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Circus

Crônicas e reflexões.

Adauto Suannes
sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Os delatores invejosos

  "Sobre a morte trágica da juíza Patrícia Acioli, da 4ª vara Criminal de São Gonçalo/RJ, assassinada a tiros em Niterói, observamos que todos os veículos de comunicação enfatizam a dura atuação da magistrada contra a ação de grupos de extermínio. Como advogado que atua na área criminal, penso que está equivocada a ideia de que o magistrado atua contra qualquer pessoa, porque não é essa a sua função." Célio NonakaMigalhas dos leitores, 19/8/11 "Em 2009, por exemplo, o tribunal alterou sua jurisprudência com relação à possibilidade de cumprimento das penas logo depois da confirmação da sentença em segundo grau. Até então, o tribunal sempre tinha entendido que, confirmada a sentença no Tribunal de Justiça, nada impedia o início da execução. Em 2009, isso mudou. Não concordei com essa posição e discordo dela até hoje." ministra Ellen Gracie, Veja, 31/8/2011 Lon Luvois Fuller, nascido com o século passado, tornou-se professor de Direito na Universidade de Harvard. Deixou um livrinho, que era um desafio a seus alunos e que muitos estudantes brasileiros já foram instados a ler: "O caso dos exploradores de cavernas". A hipótese por ele trazida no livro foi tornada realidade tempos depois, quando, havendo caído um avião com passageiros nos Andes, os sobreviventes passaram a alimentar-se com a carne dos falecidos (clique aqui). Como você agiria se lá estivesse? Em outro livrinho, menos conhecido por aqui, Fuller inventa uma situação mais complexa: em certo país, o governo é assumido por determinado partido, que tem maioria absoluta no Poder Legislativo e muitos simpatizantes no Poder Judiciário. Ele poderia estar falando da Alemanha nazista, do México do século passado, da Cuba atual, da Venezuela ou do Brasil. Graças a esse poder, o tal partido faz aprovar leis curiosas, como aquela que exige dos cidadãos que, quando perderem seu documento de identidade, denunciem o fato às autoridades, em cinco dias, para cancelamento, evitando-se, assim, que alguém, contrário ao regime, se utilize desse documento para fins escusos. A desobediência a tal regra era sancionada com a pena de morte, a ser imposta num processo judicial, por estar em risco a segurança nacional. Tal como aconteceu na Alemanha pós-nazismo, na Espanha pós-Franco e no Portugal pós-Salazar, com a morte do líder carismático e a eleição de novos governantes, aquelas leis foram revogadas. Ficou, porém, uma "herança maldita": aqueles que se consideravam vítimas de leis injustas passaram a acionar o governo para pedir reparação dos danos sofridos e a punição daqueles que deram cumprimento a tais "leis injustas", aí incluídos os juízes. No livro de Fuller, são consultados cinco membros do Legislativo, dando cada qual seu parecer sobre o assunto. Cabia aos alunos adotar uma dessas opiniões, refutando os argumentos das outras quatro. O professor Dimitri Dimoulis, da Fundação Getúlio Vargas, vem de lançar a tradução do livro, acrescentando, por sua conta, a opinião de cinco juristas, tão fictícios como os deputados de Fuller, cada qual dando seu parecer sobre o tema. Ao finalizar o livro, Dimoulis recomenda a seus alunos: a partir da argumentação dos juristas, tome partido, aderindo a um dos pareceres. Mas, diz ele, "explique o porquê". E diz mais: "Defenda bem e detalhadamente a sua opinião. Só se esta for convincente a solução contará com o apoio dos demais". O que me faz inventar um sexto jurista, o prof. Suarez, que pede licença para pôr sua colher de plástico nesse caldeirão de polenta. Em primeiro lugar, quando se diz, como enfatiza o Prof. Satene, que não podemos falar em "violação do direito" sem antes definirmos o que entendemos por direito, pois "todos usamos esse termo mas cada um entende algo diferente", está-se a dizer que nenhuma definição de Direito logra dizer exatamente o que é aquilo que se busca definir. O que me faz lembrar do estudante de Teologia que, passeando pela praia, viu uma criança a fazer um buraco onde, segundo revelou ao futuro santo, pretendia enfiar toda a água do mar. Agostinho, esse o nome do seminarista, deu um tapa nesta e limitou-se a exclamar "É isso!", referindo-se à impossibilidade de o homem conceituar Deus. "Putas quid est Jus?" poderemos indagar, parafraseando o santo. Acaso imaginas poder entender o que é o Direito? Falas em Justiça como se fosse possível ao homem equiparar-se a Deus que, justo embora, a mais não ser, consegue julgar-nos com tal benevolência que temos a certeza de estarmos longe da Geena. Sendo, por hipótese, absoluto e detentor de toda a verdade, a ponto de desafiar seu julgador, permite a nossa inteligência o atrevimento de tentarmos alcançá-la. Como pode? "Quid est Veritas?" indaguemos a qualquer juiz e tudo o que ele nos dirá é: "É aquilo que ficar provado no processo." Vejamos, então, uma historieta: alguém é processado criminalmente sob a acusação de haver furtado a bolsa de A, a caneta de B e o relógio de C. Condenado pelo juiz singular, apela ao tribunal, sendo seu recurso submetido, como é a regra, a três juízes. O primeiro juiz, relator do processo, reconhece que a prova demonstra apenas a ocorrência do furto da bolsa, devendo o apelante ser absolvido das demais acusações; o segundo juiz, revisor do processo, reconhece que a prova demonstra apenas a ocorrência do furto da caneta, devendo o apelante ser absolvido das demais acusações; e o terceiro juiz, vogal, como se diz no foro, reconhece que a prova demonstra apenas a ocorrência do furto do relógio, devendo o apelante ser absolvido das demais acusações. Quatro juízes chegam a esta verdade: ali está um ladrão. Ele, no entanto, deverá ser absolvido, pois nenhuma das três teses foi sufragada por, pelo menos, dois juízes do tribunal. Que verdade é essa? Em segundo lugar, tenho também por inconsistentes os reclamos de minhas colegas do gênero feminino, como é de bom tom dizer hoje em dia. Se o caso sob julgamento alude apenas a homens é porque a hipótese versava sobre o comportamento de homens. O reclamo denuncia o complexo de inferioridade que tem a maioria das mulheres, incapazes de reconhecer as diferenças, físicas e psíquicas, existentes entre elas e os homens. Quem atribuiu ao casamento o nome de matrimônio (mater + munus) tinha em mente um fato social: com a união de um homem e uma mulher, é a ela que compete cuidar da prole e da casa. Ao homem compete obter os recursos para formar o patrimônio do casal (pater + munus). Isso, certamente, não foi inventado por uma só pessoa. Por fim, last but not the least, tenho por risível a responsabilização, civil ou criminal, do homem que levou o marido de sua amante à morte. Se eu vir meu desafeto a atravessar a rua, certamente rezarei com todas as minhas forças a Deus pedindo-lhe que mande um caminhão em alta velocidade para tirar deste mundo aquele canalha. Se Deus me atender, acaso merecerei ser chamado de homicida? Eles que se entendam lá em cima (ou lá embaixo). Sendo Deus, por hipótese, o dono da vida, que nos empresta por prazo que só Ele conhece, se, naquele caso concreto, Ele a reivindicou manu militari, se assim posso dizer sem cometer heresia, certamente porque não confia nos nossos juízes, que culpa me cabe? Tenho, Senhor Ministro, por equivocadas as conclusões de alguns deputados e alguns de meus colegas, exatamente porque partem de premissas inaceitáveis. Para não alongar-me em demasia, digo que, a meu aviso, certos fatos sociais, embora produzidos por seres humanos, são apenas manifestações das forças da natureza, algo que as apólices de seguro chamam, atrevidamente, de "atos de Deus". Um grupo de leões foge de um zoológico e caça pessoas, matando-as e matando, também, sua natural fome. Ondas do mar encapelam-se e invadem a praia num tsunami, matando gente e destruindo tudo o que encontram pela frente. Um doente mental empunha uma arma de fogo e mata, sem motivo objetivo algum, dezenas de pessoas. Um vulcão entra em erupção. Qual a providência judicial que restabelecerá a paz social quebrada por esses acontecimentos? Certamente nenhuma. De outra parte, e para finalizar, qual a função do juiz criminal senão a de chamar para si o desejo de vingança diante de alguém que, mercê de seu atrevimento, causa danos a pessoas específicas ou ao conjunto dos moradores da sociedade? Ao menos é isso que as "pessoas de bem"' esperam dele. Um psicopata, cuja insensibilidade ética (o que quer que seja isso) impede-lhe que tome consciência do mal que causa, por ação ou omissão, àqueles que com ele se relacionam, poderá ser impedido de assim agir? Ele tem escolha? Certamente não. O mesmo se diga com relação aos membros da classe política, que, como regra, confundem seus interesses particulares com os interesses da população que dizem representar. Se a finalidade da condenação criminal é a "ressocialização" dos criminosos, que medidas devem ser tomadas para que esses políticos abram mão de uma característica que parece ser-lhes própria (clique aqui)? O mesmo se diga dos arroubos patrióticos. Como é geralmente sabido, o hoje idolatrado Walt Disney era um patriota como tantos outros, que, por isso, não se negava a indicar ao senador Joseph McCarthy (clique aqui) o nome de pessoas suspeitas de simpatizar com o comunismo. Muitos colegas dele perderam o emprego por isso. Durante a II Guerra, os EUA tinham um espinho na garganta. Ou, melhor, dois: Getúlio Vargas, no Brasil, e Juán Domingo Perón, na Argentina. Ambos simpatizavam com o nazismo, valendo lembrar que, encerrada a guerra, um número enorme de nazistas fugiu para esses países, como Adolph Eichmann e Josef Menguele. Os EUA sempre procuraram cativar os países da América latina, desenvolvendo, para isso, o projeto da The Good Neighbor Policy (clique aqui), que criou e alimentou vários ditadores, cuja conduta jamais veio a ser questionada pelo alimentante. Naquela época (antes do fim da II Guerra Mundial), Disney foi chamado para ser um dos embaixadores desse estreitamento. Daí, por exemplo, o engajado filme "Alô Amigos" (clique aqui). Os políticos não brincam em serviço. Quando se diz que a possibilidade da pena de prisão inibe a prática de crimes faz-se uma afirmação que a realidade desmente. O criminoso cuja ação é descoberta, por força de mera falta de sorte, algo que os criminólogos chamam de "chiffre noir", mesmo que venha a ser condenado e cumprir efetivamente a pena, na maioria dos casos não se "ressocializa". Se for inteligente, na próxima vez procurará deixar menos rastros. Em conclusão, tenho por absoluta perda de tempo voltarmos os olhos para o passado. Isso não elimina os efeitos de um tsunami nem traz de volta à vida quem daqui foi levado. É vivermos o presente, da melhor maneira que pudermos (o que quer que nos diga a Ética, a Religião ou a nossa consciência) e procurarmos criar condições para que os fatos desagradáveis do passado não se repitam. Outrossim, a ideia de que, defendendo bem e detalhadamente a minha opinião e tornando convincente a solução proposta, contarei com o apoio dos demais juristas é também pura ingenuidade. O que a experiência mostra é que a vaidade, em tais discussões, fala mais alto, impedindo que a razão coteje com imparcialidade os argumentos opostos. Sei que alguns dos meus colegas me chamarão de cínico. Eu prefiro que me chamem de pragmático. A propósito, permita-me Vossa Excelência, Senhor Ministro, uma pergunta final: é possível fechar a boca de um vulcão?
sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Deus existe?

  "Só se conhece a Deus quando se reconhece que Deus vai muito além de tudo o que se possa dizer e pensar acerca de Deus." Santo Tomás de Aquino, Suma aos Gentios, Livro I, capítulo 3 "MPF/SP aciona Rede TV! e igreja por ofender ateus." Migalhas, 23.8.11 No dia 21 de Fevereiro de 2000, no Teatro Quirino, em Roma, travou-se interessante debate entre o cardeal Joseph Ratzinger, que depois se tornaria o Papa Bento XVI, e o filósofo Paolo Flores D'Arcais, confessadamente ateu, sobre um tema instigante: a fé. Cada um expôs os motivos pelos quais crê ou não crê na imortalidade da alma. Dadas as reconhecidas credenciais de ambos, é de registrar que aquilo que não foi trazido por ambos ao debate certamente não tem maior importância como argumento, se é que esse assunto depende de argumentação. O debate teve como mediador o jornalista Gad Lerner, apropriadamente escolhido não só por sua cultura como por ser, de certa forma, equidistante de ambos, pois é judeu. O próprio mediador deixou consignada sua surpresa diante da lhaneza do comportamento do cardeal durante a longa entrevista, pois é ele considerado um homem radical e intolerante, como pode testemunhar o nosso Leonardo Boff, que se afastou do sacerdócio em razão de atritos com o prefeito da Congregação para da Fé, cargo em cujo exercício chegou a censurar o Concílio Vaticano II, um acontecimento providencial e necessário, que, entretanto, sempre a seu ver, foi além do que dele se esperava. Na ocasião do debate referido, que já pode ser lido em português, graças à Editora Planeta, veio à baila, como não poderia deixar de ser, a conhecida alternativa proposta pelo matemático Blaise Pascal. Segundo ele, cada um de nós é livre para apostar na existência da imortalidade da alma ou em sua inexistência. Se apostarmos na imortalidade e tudo terminar com a morte, que teremos perdido por termos vivido uma vida de bom relacionamento com o próximo, buscando viver a "regra de ouro" (fazer pelo próximo aquilo que eu quero que ele faça por mim) ou, pelo menos, a "regra de prata" (não fazer pelo próximo aquilo que eu não gostaria que ele fizesse contra mim)? Ao reverso, se eu optar pela não-crença e viver minha vida sem essas preocupações éticas, que acontecerá após minha morte se houver, de fato, a imortalidade? Flores D'Arcais nega valor a tal raciocínio, que, a seu ver, não trata da fé propriamente dita, mas de um jogo oportunista e interesseiro. Isso me lembra a ocasião em que um padre, excelente orador, referiu-se por três vezes, em sua homilia, à vida eterna. Insistiu ele em que deveríamos fazer o bem do lado de cá para termos tais ou quais recompensas do lado de lá, as tais brasas sobre a cabeça de que fala São Paulo na Carta aos Romanos, 12, 12. Após a missa fui educadamente indagar-lhe se esse tipo de argumentação não lembra uma caderneta de poupança: aplico aqui e recebo lá, com juros e correção monetária. Sugeri-lhe então, atrevidamente, que os padres deveriam ensinar que a virtude vale por si mesma. "E as pessoas comuns entenderiam isso?" Se os senhores ensinarem, certamente entenderão, respondi. Se meu filho me beija não tanto porque me ama, mas porque quer ganhar uma bicicleta no aniversário, qual o valor desse beijo? Hoje reconheço que as coisas não são assim tão absolutas, como me mostrou o Paulo Gaudêncio. Ele era aluno de um colégio religioso, talvez o São Luiz, e, quando na fila da comunhão, teve uma crise de fé: "Eu estou na fila porque creio? Porque quero ser presidente do grêmio estudantil? Ou porque estou de olho numa menina de família catolicíssima?" Resolveu procurar o padre orientador espiritual, que não teve dificuldade em lhe dar a resposta: "Pelos três motivos". Voltando ao tal debate, o cardeal católico afirmara, de início, que não pode haver conflito entre fé e razão. A razão, cedo ou tarde, nos leva a descobrir a fé. O filósofo ateu deu-lhe o troco: "Como entender, então, racionalmente, a ressurreição da carne? Minha razão entende que esse é um fenômeno absolutamente contrário ao normal acontecer das coisas." Ratzinger acabou, humildemente, dando-lhe razão. "A fé cristã apela à razão, mas também vai além das coisas evidentes para a razão." Quando procurei falar da fé, no livro Ninguém sofre porque quer, recentemente reeditado pelo Instituto Memória, usei de uma comparação, que aqui repito, contando uma pequena história. Havia um trapezista especializado em circular com seu veículo sobre um cabo de aço. Um dia ele estendeu esse cabo ao longo de um vale profundo, com uma ponta fixada do lado de cá e a outra do lado de lá (as pessoas de minha idade seguramente se recordam de uma família de alemães que faziam apresentações dessas cruzando o largo do Anhangabaú, a dezenas de metros de altura, para mal-estar de muita gente, dentre as quais eu). Feito isso, indagou de uma pessoa que estava a seu lado: "Você crê que eu seja capaz de ir até lá e voltar sobre esse fio de aço, pedalando esta bicicleta?". "Só acredito vendo", respondeu o cético, que talvez se chamasse Tomé. O ciclista foi até lá, virou a bicicleta e voltou. "Agora que você viu, acredita que eu seja capaz de ir até lá nesta bicicleta sobre este cabo de aço?", tornou a perguntar o ciclista. "Agora eu acredito", respondeu o espectador. "Então suba na garupa e venha comigo", desafiou o outro. Essa parece, de fato, ser a grande diferença entre o simples acreditar, ter crença, e dispor-se a subir na garupa, entregando seu corpo e sua alma Àquele em quem se tem fé. Recordemos o descrente Umberto Eco, no livro Em que crêem os que não crêem?: "Não gostaria que se instaurasse uma oposição seca entre quem acredita em Deus transcendente e quem não crê em nenhum princípio supra-individual. Gostaria de recordar que era dedicada justamente à Ética o grande livro de Spinoza que começa com a definição de Deus como causa de si mesmo. Salvo que esta divindade spinozana, bem o sabemos, não é nem transcendente nem pessoal: mesmo assim, também da visão de uma grande e única substância cósmica, na qual um dia seremos todos reabsorvidos, pode emergir uma visão da tolerância e da benevolência, exatamente porque é no equilíbrio e na harmonia da substância única que estamos todos interessados. E o estamos porque de alguma maneira acreditamos que é impossível que essa substância não tenha sido enriquecida ou deformada por aquilo que, durante milênios, estivemos fazendo. Assim, ousarei dizer (não é uma hipótese metafísica, é apenas uma tímida concessão à esperança que jamais nos abandona) que mesmo em tal perspectiva poderíamos recolocar o problema de alguma vida depois da morte." E o crente Carlo Maria Martini, no mesmo livro: "Reconheço que existem muitas pessoas que agem de maneira eticamente correta e que muitas vezes realizam atos de elevado altruísmo sem ter ou dar-se conta de ter um fundamento transcendente para seu agir, sem ter como referência nem um Deus criador, nem o anúncio do Reino de Deus com suas consequências éticas, nem a morte, a ressurreição de Jesus Cristo e o dom do Espírito Santo, nem sua promessa de vida eterna. Com efeito, é deste realismo que eu deduzo a força daquelas convicções éticas que gostaria, em minha debilidade, que fosse sempre a luz e a força do meu agir. Mas quem não faz referência a esses ou a princípios análogos, onde encontra a luz e a força para operar o bem não apenas em circunstâncias fáceis, mas também naquelas que colocam as forças humanas à prova até seu limite, sobretudo naquelas que as colocam diante da própria morte? Por que o altruísmo, a sinceridade, o respeito pelos outros, o perdão dos inimigos são sempre um bem e devem ser preferidos, mesmo ao preço da própria vida, a comportamentos contrários? E como fazer para decidir com certeza, nos casos concretos, o que é altruísmo e o que não é? E se não há uma grande justificativa última e sempre válida para tais comportamentos, como é praticamente impossível que estes sejam sempre prevalentes, que sejam sempre vencedores? Se mesmo aqueles que dispõem de argumentos fortes para um comportamento ético têm dificuldades para agir em conformidade com eles, o que dizer daqueles que só dispõem de argumento fracos, incertos e vacilantes?"
sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O amor

"Amo as pedras, os astros e o luar que beija as ervas do atalho escuro. Amo as águas de anil e o doce olhar dos animais, divinamente puro. Amo a hera, que entende a voz do muro e dos sapos, o brando tilintar de cristais que se afagam devagar, e da minha charneca o rosto duro. Amo todos os sonhos que se calam de corações que sentem e não falam, tudo o que é infinito e pequenino! Asa que nos protege a todos nós! Soluço imenso, eterno, que é a voz do nosso grande e mísero Destino." Florbela Espanca A escolinha ficava ali no final da Karljohansgate, atrás da Zentralstation, no "bairro dos turcos", o Grønland, onde, aliás, hoje vivem africanos, paquistaneses e vietnamitas. Algumas das crianças passavam todos os dias junto ao muro da casa grande, onde tremulava a bandeira colorida, stars and stripes forever, que despertava a atenção daquele bando de pássaros, a pipilar o tempo todo, crocitando todas ao mesmo tempo, como se fossem o prenúncio da primavera, admirando o belo pavilhão colorido do país estrangeiro, acostumadas que eram à fria cruz central em todos os pavilhões escandinavos, mude só a moldura. Na escola, a Grunnskole, de onde vinham àquela hora, ainda não haviam aprendido que o espaço além daquele muro era território estrangeiro, pois não lhes ensinavam essas coisas de direito internacional e outras bobagens que os adultos inventam para criar barreiras entre si e se tornarem de irmãos em inimigos. Sabiam apenas que as árvores em seu país não tinham dono, pois o allemannsretter1 assegurava a todos poder entrar no terreno alheio e colher o que a natureza ali plantasse. Res nullius, res omnium, diriam elas, se soubessem aquela língua estranha que jamais haviam ouvido alguém falar por ali. E da qual ninguém necessitava para ser feliz. Naquele dia, na classe, a colega morena exibira ao menino loiro um sorriso diferente daquele que costumava entregar aos outros colegas, sempre gentil e tímida, aquele sensual botão vermelho no centro da testa. Era preciso retribuir-lhe a especial atenção. Mas como? Ali estava agora a oportunidade de mostrar sua valentia, andando sobre o muro alto da casa grande, à maneira de um nefelibata, palavra que ele jamais ouvira na vida para indicar-lhe aquele estado de enlevo que aquele par de olhos lhe produzia. E que, aliás, jamais nunca ouviria. Sob os olhos espantados das demais gralhas, o menino atravessou a rua, veio correndo, e conseguiu, com salto felino, alcançar o cimo do muro pretendido. Com algum esforço pôs-se de pé lá em cima, abriu os braços em cruz e digeriu gostosamente o aplauso dos colegas. E, mais do que aplauso, o sorriso especial da menina morena e de longos cabelos negros. E o sorriso foi o estimulante que o fez caminhar, lentamente, o estreito caminho que escolhera para mostrar à menina que era, de todos aqueles machos, a gralha que a natureza havia reservado para ela. Que, por sinal, ainda não tinha visto toda sua valentia, pois havia ainda que alcançar o cetro comprobatório de seu triunfo. Descer do muro, colher frutas silvestres e, supino esforço!, com o troféu na mão, galgar de novo o muro, trazendo à rainha o butim de sua pilhagem, viking romântico do século XXI. A vida, porém, é feita de surpresas, aprendeu ele, ao perder o equilíbrio e cair do lado de lá do muro, despertando um oh! dos colegas e um ar de preocupação no rosto da menina morena. Do outro lado do muro, o receio dos adultos diante de questiúnculas que vinham ocorrendo além, muito além daquelas terras geladas e que poderiam vir a molestá-los algum próximo dia, fê-los cercarem-se de cuidados desdobrados. E aquilo que se mostrava bosque era, na verdade, um campo minado, preparado para o pior. O fato é que as avezinhas não souberam explicar ao policial chamado, falando todas ao mesmo tempo, se o grito veio antes ou depois da explosão. O menino loiro, única pessoa autorizada pelas circunstâncias a esclarecê-lo, jamais poderá fazê-lo. E isso era o que importava. E a menina morena ficou sem as frutas silvestres, substituídas por uma dor profunda que lhe agulha o peito sempre que vê, na classe, aquela cadeira vazia.   Do livro Contos da Noruega, ainda inédito 1O poder do proprietário sobre as frutas silvestres vai somente até onde a vista alcança. O que ultrapassa isso é coisa de todos, "direito de todos os homens  
sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Quem fiscaliza os fiscais?

  Como sabido de quase todos os operadores do Direito, o Supremo Tribunal Federal, na ADIn 3.367 relatada pelo Ministro Cezar Peluso, quando julgou pleito apresentado pela Associação dos Magistrados Brasileiros contra a Emenda Constitucional que criou o Conselho Nacional de Justiça, além de afirmar, irrespondivelmente, a constitucionalidade do CNJ, deixou certo que a competência daquele Conselho é "relativa apenas aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do Supremo Tribunal Federal". Tautologicamente enfatizou que "o Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito". Sintomaticamente, embora julgasse necessário afirmar e repetir a superioridade hierárquica do Supremo Tribunal, esqueceu-se de aclarar a quem compete julgar eventual deslize atribuído a membro daquela Corte Superior. Realmente, segundo o art. 8° do Regimento Interno do STF, "compete ao Plenário e às Turmas, nos feitos de sua competência, (II) censurar ou advertir os (sic) juízes das instâncias inferiores e condená-los nas custas, sem prejuízo da competência do Conselho Nacional da Magistratura." Ou seja, nem mesmo o Plenário tem competência para impor sanção administrativa a ministro da Casa. Em outras palavras, a quem compete fiscalizar a conduta dos ministros da Suprema Corte? De fato, a LOMAN, como é conhecida a lei complementar 35/79, dita Lei Orgânica da Magistratura Nacional, prevê, no art. 35, sem abrir qualquer exceção, serem deveres dos magistrados, qualquer seja o patamar em que estejam: "I - Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício; II - não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar; III - determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem nos prazos legais; IV - tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que os procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência. V - residir na sede da Comarca salvo autorização do órgão disciplinar a que estiver subordinado; VI - comparecer pontualmente à hora de iniciar-se o expediente ou a sessão, e não se ausentar injustificadamente antes de seu término; VII - exercer assídua fiscalização sobre os subordinados, especialmente no que se refere à cobrança de custas e emolumentos, embora não haja reclamação das partes; VIII - manter conduta irrepreensível na vida pública e particular." Sendo isso assim, a quem compete fiscalizar se o ministro do STF mantém ou não conduta irrepreensível? Se comparece ou não pontualmente ao expediente? Se excede ou não injustificadamente os prazos para decidir ou despachar? Ao que parece, a ninguém. E tanto isso é assim que o índice do RISTF, quando se refere aos seus ministros, arrola todos os temas que lhes dizem respeito, aí não incluídas as palavras "dever" e "obrigação". Ei-los: Ministro do STF - antiguidade: regulação (art. 17); - apartes (art. 133, parágrafo único); - arguição de suspeição (art. 278); - assento: incompatibilidade (art. 18); - assento no Plenário (art. 144); - autor: pedido de vista (art. 134); - composição do gabinete (art. 357); - convocação nas férias (art. 78, § 3º); - convocação nos recessos (art. 78, § 3º); - direitos (art. 16); - garantias (art. 16); - impedimentos (arts. 277 e 287); - incompatibilidade (art. 16); - jurisdição nacional (art. 20); - manifestação oral (art. 133); - posse (art. 15); - prazos (art. 111); - prerrogativas (art. 16); - Presidente do STF: Relator e Revisor (art. 75); - Relator: atribuições (art. 21); - Revisor (art. 24); - suspeição (art. 277); - transferência de Turma (art. 19). No dia 2 de agosto último, deu entrada no Conselho Nacional de Justiça, protocolada sob o número 12.636, representação firmada por advogado, na qual, tendo como fato justificador a repercussão negativa causada pela ausência de ministro do STF para participar de mera festividade social ocorrida no Exterior, quiçá com despesas pagas por advogado (clique aqui) que, notoriamente, frequenta a Suprema Corte no interesse de sua clientela, era sugerido que aquele E. Conselho "editasse providências com vistas à preservação do respeito devido ao art. 37 da Constituição Federal". Citou-se então o contido no acórdão da Suprema Corte, proferido na ADC 12/DF, sendo relator o pranteado ministro Menezes Direito, no sentido de que, "dentro das atribuições do Conselho Nacional de Justiça está a de preservar os princípios que estão presentes no caput do art. 37 da Constituição. E um desses princípios é aquele relativo à moralidade". No corpo da representação, aludiu-se ao conhecido discurso proferido pelo ministro Carlos Maximiliano quando se despediu do E. Supremo Tribunal Federal (clique aqui) onde ele, com toda franqueza, confessa: "O constante receio de aparecer em público em desacordo com as exigências do cargo pesa sobre mim como um rochedo: ao penetrar, por tolerância e com os meus em grill rooms de cassinos em réveillons espalhados por todo o mundo, eu, embora jamais indigitado como baluarte contra as atrações do pecado, experimento algo do constrangimento do seminarista que, por maldosos companheiros convidados para uma tertúlia de família, de súbito sofresse o envolvimento traiçoeiro da ruidosa alegria de venustas beldades livres de compromissos e opulentas de audácia". "Cabe, portanto, a esse E. Conselho definir se tal comportamento, que, como se vê do noticiário, a muito se afigura absolutamente insólito, afeiçoa-se ou não aos princípios deontológicos previstos no mencionado art. 37 da Magna Carta" concluía a representação. A secretaria do CNJ, entretanto, com apoio na Portaria n° CNJ/52, de 20 de abril de 2010, "decidiu" devolver a representação ao signatário, esquecida de que, ao dar-se por incompetente, a "autoridade judiciária" deve, por amor à instrumentalidade do processo, enviar a peça à autoridade que reputa competente. É o que diz o art. 122 da lei n° 5.869/73. Conhece? Ou seja, delegou-se a um mero funcionário de secretaria a competência para "indeferir liminarmente" uma representação que menos não pretendia do que chamar a atenção daquele Conselho para um fato notório apto a desmoralizar o Judiciário, donde o cabimento do contido no art. 19, II, de seu Regimento Interno, que lhe atribui o poder de "zelar pela observância do art. 37 da Constituição Federal e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário". Em derradeiro caso, era de remeter-se a representação à Suprema Corte, para que ela definisse a quem incumbe fiscalizar os fiscais, coisa que a secretaria deixou de fazer. Fica no ar uma pergunta: quem apuraria a veracidade de uma notícia dizendo que um desses ministros é proprietário de prostíbulo, como ocorre alhures (clique aqui)?
sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Equívocos vários

  Uma jovem amiga minha reuniu-se com colegas de colégio e elas, todas já formadas em curso superior, puseram-se a falar de seus encantos e desencantos amorosos. As solteiras reclamando da escassez de homens na praça; as casadas reclamando da má qualidade do produto disponível no mercado. Uma delas, ao que consta, muito vistosa, juíza de Direito, não tinha de que reclamar: "Minha companheira é uma dona de casa de primeira linha". Espanto geral. "Ela lava, passa e cozinha como poucas. Até minha mãe reconhece isso". Ponto para minha amiga Berenice, essa Nelson Carneiro dos Pampas. Aliás, a intolerância que ainda grassa em nossa sociedade, onde um casal de homens não pode abraçar-se na rua que correm o risco de ser espancados, talvez com perda de uma orelha na refrega, pesasse embora a desconhecida circunstância de serem pai e filho (clique aqui), exige que se mobilizem mais policiais do que seria necessário se fosse um encontro de torcedores de futebol. Pois lá está o Dr. Brandão, meu dileto amigo, como delegado de plantão, atendendo a uns e outros casos de rotina quando chegam eles. Dois rapazes, cuja vestimenta escandalosa não deixaria a menor dúvida a respeito de suas opções generais (a palavra da moda não é "gênero", em lugar do surrado "sexo"?). Um deles dirige-se ao delegado: "Doutor, nóis é gay e queria...". O bem intencionado delegado, preocupado com a última flor do Lácio, qual um Bernard Shaw caboclo (clique aqui), corrige: "Nós somos, você quer dizer. Nós somos". E o rapaz, dando um saltinho e batendo palmas: "Ai que bom! Então o senhor entende nóis". E já que mexi em casa de marimbondo, reconto o que já citei alhures e que vem a talho de foice agora, além de permitir-me falar da figura ímpar de um grande amigo. Marco Antonio Monteiro, juiz dos mais sensíveis, notabilizou-se por vários mal-entendidos que produziu ou que com ele foram produzidos pelas parcas, que se prestam a entrar no anedotário, não fossem tais fatos coisa absolutamente verdadeira tal como narrado por ele próprio, quando podia fazê-lo, que, dentre as qualidades maiores que tem, está a de haver sido meu colega de escritório tanto quanto nosso terceiro sócio, o Ari Augusto Longo, logo que nos formamos os três e haver-me incentivado, o Marcão, para prestar exame de ingresso na Magistratura, coisa que ele mesmo só veio a fazer muitos anos depois. Nós ambos perdendo dinheiro em nome da vocação, que nosso escritório ia de vento em popa, diga-se. Quando se submeteu ao chamado vestibular para Direito, não contando com o trânsito da capital de São Paulo, já naquele tempo caótico, e dependente de ônibus como tantos de nós, chegou atrasado ao exame oral, que, naquele tempo, havia isso sim senhora!, ouvindo do presidente da banca examinadora que esperasse até terminar a arguição do último aluno, quando resolveriam se ele seria inquirido ou não, o senhor aguarde! Terminada a oitiva dos alunos que haviam comparecido no horário, muitos dos quais permaneceram sadicamente na sala à espera da solução a ser dada ao caso do retardatário, ele foi chamado pela banca, cujo presidente se pôs a censurá-lo duramente. "Imagine se o senhor já fosse um advogado e comparecesse a uma audiência depois de ela ter terminado, que ocorreria com seu cliente? Diga, que ocorreria? É preciso desenvolver desde agora o senso de responsabilidade, o senhor não acha?". O aluno, vendo que tudo estava perdido e, perdido por um perdido por cem, inventou uma explicação convincente para seu atraso. "Deu-se que eu me levantei muito nervoso por saber que seria examinado por Vossa Excelência, um professor sabidamente rigoroso, e com isso apertei em demasia a pasta de dente e praticamente esvaziei todo o tubo de pasta. Sabe lá o senhor o que é colocar toda aquela pasta de volta para dentro do tubinho?". O examinador olhou-o com olhos fuzilantes, mas o decano da banca, o prof. Sampaio Dória, homem de fino humor, explodiu em uma sonora gargalhada e o Marco Antonio não só foi admitido a fazer o exame oral como foi aprovado e passou a cursar a faculdade do Largo de São Francisco, onde, dentre outros, teve como mestre e professor de Direito Judiciário Civil, era assim mesmo que se falava naquele tempo, o José Antônio de Almeida Amazonas, que, em pleno exame oral, resolveu humilhá-lo: "O senhor, com esse nome, não deveria estudar Direito mas História", ao que o Marco Antonio retrucou: "E o senhor, com esse nome, deveria lecionar Geografia", encerrando-se o exame com risos de lado a lado. Ele, juiz, atendeu o réu, que era um notório homossexual que ganhava a vida fazendo o trottoir numa grande avenida da cidade sede da comarca e que havia sido condenado por alguma briga com um colega de profissão, assegurando-lhe a sentença o benefício do chamado sursis. O Marco Antonio, leitor emérito das reflexões do Pietro Ubaldi, procurava, a cada visita do réu, convencer o homossexual a mudar de atividade, ocupando-se de algo mais condizente com a moral e os bons costumes, onde já se viu? até porque fazer o trottoir logo logo o traria de volta à prisão, sabido que é o risco que se corre nesses locais, o senhor não acha? e mais isto e mais aquilo e o condenado acabou por convencer-se de que o zeloso magistrado tinha toda razão, resolvendo mudar-se para outra comarca onde morava seu irmão, homem influente, que certamente lhe arranjaria emprego, talvez até mesmo como motorista dos sobrinhos, o que acabou por acontecer. Isso, porém, não durou muito tempo porque os meninos pediram ao pai que contratasse outro chofer eis que os colegas de escola das crianças, olha só que maldade, doutor Marcos, caçoavam do jeito afeminado do motorista, que se despedia dos passageiros enviando-lhes beijinhos, veja o senhor, seu doutor, como é o preconceito! não fossem eles meus sobrinhos, que eu amo demais, demais mesmo, coisa que certamente eles não contaram aos colegas de escola, veja só o senhor! E eu agora estou de volta a esta comarca, onde vou voltar a fazer o trottoir, seja o que Deus quiser, ninguém quer contratar uma bicha escrachada como eu, doutor, diz ele dramático. E se põe a chorar convulsivamente e o juiz procurando consolá-lo, mesmo porque aquele choro já estava a despertar a atenção de advogados e outros passantes, vá a gente imaginar o que estão eles a conversar! E o Marco Antonio procurando valorizar a atividade do homossexual, quem sabe se não é uma profissão assim tão repugnante como pensa nosso preconceito. Se ele prefere isso a um trabalho nos moldes tradicionais, tudo bem tudo bem, é um direito dele. "Mas me diga uma coisa: dá para você se manter com o que você ganha? quanto você cobra cada vez que sai com um cliente?" pergunta ele. E o jovem, entendendo mal a curiosidade do bom e brasileiro juiz Magnaud, com um sorriso de gratidão no rosto já recomposto: "Ah, doutor, o senhor tem sido tão bonzinho comigo que para o senhor eu não cobro nada!".
sexta-feira, 29 de julho de 2011

Política e santidade

  "Empresa do senador Eunício Oliveira leva R$ 27 milhões da Petrobras sem licitação." O Estado de S. Paulo, 3/7/2011 "O afastamento da cúpula do Ministério dos Transportes por suspeita de corrupção pela presidente Dilma Rousseff deixou o ministro Alfredo Nascimento em posição insustentável." O Estado de S. Paulo, 4/7/2011 "Além dos negócios da mulher, o filho do ministro, Gustavo Morais Pereira, frequenta desde 2009 o noticiário e ocupa os procuradores do Ministério Público em investigações inconclusas até hoje. Gustavo é proprietário de uma empresa cujo patrimônio saltou de R$ 60 mil para R$ 52,3 milhões em seis anos." O Estado de S. Paulo, 8/7/2011 "Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Gilmar Mendes disse que a proposta do presidente do STF, Cezar Peluso, de antecipar o trânsito em julgado dos processos para a segunda instância pode gerar insegurança. 'Temo que, dependendo do tipo de aplicação, o remédio mate o doente', disse ele." O Estado de S. Paulo, 26/6/2011 "Em 9 de dezembro de 2008, agentes do FBI foram à casa do governador de Illinois, Rod Blagojevich, e o levaram algemado para a polícia. Processado, acabou condenado pelo Tribunal do Júri em 17 das 20 acusações e passará a morar numa penitenciária." Revista Veja, 6/7/2001 Confesso que relutei muito. Talvez tenha sido o belo filme "Deuses e Homens" (clique aqui) que me fez fazer um profundo exame de consciência, cujo resultado não poderia sonegar a vocês, candidatos à santidade como eu. Desde criança me ensinaram, aliás com omitida base no Evangelho, que cada vez que o meu dedo indicador aponta os defeitos de alguém, lá estão três dedos apontando para o meu peito. "Não julgueis", eis o mandamento que eu jamais consegui cumprir, fosse, por motivos óbvios, na vida pública, fosse, por minhas limitações éticas, na vida particular. E, lamentavelmente, ainda não consigo. Como diz o João Ubaldo, todos nós (é ele quem o diz) temos a mania de referir-nos a uma entidade abstrata que comete falcatruas, crimes, pecados ou que nome se dê a essas práticas nada edificantes de que os meios de comunicação dão notícia dia e noite, envolvendo principalmente políticos. "O brasileiro" é naturalmente desonesto, omisso, corrupto, corruptor e tudo o mais que consideramos defeito de caráter. Segundo o bom baiano, esse tal "brasileiro" é um ente abstrato, uma coletividade a que nem eu nem o leitor pertencemos. Isso me faz lembrar uma afirmação de meu pai, quando encerrava uma crítica, dirigindo-se aos seus ouvintes: "tirantes eu e vocês, ninguém presta". Minha leitura de jornal está sendo cada vez mais rápida. Não foi minha técnica de leitura que melhorou, mas meu interesse pelo noticiário é que diminuiu. Olho o título da matéria e passo adiante. O homicida é preso em flagrante e, antes de o corpo enrijecer, dependendo da eficiência de seu defensor, já estará de volta à rua. Talvez até apareça no enterro. O deputado fulano de tal, de quem jamais ouvi falar, gasta uma fortuna por mês para fazer propaganda de si próprio, o que é feito, obviamente, com verba pública. De que bolso sai esse dinheiro? O padre sicrano de tal diz que entre o estupro que vem a dar na gravidez da mulher estuprada e o aborto da inocente criança, o segundo fato é moralmente mais grave do que o primeiro. Aliás, diz o bispo beltrano de tal, nenhuma mulher será estuprada se não concordar com isso. E reproduz a velha história do juiz cretino, citada por Nelson Hungria, que entregava a caneta destampada à vítima do estupro. Depois de assinar o papel contendo suas declarações, a ingênua moça não conseguia enfiar a caneta na tampa, pois o tal sádico juiz mexia a mão para lá e para cá, querendo dizer que, se ele não concordar, a moça jamais enfiará uma coisa na outra. O candidato a estuprador também não, eis a conclusão implícita. Acho que o tal bispo pensa o mesmo das crianças que voluntariamente cedem aos convites infames de seus "orientadores espirituais", que os jornais, levianamente, chamam de "pedófilos". A questão moral que se coloca é: qual deve ser a atitude de cada um de nós diante de fatos como esses? Deve silenciar, invocando Mateus 7,1? Ocorre que, enquanto ele atribui a Jesus a determinação "não julgueis para não serdes julgados", João, que tem a mesma autoridade que ele, diz, no capítulo 7, versículo 24, algo um pouco diferente. A frase seria "não julgueis pela aparência, mas pela reta justiça". "Não julgueis levianamente", eis o que o Mateus queria dizer. Justiça, teologicamente falando, é um dos atributos de Deus, que ele comunica à alma dos seres humanos. Por ela nossa consciência distingue o Bem (que deve ser procurado) do Mal (que deve ser evitado). Ser justo, teologicamente falando, é tentar atingir a santidade, seguindo as regras de ouro ("faze ao próximo o que gostarias que ele te fizesse") e de prata ("não faças ao outro o que não gostarias que ele te fizesse"). Fácil, não? Em outros países, talvez não tão cristãos como o nosso, as pessoas saem à rua para reprovar a conduta de homens públicos cujo comportamento não corresponde ao que deles elas esperam. Não deixam o seu conforto apenas quando querem assegurar à pessoas do mesmo gênero o direito de trocarem carinhos em público. Ou reivindicar o direito de se embriagarem ou se intoxicarem com tabaco ou outras fumaças, mas diante de fatos mais genéricos, como a proibição do uso de vestimentas que, segundo as autoridades públicas, escondem perigosamente as feições das portadoras. Ou seria porque elas expressam com isso as convicções religiosas das portadoras? Certa ocasião, vi, numa cidade alemã, um curioso debate na televisão local. A prefeitura havia removido provisoriamente uma estátua equestre de uma praça pública, que estava sendo reformada. Terminada a reforma, a estátua foi reposta no mesmo local. Sem maiores explicações, o personagem e seu cavalo, que antes olhavam para a esquerda, agora, quando ali repostos, passaram a olhar para a direita. O que o programa desejava saber da população era isso: a estátua deve ficar como está ou voltar à posição anterior? Em Paris, não é raro atearem fogo em veículos para expressar discordância com alguma medida tomada ou a tomar pelas autoridades públicas. Em outros países, passeatas acabam em confronto com policiais, com inúmeros cadáveres como saldo. Nossa Lygia Fagundes Telles nos conta de seu tempo de juventude e dos movimentos estudantis contra o ditador de plantão, de que ela participou (clique aqui). E ainda não se falava em emancipação feminina, sutiãs queimados nem pílulas anticoncepcionais. Hoje que não temos ditador e que a liberdade de expressão do pensamento não pode ser impedida, onde estão as manifestações políticas de nossos estudantes? "Pleitear publicamente o direito de fumar maconha não deixa de ser manifestação política" talvez diga algum deles. "Bom proveito" digo-lhe eu, que me limito a sugerir-lhes que pesquisem a respeito da origem da palavra haxixe (clique aqui), que, por algum motivo, nos deu a palavra assassino. É o que está no Webster's Dictionary, verbete assassin: "hashshãshin, hashish users; hashish = hemp". Preciso dizer que o nome técnico de hemp é Cannabis Sativa, nossa popular maconha? Falei, provocativamente, em ética, falei em religião e falei em pesquisa. Há jovens dispostos a discutir princípios éticos? A pesquisar alguma coisa? Cultura serve para algo hoje em dia? Os exemplos de outros países podem ajudar-nos a tentar aperfeiçoar nossa claudicante democracia? Veja-se o caso da vizinha Venezuela. Seu presidente vai para outro país, por tempo indeterminado, ao que se diz para cura de moléstia, cuja natureza é segredo de Estado. O Congresso não faz nada, o vice-presidente silencia, os membros do Ministério Público estão em seus gabinetes, os membros das Forças Armadas nos quartéis e o chamado "povo" emudece. Quousque tandem? Quando a um grupo de políticos entrega-se um ministério dominado por empreiteiras, não será de admirar que um mero chefe de gabinete construa uma casa avaliada em mais de R$ 4.000.000,00. Se um dos subor(di)nados chegou a tanto, que dizer dos subor(di)nantes? E se alguém ameaça afastar um deles, ele avisa que "cairá atirando", o que leva os apaniguados a estender um colchão de penas de cisne para amortizar a queda e, certamente, aparar os projéteis. Digno de lembrar o que disse o historiador inglês Lord Dalberg-Acton, autor de "Essays on Freedom and Power" (clique aqui), aqui em tradução livre: "Eu não posso aceitar que não possamos julgar o Papa ou o Rei sob a presunção de que eles nada fizeram de errado, como fazemos com as pessoas comuns. Se, no caso, há uma presunção, ela deve ser exatamente no sentido contrário a isso, pois, aumentando o poder, deve aumentar a responsabilidade legal deles. Todo o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente. Grandes homens são quase sempre homens maus, mesmo quando exercem apenas influência e não a autoridade, ainda mais quando se despreza a presunção ou mesmo a certeza de corrupção por parte das autoridades constituídas. Não há heresia pior do que supor que o cargo público santifica o seu ocupante."
sexta-feira, 22 de julho de 2011

Pernas de pau

  "O Paraguai derrota o Brasil na cobrança de penalties." Dos jornais Que você faria se conhecesse um cirurgião que não conseguisse manipular um bisturi? Permitiria que ele operasse alguém de suas relações de amizade? Confiaria nele? Contrataria para trabalhar em seu hospital? Todos nós temos nossas limitações, sejam elas físicas ou psíquicas, como é de conhecimento óbvio. A questão está na superação dessas deficiências, para tentar evitar que elas nos impeçam de utilizar nossos demais atributos. Ou, lamentavelmente, tentarmos desempenhar atribuições incompatíveis com essas limitações. Como um advogado cego pode examinar os autos de um processo? Ou ler a tela de um computador? Eis uma pergunta que eu me fazia até o dia em que recebi um livro com dedicatória do autor, que eu conhecia apenas de nome: Francimar Torres. Esperto a mais não poder, agradeci a oferta e arrisquei: "Por sua letrinha arredondada, aposto que você é arquiteto". E ele: "Errou. Sou advogado e cego. A letrinha é da minha secretária". Graças a ele, aprendi muito sobre as habilidades dos cegos, dos quais eu conhecia alguma coisa graças ao Instituto Padre Chico, no bairro do Ipiranga, onde judiquei por uns bons anos. Além de jogarem futebol com bola de guizo, os alunos do tal instituto circulavam pelo bairro, geralmente aos pares, fazendo toque toque com a bengala branca. Certa ocasião, uma dessas duplas se encontrava num ponto de ônibus, em frente a um bar, onde houve forte discussão e um disparo com arma de fogo. Os dois cegos foram arrolados por algum sádico como testemunhas dos fatos (testemunhas "visuais"?). Na apuração de certa eleição, a turma apuradora começou a anular cédulas de votação aos magotes. Advertido por um fiscal de partido, fui ver o que estava acontecendo e fui esclarecido pelo presidente da mesa: "Todas essas cédulas só têm furinhos". É claro que ele jamais havia ouvido falar em Louis Braille (clique aqui). Fui durante breve tempo voluntário no Lar Escola São Francisco, uma entidade aqui de São Paulo que abriga pessoas com deficiência física, principalmente crianças, com a finalidade de prepará-las para terem uma vida tão normal quanto possível. Conheci ali algumas pessoas notáveis, como um casal de paraplégicos que se mantinha vendendo chiclete junto aos semáforos. Casaram-se e tiveram um filho, que corria pela casa. Com minha autoridade de "pai adotivo" deles, meti cadeados de braço longo em todas as janelas da casa, pois se aquela criança sapeca resolvesse subir numa cadeira para olhar o mundo lá fora pela janela, nenhum dos pais chegaria a tempo de impedir um desastre. Tentei convencê-los a terem emprego com registro, mas não deu certo, pois eles ganhavam muito mais no emprego informal. Fui fiador do contrato de locação do imóvel onde residiam e jamais fui importunado pelo locador. Disseram-me que tinham condição de adquirir imóvel, mas não tinham como comprovar renda, o que os obrigava a morar em imóvel alheio. Ali também conheci o "Caiaque", um rapaz que tinha apenas uma perna. A outra era uma improvisação feita de madeira, que se apoiava em uma base mais larga, que parecia um barquinho. Daí seu apelido. Como membros superiores ele tinha dois semi-braços, cada um com um único dedo, enorme. Tinha lábio leporino e voz roufenha. Jogava futebol, mesmo porque, segundo as regras ali vigentes, ele poderia "chutar" com a muleta. Certa ocasião, durante uma partida, a bola tocou naquele dedo único de um dos braços. O juiz marcou falta, que, na linguagem popular, ainda se chama "hands". Ele protestou veementemente, com aquela voz rouca: "Que rends é esse se nem mão eu tenho?" Certa ocasião ele me disse que estava prestando concurso para laboratorista. Dentre suas atribuições estava a manipulação de microscópio. Constrangidamente, indaguei-lhe como ele faria isso. "Dá pra encarar, dá pra encarar" foi sua resposta. Escrevi tudo isso para preparar o espírito do leitor para um comentário a respeito de nossa seleção de futebol, que acaba de entrar para o Guinness Book graças ao feito notável de não haver consignado um único e mísero gol na cobrança de penalties. Em lugar disso, vou preferir um eloquente silêncio. Ao som de um violão tocado por um artista excepcional, que não é argentino, nem uruguaio, nem paraguaio, mas nicaraguense (clique aqui). Bom proveito, com direito a bis (clique aqui).
sexta-feira, 15 de julho de 2011

Poesia numa hora dessas?

  À Renata Roman Jimenez e à memória de nosso contemporâneo Mário Chamie Dizia o colega Eça de Queirós, "bacharel como toda a gente", que a poesia destina-se a maquiar a vida. Sobre a crueza da realidade que se ponha a suavidade da poesia. Ou, "sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia". Escolha. Já o coleguinha Vinicius dizia que o amor é efêmero, o que ele mesmo provou deixando meia dúzia de viúvas. Só que, em lugar de dizer isso cruamente, lançou mão de um manto diáfano sob a forma de um circunlóquio, o que quer que isso signifique: "De tudo ao meu amor serei atentoantes, e com tal zelo, e sempre, e tantoque, mesmo em face do maior encanto,dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momentoe, em seu louvor, hei de espalhar meu cantoe rir meu riso e derramar meu prantoao seu pesar ou seu contentamento. E, assim, quando mais tarde me procurequem sabe a morte, angústia de quem vive;quem sabe a solidão, fim de quem ama, eu possa me dizer do amor que tive:que não seja imortal, posto que é chama,mas que seja infinito enquanto dure." Donde a indagação do filho do Érico que encima estas mal traçadas. Pois o Fernando, por uma de suas várias Pessoas, desmascara-nos todos, taxando-nos de mentirosos, que outra coisa não são aqueles que fingem. Se errar é fazer, por descuido, juízo destoante da realidade a que pretendeu referir-se quem o fez, mentir é falsear a verdade dolosamente. E fingir, que será senão mentir sem palavras? Os biógrafos de Fernando Pessoa não se demoram num assunto-tabu: a preferência sexual do poeta. Não que o assunto seja relevante, mas, ao dizer que o poeta é um fingidor (clique aqui), estaria ele falando de si? Cita-se, a propósito, a correspondência mantida com Ofélia Queiroz, que, entretanto, sugere a ocorrência de um cansativo amor platônico entre ambos. Ao contrário do nosso Carlos Drummond de Andrade que, além de tudo o que escreveu em vida, deixou para a posteridade o livro O Amor Natural, que é considerado o livro mais ousado do poeta. Tanto que ele exigiu que tal livro só fosse publicado após sua morte, pois, tratando do amor com uma linguagem mais ousada, temeu que fosse considerado pornográfico. Aliás, durante 35 anos teve uma amante, Lygia Fernandes, 25 anos mais nova do que ele e que estava a seu lado quando ele morreu, 12 dias depois da partida de outro amor de sua vida: a filha Maria Julieta (clique aqui). Pois houve quem lhe puxasse, atrevidamente, as excelsas orelhas ao Fernando, diante do que está dito no Livro do Desassossego, do seu heterônomo Bernardo Soares: "Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele um conceito superficial e decorativo." "Esse poeta é um impostor!Com que cinismo nos mentea fazer versos de amor,coisa que ele não sente. Ó poeta enganador, com semblante assim tão triste,como então falar de amorse isso jamais sentiste? Se máquina tens no peito- comboio fora do trilho -teu caso não tem mais jeito,por mais que esbanjes teu brilho. Ó guardador de cordeiro,ó meu prezado Fernando,disse o vate brasileiro (clique aqui) que amar se aprende é amando." E o carioca de olhos verdes? Como não falar dele? Houve tempo em que, para esconder a crueza da realidade, ele nos mandava simplesmente jogar bosta na Geni (clique aqui). Não é que o sessentão resolveu escandalizar outra vez, inventando uma mulher sem orifício, fosse ela estátua ou santa? E tome bordoada (clique aqui)! Que, sábio a mais não poder, ele previu no próprio poema. "Hoje topei com alguns conhecidos meus.Me dão bom dia cheios de carinho,dizem pra eu ter muita luz, ficar com Deus.Eles têm pena de eu viver sozinho.Hoje a cidade acordou toda em contramão.Homens com raiva, buzinas, sirenes, estardalhaço.De volta a casa, na rua recolhi um cão,que de hora em hora me arranca um pedaço.Hoje pensei em ter religião,de alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício.Por uma estátua ter adoração,amar uma mulher sem orifício.Hoje, afinal, conheci o amor.E era o amor uma obscura trama.Não bato nela, não bato,nem com uma flor.Mas, se ela chora,o desejo me inflama.Hoje o inimigo feliz veio me espreitar.Armou tocaia lá na curva do rio,Trouxe um porrete e um porreta pode me quebrar,mas eu não quebro não,porque sou macio, viu?" E que dizia o Mário, nosso respeitadíssimo veterano, que saía quando nós entrávamos? "Cava,então descansa.Enxada; fio de corte corre o braçode cimae marca: mês, mês de sonda.Cova. Joga,então não pensa.Semente; grão de poda larga a palmade ladoe seca; rês, rês de malha.Cava. Calcae não relembra.Demência; mão de louco planta o vaude pertoe talha: três, três de paus.Cova. Molhae não dispensa.Adubo; pó de esterco mancha o regode longoe forma: nó, nó de resmo.Joga. Troca,então condena.Contrato; quê de paga perde o ganhode horae troça: mais, mais de ano.Calca. Cova:e não se espanta.Plantio; fé e safra sofre o homemde mortee morre: rês, rés de fomecava."
sexta-feira, 8 de julho de 2011

Virtude e Terror

  "Sem o terror, a virtude é impotente; sem a virtude, o terror é funesto." Maximilien Robespierre Tenho tido ultimamente algumas experiências que me parecem necessário deixar registradas, quando mais não seja para que os mais novos possam comparar opiniões e tirar as conclusões que eventual debate sobre elas possa justificar. Se é que alguém está disposto a debater ideias hoje em dia. Como teria dito o Bernard Shaw a alguém que o procurara para trocarem ideias: "seria preciso que você tivesse pelo menos uma". Levo o boi até a beira do córrego. Isso de ele beber a água ou não é lá com ele, como se diz em Ribeirão Preto. Os alunos que tive ao longo da vida, por exemplo, insistiam em terminar as petições dizendo "nestes termos, pedem deferimento", ao que eu retrucava: "que acontecerá se você omitir essa inutilidade?" Meu pai sempre advogou assim, era a sábia resposta. Pensar dói. Começo com uma notícia lida no Migalhas: "Nem um pouco contente em saber que o delegado de polícia A. R. tinha obtido HC no STF, o MP tratou de em oito dias formular novas denúncias contra ele, pedindo novamente sua prisão, o que foi decretado pela justiça Federal de Campinas." Não hei de morrer sem ver um promotor ser processado pela prática do crime de abuso de autoridade. É só seus superiores quererem cumprir a lei. Certo dia, eu aguardava minha vez e ouvi um julgamento realizado no TJ/SP, seção criminal. Era uma revisão, que foi indeferida por maioria de votos, estando ausente um dos membros do tal grupo de câmaras. O tema era uma questão jurídica, isso de caber ou não caber evolução no regime prisional em crime como aquele. O presidente da sessão, adepto da tese mais liberal, não pôde deixar de exclamar para quem quisesse ouvir: "se o juiz fulano de tal estivesse aqui presente, haveria empate na votação, e, regimentalmente, isso beneficiaria o peticionário. Com a ausência daquele juiz, venceu a tese que sempre vem sendo aqui derrotada. A justiça dos homens é mesmo uma loteria!" Sábias palavras, doutor Vico Mañas. Trago isso como resposta aos que defendem a existência de um sem número de recursos, para que se chegue à almejada Justiça. Tudo o que aquele peticionário pode fazer é lamentar sua falta de sorte. Segundo caso: impetra-se um pedido de Habeas Corpus porque a decisão que decretara a prisão preventiva de dúzias (acredite: dúzias!) de indiciados não especificava a atuação de cada qual, como é de rigor. Distribuído tal pedido, o relator nega a tutela jurídica pedida liminarmente porque, "segundo o relatório do delegado de polícia", havia isto e mais aquilo em relação àquele paciente especifico. Em outras palavras, minha querida Ada Grinover, o relator do HC aditou a decisão que ele deveria reconhecer ser nula! Quer o número do processo? É só me pedir que eu digo. Terceiro caso: representante do Ministério Público baixa uma portaria, instaurando um "inquérito civil", no qual ele apuraria irregularidades cometidas por advogados e juízes. Sim, doutor Cândido Dinamarco: "possível envolvimento de Juízes de Direito, Procuradores do Estado, Advogados, Peritos e Funcionários da Justiça" é o que nos diz a tal portaria. Claro que aí não estão incluídos os Promotores de Justiça porque estes, como sabemos todos, deixa pra lá. Pague-me um chope e eu lhe mostro cópia da tal portaria, para incluir no seu próximo livro. Isso tudo me remete a 1964, ano em que iniciei minha judicatura, começando aí a época que se celebrizou pelo combate ao terrorismo e à corrupção. Ou, no dizer do Robespierre, chegar-se à virtude, não mais como uma escolha pessoal, mas como algo imposto coletivamente pelo terror e a sombra da oportuna invenção do doutor Joseph Ignace Guillotin. O Brasil, segundo a UDN e a ala conservadora da Igreja Católica, estava tentando levantar-se do berço esplêndido, saindo dele, porém, pelo lado errado da cama. Era preciso mandá-lo de volta para onde sempre estivera. Tudo havia começado com a eleição de Jânio Quadros, uma espécie de Luiz Inácio sem o jogo de cintura do ex-torneiro mecânico do ABC (responda depressa: em que empresa e em qual período o ex-presidente da República trabalhou como torneiro mecânico?) e que teve o cuidado de cercar-se de gente diferente daquelas que haviam levado Getúlio Vargas a sair da vida e sair também da história. Pois foi justamente o fato de um estancieiro gaúcho, cria do Getúlio (alguns boquirrotos chegaram a sugerir algo mais do que amizade entre o ex-membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul e a mãe de seu futuro Ministro do Trabalho, mas tudo não passou de fofoca, segundo os bens informados), homem sem qualquer vocação política, haver assumido a Presidência da República que motivou um basta. Dizia-se então que tudo teria sido tramado por nossos eternos tutores lá de cima, tanto que, nas paredes da Faculdade do Largo de São Francisco, podia-se ler uma pichação: "Chega de intermediários. Lincoln Gordon para Presidente!" Lincoln Gordon era o embaixador dos Estados Unidos da América do Norte nos Estados Unidos do Brasil, como então se dizia. Que, aliás, a esquerda chamava de Brasil dos Estados Unidos. Entre os moralizadores da nação brasileira estava o governador Adhemar de Barros, cuja vida política se fizera à luz de um slogan que os marqueteiros da época (ainda não se falava oficialmente nisso), por iniciativa do chefe, ou com a tolerância dele, haviam espalhado pelo Brasil todo: "rouba, mas faz!" Você me dirá que nos últimos tempos esse slogan foi repetido à exaustão, mas esses novos líderes devem um bom dinheiro de direito autoral àquele anônimo marqueteiro. Que, aliás, criou uma marchinha de carnaval, cantada pelo Nelson Gonçalves, que dizia simplesmente o seguinte: "Quem não conhece,quem não ouviu falarna famosa caixinha do Adhemar?Que deu livros, deu remédios, deu estradas.Caixinha abençoada!" Encurtemos a história: instauraram-se Inquéritos Policiais Militares, os famigerados IPMs, que tiveram como assessores membros do Ministério Público e que se notabilizaram pela arbitrariedade, mesmo porque, como diria George W. Bush, se não estivesse na ocasião ocupado em tomar conta de uma escolinha perto do ranch de seu papai, estava em jogo a moralidade da nação, o que eles chamavam de "segurança nacional". Não sei quantos juízes foram ceifados por esses brutamontes. Conheci três deles. O primeiro era um gozador, que se dizia comunista e havia publicado um livro que causou furor: "A Justiça a Serviço do Crime", relançado recentemente por seus herdeiros. Em sua folha de antecedentes constava ser ele articulista regular do jamais esquerdista jornal O Estado de S. Paulo, onde publicava crônicas com o perigoso codinome de Mathias Arrudão. Outro que conheci era um juiz budista, que, segundo se dizia, havia mandado retirar da sala do júri a figura de um homem semi-nu, pregado a uma cruz, pois o tal não estava trajado adequadamente para o ambiente solene do fórum. Na verdade, o Jorge havia cometido alguns pecados graves, como julgar procedentes reclamações trabalhistas contra fazendeiros, entendendo que o salário-mínimo deveria ser pago a cada membro da família e não um só salário-mínimo para a família toda, como até ali vinha ocorrendo. Passarinho que come pedra deve saber qual a elasticidade do seu esfíncter anal, madame. Quer que eu seja mais claro? O terceiro juiz cassado era um homem que se havia antecipado a seu tempo, falando dos direitos da concubina e defendendo a necessidade de os juízes serem acompanhados em sua evolução profissional, devendo o Tribunal afastar aqueles que se mostrassem inadaptados ao mister para o qual haviam sido nomeados. Isso de "compreender" os desmandos de juízes apenas porque eram filho deste, sobrinho daquele ou genro daquele outro tinha de acabar. E dizia isso com a autoridade moral de ser pai do Bita, um juiz simplesmente exemplar, que, muito antes dos 70 anos, pulou fora do barco e honrou a advocacia, como honrara a magistratura. Como aquilo não era motivo oficial suficiente para a cassação do velho Moura Bittencourt, os homens da "redentora", como lhe chamava a esquerda, aproveitaram-se de que o Edgard havia estado em Cuba. Logo Cuba? Que que esse homem foi fazer em Cuba? Aí tem coisa! Ainda se ele fosse dado ao salutar hábito de freqüentar algum lupanar nacional, ou algum cassino em Las Vegas, como se dizia que alguns de seus colegas costumavam fazer, vá lá. Mas, Cuba? Era presidente do Tribunal de Justiça na época um homem bom, um caipira jogador de truco. Pois vendo que muitos juízes estavam concedendo habeas corpus para livrar pessoas detidas arbitrariamente das garras dos truculentos homens dos IPMs, como alguns deveriam fazer hoje com os abusos de certos promotores de Justiça, ele baixou uma portaria, recomendando que os juízes atentassem para o fato de estarmos vivendo um regime jurídico de exceção. Essa rara coragem do Euclides Custódio da Silveira custou-lhe a incompreensão de muitos, até mesmo de alguns daqueles que, diante dessa advertência, conseguiram manter-se no cargo. Ocorrem-me, à vista disso tudo, alguns momentos históricos que jamais deveriam sair da memória de todos nós. Um deles foi a Santa Inquisição. Santa porque foi uma oportunidade única de os pecadores termos nossos pecados queimados. Como ouvi de certo sacerdote quando eu judicava em Araraquara, ao morrermos, a alma de nós pecadores, saindo de nosso corpo, não sobe para os céus, como se dá com os santos, mas desce para o inferno, que, como demonstra a ciência, fica no centro de nosso Planeta, local habitado apenas por uma substância incandescente, o magma, que, ardendo a uma temperatura entre 650 e 1.200 graus Celsius, é mais do que suficiente para queimar nossas almas pecadoras e, assim, nos transformar em santos. Quando perguntei ao tal padre como é que o fogo, que é material, pode queimar a alma, que se diz ser imaterial, ele me disse que estava com pressa e ficava para outra vez, pois tinha de ir à Casa da Criança, onde costumava lanhar uns capetinhas mal-comportados, o que acabou por lhe custar processo criminal algum tempo depois. Para não alongarmos esta conversa, recomendo-lhe a leitura do livro "Manual da Inquisição", escrito pelo abade espanhol Nicolau Eymeric, com apresentação do nosso Leonardo Boff. Acho que o Robespierre leu.
sexta-feira, 1 de julho de 2011

Recordando Summerhill

  "Os ministros do STF liberaram, por unanimidade, a realização da Marcha da Maconha. Com 8 votos, o Supremo decidiu que as manifestações a favor da droga podem ser feitas no país. Para o Supremo, proibir a marcha é violar a liberdade de expressão e de reunião de pessoas." Dos jornais Você que, como eu, tem netos, deve estar preocupado com o futuro deles. É ou não é? Bons tempos aqueles em que certas coisas nós, crianças, dizíamos em voz baixa, depois de olhar para um lado e depois para o outro, para não sermos ouvidos por nossa mãe, ou, pior ainda, pela professora. Ou certas coisas que fazíamos atrás do muro. Se descobertos, era puxão de orelha na certa, quando não nos esfregavam pimenta malagueta na língua. E tome castigo, coisa que a modernidade condena veementemente. Onde já se viu traumatizar as crianças? O fato é que passamos a adotar, por comodidade ou ignorância, mais do que por convicção, os métodos da Summerhill School. Lembra (clique aqui)? Imagine que teu neto está aprendendo a ler, aí por volta dos 4 anos de idade. Antes de você se levantar da cama, ele já compulsou o jornal do dia, não ficando apenas nas histórias em quadrinho, como ocorria conosco aí pelos 7 ou 8 anos. Quando você menos espera, ele lhe pergunta, assim de enxofre, o que é currupissão. Você então aproveita para exibir-se: "Grosso modo, podemos dizer que a corrupção consiste em cobrar para fazer um trabalho que você já ganha pra fazer; ou cobrar para não fazer um trabalho que você já ganha para não fazer; ou receber para fazer um trabalho que você já ganha para não fazer; ou então cobrar para não fazer um trabalho que você ganha para fazer. Entendeu?" E ele: "Só o grosso modo. Quanto ao resto, você está me devendo." Dias depois ele quer saber o que significa alcaide. E porque a mulher do alcaide tem de ir para a cadeia com ele. Mais ensancha para tua exibição. "Houve outrora um homem destemido, respeitado por seus subordinados, conhecido como Cid, o campeador. Acho que na Espanha, talvez influência da presença ali dos mouros, pois Al Qaid significa aquele que conduz. Homem impertérrito e de moral irreprochável. Quando ele morreu, em batalha, em lugar de ser enterrado, ele foi empalhado e colocado sentado no mesmo cavalo, para que os inimigos pensassem que ele era imortal. Só o nome de El Cid causava pânico às hostes inimigas." Ele te interrompe: "Até hostes entendi tudo. Mas que tem a ver isso com a prisão dos alcaides?" Aí você pontifica: "Ao que parece, a palavra alcaide é corruptela de El Cid, designando a pessoa escolhida para administrar uma cidade." Ele não deixa barato: "El Cid e a mulher costumavam passar uns dias na cadeia, até obter uma liminar que os pusesse em liberdade? Ele também fundou um partido político que não era de cima nem de baixo, nem do centro, nem da direita e nem da esquerda?" Você pensa em dizer que "a gente nunca sabe", mas teme que ele ainda não esteja preparado para esses trocadilhos. Dá um beijo na testa dele e entra no carro, rumo ao trabalho. O fundador do tal colégio Summerhill, na Inglaterra, foi o educador Alexander Sutherland Neill, figura controvertida, cuja pedagogia tinha a ver com as teorias de Wilhelm Reich, figura mais controvertida ainda (clique aqui). Reich, nascido na Áustria, sustentava que é preciso uma mudança radical nas relações humanas. Ele equiparava a separação de um bebê do corpo da mãe na hora do parto à morte de Cristo, causa da psicose, que levava ao fascismo. Notabilizou-se pela transcendência que dava ao orgasmo, êxtase que até mesmo alguns teólogos equiparam à visão beatífica de Deus, ou parusia. Tão revolucionárias eram as ideias de Reich que veio a ser expulso tanto da Sociedade Psicanalítica como do Partido Comunista, esta devido a suas denúncias contra o autoritarismo reinante. Perseguido pelo nazismo, instalou-se nos Estado Unidos, onde passou a pesquisar em diversas áreas. Em 1956, foi preso por se recusar a atender a uma intimação judicial para comprovar algumas de suas denúncias. Um ano depois, morreu na cadeia, deixando um legado para as gerações futuras, que ainda se surpreendem com sua originalidade e rebeldia. Segundo A. S. Neill, a felicidade é fundamental para o sadio desenvolvimento dos seres humanos, e a felicidade só pode ser alcançada com o desenvolvimento do senso de liberdade. As escolas tradicionais inglesas, como é sabido, privavam de liberdade seus alunos, com regime disciplinar rígido, o que, ao ver dele, era a causa da tristeza dos ingleses. Isso era reflexo da infelicidade vivida pelas crianças, que traria sérios problemas psicológicos na vida adulta. O colégio Summerhill serviu para aplicação das ideias de seu fundador, completamente opostas à linha hegemônica vigente naquela época. Ali os jovens eram estimulados a aprender em um ambiente de liberdade e de responsabilidade. Aquele educador partia do princípio de que a Humanidade está doente e essa doença decorre do tratamento repressivo que as crianças recebem numa sociedade patriarcal, especialmente nas questões ligadas à repressão sexual, como quando associadas a normas religiosas, na mesma linha das reflexões de Reich. Para ele, toda criança tem direito à liberdade, especialmente a de expressão, e um grupo de crianças se autorregula naturalmente, estabelecendo, em conjunto, suas próprias normas. Dizia ele que a educação sem liberdade resulta numa vida que não pode ser integralmente vivida, pois tal educação ignora quase inteiramente as emoções da vida. Como tais emoções são dinâmicas, a falta de oportunidade de expressão acaba resultando em sentimento de insignificância e, em decorrência, na prática de atos hostis. Uma educação que cuida apenas do cérebro é capenga. Se as emoções tiverem livre expansão, o intelecto saberá cuidar de si próprio, dizia ele. Em Summerhill, as crianças não são obrigadas a assistir às aulas e, além disso, as decisões da escola são tomadas em assembleias onde todos votam, incluindo professores, alunos e funcionários. Para o autor, a experiência nessa escola mostrou que, sem a coerção das escolas tradicionais, os estudantes orientam sua aprendizagem através do seu próprio interesse, ao invés de orientar pelo que lhe é imposto. Neill criticava a escola tradicional por enfatizar demais o lado racional das pessoas, em detrimento do lado emocional. Nesse sentido, em sua escola, o teatro, a dança, os trabalhos manuais, ganham um destaque grande frente às disciplinas tradicionais. As aulas das matérias convencionais existem, mas não são o centro da escola. Dizia ele que admirava mais aqueles que possuíam habilidades para o trabalho manual do que aqueles que se destacavam no trabalho intelectual. A propósito, talvez aquele teu neto de 4 anos, que é o xodó da tia, que não para de beijá-lo, um dia venha a aborrecer-se com isso, quando não deixará por menos: "Porra, tia. Chega!" E fazendo meio círculo com o braço direito e apontando com o indicador para a porta: "E cai fora daqui!" É esperar para ver.
sexta-feira, 17 de junho de 2011

Ontem e hoje

  A excelente jornalista Eliane Cantanhêde, que não abre mão do chapeuzinho, mesmo não havendo sol e nestes tempos de rebeldia ortográfica (que raio de acordo é esse que só o Brasil assinou e o governo Federal não reconhece?), em edição recente da Folha de S.Paulo, faz um oportuno comentário entre as verbas destinadas aos luxos submarínicos de nossa Marinha de Guerra, aos caças supersônicos que ora provirão da França, ora da Suécia e ora dos EUA, e os minguados reais destinados aos pés de poeira, que são aqueles que, no dizer de um especialista, resolvem a parada na hora do aperto. Ou da guerra. Quais as reivindicações do Exército? "Não temos comida para todo mundo" afirma um respeitável oficial. Por força disso, segundo aquela arguta jornalista, "soldados e oficiais vão praticamente repetir as jornadas semanais do Congresso. Não vão mais trabalhar nem na manhã de segunda, nem na tarde de sexta-feira. Para fazer economia". Tenho algo a dizer sobre isso. Quando iniciei a prestação do serviço militar já era funcionário público estadual (por concurso!) e havia acabado de ingressar na Faculdade do Largo. Como os sobreviventes, faremos jubileu de ouro no próximo ano, faça aí as contas para saber de quando estou falando, que estou sem a calculadora à mão neste momento. Fui designado para servir no Batalhão de Saúde, ali no Cambuci, tendo ao lado o também universitário Kamel Abude, dentre outros que, por distração ou safadeza, deixaram passar in albis o prazo para o exame do C.P.O.R. Graças aos meus nunca negados dotes datilográficos, passei a dedicar a agilidade dos meus dedos à Companhia de Comando, centro burocrático de um batalhão, como sabeis, assessorando o sargento Laureano, que, a bem da verdade, me expulsava periodicamente da sala sob um argumento irrespondível: "Vá com esse teu Direito Romano estudar em algum canto do quartel". Graças a essa simpática figura e graças ao meu hollerith do departamento de Águas e Esgotos, que me assegurava um soldo muito maior do que os demais pés de poeira, não posso queixar-me daqueles 10 meses e 10 dias em que, tal como o George W., servi à pátria com denodo, seja lá o que for isso. O comandante era o cel. Cavalcanti de Albuquerque, que, como toda a oficialidade, estava mais para a Medicina do que para a guerra. Vez em quando ele se sentava a meu lado e tentava convencer-me a fazer carreira militar, pois via em mim um futuro auditor militar. Eu não dizia nem sim nem não, mas o fato é que talvez muito revolucionário do pós 64 passou por maus momentos porque até então não me passara pela jovem cabeça ter como atividade profissional julgar a conduta alheia. Assim é a vida. Como uma de minhas atribuições era preparar ofícios e relatórios, lá iam para as esferas superiores as prestações de contas das inúmeras marchas e caminhadas que, segundo quem rascunhava aquilo, nós havíamos feito no mês passado. Também eram comunicados os exercícios de tiro que a tropa realizava de tempos em tempos. Certa manhã, baixa no quartel uma equipe da P.E., que se põe a recolher Pedros e Paulos, levando-os sei lá para onde, a fim de esclarecerem isto e mais aquilo relacionado com os tais relatórios. À soldadesca nunca soubemos o que aconteceu com os detidos, como é óbvio. Eu, de mim, chegado o termo final da convocação, dei baixa "apto a terceiro sargento", como constou do pergaminho que me foi então entregue, sem ter jamais empunhado um revólver, um fuzil, um mosquetão ou mesmo um reles estilingue. Quanto às marchas, havia lá um soldado que solava um violão que nem gente grande. Graças a ele, tínhamos não só marchas, como sambas e boleros.
sexta-feira, 10 de junho de 2011

Que país é este?

  "Procurador-geral manda arquivar representação contra o chefe da Casa Civil" (Dos jornais) O segredo para obtenção de uma pizza de qualidade está na escolha de componentes confiáveis. Além disso, não se deve descurar dos antecedentes do processo propriamente dito. Deve-se preferir forno a lenha, pré-aquecido com toda antecedência, condição indispensável para o sucesso na empreitada. Aqui, a pressa é inimiga da perfeição. Lembre-se: o tempo é elemento fundamental desse preparo. Para uma pizza de bom tamanho, serão necessárias umas 40 xícaras de farinha de trigo especial peneirada, 300 gramas de fermento biológico (fisiológico também serve), 10 colheres de sopa de açúcar refinado, 10 xícaras de leite morno, 10 colheres de sal, óleo de soja e mais farinha de trigo para dar liga à massa. Lembre-se: a homogeneidade da massa é fundamental. Prepare o fermento, desmanchando-o no leite morno e acrescentando o açúcar e 10 colheres de farinha de trigo. Cubra com um pano limpo e esconda no armário pelo tempo necessário a que se tenha certeza de que o forno está bem aquecido. Após esse tempo, acrescente aos poucos mais farinha, o sal e o óleo, misturando tudo muito bem, para não haver bolhas. Ressalte-se que na massa não pode ir muito óleo, senão a massa fica dura e o resultado final será insatisfatório. Sove bem a massa até ela não grudar mais nas mãos e ficar bem lisinha. Isso demora um pouco, mas quanto mais se sova, mais a massa fica macia por dentro e crocante por fora depois de assada. Quando a massa estiver lisinha, absolutamente confiável, espalhe um pouco de óleo entre as mãos e unte a bola de massa, não pensando em fazer economia de óleo. Ponha a massa novamente na vasilha, cubra com o pano, leve novamente ao armário, ali deixando por um bom tempo, até que quase ninguém se lembre mais dela. Após descansar bastante, tire a massa do armário, divida em várias partes, que serão esticadas com um rolo compressor, até ficarem bem uniformes. O rolo compressor é fundamental agora. Espalhe o molho vermelho, de tomate, ou molho verde, de espinafre, e leve de volta ao armário, onde permanecerá pelo tempo necessário a que o molho vermelho ou o molho verde façam o efeito desejado. Leve cada peça ao forno, ali deixando pelo tempo necessário a que fique tostada. Retirando-a do forno, ela será coberta com o recheio preferido. Coloque queijo mineiro sobre a massa e leve novamente ao forno, deixando ali até derreter o queijo. Pronto: a pizza está pronta.
sexta-feira, 3 de junho de 2011

Crimes da modernidade (Os)

  "Quinto andar. Artigos femininos!" exclamou o ascensorista, como se falasse com os botões à sua frente. A moça de rabo de cavalo, blusinha curta, ligeira barriguinha aparecendo antes de a calça comprida jeans começar, foi cavando, em silêncio, seu caminho por entre os demais passageiros e deu de cara com o homem grisalho que tentava entrar antes de esperar saírem os que iriam sair. "Sóri" disse ele, com sotaque de Piracicaba, afastando-se de lado. Ela nem levantou os olhos, passou por ele e seguiu em frente. Ele desistiu de entrar no elevador, rodou nos calcanhares e passou a caminhar ao lado dela. "Que que faz esse cara no setor de artigos femininos?" perguntou ela a si mesma. Tudo o que ela não queria era uma companhia masculina. Andava deprimida depois de mais um rompimento de uma relação sentimental, como se diz hoje. Acabara de descobrir que o primo de seu noivo, com quem ele morava há algum tempo, era algo mais do que apenas primo do seu noivo. Depois de muito toc toc duplo no corredor vazio do shopping, ele arriscou: "quén ai peiú som cófi?" Ela deu um meio sorriso, desejando por um fim naquilo. "Uai nóti?" respondeu. Ali mesmo no corredor havia uma coleção de duplas sentadas em torno de mesinhas minúsculas, olhos nos olhos, independentemente de gênero, cor ou idade. Tudo muito moderninho, como pensou a moça. Também se sentaram, e o rapaz, como nos velhos tempos, levantou o braço, para chamar a atenção do garçom. Quando o rapaz chegou, ela viu que, na verdade, era uma moça. Ela olhou a garçonete, procurando não exibir o seu espanto, e pediu primeiro, pensando no "leids fârst", que nem sabia se ainda existia aqui ou alhures. "E seu pai? Que vai querer?" disse a atendente. Antes que a moça esclarecesse o equívoco, ele pediu "cófi e pau de queiju", dando depois um meio sorriso à moça, como se aquilo fosse uma homenagem a ela. Enquanto a encomenda não chegava, ela foi examinando cada uma das duplas que, voz baixa, trocavam juras de amor ou receita de bolo. Fora criada por uma avó tradicional, dessas de frequentar missa, em lugar de barzinhos, como hoje é moda, e isso certamente lhe dera uma visão deturpada do mundo onde viveria. Pensava que pensava, quando seu companheiro de mesa esclareceu, agora sem sotaque nenhum. No mês passado ele estava no mercado municipal quando viu no final do corredor um amigo da época de escola, que não encontrava há séculos. Como usa óculos de grau, tipo fundo de garrafa, chegou perto, para não se meter em confusão. Feliz com o reencontro, aproximou-se dele, de braços abertos, exclamando: - Oswaldo, sua bichona! Há quanto tempo! E foi com a mão estendida para cumprimentá-lo. Percebeu então que o Oswaldo o havia reconhecido, mas, antes mesmo que pudesse chegar perto dele, viu seu braço sendo algemado. - Você vai pra delegacia!, disse-lhe o policial que faz ronda no mercado. Sem entender nada, ele tentou argumentar: - Mas o que eu fiz de errado? Dei assessoria a alguma empresa quando era deputado? Matei minha amante há mais de dez anos? Assediei minha camareira? Matei 8.000 muçulmanos na Bósnia? Levei o Mappin à falência? - Homofobia! Bichona é um termo pejorativo. O correto seria chamá-lo de homossexual grande. Crime inafiançável. Nessa hora, antes mesmo de ele defender-se, o Oswaldo interferiu tentando argumentar: - Que é isso, meu chapa. O quatro-olhos aí é meu amigo antigo de escola. A gente se chama assim na camaradagem mesmo! - Ah, então você estudou vários anos com ele e sempre se trataram assim? - Isso, doutor. É coisa do tempo de criança! Nessa hora o policial já emendou a outra ponta da algema no Oswaldo: - Então você tá detido também. Aí foi a vez de o outro intervir: - Mas, meu Deus, o que foi que ele fez? - Bullying! Chamar alguém de "quatro-olhos", por vários anos, durante todo o tempo de escola, é bullying. Também inafiançável. Oswaldo então se desesperou: - Que é isso, seu policial! A gente é amigo de infância! É um desses amigos de quem perdi o contato mas estimo até hoje. Vim aqui comprar umas carnes para um churrasco com outro camarada, nosso colega, que pode confirmar tudo! Nessa hora ele viu o Jairzinho chegando perto, com uma posta de alcatra na mão. Sem entender nada, ao ver o Oswaldo algemado, o Jair chegou falando, no seu jeito debochado: - Que porra é essa, negão? Que foi que tu aprontou aí? E aí não houve jeito. Foram os três parar na delegacia e estão respondendo a processos por homofobia, bullying e racismo. "Nos dias de hoje é um perigo abrir a boca. Melhor fingir que sou norte-americano", explicou ele à moça. "Pior é que no carnaval conheci um baiano em Salvador que é uma glória. Que Pelé, que nada. Aquilo é que é um superdotado." Olhou para um lado, depois para o outro. "Chamar alguém de baiano pode?" A moça saiu correndo em direção ao fim do corredor, onde havia uma janela escancarada. O que ela não sabia é que logo abaixo da janela havia uma plataforma que, certamente, ampararia seu corpo se por ali ela se atirasse.   Com agradecimento à Dalila, pela sugestão.
sexta-feira, 27 de maio de 2011

Me engana que eu gosto

  "Quem não conhece? / Quem nunca ouviu falar? / Na famosa caixinha do Adhemar. / Que deu livros, deu remédios, deu estradas. / Caixinha abençoada! / Já se comenta de Norte a Sul: / com Adhemar 'tá tudo azul!'" Música de Herivelto Martins e Benedito Lacerda, cantada por Nélson Gonçalves Eis a biografia de três personagens atuais. O primeiro nasceu em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, país do qual já se disse que "não existe nenhum país no mundo que ofereça tamanha proteção (aos acusados). Portanto, se resolvermos politicamente - porque esta é uma decisão política que cabe à Corte Suprema decidir - que o réu só deve cumprir a pena depois de esgotados todos os recursos, ou seja, até o Recurso Extraordinário ser julgado por esta Corte, nós temos que assumir politicamente o ônus por essa decisão." (clique aqui). Sua carreira de jogador de futebol não foi tão marcante como a de técnico, diz sua biografia oficial. Despontou no futebol profissional como lateral-esquerdo do Flamengo, em 1971, e permaneceu na equipe carioca até 1978. Nesse período, teve como grande concorrente na posição o jogador Júnior, considerado um dos maiores laterais da história do Flamengo e da Seleção Brasileira, depois guindado, falo do Júnior, a técnico de futebol, onde sua carreira não foi tão marcante, como se dirá em sua biografia. Depois de deixar a equipe rubro-negra e atuar pelo Internacional em 1978, nosso biografado jogou no Botafogo até 1980, quando uma contusão no joelho o afastou dos campos, levando-o a ser técnico de futebol. Sua primeira conquista em um grande clube como técnico aconteceu em 1993, quando foi campeão pelo Palmeiras, em São Paulo. O título, alcançado com uma vitória por 4 a 0 sobre o maior rival da equipe alviverde, o Corinthians Paulista, foi um dos mais importantes da história do clube, pois interrompeu um jejum de 16 anos sem títulos. No mesmo ano, ele levaria o Palmeiras aos títulos do Torneio Rio-São Paulo e do Campeonato Brasileiro. Em 1994, foi bicampeão paulista e brasileiro. Apesar de passagens vitoriosas nos times com grandes jogadores montados, teve problemas no período que treinou a seleção, sofrendo ao ser flagrado utilizando documentação falsa e com um processo de sonegação fiscal. Por esta razão, mudou seu nome, diz seu biógrafo. Sua saída do selecionado brasileiro ficou marcada pela eliminação da equipe nas Olimpíadas de 2000, quando o Brasil foi derrotado pela seleção de Camarões. Em 2005, deixou a equipe do Santos para atuar como treinador do Real Madrid, da Espanha, com os melhores jogadores do mundo, resultando isso em uma passagem sem brilho pelo futebol europeu, pois foi demitido em 4 de dezembro. Dez dias depois é anunciado seu retorno à equipe santista, onde conquistou nos dois anos seguintes o título do Campeonato Paulista. Em 2007, levou a equipe às semifinais da Copa Libertadores da América, mas foi eliminado pelo Grêmio. A falta de uma conquista de torneio internacional interclubes é justamente uma das maiores frustrações do técnico. Em 2008, voltou ao Palmeiras, onde conquistou mais um título do Campeonato Paulista. A equipe alviverde não vencia um campeonato desde 2000 e não conquistava o torneio estadual desde 1996. Em 2009, depois de ser eliminado mais uma vez da Copa Libertadores da América, desta vez nas quartas de final, as críticas da torcida palmeirense aumentaram, pois ele era questionado por suas interferências na equipe fora do campo, com a indicação de jogadores que não agradaram os torcedores. No dia 17 de julho de 2009 acertou seu retorno ao Santos F. C. Com um resultado fraco no Campeonato Brasileiro (o pior que teve no comando da equipe da Vila Belmiro), conseguindo apenas a décima segunda colocação, deixou o time em dezembro de 2009. No dia 8 de dezembro de 2009, acertou sua ida para o Atlético Mineiro, fechando um contrato de dois anos com o clube e rejeitando propostas do CSKA Moscou e do Internacional. No dia 2 de maio, com apenas cinco meses no comando da equipe, venceu o Campeonato Mineiro. No dia 5 de outubro de 2010, aceitou a proposta do Flamengo para assumir o comando técnico, fechando um contrato de 2 anos com o clube da Gávea. Esteve invicto no comando do Flamengo em 26 jogos superando a marca do memorável técnico rubro-negro Carlinhos, de 20 jogos. No dia primeiro de maio de 2011 o time conquistou a Taça Rio e o Campeonato Carioca, pois já havia sido campeão da Taça Guanabara. Não consta dessa biografia, extraída da Wikipédia, que, entre idas e vindas, esse técnico foi assediado sexualmente por uma manicure, que invadiu seu quarto de hotel e obrigou-o a fazer um bom número de abdominais, ao fim das quais ela teria gritado "gooooool!". Também não consta que ela tenha sido presa. Nem pago fiança. Nem ao menos processada (Clique aqui). Nosso segundo personagem nasceu em Neuilly-sur-Seine, França, terra do general De Gaulle, o tal que não teria dito "ce-là n'est pas un pays sérieux", referindo-se a umas terras distantes. É membro do Partido Socialista francês. Passou os primeiros anos de vida em Marrocos, bem depois de lá terem estado o Humphrey Bogart e a Ingrid Bergman, no norte da África. Ele iniciou sua carreira como professor assistente de Economia na Universidade de Paris, de que depois se tornou titular. Foi então nomeado comissário-adjunto da Agência de Planejamento Econômico para o período 1981-1986. Foi eleito membro do Parlamento para a Assembleia Nacional (1986), onde presidiu a Comissão de Finanças (1988-1991). É doutor em Economia pela Universidade de Paris. Também formou-se em Direito, Administração de Empresas, Ciência Política e em Estatística. Como acadêmico, seus campos de investigação incluem comportamento doméstico de poupança, as finanças públicas e da política social. Em 28 de setembro de 2007 foi nomeado presidente do Fundo Monetário Internacional, tornando-se um possível candidato à presidência da França em 2012. Naquela ocasião, prometeu avançar com a reforma dos 185 países membros da instituição que ajuda a supervisionar a economia global. Antes disso, foi membro da Assembleia Nacional Francesa e professor de economia do Institut d'Études Politiques de Paris. De 2001 a 2007, foi reeleito para a Assembleia Nacional e, em 2006, concorreu para a indicação do Partido Socialista francês para a eleição presidencial. Em 2000 e 2001, lecionou economia no Institut d'Études Politiques de Paris e foi nomeado professor visitante na Universidade de Stanford. Lecionou na Universidade de Nancy II (1977-1981), foi nomeado para a Comissão do Plano de Chefe do Departamento de Finanças. Em 10 de julho de 2007, ele se tornou o candidato do consenso europeu para ser o chefe do FMI, com o apoio pessoal do presidente Nicolas Sarkozy, membro, aliás, do partido UMP, de convicções direitistas. "Segundo uma fonte policial", diz polidamente sua biografia no Wikipédia, em 14 de maio de 2011, pouco depois do meio-dia, uma empregada do hotel de Nova Iorque, EUA, uma africana de 32 anos, entrou em sua suíte, para limpá-lo. O morador ou o apartamento? Como quer que seja, com limpeza ou sem limpeza, diz a mesma fonte que "policiais o removeram do avião da Air France, voo 23, no aeroporto John F. Kennedy", olha a ironia!, na cidade de Nova York, momentos antes da decolagem para Paris. Pagou US$ 1,000,000.00, para sair da prisão, e mais US$ 5,000,000.00, para não cair na tentação de voltar ao aeroporto que leva o nome de um ex-presidente, coisa que, certamente, ele nunca será. Pelo menos ele descobriu que os tempos em que os europeus "se impunham", para sermos delicados no frasear, sobre as africanas chegaram ao fim. Do terceiro personagem pouco há a dizer. É um autêntico self-made man. Nasceu na cidadezinha de Ribeirão Preto, onde, aliás, fica o suntuoso prédio do Migalhas, com sua escadaria de mármore e gaiola dourada habitada por um prosaico pintassilgo. Discípulo de Adhemar de Barros (clique aqui), formou-se primeiro em Medicina; depois, ingressou na política, desejoso de mudar a sociedade corrompida em que vivia. Militou em diversas correntes radicais de esquerda, destacando-se seu envolvimento na Libelu (Liberdade e Luta) e na Convergência Socialista, correntes trotskistas de extrema esquerda na década de 1980. Graças à experiência adquirida, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores, de que foi presidente (1997-1998). Quando prefeito de Ribeirão Preto, foi acusado de fraudar licitação para a compra de cestas básicas, que deveria incluir a compra de uma lata de molho de tomate peneirado com ervilha, especificidade que gerou suspeita de fraude e favorecimento, pois apenas uma empresa fabricava esse tipo de tempero. Diz-se que o juiz que presidiu o processo é candidato a prefeito na cidade, pelo PT (clique aqui), o que apenas mostra as voltas que a vida dá. Sua biografia oficial no Wikipédia diz que várias foram as acusações formuladas contra ele, sem que, porém, nenhuma delas tenha ainda resultado em condenação. Em setembro de 2007, o Tribunal de Contas julgou corretas todas as contas apresentadas pela prefeitura de Ribeirão Preto em sua segunda gestão como prefeito municipal. Em 2005, viu-se envolvido no escândalo do mensalão, após ser acusado por seu ex-secretário na primeira gestão de, como prefeito em Ribeirão Preto, haver recebido, no período de 2001 a 2004, cerca de R$ 50.000,00 mensais de propina de empresa que seria favorecida em licitações da prefeitura. O dinheiro seria usado para abastecer um "caixa dois" de candidatos do PT. As acusações não chegaram a ser provadas judicialmente, mas a quebra de sigilo telefônico de seu ex-secretário, feita pela CPI dos Bingos, mostra que este fez diversas ligações para nosso personagem em 2004, quando ele já era ministro. Em junho de 2007, diz aquela biografia, o ex-secretário retirou as acusações, o que causou indignação ao delegado responsável pelo inquérito, que alegou haver outras provas, especialmente documentais e testemunhais. Devido a sua considerada boa atuação como ministro das Finanças, tendo a simpatia até de setores da oposição, as investigações sobre ele foram relegadas a segundo plano apesar da gravidade das denúncias. Alguns políticos chegaram a levantar a hipótese de convocar o ministro para uma das CPIs que investigavam os escândalos. Todavia, nenhum requerimento nesse sentido foi aprovado. É o que se lê na tal biografia. O que ainda não consta daquela edificante biografia é que nosso solerte personagem, mesmo sendo formado em Medicina, montou uma empresa de assessoria economico-estratégica a empresas interessadas em investir no Brasil. Como seus assessores jurídicos lhe asseguraram que societas distat a singulis (clique aqui), jamais poderiam acusar a pessoa física dele de estar a cometer algum crime, como algum dos previstos no Título XI do Código Penal (clique aqui), ainda que ele seja detentor de módicos 99% (eu disse "noventa e nove por cento") do capital social com direito a voto. Chega ou quer mais?
sexta-feira, 20 de maio de 2011

Morte do jurista (A)

  "A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que iria construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico. - Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo. D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe que estava com desejos, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura." Machado de AssisO Alienista O Machado foi-se, mas deixou-nos sua afiada ironia. Relendo a narrativa sobre a benemérita obra do doutor Simão Bacamarte e sua casa amarela, ocorreu-me falar sobre um personagem raro, que não sei se ficaria dentro ou fora dela. Ele era jurista, especializado, evidentemente, em anatocismo, coisa que fazia com a mais absoluta correção. Vivia brigando com a esposa, que era médica. Eram, já se vê, litisconsortes ativos, sendo ela facultativa. Certo dia ele recebeu uma carta de um amigo rogando-lhe que estivesse no dia tal, tantas horas, em tal lugar, sem falta. Atendendo ao contido na carta rogatória, foi ao tal local, onde encontrou a esposa em companhia de um técnico de televisão, que ficava o tempo todo de olho na tela. O amante dela, concluiu ele, era um assistente técnico, que precisava tratar do canal do dente. Agravado em sua honra e perdendo o domínio de si, incapaz de gerir sua pessoa e bens, pegou de uma vara de marmelo e desferiu golpes e mais golpes no adversário com aquele instrumento retido em suas mãos, o que fez dela uma vara criminal. O estado de saúde da mulher, que já era tão precário como a posse da vara nas mãos dele, agravou-se. Tanto pior para ela, que tinha poucas posses e apelou para a ignorância, encomendando, recurso extraordinário, um despacho num centro da periferia. Fugindo ele, populares foram buscá-lo e o apreenderam. Se havia um corréu, não foi visto, visto que correu. Eis uma busca e apreensão de alguém bem móvel. Não foi fácil, porque o oficial de Justiça que foi mandado ao local era mudo e não sabia como daria voz de prisão ao suspeito, além de não haver citação do endereço do procurado. Seu irmão, que também era oficial, mas do Exército da Salvação, prontificou-se a ajudá-lo a prender o homem que deveria ser condenado. Ele era um homem culto e, por isso, não lhe foi difícil dar cumprimento ao mandado, que não era longo. O homem não tinha salvação. Levado a julgamento, o acusado, que era uma figura sinistra, jurou inocência, com a mão direita sobre a Bíblia, pois estava fora de seu juízo. Aquilo deveria ser algum erro de pessoa, justificou-se. "Não júri em falso!" aconselhou o seu advogado, homem mais prudente do que creme dentifrício. A vítima tornara-se assistente do promotor e não perdia uma apresentação dele, excelente pianista. Um dia, batendo palmas, ela torceu o pulso, mas o promotor, que também era curador, deu um jeito naquilo e ela ficou boa, completamente curada. Cura tão perfeita que nenhum procurador do Estado descobriria onde se encontrava a cicatriz. Talvez em Lins, que é o nome abreviado da cidade de Lugar Incerto e Não Sabido, onde, como sabemos, nasceu o escritor Mário Prata, que atualmente se homizia, com todo o ouro obtido na venda de seus livros, em Santa Catarina, em companhia da esposa, que ali se mulherzia. O réu foi condenado a pelar um pacto em dia de ventania e, sem embargo disso, colher-lhe as penas. Disse o juiz: "Leve-as ao promotor, o doutor Sansão", homem conhecedor de todas as penas, que só a muitos custos concordaria com a liberação do condenado. Eis uma pena que certamente não lhe seria leve. Mesmo depois de cumprida a longa sanção, ele quase não saía de casa, seu amado bem de família, pois aquela reclusão, por tantos anos, acabou por acarretar-lhe prisão de ventre. Como não falasse coisa móvel com coisa móvel, foi internado no manicômio judiciário, onde, fã do Nadal, vivia jogando tênis em quem o visitasse. Era louco por jogo. Sempre que chegava o homem do correio, jogavam carta. Quando era levado ao fórum, equilibrava-se no corrimão da escada, pois era um perito judicial. Seu companheiro Antonio Cabecel se candidatou a um cargo eletivo e ele participou ativamente da eleição de Cabecel, que venceu por um voto, dado por Minerva, sua esposa, portuguesinha muito severa, que saíra de Lisboa por causa do enfado. Quando solteiro ele não saía do bar, frequentado, naturalmente, só por advogados norte-americanos. Depois, passou a frequentar a venda da esquina, ponto de jogo do bicho e de possíveis clientes. Sua mulher, no entanto, reprovava tal conduta, pois detestava animais. "Temes Minerva, homem?" indagavam os amigos. "É claro que sim", respondia ele. "Ela não tira os olhos da venda." Um dia, porém, ele caiu no conto do vigário, que não havia sido escrito pela pena dourada do Mário, e ficou imóvel no solo, carecedor de ação. O único processo de julgar o extinto foi julgar extinto o processo.
sexta-feira, 13 de maio de 2011

Futuro distante

  Em 1951 o cientista Arthur Charles Clarke escreveu um devaneio literário chamado A Sentinela, que falava da vida no Espaço Exterior, coisa de que ele entendia muito, pois havia-se formado em Física no King's College de Londres e vinha aplicando seus conhecimentos para o desvendamento do chamado Mundo Exterior, ou seja, tudo aquilo que está além de nosso planeta. Uma de suas conclusões foi no sentido de que em algum local do espaço seria possível a colocação de satélites artificiais que girariam juntamente com a Terra em torno do Sol. Atingido esse ponto exato, tais objetos ficariam suspensos sempre sobre o mesmo local do nosso planeta, como se estivessem imóveis no céu, acima de um planeta imóvel. Essa faixa, hoje coalhada de satélites artificiais e com capacidade de acumulação em vias de saturação, produz a chamada órbita geoestacionária, mas pode se chamar de órbita Clarke, nome dado a ela pelos cientistas em homenagem ao seu descobridor. É claro que poucas pessoas perderam tempo lendo aquele conto fantástico. Em 1968, ou seja, há mais de quarenta anos e mais de dezoito depois da publicação dele, Stanley Kubrick transformou aquele conto em roteiro cinematográfico e tivemos o filme 2001, ano que, segundo pensávamos, jamais chegaria. Ou, se chegasse, encontraria um mundo muito diferente daquele em que vivíamos. O ser humano já teria tomado juízo e o vilão do filme, pois sempre é necessário um vilão, era um enorme computador chamado Hal, numa homenagem que pode ser descoberta se você substituir cada uma dessas letras pela letra seguinte a ela no alfabeto. Ocorre que o próprio Arthur Clarke sempre negou isso, dizendo que a sigla tinha um significado técnico específico, mesmo porque seria uma grosseria aludir à IBM, que muito auxiliou no projeto do filme. Então tá. Dois anos antes da publicação do provocativo e pouco conhecido conto do Arthur Clarke, Eric Arthur Blair havia publicado um livro que marcou a juventude de muitos de nós. O livro falava de tempos sombrios num futuro distante. O livro se chamava 1984, ano em que, segundo George Orwell, eis o nome literário do tal Eric, o mundo estaria sob um regime algo próximo do que ocorre atualmente na China: cada ser humano é apenas uma peça da grande engrenagem coletiva. Individualidade? Esquece. Até a vantagem de terem todos a mesma cara favorece os chineses. Caiu um trapezista? Bota outro no lugar dele que ninguém percebe. Segundo Orwell, o Big Brother não seria um show de voyeurismo no qual o espectador viveria de olho no buraco da fechadura da porta alheia, como ocorre hoje, mas, muito ao contrário, seria um sistema pelo qual os agentes do Estado é que estariam com o olho pregado em nossa fechadura, registrando nossas mais secretas intimidades. Coisa de deixar muito aloprado petista morrendo de inveja. Curiosamente, o livro aludia ao duplipensar, uma técnica consistente em substituir uma palavra conceitual conhecida por outra, que se refere exatamente ao contrário disso. Assim, algo e seu contrário seriam a mesma coisa. Deu pra entender? Não? Então deixe tudo nas mãos do Grande Irmão, relaxe e goze, como disse a nossa desaparecida ministra. Aliás, nada como manter a boca fechada para não dizer tolice. Isso é acaciano, mas e daí? Neste nosso assustador século XXI já deixamos 1984 e 2001 no chinelo, falo do livro e do filme, é claro, anuncia-se a antecipação do novo dilúvio, mas aquela técnica parece estar ganhando adeptos, com uma pequena variação. Quando a Lygia Fagundes, que depois, graças ao nosso professor Goffredo, seria, para todo o sempre, Telles, saía às ruas com a mocidade da velha e sempre nova Academia do largo de São Francisco, para protestar contra a ditadura Vargas, ela era, certamente, chamada de comunista. Ou, pelo menos, de esquerdista. Hoje, se algum moço ou alguma moça sair à rua para protestar, com seus colegas de ideal, finjamos que isso existe, contra a prorrogação chavista do governo Federal, ele será chamado de tudo, menos de esquerdista. Ou será que ninguém mais é esquerdista depois dos sessenta anos, como descobriu alguém que certamente jamais ouviu falar no Oscar Niemeyer? Espero que a Lygia me responda. Nos tempos em que eu lia os livros do Tarzan, o continente africano estava nas mãos dos colonizadores europeus. Os negros eram tratados a chicote, até porque direitos humanos era privilégio dos brancos, que, aliás, seguravam o chicote. Felizmente, a palavra colonialismo desapareceu, entrando em seu lugar a palavra imperialismo. A palavra até era utilizada em comerciais. A Coca-Cola, por exemplo, era para os italianos l'acqua nera dell' imperialismo. E hoje, que será que se deve dizer dos chineses? Imperialismo virou globalização, aeticismo transformou-se em pragmatismo, tortura transmudou-se em pressões psicofísicas, peculato hoje é enriquecimento indevido, mortes em combate são meras baixas, e vamos que vamos. Seria isso o tal duplipensar de que falava o Orwell?
sexta-feira, 6 de maio de 2011

Força do mal (A)

  "Exército dos EUA se desculpa por fotos horríveis do Afeganistão." Revista Der Spiegeledição de 13/4/2011 - clique aqui "Morte foi vingança; Al Zawari já era o líder da Al-Qaeda." Jânio de FreitasFolha de S. Paulo, 3/5/2011 "A necessidade de uma mudança humana profunda surge não apenas como imperativo ético ou religioso; não apenas como uma exigência psicológica decorrente da natureza patogênica de nosso caráter social de hoje, mas também como uma condição para a simples sobrevivência da espécie humana." Erich FrommTer ou ser? "Será que não quisemos até agora fazer cristãos onde não se tinha ainda conseguido fazer homens? O resultado não é dos mais brilhantes, pois não temos homens nem cristãos." Paul-Eugène CharbonneauAmor e liberdade Que é o bem? Por que existe o mal? Com a palavra o leitor. Confesso que desde que me conheço por gente esse tema me cativa. Os trechos dos livros de Erich Fromm e do padre Charbonneau acima transcritos foram por mim citados no discurso de posse como juiz no Tribunal de Alçada Criminal, lá se vão mais de 25 anos, que assim terminava: "Nossos filhos e netos certamente nos cobrarão, no futuro, por aquilo que, podendo mudar, permitimos que permanecesse". Que mudou, para melhor, de lá para cá? No livro "Doc Vic", ainda não editado, atribuo a meu personagem a seguinte conduta: "Certa ocasião, quando passava férias na fazenda de um tio, aconteceu com o Vic algo que mudou, definitivamente, seus planos de vida. Ele viu dois frangotes que brincavam no terreiro do sítio. Os dois galinhos davam saltos e tentavam esporear-se, treinando para quando fossem adultos, como fazem todos os animais. Aí deu-se o inesperado. Um desses acontecimentos decisivos na vida de uma pessoa. Algo que, por mais que queiramos, não conseguimos explicar. Como bom soldado, responsável pela lei e pela ordem, o garoto achou que deveria intervir para separar os contendores e restituir a paz ao terreiro, tal como fazem os militares. Colocou uma pedra no estilingue e atirou com a intenção de assustar os briguentos. Ocorreu, então, que a pedra atingiu o frágil pescoço de um dos frangos, que se pôs a pular e pular, depois a rodar e rodar, até que caiu no chão, onde permaneceu imóvel. O Vic se aproximou, tentou reanimar a ave, mas nada conseguiu. Naquele preciso momento, o nosso personagem tomava conhecimento da fragilidade da vida e da realidade da morte." Acontece que o causador involuntário (os juristas diriam, fosse humana a vítima, que houve dolo indireto ou eventual) dessa morte foi o autor do livro, que atribui ao seu personagem o sofrimento que ele mesmo experimentou ao produzir aquela morte indesejada. Quantas pessoas têm pela vida alheia (animal ou vegetal) esse mesmo respeito? Meu neto Felipe, ainda com menos de 4 anos de idade, foi o único aluno que não levou à aula um "inseto de jardim", como lhes havia determinado a professora. E ficou revoltado porque alguns colegas levaram o inseto morto. Para ele, que se recusa a arrancar uma flor do jardim, "vida" e "morte" não se referem apenas ao ser humano, mas a todos os seres vivos. Isso é regra entre os seres humanos ou é uma exceção absoluta? Por que? Com a palavra o leitor. Enquanto nos crimes culposos está presente a falta de cuidado, chame-se isso imperícia, imprudência ou que outro nome se lhe dê, nos crimes dolosos está presente o desapreço à pessoa do outro. Sua honra, seu patrimônio, sua integridade física, sua vida são realidades que absolutamente não sensibilizam o criminoso. O que traz um problema de não fácil solução: é possível fazer de um adulto insensível uma pessoa sensível? É fato inquestionável que a maioria das pessoas respeita os valores alheios mais por temor da punição ameaçada pela lei penal do que por apreço à pessoa do outro. Basta ver o que ocorre em nosso país, onde, sendo a impunidade a regra, temos o que temos. Alguém conhece algum homem público que tenha cumprido pena pelos crimes que praticou no exercício do cargo? Se essa avis rara existir, foi ele "ressocializado"? Desde que o mundo é mundo os cientistas da alma tentam explicar as razões do comportamento humano. Mata-se desde sempre, como se mostra já no pórtico da Bíblia, nada obstante (ou precisamente por isso) os laços fraternos que uniam Caim e Abel. Moisés, preocupado com a ordem social, mais do que com a salvação das almas de sua gente, pôs na boca de Deus uma ordem: "Não matarás!", a mostrar qual era a regra vigente até então. Será que se passou a matar menos a partir daí? Um ser humano que, numa crise paranóica, aqui ou alhures, passa a matar indiscriminadamente pessoas, adultas ou não, não me impressiona como fato social. Esse acontecimento é para mim um "fato natural", no sentido de ser fruto de uma explosão da natureza, tal como as manchas solares, os vulcões ou um tsunami. Há como impedir? Talvez colocando um policial militar ao lado de cada civil, para protegê-lo. Ou para levá-lo a um cemitério e executá-lo? (clique aqui) Ao reverso, impressionam-me, e muito, fatos como o de homens e mulheres públicos (a equiparação de gêneros tem dessas inconveniências, cara leitora) apropriarem-se de valores destinados ao pagamento de merenda escolar, que se destina precipuamente a membros de estamentos sociais sem condições econômicas de dar a seus filhos o volume de calorias de que necessitam para serem adultos aptos a enfrentar as dificuldades naturais da vida. Quem são as vítimas desses canalhas? Número inimaginável de pessoas, que certamente permanecerão anônimas, sofrendo as consequências de sua subnutrição. Como "ressocializar" tais criminosos? Vivêssemos em um país civilizado e tais pessoas seriam mandadas para a transamazônica, com uma enxada na mão, em regime de galés perpétuas, como aqui já se fez no passado (clique aqui). Ironia das ironias: isso ocorreu no Maranhão! Hoje, graças à nossa "evolução social", a um humanismo mal assimilado e a uma visão caolha da dignidade da pessoa humana, até mesmo tornozeleiras antievasivas são alvo de críticas dos que não têm nada mais eficiente para sugerir. (clique aqui) Não foi o senador Marco Túlio Cícero quem indagou "quis ignorat maximam illecebram esse peccandi spem impunitatis?" Perguntem ao prof. Príncipe Credídio. E olhe que naquele tempo o chefe do "baixo clero" era ninguém menos do que o Lúcio Catilina. Aliás, muito embora tenha Catilina sido condenado à morte, graças aos discursos inflamados de seu colega de Senado, aí incluído o celebérrimo exórdio ex-abrupto "quousque tandem", como lhe chamam os latinistas, quem acabou sendo executado foi Cícero, cujas mãos e cabeça foram expostas na tribuna do Senado, como uma espécie de advertência aos pretensos moralizadores. Em 1991, o prof. Eugene W. Hickok Jr. reuniu estudos de constitucionalistas estadunidenses sobre o alcance atual (Original Meaning and Current Understanding) da Declaração de Direitos Humanos norte-americana (The Bill of Rights), publicando-os pela University Press of Virginia. Sobre a pena de morte, o ex-procurador geral de Justiça William Bradford Reynolds sustenta sua conveniência e constitucionalidade (The Death Penalty is not Cruel and Unusual Punishment), ao passo que Jack Greenberg, professor de Direito na Universidade de Columbia, demonstra estatisticamente (Against the American System of Capital Punishment) que é decrescente o número de execuções consumadas, até porque, de 1982 a 1985, a Suprema Corte daquele país invalidou cerca de 35% das condenações, por deficiências formais dos respectivos processos. Com quais argumentos você mais se identifica? Temos por aqui estudos sérios como esse? Quanto a mim, prefiro recitar os versos do lusitano José Régio: "Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,ninguém me peça definições.Ninguém me diga: 'vem por aqui!'A minha vida é um vendaval que se soltou,é uma onda que se alevantou,é um átomo a mais que se animou.Não sei por onde vou,nem sei para onde vou.Só sei que não vou por aí!"
sexta-feira, 29 de abril de 2011

Você é feliz?

Immanuel Kant (1724-1804), o filósofo prussiano que até hoje atormenta os estudantes de Direito com suas reflexões sobre Filosofia do Direito, tinha da felicidade um conceito que dizia: felicidade é a satisfação de todas as nossas inclinações. É claro que uma definição dessas não define absolutamente nada, pois não sabemos quais são as nossas inclinações nem qual a natureza disso (alguém pode estar inclinado olhando um abismo...). E também desconhecemos quais são todas as nossas inclinações. Alguém que tenha inclinação pela bebida certamente ficará feliz quando tiver inclinado o braço e despejado mais um gole na garganta. Isso nos indica que, segundo nosso velho desafeto alemão, esse dipsomaníaco é uma pessoa feliz. Os dicionários talvez nos ajudem nessa busca desesperada. Nosso Aurélio Buarque de Holanda nos diz que felicidade é o mesmo que contentamento. Já contentamento é um sentimento de prazer, satisfação, alegria. Na França, o Larousse nos diz que a felicidade (palavra que lá é formada pelas palavras boa + hora) é um estado de completa satisfação, de plenitude. É também alegria e prazer. Resta-nos saber de que tipo de satisfação se alude, pois a desgraça de um desafeto costuma deixar-nos imensamente satisfeitos. Já o Webster nos ensina que na língua inglesa felicidade é o mesmo que sorte, prazer, alegria, contentamento. Mas o dicionário de Cambridge nos diz que a felicidade é o sentimento de ser feliz. É algo que nos causa prazer ou satisfação. Curioso é que, para os latinos, a palavra felix, que levou a felicitas, dizia respeito à fertilidade, tanto que Felicitas era a deusa da fertilidade, o que diz com a abundância. Tanto quanto fecundus, que nos deu fecundo, a significar aquele que produz, capaz de reproduzir-se. Essa ligação entre ser feliz e ser produtivo talvez fosse um excelente mote para uma reflexão futura, mesmo porque, como reconheceu o nosso Ataulfo Alves, "eu era feliz e não sabia", constatação que nos ocorre com frequência, talvez porque, como dizia o economista Stuart Mill, "pergunte a si mesmo se você é feliz e deixará de sê-lo". E já que fui buscar os filósofos tornados populares por força da música que fizeram, a dupla Tom e Vinicius (quem escreveu o quê?) não nos dá definições de felicidade, mas nos acena com semelhanças, à moda dos monges budistas: "A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor: brilha tranquila, depois, de leve, oscila, e cai como uma lágrima de amor". Eles também disseram que "a felicidade é como a pluma que o vento vai levando pelo ar: voa tão leve, mas tem a vida breve (e) precisa que haja vento sem parar", esquecendo-se, porém, de nos dizer que vento é esse que deve ser mantido para que nossos momentos felizes não se imobilizem no asfalto, como a tal pluma leve a que eles se referem, mas, ao contrário, continuem a voar, ainda que breve sua vida. E por falar em felicidade e em vida breve, lembro-me de alguém que viveu quase cem anos, produzindo uma obra exemplar no campo não só da filosofia como, em especial, no campo da ética. Lê-se em sua biografia que Bertrand Arthur William Russell "exerceu sobre o público enorme fascínio, o que decorreu de numerosos fatores. Para além da sua longevidade, há muitas outras facetas que o tornam único. Grande matemático e filósofo, apóstolo da paz e discutida figura política, Bertrand Russell alcançou um enorme prestígio mundial. Era o nonagenário que cativava os mais novos e inspirava os mais velhos; o aristocrata que desprezava a Câmara dos Lordes e se arriscava a ser preso; o anarquista por temperamento que desafiava o poder constituído; o ateu que terçou armas contra o dogma religioso e a moral convencional; o matemático e lógico cujas equações destronaram Euclides; o filósofo que procurou tornar a filosofia acessível aos leigos; finalmente, o galardoado com o Prêmio Nobel da Literatura, cuja elegância de estilo, agudeza de ironia e destreza mental remontam a uma época em que se cultivava a arte de conversar e de escrever cartas." Excusez du peu, diria ele, afetando modéstia. No dia 10 de novembro de 1950 foi anunciado que Bertrand Russell tinha ganho o Prêmio Nobel da Literatura em reconhecimento dos numerosos trabalhos em que se defendem os ideais mais elevados da Humanidade. Um mês mais tarde, quando recebeu, em Estocolmo, aquele prêmio, o secretário da Academia Sueca referindo-se ao laureado, proclama-o um dos mais brilhantes protagonistas dos ideais humanos e campeão da liberdade de expressão do mundo ocidental. Já quase centenário ainda saía às ruas para participar de passeatas de protesto, lutando contra o belicismo, como o fez durante toda sua vida. Deixou ele um livro intitulado "A Conquista da Felicidade", escrito em 1930, em cujo introito transcreve, com ironia, palavras do poeta Walt Whitman: "Creio que eu poderia transformar-me e viver como os animais. Eles são tão calmos e donos de si! Detenho-me para contemplá-los sem parar. Não se atarantam nem se queixam da própria sorte; não passam a noite em claro, remoendo suas culpas, nem me aborrecem falando de suas obrigações para com Deus. Nenhum deles se mostra insatisfeito; nenhum deles se acha dominado pela mania de possuir coisas; nenhum deles fica de joelhos diante de outro, nem diante da recordação de outros da mesma espécie que viveram há milhares de anos. Nenhum deles é respeitável ou desgraçado em todo o amplo mundo." Sempre é tempo de tentarmos.
sexta-feira, 15 de abril de 2011

Caprichos do destino

O título parece nome de valsa de Zequinha de Abreu, caipira nascido em Santa Rita do Passa Quatro. Compositor cem por cento brasileiro. Pois ele é mero pretexto para eu fazer algumas perguntas sobre música popular, para testar o conhecimento do leitor. De acordo? Então vamos lá. Qual é aquela que é considerada a mais importante cantora popular brasileira de todos os tempos? Viveu boa parte da vida nos Estados Unidos, participando de filmes musicais, sempre com sapatos de salto plataforma altíssimos e cacho de frutas na cabeça, expedientes que ela inventou para esconder seu metro e meio de altura. Teu pai teria respondido, certamente, Carmen Miranda. E qual foi o cantor argentino mais importante de todos os tempos? Cantava acompanhando-se ao violão, sempre muito elegante, como todo argentino que se preza, chapéu meio de lado na cabeça. Participou de inúmeros filmes e morreu quando o avião em que viajava caiu em Medellín, na Colômbia. Tua avó, evidentemente, teria dito Carlos Gardel. E o compositor argentino mais famoso? Alfredo Le Pera, é claro, autor de tangos inesquecíveis como Melodía de arrabal, Cuesta abajo, Soledad, Volvió una noche, Golondrina, Lejana tierra mía e dois outros que qualquer um de nós cantarola facilmente: Mi Buenos Aires querido e El día que me quieras. E o band leader, como se dizia então, mais famoso da Argentina, cuja orquestra executou os mais bonitos tangos dos anos 40/50? Francisco Canaro, é claro. Teu pai talvez desconhecesse que a cantora brasileira Maria do Carmo Miranda da Cunha, nome original da nossa Chiquita Bacana, nasceu na freguesia de Várzea da Ovelha e Aliviada, distrito do Porto, em Portugal. Talvez ele também não soubesse que o nome de batismo do cantor argentino Carlos Gardel era Charles Romuald Gardès, nascido em Toulouse, na França. Outros dizem que teria nascido no Uruguai, tanto quanto o popular Pirincho, apelido do maestro Francisco Canaro, nascido na cidade uruguaia de San José de Mayo. Já o compositor argentino Alfredo Le Pera nasceu na cidade de São Paulo, no Brasil, embora jamais tenha composto qualquer samba. Nada a admirar nisso, pois Ióssif Vissariónovitch Djugashvili, o ditador russo que se imortalizou como Stalin, não nasceu na Rússia, mas na Geórgia, da mesma forma como o ditador que, do outro lado da Europa, se imortalizou como grande líder alemão não era alemão. Adolf Hitler nasceu em Braunau am Inn, Áustria. Mas, voltemos à música, que dá mais certo. Diga lá: o cantor francês Charles Aznavour, que abreviou o nome armênio Aznavourian, nasceu onde? Pois, curiosidade das curiosidades, nasceu em Paris. E quem era Edith Giovanna Gassion? De origem italiana, era filha de um artista de circo e uma cantora de cabaré. Passou a infância num bordel dirigido pela avó, que dela cuidava porque, aos 3 anos de idade, Edith ficou cega. Curou-se disso, mas sua vida sempre foi plena de privações e sofrimento, morrendo aos 47 anos de idade, vítima de um destino cruel, com a colaboração da bebida, das drogas e dos inúmeros cafetões que a exploraram. O apelido que lhe foi posto e pelo qual ficou imortalizada refere-se a um pássaro. Que, ironicamente, não canta: pardal (piaf). Por falar em cantor, qual era o nome verdadeiro de Elvis Presley? Por incrível que possa parecer era exatamente esse, com um Aaron no meio. Orlando Garcia da Silva, nascido no Rio de Janeiro, era cobrador de ônibus. Enquanto recolhia as moedas dos passageiros, cantarolava animadamente, o que despertou a atenção de um deles, por nome Francisco de Morais Alves, cognomidado Rei da Voz. Desse casual encontro nasceu o Cantor das Multidões, como veio a ser conhecido o antigo cobrador de ônibus. Que o Caetano Veloso imitava na juventude e nos primeiros trinados. E que jamais foi nosso ministro dos Esportes. E vamos ao cinema. Os atores de cinema costumam adotar nomes alternativos, como a loira Marilyn Monroe, que, quando mais moça, se chamava Norma Jean e era morena. Já Issur Danielovitch Demsky, quem seria? Atrás desse nome de gângster russo, está um ator que foi a cara do Van Gogh, cujos pais eram naturais da Bielorrússia. E cujo filho adotou seu sobrenome fake, passando a chamar-se Michael Douglas. Nome, aliás, do lateral Máicon, da seleção brasileira, que nada em a ver com o Jackson. E o Harrison Ford, qual é o nome real dele? O real nome dele é precisamente esse: Harrison Ford. Diz a lenda que ele trabalhava como carpinteiro no set de filmagens quando foi notado pelo diretor Francis Ford Coppola, que lhe ofereceu um papel no filme que estava preparando. Com Stars Wars o mundo perdeu um excelente carpinteiro e Harrison Ford ficou bilionário. Verdade que ele já fazia pontinhas em outros filmes, mas isso os biógrafos não contam. Chega, ou quer mais? Então diga: onde nasceu Madonna Louise Veronica Ciccone?
sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ídolos

Todos nós guardamos em algum panteão interior os nossos ídolos, qualquer que seja a conotação que ele tenha. Para minha mãe, italiana cuja mocidade foi dar duro numa tecelagem da Mooca, a figura de Getúlio Vargas merecia retrato na parede. Da cozinha, é claro, pois meu pai não via com bons olhos aquele ditador, que, para ela, significava jornada diária limitada de trabalho, descanso semanal, férias remuneradas, carteira assinada, salário mínimo, bolsa família, cesta básica e tantos outros benefícios que, demagogo ou não, o homem, ao ver dela, havia imposto aos exploradores do trabalho alheio. Ou ele ou outro demagogo de igual calibre. Censurar como? Para mim o heroi era outro. Aliás, quem naquela época não desejou ter os poderes do Mandrake, aquele que, cartola na cabeça, bengala na mão e bigodinho ridículo entre o nariz e a boca, estava sempre acompanhado de um negrão de ridículo chapéu na cabeça, um fez, veja só o nome do chapéu!, que servia, falo do Lothar, apenas para nos mostrar a superioridade da raça branca, coisa que nós, ainda crianças, éramos incapazes de perceber. E ainda tinha uma ligação um tanto platônica com a princesa Narda, que nos sugeria um trocadilho inevitável: ele não queria narda com ela. Fazer um gesto mágico durante uma partida de futebol e o goleiro adversário ficar imóvel, enquanto a bola seguisse lentamente a caminho do fundo das redes, quem me dera. Quem, falo agora dos que vivemos os tempos do gibi mensal, não teria algum dia tido um desses devaneios? Para outros, o ídolo talvez seja o Pelé, digno de estátua em praça pública, maior futebolista do século, mil gols, salvem as criancinhas. Não confundir com o Edson Arantes, coisa que nem o negão, como ele mesmo a si se refere, confundiria. Ao contrário do que disseram os jornais, quem não foi ao enterro da filha, que tinha a cara dele por mera coincidência, por não se sentir bem em velórios, não foi o divino Pelé, mas o humaníssimo Edson. Que, aliás, sugeriu, com a tal frase, que todos nós outros vamos a velório para nos divertirmos. Claro que há aqueles velórios que, de fato, nós lá vamos apenas para nos certificarmos de que quem morreu foi mesmo aquele grandessíssimo filho da. Mas, vamos e venhamos, na maioria das vezes o que nos leva ao necrotério não é o razoável desejo de confirmar que nunca mais o mundo contará com aquela presença nefasta que agora ali dorme, com os merecidos tufos de algodão nas narinas, nós de óculos escuros, para que não percebam nossa satisfação ao depois de confirmarmos o que nos haviam dito a respeito do passamento daquela lamentável figura. Penso, porém, que a regra não costuma ser essa, caríssimo Edson Arantes. Entende? Eu, hoje, tenho atração por certos ídolos bíblicos. Falo do Velho Testamento, aquele conjunto de livros, que, não por acaso, se chama Bíblia, plural, salvo engano, da palavra biblium, que significa, veja aí no dicionário, livro. E quando esses livros formam um conjunto de cinco, néctar dos néctares, lá está o grego a nos dizer isso, com o nome de Pentateuco, coisa que muitos confundem com alguma ave pré-histórica de bico com dentes. Confesso-lhes que faço essas visitas ao Velho Testamento não tanto para seguir o exemplo dos herois que ali aparecem, mas, pelo contrário, para consolar-me diante de minhas inúmeras fraturas de caráter, para dizer o mínimo. Ler a vida dos santos tem isso de enfadonho: eles eram, segundo seus biógrafos, só virtudes, de manhã à noite, doze meses por ano, anos e anos de suas vidas. Quando um Francisco de Assis se atira na neve para não dizer àquela donzela que por ali passa aquilo que ele teve vontade de dizer e não fazer a ela o convite que ele teve vontade de fazer, que alívio! Alívio dele e nosso, é claro. Já o Agostinho pede perdão a Deus pelos pecados que cometeu quando criancinha, especialmente cometidos contra a mãe. Como se as mães não fossem todas odiáveis, pelas restrições educacionais que nos fazem, enquanto os pais se omitem. Mas voltemos ao Velho Testamento e vejamos o jovem Davi, que, por sinal, o meu querido Gregory Peck interpretou nos idos de 1950, direção do Henry King, que mandou escanhoar o astro, onde já se viu galã de filme norte-americano com barba e cabelo cacheado pendendo ao lado das orelhas, chapéu negro na cabeça? Os ortodoxos que me desculpem, mas cinema é cinema, deve ter dito o velho King. Pois lá está o Gregory Peck aceitando o desafio de enfrentar o gigante Golias, na rua Samuel, número 17, o que, ao que nos dizem as regras, era coisa de espada contra espada. E não é que o mocinho ruivo, malandrote que ele só, saca do alforje uma arma nova e, qual um Indiana Jones, em lugar de lutar de igual para igual, com as armas do avençado, dá um tiro na testa do infiel e encerra a luta? A mostrar a razão do Konrad Lorenz: na natureza não vence o mais forte, mas o mais malandro. Quando alguém o chama de lado e sussurra que aquela arma é proibida pela Convenção de Genebra, o Davi não deixa por menos: "guerra é guerra!" Avancemos umas páginas. Agora o mesmo e exemplar líder está às voltas com Betsabá, papel de Susan Hayward, no motel da rua Samuel 2, número 11. O fato de ela ser casada com Urias pouco lhe importa ao impetuoso Davi. Além de engravidar a submissa esposa do general heteu, ainda trama a eliminação do pobre corno. Promove o tonto a general e o encarrega de comandar uma tropa de kamikazes. "Mas nada de ficar lá na trincheira, só a dar ordens. Nada disso. Quero-o lá na frente de combate, a servir de exemplo a nós todos por tua coragem", diz o cínico Gregory Peck, dando um tapinha nas costas do novel comandante, que, último a saber das intenções alheias e da conduta da esposa, como é de lei, vai para a guerra e não dá outra: toma um balaço nos heroicos peitos, o que muito entristece o cínico Davi, que agora tem o caminho livre para exibir a amante e o filho por eles gerado. Algo realmente digno de um ídolo, um exemplo a ser seguido por nós todos, até porque ele falava em Deus a torto e a direito. E se ele o fazia e se a narrativa é do confiável Moisés, quem sou eu para pôr em dúvida os princípios éticos que aquele modelo de virtude nos transmite? O que sempre sugere uma pequena revisão do decálogo baixado pelo mesmíssimo autor de tal narrativa, nos pés do monte Sinai: "não cobiçar a mulher do próximo, a menos que o próximo não esteja muito próximo".
sexta-feira, 1 de abril de 2011

Considerações sobre o achismo

"Deu no Migalhas : 'O STF decidiu que a lei ficha limpa (LC 135/10) não deve ser aplicada às eleições realizadas em 2010, por desrespeito ao artigo 16 da CF/88. Fim de papo e aplausos para o ministro Fux'. Concordo e lembro que o famigerado Tribunal de Nuremberg, que ainda não havia sido criado quando dos fatos, julgou a prática de crimes que ainda não constavam de norma jurídica. Mas lá o julgamento era eminentemente político (jus victoris) e não jurídico, como foi lembrado no 'Justiça & Caos', tanto que foram impostos limites à atuação dos defensores." Adauto Suannes, Migalhas dos leitores 24/3/11 "Ouso discordar do Migalhas. Cartas marcadas no Brasil, a história se repete. Quem viveu outros momentos da vida brasileira, sabe que perdemos uma oportunidade histórica de limpar a sujeira, ou parte dela. Até quando vamos ver Maluf, Barbalho, Roriz (pai, filha, netos, bisnetos)? A Justiça no país, definitivamente, atende aos grandes interesses." Alexandre Villaboim, Migalhas dos leitores24/3/11 "'Felizmente, ainda existem juízes com J maiúsculo em Brasília'. Foi assim que o advogado Ulisses Cesar Martins de Sousa, conselheiro Federal da OAB, celebrou a decisão do STF a respeito da lei da ficha limpa." Migalhas 2.596 25/3/11 Um respeitabilíssimo crítico de arte, H. W. Janson, escreve: "O que é a arte? Por que o homem cria? Poucas perguntas são capazes de provocar um debate tão caloroso e resultar em tão poucas respostas satisfatórias." Se perguntarmos o que é a Ética e em que se baseia ela, certamente também não teremos respostas que satisfaçam a todos. Fala-se, por exemplo, na lei de ouro: "faça ao próximo o que gostaria que ele lhe fizesse." Quem consegue seguir tal lei em todas as situações que a vida lhe apresenta? Menos difícil, ainda que não muito fácil, é a regra de prata: "não faça ao próximo o que não gostaria que ele lhe fizesse." Em suma, sendo bastante pragmáticos, "se todos agissem no seu dia-a-dia como você age, a sociedade ficaria melhor ou pior?" Todos nós que borramos telas ou amassamos argila, ou utilizamos qualquer outro meio de comunicar nossos sentimentos, sabemos quão difícil (quiçá impossível) é distinguir obras de arte de peças oriundas de outros meios de expressão, o artesanato, por exemplo. Será realmente caso de distinguir? Certa ocasião, fiz uma exposição de escultura em um dos mais renomados restaurantes de São Paulo. A ideia era fazer os frequentadores satisfazerem as necessidades do corpo e do espírito ao mesmo tempo. Uma dessas esculturas era um pequeno totem de bronze. Para muitos estudiosos, a forma cilíndrica e alongada (clique aqui) faria tal objeto estar incluído na relação dos inumeráveis símbolos sexuais, sobre os quais, aliás, já fiz alguma brincadeira (clique aqui). A tal escultura era um símbolo fálico, portanto. Pois um dos garçons parou diante da escultura e ali ficou, estático. Aproximei-me dele e indaguei: "Está gostando?" Ele respondeu afirmativamente e emendou uma pergunta: "Isso é um cacete, não é?" O cacete é um "pedaço de pau, com uma das pontas mais grossa do que a outra", dizem os dicionários, que acrescentam: "pênis", em linguagem vulgar. Ou seja, uma representação do falo ("representação do pênis, adotado pelos antigos como símbolo da fecundidade da natureza", diz o Aurélio). Só os antigos (clique aqui)? Em nossa cultura ocidental, no entanto, o falo ou pênis tem conotações negativas, aparecendo mais como instrumento de agressão do que como órgão reprodutor, vale dizer, produtor de vida. Sua exibição em púbico, como sabemos, constitui crime. Imaginemos que um japonês ou uma japonesa, vindo ao Brasil, saia pela rua carregando o objeto que havia sido exibido no tal "festival da fertilidade". Essa pessoa, certamente, viria a ser presa, por infração do art. 233 do Código Penal. Você, como juiz, a condenaria? E se o preso fosse o escultor que colocara num restaurante, frequentado por pessoas de bem, o mesmo "símbolo da fertilidade"? A provocação destina-se a mostrar que, em primeiro lugar, por mais que falemos em arte e em artista, a verdade é que nem mesmo os mestres conseguem definir uma coisa e outra. Fotografia é arte? Por que? Também no que diz com a Moral e o Direito, a opinião individual é o que menos conta. Se eu fizesse as perguntas acima a um engraxate, uma manicure ou um mecânico de automóvel, certamente a resposta começaria com um "eu acho que...". Alguém mais culto (valha, no caso, argumentandi tantum, o preconceito segundo o qual, em nossa sociedade, os engraxates, as manicures e os mecânicos de automóvel sejam sempre pessoas incultas), especialmente se for operador do Direito, certamente jamais daria uma simples opinião, por pior que tivesse sido o curso feito por ele e por mais generosa que tenha sido a banca da OAB que transformou o simples bacharel em advogado. Ele invocaria regras e princípios jurídicos, até mesmo constitucionais, para supedanear o "sim" ou o "não" que daria a tais perguntas. Aliás, só operadores do Direito supedaneiam alguma coisa. O caso das "fichas sujas" será, certamente, importantíssimo material para que os bons professores de Direito mostrem a seus alunos que ninguém é dono da verdade. Nem mesmo os juízes. Um julgamento ser decidido, na Suprema Corte, por escassa maioria, significará para o leigo, desde que não seja leviano, que alguns de nossos ministros da mais alta corte conhecem Direito; outros, estão ali por fruto de equívoco de quem os nomeou. A leitura dos votos ali proferidos, no entanto, mostrará que ambas as correntes tinham bons motivos para dizer sim e bons motivos para dizer não. Muitos dos críticos desta ou daquela conclusão certamente não leram tais argumentos jurídicos. Achavam e ainda acham que a melhor decisão seria aquela que lhe apetece, sejam quais forem os motivos disso. Até mesmo a ignorância. Certa ocasião, quando saí do tribunal, onde fizera sustentação oral em um caso dificílimo, que suscitou acalorado debate entre os membros da turma julgadora, não resisti e expressei em rimas aquilo que eu então sentia e que me parece muito adequado ao que se vê em nossos dias. Para quem ainda não leu, aí vai: "Quando o desmando dos homenste cobrir de cicatrizes,pensando as dores, reflete:ainda temos juízes! Autoridades corruptas,tantos homens infelizes.Não cede à desesperança:ainda temos juízes! Legalistas, burocratas,ou venais, quais meretrizes.Maioria ou minoria?Ainda temos juízes! Tão moços, mal preparados,agindo qual aprendizes.Melhor isso do que nada:ainda temos juízes! Ubi homo, ibi peccata.Releva dele os deslizes.Perfeição só cabe em Deus.Ainda temos juízes!"
sexta-feira, 25 de março de 2011

Entre o poder e o dever

  Há muitos anos, uma alemãzinha que veio conhecer o Brasil hospedou-se por uns dias lá em casa. Foi levada para conhecer as praias de São Paulo, de onde voltou vermelha como um tomate maduro. Minha filha passou a noite toda cobrindo as costas da moça com Caladril. Na Via Anchieta ela ficara horrorizada com o número de motoristas que ultrapassavam outros veículos pela direita. "Se fosse na Alemanha, um motorista desses, sendo preso por um guarda de trânsito, jamais voltaria a dirigir automóvel" desabafou ela a certa altura de seu sofrimento com aquela reiteração de infrações que a deixavam visivelmente irritada, ignorando como as coisas funcionam do lado de cá do Atlântico. Eu não sou, certamente, o primeiro a observar essa incrível tendência que temos de violar regras, não apenas no trânsito. Qualquer regra. Nem serei um cínico a dizer que sou exceção a essa regra. Quem me acreditaria? "Eu sou mais esperto do que vocês" é a mensagem que está por trás dessas transgressões. Ou seja, a rigor, há aí uma demonstração de baixa autoestima. Eu preciso provar que não sou tão medíocre como eu julgo que sou! Cumprir regras é como religião: coisa de crianças, velhos ou idiotas. Se os comerciantes e os industriais pagassem todos os impostos que deveriam pagar não enriqueceriam. E por aí vão as explicações, que culminam naquela pergunta cretina, que médicos e advogados fazem diariamente: "com recibo ou sem recibo?" É claro que todos nós temos o inconfessável desejo (infantil!) de sermos Supermans, Batmans ou Homens-aranhas. Isso diz com termos poder e não com termos deveres. Tanto que uma série do Batman que era exibida na televisão nos anos 50 tinha isso de cômico: ele dirigia o batmóvel em baixa velocidade quando passava em frente a uma escola! E ainda fazia pregação moral ao Robin, que se queixava de que os bandidos estavam fugindo! Santo Mustang, Batman, então o crime compensa? Não é preciso muito esforço de imaginação para perceber que no momento em que eu reconheço que tenho deveres eu estarei reconhecendo que tenho menos poder do que gostaria de ter. Deus não tem obrigações. Quem de nós fica feliz ao constatar que está mais para um medíocre Clark Kent do que para uma criatura praticamente invencível, corpo de aço e uma invejável capacidade de voar até onde a imaginação permite? O fato de Superman usar uma fantasia ridícula, uma capa que não lhe serve para nada e ainda por cima morrer de medo da kriptonita são coisas nas quais preferimos não pensar. Por falar em filme, eu e minha mulher estávamos na fila do cinema, para comprar as entradas, quando ainda não havia esses corredores feitos de tiras de pano, imitação do que ocorre nos estabelecimentos bancários. Um casal de jovens se aproximou de nós com o dinheiro contadinho na mão, pedindo algo que lhes parecia muito natural: que comprássemos as entradas para eles. "Os senhores podem comprar as entradas para nós dois. Duas meias", o que faz supor que fossem ambos estudantes. Lecionam Ética nas escolas nos dias de hoje? Falavam baixo, educadamente. Minha resposta foi: "Posso mas não devo". Ele fez uma careta e lançou no ar um "hein?". Eu então lhe disse que eu posso matar aquele homem que está ali tomando sorvete junto àquele balcão, posso jogar uma pedra naquele espelho que você está vendo lá adiante, posso fazer tudo aquilo que tiver vontade de fazer. Só que eu não devo matar aquele homem, nem devo quebrar aquele espelho, pois isso me trará consequências desagradáveis. Ele olhou para a moça, que estava mais ausente ainda. Fui curto desta vez: "Está vendo esta fila? Ela começa ali na frente e termina lá adiante. É lá que vocês devem ficar se quiserem comprar as entradas". Eles se retiraram sem nada dizer. Menos mal, pois se continuassem naquele propósito, o próximo passo seria eu voltar-me para as pessoas que vinham atrás de nós na fila e lhes indagar, como num plebiscito: "Este rapaz está querendo que eu compre as entradas para ele, passando na frente de vocês todos. Vocês concordam com isso?" Outra vez foi na fila do teatro. Dois casais já estavam na nossa frente quando chegamos. Algum tempo depois chegou um terceiro casal, cumprimentou-os e puxou conversa com eles. A fila foi andando e os seis caminhando na minha frente, em animado bate-papo. Quando nos aproximamos da bilheteria, eu me interpus entre os quatro primeiros e o casal de penetras, sem dizer nada. Apenas olhei para estes últimos, que se despediram dos amigos e se retiraram, sem me dizerem o que pensavam de minha família. De minha mãe, principalmente. Sei de um juiz de Direito que se recusava a permitir que seus filhos entrassem no carro do fórum, para irem à escola, pois o doutor Matos ensinou-lhes que da mesma forma como o furto de uso é reprovável, assim também o é o peculato de uso. Um dos filhos dele hoje é juiz no Estado do Mato Grosso e não tenho dúvidas de que passará aos filhos essa salutar jurisprudência. Será ela majoritária? Em compensação conheci outro juiz, que, havendo perdido a mãe em um acidente automobilístico, investia contra os motoristas que lhe caíam nas mãos com uma fúria terrível, exigindo deles que observassem os mais mínimos cuidados quando na direção de veículo motorizado. Desconhecendo, aliás, a lição do professor lusitano Luiz da Cunha Gonçalves: "o motorista que entender de cumprir sempre, em todas as circunstâncias, as regras de tráfego, certamente causará algum acidente". Já judicando num dos tribunais de Alçada, ia e vinha à cidade onde morava em carro oficial. No qual mandara instalar um aparelho detector de radar, para poder trafegar em velocidade muito acima daquela permitida. Era esse o exemplo de respeito às leis que ele transmitia ao seu motorista. Seria ela a única autoridade a agir assim? A Maria Helena ainda não se havia acostumado com o novo automóvel, sabendo nós todos que a resistência dos pedais ao esforço dos pés do motorista varia de carro para carro. Deu-se então que ela, pretendendo sair da garagem, imprimiu ao pedal de aceleração mais força do que a necessária, o que fez o veículo avançar pela calçada, por onde trafegava um homem de aparência muito simples, talvez um mendigo. Ele assustou-se, ela desceu do carro reluzente e foi indagar dele se estava bem, mesmo porque tudo não passara do susto que ambos tomaram. Ele, gentilmente, espalmou a mão direita, balançando negativamente a cabeça. Ela insistiu com ele, que terminou aquele incidente com uma sábia observação, que sintetiza tudo isso que eu tentei abordar, dita em seu peculiar dialeto: "Minha senhora, quem pode porsuir, porsói; quem não pode porsuir não porsói." E continuou sua marcha, com a cabeça erguida, como é próprio dos filósofos.
sexta-feira, 18 de março de 2011

Cui pro quo

  "Deu no Migalhas: 'Ironia - Deputado Tiririca é indicado para a Comissão de Educação e Cultura da Câmara, que será instalada nesta semana' (Migalhas 2.580 - 28/2/11). Deu no jornal O Estado de S. Paulo de sábado: '1 em cada 5 mortos em estradas (de São Paulo) é atropelado'. Segundo o respeitável jornal, portanto, em nosso Estado o atropelamento de cadáveres é fato corriqueiro. E, ao que me consta, não foi o Tiririca quem escreveu isso." Migalhas dos leitores 28/2/11 "Como escapei do cárcere vermelho" Revista Visão(chamada de capa da edição de 9 de julho de 1954, texto que o Des. Carlos Biasotti considera o ne plus ultra dos cacófatos) Hoje não é o dia do meu adversário. Parabéns e paramales. Pois sim, quem se lembraria de uma data dessas? Verdade que recebi um presente terno: um terno mal passado, que, primeiro, pensei jogar no cesto, mas num segundo resolvi guardar no quarto onde dorme meu nono, quando não está a rezar o terço, com medo de ir para o quinto dos infernos, onde, segundo o Dante, ficam os iracundos, os insolentes e os soberbos.Muitos me acham uma pessoa importante e tenho de admitir que isso é verdade. Não fossem os produtos estrangeiros que eu importo e comercio, eu não teria a casa que tenho. Mas eu seria ingênuo se pensasse que os amigos não sentem inveja por eu ter sobrado. Especialmente considerando que tem piscina com água esquecida. E ali nada sobra. Reis o que eu queria dizer: a vida é longa e nem todos nós somos curtos. Livro-me como poço das revistas mundanas, paisanas e municipais, especialmente as mais caras. As coroas as acham um barato. Veja se não tenho razão: elas trazem excelentes anúncios de roupa, sapato, perfume, liquidação disto, liquidação daquilo, lançamento aqui, lançamento acolá. Você folheia a revista todo animado e, sem anunciar isso previamente, colocam alguma matéria jornalística entre um anúncio e outro. Isso é um desrespeito. Quem disse que eu compro revista para saber o que ocorre no país, no mundo ou no espaço? Na Líbia há quantos kadáferes na rua? Deus desiste? Essa não me interisso. O que eu quero é ver anúncios, reclames, comerciais, ou que nome se dê às matérias pagas que, explícita ou implicitamente, eles ali colocam. Ou você acredita na neutralidade dos críticos de gastronomia? Repare na página inteira de anúncio do primeiro classificado no imparcial certame patrocinado, coincidência, é claro!, pela mesma revista. Mania de ver má-fé em tudo, sô! Má-fé de menos, gente, má-fé de menos! A presidenta não acredita nos jornalistos, mas quem acredita? Nem no Amapá. Isto é, se eu quiser ver notícia eu ligo a televisão, onde, aliás, o número de matérias industriais, comerciais, anúncios ou reclames é muito menor, para meu pesar, e onde, em tempo recorde, eu saberei o que vai pelo globo. E, para minha leveza, aumentarei minha cultura. Osso o que eles mostram e veijo o que eles dizem, olhinhos correndo daqui pra lá, telepromptando o tempo todo. Não gosto de meias verdades, nem que venham aos pares. Muitas delas chegam com furos, como incertas reportagens, transmitidas desde um helicóptero, a mostrar carros anfíbios e bicicletas aquáticas, coisa boa de se ver, horrível de experimentar. Morasse eu perto do Tietê e também jogaria lá o sofá aqui da sala, que me amola, pois nele não há mola. Ou pneus e geladeiras. Pneus bastam os meus. Talvez telefone celular, com bateria e tudo, o que combateria a pirataria chinesa, muito embora todos nós gostemos de fazer um negócio da China, diga que não. Dia desses comprei um desses celulares que nem nome tem, mas lá está um monitor de televisão, além de rádio, talvez telégrafo, batedeira de bolo e outros gadgets que ainda não identifiquei, pois vem sem o necessário manual, segundo exige o CDC, que não sei como se escreve em chinês. Preço (tenho a nota fiscal para comprovar): R$ 90,00. E vem com espaço para colocar três chips. Como eu vou poder utilizar três linhas telefônicas ao mesmo tempo é algo que só vou saber quando terminar meu curso de mandarim, que, aliás, ainda nem comecei. Como sei como são feitos os malfeitos produtos chineses, as capivaras do Tietê que me aguardem. Quando falam em despoluir o tal rio eu rio. Penso que o mais fácil seria passar ali uma dessas tais redes sociais, de que tanto falam e até candidatou-se ao Oscar, que recolheriam tantos produtos altamente recicláveis que, ao depois, seriam revendidos e redespejados no rio mais tarde, criando-se uma saudável cadeia de realimentação da economia, até porque aqui ninguém vai parar na cadeia. Quando muito passam por ela sem parar. Acho que por medida de economia. E meu amigo lusitano que não resistiu morar em Paris? Aquela coisa de "les portugais sont très gais" encheu-lhe as medidas. "J'ai assez!", como lá dizem. "E logo a mim chamarem-me de paneleiro, pá?" reclama ele, que, por sinal, fabrica panelas. E mudou-se para cá, onde, ironicamente, tem muito orgulho de Serguei, um puto de oito primaveras. Uma graça de rebento aquele filho. E fico por aqui, pois os trovões já anunciam o que vem por aí, meu barco está na oficina para revisão e eu sei que quando chove lá fora pinga aqui dentro. E, com tanta chuva, minha garrafa já está quase vazia. E viva o eterno Sérgio Porto (clique aqui).
sexta-feira, 11 de março de 2011

Amor e guerra

A raiz grega das palavras crise e crítica é a mesma e diz com a nossa palavra julgamento. Só é possível sairmos de uma crise, qualquer que seja ela, se julgarmos o que há a favor e contra o status quo. Como juiz de família, quando era procurado por um casal desejoso de desquitar-se, como então se dizia, eu entregava a cada um uma prancheta com uma folha e uma caneta. Mandava-os sentarem-se em meu gabinete e responderem a duas indagações simples: "Indique três defeitos seus. Indique duas qualidades do seu cônjuge." Uma senhora expressou o que certamente todos gostariam de dizer: "Não pode ser o contrário?" Quem gosta de ver os próprios defeitos? Resultado: a culpa sempre é do outro. A crise pessoal geralmente leva a um mau julgamento da situação, pois ele certamente estará viciado pelo subjetivismo. Sorte dos psicoterapeutas. Quero, no entanto, falar de coisa mais trivial: a crítica cinematográfica, que tanto me atraía na juventude, talvez porque naquela ocasião tivéssemos críticos dignos do nome e não meros palpiteiros, como é regra hoje em dia, ressalvadas as exceções de sempre. Você consulta no fim de semana a "opinião" dos entendidos e nota que um mesmo filme, não poucas vezes, é considerado bom por alguns e péssimo por outros. O mesmo se dá quando o assunto é "os melhores" (clique aqui). Já ouviu falar em Maria Gladys? E em Nani Moretti? E em Chiquinho Brandão? Puro subjetivismo: gosto porque gosto; não gosto porque não gosto. Aliás, depois que Avatar foi indicado para melhor filme do ano, confundindo-se sua inegável qualidade técnica com o conjunto de atributos que se espera de um "bom filme", nem sei o que dizer. Vi recentemente Querido John (clique aqui), que cuida de um caso de amor interrompido pela guerra, dirigido pelo sueco Lasse Hallström. É claro que o filme não é mais um "filme de guerra". Ela aparece ali da mesma forma que aparece a doença deste ou daquele personagem. A vida não é assim? Mas é, a meu sentir, um filme muito bem dirigido, com três grandes interpretações e um roteiro bastante razoável. Um crítico de jornal, porém, achou tudo aquilo um romance açucarado, com interpretações pífias e um arrastamento insuportável. Além do mais, taxou-o de militarista, sem explicar os motivos para tal qualificação. Talvez o tal "crítico" esperasse mais sexo e mais violência, vá a gente saber. Como crítico de cinema do jornalzinho do ginásio eu fazia o que muitos desses críticos improvisados fazem: cortava e colava as opiniões dos "entendidos" e alinhavava tudo com um estilo pretensamente meu. Algo não muito diferente do cut and drag de hoje. Admirava o Marino Neto, que apresentava um programa excelente na rádio São Paulo sobre cinema, com quem me correspondia amiúde. Certa ocasião, para provocá-lo, escrevi-lhe uma carta atrevidamente multilíngue (português, espanhol, italiano, latim, inglês e francês) que ele leu no ar e me respondeu em grego e russo, confessadamente auxiliado por auxiliares. Pois nas suas críticas, ele não se limitava ao "gostei" e "não gostei". Falava do roteiro, da trilha musical, da fotografia e de tudo o mais que compõe um filme. E eu ouvindo aquilo tudo, sem entender muita coisa. Encantei-me naquela ocasião com Casablanca, um filme que aborda um tema nada incomum: os efeitos da guerra sobre a vida de dois amantes. O filme hoje é considerado um clássico e disputa com o Cidadão Kane, do Orson Welles, o título de melhor filme de todos os tempos. Pensar que algum outro "filme de guerra" possa ultrapassá-lo é, para a maioria dos críticos, eu modestamente aí incluído, uma rematada tolice. O personagem central é Rick (Richard, para os íntimos, especialmente quando o íntimo é Ilsa, uma namorada que ficara em Paris sem dar a ele maiores informações a não ser um bilhete de despedida que se desmancha sob a chuva, e que agora retorna de braços com um bonitão idealista), um norte-americano misterioso, com folha corrida prestada a boas causas, dono de um bar onde gira a vida social da cidade famosa. Está cercado de serviçais fidelíssimos, um dos quais o pianista Sam, interpretado pelo cantor Dooley Wilson, que teria recebido pelo papel um cachê quase simbólico. Haverá quem desconheça a cena em que Sam canta, a pedido de Ilsa, a música célebre? Aliás, para os menos informados ela teria dito ao pianista "Play it again, Sam", frase que jamais é dita no filme (clique aqui), como o DVD permite conferir. O que pouca gente sabe é que o filme quase não foi concluído, tais e tantos foram os incidentes ocorridos durante a filmagem. Divergências entre o diretor, Michael Curtiz, e sua equipe atrasavam as filmagens, valendo notar que a cena que se passa aos pés do Arco do Triunfo saiu sem som local, sendo necessária uma gambiarra para não ir para o lixo. A interpretação de Ingrid Bergman foi elogiadíssima. O que poucos sabiam é que aquele ar atarantado da personagem, dividida entre dois amores, se devia ao fato de ela não saber bem qual era seu papel na história, pois o roteiro era alterado constantemente. Além disso, a então esposa de Humphrey Bogart, ciumentíssima, vivia no estúdio, fiscalizando o marido, certamente impactada pela beleza da atriz sueca, o que tornava a relação entre os dois atores cada vez mais tensa. Mal sabia a esposa que quem lhe levaria o marido seria outra atriz, quase uma menina, chamada Lauren Bacall. A insegurança do diretor, sempre pressionado pelos produtores, acabava nas costas dos roteiristas, que mudavam a história constantemente, dificultando sua memorização pelos atores. Aliás, foram nada menos do que três os roteiristas, o que dá uma ideia do clima no estúdio. Basta dizer que havia três finais à disposição do diretor: a) Rick, ao ajudar Victor, marido de Ilsa, a fugir, é morto pelos soldados nazistas; b) Ilsa abandona o marido e foge com Rick; c) Victor é que morre, deixando o caminho livre para Ilsa e Rick finalmente serem felizes para sempre. "Nós sempre teremos Paris" como diz ele no filme. Nenhum deles foi aproveitado, como esclareço ao leitor que ainda não viu o filme. O simples fato de o filme ter tido um quarto final, que se tornou o definitivo, mostra como andavam as coisas nos bastidores. E, por falar em final, quem pode esquecer-se da frase final ("this is the beginning of a beautiful friendship") dito a Louis, o policial corrupto mais simpático do cinema, pelo cínico personagem central, ambos candidatos ao Oscar, levado, não por eles, mas pelo filme como tal, por seu diretor (Michael Curtiz) e pelos infatigáveis roteiristas (Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e Howard Koch)? That's the life.
sexta-feira, 4 de março de 2011

Cordelismo

A rigor, a expressão literatura de cordel refere-se aos livrinhos que, nas feiras nordestinas, eram (e creio que ainda são) pendurados em cordinhas e nos quais há narrativas com ilustrações feitas por artistas locais, à moda de gravuras. Não sei bem quando começou isso de recitar à maneira dos repentistas nordestinos. A lembrança mais antiga que tenho é de uma reunião de amigos que programaram uma quinzena de férias com as respectivas famílias. Alguns de nós deliberaram fechar um hotel de beira-mar em Santa Catarina, composto de uns tantos chalés. Coincidentemente, o proprietário tinha na família uma juíza, pessoa muito simpática, e um advogado, falante como todos os advogados. O nome dele era Lênine e apenas por isso havia sido recolhido à prisão por alguns dias, ao tempo da gloriosa de 64, até os militares descobrirem que o verdadeiro comunista nunca havia estado no Brasil. "Se alguém deveria ser preso por causa do meu nome, esse alguém é meu falecido pai" dizia o advogado, com toda procedência. Alugado o hotel todo, rateamos entre nós o custo disso e lá fomos com mulher e filhos. Nessa quinzena criaram-se ou solidificaram-se grandes amizades, especialmente por causa da facilidade das crianças de se entrosarem, além do fato de as esposas conhecerem-se melhor. Durante uma churrascada, o Gilberto Valente, que eu já conhecia da Faculdade, pôs-se a arreliar os presentes, ao som do seu inseparável pandeiro, imitando o que fazem os cantadores nordestinos nas feiras. Todos riam, mas nenhum tinha coragem de responder aos seus versos. Quando ele se chegou à nossa mesa, ocorreu-me de replicar os versos provocativos dele. Fui ovacionado, pois estava, de certa forma, lavando a honra de todos. Ele treplicou e eu, empolgado, sapequei nova resposta rimada. Aquilo foi longe, ao som do pandeiro e da cerveja. Depois disso, em mais de uma oportunidade atrevi-me a retomar aquela forma de versejar, empregando, sempre que possível, o linguajar inculto dos cantadores nordestinos. Quando o Migalhas noticiou que certa senhora estava a processar o dono de um galo, porque este perturbava a sensível vizinha, que trabalhava em casa, isso mereceu este comentário: Briga de Galo Eu prefiro um cocoricoa buzina de artomove.Cum isso nem se comovequem só pensa em ficá rico. A Natália Teodoro,qui trabaia no quintá,qué fazê o galo calá,e apresenta o seu choro. Oça aqui dona Natália:o galo tomém trabáia:é ele que acorda o sór. Eu sei bem do que eu faloque dinhêro vai pagá-lopor cantar em dó maior? Zé Preá e Ontõe Gago são os nomes de guerra de dois amigos nordestinos, ambos amantes desse tipo de desafio. Trocaram farpas rimadas e eu entrei na contenda com estas apaziguadoras estrofes: Pra Ontõe Gago e Zé Preá Ocêis dois para com isso!Gente mais da muderninha,tão procurano é inguiçoseus vendedô de farinha! Nordestinos mais coquete,falano coisa difícipra não dizê só tolicisó mostrano gabolicicom isso de Internete. Onde puséro o cordé?Cadê nossos repentista?ão pareceno manéachano que são artista! Essa globalizaçãomatô a nossa curtura.Diga lá: quem mais aturaaicecrim de rapadurae caubói lá no sertão? Tenho uns amigos gaúchos que me convidam com insistência para ir ao Sul saborear um bom churrasco com eles e conhecer os Sete Povos das Missões. Uma paulista que lá esteve saiu corrido. O gaúcho, quando chegou o hóspede, disse ao empregado da instância: "Dê-lhe a janta e depois mate." Eu, hein? Por motivos vários, isso ainda não foi possível, mas deve concretizar-se ainda neste ano. Ou no próximo, que ainda estou na ponta dos cascos. Na troca de correspondência, um deles, da família Maia, fez uma sábia advertência: "Quem é coxo parte cedo". Tomei isso como um mote e fiz-se esta Homenagem a um gaúcho "Quem é coxo parte cedo",frase mais do que batuta.Um elogio te concedo:tu és um filho da luta! Já tem Maia no pedaçobotano sua cuié,traz a espada de bom açovem tarveis com a muié. Dança o shótis ou baião,o amigo do nordeste?Puxa gaita ou rabecãogaúcho do sudoeste? Pra saudar nossa amizade,e abraçar a rapaziada,eu canto Mário de Andradecom sua viola quebrada. (clique aqui)
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Hábito e o monge (O)

"A educação pode ser definida como a formação, por meio da instrução, de certos hábitos mentais e de certa perspectiva em relação à vida e ao mundo. Resta indagar de nós mesmos: que hábitos mentais e que gênero de perspectiva pode-se esperar como resultado da instrução? Um vez respondida essa questão, podemos tentar decidir com o que a ciência pode contribuir para a formação dos hábitos e da perspectiva que desejamos." Bertrand Russell "Considerando a beca e a gravata vestimentas imprescindíveis, uma juíza da 3ª vara do Trabalho de Juiz de Fora/MG impediu um advogado que não usava os trajes de sentar-se à mesa de audiências, permitindo sua presença apenas dentro da sala. O causídico entrou com ação de indenização por danos morais contra a União, que foi julgada parcialmente procedente pelo juiz Federal Leonardo Augusto de Almeida Aguiar. Segundo o magistrado, faltou razoabilidade à juíza, pois embora incorporado à rotina forense e afeto ao tradicionalismo dos Tribunais, 'o uso do paletó e gravata não tem obrigatoriedade imposta na lei'. Na decisão, o juiz salientou que 'a legislação não exige como requisito para participação das audiências que os advogados estejam trajados com paletó e gravata, beca ou qualquer outra vestimenta. Na verdade, a norma determina que os advogados estejam trajados de forma adequada ao exercício da profissão'". (Migalhas, 27 de Setembro de 2010) "O TJ/AL aposentou compulsoriamente um juiz acusado de agredir a namorada. Para o relator, desembargador Sebastião Costa, 'embora inicialmente pudesse se tratar de um incidente particular da vida pessoal do magistrado, tornou-se um episódio vergonhoso e humilhante para ele enquanto figura pública, configurando infração disciplinar merecedora de reprimenda exemplar por parte desta Corte'". (Migalhas, 3 de Fevereiro de 2011) Essas duas notícias justificam evocarmos a legislação que rege os deveres dos magistrados, dita Loman, que, repetindo-se desnecessariamente, contempla obrigações como "determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem nos prazos legais" ou "cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício". Risível, não? Dizendo "cumprir e fazer cumprir as disposições legais" já não diria tudo? Aliás, quando fui tomar posse como desembargador, foi-me entregue um pequeno texto, que eu deveria ler, à guisa de juramento. Por ele, eu deveria comprometer-me a "cumprir as leis". Substituí aquela expressão por "cumprir a Constituição", pois é óbvio que um juiz, mesmo não sendo desembargador, não está obrigado a cumprir nem mandar alguém cumprir uma norma jurídica que repute contrária à Constituição Federal, Lei das Leis. Diz, mais, a Loman que o juiz deve manter conduta irrepreensível, quer na vida pública, quer na vida particular. É um curioso caso de um dever moral transmudado em obrigação jurídica. Demais disso, a expressão "conduta irrepreensível" ressente-se de enorme dose de subjetividade, tanto quanto "trajar-se de forma adequada ao exercício da profissão". Conheci um juiz que não permitiu que uma advogada participasse da audiência porque ela estava trajando calça jeans. Um juiz amigo meu mandou um advogado para casa porque ele estava com um paletó xadrez verde. Ao ver de S. Exa., aquilo não era "adequado" ao exercício da profissão. Dia desses o maître de um restaurante, onde tomo refeição amiúde, disse a alguém que me acompanhava, e que eu lhe apresentei ao entrar, que eu estava entre os fregueses mais educados que frequentavam sua casa de pasto. Certamente, para ele, minha conduta, enquanto freguês, é "irrepreensível". Discuti o assunto com meu acompanhante, tentando imaginar como se comporta, ao ver daquele funcionário, alguém para não merecer tal rótulo. As hipóteses que formulamos, entre risos e gargalhadas, chegariam a uma centena, desde entrar pelado até cuspir no chão. Palitar os dentes é conduta repreensível? Chegamos à conclusão de que, talvez por nossa idade provecta, fomos criados num tempo em que os pais ensinavam "bons modos" aos filhos, coisa que, ao que parece, já não mais ocorre, seja pelos métodos "modernos" de educação preconizados principalmente por aqueles que querem proibir até a célebre palmada na bunda, que todos nós (falo dos meus coevos) levamos mais de uma vez na infância, seja porque, trabalhando fora de casa tanto o pai quanto a mãe, essa coisa absolutamente secundária, como é educar os filhos, ficou por conta das babás e das "tias" que trabalham nas escolas infantis. Não bastasse isso, diz a Loman, numa enumeração desnecessária, que o magistrado também deve "tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça". Só esses? A julgar pela enumeração (quod non inclusio exclusio est), ele não está obrigado a tratar com urbanidade os funcionários de repartições públicas que não pertençam ao Judiciário, o que é um disparate. Por outro lado, se o juiz está obrigado a manter "conduta irrepreensível" em sua vida privada, que diríamos de um magistrado que é grosseiro com seus vizinhos, tratando-os sem urbanidade, que é sinônimo de "cortesia"? Como se vê, nada mais fácil do que conhecer as regras de boa educação. Nada mais difícil, no entanto, do que observá-las em todos os momentos de nossa vida.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Primeira vez que chorei (A)

  Estávamos, eu e a Maria Helena, na casa de freiras, em Campos do Jordão. Na verdade, trata-se do Mosteiro das Monjas Beneditinas que fica no começo da subida que leva ao Palácio da Boa Vista, sede hibernal do governo estadual e museu aberto aos interessados. As monjas desenvolvem um trabalho social magnífico e, para custeá-lo, têm várias atividades remuneradas, uma das quais a hospedagem de casais, geralmente de meia idade. Se você topar ouvir o sino chamar para a meditação das cinco horas da manhã, é com você mesmo. De quebra você ainda as ouvirá cantando, na capela de São João Batista, aquelas magníficas músicas gregorianas que, geralmente, são cantados apenas por homens (clique aqui). Isso, aliás, pode ser feito também às 18 horas. Pois lá estávamos hospedados e, ao entrarmos no refeitório, minha mulher levou um susto. Dentre as mulheres, havia uma que lhe chamou a atenção. Bem mais velha do que nós dois, ela era uma senhora como qualquer outra, ao menos para mim. Fosse pela voz, fosse pelo sotaque, fosse pelo perfume, a Maria Helena sussurrou-me que conhecia aquela senhora. Fomos até ela e minha mulher indagou-lhe se ela era maranhense. Reposta afirmativa. Morou em São Caetano do Sul? Sim, aliás ainda reside lá. Perplexidade geral. "Lembro-me da senhora, que era casada e tinha uma irmã que estava para ingressar no convento." A senhora apontou uma das monjas presentes, tão velha quanto ela, que era sua irmã e iniciara a vida religiosa quando a Maria Helena ainda era criança, como verificamos pelo cotejo de datas. "Pois eu me lembro do seu marido carregando-me no colo" disse a Maria Helena, para espanto geral. Fatos como esse me impressionam sobremaneira porque, muito ao reverso, tenho pouquíssimas recordações da minha infância, algumas das quais provocadas por fotografias, tiradas num baile de carnaval ou numa festa de aniversário. Não preciso informar os mais jovens que essa epidemia de câmeras fotográficas que hoje se escondem até em telefones celulares não havia naquele tempo. As máquinas eram uns caixotes pretos, de foco fixo, e o fotógrafo deveria observar a distância necessária, em relação ao objeto a ser fotografado, para que a imagem não ficasse borrada. Os filmes que se colocavam naquele caixote permitiam que se tirassem até 12 fotografias, que seriam reveladas e copiadas em laboratórios especializados. Os bons fotógrafos tinham a sabedoria de jogar fora todas as fotografias desfocadas para não ouvir os comentários dos chatos que sempre têm um deselogio esperando oportunidade para ser despejado. Aliás, isso de selecionar as melhores fotografias eu aprendi, já moço, com um conceituado fotógrafo profissional, que me garantiu que as fotografias que ele exibia e que lhe traziam tantos elogios representavam bem menos de dez por cento das que ele havia tirado. "Às vezes, depois de revelar um filme, atiro o filme na lata de lixo, sem copiar nenhuma." Pois algumas pessoas têm essa capacidade de ir buscar num canto da memória alguma lembrança que remonta ao início da vida. "Sou capaz de acreditar que você se recorda da primeira vez que chorou" provoco a Maria Helena, que não me diz nem sim nem não. Quem lembraria? Estatisticamente, a quase totalidade das pessoas chora assim que descobre que saiu do Paraíso (deitado o dia inteiro numa água morninha, comendo, bebendo e sendo transportado sem precisar fazer o menor esforço, chorar por que?), talvez antevendo o que as aguarda aqui fora. Disse-me uma amiga obstetra que, quando o recém-nascido não chora espontaneamente, ela lhe dá umas palmadas para incentivá-lo, pois o choro teria fins terapêuticos. Ari Barroso tratou do tema (clique aqui), valendo notar que o rosto que aparece no YouTube não é do Sílvio Caldas, mas do Orlando Silva. Para conferir, clique aqui. Pois a lembrança que tenho do meu primeiro choro já me pega com alguns anos de idade e considero-a uma lição de vida. Por motivos que desconheço, eu me pusera a atazanar minha mãe, apelando para aquele chorinho irritante de que se valem muitas crianças. "Se não parar de chorar sem motivo vai acabar chorando com motivo" era uma das frases prediletas de minha mãe, que me pegou pela orelha e me colocou num canto da sala, onde eu continuei com aquela ladainha. O choro era tão falso que, enquanto me lamuriava, eu esquadrinhava a sala, reparando em muitos enfeites a que eu não havia dado muita atenção até então. Foi quando tive um estalo: "Isso não vai levar a nada!" Levantei-me, passei por minha mãe (em silêncio, é claro) e fui para o quintal aprontar alguma travessura. Aprendi com aquele episódio a tentar dimensionar adequadamente o problema que a vida me apresenta, para poder estabelecer a estratégia adequada à sua solução, equilibrando emoção e razão. Quando uma de minhas filhas, ainda menina, foi atacada por um cão policial, que lhe rasgou uma das pernas e o couro cabeludo, descobri em mim uma coragem que eu ignorava: peguei o cachorro pelo cangote e o atirei longe. Levei em seguida a menina ao hospital (carro dirigido por um amigo, pois eu deveria acalmar minha filha, que me indagava se iria morrer em virtude dos ferimentos), onde foi operada por mais de 3 horas, enquanto eu consolava a dona do cachorro, nossa amiga, que estava naturalmente inconsolável com o sucedido. Meu pai morreu repentinamente, após ter dado uma conferência na academia de letras de uma cidade mineira. O corpo foi trasladado, como se costuma dizer, para São Paulo, cabendo ao filho mais velho todos os procedimentos necessários ao sepultamento. Cadê tempo para chorar? Esse choro, então contido, só veio à tona alguns meses depois, quando nos capacitamos de que ele não voltaria daquela viagem.
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Crime perfeito (Um)

  "As verdades que parecem mais verdadeiras, se a gente dá muitas voltas nelas, se a gente olha para elas de pertinho, vê que são verdades só pela metade, ou deixam de ser verdades". Mário Vargas Llosa(em Quem matou Palomino Molero?) O rapaz magro e alto entrou na sala, com os braços atrás das costas, corpo levemente curvado para a frente, barba de dois dias, cabeça raspada. Em cada lado dele havia dois orangotangos fardados, o que, positivamente, era um despropósito. Meio soldado daqueles já seria o suficiente para dissuadir o prisioneiro de qualquer tentativa de fuga. Pararam junto à porta, em silêncio. Na mesa transversal, junto à janela, a jovem juíza lia atentamente os autos de um processo, que não tinha muitas folhas. Ela levantou os olhos quando o rapaz pigarreou. Fechou o cenho, fez um leve aceno com a cabeça e o trio se aproximou da mesa dela, ladeando a mesa mais longa, postada perpendicularmente àquela outra. Outro sinal dela e os policiais retiraram as algemas do prisioneiro, que passou a esfregar os pulsos alternadamente, dramatizando exageradamente o fato de ter sido trazido daquela forma ao fórum. Ela o encarou, como quem tenta sentir sua personalidade, e, em seguida, pôs-se a ler a denúncia: "No dia 15 de outubro próximo passado, cerca das 15 horas, Ibrahim Assaf Nazim, filho de Maria Nazim, portando um revólver calibre 38, constrangeu o gerente da agência Bigdoy do Scandinavian Bank a entregar-lhe a importância de NK$ 980.000,00, da qual se apropriou, praticando, assim, o crime de roubo qualificado. Que o senhor tem a dizer sobre tudo isso?" Enquanto ela fala, a funcionária ao seu lado, quase silenciosamente, aciona o teclado da maquineta que registra, literalmente, o que vai sendo dito na audiência. O rapaz limita-se a responder, quase sem sotaque norueguês: "Não sou Ibrahim. Eu sou Farid". Vencido o espanto, a magistrada vai até a folha de identificação do preso. "O senhor conhece Maria Nazim?", indaga, exibindo-lhe a folha dos autos. "É minha mãe", confirmou o jovem. "Então o senhor quer dizer que houve um erro datilográfico na menção do seu nome? Ibrahim por Farid?". Ele responde de forma indireta: "Farid é meu irmão". Ela cruza os braços sobre a mesa, como que buscando adivinhar os pensamentos do acusado, o tipo de explicação que dali sairia. "Aí tem coisa", foi o que lhe disse a intuição. "Mas, quem foi preso em flagrante foi o senhor ou foi o seu irmão?", indagou ela. "Quando eu fui preso eu estava com a cédula de identidade do meu irmão" limitou-se a esclarecer o rapaz, respondendo sempre sem se demorar nos pormenores, telegraficamente, o que poderia ser uma estratégia da defensoria. Ela respira fundo, tentando compreender aonde queria chegar o prisioneiro. "Como o senhor explica que foi preso nas proximidades da agência assaltada e foi reconhecido por várias testemunhas, especialmente pelo gerente do banco? E portando a cédula de identidade do seu irmão?" foi a óbvia indagação dela. "Simplesmente eu e Farid somos gêmeos. E eu trabalho em uma lanchonete na Münchensgate, uma travessa da Bigdoy allé. Segundo me disseram, fui preso umas duas horas depois do assalto, quando saí para ir ao banco descontar um cheque para meu patrão, o senhor Giovane Strada. Ele pode confirmar isso." "E que explicação o senhor dá para o fato de estar portando o documento de seu irmão?" indaga ela, depois de fitar o moço por um bom tempo, sempre tamborilando a mesa com os dedos da mão direita, como a mostrar a ele sua impaciência com aquela história absurda. "Como nós moramos na mesma casa, talvez ele tenha pegado o meu documento por engano, quando saiu de casa, antes de mim", foi a tentativa de explicação. "E onde ele está agora?" continuou a juíza. "Como posso saber? Estou preso há mais de dez dias e ele nunca foi me visitar na cadeia." A magistrada relê atentamente os autos, procurando descobrir algum ponto contraditório naquela narrativa, alguma falha que devesse ser remendada, para que o processo fosse salvo, mesmo porque, quando ouvido na delegacia de polícia, o preso, invocando direitos constitucionais, marotamente permaneceu calado, deixando para manifestar-se perante o juiz, como declarou na ocasião e como agora fazia. Era, portanto, a primeira vez que seu álibi vinha para os autos. Ela, cinematograficamente, arriscou uma interpretação delirante, sem a menor base nos elementos que acabara de ler, mas cujo conteúdo o réu, certamente, desconhecia: "Vejamos se entendi. O senhor, que trabalha numa lanchonete de propriedade de um italiano, na rua München, e goza da confiança de seu patrão, é enviado por ele periodicamente ao banco, onde realiza operações no interesse dele. Certo? No dia referido na denúncia seu patrão manda o senhor ao tal banco, para descontar um cheque. O senhor sai da lanchonete, dirige-se ao Scandinavian Bank, empunha arma de fogo, assalta a agência, tranca todos os presentes, que não eram muitos, em uma das salas, e se dirige à tal agência onde seu patrão tem conta. Certo? Ali, desconta o cheque assinado por seu patrão e transforma tudo em dólar, o dinheiro dele e o do assalto, dizendo haver o dinheiro sido enviado por seu patrão, que, como tantos outros sonegadores, não quer que o nome dele apareça na transação, para enviar para o Exterior ilegalmente. Certo? Cautelarmente, o senhor trazia no bolso a cédula de identidade do seu irmão, na qual o rosto é idêntico ao dele, pois são gêmeos. Ao ser preso, tanto o revólver como os dólares já haviam sido escondidos em um local previamente escolhido. Com a semelhança entre o senhor e seu irmão ficará a dúvida a respeito da autoria do crime. Foi o senhor ou o seu irmão o assaltante? Um crime quase perfeito. In dubio pro reo! Acertei?" O ar dele agora era o de quem sentia na mão o peixe fisgado tentando escapar do anzol. Era preciso cansá-lo, dando-lhe mais linha. "Eu posso dar uma versão melhor do que essa", disse ele com impensável atrevimento, já com o corpo empertigado. O ar abatido do início da audiência se esvaíra. "Digamos que meu irmão Farid me odeie e quer causar-me algum mal, levando algum proveito nisso. Ele é motoboy. Antes de sair de casa substitui minha cédula profissional pela dele, contando com que eu não vá perceber, pois elas são idênticas. Ele vai até a rua München, deixa a moto estacionada em alguma travessa próxima, guardando no bagageiro o capacete e o blusão. Entra na agência do Scandinavian Bank e faz o assalto. Tranca as pessoas lá dentro e sai calmamente até o lugar onde a moto está estacionada. Põe o blusão e o capacete e, quando as pessoas saem da agência, serão incapazes de reconhecê-lo com aquela vestimenta. Certo? Ele sabe que, mais dia menos dia, algum funcionário do banco me encontrará por ali e pensará que eu sou ele. Certo? Eu serei preso e ele ficará com o dinheiro, impunemente. Vossa Excelência não concorda? Caso ele fosse preso na ocasião, o processo conteria o meu nome e não o dele." Ela, entrando no jogo, completa: "Ele guarda o revólver e o dinheiro no bagageiro e sai feito louco pelas avenidas, como é do costume deles, até chegar ao doleiro que lhe entrega os 300 mil dólares. Ele esconde o dinheiro em local seguro e daqui a um ano compra alguma propriedade em Trondheim. É isso? O senhor será absolvido pela dúvida quanto à autoria do crime e ambos desfrutarão do proveito do crime. Acertei?" Ele não conseguiu impedir que um leve sorriso lhe viesse ao rosto. Olha aquela jovem de roupa negra como se dirigisse a uma balconista qualquer. "E a senhora pode me dizer o que realmente aconteceu?" Ela, mesmo sentindo o golpe, não se dá por achada. "O senhor é muito inteligente. Eu diria que é uma pessoa atilada". "Coisas da Internet, madame. Hoje só não aprende quem não quer. O tempo em que isso era privilégio de poucos já passou", responde ele com indisfarçável arrogância. "Há muita gente que frequenta faculdade mas desconhece a grande mestra, que é a vida." Ela continua o cerco, tentando conter a indignação: "Pois fique sabendo que vou convocar, de ofício, o teu irmão Farid para vir depor na próxima audiência. Vejamos o que ele diz e se o álibi dele é melhor do que o seu. Talvez eu substitua um irmão pelo outro no processo". O réu, certamente, já contava com essa possibilidade, pois não esboçou a menor reação. Ao contrário, como quem coloca o adversário em sinuca, ele sugere: "Evidentemente, nessa audiência a senhora vai mandar o gerente do banco dizer qual de nós dois é que esteve lá no dia do assalto ...". Ela agora está jogando o corpo para trás, olhando admirada aquele rapaz que a encara, com o peito estufado, senhor de si, dono da situação, nem parece um árabe, no geral tão humilde. "Aliás", continua ele, com atrevimento simplesmente insuportável, "aliás, seria bom que a senhora convocasse também o Fued". Ela espanta-se e empina o corpo: "Que Fued?" E ele, como um hábil jogador de xadrez, preparando o cheque: "É nosso irmão. Nós somos trigêmeos!" Ela suspira fundo e volta-se com o corpo para trás, entregando os pontos e a partida. E ele, como quem dá um mate: "Univitelinos!"
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Leis ilegais

  "A história costuma ser a mestra da vida, mas somente para aqueles que forem bons alunos." Heródoto "Quatro suplentes de senador, que vão exercer mandato apenas em janeiro, receberão, em média, R$ 100 mil cada um em benefícios." Folha de S.Paulo(edição de 6/1/2011) "Presidente do Tribunal de Contas da União é contratado, sem licitação, por entidades sujeitas à fiscalização do tribunal." Dos jornais A história da Inglaterra é, infelizmente, pouco estudada nas Faculdades de Direito brasileiras. Poucos se recordam que o "devido processo legal", tão invocado hoje em dia em nossos tribunais, nasceu naquele país, no distante ano de 1215, chegando à nossa Constituição por intermédio da Constituição norte-americana. Sua origem diz com abusos cometidos por governantes, coisa que não surgiu nos nossos dias, ao contrário do que parece a muitos. Em 1133 nascia, na França, Henrique, filho do Conde de Anjou e da filha do rei Henrique I, da Inglaterra. Com a morte do rei inglês, houve disputas sangrentas pelo trono, culminando com a invasão da ilha pelas tropas do neto de Henrique I, que se intitulou Henrique II. Suas primeiras providências foram no sentido de moralizar o reino, limitando os poderes nos nobres e criando um novo sistema de coleta de impostos. Foi iniciativa dele a edição do primeiro código de leis inglês. Além disso, nomeou magistrados com poderes de agir em nome da coroa, incentivando, porém, o julgamento pelo júri, que já era tradicional. O filme Becket, baseado na peça homônima de Jean Anouilh, estrelado por Peter O'Toole e Richard Burton e dirigido por Peter Grenville, reproduz, com relativa fidelidade, o que foram os dias tormentosos daquele reinado. Da vasta prole real, destacam-se os filhos Ricardo (cognominado Coração-de-Leão) e João (cognominado Sem-terra). Inicialmente, Henrique, filho mais velho do rei, e Ricardo insurgiram-se contra o pai, incentivados pela mãe, para conquistarem terras de além mar. A relação com o filho Ricardo piorou ainda mais com a elevação deste ao estatuto de herdeiro, depois da morte do irmão mais velho. Em Julho de 1189 Ricardo, auxiliado pelo rei Filipe II da França, derrotou o exército de Henrique em Chinon. Dois dias depois, o rei da Inglaterra morreu num castelo das redondezas, presumivelmente de ferimentos recebidos na batalha. Ricardo, celebrizado por Sir Walter Scott como o heróico líder das Cruzadas com o epíteto de Coração-de-Leão, na verdade um homem imaturo, pouco afeito a seus deveres de soberano e extremamente belicoso, assumiu o trono com a morte do pai. Embora rei, abandonava as coisas do governo para dedicar-se a lutas externas e à procura do misterioso Santo Graal. Essas aventuras levaram o país a uma situação de quase-falência, o que exigia a elevação dos tributos, fato que mais aumentou sua já grande impopularidade. John, também filho de Henrique II, sucedeu ao irmão Ricardo I no trono da Inglaterra, que assumiu em 1199, com apenas 32 anos de idade, aproveitando-se da ausência do rei, exatamente por estar participando das Cruzadas. Ainda era um período de grande tumulto, em razão não só das dívidas por ele herdadas como por estar o país envolvido em guerra com a França, que reivindicava as regiões de Anjou, Normandia e a Bretanha, pertencentes à coroa britânica. Isso já trazia inquietação entre os nobres desde o reinado de Henrique II, que, tanto quanto seu primogênito, havia governado o país com poderes cada vez maiores. O novo rei não era, como fora seu irmão, um guerreiro. Entretanto, herdou a situação caótica do reino, que seu irmão havia levado praticamente à falência. Os barões, que não aceitavam o modo como os reis vinham limitando a autoridade deles, não tinham, porém, um pretexto adequado para insurgirem-se contra o soberano, mesmo porque a reivindicação do retorno de seu privilégios faria voltar-se contra eles a ira do povo. O próprio rei, contudo, deu-lhes esse motivo quando, insurgindo-se contra a autoridade papal, se recusou a aceitar a designação de Stephen Langton para assumir o Arcebispado de Canterbury, em 1206. O papa Inocêncio III, em represália, além de excomungar o rei, determinou o fechamento de todas as igrejas do país, o que significou ficar o sofrido povo inglês sem o refrigério trazido por sua fé. A insatisfação popular levou o soberano a reconsiderar seu ato, submetendo-se à autoridade papal em 1213. Esse precedente seria habilmente explorado pela nobreza no futuro. De fato, no ano seguinte, uma fracassada tentativa do rei de retomar parte das terras ocupadas pela França elevou o clima de confronto entre o baronato e o soberano. Estrategicamente, encarregaram ninguém menos do que o arcebispo de Canterbury para redigir uma petição dirigida ao rei John, onde era reivindicado o reconhecimento de alguns direitos dos súditos em face do monarca. Eram 63 temas, a maioria dos quais, porém, interessando apenas ao baronato. Inicialmente o rei recusou-se a apor o selo real no documento, o que justificou que bispos e nobres realizassem a marcha do Exército de Deus e da Santa Igreja em direção à cidade de Londres, que foi por eles tomada, ameaçando alastrar a revolta por todo o país. No dia 15 de junho de 1215 o rei John finalmente reconheceu que não tinha escolha e acolheu a petição, comprometendo-se a pautar sua conduta em relação aos súditos de acordo com o ali proposto. Apôs o selo real no documento, exclamando a frase célebre: "As well may they ask my crown!". Bem que poderiam pedir a minha coroa! Formalizou-se, assim, a Magna Carta Libertatum, seu Concordia inter regem Johannem et Barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni Angliæ, semente do constitucionalismo moderno. Na época, porém, da assinatura da Magna Carta a cláusula do due process ainda não estava expressa em texto algum. A expressão clássica apareceu somente em 1354, quando um ato do rei Eduardo III, atendendo a uma petição que lhe havia sido apresentada pelos nobres, assim se expressava: "no man, of what state or condition soever he be, shall be put out of his lands, or tenements, nor taken, nor imprisoned, nor indicted, nor put to death, without he be brought in to answer by due process of law". Em português: "nenhum homem, de qualquer estado ou condição que seja, será expulso de suas terras ou posses, nem detido, nem preso, nem indiciado nem levado à morte sem que seja chamado para responder (a uma acusação) sob o devido processo legal". Com a promulgação da Constituição dos Estados Unidos da América do Norte, em 1789, o due process of law atravessou o oceano, trazido da Inglaterra e expressamente referido tanto na 5ª como na 14ª emendas à Constituição norte-americana. Em verdade, ele jamais foi claramente explicitado em lei, ao contrário do esperado por Edward Keynes: "Embora as cláusulas do devido processo legal sejam uma larga promessa de liberdade, elas não definem quais interesses específicos relacionados com liberdade e propriedade aí estão compreendidos. As cláusulas do devido processo expressam valores substanciais profundos que são a raison d'être de um governo constitucional - a proteção da vida, da liberdade e da propriedade, mas os autores da Quinta Emenda deixaram a definição dos interesses específicos relacionados com liberdade e propriedade ao Congresso e aos Tribunais" disse ele. Em realidade, tem cabido ao Poder Judiciário daquele país definir o que se inclui na mencionada clause, quer sob o aspecto substantivo (eventual violação pelo Legislativo ou pelo Executivo de princípios constitucionais que cuidam do relacionamento equânime entre os indivíduos e o Estado), quer quanto ao aspecto formal (os princípios a serem observados para que o processo judicial tenha o caráter garantístico dos direitos humanos fundamentais, especialmente os relativos à vida, à liberdade e à propriedade). O Brasil atual lembra aqueles tempos tormentosos. Os comentaristas políticos ressaltam que o governo Lula superou tudo o que já havíamos experimentado em termos de corrupção. A escolha dos novos ministros e a manutenção de muitos dos antigos, que compõem uma equipe de tal tamanho que não conhece semelhança em nenhum outro país, não justifica expectativas positivas, como ressaltam os mesmos comentaristas. Veja-se, por todos, a revista Veja n. 2.198, publicada em 5 de Janeiro deste ano. Por outro lado, o Congresso Nacional, composto de muitos elementos cuja biografia diz mais com o Código Penal do que com a seriedade na feitura de leis, também vem de superar-se em seus desmandos, elevando, a partir de sofisma insustentável, os ganhos de seus membros, que, entre vencimentos e fringe benefits, superam muitíssimo os ganhos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, escolhidos falsamente como paradigma. Quem porá um cobro a isso? Caso as entidades legitimadas a fazê-lo não venham a suscitar, perante o Supremo Tribunal, a inconstitucionalidade daquele abuso, por violação clara do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade (clique aqui), não será de estranhar que também aqui venhamos a ter uma "marcha sobre Londres", até porque nunca será demasia lembrar que, em 1964, por muito menos do que isso, tivemos o que tivemos, momento histórico que, segundo uma alta patente de nossas Forças Armadas, "não é motivo para vergonha" (clique aqui). Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém.
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Vigários

Os papas, Alexandre VI inclusive, se intitulam vicarius Christi, substituto de Cristo. Aliás, escrevi certa vez uma boutade que irritou alguns católicos de baixo humor: "O Papa, com a autoridade de representante de Deus na Terra, declara que todos os papas são representantes de Deus na Terra". Como quer que seja, conhecendo-se a vida daquele papa, que será leviandade generalizar, talvez se descubra a origem da palavra vigarista. Rodrigo Bórgia era sobrinho do papa Calisto III. "Se o meu tio conseguiu tornar-se papa, por que não posso também chegar lá?" eis o que se perguntava o jovem. Pois tantas fez o Rodrigo que, de fato, chegou lá, embora vivesse uma vida devassa e fosse pai de inúmeros filhos bastardos, dentre os quais César e Lucrécia, dois modelos de falta absoluta de virtude, o que já foi mostrado em número incontável de filmes. Santo padroeiro do nepotismo, Alexandre VI fez do filho César nada mais nada menos do que bispo. Idade do precoce religioso: 16 anos de idade! E nós achando que a vigarice foi inventada pelos nossos parlamentares. Em crônica escrita no final do século XIX, Machado de Assis já falava em conto do vigário, coisa que nos parece tão recente, muito embora hoje pareça coisa só de principiantes, diante dos crimes violentos que temos no noticiário dos jornais. Aquele era o caso clássico de um camarada que, vindo da Bahia, encontrou um almofadinha no Rio de Janeiro, um malandro bem vestido que poderia qualificar-se também de janota. Este se faz passar por homem ocupadíssimo que ainda agora está às voltas com dois compromissos igualmente importantes: ir ao consultório de seu médico, com quem tem hora marcada, ou rumar para a agência bancária onde mantém conta corrente, para ali depositar vinte contos de réis, que estão ali, dentro de um embrulho que ele traz no braço, nota a nota. O baiano, condoído, oferece auxílio. Não poderá, evidentemente, ir ao consultório médico, pois se cuida de ato personalíssimo, autêntica obrigação infungível, mas se dispõe a ir à agência bancária em nome do amigo recente e cumprir o dever que o espera. O carioca faz-se de reticente, insinuando que não poderia confiar em quem mal conhece, sabe como são os dias de hoje, tantos malandros soltos por aí. O outro morde a isca e assegura que não precisa do dinheiro do carioca, pois é plantador de cacau em Ilhéus. Tira da algibeira um pacote de notas de mil réis, o que faz o outro acalmar-se. "Embora o novel amigo não precise de dinheiro, façamos o seguinte: destes vinte contos de réis, faço-lhe doação de quatro contos, como sinal do meu reconhecimento pelo favor que me prestará. Vejo que dinheiro não é, para o amigo, tanto quanto para mim, problema maior, mas insisto que receba esta oferta", deve ter dito o estelionatário à sua quase vítima. O vacilo do outro será sua perdição. O carioca toma do dinheiro do baiano, coloca no mesmo pacote, "para facilitar o transporte", com a recomendação de que, chegando ao estabelecimento bancário ele não se esqueça de depositar apenas dezasseis contos de réis na conta. "Não vá depositar seu dinheiro e sua recompensa em minha conta por engano", deve ter dito o malandro, com um sorriso no rosto que encantou o outro, também dado a tais brincadeiras lá em sua terra natal. O resultado já se sabe. O caixa do banco não encontrou no pacote nem os quatro, nem os dezasseis e muito menos o dinheiro com que o baiano passaria as férias na cidade maravilhosa. Eis um autêntico cento e setenta e um machadiano. Pois tive em minha vida profissional caso parecidíssimo. Um rapaz chega à Santa Casa da cidade do interior, queixando-se de dores no peito. Felizmente ali na sala de espera está um médico, com o indefectível avental branco e o mais indefectível ainda estetoscópio ao pescoço, esperando, veja a coincidência, por um colega que está para chegar. As freiras que ali trabalham, aflitíssimas, não sabem o que fazer com o doente, não contando com a boa vontade do facultativo, que se apresenta a elas e tece loas à feliz coincidência. Feito isso, o doente é encaminhado para um quarto, onde é examinado longamente por seu providencial salvador. Salvador coisa nenhuma, queridas irmãzinhas. Saibam que a vida do rapaz está por um fio, diz-lhes ele, ao descer à portaria. Além disso, aquela maleta portada pelo rapaz, não sei se repararam nela, está cheia de dólares, que ele iria levar a São Paulo, para entregar a fulano de tal. Faria isso em atendimento ao último pedido de seu falecido pai. Este, coisa já de muitos anos, havia lesado um sócio em São Paulo e fugido para a Venezuela com uma bolsa cheia de dinheiro, que aplicou em petróleo. Agora, milionário, arrependido e nas últimas, encarregara o filho de trazer ao sócio lesado, além dos pedidos de desculpas, aquele dinheiro que levara, mais os juros e a correção que seus princípios éticos mandaram incluir na tal maleta. O infarto do miocárdio, vejam o que é a fatalidade!, impedirá que o filho cumpra a promessa do pai, que, por conta de infarto anterior, foi-se desta para a outra vida. Que fazer? Antes de mais nada, sugere ele desde logo, será importante guardar aquele dinheiro no cofre do hospital. Com tantos malandros soltos! Providencial medida, concordam elas. Ao levar a maleta ao cofre, o médico se surpreende com o fato de haver ali razoável soma de dinheiro, com o qual se pagariam as despesas muitas ao longo do mês, conforme lhe explica a ingênua freira. Cheque e cartão de crédito, naquele tempo, nem pensar. Posta ali a valise, todos agora estão mais acalmados, podendo o doente dormir tranquilo, mesmo porque o médico, generoso a mais não poder, ficará a seu lado durante toda a noite, pois o caso é sumamente grave. Só escapará dessa por milagre, minhas queridas irmãzinhas. Na manhã seguinte, quando a sorridente freira leva a bandeja com o café da manhã ao doente e a seu salvador, encontra o leito vazio. O avental branco e o estetoscópio descansam sobre a cadeira onde o dedicado médico deveria passar a noite em vigília. Claro que, ao abrirem o cofre só encontraram ali a maleta cheia de papel rasgado. Aproveitando-se da distração da freira, no dia anterior, o sócio do malandro pretensamente infartado transferira para o bolso tudo o que lá havia. O promotor da comarca menos não poderia fazer do que requerer o arquivamento dos autos, pela impossibilidade absoluta de identificarem-se os dois malandros. O que foi deferido por Minha Excelência, com lamentáveis risos de nós ambos. Santa ingenuidade, Batman!