa, eis que muita gente que andava meio cega acabou vendo que, hoje como ontem, vale o ditado: "Dize-me com quem andas e eu lhes direi quem és". Se não é isso é por aí. O fato é que a pacífica guerra à corrupção, que redundou na impensável Lei da Ficha Limpa, teve seu desdobramento e os eleitores, graças aos auspiciosos fatos novos, terão a oportunidade de rever seu voto. Não se tratará de votar neste ou naquele candidato mas de votar contra este ou aquele, em razão da convicção de que só assim extirparemos de nossa vida pública pessoas que são postas em postos chave para aí instalarem quadrilhas de vendilhões. Que vão guerrear em outra freguesia, eis o que desejamos. Isso de ganhar na véspera, com chope e fogos já comprados, já fez muito torcedor ter de enrolar a bandeira e enfiá-la onde coubesse. O time do presidente da República dia desses não empatou o jogo aos 45 minutos do segundo tempo? E não perdeu esse mesmo jogo aos 47?  
sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Por falar em eleições

  Culpa não se lhe poderia atribuir por ser tão feio e atarracado e ainda por cima ter um sotaque que denunciava não ser originário do Estado onde judicava, nada contra os nordestinos que aí está a fidalguia do Demóstenes Braga um ator impensável para um capitão Virgulino, faltando-lhe o mau caráter e o chamado physique du rôle. Deu-se que ele o tal juiz inicialmente referido foi designado para auxiliar na eleição que se feria no Estado e lá foi ele para a cidade do interior onde todos estavam mais do que carecas de saber que o juiz era uma figura bonita, homem alto tipo galã de novela com direito a costeletas mais calça boca de sino e outros luxos que a moda impunha além de ser homem muito educado e extremamente cordial tendo outros atributos que a modéstia não me permite registrar aqui, que não cairia bem. Titular e auxiliar traçaram planos de divisão de serviço, que ele o tal juiz auxiliar chamava selviço, e lá foi o auxiliar cumprir sua parte na equanimemente dividida tarefa, que o titular era homem justíssimo, minha mãe que o diga. E já foi entrando na escola que ia fiscalizar chamando a atenção deste e mandando aquele fazer aquilo e aquela senhora que que está fazendo ali? e o senhor aí sentado perto dessa urna? O tal homem por derradeiro alvejado se levanta e não tem meias palavras escuta aqui pau-de-arara o que que você está fazendo dentro do meu território, hein? já daqui pra fora antes que eu chame a milícia para te levar no camburão. E foi empurrando o juiz baixinho, que ele o tal homem era muito mais alto e muito mais forte do que o tal juiz auxiliar, se é que o outro pudesse ser chamado de forte, aquele tampinha de cara chata. E o juiz auxiliar do juiz eleitoral mete mão, não, tenta meter a mão dentro do paletó, tirasse ele a carteira dita funcional onde se veria aquela cara amassada mais os dizeres República do Brasil e assinatura do Secretário da Justiça mandando que todas as autoridades do Estado dessem a devida atenção ao portador, o Exmo. Sr. Dr. Fulano de tal, juiz de Direito auxiliar da comarca da capital do Estado e tudo o mais que ele não conseguiu exibir como havia desejado pois o Presidente da Junta Receptora de Votos, que essa era a função do homem forte, já está agarrando o miúdo juiz como se seus braços dele presidente fossem uma camisa de força e dizendo a um de seus muitos auxiliares que fosse buscar a força pública, que logo chega ali correndo, mão direita empalmando cassetete junto à coxa, e indagam que se passa e o Senhor Presidente da tal Junta Receptora de Votos dizendo levem este maluco daqui que ele está tumultuando os trabalhos eleitorais. E o homem baixinho tenta falar mas os dois soldados são muito maiores do que ele, grande vantagem! e ele não tem como lhes mostrar os documentos de identidade, sabem com quem estão falando? e ainda bem que ele tem a ideia sensata de silenciar até que todos cheguem à rua, onde o espera o camburão, e aí ele o detido tem a oportunidade de se explicar, com aquele sotaque horroroso dele, nada contra os nordestinos, mas o ouvido da gente se acostuma é com os sons caseiros, e agora os soldados estão a lhe bater continência Vossa Excelência nos releve o mal entendido, menos o tal Presidente que se limita a lhe dar as costas e voltar para dentro da escola onde continuará a presidir a Junta Receptora de Votos. Quanto ao juiz auxiliar, ele vai direto ao fórum tugindo, mugindo e bufando a exigir do juiz eleitoral titular que mandasse prender o tal Presidente da Junta Receptora de Votos pelo descabido desacato que lhe havia praticado ao juiz auxiliar, onde já se viu tamanho desrespeito? por pouco não saquei o trabuco diz ele valente agora e se eu ainda fosse delegado de poliça esse merdinha estava era morto numa hora dessas, que que está pensando? olhe aqui, mande logo buscar esse corno que é para ele aprender com quantos paus se faz uma jangada. E o juiz titular não sabe se ri ou se gargalha, fosse ele aumentar a ira do colega que ele mal conhece mas que já vê que não entende nada de Direito Eleitoral pois a autoridade máxima em dia de eleição é o Presidente da Junta Receptora de Votos ninguém ali mandando mais do que ele, nem o Presidente da República nem mesmo o Papa, se quer saber, se viesse ao Brasil nesse dia e quisesse mandar rezar missa na sala onde se realize recepção de votos o que só faria com a autorização e sob a responsabilidade do Presidente da Junta Receptora de Votos, tal como ele explicava sempre que havia eleição àqueles que haviam sido contemplados com essa rara oportunidade de servir à pátria, o que deixava a maioria deles era muito puta pois já estavam pensando em passar o feriado com a família na praia grande e vem logo essa convocação judicial, não dá para me dispensar, seu doutor? como eles pediam sem êxito ao escrivão eleitoral que nem doutor era. Dizem as boas línguas que outro juiz auxiliar, após o encerramento da apuração da eleição pediu licença ao juiz eleitoral titular para ser levado para casa pela viatura do fórum o que foi deferido por Sua Excelência, como era de justiça, mal sabendo o autorizante que o colega, feliz pelos feriados que o esperavam, não aguardou o dia seguinte para dirigir-se ao bar da esquina e matar a sede que o atormentara durante todos aqueles dias de abstinência que o dever cívico impunha. E enquanto a viatura dormia lá fora ele entornava todas as a que se achava com direito, onde se viu trabalhar feito mouro daquele jeito? esse juiz eleitoral é um louco querendo terminar a apuração em primeiro lugar, que que ele está pensando? quer se promover à minha custa? E quando o motorista se dá conta, lá vem o juiz auxiliar eleitoral abraçado com uma moça, se assim posso declarar, ambos ziguezagueando, e a autoridade judiciária determina ao motorista que abra a porta de trás para que ambos ali se esparramem e se ponham a trocar carícias inadequadas e as pessoas que passam vão chamando o motorista de gigolô de marajá e o motorista, sendo crente, se vê muito aperreado e depois de deixar o juiz auxiliar em casa leva a viatura de volta para o fórum, onde comenta com o escrivão eleitoral aquela coisa infame que lhe havia ocorrido. E o escrivão comenta discretamente com o juiz eleitoral titular que diz ainda bem que a apuração já terminou! eu não quero ver aquela peça nunca mais na minha frente, para que que se gasta dinheiro com exame psicotécnico se um maluco desses acaba sendo aprovado, sabe-se lá quem foi seu padrinho!   1Extraído de "Menas verdades (causos forenses ou quase)"
sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Verdades temporárias

  "O tempo não pára no porto, não apita na curva, não espera ninguém." Reginaldo Bessa (clique aqui) Como é duro envelhecer! É o que dizem todos aqueles que envelheceram. Não tenho motivos para duvidar deles. Lembro-me de meu pai, que havia nascido no século XIX, e que era, para os filhos, um velho aos cinquenta anos de idade, até porque havia nascido no último ano daquele distante século. Já minha mãe nascera no dia 23 de junho de 1907, mesmo dia, mesmo mês e mesmo ano em que nasceu Dolores Gonçalves Costa, que, aos 17 anos de idade, fugiu de casa para acompanhar um circo. De picadeiro em picadeiro acabou sendo chamada para fazer comédias na Atlântida com o Oscarito, Grande Otelo e Catalano, programas de TV, manifestações de irreverência no teatro, sem jamais ter tido a vida pacata de minha mãe. Que, por sinal, morreu, velha, ao ver dos netos, há muitos e muitos anos, enquanto a Dolores, rebatizada Dercy, cantava Carinhoso aos 100 anos de idade. Meu pai não tinha a presunção nem a arrogância dos que obtiveram um diploma universitário, até porque jamais tivera tempo para perder nessas coisas menores. Era autodidata e, com isso, tudo o que fazia era, a cada dia, tentar diminuir sua auto-reconhecida ignorância, por mais que nós os filhos o considerássemos um homem genial. A imagem principal que guardo de meu pai era ele com um livro na mão ou com o olhar pedido longe, os dedos tamborilando sobre qualquer superfície, a mostrar que estava compondo algum dos seus belos sonetos. Vez ou outra ele manifestava dúvida sobre a grafia desta ou daquela palavra, xingando os autores da reforma ortográfica. "Se ontem ontem tinha agá, por que motivo haveria hoje de não ter agá?" brincava ele, mostrando sua dificuldade em aceitar que o latino ad noctem, isto é, "na noite passada", tivesse dado no hontem de ontem, isto é, antes da tal reforma, e no ontem de hoje. Que tem agá. Falo do hoje, não do ontem. Que diria ele de outros conceitos que para nós todos, até os de minha geração, eram verdades sedimentadas a cimento, cal e areia? Diga aí o nome dos afluentes do rio Amazonas. E meu pai nos ensinava isso, cantando um sambinha com a sucessão daqueles nomes indígenas, cujo conhecimento, soubemos depois, só interessaria aos contrabandistas de madeira nobre. E os nomes dos planetas? Lá vinha a lista, rezada como o incompreensível padre nosso. Que que esse padre tem a ver com isso? Latinices, meu filho, latinices. Para não falar naquele perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos os nossos devedores. Quem de nós alguma vez se dispôs a perdoar os nossos devedores, a não ser o Lula em relação aos países vizinhos, cujos dirigentes lhe são muy amigos, como todos temos visto ultimamente? Depois mudaram isso e nem sei mais como é que se reza isso hoje, mesmo porque, quem leva tal equivalência a sério? Pois que diria meu velho pai se soubesse que os nossos velhos e sólidos vizinhos de vida intergalática foram rearranjados, como se constituíssem clubes de futebol? Temos hoje, para escândalo dos mais velhos, planetas de primeira e de segunda divisão. Quando ouvíamos falar em Plutão, todos nós, sem a menor exceção, imaginávamos termos ali um planeta enorme, maior, muito maior, do que nossa pequena ervilha azul. Pois os astrônomos, com suas naves espaciais, tripuladas ou não, seus megatelescópios, suas traquitanas de nomes arrevesados, nos mostraram o tamanho de nossa ignorância. Ele se chama Plutão não por ser muitíssimo maior do que o cãozinho do Mickey (um camundongo tendo um cachorro menor do que ele era uma falta de lógica que jamais nos tirou o sono até porque o Pato Donald estava ali do lado para nos berrar aqueles grunhidos ininteligíveis que fatalmente nos fariam calar a boca), mas por causa de uma figura mitológica. Segundo se diz, o planeta Plutão recebeu esse nome por estar tão longe do Sol que fica em perpétua escuridão, já que o deus Plutão representa o inconsciente, a obscuridade, e, no limite, o inferno, onde ele reina. Verdade que muito fofoqueiro diz que o planeta recebeu esse nome, abreviado PL, para que se lembrassem de seu descobridor, o astrônomo Percival Lowell. Você se lembrava disso? Fofocas de lado, o fato é que de todos os planetas de nossa infância, Plutão, paradoxalmente, era o menor de todos, coisa que nos haviam omitido, causando um buraco negro em nossa cultura, se me permite o Stephen Hawking. Nestes tempos pós-Humble, acaba-se descobrindo que se ele tem time para estar na primeira divisão, que dizer do Xena, um corpúsculo que, fita métrica na mão, descobriu-se que é menos pequeno do que o nosso bom e velho Plutão? A solução é criarmos duas divisões, considerando-se Plutão, Ceres e Xena participantes da segundona, enquanto os demais permanecem na primeira, agora com oito times, em lugar dos tradicionais nove. Se o Corinthians e o Vasco podem ser rebaixados, por que não um mísero pedregulho desses? Mas quem é Xena? Era o nome do asteróide 5% maior do que Plutão, que foi rebatizado Éris, nome da deusa que preside a discórdia e a ilegalidade. Certamente numa homenagem a estes nossos tempos belicosos. Então ficamos assim: até que o telescópio que nos convida, com seu nome, à humildade científica nos desminta, teremos oito planetas circulando em torno de nosso bom e velho sol (Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno) e três sub-planetas: Ceres, Plutão e Éris, sendo Ceres um asteróide que, como ocorre em certos trens da alegria de nosso Congresso Nacional, entrou de gaiato nessa reclassificação celeste, talvez por meio de algum ato secreto. Isso, certamente, é como decorar nome de país africano. Serve para quê mesmo? Melhor aproveitar o pouco tempo que nos resta por aqui para conhecermos melhor o nosso planeta, deixando os outros por conta dos seus habitantes, sejam eles verdes ou vermelhos.  
sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Tiririca para Presidente

  "O vice-presidente do STF, ministro Ayres Britto, deferiu parcialmente a liminar na ADIn 4451, em que a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) contesta dispositivos da Lei Eleitoral que impedem as emissoras de veicularem programas que venham a degradar ou ridicularizar candidatos nos três meses que antecedem as eleições." Migalhas, 27/8/2010 Segundo o ministro Ayres Britto, do STF, a lei da Ficha Limpa, "cuidando-se de diploma exigido pelo art. 14, § 9º, da Carta Magna, para complementar o regime constitucional de inelegibilidades, à sua vigência imediata não se pode opor o art. 16 da mesma Constituição", é de manifesta constitucionalidade. Dos jornais "It has been said that democracy is the worst form of Government except all those other forms that have been tried from time to time." Winston Churchill Os que não são tão jovens talvez se lembrem de um episódio que ficou marcado na lembrança dos paulistanos. Apareceu no jardim zoológico da cidade, aí pelo fim dos anos 50, um animal que se tornou extremamente popular, muito embora não desse cambalhotas nem fizesse micagens. Era um simples e trivial rinoceronte, que uma consulta popular havia batizado de Cacareco. Pois o Cacareco tornou-se atração turística e, nos fins de semana, bandos de crianças se acotovelavam diante da grade correspondente ao domicílio do animal apenas para vê-lo mastigar sua comida, não me constando que fizesse algo mais do que isso para justificar sua popularidade. E essa popularidade era tamanha que, havendo um gaiato lançado o nome do animal para vereador, foi ele eleito por expressiva maioria. Infelizmente, a Justiça Eleitoral, presa, como sempre, a formalismos e preconceitos, recusou-se a dar-lhe posse, esquecida de que outro quadrúpede (clique aqui) já havia ocupado assento no senado romano. E eles ainda não tinham lá o Berlusconi na chefia do governo. Aliás, não era raro que eleitores escrevessem na cédula alguma frase de protesto, o que levou a sempre atenta Justiça Eleitoral a proibir sua divulgação. Como sempre, ataca-se o efeito e não a causa. Caíram alguns grãos de areia nas ampulhetas políticas e cá estamos às voltas com mais uma eleição. E aí estão, pedindo o seu, o meu, o nosso voto, figuras que deveriam ter sido banidas há muitíssimo tempo da vida pública e mandadas de volta para a privada. Que fizeram de útil para a sociedade para se atreverem a isso? Vi uma faixa com o nome de um candidato que já faleceu há alguns anos. Como pode? Nos "santinhos" distribuídos junto aos semáforos descubro, pela fotografia, que é o filho do de cujus, que, malandramente, omite o Júnior nas tais faixas. Aliás, a utilização de nomes alheios e famosos é uma tradição em nossas eleições, o que mostra o tipo de políticos que temos. Se fazem isso às claras, que farão nos desvãos de Brasília? Felizmente também aparecem nomes novos, ou não tão novos assim, mas ainda jejunos na arte de enganar eleitores. Aqui é um ex-jogador de futebol, ali um cantor popular, mais adiante uma vedete, mais acolá um comediante. E assim vai. A outrora chamada elite social torce o nariz a isso, clamando por reformas legislativas que impeçam essas figuras bizarras de concorrerem com personagens insignes de nossa vida pública como os Barbalhos, os Malufes, os Sarneys, os Calheiros, os Arrudas e tantos outros que, esses sim, são políticos profissionais, frequentando com assiduidade as páginas dos jornais. Quando não aparecem algemados na televisão. Essa mesma elite não engoliu até hoje o fato de um mero torneiro mecânico candidatar-se reiteradamente à Presidência da República e, fosse por fastio do eleitorado, fosse por ter ele número suficiente de admiradores, conseguir eleger-se, reeleger-se e chegar ao fim do mandato com cerca de 80% de aprovação popular, algo raríssimo em qualquer país democrático do mundo. Isso quando Barack Obama não chega aos 50%. Um dos candidatos por São Paulo para a Câmara Federal é o palhaço Tiririca, cujo slogan é significativo: "Você sabe pra que serve deputado federal? Eu não." Mais direto impossível. A julgar pelo comportamento ativo de certos congressistas e pelo comportamento passivo da maioria deles, um congressista é alguém que se arvora em sócio da Fazenda Pública, utilizando de todo tipo de expediente para engrossar suas contas bancárias. O que leva alguém, ainda que palhaço de circo, a valer-se de um apelido desses que, como sabemos, designa uma erva daninha, terror dos bons jardineiros, pois contamina os gramados da mesma forma como certos políticos contaminam o Congresso Nacional? O fato é que essa mesma palavra, agora como adjetivo, era utilizada para designar um estado de enorme irritação. "Fulano ficou tiririca com o que lhe aconteceu!" Hoje, com a liberação geral dos calões, se diria que "fulano ficou puto da vida com o que lhe aconteceu!" É inteiramente possível que para muitos a tal candidatura seja apenas e tão somente um rematado deboche, um desserviço prestado ao aperfeiçoamento de nossa decepcionante democracia. Que poderá produzir de útil alguém tão despreparado? Como todos nós sabemos o que os portadores de "fichas sujas" têm aprontado ao longo dos anos, com a aquiescência de seus fiéis seguidores e a passividade de seus colegas, é difícil imaginar que um palhaço de circo, uma corista ou um ex-jogador de futebol venham a causar dano semelhante a todos nós, que mantemos com nossos impostos aqueles que certo candidato a Presidente da República chamou de "300 picaretas". Como quer que seja, a presença do tal personagem circense no Congresso servirá, quando menos, para alertar os congressistas de que todos nós, putos da vida com a péssima qualidade de nossos homens públicos, estamos cansados de bancar palhaços. Por enquanto, nosso protesto é feito pacificamente. Até quando?  
sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Divagar, quase parando

Quando entrei no vagão do metrô pela primeira vez, assaltou-me a sensação de que estava em país errado. Aquela poltronas limpinhas e aqueles balaústres luzidios, cor de prata, realmente não eram panoramas brasileiros. Minha experiência de lanterninha de cinema não me deixava enganar. Tive ímpetos de berrar um "Pare o trem que eu quero descer!" Quem me ouviria? Contive-me, no entanto. Prestando bem atenção, talvez até ouvisse os passageiros conversando em francês. Ou em alemão. Isso se os franceses e os alemães falassem quando estão no metrô lá deles, já que eles economizam palavra para gastarem na literatura, a discutir o das sein über alle, ou nas canções da Piaf ou do Jacques Brel. E já que paulistano também não conversa no metrô, limitando-se a olhar além das janelas, como se ainda não conhecessem o escuro de lá fora e as interrupções das luzes de iluminação daqueles longos túneis, eis-me apalermado, sem bússola nem quadrante, logo eu que nem sei o que é um quadrante. Ubi sum? Até as aulas do colégio São Luiz me vinham à mente, logo eu que fui um péssimo aluno de latim, aqueles padres olhando os alunos com uns olhos que não me enganavam. Acho melhor mudar de colégio, pai, daqui a uns anos o Almodóvar vai fazer um filme contando a infância dele, e aí já será tarde. Sabe-se lá qual vai ser minha reação se o padre me convida para ir ver a horta que ele está montando no canto escuro do quintal! Ainda bem que nunca estudei em colégio de padre. O fato é que, se empacotassem todas aquelas pessoas e pusessem num vagão de metrô de Paris, a diferença seria a sujeira nas paredes. De lá, é claro. Ao reverso, se trouxessem franceses e pusessem no vagão do metrô de cá, eles se mostrariam boquiabertos com a limpeza de nossos trens urbanos. Se é que francês alguma vez abre a boca. E eu continuaria sem saber quem é francês e quem é brasileiro, ou alemão Fixo-me em um nordestino. Baiano ou alagoano? Talvez sergipano ou cearense. Cearense creio que não. É um tanto crescido. Talvez baiano. Ou árabe? Siciliano? Ou trabalhador em Montmartre? Porteiro do Louvre? Porteiro do Louvre certamente ele não é. Está mal vestido, embora limpo. Traz um embrulho sob o braço esquerdo, que presumo seja sua marmita. Como se diz marmita em francês? A mão direita, calosa ao extremo, está fixada na haste vertical de aço brilhante, como uma planta epífita. A imobilidade daquela árvore humana ali fixada me leva a procurar alguma raiz, instintivamente, olhando para seus pés. Uma figueira, com podas anuais, não teria um tronco tão nodoso. Uma oliveira, talvez, daquelas que se vê na Espanha. Mas não há oliveira na França. Ou há? Perco-me a contar as veias que ilustram aquela mão, digna de um quadro do Portinari. Chego a notar a pulsação do sangue que por ali circula. Vulê vu manforrmê quél lé la procimmestación, sil vu plé? Acordo do meu devaneio como se tivesse ouvido um estampido. O passageiro olha-me descontraidamente. Teria dito ele alguma coisa? Penso em perguntar-lhe algo. Quéce que vusavê di? Ele me interpretaria mal. Ou responderia? Procuro perscrutar-lhe o pensamento, com a discrição necessária. Nunca se sabe qual a reação de um nordestino. Ou de um calabrês. Ou de um gigolô. Ele continua fixo, indiferente ao balanço do vagão e às minhas dúvidas. "Liberdade", diz uma voz fanhosa. Ou seria fraternidade? Ou igualdade? Divago. Estou, em pensamento, passeando por Paris. Entro em uma loja e procuro falar meu francês. O balconista reconhece o sotaque e espera que eu gaste o pouco do idioma que me resta, completado com gestos largos. Avevu compri? Claro que compreendi. Afinal, também conheço gestos. E solta uma sonora gargalhada. Meio sem graça, acompanho-o na reação. Quase por obrigação. Digo alguma cosia. Não sei mais se em francês ou em português. Ou em uma língua mesclada. Ou em alemão. Mas, se eu não falo alemão! Conversamos sobre o Brasil, que ele não vê há tantos anos. Antigas questões políticas, talvez. Nada disso. Isso já passou há muito tempo. Aventurou-se pela Europa e descobriu um desconhecido tino comercial. Pedras preciosas, peles de animais, mil bugigangas. "Tenho um sócio nos altos escalões em Brasília", comenta sem discrição alguma. Quem ali entenderia? Fala como se aquilo fosse uma condecoração. "Sócio comanditário", enfatiza, culto. "Estação Carandiru", diz a monótona voz fanhosa do autofalante. Devo ter-me distraído. Eu pretendia ir ao Palácio da Justiça.  
sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Cegueira

Em um pequeno grande livro, "Milagres em Mateus", Editora Paulinas, Jerome Murphy O'Connor convida-nos a uma reflexão. Segundo ele, quando Mateus narrou os milagres de Jesus, não teve ele a intenção de efetuar apenas um registro de fatos históricos, mas, antes e acima de tudo, o propósito de trazer os milagres como atos de Revelação, como sinais de uma Verdade. Um Jesus apresentado como realização daquilo que estava predito pelos Profetas e já dito na Lei. Um Jesus como Senhor e como Resposta à fé. Dentre os milagres atribuídos a Jesus, mais de um se refere à cegueira. Ou seria o mesmo milagre descrito de forma diferente pelos vários Evangelistas? João narra um desses milagres com exclusividade. Logo, não consta ele do livro de O'Connor. Ei-lo: passando Jesus, viu um cego de nascença. Note-se o pormenor: "de nascença". Perguntaram-lhe os discípulos: "Mestre, quem pecou? Ele ou seus pais, para que nascesse cego?" Pausa: a atualidade daquela indagação é evidente. Todos nós, sem exceção, fazemos essa mesma pergunta diante de uma criança que nasça sem algum atributo físico ou psíquico que esperaríamos que ela tivesse. Ou a morte de alguém querido. "Que mal eu fiz para ser assim castigado?" Quando morrem pessoas queridas, nós nos lembramos daquele célebre sermão do padre Vieira: a morte é justa, pois leva, dia mais dia menos, todos os seres humanos. Mas, dizia ele, às vezes nos parece tão injusta, porque leva antes quem deveria, a nosso ver, levar depois. Jesus responde àquelas indagações e às nossas: "Nem ele nem seus pais, mas isso sucedeu para que se manifestassem nele as obras de Deus. É preciso que Eu faça as obras daquele que me enviou enquanto dure o dia. Está para chegar a noite, quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo". Deu para entender? Certamente não. Nem os companheiros dele entenderam, motivo pelo qual ele fez uma encenação: cuspiu no chão, fez com a saliva um pouco de barro, untou com ele os olhos do cego de nascença e mandou que se fosse lavar numa piscina situada ali adiante. Nome da piscina? Siloé, que quer dizer Enviado. O cego foi, lavou-se e voltou curado. Isso não consta do livro, porque Mateus a isso não se refere. Quem faz essa descrição é o evangelista João, no capítulo 9, versículo 1 e seguintes. Agora você entendeu. Não? Se Jesus fala em dia e noite é porque ele se considerava o Sol. Aliás, o dia em que se comemora o Natal corresponde à festa pagã do deus Sol. E o Sol é um símbolo frequente nas religiões antigas. Em seguida, surge o cego de nascença. A cegueira não é, em si mesma, uma noite eterna? Jesus poderia ter feito com este cego o que fizera com Bartimeu, o cego de Jericó, quando uma simples palavra restituiu-lhe a visão, como dizem Lucas, no capítulo 18, e Marcos, no capítulo 10. Mateus acrescenta um novo dado: houve um toque de mão, como se lê no capítulo 20. João, citando o mesmo fato, ou outro, quem sabe? acrescenta a lama. Por que lama? Essa lama, no caso, é formada de saliva e húmus. Tentemos descobrir o que está por trás disso. Lá no livro da Criação, ou Gênesis, quando o seu autor se refere a Deus como um ser antropomórfico, isto é, com feição e sentimentos humanos, a criação do ser humano é assim descrita: Deus, com suas humanas mãos, toma de uma porção de húmus, forma com esse material um bonequinho e sobre ele derrama um sopro, um espírito, como diriam os gregos, uma alma, como diriam os latinos. Eis o homem vivo, corpo e alma. É o que está no segundo capítulo do Gênesis. Agora, quando se cuida de curar a cegueira, não é mais o simples sopro (espírito) o que sai da boca de Deus: é algo mais concreto. Esse algo concreto que sai de Deus e se mistura com o húmus, o que é, senão o próprio Jesus? Deus, agora como lama, como barro, como humano (feito de húmus) se dispõe a curar a cegueira natural (de nascença) dos homens. Basta que estes o aceitem e se disponham a lavar-se. Isto é, converter-se, mudar de vida, adotar uma postura diversa daquela que os seres humano, tal como os cegos, ainda não poderiam ter visto como sendo o reto caminho. Carl Jung, Campbell e tantos outros estudiosos nos mostraram a importância dos símbolos, que, ao longo da História da Humanidade, se revelam nas artes, nas religiões, nos sonhos e na loucura. Que é a cultura senão a busca de compreendermos o incompreendido? Será isso incompatível com a fé? Lembro-me de uma assustada mãe que justificava haver matriculado a filha em um colégio religioso, um dos mais importantes de São Paulo, pois, a seu ver, "a religião é um freio". Não resisti a isso: "engraçado, em minha vida, a fé está mais para acelerador do que para breque". Acho que ela não gostou da observação. Conta-se que o bondoso Papa João XXIII visitava um hospital, coisa que ele fez muitas vezes em sua longa vida. Dirigiu-se à ala das crianças, onde dirigia um sorriso a uma, uma palavra a outra, abençoando a todas elas, naquela sua caminhada lenta. Lá no fundo da enorme sala uma voz de menino gritava: "Io voglio vedere il Papa! Io voglio vedere il Papa!" O Santo Padre, calmamente, ia seguindo seu caminho, até postar-se diante do tal menino, que, mesmo assim, com o olhar perdido, continuava a gritar: "Io voglio vedere il Papa! Io voglio vedere il Papa!" O garoto era cego. Emocionado, João XXIII não conseguiu evitar que duas lágrimas escorressem pelo seu rosto. Colocou a mão sobre a cabeça da criança e sentenciou, para si e para nós todos: "Siamo tutti ceccati!" Somos todos cegos.
sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Explicações

  Quem é ou foi juiz já ouviu coisas que o comum dos mortais não imagina, quando se trata de explicar o inexplicável. Os acusados, por exemplo. Fiquei pasmo certa vez quando um rapaz, acusado de estar portando aquilo que a antipatia dos promotores chama de Cannabis Sativa de Linneus, admitiu expressamente o fato. Sim, ele era usuário de maconha, de diamba, de erva do diabo e de tantos outros nomes que o vulgo dedica a essa misteriosa planta, elevada aos céus, naqueles tempos, por um cantor jamaicano que se orgulhava de ter um pelotão de filhos, cada um de uma fã diversa. O tal réu não só admitia como me desafiava: "o senhor sabe, por acaso, o que é ouvir a Tocata e Fuga em ré menor, do Johann Sebastian Bach, embalado numa boa tragada disso que os burgueses não admitem que se fume?" indagou-me o rapaz, por sinal, estudante de Engenharia na Politécnica. Eu não acreditava naquilo. Até porque a Tocata e Fuga não é a peça de Bach que mais me agrada. Ainda se fosse a Lacrimosa, do Réquiem em ré menor, de Mozart, ou o Canon, do Pachelbel, eu até que arriscaria. Como seria aquele dueto de violinos, que conversam, um seguindo a trilha aberta pelo outro, embalado pelo estimulante a que meu jovem estudante de Engenharia dava tanta relevância? Quem sabe não seria isso má ideia. Outra vez foi uma senhora acusada de curandeirismo. Isso há mais de 40 anos, início de carreira, aquela cara de moleque deslumbrado, talvez ela nem soubesse que eu fosse juiz, até porque em Araraquara, quando se falava nessa atividade, vinha à mente as brincadeiras do Loffredo ou a enganadora carranca do Geraldo. "Quer dizer então que a senhora diz que tem o poder de cura?" indaga o juiz novato, todo cheio de si. Ela encarou-me, olho no olho, pois eu também, naquela época, mandava os réus ficarem de pé para serem interrogados, mania de imitar as bobagens dos mais velhos! "Em primeiro lugar, eu jamais disse que tenho o poder de curar. Quem cura é ele." Ele quem, minha senhora? "O doutor fulano, de quem eu sou apenas o instrumento". Devo ter feito uma cara de quem pouco acreditava naquilo, impressão errônea a dela, mesmo porque meu pai, ainda vivo, não só era amigo do Chico Xavier como era leitor do Pietro Ubaldi, cuja doutrina seguia piamente. Ele era até crítico de falsos médiuns que se valiam de pretensos fenômenos espíritas para enganar os incautos. Acho que até desmascarou alguns deles. O fato é que a senhora, diante de minha expressão, desafiou-me: "Quer que eu incorpore o doutor na sua frente? Quer?" Achei melhor encerrar a audiência. De outra feita a explicação não veio do réu, mas da vítima. Era um lusitano que havia caído da motocicleta e fraturado umas costelas quando o veículo em que trafegava foi abalroado pelo automóvel dirigido pelo réu. O curioso é que o acidente ocorrera numa sexta-feira à tarde, antevéspera de carnaval, e a soi disant vítima, como dissera o advogado na defesa prévia, só havia feito o Boletim de Ocorrência na quarta-feira de cinzas. O tal motociclista, ouvido por mim, esclareceu que, de fato, assim ocorrera. É que ele, naquele dia fatídico, seguia, tendo na garupa da moto sua namorada, para o Guarujá, onde passariam o carnaval. Não lhe havia parecido a ele que seus danos pessoais fossem tantos, motivo pelo qual somente na quarta-feira foi que, não suportando mais as dores, procurara o Pronto Socorro, quando soube da fratura das costelas. O doutor compreende, pois não? Acho que eu deveria ter respondido "pois sim". Depoimento encerrado, entra agora na sala de audiência a primeira testemunha arrolada na chamada peça vestibular, que era a tal moça que a infeliz lusitana vítima conduzia na garupa da motocicleta. Sabe aquelas mulatas do Sargentelli, que naquele tempo apresentava um show para turistas ali na Paulista, o seu Squindô, squindô? Pois qualquer uma delas perderia para aquela que entrou rebolando na sala de audiências, vestido agarrado no corpo, coisa de Marina Montini, aquela mulatíssima que o Di Cavalcanti imortalizou em muitos de seus quadros e suas camas. O promotor, que era o Arthur Pagliusi, não conseguiu conter a estupefação. Trocamos um olhar malandro e nele recapitulamos toda a história. O tal lusitano deve ter ficado dias e dias, talvez meses, ou mesmo anos tentando convencer aquela mulata a fazer com ele um programa na praia. Justamente no dia em que consegue seu objetivo, feriado prolongado ainda por cima, vem esse calhorda desse motorista e quase lhe estraga o tão esperado programa. No Guarujá, seus gemidos, decorrentes dos cacos de costelas roçando uns nos outros, foram interpretados pela moça como expressão de algo mui diverso. O que, certamente, só pode ter aumentado o entusiasmo da moça e contribuído para agravar os ferimentos do motociclista. Se é que as costelas não foram quebradas durante os festejos momísticos, como insinuou o defensor nas alegações finais.  
sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Maluquices

  Eu vou dirigindo meu carro pela avenida Moema, na correta mão de direção e em velocidade compatível com o local. Não sou um primor de motorista, mas tomo minhas cautelas, até porque já não tenho idade para esse tipo de exibicionismo. Um carro, vindo em marcha-a-ré, saindo do estacionamento situado na lateral esquerda da rua, considerando o sentido do meu automóvel, colide contra este. Eu desço do carro ligeiramente furioso e passo a despejar alguns insultos contra a motorista (sinto muito, mas era uma senhora) do veículo colidente, menos porque colidiu contra o meu e mais porque trazia no banco de passageiro dianteiro uma criança de uns cinco ou seis anos de idade, o que não é permitido. E sem usar cinco de segurança, duplicando sua infração. Quando chego mais perto e consigo vislumbrar algo além daquela nuvem escura com que alguns proprietários enfeitam o vidro do carro, descubro que a tal senhora mora no mesmo prédio que eu. E, mais: estaciona o veículo ao lado do meu. Acredite que foi. Não digo mais nada e volto para o meu automóvel. Dias depois ela encontra minha filha, a quem reclama da minha descabida grosseria. Pagar os estragos produzidos nem pensar. Naquela vez eu estava sozinho e, por isso, o leitor poderá imaginar o que bem entender a respeito da minha versão dos fatos. "Ninguém há de ser admitido a testemunhar em prol de si mesmo" diziam os antigos, por sinal em latim, mas eu me esqueci como se diz isso naquela língua. Meses depois, tendo a Maria Helena ao meu lado, outro fato insólito. Eu estou dirigindo pela Alameda dos Anapurus, que admite tráfego em ambos os sentidos. Há um caminhão, que vinha em sentido contrário, parado em fila dupla, por motivos que desconheço. Quando estou emparelhando meu automóvel com ele, um veículo que vinha no sentido do caminhão passa para a contramão de direção, para ultrapassá-lo. Como fazê-lo se eu, que estou na correta mão de direção, já estou ali? A motorista (sinto muito, minha senhora, mas era uma bela senhorita) coloca a mão esquerda fora do veículo e faz um sinal indicando que eu deveria dar marcha-a-ré para que ela, vindo na contramão, por direitos que desconheço quais fossem, ultrapassasse o caminhão. Eu não tinha nenhum compromisso imediato, tanto quanto a Maria Helena. Tiro a chave do contato, exibo-a à tal motorista e deixo cair a chave no chão do carro. Ela, provocativamente, faz o mesmo com a chave do automóvel dela. A Maria Helena pensa em descer para argumentar com a infratora. Eu a convenço a ficar no carro e passamos a falar de coisas desimportantes, como a biografia do Kung-Fu-Tseu que ela está lendo. Nossa conversa vai de vento em popa, com os dois carros estacionados frente contra frente, quando o tal caminhão resolve sair dali. A tal moça dá marcha-a-ré em seu automóvel, emparelha o seu carro com o meu e me brinda com um "saiba que você é um babaca!" O leitor dirá que estou delirando, mas eu invoco o testemunho de minha mulher. "Ambos estão delirando", dirá o exigente e ignorante leitor, e eu não saberei mais o que dizer. Melhor, saberei. Nos primórdios da psicologia, os pesquisadores dividiam as chamadas "doenças mentais" em dois grupos: uma com menor gravidade, as neuroses; outra com gravidade maior, as psicoses. Para o Jung, por exemplo, tudo o que era perturbação mental merecia o nome de demência precoce. Logo ele, que tinha aquelas visões esquisitas! Nada mal, no entanto, para quem estava apenas engatinhando. O próprio Jung, como sabemos, publicou vasta obra sobre isso, sendo que em um de seus livros ele se dispôs a classificar os seres humanos, de acordo com certas características. O conceito de introvertido e extrovertido começou ali, embora alguns detratores digam que ele se apropriou de estudos de um de seus discípulos. A psicose passou a dividir-se em esquizofrenia e paranoia e o Código Civil Brasileiro generalizava tudo isso com aquele "loucos de todo gênero", que o tempo fez revogar. Com o surgimento da antipsiquiatria e a firme atuação de Ronald Laing, descobriu-se que a coisa não era assim tão fácil. Muitas pessoas que estavam internadas em sanatórios, vivendo à custa de tranquilizante, poderiam perfeitamente levar uma vida produtiva, desde que lhe fossem ministrados determinados medicamentos, que as reequilibrassem quimicamente. Os mais velhos naturalmente se recordam dos efeitos do lítio sobre o doutor Ulisses Guimarães, que andava fazendo uns discursos meio sem nexo. "Derrubemos os portões dos hospícios!" poderia ser o bordão desses desbravadores. Nosso Machado de Assis, genialmente, já havia antecipado tudo isso, ao escrever seu notável O Alienista, nome que se dava a quem cuidava dos "alienados mentais", o que quer que isso quisesse dizer. Se alienado era quem tinha um comportamento diverso do comportamento da maioria, até Jesus Cristo seria internado na Casa Verde, dirigida pelo doutor Simão Bacamarte. Há pouco tempo descobriu-se que o termo "louco" não só é inconveniente como é impróprio. A ideia que todos temos é que por esse nome se devam indicar aquelas pessoas mal trajadas, barba por fazer, discurso desconexo e sempre babando na gravata. Descobriu-se que muitas pessoas que andam ricamente vestidas, joias a mais não caber, rosto barbeado e prosa de vendedor de enciclopédia são o que se denomina, à falta de nome melhor, autênticos "psicopatas". Um Gengis Khan, que se orgulhava de não crescer grama por onde passassem seus cavalos, um chefe de Estado que determina o indiscriminado bombardeamento do terreno inimigo, um padre que não respeita a intimidade sexual de crianças e tantas outras pessoas com as quais convivemos diariamente não escapariam de um rótulo desses. A principal característica do psicopata é que ele não tem freios inibitórios, pois lhe faltam padrões éticos de conduta. Olhe à sua volta e encontrará pessoas que agem como se o mundo tivesse sido criado especialmente para eles, ou para elas. Essa pessoa está intimamente convencida de que as outras pessoas vieram ao mundo para servi-lo, ou servi-la. Suas gentilezas, seu sorriso, sua fala mansa são meros artifícios de que se utiliza para o único fim que têm em vista: levar vantagem em tudo, como sintetizou aquela infeliz propaganda de cigarro. Conheço alguns casos desses. Primeiro: um homem casado, morando no interior do Estado, devendo fazer um curso de um mês na capital, solicita a uma prima que o hospede durante esse mês. Ela, gentilmente, aceita a presença daquela incômoda visita, que passa a encher a casa com seus insuportáveis roncos noturnos, pois dorme na sala. Seis meses depois a prima praticamente o expulsa de casa, onde ele, pelo jeito, ficaria até ver reconhecido o usucapião que tinha em vista. Claro que os familiares comuns foram informados, por ele, da insensibilidade da prima, para a qual os compreensivos parentes passaram a virar o rosto. Caso dois: um casal, que tem uma filha adolescente, resolve que isso de trabalhar é uma grandessíssima besteira. Contando com a compreensão e o espírito de caridade de amigos e parentes, moram um tempo na casa deste, um tempo na casa daquele, sem jamais encontrar o emprego ideal para suas auto-reconhecidas qualificações profissionais. Quando todos os parentes e amigos se inteiraram do golpe, a filha teve de suspender as aulas da faculdade, trabalhando como balconista de loja para sustentar os três. O que não impede que a tal jovem aceite os convites das amigas para irem curtir uma balada quase todo fim de semana, ao fim da qual, coincidentemente, a tal moça descobre que esqueceu a carteira em casa. O psiquiatra Paulo Gaudêncio diz que lhe é menos difícil tratar de adultos que foram crianças carentes afetivamente do que de adultos que foram excessivamente mimadas na infância. Mostrar a esses adultos que a vida é cheia de limites é algo quase impossível, pois foram criados por pais completamente ausentes ou excessivamente tolerantes e isso agora está ali plantado como uma sequoia. O pior, diz ele, é que esse quadro, quando se cristaliza e a pessoa se torna psicopata, é simplesmente incurável. Enganar, fingir ou matar são atos que para essas pessoas têm o mesmo significado. O tema exigiria muito mais tempo. Por hoje, fico por aqui. Antes de encerrar, um lembrete: não se esqueça de devolver aquele livro que um amigo lhe emprestou. Ou recolher o papel amassado que havia atirado pela janela do carro. Ou.  
sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Placas

  "Além de políticos e militares, a Revolução Constitucionalista de 32 - movimento armado ocorrido no Estado de São Paulo, entre os meses de julho e outubro de 1932, que tinha por objetivo a derrubada do Governo Provisório de Getúlio Vargas e a promulgação de uma nova Constituição para o país - foi marcada pela ação de voluntários, que em grande parte pertenciam à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco." Migalhas (clique aqui) Moro num 11° andar. Bem defronte de minha varanda nasce e morre uma ruazinha, aí dos seus dois quarteirões, se tanto, que tem o pitoresco nome de Caboquenas. Não sei bem quem ali terá sido homenageado pela Câmara local. Teria sido ele algum militar? Um professor universitário? Um banqueiro? Ignoro. Ora, se é para dar àquela insignificante rua o nome de alguém desconhecido, por que não o de alguém não tão insignificante quanto ela e seu nome atual? Por que não lhe dar, num futuro que espero distante, o nome de alguém que, sentado na varanda, entre os vasos de orquídeas parafusados na parede, olha para o nada enquanto redige mentalmente sua próxima crônica semanal? Com a palavra o Paulo Frange, que, além de ser um dos mais laboriosos vereadores de São Paulo, tem a vantagem de ser meu amigo, e saber muito bem que nossos amigos não têm defeitos; e, quanto a nossos inimigos, de nada lhes serve termos qualidades. Aqui em São Paulo, aliás, algumas placas contendo o nome da rua, praça ou avenida traz um indicativo sob o nome: jornalista, escritor etc. Não sei bem qual o critério que leva alguém a escolher determinado bairro para homenagear determinada pessoa. Meu pai, por exemplo, revolucionário de 32, sim, senhor, é nome de rua no bairro da Mooca, talvez porque foi lá que lhe nasceu um dos filhos. O esclarecimento não consta da placa respectiva, que poderia esclarecer: pai de fulano de tal, batizado na Igreja de São Rafael. Recentemente houve um charivari dos diabos na USP por causa de umas placas que andaram colocando em portas da tradicional Faculdade de Direito do largo de São Francisco (clique aqui), as quais, até então, só abrigavam nomes de antigos professores, bote antigos nisso!, sob o subjetivo critério do merecimento. Agora o critério seria objetivo, segundo seu diretor anterior: pelo preço módico de R$ 2.000.000,00 algum respeitável morto poderia ter seu nome encimando uma daquelas portas, mesmo que jamais tenha dado, ali ou alhures, ao menos uma única palestra. Vejamos a biografia de um dos mais recentes agraciados. Indo à Wikipédia, ficamos sabendo que "Pedro Conde, nascido Pietro Conde (Itália, 1922), formado em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi um destacado banqueiro brasileiro. Nos anos 80 foi um dos mais ativos investidores das bolsas brasileiras. Nos anos 90 vendeu o seu banco, o BCN, para o Bradesco, ficou ainda no conselho do banco, mas logo faleceu." Epa! A placa, pelo jeito, foi colocada em faculdade errada, se é que deveria estar em alguma faculdade e não num panteão destinado aos nossos grandes empresários. Qual a explicação para a contemplação de figuras públicas como essas, postas ao lado das venerandas figuras que já lá estavam antes de eles nascerem? Eis o que disse, segundo Migalhas (clique aqui), seu ex-diretor, responsável pelo chapéu na mão: "Em 2007, a Associação dos Antigos Alunos, a diretoria e o centro acadêmico haviam encetado campanha para a obtenção de fundos para dotar a faculdade de salas de aulas modernas. A campanha pedia contribuição de R$ 1 mil de cada antigo aluno, mas apenas cerca de R$ 650 mil foram arrecadados. Surgiu a possibilidade de que dois doadores construíssem cada qual uma sala. O documento foi assinado pela Associação dos Antigos Alunos, pela diretoria e por representantes de agremiações discentes." Repare na sutileza: "o documento". Qual? Note que não se alude a fundamento legal, algo estranhável vindo de um ex-juiz de Direito, que conhece de cor e salteado o art° 458 do Código de Processo. Segundo o mesmo informativo, Pedro Conde Filho, ex-aluno da faculdade, disse lamentar a reação dos alunos e afirma que não esperava os protestos contra o nome de seu pai. "A faculdade precisa se modernizar, mas o Estado não tem condições de arcar com isso. Por que ex-alunos bem-sucedidos seriam impedidos de colaborar? Muitas faculdades, no Brasil e no mundo, adotam esse modelo. Agora, não dá para pedir contribuição e não dar nada em troca", diz Conde Filho. Ou seja, segundo o próprio filho do banqueiro, não se cuidava de homenagem, mas de um autêntico do ut des, como diziam os romanos. Dou-te isto para que me dês aquilo, no dizer de qualquer de nossos civilistas. Minha perplexidade decorre de minha notória ingenuidade, para não dizer ignorância. Até aqui eu havia suposto que a estátua que se vê na entrada e que desde tempos pré-históricos tem um cigarro aceso colocado por algum gaiato entre os dedos, de há muito amarelados, fosse para lembrar aos alunos daquela faculdade a figura de alguém que se destacou na área jurídica. Quem foi ele? Um tal José Bonifácio, o Moço, sobrinho-neto do outro, o Velho. Vamos, por amor ao tratamento igualitário dos envolvidos, algo que o filho do tal banqueiro certamente sabe chamar-se isonomia, à mesmíssima Wikipédia, para sabermos quem foi o eterno fumante: "Foi professor de direito na escola de Recife e depois em São Paulo, tendo sido titular da cadeira de Direito Criminal e da de Direito Civil. Teve como alunos figuras como Rui Barbosa, Castro Alves, Joaquim Nabuco e Afonso Pena." Nada mau, não achas? Quanto alguém terá pago para ter ele um busto de corpo inteiro logo ali na entrada da nossa velha e sempre novidadeira Faculdade? Quanto ao José Bonifácio, o Velho, diz a mesma enciclopédia que foi tutor de outro Pedro, cujo nome jamais poderia caber numa placa de porta de sala de aula. Ou de rua: Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga, filho de Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. Conhece ? (clique aqui) Se uma placa comum não sai por menos de R$ 2.000.000,00, evidentemente com financiamento bancário, imagine-se por quanto sairia uma placa em que coubesse o nome do tal tutelado. Nem pensar. Há nessa questão de venda de placas um pormenor que todos os envolvidos deixaram de lado ou não perceberam. Quando se coloca uma placa com o nome do Barão de Ramalho, por exemplo, implicitamente se está colocando também uma placa invisível, com dizeres como: "Faça como eu fiz, dedique-se, estude e também terá alunos como Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Afonso Pena." Se, atendendo a sugestão já feita por quem conhece do assunto (clique aqui), vier a ser colocada um dia uma placa com o nome do ex-aluno José Celso Martinez Correa, da gloriosa turma de 60, também se estará colocando a segunda placa invisível que, se conheço bem a irreverência do Zé Celso, teria estes dizeres: "Passei cinco anos aqui e eles não me serviram para nada. Melhor fazer como o Paulo Autran." Bacana, né? (clique aqui) Talvez valesse a pena levar-se o mote para um comercial, projeto que meu amigo Gomes Filho acaba de fazer abortar ao revogar a portaria do diretor anterior: ir de metrô à Praça da Sé e, dali, ao Largo de São Francisco: R$ 2,70; ter o nome na porta de uma sala de aula da Faculdade de Direito da USP: R$ 2.000.000,00; merecer, por seu currículo, que seu nome seja dado a uma sala de aula da velha e sempre nova Academia das Arcadas: não tem preço.
sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Assim falava La Fontaine

"TSE aplica sexta multa a Lula por propaganda em favor de Dilma." "A cada oito dias um juiz de Mato Grosso é punido pelo Conselho Nacional de Justiça." "TJSP e juízes beneficiários de auxílio-voto não respondem a interpelação do CNJ." "O Presidente Nacional do PSDB contrata 37 auxiliares, sendo 8 da mesma família, para darem expediente em casa." "CNJ apura fraude em concurso para ingresso na magistratura. A comissão de concurso teria elevado o número de candidatos que passaram para a segunda fase, para incluir duas filhas do presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais." "A Polícia Federal apreendeu 1.250 bicicletas distribuídas pelo governo do Estado do Tocantins em ano eleitoral. Carlos Gaguin foi eleito governador em 2009 por via indireta, após o Tribunal Superior Eleitoral cassar o mandato de seu colega de partido Marcelo Miranda, acusado de abuso de poder, compra de votos e uso indevido dos meios de comunicação social nas eleições de 2006. Entre as irregularidades cometidas por Miranda, o tribunal destacou a distribuição de 80 mil óculos." "O Conselho Nacional de Justiça suspendeu a posse do juiz Fernando Miranda Rocha no cargo de desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, uma vez que ele foi condenado administrativamente com penas de advertência e censura em sua carreira, responde a sindicância e também a ação penal originária, proposta pelo Ministério Público de Mato Grosso." "Presidente do STF descumpre súmula anti-nepotismo." "O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, indeferiu o pedido de liminar em Mandado de Segurança impetrado pela defesa do presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, desembargador Mariano Alonso Ribeiro Travassos, que pretende voltar ao cargo do qual foi aposentado compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça." "Plenário do Tribunal Superior Eleitoral confirma multa de R$ 7.500 a Lula. Segundo o TSE, Lula fez propaganda extemporânea em favor de Dilma em evento organizado pela CUT para festejar o Dia do Trabalhador." "O Ministério Público denunciou o Ministro Paulo Medina, do STJ, os desembargadores José Eduardo Carreira Alvim e José Ricardo de Siqueira Regueira, o juiz federal Ernesto da Luz Pinto e o procurador regional da República João Sérgio Leal Pereira, assim como Virgílio Medina, que é irmão do ministro do STJ. Os acusados serão julgados por crimes que vão desde corrupção passiva e formação de quadrilha até prevaricação." "O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira a PEC 89/2003, que exclui da relação de punições aplicáveis a magistrados a chamada aposentadoria por interesse público. A PEC, que na votação em segundo turno recebeu 52 votos favoráveis e nenhum contrário, também permite a perda de cargo do juiz ou membro do MP por decisão de dois terços dos membros do Tribunal ou Conselho ao qual estiver vinculado." (Fonte: Folha online) Se eu fosse colocar como epígrafes todos os cabeçalhos que tenho colecionado a respeito de supostos desmandos de nossas autoridades, pertençam elas ao Poder Executivo, ao Legislativo ou mesmo, valha-nos Deus!, ao Poder Judiciário, não sobraria lugar para o texto propriamente dito. E isso logo hoje que eu pretendia contar-lhes uma edificante história que se passa no tempo do Onça, fosse ele quem fosse. Vamos à tal história. Em 1982, a Editora Loyola publicou o livro Cristo Hoje, onde temas evangélicos eram utilizados pelo autor como inspiração para a elaboração de contos, cujas conclusões talvez pouco tivessem do espírito da narrativa que os inspirara. Passados mais de 25 anos, não creio que a mensagem de Em Terra de Cegos (clique aqui) tenha envelhecido. Ao contrário.
sexta-feira, 30 de julho de 2010

Apenas um cadáver

O homem de meia idade, mais para gordo do que para magro, cabelos ralos penteados para trás, terno cinza, algo amarfanhado, e cachecol envolvendo o pescoço, ingressou no trem do metrô na estação Jabaquara, sentido norte, e, antes da estação Armênia, já estava morto. Na troca de passageiros na estação da Sé, a mulher que se havia sentado ao lado dele, na sétima fileira da direita, levantou-se enquanto ele continuou sentado, olhos cerrados, com o rosto encostado no batente da janela, cujo vidro estava fechado. Outra mulher, um pouco mais velha e mais gorda do que aquela, tomou-lhe o lugar, pronunciando um quase inaudível "licença" enquanto se sentava ao lado do homem morto de terno cinza algo amarfanhado. Àquela hora, as pessoas, certamente dirigindo-se para casa, depois de um dia estafante passado no escritório ou na fábrica, acotovelavam-se e se ajeitavam como podiam, acostumadas, ao que tudo indicava, àquele desconforto. A senhora mais gorda e mais velha do que a anterior olhava a paisagem, ignorando a penca de passageiros que se espremiam no corredor do vagão. Quem a conhecesse talvez estranhasse aquela curiosidade, pois há mais de dezessete anos ela fazia aquele trajeto, sempre viajando de metrô. Que haveria lá fora que ela ainda não tivesse visto no dia anterior, na semana anterior ou mesmo no mês anterior? As casas cinzentas, emporcalhadas por pseudo-grafiteiros sem inspiração? As poucas árvores que passavam correndo junto à janela, sem que se pudesse tentar decifrar sua espécie? Novidade mesmo talvez o esqueleto de um novo arranha-céu, algo incapaz de despertar a curiosidade de alguém que não fosse um índio chegado da Amazônia recentemente. O fato é que o olhar da senhora atravessava o vidro, talvez sem fixar-se em nenhum objeto. Talvez até invejasse seu companheiro de fileira que, sem se importar com o risco de passar do ponto de destino, fechara os olhos e, ao que tudo indicava, sonhava a sono solto. Isso ela pensaria se alguma vez tivesse prestado atenção ao seu companheiro de viagem, coisa que alguém que observasse a imobilidade da cabeça dela poria em dúvida. Pensaria ela nas dívidas? No baixo salário? Na mais recente bebedeira do marido? Descendo ela, sentou-se no mesmo banco um padre, algo digno de chamar a atenção, pois não só usava uma tira de pano branca fechando a camisa em torno do pescoço como, de onde saíra aquilo? uma roupa preta, inçada de botões ao longo do corpo, que mais parecia um vestido longo. Trazia a mão direita fechada, mas dava para ver que escapavam por baixo umas sementes, presas umas às outras, talvez com algum fio de náilon. Tinha um cacoete, que consistia em esfregar ritmadamente o dedo polegar sobre o dedo indicador, que, evidentemente, estava dobrado. Eu soube que era um padre porque uma senhora o chamou quando se vagou o lugar em que ele, bem mais velho do que ela, consentiu em ocupar. Ele movimentava os lábios, mas, de onde eu estava, não se ouvia som algum. Que diria aquele homem estranho, ao lado de um cadáver? Com que fantasma conversaria enquanto coçava o dedo? O trem prosseguiu sua marcha em direção ao ponto final, com número cada vez menor de passageiros subindo, em confronto com os que iam descendo pelo caminho. Logo que os últimos passageiros, eu entre eles, descemos ao fim da viagem duas senhoras entraram no vagão e se puseram a varrer freneticamente o chão, talvez para impressionar melhor os novos passageiros que fariam do ponto final o ponto inicial de sua viagem. Havia tantos lugares no vagão que ninguém necessitaria de dividir espaço com o homem de terno cinza amarfanhado, que permanecia com o rosto encostado na janela. Ele certamente faria aquela viagem de volta e tantas mais até que se encerrasse o expediente do metrô. Fui para casa com mais essa dúvida na cabeça: a que horas se encerra o tráfego dos trens do metrô?  
sexta-feira, 23 de julho de 2010

Conheça-se!

Se você está lendo este texto é porque está diante de um computador. E ele está ligado. Certamente você não está de pé. Você já se deu conta de quantas operações foram necessárias para chegar a isso? Aposto que não. Sugiro-lhe o seguinte: façamos de conta que em teu cérebro há um botão com a indicação rewind. Aperte esse botão para rebobinar a fita. Dê o stop quando você estiver do lado de fora do cômodo onde está o computador. Nesse momento você decidiu que vai ligar o computador. Em razão disso, seu cérebro mandou uma ordem a seus pés, para que eles se movimentassem adiante, alternadamente. Em certo momento, seus olhos enviaram um raio visual que bateu numa porta e voltou aos teus olhos. Dali ele seguiu em direção ao cérebro, onde um decodificador traduziu: "porta fechada". O mesmo decodificador enviou uma mensagem a outro departamento do teu cérebro, que remeteu uma ordem a um dos teus braços (o cérebro sabe qual), que se dobrou ligeiramente para cima, até que a mão tocasse na maçaneta da tal porta. Outra ordem fez a mão girar para a esquerda ou para a direita, de acordo com a ordem dada. Ato contínuo, por força de uma nova ordem, a porta foi empurrada pela mesma mão e você entrou no escritório (ou no quarto, ou na sala, ou onde você havia colocado o tal computador, coisa que o cérebro também sabe). Talvez a porta já estivesse aberta. Recebendo essa informação, o teu cérebro acessou algo como aqueles funcionários de aeroporto que levantam um bastão aceso, orientando o piloto para não errar o pouso, que é para você saber se e como teu corpo passará entre os dois batentes. No nosso caso, se esses dois funcionários cerebrais não forem acionados, poderá te acontecer o que já aconteceu comigo: indo ao tal escritório de madrugada, não acendi a luz do corredor para não incomodar quem dormia. Resultado: os meus funcionários cerebrais não puderam levantar os bastões de luz e eu meti a testa na quina de um dos batentes, o que produziu barulho, rompimento de supercílio, explicações, sangramento e band-aid. Você nota que a moça da limpeza aspergiu no escritório algo com cheiro de eucalipto. Eucalipto? Quem te disse que esse cheiro é de eucalipto? Você senta-se numa cadeira e tuas nádegas remetem uma reclamação ao cérebro: "isto não está confortável". O cérebro envia uma ordem a uma das mãos (ele sabe qual), ela vai até um pouco abaixo do assento da cadeira e o regula de tal maneira que as nádegas enviam outra observação: "assim está bem". Teus olhos enviaram um raio visual até o computador, o raio retorna, vai até o decodificador, que traduz: "computador desligado". Imediatamente é enviada uma ordem a uma das mãos (preciso dizer que o cérebro sabe qual?), que avança um dos dedos (o cérebro sabe qual!) em direção a um botão, que é comprimido, acendendo-se com isso algumas luzes. Essas luzes tocam teus olhos (o Cearucho poderá esclarecer como é isso lá com ele), que enviam uma mensagem ao tal decodificador: "computador ligado". Em razão disso, o cérebro envia uma ordem a uma das mãos (a mesma de antes), que pousa sobre um mouse. Um dos dedos (aquele mesmo) acessa um dos botões e, em razão disso, um dos ícones que aparecia no monitor do computador transforma-se em uma tela com letras, palavras, frases e figuras. Talvez até música. Tudo isso havia acontecido e você nem se dera conta disso. Por que? O que eu pretendo mostrar é que há uma semelhança muito grande entre o nosso cérebro e um computador. Por menos que nós percebamos isso, ambos trabalham com o déjà-vu. Ou seja: você digita uma palavra e o computador protesta: "isso está errado!" Como ele é educado, ele diz isso sublinhando a tal palavra em vermelho. Que quer dizer essa anotação vermelha debaixo daquela palavra? Quer dizer que ele ainda não havia visto palavra igual àquela. Ora, o que o computador ainda não conhece é algo que não existe. Conosco será diferente? Releia o texto. A certa altura eu fiz uma indagação: "Quem te disse que esse cheiro é de eucalipto?" Você só dirá que aquele cheiro corresponde a eucalipto se no arquivo do teu cérebro houver um registro dizendo que tal cheiro corresponde a eucalipto. Não é bem um "já visto anteriormente", mas um "já sentido anteriormente". O que mostra uma pequena diferença entre nosso cérebro e o computador; enquanto o computador lida com a visão e com a audição, pois ainda não temos programas com cheiro nem conseguimos saborear os doces e salgados que ali são exibidos, nosso cérebro registra tudo o que os cinco sentidos lhe remetem. Nihil est in intellectu quod non prius in sensibus. Lembra? Vejamos isso. Aquilo que aparece no monitor do computador é um conjunto de pontinhos, os tais pixeis, que, combinando-se, formam símbolos. Esses símbolos serão letras, números e figuras. Faça um teste: aplique o zoom máximo sobre a letra P, por exemplo, no tamanho máximo. Você verá que esses pontos (ou pixels) ficam à mostra nas curvas dentadas da letra. São pontos quadrados, para se encaixarem um ao lado do outro. Quanto mais forte for o zoom, mais destacados ficarão os pixels e, em conseqüência, menos nítida aparecerá a letra, o número ou a figura. Estudos recentes sugerem que em nosso cérebro acontece algo semelhante. Se alguém aproximar um objeto de cheiro forte de teu nariz e você estiver de olhos vendados, você conseguirá dizer que objeto é aquele? Sim, se você tiver arquivado em seu cérebro tal cheiro com o respectivo nome. Um déjà-vu olfativo, se me permite. Se, nas mesmas circunstâncias, alguém colocar uma colher de doce em tua boca, você conseguirá dizer que doce é aquele? Sim, se você tiver arquivado em seu cérebro tal gosto com o respectivo nome. Um déjà-vu gustativo. O mesmo ocorre com a identificação de um som e a identificação pelo tato. Ao que se supõe, esse cheiro, esse sabor, essa figura, esse som ou essa imagem tátil já existentes no cérebro, tanto quanto ocorre no computador, são arquivados em "pixels". Se o cérebro, cotejando os elementos daquilo que é mostrado com aquilo que ele já traz arquivado, identificar a identidade de todos os elementos, ele informa o nome do arquivo. Alguém, obviamente, somente dirá "isso é som de flauta" se tiver no arquivo cerebral um som de flauta. É possível que ele, erroneamente, chame de "som de flauta" um som de oboé, instrumento que ele desconhece. Se ele disser que é som de cuíca, procure um otorrino.
sexta-feira, 16 de julho de 2010

Douce France

«Me voici de retour des vacances. Que de belles choses cet mot ne me rapelle-t-il pas!» Do meu Premier Livre de Français Sou do tempo em que o chamado american way of life ainda era coisa para norte-americanos apenas. Esse estilo de vida materialista, em uma sociedade que, paradoxalmente, fala tanto em Deus, até na nota de dólares ele aparece, é uma das grandes contradições das religiões ocidentais. "Money, money, money makes the world go round, world go round, world go round" cantava o Joel Grey no filme Cabaret, interpretação, aliás, que lhe valeu o Oscar, a mostrar o verdadeiro Deus dos nossos brothers. Se estão lembrados, no filme Syriana, Oscar de melhor ator coadjuvante para o sobrinho da Rosemary Clooney, embalado por cuja voz dancei em muitos bailinhos na juventude, falo dela não dele, um dos personagens lhe diz ao George Clooney, com todas as letras: "Se não fosse a corrupção os Estados Unidos não teriam chegado aonde chegaram no mundo e nossa economia não seria o que é hoje". Claro que a história se passa antes da marolinha atual. Não digo que a França tenha sido, ao longo da História, um primor de moral nas relações internacionais, mas a globalização, com o logotipo do McDonald's e da Coca Cola chegando até remotas tribos africanas, levou consigo ao mundo o relativismo ético: eles matarem nossos soldados é uma provocação inadmissível; nós matarmos os civis deles, ainda que com napalm, é war casualties. Mera casualidade, como se diz na tradução equivocada de "pessoas feridas na guerra". Então eu já não vi air stamp ser traduzido por "estampa voadora", em lugar de "selo aéreo"? É o inglês do futuro, como dizem alguns estudiosos. O fato é que, na minha juventude, talvez por força da cultura humanista francesa, tínhamos mais esperança do que muitos jovens de hoje. A vida, afinal de contas, não era nem é em technicolor como aparecia nos filmes norte-americanos, fossem os musicais alienantes da MGM, fossem filmes desbotados como os da Republic Pictures e seu trucolor, mas em preto e branco, como aparece nos filmes noir, palavra francesa que está viva até hoje, para confirmar o que eu digo. O que motivou a arguta observação da Thais, ainda criança, vendo um álbum de fotografias de tios e avós: "Mas como os antigos eram pálidos!" Meu pai, que não havia feito nem mesmo o curso ginasial, cismara de aprender francês. Como se aprende francês, sem ter dinheiro para pagar um professor? Compra-se uma boa gramática, um dicionário bilíngüe e mãos à obra. Jamais havendo saído do Brasil, sua pronúncia era zero, mas seu vocabulário era mais extenso do que o filho universitário metido a besta. Talvez tenha vindo de seu exemplo minha atração pelos livros, discos e filmes franceses. Yves Montand falando do mar, "qu'on voit danser"; Charles Trenet louvando nossa "douce France, cher pays de mon enfance"; Gilbert Bécaud perguntando, sartrianamente: "et maintenant, que vais je faire de tout cet temps que sera ma vie?" eram um colírio para meus ouvidos. Sem falar no biquinho da Brigitte Bardot, que descobriu nossa praia de Búzios e ficou folle. Eu quis dizer louca e não sanfona, minha senhora. Muitos homens depois, ela descobriu que todos eram uns chatos e, chato por chato, preferiu seus chats. Gatos, of course. A primeira lição do meu primeiro livro de francês abria com a mesma abertura que se leu lá em cima, a saudar as férias, essa palavra que nos recordava coisas tão belas. E havia os filmes, sempre em preto e branco, como a trilogia do André Cayatte sobre o sistema judiciário francês; o Rififi chez les hommes, dirigido pelo Jules Dassin, que nos escandalizava com a exibição de um crime perfeito, sem imaginarmos que isso, com o passar do tempo, viraria profissão; Les diaboliques, dirigido pelo Henri-Georges Clouzot, que tinha no elenco nossa Vera Amado, mulher dele e filha do embaixador Gilberto Amado, irmão do Jorge, veja a senhora como o mundo é pequeno. Verdade que eu não podia ver os peitos da Martine Carol balançando ao vento, pois naquele tempo certos filmes franceses eram proibidos para menores de 21 anos. Antes disso, rapaz não via peito de moça não senhora. A senhora acredita nisso? E havia o vozeirão do Jean Gabin, que eu imitava com certa facilidade, dirigindo caminhão carregado de nitroglicerina no Salaire de la Peur. Será que era ele mesmo? Vou conferir com o Cláudio Pucci. Deu-se então que a professora de francês, no cursinho preparatório para o vestibular, resolveu, certo dia, cobrar como andava nossa pronúncia. Cada aluno leria dois ou três parágrafos de um livro de texto e ela iria obrigando os leitores a capricharem no biquinho para pronunciar corretamente o u francês. Sussurrei a um colega, talvez o Mané Alonso, mais tarde insigne falencista: "agora vou imitar o Jean Gabin". E assim fiz. Quando chegou minha vez, pensei numa cena do Touchez pas au grisbi, sendo eu o Jean Gabin dando um esporro daqueles no Lino Ventura, valendo-me de caras e bocas. Com a cena na tela do meu cérebro, li o trecho que me competia exagerando a mais não poder nas oxítonas, nos RRs e nos UUs. "Arretez, arretez, s'il vous plaît" diz ela. Depois de me mandar parar a leitura, ela me pergunta, assim sem mais nem menos, a mim que mal conhecia a Praia Grande, quase me fazendo cair da cadeira: "quanto tempo você morou na França?" Vejam o que é um bom estelionatário, coisa, aliás, que o Gabin interpretava muito bem, ao passo que o Lino Ventura quase sempre era o flic, isto é, o tira encarregado de prendê-lo. C'est la vie.
sexta-feira, 9 de julho de 2010

Caixinha de surpresas

"Eu não pagaria um centavo para assistir a um jogo dessa seleção brasileira." Johan Cruyff(o maior jogador de futebol da Holanda em todos os tempos) A vida é, efetivamente, uma caixinha de surpresas, pois os acontecimentos nem sempre surgem como e quando nós esperávamos que ocorressem. Veja se não é. Conheço uma senhora, casada, mãe de dois filhos, que nos conta que, jovem ainda, dirigindo um automóvel, provocou colisão dele com outro veiculo, dirigido por um belo rapaz. Saiu ela do seu automóvel chorando, argumentação em que as mulheres são mestras, quase sempre com resultado favorável a elas. O fato é que o rapaz consolou-a, não só naquele como em outros dias e, atualmente, é o pai do casal de filhos acima referido. Certo deputado estadual, que me honra com sua amizade, quando solteiro, morava em um apartamento onde, como seria natural, reunia de vez em quando amigos e amigas. Quando a reunião avançava no horário, a bela síndica tocava a campainha, pedindo moderação, pois alguns vizinhos estavam a reclamar do barulho. Lá pela terceira ou quarta vez, ele sugeriu à síndica que discutissem o assunto no dia seguinte, durante o jantar. Ou porque um só jantar não foi suficiente, ou porque houvesse outros assuntos a tratar, foram eles multiplicando-se e hoje eu cruzo com o simpático casal no elevador do prédio onde moramos, levando eles no colo uma bela menina de olhos verdes. Os esportes, por pertencerem à atividade dos seres humanos vivos, não poderiam deixar de incluir-se na tal caixinha. Veja se não é. Uma partida de tênis costuma durar, no máximo, 3 horas. Recentemente, em Wimbledon, uma partida dessas durou inimagináveis 11 horas, com o placar também inimaginável de 78 a 80 no derradeiro set. Surpreendente, não? Quando eu jogava basquete, lá se vão décadas e décadas, houve uma partida final entre dois clubes cujos nomes me escapam. O clube A precisava ganhar por 6 pontos ou mais para sagrar-se campeão. A partida aproximava-se do final e ele ganhava por apenas 2 pontos. Um de seus jogadores, talvez instruído pelo técnico, fez uma cesta contra, empatando a partida. Houve a prorrogação e o clube B foi derrotado por mais de 6 pontos de diferença. Segundo nos conta Eduardo Galeano, na Ucrânia há uma estátua para registrar um fato insólito. Em 1942, plena ocupação alemã, o Dínamo de Kiev foi "convidado" a disputar uma partida de futebol contra uma equipe alemã, no estádio local. Mesmo advertidos pelo treinador, que pressentia que os nazistas não engoliriam fácil uma derrota, os jogadores locais empenharam-se para valer, vencendo o jogo. Em consequência, "los once fueron fusilados con las camisetas puestas, en lo alto de un barranco, cuando terminó el partido", registra Galeano. Mas, fale a verdade: você pensou que eu iria falar de futebol, é ou não é? Pois acertou, só que eu não vou falar da inacreditável e recente partida entre a seleção do Uruguai e a de Gana; ou a da seleção da Holanda versus seleção do Brasil. Serei mais genérico. Se nos dispusermos a estudar a origem e a motivação dos esportes, veremos que eles estão ligados a fatos naturais da vida do homem, sendo, quase sempre, resultado de uma sublimação, atrevo-me a dizer. Seria cômodo ilustrar isso com o óbvio esporte do boxe, onde, sem subterfúgio algum, temos a briga entre dois homens. A correspondência entre a agressividade natural e a agressividade sublimada é evidente, até porque as normas de civilidade exigem que os punhos sejam cobertos por uma luva acolchoada. Ou exigiam, pois hoje também se pratica luta de boxe com as mãos desprotegidas, um fato bastante sintomático da "evolução" do ser humano a caminho de Cro-Magnon (clique aqui). Recorde-se que inúmeros esportes coletivos são disputados em torno de uma bola. E que é a bola senão a simbolização da cabeça do adversário, que o vencedor primitivo trazia para sua tribo, como prova do êxito na guerra? Eis o que nos diz um admirador do futebol, o já citado Galeano, a respeito da figura do torcedor típico: "El fanático llega al estadio envuelto en la bandera del club, la cara pintada con los colores de la adorada camiseta, erizado de objetos estridentes y contundentes, y ya por el camino viene armando mucho ruido y mucho lío. Nunca viene solo. Metido en la barra brava, peligroso ciempiés, el humillado se hace humillante y da miedo el miedoso." Em suma, guerra é guerra. E já que estamos em época de Copa do Mundo, qual a origem da mais clássica das provas olímpicas, a corrida da maratona? Segundo reza a lenda, após uma árdua batalha na região de Marathon, quando os persas acabaram desistindo de invadir a Grécia, no ano 490 a.C., o soldado Filípides foi encarregado de avisar os seus compatriotas da vitória dos atenienses. Para isso, correu cerca de 36 quilômetros, para levar a boa-nova. Depois de fazer o feliz anúncio, morreu de exaustão. Aquela prova seria uma homenagem àquele herói grego (e, portanto, recordação de uma batalha sangrenta). Não é de admirar, pois, que ao vencedor de uma disputa desportiva se entregue uma taça, onde, simbolicamente, ele beberá o sangue dos vencidos. Portanto, quando se transforma uma simples partida de futebol em festa cívica, algo está errado, pois estamos invertendo o processo civilizatório. Fechar repartição pública em dia de jogo, então, é algo simplesmente impensável. Não chegamos, é verdade, ao desvario do governo de um país africano que teria decretado que os jogadores da seleção nacional lá deles não poderão sair do país nos próximos dois anos, como punição pela desclassificação da equipe na recente Copa da África. Nem à xenofobia francesa que considerou a diminuta presença de franceses puro-sangue na seleção a causa maior da sua precoce desclassificação. Como diria certo estadista europeu, "ces là ne sont pas des pays sérieux".
sexta-feira, 2 de julho de 2010

Premonições

  À Cláudia, com muito amor Ele está convencido de que muitos de seus sonhos são premonitórios. Isto é, mais dia, menos dia, aquela tragédia que lhe ocorre quando dorme se tornará real. Sim, os seus sonhos sempre contêm um final trágico, no qual ele acaba levando à morte alguém que não se comportou adequadamente. Por exemplo, alguém tenta levar-lhe a carteira. Ele atraca-se com o ladrão e este, pretendendo fugir, ante a tentativa frustrada, é atropelado por um táxi e morre. Ou então são assaltantes que invadem seu apartamento, querendo os dólares que ele guarda no cofre, como se alguém ainda levasse a sério a moeda norte-americana nos dias de hoje. Pouco importa. Ali está o bando, tendo o chefe um revólver na mão direita. Nosso homem se vale de uma distração do outro, desarma-o e mata todos os componentes da quadrilha. O sangue de um deles mancha o tapete da sala, o que provocará o asco da esposa do sonhador. Ela certamente agora desejará vender o tapete. Ou, mais certamente ainda, se ele bem conhece a mulher que tem, insistirá na venda do próprio apartamento, comprado com tanto sacrifício e decorado com tanto capricho. A grande vantagem dessas premonições é que as tragédias anunciadas não têm data para acontecer na realidade. Aquilo poderá tornar-se realidade naquela semana, no mês seguinte ou daqui a alguns anos. Como, no entanto, ele está convencido de que aquilo de fato ocorrerá, mais dia, menos dia, isso lhe dá a ele um tempo de imortalidade, pois a primeira condição para que seus sonhos se tornem coisa real é que ele esteja vivo, para executar o que o destino lhe reservou. Ele poderá saltar de asa delta, entrar na jaula de um leão ou passar a mão na cara de um tubarão que nada de fatal lhe poderá acontecer, pois, como sabemos, o ser humano não pode alterar o destino. Se está previsto que ele matará aqueles três assaltantes na sala de seu belo apartamento, decorado com móveis de estilo e tapetes orientais, enquanto isso não se der ele não poderá morrer. Num desses sonhos premonitórios ele está numa estação de metrô apinhada de gente, como é hábito dizer. No meio daquela multidão, um rapaz, mais jovem e mais forte do que ele, volta a cabeça para trás, dá um sorriso e uma piscadela. Ele finge que não é com ele, mas, como autor de seus sonhos, ele bem sabe que é a ele que o rapaz, chamemo-lo de "molestador", está a dirigir-se. Agora ambos caminham lado a lado, em direção às baias onde encostarão os vagões do metrô. Quando o vagão chega e a porta se abre, forma-se a natural confusão entre as pessoas que querem sair e aquelas que desejam embarcar. Ele se aproveita disso e deixa que o molestador entre antes dele. Agora ele cede sua vez a duas senhoras e passa a caminhar de costas, não entrando no vagão. A porta do vagão fecha-se, o trem parte e o nosso sonhador senta-se num banco, à espera do próximo trem. A seu lado direito senta-se um cavalheiro que é ninguém menos do que o molestador. Ele agora, além do sorriso cínico no rosto, traz um canivete aberto na mão direita, com o braço dobrado para a frente, em posição de ataque. O sonhador sente na mão esquerda a alça de sua pesada pasta de couro, recheada com papéis e livros. A pasta descreve um semi-círculo, da esquerda para a direita e de fora para dentro, contatando violentamente a mão direita do molestador. Como conseqüência disso, a lâmina do canivete penetra no abdome do molestador. O sonhador levanta-se e acompanha a multidão que se encaminha sabe-se-lá para onde. O corpo do molestador dobra-se para a frente, como se ele estivesse tendo um desmaio ou estivesse bêbado, caindo, por fim, ao solo. As pessoas que passam apressadamente, como é natural, limitam-se a desviar-se do bêbado, onde já se viu? alcoolizado a uma hora dessas. Impedir que esse drama se concretize é fácil: basta não mais viajar de metrô, nem aqui nem em Buenos Aires ou Paris. Mais algumas noites e o sonho se repete. Ele está na estação do metrô. Quando vai introduzir o bilhete no orifício da catraca, com a mão direita, ele sente outra mão direita, claramente masculina, colocar-se sobre a mão dele, auxiliando-o na introdução do objeto. Ele não precisa voltar o rosto para saber que atrás dele está o belo rapaz mais jovem e mais forte do que ele. Ambos passam ao mesmo tempo pela catraca do metrô e agora caminham lado a lado. Ele diminui a velocidade de seus passos o mais que pode, olhando à esquerda e à direita, em busca de algum policial. Tudo o que ele vê de útil é a lojinha de um chinês, que tem no teto milhares de badulaques pendurados. Ele entra na loja, sempre acompanhado pelo molestador, e se dirige ao velho chinês, que os recebe com o tradicional sorriso e a reiterada inclinação do corpo magro para diante. "Eu quero falar particularmente com o senhor" diz ele. O velho limita-se a sorrir e curvar repetidamente o magro corpo. "Escôria, escôria" é tudo o que o chinês diz. Ele não se dá por achado e, sincopadamente, indaga: "Fala português?" Tudo o que o velho diz é "escôria, escôria", apontando para aquele desmazelo de badulaques. Ele sai da loja desanimado, tendo ao lado o belo rapaz de sempre. Ambos têm um sorriso nos lábios e caminham lado a lado, como dois amigos, em direção à baia onde tomarão o metrô. Lá chegando, repete-se a mesma cena do despistamento: seu acompanhante entra no vagão e ele fica do lado de fora. Entretanto, ao invés de sentar-se no banco, ele se dirige ao fim do comboio e entra no último vagão. Sua mão esquerda abraça a pasta de couro e a mão direita segura firmemente a barra horizontal que abriga inúmeras outras mãos. Não demora muito e outra mão direita pousa sobre a mão direita dele. Ele não precisa voltar a cabeça para saber de quem se cuida. Na próxima estação ele empurra o molestador porta a fora, contando com a indiferença dos demais passageiros. A queda sofrida pelo belo rapaz talvez tenha sido fatal. Ora, o leitor familiarizado com a Psicologia já terá notado que os sonhos relatados por nosso personagem demonstram a clara tendência homossexual dele. O rapaz mais jovem, mais forte e belo é ele mesmo, em sua juventude, quando as suas tendências homossexuais vieram à tona. O canivete entrando no abdome, o bilhete penetrando o orifício da catraca são pistas evidentes, além do trem do metrô, que, mais adiante, penetrará num túnel escuro, imagem tão ao gosto de Alfred Hitchcock, como na cena final de Intriga Internacional. A mão direita do outro sobre a mão direita dele é cena bastante sugestiva. Por outro lado, as pessoas entrando no vagão não lembram espermatozóides afanando-se para fecundar um óvulo? Eu poderia ter dito isso tudo a ele, mas, conhecendo-o muito bem, sei qual seria sua reação. Na certa eu perderia o amigo, se é que não conquistasse um impiedoso inimigo. Resolvi, assim, dar tempo ao tempo, lamentado embora que tantas noites mal dormidas, tanto estresse poderiam ser evitados se ele, com a humildade que lhe faltava, se dispusesse a uma sessão semanal de psicoterapia. O fato é que ele, durante meses, deixou de utilizar-se do metrô, preferindo os incômodos e a demora da viagem de ônibus. Certo dia, quando passava pela estação central, que se parece com a abertura de um túnel, ele sentiu um calafrio. Dentro dele apareceram dois comandos simultâneos: de um lado, uma voz tentando convencê-lo a deixar de bobagem e voltar ao conforto da viagem por metrô. Era a sedução do princípio do prazer. Ao mesmo tempo, outra voz acenava com o risco decorrente dessa quebra de sua promessa, pois a tragédia final era só questão de tempo. Era a voz do princípio do dever. Sua indecisão durou poucos minutos, terminando com a vitória do princípio do dever. Ele seguiu em direção ao ponto de ônibus, não deixando, porém, de dar um triste olhar de despedida ao túnel que foi ficando para trás. Na estação rodoviária, lá estava seu ônibus à sua espera. Porta convidativamente aberta, ninguém na fila, ele apressou o passo, pois não era todo dia que conseguia desfrutar daquele conforto. Pouco antes de atingir a porta do veículo, ele sentiu um braço pesado sendo depositado ao longo de seu ombro, como o de um namorado querendo proteger sua amada.
sexta-feira, 25 de junho de 2010

Jabulani 3, goleiros 0

  "O extremo Cristiano Ronaldo marcou hoje o seu primeiro golo oficial pela selecção portuguesa de futebol em mais de dois anos, ao facturar à Coreia do Norte." Diário de Notícias de Lisboaedição de 22 de junho Não é apenas você, caro leitor, que tem perdido seu precioso tempo tentando ver um jogo de futebol pelo menos razoável na TV ultimamente. Venho, há muito tempo, contrariando meu dileto amigo Juca Kfouri, sustentando que o futebol é um esporte decadente, incompatível com os tempos modernos, quando, mais do que nunca, time is money. Nosso amigo comum Eduardo Galeano, em seu El Fútbol a Sol y Sombra, já falava nisso: "Yo no soy más que un mendigo del buen fútbol. Voy por el mundo, sombrero en la mano, y en los estadios suplico: una linda jugadita, por amor de Dios. Y, cuando el buen fútbol ocurre, agradezco el milagro, sin que me importe un rábano cual es el club o el país que me lo ofrece." Ficar duas horas diante da TV vendo pernas de pau dando trombadas e errando gols feitos, quem merece? O preparo dos atletas melhorou, o tamanho dos calções dos jogadores alterou-se substancialmente, inventou-se a indecente paradinha na hora dos penalties (que é a negação do desejado fair play), mas as regras, criadas pela FIFA há mais de cem anos, são as mesmas, o tamanho do campo, o tamanho das traves, o tempo de jogo e o número de jogadores continuam os mesmos. Até o conceito de "uniforme" foi alterado, para beneficiar os patrocinadores. Além das chuteiras de múltiplas cores (a chuteira pertence ao uniforme, que significa "uma só forma para todos"), há a revogação das chamadas "cores tradicionais". Qualquer dia desses, os jogadores do alvinegro do Parque São Jorge aparecerão vestindo camiseta com faixas azuis e laranja, por exigência do tal patrocinador. Que se danem as tradições. Ou a "celeste olímpica" aparecerá na Copa do Mundo jogando de camisa branca. Quousque tandem? Aliás, você, que se considera um conhecedor do futebol, será capaz de dizer a que palavras correspondem, no original, as letras FIFA? Aposto que errou: Fédération Internationale de Football Association, assim em francês, pois foi fundada em Paris, em 1904. Isso para não falar nos comentaristas. Há um deles, voz de taquara rachada, que deve ser sobrinho de algum diretor, que lhe proporcionou esse passeio à África. Não é que o rapaz desconheça futebol. Ele desconhece o bom senso. Por exemplo: um jogador dá um carrinho por trás no adversário e é expulso. Comentário do tal sobrinho: "embora a lei diga que é caso de expulsão, entendo que o juiz foi muito rigoroso." Cumaé? Ele se acha no dever de explicar a frase idiota: "aposto que se o carrinho tivesse sido dado por um jogador alemão o juiz não o expulsaria." Pois é. Baseado em mera suposição, alicerçada em mero preconceito, o tal rapaz entende de julgar a conduta do árbitro. E você tendo de ouvir isso. Não foi a única bobagem dita pelo tal moleque. A bola está pulando na área. O zagueiro corre em direção a ela e arma o chute para mandá-la para a frente. Nesse preciso instante, um atacante afasta a bola e deixa a perna no lugar dela. O zagueiro, evidentemente, não teria como evitar aquilo que os penalistas chamam de "erro de execução". Explico: pai e filho estão sendo assaltados. O filho empunha uma arma e dispara contra o ladrão, em legítima defesa. Erra o tiro, que lhe atinge o pai. Para aquele comentarista esportivo estaríamos diante de um homicídio tentado e qualificado, pois foi cometido contra o pai. Homicídio aqui e pênalti lá. Tenho autoridade para falar do assunto pois, em minha juventude, eu despontava como o futuro goleiro de nossa seleção, não tivesse como modelo o Gilmar dos Santos Neves. Aquilo de atirar-se nos pés do adversário, que o Gilmar fazia com desassombro, fazia eu com desassombro e meio, até o dia em que o Toninho, um cretino bem mais forte do que eu, resolveu não perder a viagem e substituir a bola pela minha cabeça. Os brasileiros que me desculpem, mas vão ter de contentar-se com o Félix, o Marcão e outros menos votados. E pendurei as luvas. Melhor jogar esgrima no Tietê, onde o risco de acidente é menor. O esquema do jogo de futebol era conhecido como WM, referência à posição invariável de cada jogador no campo. O número 7 era o ponta-direita, que não saía da extremidade direita do campo, de onde centrava para o centro-avante, que permanecia na cabeça da área adversária à espera da bola. O número 11 era o ponta-esquerda e também "guardava a posição", como se dizia então. Aí apareceram uns malucos com camiseta cor de laranja e implodiram o tal WM. Resultado: se havia uma bola na defesa, lá estavam três "laranjinhas" em torno dela; se era na área adversária, lá estavam outros (ou os mesmos, sabe-se lá) "laranjinhas". Até no vestiário havia um trio de holandeses rondando a bola. E o futebol nunca mais foi o mesmo. O fato, porém, é que ser goleiro naquela época era outra atividade. A bola era feita de couro, gomos costurados pelo avesso, formando o que chamávamos de "capotão". Havia uma segunda parte, a "câmara de ar", que, escondida dentro dele, se comunicava com o mundo exterior por uma peça indecente chamada "pingulim". Era um tubinho de borracha, pelo qual você inchava a tal câmara e, em consequência, tornava a bola mais ou menos redonda. Feito isso, o tal pingulim era dobrado e guardado dentro do capotão, por uma abertura que viria a ser fechada como fechamos o sapato, isto é, apertando um cadarço de couro. Em dias de chuva, não havia coisa mais inesquecível do que levar uma bolada no rosto, especialmente se o chutador tivesse sido o Rivelino. Aliás, tirante ele e mais meia dúzia de exímios chutadores, a tal bola, quando chutada ou cabeceada (havia quem se atrevesse a isso), seguia em velocidade que não chegava aos pés dos quilômetros registrados hoje, com essa bola plástica colorida, que até apelido tem, coisa que não havia naqueles idos e vividos tempos. Justamente por isso, acho uma graça quando comentaristas de futebol dizem que tal goleiro engoliu frango, especialmente quando esse comentarista jamais teve intimidades com a guria, como dizíamos nós. Vejam o gol do Podolski, que alguns consideraram um dos mais bonitos da primeira rodada. Reparando bem, você conclui que metade do gol foi feito pela Jabulani (clique aqui). A bola que escapou das mãos do imaturo (a julgar pelo nome) goleiro da Inglaterra merece o mesmo mérito. Verdade que goleiros autênticos, como eu e o Gilmar, jamais ficaríamos de lado para a menina dizendo "vem, vem". Mas que a bola fez lá das suas, isso fez. Para não falar no drible que ela deu no goleiro do Japão: goleiro para a esquerda e bola para a direita. Excluindo esses espetáculos circenses, que as 32 câmeras gravam e as emissoras passam e repassam dia e noite, que mais temos? Um idiota que, sem mais nem menos resolve dar um coice no adversário, com jogo parado, sob os bigodes do juiz. Jogador expulso e time adversário virando o resultado do jogo. Fosse eu o chefe da delegação, poria um camarada desses no avião e mandaria de volta para casa. Ele que se explicasse à torcida, que, certamente, iria recepcioná-lo condignamente no aeroporto. Como todas as Copas, esta tem lá suas especificidades, se assim se pode dizer. É a Copa do "pé-de-ouvido". Em cada jogo, pelo menos duas vezes lá está um jogador levantado-se com a mão cobrindo a orelha, vítima de uma cotovelada do adversário, que havia subido para cabecear a bola. E há também o super slow-motion, que transforma quedas perigosíssimas em bela coreografia futebolística. E só. Jogadas inesquecíveis? Só se for a cena do braço de Deus fazendo gol para o Brasil. Ou, para sermos justos, as exibições da seleção argentina, que acabarão deixando o Maradona pelado de frente (ou de costas?) para o tal obelisco. Aliás, quando os comerciais do intervalo são mais interessantes do que os jogos que acabamos de suportar, alguma coisa está errada. Perguntem aí ao Marcos Evangelista de Moraes, que já brilhou do lado de lá, com o nome de Cafu, e hoje brilha do lado de cá, interpretando o simpático mecânico Joel. Grande desempenho, garoto.  
sexta-feira, 18 de junho de 2010

Escatologia Cinematográfica

  Para muita gente, desenho animado é coisa para criança. Ligam a televisão e deixam a criançada assimilando aquele monte de informação dada pela babá eletrônica. Meus netos veem umas coisas horrorosas, com figuras distorcidas, cujas histórias não têm pé, cabeça nem rabo. E gostam. Até esponja de limpeza virou personagem desses desenhos televisivos! Há muitos anos, quando essa nova proposta estética ainda não tinha chegado, havia um personagem que era um ratinho super-rápido, que era chamado pelos primos, camponeses mexicanos e pobres, que eram maltratados pelo gato. Por que um bicho repelente como o rato se torna tão simpático nos desenhos animados, chegando a encantar-nos com suas habilidades culinárias, é coisa que ainda não descobri. Vejam o caso do Ratatouille. Mas estou tentando. Se não me engano, eu falava do Speedy González e suas corridas para cima e para baixo, ao som de um gritinho de auto-estímulo: Ándale!, ándale! Arriba!, arriba! Em certo episódio, quando recebe a carta dos primos convocando-o para dar mais uma lição no malvado vilão, ele está fazendo serenata para uma bela ratinha, balançando na rede e tocando violão. Que música ele cantava? Seu tema musical. Ou seja, este: "La cucaracha,la cucaracha,ya no puede caminar,porque no tiene,porque le falta,marijuana pa fumar." Edificante, né? Claro que você não acredita nisso. Pois lhe exibo a evidência um. (Clique aqui) Consta que teremos agora o Speedy González em filme, talvez 3D, quando, por força de seus hábitos pós-modernos, a cada tragada entrará pela sala de exibição adentro, dando sustos na gurizada pela sua rapidez e susto nos pais da gurizada por causa da causa de sua rapidez. Direis que nos bons tempos do Walter Elias Disney não havia nada disso, pois os desenhos eram ingênuos, autênticos contos de fada, tudo em 2D. Em primeiro lugar, que é um conto de fada? Meu neto, de 3 anos de idade, dia desses chegou-se para uma tia velha e lhe sapecou nas ventas: "Eu não gosto de você porque você é velha e feia". Procure um conto de fadas em que a bruxa seja moça e bonita. Quando muito você encontrará três velhinhas gordinhas e simpáticas como as fadas madrinhas da Gata Borralheira. Se prestarmos atenção nos desenhos animados, veremos que aquilo sim é que é um festival de posturas politicamente erradas, como o sadismo do Tom & Jerry, do Pica-pau ou seja lá de que herói for. "Eu vou te matar" dizem as crianças, fazendo caras e bocas, imitando o Ben 10. Quem é ele? O herói de um desenho horroroso, que não chega aos pés daquele cujo pacato personagem enchia-se de músculos quando exclamava "Eu tenho a força!", coisa da infância de meus filhos. Graças à tecnologia, os desenhos animados de agora são mais apreciados pelos adultos do que pelas crianças. Hoje, os meninos que salvaram a Pixar, dando um lucro inimaginável ao Steve Jobs, dono da Macintosh e sucessor do rei Midas, não precisam ter preocupações econômico-financeiras pelas próximas três ou quatro gerações, pois estabeleceram um nicho simplesmente inesgotável. Veja-se esse incrível Wall-e (clique aqui) que chega a ser dark, em sua visão do futuro, concretizando o 2001 do Kubrick. Não bastasse isso, lá vem o Avatar, mostrando que, com tecnologia de ponta, nem se precisa ter escrúpulos em copiar cenas e mais cenas de tantos filmes que nossos olhos já viram vezes e vezes. Os fãs de Apocalipse Now (clique aqui) que o digam. Até o militar fanático é o mesmo.