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Arbitragem Legal

Aspectos atuais do instituto da arbitragem.

Thiago Marinho Nunes
Um tema que por vezes surge no âmbito do processo judicial e não se encontra livre de polêmicas é o que diz respeito à decretação judicial, de ofício, da prescrição da pretensão da parte. Tal tema surgiu pela primeira vez no direito brasileiro quando do advento da lei 11.280/06, que, inter alia, acresceu o § 5º ao art. 219 do antigo Código de Processo Civil de 1973 ("CPC/73"), com a seguinte redação: "O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição". O dispositivo acima restou suprimido pelo Código de Processo Civil de 2015 ("CPC/15"), mas seu espírito se manteve intacto, conforme se observa da redação do art. 332, § 1º do CPC/15: "O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição". E, no mesmo sentido, a redação do art. 487, inciso II do mesmo diploma: "Haverá resolução de mérito quando o juiz (...) II - decidir, de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição"1. De uma forma ou de outra a vontade do legislador nas reformas processuais de 2006 e 2015 prevaleceu: a prescrição pode ser decretada, de ofício, pelo juiz2. Tal regra foi incorporada ao sistema jurídico nacional com o propósito de promover a celeridade da prestação jurisdicional, permitindo ao juiz o indeferimento liminar da petição inicial quando se deparar com a ocorrência da prescrição da pretensão deduzida em juízo pelo autor3. As críticas a essa regra são inúmeras4, em razão da quebra de uma "tradição milenar - pois desde Roma a prescrição sempre foi tratada como uma exceção de direito material cuja arguição é da livre disponibilidade do devedor" 5, mas a apuração detalhada dessa mudança no instituto da prescrição não será abordada nestas breves notas. Não se está aqui reprovando toda e qualquer mudança de lei, eis que o ponto fulcral de uma reforma legislativa, ainda mais processual, como ocorreu no caso da prescrição ex officio, é justamente estabelecer um ponto de equilíbrio para que a celeridade do processo venha a fortalecer e melhorar a defesa do direito e não a enfraquecer6. O fato é que, ao menos em relação à prescrição, o legislador precipitou-se ao estabelecer o seu decreto ex officio, revogando disposições como a do art. 194 do Código Civil ("CC"7) e desvirtuando a verdadeira essência da prescrição extintiva. Pode-se asseverar que a mudança de regime da prescrição, elevando-a à questão de ordem pública processual, é absolutamente incompatível (com o processo civil8) e inaplicável à arbitragem. Em primeiro lugar, sem que se conteste a natureza jurisdicional do poder do árbitro, este somente poderá decidir sobre uma alegação de ocorrência de prescrição quando efetivamente provocado pela parte interessada. A arbitragem se operacionaliza por meio do protocolo do requerimento de arbitragem. Em caso de arbitragem institucional, tal requerimento é protocolado, seja por via física ou eletrônica, diretamente junto à determinada câmara, que adota as providências para que, inter alia, o tribunal arbitral seja constituído. Após a regular constituição do tribunal arbitral, firmar-se-á o termo de arbitragem e é nesse momento, estabilizador da demanda9, que eventuais alegações a respeito da ocorrência de prescrição poderão ser expostas pela parte interessada, no capítulo reservado aos pedidos da parte. Sem prejuízo, por óbvio, da alegação sobre ocorrência de prescrição em qualquer fase do procedimento, permitido pelo art. 193 do CC10. Em segundo lugar, a elevação da prescrição à questão de ordem pública no direito processual civil brasileiro não pode ser transposta à arbitragem, eis que a intenção do legislador ao promover as reformas de 2006 e 2015 no tocante à prescrição ex officio foi tão somente sacrificar a essência de um instituto jurídico para desafogar um assoberbado número de processos distribuídos junto ao Poder Judiciário11. Por isso, a decretação ex officio da prescrição é descartada na arbitragem, por uma simples razão de incompatibilidade desse ato com a natureza jurídica da arbitragem, própria para dirimir litígios mais específicos e peculiares em relação àqueles que são submetidos ao processo judicial12. Assim sendo, resta claro que a prescrição, em matéria de arbitragem, não ostenta caráter de ordem pública processual, como ocorre no processo civil judicial após o advento das reformas de 2006 e 2015. Sua natureza jurídica é, para a arbitragem, de ordem pública material13. A prescrição é uma questão que, a despeito da redação do art. 332, § 1º do CPC/15 - que manteve o caráter de ordem pública processual da prescrição14 -, ainda permanece como um simples meio de defesa do devedor, um meio de exceção de direito material. Trata-se aqui de um simples exemplo de inaplicabilidade à arbitragem de dispositivos do CPC que têm como alvo, unicamente, o processo judicial15. ___________ 1 Ainda que o parágrafo único do art. 487 do CPC/15 reconheça que tanto a prescrição como a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se, ele faz, em seu corpo, a ressalva da aplicação do citado § 1º do art. 332, que possibilita o exame da questão, ex officio, pelo juiz. 2 Com a ressalva da previsão contida no art. 10 do CPC/15, segundo o qual "O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício". 3 Segundo Oreste Nestor Lastro: "Com efeito, se a partir dos fatos e fundamentos jurídicos do pedido expostos na inicial, o juízo entender que ocorreu a prescrição ou decadência do direito do autor, pode liminarmente julgar a demanda improcedente" (Código de processo civil anotado. CRUZ E TUCCI, José Rogério; et al. (coords). São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo; OAB Paraná, 2019, p. 572). 4 Vide nesse sentido, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição - Liberdade e dignidade da pessoa humana. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo: Dialética, n. 40, p. 64-78, jul. 2006; do mesmo autor, A exceção de prescrição no processo civil. Impugnação do devedor e decretação de ofício pelo juiz. In: FABRÍCIO, Adroaldo Furtado; CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro (Coord.). Meios de impugnação ao julgado civil. Estudos em homenagem a José Carlos Barbosa Moreira. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 303-323. 5 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição - Liberdade e dignidade da pessoa humana. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo: Dialética, n. 40, p. 64, jul. 20. 6 Nesse sentido, oportuna a lição de José Rogério Cruz e Tucci, que, com apoio nos ensinamentos de Celso Agrícola Barbi, afirma que "as sucessivas reformas processuais têm sempre o objetivo de encontrar o ponto de equilíbrio, em que a celeridade desejável não provoque o enfraquecimento de defesa do direito de cada um" (Tempo e processo. São Paulo: RT, 1997. p. 38-39). 7 Eis o que dispunha o revogado art. 194 do CC: "O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo de favorecer a absolutamente incapaz". 8 Nesse sentido, explica Ricardo de Carvalho Aprigliano: "Não é a lei processual que poderá influenciar toda a disciplina material da prescrição, mas o inverso. Dadas as características gerais do instituto, suas origens históricas e o fato de subsistirem diversas normas que demonstram claramente o caráter da disponibilidade desta figura, é a lei processual que deve ser influenciada. Sua interpretação deve ser feita de forma a relativizar estes poderes do juiz, que deverão ser exercitados com muita parcimônia [...]". E complementa: "Acima de tudo, só poderá haver reconhecimento de ofício da prescrição se as partes forem previamente intimadas a se manifestar, argumento que demonstra, por si só, a fragilidade da modificação. Não porque o contraditório pudesse ou devesse ser dispensado em qualquer circunstância, inclusive em relação a matérias suscitadas primeiro pelo magistrado (conforme item 4.4, retro), mas apenas porque a decisão sobre a prescrição depende da alegação ou do esclarecimento de fatos diretamente pela parte, o que equivale a dizer que ela requer alegação, não se satisfaz com declaração de ofício" (Ordem pública e processo: o tratamento das questões de ordem pública no direito processual civil. 2010. São Paulo: Atlas, 2011, p. 124). 9 "O termo de arbitragem tem na delimitação do objeto do litígio e do pedido das partes seus pontos mais importantes, que representam a estabilização da demanda. Apesar de ser a convenção de arbitragem o instrumento originário e vinculante da arbitragem, não se pode deixar de considerar que o termo de arbitragem tem o condão de reiterar os termos da convenção de arbitragem, delimitar a controvérsia e ressaltar a missão do árbitro, que deverá ater-se às suas disposições, para não gerar motivos para a anulação da sentença arbitral." (LEMES, Selma M. F. A função e o uso do termo de arbitragem. Valor Econômico, p. e-2 - E-2, 08 set. 2005). 10 "Art. 193. A prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita". 11 Nesse sentido, afirma Donaldo Armelin: "Não militam em favor da aplicação subsidiária do disposto no art. 219, § 5.º, do CPC ao processo arbitral, os escopos que nortearam a promulgação da Lei 11.280/2006, centrados na necessidade de redução do número de processos mediante a extinção daqueles em que a pretensão sub judice já tenha sido afetada pela prescrição" (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 72, out.-dez. 2007). 12 Donaldo Armelin explica muito bem essa incompatibilidade: "Cerceou-se, na tela processual jurisdicional, a possibilidade de a parte ver declarada não apenas a extinção da pretensão como, ainda, do próprio direito ao qual ela se vincula. Porém, essa restrição não se impõe ao processo arbitral, que não suporta a opressão de milhares de litígios submetidos à jurisdição estatal, nem se harmoniza com o processo arbitral gerado pelo interesse das partes em ver extinto definitivamente o conflito de interesses no qual se encontram inseridas" (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 72, out.-dez. 2007). 13 Nesse sentido, vale citar lição de Yussef Said Cahali, que, a respeito da natureza jurídica da prescrição extintiva, entende que, "quando se diz que a prescrição é de ordem pública, tem-se em mente significar que foi estabelecida por considerações de ordem social, e não no interesse exclusivo dos indivíduos. Ela, assim, existe independentemente da vontade daqueles a quem possa prejudicar ou favorecer. A lei que cria é rigorosamente obrigatória". (Prescrição e decadência. São Paulo: RT, 2008. p. 19-20). 14 Segundo Donaldo Armelin, "a invocação da prescrição de pretensões de natureza patrimonial, até então adstrita ao alvedrio da parte por ela beneficiada, deixou de ser opção desta, passando a se constituir matéria de ordem pública processual, submetendo-se ao exame oficioso do juiz, que não poderá furtar-se ao seu reconhecimento" (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 66, out.-dez. 2007). 15 Sobre o assunto, ver aqui. Acesso em 15 abr. 2022.
Um tema que recentemente ressurgiu nas discussões que ocorrem durante a fase pós-arbitral diz respeito à possibilidade ou não de incluir árbitros e instituições arbitrais no polo passivo da ação anulatória de sentença arbitral, cujas hipóteses de cabimento encontram-se dispostas no art. 32 da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"). Tal questão, que havia sido sepultada por meio da decisão proferida no âmbito do Recurso Especial nº 1.433.940/MG1, está sendo objeto de debates no bojo de ação anulatória de sentença arbitral movida pela União Federal e que tramita perante o Tribunal Regional Federal da 3ª região2. Nesse processo, o juízo de primeira instância excluiu a câmara arbitral e os árbitros do polo passivo da demanda, mas em sede de liminar obtida em agravo de instrumento, a inclusão daquelas partes no polo foi restabelecida e agora pende de julgamento3. Tal debate - inclusão de instituições arbitrais e árbitros no polo passivo da demanda judicial de impugnação da sentença arbitral - sequer deveria existir, dada a sua atecnicidade. Com efeito, a instituição arbitral (assim como os árbitros) não possui legitimidade para figurar no polo passivo de ação que pretende anular sentença arbitral, por simplíssima razão: tais partes não possuem interesse processual na manutenção ou não da sentença arbitral. No mesmo sentido, em âmbito judicial, o juiz estatal não deve figurar no polo passivo da ação rescisória, eis que o prolator da decisão rescindenda, não é o destinatário da eficácia jurídica da desconstituição4. Tal posição é confirmada pela mais autorizada doutrina, a começar por Cândido Rangel Dinamarco: "Com esse perfil, a ação anulatória de sentença arbitral guarda alguma semelhança com a ação rescisória de sentenças ou acórdãos judiciais, dela diferindo em alguns aspectos (...). São legitimados a ela, (a) no polo ativo, aquele ou aqueles que houverem sucumbido no processo arbitral, interessados na desconstituição do laudo, e (b) no passivo, o vencedor ou vencedores, interessados em sua manutenção. São esses os sujeitos cujas esferas jurídicas serão de algum modo atingidas pelo julgamento de mérito a ser proferido na ação anulatória. O árbitro ou árbitros, embora sejam eles os autores do ato a ser anulado, não têm legitimidade para figurar na ação anulatória, tanto quanto o juiz estatal não é parte legítima à rescisória"5. Da mesma forma, é a lição de Flávio Luiz Yarshell: "Nem mesmo quando a demanda se fundar em vício decorrente de ato praticado pelos árbitros (particularmente no caso do art. 32, VI, da LArb), e suposto que a pretensão seja exclusivamente a de desconstituição da decisão arbitral, haverá tal legitimidade passiva na medida em que os árbitros não são os destinatários da eficácia jurídica da desconstituição"6. Ainda, a lição de Franciso Cahali: "Por opção do legislador, indicou-se o procedimento comum para a ação de desconstituição da sentença arbitral (arts. 318 e ss., do CPC/2015), a ser direcionada, quando se tratar de arbitragem com sede fixada no Brasil, ao órgão de primeiro grau do Poder Judiciário que seria competente para julgar originariamente a causa. Pela sua natureza, devem ser partes da ação todos aqueles que assim figurarem no procedimento arbitral; árbitros ou instituições arbitrais não possuem legitimidade para figurar no polo passivo da ação prevista no art. 33, caput, e §4º, da lei 9.307/1996"7. Finalmente, a lição de Leonardo de Faria Beraldo: "Com efeito, parece termos deixado bastante claro que o árbitro e a instituição de arbitragem não têm legitimidade para figurarem no polo passivo de eventual ação anulatória. A propósito, o TJSP já decidiu que "nesse passo, seria no mínimo teratológico, admitir que o Tribunal Arbitral possa figurar no polo passivo da lide, até porque esta é composta por aqueles que fazem parte da relação jurídica material controvertida, e o referido Tribunal, nenhum interesse possui na causa, já que naquela esfera assumiu a função de órgão julgador, imbuído de estrita imparcialidade para solucionar a causa a ele levada a julgamento"8. Tal posição foi corroborada pela jurisprudência brasileira, que, além do leading case do já citado Recurso Especial nº 1.433.940/MG, se posicionou pelo mesmo entendimento por meio de seus tribunais. Confira-se, em primeiro lugar, julgado oriundo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ("TJ/RJ"): "PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ARBITRAGEM. AÇÃO ANULATÓRIA DE NULIDADE DE SENTENÇA ARBITRAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA. Somente as partes que submeteram a solução do litígio ao juízo arbitral e se sujeitam aos efeitos da decisão proferida devem integrar a lide em que se postula a anulação do procedimento ou da decisão arbitral. Em decorrência da condição de julgadora, a árbitra carece de legitimidade para compor o pólo passivo na ação de nulidade de sentença arbitral, tanto mais que nem a causa de pedir nem os pedidos a envolvem. Recurso desprovido"9. Em seguida, cita-se julgado emanado do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina ("TJ/SC"): "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE INSTITUIÇÃO DE ARBITRAGEM. INÉPCIA DA INICIAL AFASTADA. LIDE PROPOSTA CONTRA A CÂMARA DE MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM CONSUBSTANCIADA EM EVENTUAIS NULIDADES NA INSTITUIÇÃO DA CLÁUSULA ARBITRAL DE RESPONSABILIDADE DA PARTE CONTRATANTE. EVENTUAL NULIDADE QUE NÃO PODE SER IMPUTADO AO JUÍZO ARBITRAL QUE ATUA NA MERA CONDIÇÃO DE PRESTADOR DE SERVIÇO PARA AS PARTES CONTRATANTES. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM RECONHECIDA. EXTINÇÃO DO FEITO, SEM JULGAMENTO DO MÉRITO, NOS TERMOS DO ARTIGO 267, VI, DO CPC. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ INEXISTENTE. DEMAIS ALEGAÇÕES QUE CARECEM DE ANÁLISE ANTE O ACATAMENTO DA PRELIMINAR PREJUDICIAL DE MÉRITO. SENTENÇA REFORMADA EM RELAÇÃO À LIDE PRINCIPAL. A legitimidade é uma das condições da ação e na ausência desta a pretensão das partes não pode ser analisada, acarretando por consequência a extinção do feito sem o julgamento do mérito, nos moldes do art. 267, VI, do CPC (...)"10. E, por fim, a posição do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP") a respeito do assunto: "APELAÇÃO AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE SENTENÇA ARBITRAL ILEGITIMIDADE PASSIVA Hipótese em que a apelante alega ser parte ilegítima para figurar no polo passivo da lide, argumentando que quem deveria responder pela ação anulatória de sentença arbitral deveria ser o presidente da Câmara Arbitral que proferiu a sentença no processo arbitral Ausência de legitimidade dos árbitros em razão deles não serem parte na relação processual Apelante que integrou o polo ativo da lide no Juízo arbitral Legitimidade evidenciada Preliminar rejeitada"11. Por fim, vale mencionar que o entendimento acima colocado, sedimentado na doutrina e na jurisprudência brasileira, foi objeto do 7º Enunciado da I Jornada "Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios" do Conselho Nacional de Justiça ("CNJ"), realizada em 22 e 23 de agosto de 2016, segundo o qual "os árbitros ou instituições arbitrais não possuem legitimidade para figurar no polo passivo da ação prevista no art. 33, caput, e § 4o, da lei 9.307/1996, no cumprimento de sentença arbitral e em tutelas de urgência"12. Tendo em vista o ressurgimento de tal desnecessário debate, algumas ações são recomendadas, de modo a preservar a imunidade da figura do árbitro e, porque não dizer, da instituição arbitral, cujo papel é unicamente de administrar o procedimento arbitral. É preciso que, no início da fase arbitral, quando devidamente constituído o tribunal arbitral, se estabeleçam regras que registrem: que a instituição arbitral não resolve as disputas, cabendo a ela somente a condução administrativa do procedimento submetido pelas partes ao tribunal arbitral para resolução. Assim, a instituição arbitral não é responsável pela sentença arbitral e consequentemente pelos seus efeitos13; que nenhum dos membros do tribunal arbitral poderá ser incluído como parte ou como testemunha em qualquer procedimento judicial ou outro resultante de determinado procedimento arbitral; que nenhum dos membros do tribunal arbitral será responsável perante qualquer das partes por qualquer ato ou omissão relacionado a determinada arbitragem, salvo demonstração de que um ou mais árbitros teriam agido de forma dolosa, o que precisaria ser indubitavelmente comprovado; que cada parte será responsável por indenizar os membros do tribunal arbitral relativamente a qualquer responsabilidade, custo ou pedido relacionado com determinado procedimento que resulte de seu ato ou omissão; que caso algum ou alguns dos membros do tribunal arbitral venha a ter de suportar alguma responsabilidade, custo ou despesa - seja de que natureza for - como resultado de conduta dolosa ou com negligência grosseira de uma das partes, essa parte será inteiramente responsável por ressarcir ou indenizar o(s) árbitro(s). Diante da atecnicidade da matéria ora discutida, e, notadamente da veemente posição da doutrina e jurisprudência a respeito do tema, enquanto não houver a conscientização desse tema pelos usuários da arbitragem e do contencioso judicial, não restará outra opção senão criar regras que estipulem sobre a imunidade dos árbitros bem como da própria instituição arbitral, prevenindo-se assim, futuras e infundadas demandas contra os aludidos atores. Pensa-se que a adoção de tais regras logo no início do procedimento arbitral, permita que o respectivo procedimento transcorra de forma serena, devendo os esforços das partes se concentrarem no mérito da disputa, o que, ao fim e ao cabo, é o verdadeiro ponto de interesse da resolução da disputa pela via arbitral. __________ 1 RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE PROCEDIMENTO ARBITRAL. POLO PASSIVO. ÓRGÃO ARBITRAL INSTITUCIONAL. CÂMARA ARBITRAL. NATUREZA ESSENCIALMENTE ADMINISTRATIVA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. INTERESSE PROCESSUAL. AUSÊNCIA. 1. A instituição arbitral, por ser simples administradora do procedimento arbitral, não possui interesse processual nem legitimidade para integrar o polo passivo da ação que busca a sua anulação. 2. Recurso especial provido. (STJ, REsp nº 1.433.940/MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 26.09.2017, DJ 02.10.2017, v.u). 2 Processo nº 5024529-11.2020.4.03.6100. 3 Agravo de Instrumento nº 5014095-90.2021.4.03.0000. TRF da 3ª Região, 2ª Turma. 4 Nesse sentido v. YARSHELL, Flávio Luiz. Ação Anulatória, in LEVY, Daniel; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (coord.), Curso de Arbitragem, São Paulo, RT, 2018, p. 452. 5 DINAMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo, São Paulo, Malheiros, 2013, p. 236. 6 YARSHELL, Flávio Luiz. Ação Anulatória, in LEVY, Daniel; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (coord.), Curso de Arbitragem, São Paulo, RT, 2018, p. 452. 7 CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem, 6ª Ed., São Paulo, RT, 2017, p. 399. 8 BERALDO, Leonardo de Faria. Curso de Arbitragem: nos termos da Lei nº 9.307/96. São Paulo: Atlas, p. 529. 9 TJRJ, 17ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 2006.002.00014, rel. Des. Henrique Carlos de Andrade Figueira, j. 11.01.2006. 10 TJSC, Apelação Cível nº 2011.080855-8, 3ª Câmara de Direito Civil, rel. Des. Saul Steil, j. 24.01.2012. 11 TJSP, Apelação Cível nº 1019871-29.2019.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Ricardo Negrão, j. 18.03.2020. No mesmo sentido, ver TJSP, Agravo de Instrumento nº 2150575-54.2021.8.26.0000, rel. Des. Francisco Casconi, 31ª Câmara de Direito Privado, j. 06.08.2021.         12 Fonte: Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios - Conselho da Justiça Federal (cjf.jus.br). Acesso em 22 mar. 2022. 13 A esse respeito, merece ser citada passagem de julgado emanado do TJRJ: "Como simples organizadora, a corte arbitral carece de legitimidade para compor o pólo passivo na ação de nulidade de sentença arbitral fundada em parcialidade do árbitro". TJRJ, Agravo de Instrumento nº 2005.002.15963, rel. Des. Henrique Carlos de Andrade Figueira, 17ª Câmara Cível, j. 14.09.2005.
No escrito publicado nesta Coluna na edição de 26 de outubro de 20211, discorreu-se, de forma geral, sobre os malefícios decorrentes do projeto de lei 3.293/212 ("PL"), que tem por escopo a alteração da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") para, dentre outras provisões, disciplinar o exercício da função de árbitro. Uma das mudanças propostas está na criação do limite de dez procedimentos arbitrais simultâneos para cada pessoa que exerce a função de árbitro. Adicionalmente, no escrito publicado em 25 de janeiro de 2022, o autor desta coluna em conjunto com o Dr. Bruno Guandalini, discorreu acerca dos malefícios econômicos para o Brasil que podem advir caso o referido PL seja aprovado3. Com o intuito de contribuir junto à Casa Legislativa sobre os perigos gerados pelo PL em questão o CIArb (Chartered Institute of Arbitrators), por meio de sua seção brasileira (Brazil-Branch4), elaborou nota técnica ("Nota Técnica") através de seus membros e fellows, Ricardo Aprigliano (coordenador), Bruno Guandalini, Pedro Ribeiro de Oliveira e o autor desta Coluna. Por meio da aludida Nota Técnica5, o grupo de trabalho procurou identificar defeitos técnicos constantes do PL e que não encontram sintonia com a sua própria Justificação. Resumidamente, a inadequação técnica do PL é revelada pelos seguintes fatores: a)   impõe restrições à liberdade das Partes incompatíveis com o modelo jurídico no qual a arbitragem se funda, tanto no direito brasileiro, como no cenário internacional; b)   transporta para o plano legal aspectos que, quando muito, devem ser regulados consensualmente pelas Partes ou disciplinados no âmbito de instituições arbitrais; c)   impõe insegurança jurídica ao ambiente de negócios, gera aumento de custos de transação, aumento o risco do crescimento de demandas judiciais, menor concorrência e aumento de custos à sociedade, afastando ou reduzindo os investimentos no país; d)  quanto aos árbitros6, propõe modificação para impor-lhes dever de revelar fatos que denotem "dúvida mínima" sobre sua imparcialidade e independência, substituindo o atual critério da "dúvida justificada". Assim, o Brasil passaria a adotar critério isolado, diferente de todos os demais países, muitos dos quais com secular convívio arbitral, dos tratados, de guias e diretrizes internacionais. Dúvida justificável, no sistema da Lei de Arbitragem de hoje, é um conceito juridicamente objetivo, cuja aplicação contribui para segurança jurídica da arbitragem no Brasil. "Dúvida mínima", ao contrário, não é. Sendo esse o critério do legislador, todo e qualquer elemento poderá ser utilizado para tentar, após a decisão de mérito, anular procedimentos arbitrais, a pretexto de violação a deveres de revelação. A instabilidade será enorme e, em pouquíssimo tempo, o instituto correrá sério risco de cair em desuso; e)  limita a quantidade de processos em que um mesmo profissional pode atuar, o que representa intromissão indevida do Estado na atividade profissional e impõe um cerceamento inconstitucional à livre iniciativa7. Ademais, esse controle já é realizado pelos usuários que livremente optam pela arbitragem, sendo desnecessário impor limites por via legal.  Importante ressaltar que o cerceamento legislativo da quantidade de arbitragens em que um profissional pode atuar não resultará em procedimentos mais céleres, mas cerceará a escolha dos usuários quanto aos profissionais capacitados para as disputas envolvendo matérias complexas, muito especializadas, para as quais o mercado necessita de profissionais capacitados tanto na matéria objeto da disputa quanto na condução de arbitragens; f)   inapropriadamente adiciona a ideia de disponibilidade do árbitro ao texto legal, ao lado do requisito já existente da confiança8. Primeiro, porque aquela já decorre desta, do que resulta em redundância do texto legal. Ademais, a matéria deve ser regulada pelas próprias partes e pelas instituições arbitrais, e não pela lei, o que, diga-se de passagem, já ocorre em termos práticos. Impor semelhante requisito não trará vantagens, tampouco aprimorará o sistema. Ao contrário, adicionará um elemento subjetivo, de aferição racionalmente impossível, que poderá ensejar a ampliação das impugnações e tentativas frívolas de anulação de sentenças arbitrais; g)  regula no plano legal, o que é inadequado, deveres de publicação de certas informações dos processos arbitrais, como a composição do Tribunal Arbitral, o valor da disputa ou mesmo a íntegra das decisões9. São matérias universalmente deixadas ao autorregramento do próprio setor, permitindo que se adote, em cada caso, a solução mais apropriada para aquela disputa em particular. A revelação indiscriminada destas informações suscita o risco de ensejar intimidação, manobras de procrastinação ou pressão sobre partes e árbitros, sem que se vislumbrem vantagens que decorreriam de um modelo legal que impõe, a priori, a divulgação de informações sensíveis e que, como regra, os agentes de mercado optam por manter em caráter reservado. A violação da confidencialidade possui um custo relevante para os agentes econômicos. Em outras palavras, desenvolver negócios em um país que não permite a solução de conflitos legais confidencialmente é mais arriscado e mais caro10. O resultado tenderá a afugentar os melhores profissionais, reduzir a escolha da arbitragem como método adequado de solução de disputas, prejudicando o ambiente de negócios no país; h)  por fim, impede que dirigentes de instituições arbitrais funcionem como árbitros ou advogados em procedimentos nas mesmas instituições, o que igualmente configura vício de inconstitucionalidade, por restringir indevidamente a livre iniciativa dos usuários e a liberdade profissional, além de afugentar os melhores profissionais e impor, pela via legal, uma restrição ao funcionamento das instituições arbitrais que, em termos práticos, deve decorrer da sua autorregulação11. Em suma, o projeto mira falsos problemas e a eles propõe supostas soluções que, se implementadas, criarão, elas próprias, inúmeros problemas reais. Em termos legais, será um retrocesso ao período anterior à edição da Lei de Arbitragem, com um arcabouço legal que poderá eliminar a adoção da arbitragem no Brasil. No melhor cenário, terá como resultado a redução de casos, a migração das arbitragens brasileiras para outros países e a eliminação do país como possível sede de arbitragens internacionais. Portanto, mostra-se não só dispensável qualquer mudança legislativa para a regulação da função de árbitro, mas também absolutamente necessária a manutenção da autonomia da vontade das partes e a ausência de limitação do exercício da função de árbitro no Brasil. Tais razões contribuem para que o PL em questão não seja levado adiante. ______________ 1 Árbitros e arbitragens: a propósito do PL 3.293/2021 - Migalhas. 2 Fonte: Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 27 dez. 2021. 3 Árbitros e arbitragens Parte II: PL 3.293/21, eficiência da arbitragem - Migalhas 4 Fundado em 1915, o CIArb é uma organização que congrega inúmeros profissionais atuantes na seara da resolução de disputas (arbitragem, mediação, dispute boards, inter alia) em todo o mundo. Baseada em Londres, conta com aproximadamente 16.000 membros distribuídos em 39 branches em 133 países. Possui, desde 2019, uma representação no Brasil (CIArb Brazil Branch) e, ao longo de sua existência, editou uma série de diretrizes acerca de práticas consolidadas no âmbito da arbitragem internacional e que podem servir como guia útil para a orientação de advogados, in-house counsels e árbitros envolvidos em procedimentos arbitrais. A página do CIArb Brazil pode ser acessada aqui. Acesso em 11 fev. 2022. 5 A íntegra da Nota Técnica pode ser acessada aqui. Acesso em 11 fev. 2022. 6 Conforme proposta de modificação do artigo 14 da Lei de Arbitragem. 7 Conforme proposta de modificação do artigo 13 da Lei de Arbitragem. 8 Conforme proposta de modificação do artigo 13 da Lei de Arbitragem 9 Conforme proposta de introdução dos artigos 5º-A e 5º-B da Lei de Arbitragem. 10 O que igualmente diz respeito à proposta de modificação do artigo 33 da Lei de Arbitragem. 11 Conforme proposta de modificação do artigo 14 da Lei de Arbitragem.
No escrito publicado nesta coluna na edição de 26 de outubro de 20211, discorreu-se, de forma geral, sobre os malefícios decorrentes do PL 3.293/212 ("("PL") que tem por escopo a alteração da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") para, dentre outros, disciplinar o exercício da função de árbitro, atribuindo um número limite de dez procedimentos simultâneos para cada pessoa. A par do que fora tratado no aludido escrito, um aspecto relevante que merece ser levado em consideração é a análise econômica da medida referida no PL e a potencial ineficiência para a arbitragem no Brasil. A Justificação da medida de limitar o número de casos simultâneos de uma pessoa na função de árbitro se fundamenta na suposta garantia do dever de diligência do árbitro e consequente celeridade do procedimento. A Justificação do PL presume que o número de procedimentos em que atua um árbitro teria uma correlação lógica com sua diligência e eventual aumento de tempo do procedimento3 e que, ao limitar a dez procedimentos por pessoa, a diligência do árbitro estaria garantida, assim como estariam evitadas nomeações repetidas. Além de tal proposta sepultar os grandes pilares do sistema arbitral (como a autonomia da vontade das partes), ela carece sentido lógico-jurídico ou razão econômica. Isso porque não se pode estabelecer uma correlação lógica entre o número de procedimentos simultâneos nos quais alguém esteja investido na função de árbitro (em dez procedimentos) e o efetivo exercício do dever de diligência, disponibilidade (ou sua falta) ou mesmo a exclusão de nomeações repetidas. Com efeito, a ausência de diligência e disponibilidade de potenciais candidatos ao posto de árbitro não decorre do número de arbitragens que esteja envolvido. Como a profissão de árbitro não existe e o exercício da função de árbitro - por natureza e definição - é feito por uma pessoa que exerce qualquer outra atividade profissional (advogado, professor, engenheiro, economista, contador etc.), são essas outras atividades que definem a disponibilidade do profissional, sem contar outras questões de cunho pessoal, como disposição física e mental, dentre outras. Uma pessoa investida na função em dezenas de procedimentos pode ser muito mais diligente, devido ao caráter de "profissionalização", do que um professor ou advogado muito atarefado, não acostumado ao exercício da função de árbitro. Ora, o alegado problema de eventual falta de diligência e disponibilidade resolve-se pelo próprio mercado arbitral, autorregulável, não havendo a necessidade de qualquer interferência legislativa. Deve-se reduzir a assimetria informacional e o risco moral para permitir a decisão informada da rejeição, pelos próprios litigantes, de candidatos com falta de diligência e pouca disponibilidade e aumentar a liberdade e competição entre os árbitros, de forma que a reputação possa regular o mercado de árbitros e proporcionar arbitragens mais eficientes. E, é exatamente a eficiência desse mercado de árbitros4-5 e da arbitragem que será afetada negativamente caso o PL em questão seja aprovado da forma que se encontra. Os efeitos serão adversos também ao próprio instituto da arbitragem como setor jurídico autônomo, que criarão um desincentivo à busca pela arbitragem e à oferta de novos profissionais para o exercício da função de árbitro, o que por sua vez diminuiria o mercado e culminaria em resultado contrário às premissas da Justificação do PL. Assim, um dos efeitos mais nefastos do PL é a seleção adversa no mercado (na oferta) de árbitros. Se aprovado, haverá a imediata diminuição da gama de pessoas que poderiam exercer com qualidade a função de árbitro no Brasil e o esvaziamento do incentivo econômico para aperfeiçoamento da função, que não é profissionalizada, mas que existe num contexto mercadológico. O incentivo econômico legítimo decorrente da possibilidade de se ter diversas nomeações simultâneas é auferir importante renda6. É por isso que, conforme muito bem notado pela Justificação do PL, recentemente aumentou-se muito o interesse pela função de árbitro no Brasil. Cada vez mais juristas e profissionais reconhecidos em suas disciplinas têm buscado especialização e atuação na função. Da mesma forma, profissionais mais jovens vêm buscando o conhecimento e reputação visando o justo reconhecimento para exercer a função de árbitro, o que, inclusive, é fomentado por diversas e reputadas instituições arbitrais brasileiras7. E, naturalmente, a consequência direta do agente econômico racional diante da limitação da atuação é a saída do mercado e menor busca por especialização, o que causa outras consequências adversas, como a imediata redução da oferta pelos melhores profissionais e da qualidade das pessoas aptas a exercerem a função de árbitro. E a consequência para as partes e para a arbitragem não será outra: aumento dos custos do procedimento, piora da qualidade das decisões com menor oferta de profissionais qualificados e, possivelmente, no maior número de ações anulatórias de sentença que passarão a ser proferidas por profissionais menos experientes, o que contradiz a própria Justificação do PL a respeito da diminuição do número de ações anulatórias de sentenças arbitrais. Em suma, a limitação proposta pelo PL poderá gerar graves consequências de caráter econômico para o mercado da arbitragem, além de uma piora sistêmica na qualidade da arbitragem no Brasil. A redução dos custos de transação proporcionada pela arbitragem como mecanismo eficiente de resolução de disputas seria prejudicada, trazendo clara ineficiência aos contratos, aos negócios e à economia brasileira. O objetivo dessas breves linhas não é proteger a arbitragem vista sob a perspectiva econômica ou do dito mercado de árbitros, mas tão somente mantê-la como sistema necessário aos usuários, diga-se, capaz de trazer mais eficiência na resolução de conflitos. Após vinte e cinco anos de vigência legal, é possível afirmar que a arbitragem já se consolidou no Brasil como o principal e mais adequado método para resolver determinados litígios, como disputas societárias e relacionadas a grandes projetos de infraestrutura. Como bem reconheceu a Justificação do PL, os contratos mais complexos da administração pública também já se socorrem da arbitragem. Isso decorre do fato de que a arbitragem, tal qual como é regulada pela vigente Lei nº 9.307/96, já é capaz de reduzir custos de transação nesses negócios jurídicos e gerar estabilidade8. Portanto, mostra-se não só dispensável qualquer mudança legislativa para a regulação da função de árbitro, mas também absolutamente necessária a manutenção da autonomia da vontade das partes e a ausência de limitação do exercício da função de árbitro no Brasil. Tais razões contribuem para que o PL em questão não seja levado adiante. 1 Árbitros e arbitragens: a propósito do PL 3.293/2021 - Disponível aqui. 2 Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 27 dez. 2021. 3 "Por exercer func¸a~o judicante e personali'ssima, considerando sua livre indicac¸a~o pelas partes, a Lei no 9.307/96 exige que o a'rbitro conduza os casos com dilige^ncia, eis que a celeridade e' caracteri'stica i'nsita aos procedimentos arbitrais. O que se tem notado na pra'tica, pore'm, e' a presenc¸a de um mesmo a'rbitro em algumas dezenas de casos simultaneamente, bem assim o aumento no tempo de tramitac¸a~o das arbitragens." E a Justificação continua: "Outrossim, faz-se mister limitar a quantidade de arbitragens em que um profissional pode atuar ao mesmo tempo, evitando-se indicac¸o~es repetidas por uma mesma parte e assegurando que a conduc¸a~o sera' diligente, como determinado pelo legislador." 4 Sobre a existência do aludido "mercado", cita-se a lição de Carlos Eduardo Stefen Elias: Não há dúvidas de que a prática da arbitragem ensejou a formação de um conjunto de profissionais especializados nesse método de solução de controvérsias: além do reconhecimento entre seus pares, árbitros, advogados das partes, pareceristas e outros prestadores de serviços jurídicos, estão a atuar em um campo que impõe desafios profissionais, geralmente envolve altas somas de dinheiro e pode proporcionar polpudos honorários. Assim, a procura dos agentes econômicos em situação de conflito pela prestação de serviços jurídicos ligados à arbitragem e a oferta desses mesmos serviços pelos profissionais da área possibilita a constituição de um verdadeiro mercado profissional". (Imparcialidade dos Árbitros. Tese de Doutoramento. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2014, p. 101). 5 Especificamente sobre a existência de um mercado de árbitros, relata Bruno Guandalini: "Several factors have turned the arbitrator's function into a real market object. At first glance, the expansion of the arbitration market would be considered the first and main reason. Mr. Mosk and Mr. Ginsburg summarize that the growth of international arbitration has been caused by the increase in international trade, the reduction of political and trade barriers, the growth of international law firms, and the expansion of arbitration itself as an alternative dispute resolution method. But it is also attributed to systemic factors such as the continuous development of a global legislative framework supportive of arbitration, arbitration-friendly reforms at the judicial and legislative level in different jurisdictions, and the recognition of the advantages of arbitration by end users". (Economic Analysis of the Arbitrator's Function, International Arbitration Law Library, v. 55, Kluwer Law International 2020, p. 58). 6 Como afirma Bruno Guandalini: "The first step is to accept that arbitrators are rational economic agents. The arbitrator's function is susceptible to market mechanisms, because, even though in its roots the arbitrator's contract is not onerous, it is in practice. As money is the most efficient incentive mechanism, and the function's main objective is to render justice, the market may exert some influence on the function's main goal: rendering justice". (Economic Analysis of the Arbitrator's Function, International Arbitration Law Library, v. 55, Kluwer Law International 2020, p. 5). 7 A esse respeito, citam-se o Comitê de Jovens Arbitralistas do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CJA-CBMA), New Generation do CAM-CCBC, a CAMARB Jovem, a ARBITAC Jovem, entre outros. 8 Nesse sentido a opinião de Antonio Celso Fonseca Pugliese e Bruno Meyerhof Salama: "Com efeito, se comparada à prestação jurisdicional estatal, a arbitragem pode reduzir os custos de transação da prestação jurisdicional. Em primeiro lugar, em razão da agilidade com que é concluída. O procedimento arbitral não está sujeito à rigidez dos processos judiciais, não se submete ao regime dos infindáveis recursos a instâncias superiores, e os árbitros, não raro, contam com a infra-estrutura necessária para que suas decisões sejam tomadas com grande rapidez". (A economia da arbitragem: escolha racional e geração de valor. Revista Direito GV São Paulo, n. 4(1), jan./jun. 2008, p. 19).
terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A impossibilidade jurídica do árbitro-robô

Um dos assuntos mais debatidos nos últimos tempos diz respeito à influência da tecnologia no processo, notadamente, ao uso da inteligência artificial no âmbito processual. Um delicado e polêmico tema relacionado ao uso da inteligência artificial no âmbito do processo é a possibilidade ou impossibilidade daquele que exerce o papel de julgador ser uma máquina, hipótese em que a justiça é ou não realizada com o auxílio da inteligência artificial. Em recente estudo, o criminalista Luís Greco, professor catedrático da Universidade Humbolt de Berlim, Alemanha, chegou à conclusão da impossibilidade jurídica de um robô ser investido na função de julgador (no caso, o juiz estatal) e decidir definitivamente uma lide. Para Greco, "O juiz-robô significa poder de julgar sem responsabilidade de julgador", e "não há direito real ao contraditório (art. 5º LV CF) diante de uma máquina"1. De uma forma geral, para Greco, um robô não pode entregar a tutela jurisdicional. A abordagem realizada por Greco, com a qual se concorda, tem como foco a atividade jurisdicional realizada pelos juízes estatais. No entanto, em breve passagem da referida obra, sugere Greco que, na via da arbitragem, em que os julgadores são eleitos pelas partes, haveria espaço para a escolha do "árbitro-robô". Assim, discorre o referido autor: "Fora da justiça penal, isto é, em especial em litígios de natureza cível, o consenso opera de forma similar a uma convenção de arbitragem (§, 1029 ZPO; art. 3º e ss. lei 9307/96; deve ser, portanto, possível legitimar o juiz-robô em condições análogas. As partes poderão pôr-se de acordo com que um robô decida a controvérsia da mesma forma que podem subtrai-la da jurisdição estatal em favor de um árbitro ou até mesmo de uma disputa de cara ou coroa. Quem pode submeter-se à aleatoriedade de um lançamento de moeda, pode submeter-se à irresponsabilidade de uma máquina"2. Conquanto correta a conclusão de que um robô investido na condição de juiz estatal não exerce função jurisdicional por pura impossibilidade jurídica, a visão do autor acima transcrita, ainda que tecnicamente defensável, não encontra guarida no sistema arbitral brasileiro. Nos termos do direito brasileiro, a pessoa que exerce a função de árbitro, deve ostentar uma série de qualidades, próprias da pessoa humana: a par dos cruciais elementos da independência e imparcialidade, o árbitro deve ser, nos termos da lei, competente, diligente e discreto3. Necessita, também, ter disponibilidade, ser eficiente, saber trabalhar em harmonia com demais membros do tribunal arbitral, ter coragem para decidir e, acima de tudo, ser ético. A confiança da qual é caracterizada a arbitragem tem o seu centro das atenções na figura do árbitro. Isso porque, na dicção do art. 13 da Lei de Arbitragem, "Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes". Trata-se aqui da confiança lida em seu sentido estrito, isto é, na crença na probidade moral, na sinceridade e lealdade e, também, na competência técnica4 do profissional que exerce a função de árbitro. Além disso, o ponto de maior estratégia em qualquer arbitragem, está na escolha do árbitro. A arbitragem, como se sabe, vale o que vale o árbitro5, pois é dele a responsabilidade pela prestação jurisdicional. Na acepção legal, o árbitro é juiz de fato e de direito6 e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. É dele a obrigação, de resultado, de proferir uma sentença exequível7 e, ao fim e ao cabo, entregar a tutela jurisdicional. O mero fato de o sistema arbitral estar fundado na plena autonomia da vontade das partes não abre espaço, automaticamente, a que o julgador escolhido seja uma máquina. Não há dúvidas de que a tese da escolha de um robô para julgamento de lide arbitral encontraria algum fundamento no princípio da confiança ditado pelo art. 13 da Lei de Arbitragem8, mas o sistema arbitral, lido e analisado como um todo, não comporta o julgamento de árbitros-robôs9. Como bem afirma Greco, "o ordenamento jurídico pressupõe a todo momento que a responsabilidade do juiz é algo especial, a ponto de existirem atos que só ele pode praticar"10. Na arbitragem, não é diferente. O árbitro está obrigado ao cumprimento de uma série de deveres previstos na Lei de Arbitragem, bem como na própria Constituição Federal. Deve o árbitro ser independente, imparcial, competente, diligente e discreto. Deve o árbitro instigar as partes, no início do procedimento, à conciliação11. Deve o árbitro comandar o procedimento, fomentando o contraditório participativo entre as partes12, seja na fase postulatória, seja na instrutória. Deve o árbitro propiciar ambiente de amplo debate na fase de instrução da arbitragem, seja por meio da oitiva de testemunhas fáticas e técnicas, seja pela oitiva de especialistas em determinado setor da indústria. Deve o árbitro valorar a prova colhida. Deve o árbitro relatar, fundamentar e decidir o litígio entre as partes, por meio de sentença, a qual equipara-se à sentença judicial. É inconcebível que tais atos sejam praticados por uma máquina13. A menos que se adote outro método de resolução de disputas. E não é só. A decisão proferida por um árbitro-robô causaria entraves aos direitos das partes de impugnarem a aludida decisão, em razão da obscuridade dos algoritmos utilizados nas ferramentas de inteligência artificial, o que não ocorreria com o julgador humano, o qual, no âmbito da arbitragem, precisaria seguir o quanto disposto no art. 26 da Lei de Arbitragem bem como o art. 93, IX da Constituição Federal (fundamentação das decisões)14. O objetivo dessas breves linhas foi trazer à lume as importantes lições trazidas por Luís Greco no seu já clássico "Poder de julgar sem responsabilidade de julgador: a impossibilidade jurídica do juiz-robô", e tentar transpor a mesma lógica ao árbitro. Como diz, Greco, "a pessoa jurídica não é juiz, muito menos juiz natural"15 e tal premissa aplica-se ao sistema arbitral brasileiro. Tais conclusões não tiram e nem devem tirar o brilhantismo dos recentes estudos sobre o uso da inteligência artificial no âmbito do processo16, que contribuem, e muito, para a evolução do estudo da crise numérica enfrentada pelo Poder Judiciário brasileiro. Seja para o processo estatal, seja para a arbitragem, jamais a comunidade jurídica deverá virar as costas para a inteligência artificial, que constitui elemento imprescindível na atividade jurídica17, notadamente como ferramenta de auxílio para a tomada de decisões jurídicas, mas não como substituta à atividade humana18.  ___________ 1 GRECO, Luís. Poder de julgar sem responsabilidade de julgador: a impossibilidade jurídica do juiz-robô. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 59. 2 GRECO, Luís. Poder de julgar sem responsabilidade de julgador: a impossibilidade jurídica do juiz-robô. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 52-53. 3 Art. 13, § 6º da Lei nº 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem"). 4 Segundo Antônio Lopes de Sá: "O conhecimento, no caso, não é apenas a acumulação de teorias, teoremas e experiências, mas também o domínio pleno sobre tudo o que é abrangido pela tarefa que se encontra sob a responsabilidade direta de um profissional (...). É dever ético-profissional dominar o conhecimento, como condição originária da qualidade ou eficácia da tarefa". (Ética Profissional. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 155). 5 Segundo Selma Ferreira Lemes: "Discorrer sobre o papel do árbitro no procedimento arbitral impõe, inicialmente, refletir sobre um adágio mundialmente conhecido: 'a arbitragem vale o que vale o árbitro", fato incontroverso. E mais, saliento que "o árbitro representa a chave da abóbada da arbitragem e ao seu redor gravitam todos os temas e conceitos afeitos à arbitragem'." (O papel do árbitro. Disponível em: http://selmalemes.adv.br/artigos/artigo_juri11.pdf. Acesso em 08 dez. 2021). 6 Art. 18 da Lei de Arbitragem. 7 Art. 31 da Lei de Arbitragem. 8 Nesse sentido, a posição de Carlos Alberto Carmona e Vitor Silveira Vieira: "É bem provável que, em futuro próximo, a interpretação literal do art. 13 da Lei de Arbitragem (ou de disposições similares) ceda espaço para privilegiar a intenção das partes de resolver seus conflitos por meio de programa de inteligência artificial, nomeando, se quiserem, pessoa física responsável apenas pela programação ou funcionamento do software" (Inteligência artificial e processo arbitral. In: VAUGHN, Gustavo, DUARTE, Rodrigo, ARRUDA, Raphael, COSTA, Fabio e MORELLO, Ana Vitória (orgs.). Direito, mercado jurídico e sociedade: estudos em comemoração aos três anos do grupo de jovens advogados Leading Young Lawyers São Paulo: Lualri, 2020, p. 373). 9 A arbitragem aqui referida é a clássica arbitragem comercial, que impera no Brasil. Carlos Alberto Carmona e Vitor Silveira Vieira, assim afirmam: "(...) Não se pode tomar como parâmetro as grandes arbitragens comerciais e a partir delas estabelecer regra para toda a gama de espécies de processos arbitrais passíveis de serem moldados pelas partes (...)" (Inteligência artificial e processo arbitral. In: VAUGHN, Gustavo, DUARTE, Rodrigo, ARRUDA, Raphael, COSTA, Fabio e MORELLO, Ana Vitória (orgs.). Direito, mercado jurídico e sociedade: estudos em comemoração aos três anos do grupo de jovens advogados Leading Young Lawyers São Paulo: Lualri, 2020, p. 374). 10 GRECO, Luís. Poder de julgar sem responsabilidade de julgador: a impossibilidade jurídica do juiz-robô. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 51. 11 Art. 21, § 4º, da Lei de Arbitragem. 12 Nesse sentido, posição de Andre Vasconcelos Roque e Lucas Braz Rodrigues dos Santos: "E, para além disso, a ausência de transparência também prejudica o próprio exercício do direito de ação e do contraditório, em sua dimensão de influência sobre o convencimento do julgador (contraditório participativo), na medida em que traz obstáculos à parte derrotada no processo, os quais impedem o exercício desses direitos em sua plenitude, por não lhe ser possível compreender o processo de formação do algoritmo que levou à tomada da decisão prejudicial a seus interesses" (Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro. ano 15. vol. 22. n. 1. jan./abr. 2021, p. 58-78). 13 Na visão de Samuel Rodrigues de Oliveira e Ramon Silva Costa: "A imagem de um juiz robô, ou uma máquina de decidir, continua sendo mais uma utopia na ideia de substituir o governo das pessoas pelo governo das máquinas. Considerando-se que ainda hoje só existem sistemas baseados em inteligências artificiais fracas, é possível perceber que a evolução da informática não foi capaz de alcançar uma representação adequada de toda a complexidade ínsita ao Direito e ao processo de decisão judicial. Por mais completo e complexo que seja um sistema jurídico inteligente, uma máquina não pode substituir a capacidade de apreciação e valoração humana, tampouco pode motivar uma sentença, como deve fazer um juiz. A inteligência artificial pode e deve funcionar como ferramenta de auxílio para a tomada de decisões jurídicas e justificação das decisões, mas não como substituta à atividade humana" (Pode a máquina julgar? Considerações sobre o uso da inteligência artificial no processo de decisão judicial. Revista de Argumentação e Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre, v. 4, n. 2, 2018, p. 21-39). 14 Como bem afirmam Dierle Nunes e Ana Luiza Pinto Coelho Marques, tomando por base o direito processual civil: "Há, contudo, um agravante: as decisões tomadas por humano são impugnáveis, pois é possível delimitar os fatores que ensejaram determinada resposta e o próprio decisor deve ofertar o iter que o induziu a tal resposta (arts. 93, IX, CF/1988 (LGL\1988\3) e 489 do CPC (LGL\2015\1656)). Por outro lado, os algoritmos utilizados nas ferramentas de inteligência artificial são obscuros para a maior parte da população - algumas vezes até para seus programadores - o que os torna, de certa forma, inatacáveis. Em função disso, a atribuição de função decisória aos sistemas de inteligência artificial torna-se especialmente problemática no âmbito do Direito" (Inteligência artificial e direito processual: vieses algorítmicos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas. Revista de Processo, vol. 285, 2018, p. 421 - 447. 15 GRECO, Luís. Poder de julgar sem responsabilidade de julgador: a impossibilidade jurídica do juiz-robô. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 49. 16 A esse respeito, ver, por todos, Litigation 4.0. O futuro da justiça e do processo civil vis-à-vis as novas tecnologias (coord. FEIGELSON, Bruno, BECKER, Daniel e RODRIGUES, Marco Antonio). São Paulo: Revista doa Tribunais, 2021 17 Como bem afirmam Jennifer Amanda Sobral da Silva e Carlos Henrique Passos Mairink: "A inteligência artificial veio como uma aliada, e não uma inimiga para que os profissionais do direito brasileiro continuem apresentando tanta resistência em sua implementação" (Inteligência artificial: aliada ou inimiga. LIBERTAS: Rev. Ciênci. Soc. Apl., Belo Horizonte, v. 9, n. 2, p. 64-85, ago./dez. 2019). De igual forma é a posição de Andre Vasconcelos Roque e Lucas Braz Rodrigues dos Santos: "Dessume-se, a partir dessa breve reflexão, que, apesar de a inteligência artificial revelar-se como uma forte aliada na retomada na promoção e eficiência dos atos processuais, o seu avanço tecnológico sem a devida cautela pode-se revelar temerário" (Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro. ano 15. vol. 22. n. 1. jan./abr. 2021, p. 58-78). 18 Digno de nota, a esse respeito, a conclusão alcançada por Greco: "O fundamental é que o direito é e tem de continuar a ser obra nossa. Nenhuma máquina pode nos prescrever de que maneira nós, enquanto responsáveis, temos de conviver uns com os outros. Dessa decisão e dessa responsabilidade não podemos nos furtar. O juiz-robô seguramente não é o primeiro, mas talvez o último passo que daremos em uma direção errada" (Poder de julgar sem responsabilidade de julgador: a impossibilidade jurídica do juiz-robô. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 64).
Como é de conhecimento geral, a arbitragem está inserida num microssistema dissociado do processo judicial, que comporta fases pré-definidas (pré-arbitral, arbitral e pós-arbitral). O fim da arbitragem se dá com a prolação da sentença, seja ela parcial ou final. Contra ela, não caberá recurso, ostentando de imediato (ressalvados os casos em que as partes apresentam pedidos de esclarecimentos), efeito de coisa julgada material. A impossibilidade de rediscussão do mérito da sentença arbitral é, sem dúvida, uma das grandes vantagens da arbitragem. Tendo as partes escolhido a arbitragem, conscientemente, no contrato que deu azo à controvérsia, optaram por um método célere e extremamente técnico para a resolução do litígio. Ocorre que, a depender do caso, nos termos do rol taxativo previsto na lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), podem as partes se valer de ação judicial que visa anular a sentença arbitral. Tais hipóteses, previstas no art. 32 da Lei de Arbitragem, são meramente formais, sendo vedada a rediscussão do mérito da sentença. Pensando no importantíssimo fator tempo, o qual, na atividade jurídica, produz uma série de efeitos1, houve por bem o legislador fixar o derradeiro prazo de 90 (noventa) dias para o ajuizamento de ação visando a anulação da sentença arbitral. A intenção do legislador ao fixar o aludido prazo foi criar um estado de sujeição à parte interessada em desconstituir o julgado arbitral, em benefício do tempo, no seu mais puro sentido social. Tal limite temporal restou igualmente confirmado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), inclusive para as sentenças parciais de mérito2. Com efeito, a harmonia e estabilidade das relações sociais são determinadas pelo tempo. O tempo exerce a sua influência no direito, uma vez que este determina prazos cuja finalidade é o adequado funcionamento da ordem jurídica, evitando-se transtornos aos operadores do direito, isto é, às partes, aos advogados e julgadores. Transtornos dos que mais inquietam o ser humano, como já dizia José Rogério Cruz e Tucci3, ou que promovem os mais desagregadores efeitos na sociedade, como entende Paulo Borba Casella4. O fator temporal, portanto, tem o condão de estabelecer certeza jurídica, em prol do interesse público5. Certamente levando em consideração a importância do fator tempo na fase pós-arbitral, a preservar a força do julgado arbitral e livrar de riscos a indefinição temporal das discussões sobre matérias atinentes à eventuais defeitos formais da sentença, o STJ, em recente e magistral julgado decidiu, conforme a ementa abaixo transcrita: "PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA ARBITRAL AJUIZADA APÓS O DECURSO DO PRAZO DECADENCIAL PARA AJUIZAMENTO DA AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE SENTENÇA ARBITRAL. IMPUGNAÇÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA SENTENÇA ARBITRAL. POSSIBILIDADE LIMITADA ÀS MATÉRIAS DO ART. 525, § 1º, DO CPC/15. JULGAMENTO: CPC/15. 1. Recurso especial interposto em 19/06/2019 e distribuído ao gabinete em 06/10/2020. Julgamento: CPC/15. 2. O propósito recursal consiste em decidir acerca da aplicação do prazo decadencial de 90 (noventa) dias, previsto no art. 33, § 1º, da Lei 9.307/96, à impugnação ao cumprimento de sentença arbitral. 3. A declaração de nulidade da sentença arbitral pode ser pleiteada, judicialmente, por duas vias: (i) ação declaratória de nulidade de sentença arbitral (art. 33, § 1º, da Lei 9.307/96) ou (ii) impugnação ao cumprimento de sentença arbitral (art. 33, § 3º, da Lei 9.307/96). 4. Se a declaração de invalidade for requerida por meio de ação própria, há também a imposição de prazo decadencial. Esse prazo, nos termos do art. 33, § 1º, da Lei de Arbitragem, é de 90 (noventa) dias. Sua aplicação, reitera-se, é restrita ao direito de obter a declaração de nulidade devido à ocorrência de qualquer dos vícios taxativamente elencados no art. 32 da referida norma. 5. Assim, embora a nulidade possa ser suscitada em sede de impugnação ao cumprimento de sentença arbitral, se a execução for ajuizada após o decurso do prazo decadencial da ação de nulidade, a defesa da parte executada fica limitada às matérias especificadas pelo art. 525, § 1º, do CPC, sendo vedada a invocação de nulidade da sentença com base nas matérias definidas no art. 32 da Lei 9.307/96. 6. Hipótese em que se reputa improcedente a impugnação pela decadência, porque a ação de cumprimento de sentença arbitral foi ajuizada após o decurso do prazo decadencial fixado para o ajuizamento da ação de nulidade de sentença arbitral e foi suscitada apenas matéria elencada no art. 32 da Lei 9.307/96, que não consta no § 1º do art. 525 do CPC/2015. 7. Recurso especial conhecido e não provido"6. O aludido julgado merece aplausos. Como se sabe, o parágrafo primeiro do art. 33 da Lei de Arbitragem determina ser noventa dias o prazo para pleitear-se a eventual anulação de sentença arbitral. Nesse contexto, ainda que a suposta invalidade da sentença arbitral possa ser arguida em sede de impugnação - o que é permitido pelo § 3° do mesmo art. 33 - ainda assim tal arguição deve se dar no prazo decadencial fixado em lei. Nem se argumente que a autorização legal de invocação da nulidade da sentença arbitral em sede de impugnação ao cumprimento de sentença teria o condão de alargar de qualquer forma o prazo de noventa dias estabelecido no parágrafo 1º do artigo 33 da Lei de Arbitragem. Tal interpretação estaria totalmente desalinhada com a vontade do legislador e equivaleria a permitir que uma dada sentença arbitral pudesse ter a sua validade questionada a qualquer momento dentro do prazo de sua execução, o que é inadmissível. Além de a jurisprudência do STJ já ter confirmado o interregno nonagesimal para o ajuizamento de ação anulatória contra a sentença arbitral por meio de outros julgados, diversos tribunais brasileiros já haviam confirmado a permissão ditada pelo acórdão comentado nessas linhas, a respeito da unicidade do prazo de noventa dias, o qual deve englobar, também a eventual fase de impugnação ao cumprimento de sentença. Assim caso não haja processo de execução ajuizado nos primeiros noventa dias após a prolação da sentença arbitral é imperioso que a parte que deseja anulá-la o faça no derradeiro prazo previsto no art. 33, §1º da Lei de Arbitragem. Assim entendeu o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais ("TJMG"): "Como bem apontou o magistrado primevo, o prazo de o prazo de 90 dias fixado no dispositivo retrotranscrito deve ser aplicado no âmbito da impugnação ao cumprimento de cumprimento de sentença, "porquanto o legislador utilizou o termo sentença 'demanda' enquanto gênero, sem fixar previsões em contrário para este rito" (doc. eletrônico 90, fl.3). No mesmo sentido é o que ensina a doutrina de Leonardo de Faria Beraldo, em sua obra Curso de arbitragem: nos termos da lei 9.307/96: O que não se pode, repita-se, é pretender arguir a nulidade da sentença arbitral, com base em um dos incisos do art. 32 da LA, em sede de impugnação, fora do prazo de 90 dias. E mais. Tentar se valer do inciso II do art. 475- inciso II do art. 475-L (inexigibilidade do título), como via oblíqua de atacar os vícios formais da sentença tardia é, a nosso ver, inadmissível. (São Paulo - Ed. Atlas, 2014 pg. 526). Assim, pelo que se infere do exposto acima, não restam dúvidas de que o prazo de 90 (noventa) dias também se aplica à arguição de nulidade de sentença arbitral em sede de impugnação de sentença."6. Nesse ano em que a Lei de Arbitragem completou vinte e cinco anos, a decisão do STJ objeto dessas linhas, veio em bom momento. Além da fidelidade ao limite temporal imposto pelo legislador, garante estabilidade e afasta risco de indefinições sobre o momento de ajuizar eventual ação anulatória. O tempo, na sua acepção jurídica, serve para garantir estabilidade, paz social e, em especial, a certeza jurídica8. Foi nesse sentido que o STJ decidiu a questão que ora se discute, revelando-se mais um exemplo da crescente evolução da jurisprudência do STJ em matéria de arbitragem. ____________ 1 Para José Rogério Cruz e Tucci, "Na medida em que aflora inevitável e relevante para o dia a dia de cada cidadão no convívio social, o tempo também apresenta múltiplas implicações no campo do direito" (CRUZ e TUCCI, José Rogério. Tempo e processo. São Paulo: RT, 1997. p. 17). 2 Nos termos do julgado: "A justificar, ainda, a imediata impugnação, é de suma relevância reconhecer que a questão decidida pela sentença arbitral parcial encontrar-se-á definitivamente julgada, não podendo ser objeto de ratificação e muito menos de modificação pela sentença arbitral final, exigindo-se de ambas, por questão lógica, tão-somente, coerência. A esse propósito, saliente-se que o conteúdo da sentença parcial arbitral, relativa à inclusão da ora recorrente no procedimento arbitral (objeto da subjacente medida cautelar e da ação anulatória de sentença parcial arbitral), não se confunde com o conteúdo da sentença final arbitral, que julgou o mérito da ação arbitral" (STJ, Recurso Especial n° 1.543.564-SP, Terceira Turma, rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 25.09.2018, DJe de 01/10/2018). 3 "Não há dúvida de que entre os acontecimentos da natureza que mais inquietam o homem centra-se o fenômeno tempo" (CRUZ e TUCCI, José Rogério. Tempo e processo. São Paulo: RT, 1997. p. 17). 4 Paulo Borba Casella, ao tratar do fundamento e da norma cogente de direito internacional, delimita o problema do decurso do tempo da seguinte forma: "A fundamentação pode ser intangível, mas não pode se socorrer de fundamentação metafísica ou metajurídica: há que ser encontrada no campo do direito, e a partir do reconhecimento da existência deste, fazer operar o direito e deste extrair (depois da existência) tanto validade quanto eficácia. E que estas se sustentem, não obstante as diferenças culturais, políticas e sobrevivam ao mais desagregador de todos os fatores: a inexorável passagem do tempo" (CASELLA, Paulo Borba. Fundamentos do direito internacional pós-moderno. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 738). 5 Como bem afirma Humberto Theodoro Júnior ao tecer comentários sobre o instituto da decadência: "É de interesse público que as situações jurídicas submetidas a esse tipo de prazo [decadencial] fiquem definidas de uma vez para sempre, com o seu transcurso" (JÚNIOR, Humberto Theodoro. Prescrição e Decadência. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 321). 6 STJ, Recurso Especial nº 1.1900.136-SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, J. 06.04.2021, DJe de 15/04/2021. 7 TJMG, Agravo de Instrumento n° 1.0000.16.049435-7/004. Des. José Américo Martins da Costa. J. 22/06/2017. 8 Nesse sentido a lição de Humberto Theodoro Júnior: "(...) é a certeza jurídica que determina a subordinação de certos direitos facultativos ao exercício obrigatório dentro de determinado prazo, para que seu término se tenha como firme e inalteravelmente definida a situação jurídica das partes" (Prescrição e Decadência. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 321).
Em 23 de setembro de 2021 foi apresentado o PL 3.293/20211 de autoria da Exma. Deputada Federal Margarete Coelho, que tem no seu escopo a alteração da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), "para disciplinar a atuação do árbitro, aprimorar o dever de revelação, estabelecer a divulgação das informações após o encerramento do procedimento arbitral e a publicidade das ações anulatórias, além de dar outras providências" ("PL"). Entre os tópicos mais discutidos e criticados desde o advento do aludido PL está a mencionada disciplina de atuação do árbitro. Em relação a esse ponto, o PL propõe acréscimos aos arts. 13 e 14 da Lei de Arbitragem, da seguinte forma: "Art. 13. Poderá ser árbitro qualquer pessoa capaz que tenha disponibilidade e a confiança das partes  §8º O árbitro não poderá atuar, concomitantemente, em mais de dez arbitragens, seja como árbitro único, coárbitro ou como presidente do tribunal arbitral  §9º Não poderá haver identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais arbitrais em funcionamento, independentemente da função por eles desempenhada."  "Art. 14 (...)  §3º Os integrantes da secretaria ou diretoria executiva da câmara arbitral não poderão funcionar em nenhum procedimento administrado por aquele órgão, seja como árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal, ou ainda como patrono de qualquer das partes." Não há dúvidas de que eventuais propostas que visam o aprimoramento de um determinado sistema legal são salutares e bem-vindas. Assim o foi quando, de forma coordenada e organizada, uma comissão de juristas foi formada no âmbito do Senado Federal em 2013, liderada pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça ("STJ") Luís Felipe Salomão e que resultou na promulgação da lei 13.129, de 26 de maio de 2015. Encampando as orientações trazidas pela jurisprudência dos tribunais, em especial a do STJ, a referida lei muito mais aprimorou do que reformou o sistema arbitral brasileiro, alçando-o a um dos mais completos e modernos do mundo. No entanto, o advento do PL em questão surgiu como uma verdadeira surpresa no âmbito arbitral, gerando perplexidade. Dentre os pontos elencados no PL para mudança da Lei de Arbitragem, o que mais causou repulsa se refere aos supracitados acréscimos aos arts. 13 e 14 da Lei de Arbitragem, os quais, em resumo, tratam das atribuições do profissional que exerce a função de árbitro. O primeiro ponto que merece atenção é a limitação que o PL faz ao número de arbitragens por árbitro e a limitação da composição de painéis arbitrais pela criada impossibilidade de "haver identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais arbitrais em funcionamento". Tal regra não pode prosperar, pois fere gravemente o mais importante princípio da arbitragem que é o da autonomia da vontade. Ademais, a referida disposição está em plena contradição com o art. 13, caput, da Lei de Arbitragem, segundo o qual "Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes". Trata-se aqui da confiança lida em seu sentido estrito, isto é, na crença na probidade moral, na sinceridade e lealdade e, também, na competência técnica2 do profissional que exerce a função de árbitro. Por evidente que, na dicção do art. 13, caput, da Lei de Arbitragem, os árbitros devem ter a confiança das partes, o que faz com que a indicação do árbitro represente uma das mais estratégicas e importantes decisões a serem tomadas na arbitragem3, não fazendo qualquer sentido técnico a proposta do PL em discussão. O que parece ser o pano de fundo para a criação da referida regra seria a repetição de relações entre profissionais que, ora atuam na condição de árbitros, ora na condição de advogados. Ainda que seja essa a intenção do PL, o sentido jurídico da regra proposta não se alinha à liberdade conferida às partes para constituir o painel de seu interesse. É justamente na figura do árbitro que se concentra toda a valoração da arbitragem4. E são as partes, de forma livre, que fazem essa escolha e por ela se responsabilizam, ainda que o profissional nomeado possua uma grande quantidade de arbitragens em curso, ou que a parte saiba que o árbitro nomeado já funcionou como advogado de uma das partes contendentes ou tenha apresentado parecer ou opinião legal para o escritório de advocacia que patrocina os interesses de uma das partes na disputa. Não há nada de errado, ilegal ou antiético nessa prática, tampouco gera o aumento de tempo de tramitação das arbitragens ou o ingresso de ações anulatórias, como constou da justificação do PL. As regras que concernem à atividade do árbitro, número de arbitragens em curso, relacionamentos mantidos com as partes e/ou seus patronos e respectiva revelação de tais pontos são questões autorreguláveis5. A prática arbitral, notadamente a internacional, coube disciplinar tais questões, o que foi feito por meio das Regras da IBA sobre Conflito de Interesses na Arbitragem Internacional6. Além disso, ainda que as partes prefiram não se valer das aludidas regras, elas mesmas podem fazer os questionamentos que entendam necessários no início do procedimento. Aliás, essa prática vem ganhando corpo e é salutar para a transparência da arbitragem. Ao profissional indicado para assumir o posto de árbitro cabe tão somente tecer os esclarecimentos pretendidos pela parte, e nada mais. Árbitro é pessoa da confiança da parte que o indica e esse é um dos grandes valores conferidos pela Lei de Arbitragem. Não é a quantidade de arbitragens que um árbitro atua que influenciará no tempo de tramitação do procedimento arbitral e na qualidade das decisões arbitrais, mas sim o caráter ético e a seriedade dos julgadores escolhidos pelas partes para resolver a controvérsia7. Não há necessidade de se estabelecer regramento específico para isso, tampouco seria salutar, pois, repita-se, sepultaria a autonomia da vontade das partes, desvirtuando-se por completo a liberdade contratual caracterizadora da arbitragem. Igualmente não prospera a regra que tem por condão impedir a atuação de secretários e diretores de câmaras arbitrais em procedimentos administrados por aquele órgão. O PL parece confundir a figura do árbitro com a da instituição arbitral, o que é um equívoco técnico. A instituição arbitral deve zelar pela administração do procedimento arbitral, atuando de forma escorreita e ética8. Não possui a instituição arbitral poderes jurisdicionais, os quais pertencem unicamente aos árbitros constituídos, não havendo, dessa forma, qualquer ingerência dos dirigentes de instituições arbitrais sobre as decisões a serem tomadas no mérito da disputa. A proposta do PL, nesse sentido, desconsidera, inclusive a orientação do STJ que, em julgado recente, entendeu, de forma definitiva, que "a instituição arbitral por ser simples organizadora do procedimento arbitral não possui interesse processual nem legitimidade para integrar o polo passivo da ação"9. Após vinte cinco anos de vigência da Lei de Arbitragem, o Brasil passou a ser considerado um dos mais respeitados players do mundo em matéria de arbitragem, tendo o aperfeiçoamento da prática arbitral brasileira se consolidado e expandido por todas as regiões do Brasil. Esse sucesso se deve não só ao legislador (que apresentou um projeto de lei moderno e baseado em diplomas de importância significativa, como a Lei Espanhola de Arbitragem10 e a Lei Modelo da Uncitral11), e que evoluiu ao longo do tempo, se alinhando à tendência jurisprudencial a respeito de importantes temas (e.g. regulamentação da arbitragem envolvendo a administração pública, a permissão do uso de medidas cautelares pré-arbitrais perante o Poder Judiciário inter alia), mas também a comunidade arbitral como um todo, como advogados, in house coulsels e árbitros atuantes nessa seara que compreendeu o "espírito" da arbitragem e suas peculiaridades. Prova disso é o baixo índice de anulação de sentenças arbitrais pelo Poder Judiciário, bem como a maciça jurisprudência pró-arbitragem desenvolvida no âmbito dos tribunais superiores, em especial a do STJ12. Para que o Brasil permaneça sendo considerado um dos top players da arbitragem no mundo e mantenha o nível de confiabilidade para sediar arbitragens internacionais, é preciso de estabilidade legislativa. A Lei de Arbitragem, repita-se, é uma lei moderna, de princípios e que foi recentemente aprimorada pelo legislador, mediante estudo sério, coordenado e organizado. Por mais que seja louvável qualquer proposta de mudança legislativa, a que foi apresentada por meio do PL ora comentado não pode prevalecer, sob pena de levar o Brasil à decadência arbitral. É preciso que as principais entidades arbitrais brasileiras se mobilizem junto ao congresso nacional para, após o diálogo técnico e construtivo com as lideranças legislativas, levar o PL em discussão ao definitivo arquivamento13. __________ 1 Fonte: Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 22 out. 2021. 2 Segundo Antônio Lopes de Sá: "O conhecimento, no caso, não é apenas a acumulação de teorias, teoremas e experiências, mas também o domínio pleno sobre tudo o que é abrangido pela tarefa que se encontra sob a responsabilidade direta de um profissional (...). É dever ético-profissional dominar o conhecimento, como condição originária da qualidade ou eficácia da tarefa". (Ética Profissional. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 155). 3 O caráter estratégico da escolha do árbitro é, inclusive, frisado nas diretrizes do Chartered Institute of Arbitrators (CIArb), que em sua Guideline 1 dispõe: "As the selection of arbitrators is one of the most important strategic decisions in arbitration, the parties may want to interview a prospective arbitrator before making an appointment instead of relying solely on publicly available information and personal recommendations". Para a verificação das diretrizes editadas pelo CIArb e correspondentes comentários ver aqui. Acesso em 22 out. 2021. 4 Segundo Selma Ferreira Lemes: "Discorrer sobre o papel do árbitro no procedimento arbitral impõe, inicialmente, refletir sobre um adágio mundialmente conhecido: 'a arbitragem vale o que vale o árbitro", fato incontroverso. E mais, saliento que "o árbitro representa a chave da abóbada da arbitragem e ao seu redor gravitam todos os temas e conceitos afeitos à arbitragem'." Fonte aqui. Acesso em 22 out. 2021. 5 Ver, nesse sentido, ROGERS Catherine A. Ethics in International Arbitration. Oxford University Press, 2014, p. 234. 6 Diretrizes da International Bar Association sobre Conflitos de Interesses na Arbitragem Internacional. Fonte: IBA Guidelines on Conflict of Interest NOv 2014 TEXT PAGES.indd (ibanet.org). Acesso em 22 out. 2021. 7 Aduz, nesse sentido, a Ministra do STJ Nancy Andrighi: "Ousa-se afirmar que o sucesso e a utilização frequente da arbitragem dependem da qualidade moral, ética e técnica daquele que irá desempenhar o papel de árbitro, pois na lisura de seu comportamento e na seriedade do julgamento que proferir repousam a segurança e confiança dos cidadãos quanto à eficácia da arbitragem como forma alternativa de solução de conflitos". (A ética como pilar de segurança da arbitragem, Revista de Doutrina e Jurisprudência, Brasília, (53): ll-84, jan./abr. 1997). 8 Nesse sentido, a opinião de Gilberto Giusti: "Pois comportamento não menos escorreito é o que também se espera das instituições de arbitragem, assim entendidas, nas palavras do art. 5º da lei 9.307/1996, o "órgão arbitral institucional ou entidade especializada" com regulamento a que as partes podem se reportar por ocasião da celebração da convenção de arbitragem e, principalmente, que contenham estrutura adequada para administrar o respectivo procedimento arbitral, se assim for eleito pelas partes". (A ética das instituições de arbitragem, Revista brasileira de arbitragem, v. 10, n. 40, out./dez. 2013, p. 82). 9 STJ, Terceira Turma, REsp nº 1.433.940, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 26.09.2017, DJ 02.10.2017, v.u. 10 Lei 63/2011, de 14 de dezembro (versão atualizada). Fonte: BOE.es - BOE-A-2003-23646 Ley 60/2003, de 23 de diciembre, de Arbitraje. Acesso em 22 out. 2021. 11 A Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional é uma lei modelo preparada e adotada pela pela Comissão das Nações Unidas sobre Direito Comercial Internacional em 21 de junho de 1985 e revista em 2006. Disponível aqui. Acesso em 22 out. 2021. 12 Dados que podem ser aferidos em pesquisa realizada pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr") em conjunto com a Associação Brasileira dos Estudantes de Arbitragem ("ABEArb"). Fonte aqui. Acesso em 22 out. 2021. 13 No mesmo sentido (de arquivamento do PL) vide a opinião de José Rogério Cruz e Tucci. Acesso em 22 out.2021.
Em 23 de setembro de 2021 completou-se 25 (vinte e cinco) anos da promulgação da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem").  A arbitragem se desenvolveu lentamente no Brasil e sofreu com as desconfianças a respeito da alegada inconstitucionalidade de alguns dispositivos da Lei de Arbitragem. Em 2001, tal questão restou sepultada, por meio do magistral julgamento proferido na Sentença Estrangeira Contestada nº 5.206/ES1. Seguindo na rota do progresso e da modernidade, em 2002 o Brasil ratificou a Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 1958, inserindo o país, definitivamente, no rol de lugares confiáveis ao redor do globo para sediar e processar arbitragens internacionais2. Por fim, encampando as orientações trazidas pela jurisprudência dos tribunais, em especial a do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), o legislador promulgou a lei 13.129/2015, aprimorando, ainda mais, o sistema arbitral brasileiro.  Com a evolução legislativa e jurisprudencial acima mencionada, pode-se afirmar com segurança, que o Brasil é um case de sucesso da arbitragem. Sucesso que se deve não só ao legislador, mas também à comunidade arbitral como um todo, como advogados, sejam eles externos ou integrantes de departamentos jurídicos das empresas, árbitros atuantes nessa seara e as instituições arbitrais. Esses players representam a verdadeira força motora da arbitragem, pois conhecem suas especificidades e sabem conviver de forma harmoniosa dentro do sistema arbitral.  Ainda que o sistema arbitral brasileiro esteja plenamente consolidado e que uma "cultura arbitral" já exista entre aqueles que atuam nessa seara, para que o Brasil continue mantendo um sistema arbitral hígido e continue a ter sucesso, alguns pontos ainda merecem atenção dos usuários da arbitragem, em especial, as partes, advogados, árbitros e instituições arbitrais:  a cláusula compromissória a ser inserida em determinado contrato deve ser cheia e elaborada para o caso concreto. Além de todos os requisitos tradicionais que a tornem autoexecutável, incluindo a menção à Lei de Arbitragem, ao número de árbitros, à lei aplicável ao mérito e ao procedimento, bem como a sede, é imprescindível que se indique uma instituição que administre o procedimento3. Por mais que a legislação brasileira não vede a arbitragem ad hoc, o uso de regulamentos arbitrais certamente conferirá maior segurança e previsibilidade às partes contendentes4; a escolha de árbitros deve ser feita com cautela e rigor. A arbitragem vale o que vale o árbitro5, de modo que a sua seleção deve ser feita com base no caso concreto, precedida, se possível, de entrevistas com os candidatos ao posto de árbitro6 e com a ampla participação das partes e seus patronos na composição do tribunal arbitral. O envio de listas prévias para seleção dos candidatos à presidência do tribunal tornou-se prática usual e cuja adoção é recomendável7; o comportamento dos litigantes durante o transcurso do procedimento arbitral, por mais aguerrida que seja a defesa de seus direitos, deve se dar num ambiente de respeito, cordialidade e urbanidade. A beligerância, típica das lides forenses, não encontra espaço na arbitragem, reservada aos litigantes que focam suas atenções no mérito da demanda8 e almejam uma decisão célere e técnica; tal comportamento como acima demonstrado, deve, ademais, ser adotado na fase pós-arbitral. As partes que escolhem a arbitragem como método de solução de suas controvérsias devem partir do pressuposto, desde a formalização do contrato que contenha a cláusula compromissória, que arbitragem é um processo de início, meio e fim. O fim se dá com a sentença e, contra ela, não cabe recurso. O manejo de ações anulatórias só se dá nas taxativas hipóteses ditadas pelo art. 32 da Lei de Arbitragem. Não é possível a revisão do mérito da sentença arbitral pelo Poder Judiciário; os árbitros a serem investidos do poder jurisdicional devem primar pelo respeito à ética e aos deveres impostos pela Lei de Arbitragem9, sem perder de vista a coragem para decidir10 e sempre zelando pelo respeito à inegociável garantia dos princípios de natureza processual-constitucional dispostos na Lei de Arbitragem, como a ampla defesa, o contraditório e a igualdade das partes.  Além dos pontos acima, um elemento de grande importância para garantir que a arbitragem permaneça em crescente evolução é a participação cooperativa ou coordenada dos órgãos do Poder Judiciário em relação à arbitragem. Não há dúvidas de que o Poder Judiciário brasileiro desenvolveu (e vem desenvolvendo) maciça jurisprudência pró-arbitragem no âmbito dos tribunais superiores, em especial o STJ11. Para que a arbitragem continue em franca evolução no Brasil, é preciso que os juízes estatais ajam de forma coordenada e colaborativa com a arbitragem (na linha do chamado "juge d'appui"12), e jamais em relação de hierarquia13. Além disso, é preciso que compreendam as peculiaridades que revestem o procedimento arbitral, preservando a confidencialidade da arbitragem, na forma da lei processual brasileira14 e eximindo-se de imiscuírem-se no mérito da demanda arbitral, o qual se sabe, é intangível15.  Sendo assim, conquanto a arbitragem no Brasil esteja consolidada por meio de um moderno sistema legislativo, complementado por uma respeitável jurisprudência, nesses vinte e cinco anos da Lei de Arbitragem, a adoção das práticas acima destacadas pode se revelar útil para que a arbitragem continue a ser o método preferido para resolução de litígios empresariais. __________ 1 STF, Agravo Regimental na Sentença Estrangeira n. 5.206-7, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, j. 12.12.2001, DJ 30.04.2002. 2 Sobre o assunto ver, NUNES, Thiago Marinho; GUERRERO, Luis Fernando; SILVA, Eduardo Silva da. O brasil como sede de arbitragens internacionais a capacitação técnica das câmaras arbitrais brasileiras, Revista de Arbitragem e Mediação, n. 34, 2014, p. 119-158. 3 Instituições idôneas e, preferencialmente, que tenham atuação reconhecida no mercado. Nesse sentido, o ranking divulgado pela Leaders League é um excelente norte: Brasil - Melhores Câmaras de Arbitragem - 2021 - Leaders League. Acesso em 25 set. 2021. 4 Sobre o assunto, ver SILVA, Eduardo Silva da, GUERRERO, Luís Fernando e NUNES, Thiago Marinho. Regras da Arbitragem brasileira: Comentários aos Regulamentos das Câmaras de Arbitragem. São Paulo: Marcial Pons, 2015. 5 Segundo Selma Ferreira Lemes: "Discorrer sobre o papel do árbitro no procedimento arbitral impõe, inicialmente, refletir sobre um adágio mundialmente conhecido: "a arbitragem vale o que vale o árbitro", fato incontroverso. E mais, saliento que "o árbitro representa a chave da abóbada da arbitragem e ao seu redor gravitam todos os temas e conceitos afeitos à arbitragem'." Disponível aqui. Acesso em 23 set. 2021. 6 Ver, nesse sentido: Entrevistas com potenciais árbitros - Migalhas. Acesso em 25 set. 2021. 7 Ver, nesse sentido: Os bastidores da atividade do árbitro: a fase pré-arbitral - Migalhas. Acesso em 25 set. 2021. 8 Ver nesse sentido, MAGALHÃES, José Carlos. Arbitragem: Sociedade Civil x Estado. São Paulo: Almedina, 2020, p. 260. No mesmo sentido, ensina Carlos Alberto Carmona que "os advogados estejam sempre atentos ao problema para que o árbitro foque sua atenção sobre o que realmente conta, ou seja, dirija seus esforços para a solução do litígio, ao invés de ocupar-se com quizilas processuais". (O processo arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 21-31, jan.-abr. 2004). 9 Aduz, nesse sentido, a Ministra do STJ Nancy Andrighi: "Ousa-se afirmar que o sucesso e a utilização frequente da arbitragem dependem da qualidade moral, ética e técnica daquele que irá desempenhar o papel de árbitro, pois na lisura de seu comportamento e na seriedade do julgamento que proferir repousam a segurança e confiança dos cidadãos quanto à eficácia da arbitragem como forma alternativa de solução de conflitos". (A ética como pilar de segurança da arbitragem, Revista de Doutrina e Jurisprudência, Brasília, (53): ll-84, jan./abr. 1997). 10 Sobre o tema ver: LALIVE, Pierre. Du courage dans l'arbitrage internacional. Mélanges en l'honneur de François Knoepller. Collection Neuchateloise. Helbing & Lichtenhahn, Bâle, 2005, pp. 157-160. disponível aqui. Acesso em 16 set. 2021. 11 Dados que podem ser aferidos em pesquisas realizadas pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr") em conjunto com a Associação Brasileira dos Estudantes de Arbitragem ("ABEArb"). Disponível aqui. Acesso em 19 set. 2021. 12 Expressão utilizada no direito francês, para caracterizar o papel dos juízes estatais de apoio, assistência e colaboração perante a arbitragem ("Juiz de Apoio"). Sobre o tema, ver: O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui" - Migalhas. Acesso em 25 set. 2021. 13 Nesse sentido, ver CARMONA. Carlos Alberto. Das Boas Relações entre os Juízes e os Árbitros. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, n.º 51, pp. 17-24, out. 1997. 14 Nesse sentido, a disposição contida no art. 189, inciso IV do Código de Processo Civil: "Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: (...) IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo". Sobre o assunto, ver: Recent Issues Regarding Confidentiality in Arbitration in Brazil - Kluwer Arbitration Blog; Revisitando a confidencialidade na arbitragem - Migalhas. Acesso em 25 set. 2021. 15 Ver, nesse sentido: Decisão por equidade da arbitragem - Migalhas. Acesso em 25 set. 2021.
Conforme se pontuou em alguns estudos recentes1, a prática da arbitragem comercial no Brasil, após quase vinte e cinco anos da promulgação da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") está definitivamente consolidada. Se há tempos a arbitragem era vista com desconfiança, atualmente, revela-se o modo preferido das empresas para resolução de seus conflitos. Com o exponencial crescimento da arbitragem no Brasil, natural que houvesse um aumento no número de personagens que, de alguma forma, participam do procedimento arbitral, como advogados, árbitros, secretários de tribunais arbitrais, peritos, inter alia. Com efeito, o significativo aumento do número de players da arbitragem fomentou o aumento de eventos, cursos especializados, e, inclusive, tornou-se disciplina obrigatória para alunos da graduação em direito. Devido a esse notável crescimento, o estudo da ética na arbitragem ganhou papel relevante e se desenvolve de forma contínua. Diferentemente do processo judicial, sujeito às regras rígidas impostas pelo Estado, na arbitragem impera a vontade das partes. São as partes as verdadeiras comandantes do processo arbitral. A elas compete toda a moldagem do procedimento, a sua marcha, até a prolação da sentença final. Tudo, é claro, sob o crivo dos árbitros, a quem compete, ao fim e ao cabo, dizer o direito e entregar a tutela jurisdicional2. Num campo livre, em que são as próprias partes contendentes que moldam o procedimento, uma palavra pode e deve resumir em que se funda a arbitragem: a confiança. Confiança no instituto, confiança no direito, confiança nos princípios processuais basilares que regem o procedimento (contraditório, ampla defesa, igualdade das partes, inter alia) e, evidentemente, confiança nos árbitros. Foi nesse sentido, que o Chartered Institute of Arbitrators ("CIArb")3 elaborou seu Código de Conduta Profissional e Ética ("Código de Conduta CIArb"4), com o objetivo de prover diretrizes éticas a serem observadas por seus membros em relação aos princípios profissionais e morais que devem sempre reger a sua conduta. O referido código, é divido em duas partes. Na primeira, de caráter interno, com regras de conduta a serem observadas pelos integrantes do CIArb, incluindo diretores honorários, no desempenho das funções, deveres e responsabilidades do instituto. Na segunda, de caráter externo, com regras de conduta dos integrantes ao atuar ou procurar atuar como participante imparcial em processos de resolução alternativa de disputas. Nessas breves linhas, cuidar-se-á das diretrizes de caráter externo ("Parte II"). A Parte II do Código de Conduta é composta por nove regras, assim dispostas: Regra 1 Comportamento; Regra 2 Integridade e Imparcialidade; Regra 3 Conflitos de interesse; Regra 4 Competência; Regra 5 Informação; Regra 6 Comunicação; Regra 7 Conduta do Processo; Regra 8 Confiança e Sigilo; Regra 9 Honorários. Entre essas regras de conduta, e seus respectivos comentários advindos do próprio CIArb, merecem destaque as seguintes: tanto antes quanto durante o processo de resolução de disputa, os integrantes devem revelar todos os interesses, relacionamentos e questões que possam afetar sua independência ou imparcialidade ou que possam ser razoavelmente percebidos como suscetíveis de os afetar; quando um integrante estiver ou tomar conhecimento de que não é capaz de manter o grau exigido de independência ou imparcialidade, o integrante deve prontamente tomar as medidas que forem necessárias na situação concreta, o que pode incluir a renúncia ou retirada do processo; um integrante deve aceitar uma nomeação ou agir somente se for devidamente qualificado ou experiente; um integrante deve preparar-se adequadamente para o processo de resolução de disputa em questão; um integrante não deve delegar qualquer dever de decisão a qualquer outra pessoa, a menos que seja autorizado a fazê-lo pelas partes ou pela lei aplicável; um integrante deve comunicar-se com as pessoas envolvidas no processo de resolução de disputas apenas da maneira apropriada ao respectivo processo. Tais regras aqui destacadas (sem prejuízo das demais), são dignas de nota. A começar pelo fomento ao crucial dever de revelação na arbitragem. Com efeito, a prática tem demonstrado a existência de novos standards do dever de revelação, que surgem com o desenvolvimento da jurisprudência dos tribunais. No célebre caso Abengoa, por exemplo, o STJ decidiu que, estando os árbitros sujeitos às mesmas regras aplicáveis aos juízes no tocante a suspeição e impedimento (arts. 14 e 32, II, da Lei de Arbitragem), a inobservância da regra da imparcialidade do julgador ofende a ordem pública nacional, visto que é uma das garantias que decorrem do devido processo legal. Nesta toada, tendo em vista a natureza contratual da arbitragem, a violação pelo árbitro do dever de revelação de quaisquer circunstâncias passíveis de, razoavelmente, gerar dúvida sobre sua imparcialidade e independência, obsta a homologação da sentença arbitral, o que ocorreu nesse caso5. Mais recentemente, no caso Alper, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP") decidiu que o dever de revelação dos árbitros previsto no artigo 14, §1º da Lei de Arbitragem, além de proibir a omissão e retenção de qualquer fato tido como concretamente relevante para o exercício da escolha, também impõe total transparência no curso do trâmite do procedimento arbitral, devendo o árbitro comunicar imediatamente às partes qualquer fato com o potencial de abalar a crença na sua imparcialidade e independência. Nesse sentido, o Judiciário Paulista entendeu que toda e qualquer informação de caráter pessoal ou profissional capaz de gerar dúvida em uma das partes quanto à imparcialidade e integridade do árbitro deve ser comunicada imediatamente. A falha nesse dever, gera, por consequência, a anulação da sentença arbitral, que foi o que ocorreu no caso6. Sem fazer qualquer juízo de valor aos julgados proferidos nos casos Abengoa e Alper, não há dúvidas de que os standards do dever de revelação mudaram e estão mais rigorosos nos dias de hoje. E, repita-se, isso não se deve a qualquer tipo de desconfiança no instituto da arbitragem, mas ao revés, em razão de seu sucesso como método adequado de solução de controvérsias empresariais. Entende-se dessa forma, que tais casos devem ser vistos não de forma negativa, mas como um exemplo de se garantir maior segurança ética nos profissionais que exercerão a função de árbitro. Com efeito, a plena confiança das partes no árbitro e em sua imparcialidade apenas se dá com o devido exercício do dever de revelação, ainda que as eventuais revelações sejam questões simples, dispostas em domínio público, mas que tenham relevância aos olhos de quem realmente litiga na arbitragem, isto é, as partes. No mais, verifica-se uma justa preocupação do CIArb com regras de conduta profissional adotadas pelo árbitro. Em primeiro lugar, cita-se a competência do árbitro, elencada pelo CIArb como preceito ético a ser cumprido. Conquanto a competência esteja listada na Lei de Arbitragem como um dos deveres do árbitro no desempenho de sua função7, pensa-se que tal elemento - competência, deve ser atestado em momento anterior à nomeação do árbitro. Com efeito, a confiança da qual é caracterizada a arbitragem tem o seu centro das atenções na figura do árbitro8. Isso porque, trata-se aqui da confiança lida em seu sentido estrito, isto é, da crença na probidade moral, na sinceridade e lealdade e, também, na competência técnica9 do profissional que exerce a função de árbitro. Tem a confiança das partes o profissional que ostenta tais características. No sentido procedimental, nota-se outra justa preocupação do CIArb de que os árbitros não deleguem qualquer dever de decisão a qualquer outra pessoa, a menos que seja autorizado a fazê-lo pelas partes ou pela lei aplicável. Tal regra de conduta é de suma importância, em virtude da atuação dos chamados secretários de tribunais arbitrais. Os secretários de tribunais arbitrais, quando aceitos pelas partes, acompanham os tribunais do início ao fim do procedimento, participando de todos os seus atos10, sendo absolutamente impróprio que o árbitro delegue ao secretário funções que recaem exclusivamente sobre o profissional que exerce a função de árbitro11. Como já se pontuou em outro estudo12, as regras criadas pelo CIArb têm como objetivo promover a uniformidade na condução de procedimentos arbitrais, primando-se pela previsibilidade, e celeridade. Além das diretrizes editadas pelo CIArb, merecem ser destacadas as suas regras de conduta ética e profissional que cuja aplicação já conhecida no âmbito internacional, merece ser adotada no âmbito doméstico, regulando assim, com precisão o comportamento ético que deve ser observado na arbitragem por todos os seus players, como partes, advogados, experts, árbitros e seus auxiliares, o que certamente aperfeiçoará o sistema arbitral brasileiro. __________ 1 Ver, a esse respeito: NUNES, Thiago Marinho. Breves notas sobre os bastidores da atividade do árbitro. p. 191-203. In: MENDES, Lucas V. R.; MUNIZ, Joaquim de Paiva. Práticas de Arbitragem: técnicas, agentes e mercados. 2. ed. Rio de Janeiro: Curso Prático de Arbitragem, 2020. 2 A esse respeito, ver: A flexibilidade da arbitragem e o controle dos árbitros - Migalhas. Acesso em 26 ago. 2021. 3 Fundado em 1915, o CIArb é uma organização que congrega inúmeros profissionais atuantes na seara da resolução de disputas (arbitragem, mediação, dispute boards, inter alia) em todo o mundo. Baseada em Londres, conta com aproximadamente 16.000 membros distribuídos em 39 branches em 133 países. Possui, desde 2019, uma representação no Brasil (CIArb Brazil Branch) e, ao longo de sua existência, editou uma série de diretrizes acerca de práticas consolidadas no âmbito da arbitragem internacional e que podem servir como guia útil para a orientação de advogados, in-house counsels e árbitros envolvidos em procedimentos arbitrais. 4 O Código de Conduta CIArb pode ser acessado em: ciarb-code-of-professional-and-ethical-conduct-october-2009.pdf. Acesso em 21 ago. 2021. 5 STJ - SEC: 9412 EX 2013/0278872-5, Relator: Ministro Felix Fischer, Data de Julgamento: 19/04/2017, CE - Corte Especial, Data de Publicação: DJe 30/5/2017. 6 TJ/SP - AC: 10564004720198260100 SP 1056400-47.2019.8.26.0100, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 25/08/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 25/8/2020. 7 art. 13, § 6º. 8 Na dicção do art. 13 da Lei de Arbitragem, "Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes". 9 Segundo Antônio Lopes de Sá: "O conhecimento, no caso, não é apenas a acumulação de teorias, teoremas e experiências, mas também o domínio pleno sobre tudo o que é abrangido pela tarefa que se encontra sob a responsabilidade direta de um profissional (...). É dever ético-profissional dominar o conhecimento, como condição originária da qualidade ou eficácia da tarefa". (Ética Profissional. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 155). 10 Ver, a respeito, PARTASIDES, Constantine. The Fourth Arbitrator? The Role of Secretaries to Tribunals in International Arbitration, Arbitration International, vol. 18, n. 2, 2002, p. 40. 11 Nesse sentido, ver NUNES, Thiago Marinho. Breves notas sobre os bastidores da atividade do árbitro. p. 191-203. In: MENDES, Lucas V. R.; MUNIZ, Joaquim de Paiva. Práticas de Arbitragem: técnicas, agentes e mercados. 2. ed. Rio de Janeiro: Curso Prático de Arbitragem, 2020. 12 Ver, a respeito: A utilidade das diretrizes do CIArb para a arbitragem doméstica - Migalhas. Acesso em 21 ago. 2021.
Para que a missão jurisdicional do árbitro se efetive com sucesso, o que se dá mediante a entrega de uma sentença exequível, em determinados casos, a prova a ser produzida pelas partes pode ser crucial. Seja por meio de um documento, de uma testemunha, seja ela fática ou técnica, seja por uma perícia, a prova exerce papel preponderante na missão do árbitro. Se de um lado, a tradição advinda do processo demonstra que a prova pericial exercida por perito nomeado nomeado pelo tribunal arbitral no âmbito de uma arbitragem pode ter a sua utilidade, por outro lado, a evolução do estudo e da prática da arbitragem se direciona no sentido de dispensar o uso de um terceiro técnico para auxílio do tribunal arbitral, cabendo às próprias partes a demonstração de seu direito, por meio do uso de seus próprios peritos, o que em nada afeta o exercício da função jurisdicional do árbitro. Foi exatamente nesse sentido evolutivo, que o Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), em recente e magistral decisão1, fixou, inter alia, o seguinte entendimento: "A despeito da nomenclatura utilizada para designar a testemunha técnica, a doutrina arbitralista, majoritariamente, com razão, classifica essa espécie probatória, não como uma prova testemunhal propriamente, mas sim como uma prova técnica. Nesse peculiar tipo de prova, de larga utilização nas arbitragens, sobretudo nas internacionais, os profissionais, dotados de especialização na área do conhecimento exigido para solver as questões de ordem técnica do litígio, são contratados, cada qual, pelas partes, deles se exigindo independência e imparcialidade na elaboração de seus laudos e em seus depoimentos, não se confundindo, assim, com a figura dos assistentes técnicos. A oitiva dos especialistas da matéria em litígio constitui, assim, em princípio, prova técnica idônea a conferir ao árbitro os subsídios necessários ao deslinde das questões que, porventura, desbordem de sua área de formação". A despeito do tradicional método de realização de prova pericial por meio de perito nomeado pelo tribunal arbitral, com o auxílio de assistentes técnicos nomeados pelas próprias partes, nada impede que a prova técnica numa arbitragem seja comandada pelas próprias partes, as quais nomeiam diretamente seus peritos para apresentarem seus respectivos pareceres técnicos. E tais pareceres técnicos, apesar de produzidos pelas próprias partes, conferem aos árbitros os necessários subsídios ao deslinde da demanda, como bem frisado pelo julgado acima2. Com efeito, a flexibilização da instrução processual em sede arbitral pode contribuir para uma solução mais adequada a diversas demandas. Isso porque a arbitragem permite a oitiva de peritos técnicos ("expert witness"3), possibilitando, por exemplo, a substituição da figura do perito por uma empresa de auditoria escolhida pelas partes, ou a utilização de meios probatórios e de transmissão de informações mais modernos4. Esse tipo de metodologia procedimental adotada pelos árbitros, evita o ainda mais custoso uso de perito do tribunal, e provoca intensidade - entre partes e tribunal arbitral - na aferição dos pontos técnicos que merecem prevalecer em determinado caso. Para isso, a audiência de instrução permanece sendo um momento de vital importância na arbitragem, pois poderão os árbitros ouvir os peritos das partes, suas apresentações e submetê-los à inquirição das partes, por meio do contra-interrogatório ("cross examination"). Certamente, a experiência dos membros do tribunal arbitral exercerá papel importante para detectar as eventuais inconsistências da matéria técnica que estiver sob exame. Afinal, é exatamente a técnica do cross examination, com participação ativa das partes e seus advogados numa conferência de testemunhas ("witness conferencing") que poderá levar o tribunal arbitral, destinatário da prova, formar seu convencimento a respeito da matéria5. A fim de garantir a higidez dessa modalidade de prova técnica na arbitragem, cabe ao tribunal arbitral, na qualidade de destinatário da prova, a qual será por ele valorada a fim de formar a sua convicção, estabelecer regras que discipline a conduta das testemunhas técnicas a serem apontadas pelas partes, o que pode ser feito, tanto no termo de arbitragem, como em eventual termo de referência que organize prova técnica a ser produzida em determinado procedimento6. No entanto, para que o método de produção da prova técnica em discussão tenha eficácia, é imprescindível que o tribunal arbitral examine o caso em seus mínimos detalhes, esteja preparado e tenha senso de organização de modo que o resultado da conferência produza efeitos sobre a prova técnica perseguida7. O preparo dos profissionais que atuarão na condição de árbitros, sua especialização, seu conhecimento, sua organização, sua dedicação e, é claro sua responsabilidade e senso de justiça saberão conduzir, com a devida acuidade, a produção da prova técnica, cujo ônus, como visto, pertence às próprias partes. E, ao fim e ao cabo, o tribunal arbitral prestará a tutela jurisdicional, serviço o qual está incumbido. No ano em que se celebra 25 (vinte e cinco) anos da lei 9.307/1996, a decisão objeto dessas breves notas deve ser comemorada. Trata-se de um grande avanço nas discussões sobre o conceito da prova técnica na arbitragem, e mais um exemplo da crescente evolução da jurisprudência do STJ em matéria de arbitragem.   __________ 1 STJ, REsp nº 1.903.359-RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 11.05.2021, DJe 14.05.2021. 2 Nesse sentido, merece ser citado o seguinte trecho do acórdão ora em discussão: "Nesse peculiar tipo de prova, de larga utilização nas arbitragens, sobretudo nas internacionais, os profissionais, dotados de especialização na área do conhecimento exigido para solver as questões de ordem técnica do litígio, são contratados, cada qual, pelas partes, deles se exigindo independência e imparcialidade na elaboração de seus laudos e em seus depoimentos, não se confundindo, assim, com a figura dos assistentes técnicos". 3 Aqueles que que depõem unicamente sobre aspectos técnicos da causa, com o compromisso de dizer o que creem, sob o ponto de vista técnico. 4 Esse é, aliás, o entendimento de Carlos Alberto Carmona: "A instrução processual, em sede arbitral, será bastante flexível, até porque o árbitro não está ligado às regras do Código de Processo Civil, regras que empecem - e empobrecem - a atividade do juiz togado. Assim, nada impede que o árbitro determine a oitiva de depoimento técnico - ouvindo testemunha não sobre fatos ligados à causa, mas sim sobre determinada matéria técnica, funcionamento de um mercado, usos e costumes de determinado setor - ou que faculte perguntas formuladas diretamente às partes e testemunhas (sem que haja a conhecida triangularização parte-juiz-testemunha). Melhor que isso, dependendo da capacidade do órgão arbitral (quando a arbitragem for institucional) a prova poderá ser agilizada com a transmissão de informações (ou do próprio laudo) por via eletrônica, poderão ser tomados os depoimentos com serviços de estenotipia (com degravação imediata). Como a vontade das partes impera, árbitros podem até mesmo substituir a figura do perito (com a nomeação de assistentes técnicos) por empresa de auditoria, escolhida de comum acordo pelos litigantes para determinada averiguação econômico-financeira ou até mesmo contábil (...)". (O processo arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 21-31, jan./abr. 2004). 5 Segundo Alex Wilbraham: "Com o witness conferencing, os peritos (e eventuais testemunhas) comparecem juntos à audiência, em vez de o tribunal ser obrigado a ouvi-los separadamente, isolados um do outro, e em horários ou dias diversos. Assim, os árbitros mantêm maior controle sobre a realização do cross-examination e podem dedicar mais tempo aos argumentos ou questões que, na sua opinião, são mais importantes para solução da disputa. A produção da prova poderá ser conduzida, por exemplo, dividida por assunto ou questão relevante, em vez de por perito. Vale dizer, os árbitros poderão fazer perguntas sobre um determinado assunto ou questão relevante para um perito e, em seguida, repetir a mesma pergunta para outro perito. Da mesma forma, os advogados de uma parte poderão também questionar o perito da outra parte e depois aquele nomeado pelo seu cliente, sobre o mesmo tema. O witness conferencing tenta manter o rigor inquisitorial, que é o forte em um cross-examination, enquanto ameniza os seus elementos adversariais. O controle da produção da prova é assim mais bem dividido, reduzindo um pouco o dos advogados e aumentando o dos árbitros que, por sua vez, têm desta forma maior liberdade para conduzir o procedimento". (Perito na Arbitragem Internacional, Revista Brasileira de Arbitragem, 2006, Vol. III Issue 10) p. 104 - 109). Tal opinião parecer convergir com a de Marcos André Franco Montoro e Alexandre Palermo Simões: "Assim, defende-se que na maioria das vezes o depoimento das testemunhas técnicas (expert witnesses) é suficiente esclarecedor, evitando a realizado da demorada prova pericial pelo sistema tradicional. Também se afirma que apesar do perito ser contratado pelas partes (é a chamada hired gun, ou arma de aluguel, criticada por quem não gosta deste sistema), o árbitro tem capacidade para verificar qual das duas exposições (dois peritos) é a mais plausível, tem mais detalhes técnicos, está coerente e sem furos. O árbitro também pode apurar que em alguns pontos um perito tem razão, e em outros pontos ou outro perito é que tem razão. Mais ainda, como cada perito normalmente prepara o seu laudo sem manter contato com o outro perito (afinal, foram contratados por adversários), então ao apresentarem, no mesmo momento, os respectivos laudos, pode ser que estejam de acordo quanto a alguns fatos, cuja apuração fica praticamente resolvida (...)". (O perito e a expert witness ("testemunha técnica") na arbitragem. in Perícias em Arbitragens. MAIA Neto, Francisco e FIGUEIREDO, Flavio Fernando de (coord.), 2012, p. 151). 6 Alguns exemplos, nesse sentido são trazidos por Cristina M. Wagner Matrobuono: "alguns painéis têm optado por estabelecer uma regra em ordem processual, como a Professora Selma Lemes, na redação a seguir produzida: (i) ESCLARECER que as partes poderão requerer que, com o intuito de recolher informações técnicas e específicas sobre determinada matéria, sejam admitidas testemunhas técnicas a serem ouvidas como contribuição para o processo de formação de convicção dos árbitros. As testemunhas técnicas deverão ser independentes das partes, não sendo admitidos nessa condição profissionais especializados que mantenham vínculo empregatício, relação de subordinação hierárquica ou qualquer relação de trabalho constante com a parte que os houver designado; (...) Idealmente, a nossa ver, as regras sobre o tema devem ser fixadas no termo de arbitragem, ou em documento similar, como exemplificativamente, a reproduzida a seguir: Na hipótese de ser determinada a produção de prova pericial, os peritos designados pelo tribunal arbitral ou nomeados pelas partes, não assim seus assistente técnicos, deverão declarar sua imparcialidade e independência e estarão sujeitos ao dever permanente de revelação de quaisquer circunstancias pretéritas ou supervenientes que possam comprometê-las". (Pesquisa: Regras de Imparcialidade e Independência na Produção de Provas em Arbitragens, Revista Brasileira de Arbitragem, n. 67, jul./set. 2020, p. 68). 7 Essa é, inclusive a opinião de Alex Wilbraham: "O sucesso do witness conferencing depende, em grande parte, de uma adequada organização. Necessita que os árbitros sejam pró-ativos e que dominem as questões objeto da disputa. Igualmente, o witness conferencing exige uma boa preparação por parte dos advogados, que devem ter a capacidade de reagir rapidamente e fazer novas perguntas sobre as questões levantadas pelos árbitros e respostas dadas pelos peritos. Outro ponto fundamental é que a audiência seja gravada ou transcrita de forma eficiente, permitindo que as informações reveladas possam ser úteis às partes na elaboração de suas alegações finais. Finalmente, caberá ao presidente do tribunal arbitral garantir a eficiência do witness conferencing, mediante a organização e coordenação desse procedimento." (Perito na Arbitragem Internacional, Revista Brasileira de Arbitragem, 2006, Vol. III Issue 10) p. 104 - 109).
terça-feira, 29 de junho de 2021

Os prazos da arbitragem e o rigorismo excessivo

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP"), ao se pronunciar em sede de ação anulatória de sentença arbitral, decidiu, conforme transcrição da ementa do correspondente julgado: "AÇÃO ANULATÓRIA DE SENTENÇA ARBITRAL PARCIAL - Sentença parcial que afastou a alegação de prescrição e determinou a produção de prova pericial. Autora no procedimento arbitral que precluiu do direito de protestar pela produção de provas. Liberdade das partes de definir o procedimento arbitral que aumenta a importância de respeitar o procedimento voluntariamente definido. Sentença arbitral parcial anulada. Recurso provido (...)"1. Trata-se, na origem, de arbitragem processada sob a égide da Câmara de Comércio Internacional ("CCI"), envolvendo a Companhia do Metropolitano de São Paulo ("Metrô") e o Consórcio Linha Amarela ("Consórcio"). Segundo consta do acórdão em referência, o Tribunal Arbitral formado no aludido procedimento proferiu sentença parcial em que, inter alia, rejeitou alegações de ocorrência de prescrição (cujo prazo seria, na visão do Metrô, trienal) e de preclusão do direito de o Consórcio produzir provas. Tal decisão foi objeto de ação anulatória de sentença arbitral, julgada improcedente em primeira instância, mas, em seguida, reformada pela 1ª Câmara de Direito Público do TJ/SP. Em breve resumo, a 1ª Câmara de Direito Público do TJSP entendeu, por maioria de votos, inter alia, que no início da arbitragem (precisamente, no Termo de Arbitragem ou Ata de Missão, na linguagem regulamentar da CCI), as Partes estabeleceram um calendário procedimental prevendo que todas as provas a serem produzidas deveriam ser indicadas nas alegações escritas. Na ausência da indicação dessas provas, ocorreria a preclusão do direito da parte. Essa foi a conclusão do referido decisum: "[...] No processo arbitral, como o procedimento é estabelecido pelas próprias partes, a necessidade de respeitá-lo só aumenta. Isso porque não é necessário que o julgador indague se o procedimento é adequado à resolução da controvérsia que deve resolver; as próprias partes, ao determinar o procedimento, já responderam positivamente a essa indagação.  Assim, se o réu deixou de indicar nas alegações iniciais, de maneira fundamentada, quais as provas que pretendia produzir, ocorreu a preclusão desse direito. Ao rejeitar a alegação de preclusão da produção probatória, a sentença arbitral parcial (fls. 185-257) desrespeitou o cronograma de procedimento e, consequentemente, a igualdade de partes, nos termos do art. 21, § 2º da Lei nº 9.307/96.  Por isso, é o caso de anulá-la, nos termos do art. 32, VIII da mesma lei. O fato de já terem sido produzidas as provas, conforme informado nas razões de apelação, não resulta na perda superveniente do objeto, vez que da anulação da sentença arbitral parcial pode e deve resultar alteração na valoração das provas validamente aceita [...]". Assim, o voto condutor do recurso entendeu que a sentença arbitral deveria ser anulada, com base no disposto no art. 32, inciso VIII, da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem")2, pelo fato de a parte Requerente da Arbitragem não ter indicado, nas Alegações Iniciais, as provas que pretenderia produzir, e por isso, teria precluído o direito da Requerente de produzir provas. Além de tal decisão não se enquadrar em qualquer das hipóteses do rol taxativo previsto no art. 32 da Lei de Arbitragem, como aliás, frisou muito bem o voto vencido, de lavra do Desembargador Danilo Panizza, a crítica maior que pode ser tecida face ao julgado é o rigorismo excessivo imposto pela maioria da turma julgadora, na aplicação do instituto da preclusão na arbitragem. Segundo a Lei de Arbitragem, verificou-se a absoluta despreocupação do legislador de fixar regras concernentes a qualquer aspecto que levasse em conta o fator tempo durante a fase arbitral, excetuando-se questões como o prazo para o proferimento da sentença arbitral3 e o prazo para apresentação de pedidos de esclarecimentos face à sentença arbitral4. Talvez, a despreocupação do legislador em fixar regras mais específicas a respeito de questões temporais na arbitragem tenha se dado em razão do caráter flexível da arbitragem5 tornando-o, um procedimento "sob medida"6, de "qualidades próprias", como dizia Cláudio Vianna de Lima7, ou de um objeto de uma "alfaiataria jurídica", na expressão de José Augusto Fontoura Costa8. Quando se fala em flexibilidade da arbitragem, pensa-se, automaticamente, na ideia de fixar um procedimento livre, com regras predeterminadas, seja pelas partes, seja pelos árbitros, sem se ater às normas processuais cogentes do país sede da arbitragem9. Esse procedimento livre justifica-se pela própria autonomia das partes em uma arbitragem. Se as partes quiseram a arbitragem, portanto, caberá a elas a regência do procedimento, inclusive a fixação dos prazos procedimentais. No entanto, tal autonomia deve estar de acordo com as leis regentes do procedimento e do mérito da controvérsia. Recomenda, nesse ponto, Carlos Alberto Carmona, que os advogados estejam sempre "atentos ao problema para que o árbitro foque sua atenção sobre o que realmente conta, ou seja, dirija seus esforços para a solução do litígio, ao invés de ocupar-se com quizilas processuais"10. É dessa forma que, em um procedimento arbitral, as partes podem livremente estipular o prazo em que a sentença arbitral será prolatada, pactuar o tempo-limite para apresentação das alegações iniciais e finais, estabelecer um período predeterminado para a realização de uma prova pericial, bem como o prazo para que o correspondente laudo técnico seja disponibilizado, etc. Não há peremptoriedade dos prazos, tampouco a ocorrência dos efeitos da preclusão11. No entanto, da leitura do acórdão, depreende-se que a maioria da turma julgadora descartou as premissas acima e entendeu que, se a parte deixou de indicar nas alegações iniciais, de maneira fundamentada, quais as provas que pretendia produzir, ocorreria a preclusão desse direito. Conquanto a ideia de previsibilidade seja sempre útil na arbitragem e que as partes sejam sempre encorajadas a juntar todas as provas com suas alegações escritas, não se vê, qualquer óbice em que, em momento posterior, haja a necessidade de produção de eventual prova, não alegada ou suscitada nas alegações escritas. É correto afirmar que o árbitro deve se ater à sua missão, definida no Termo de Arbitragem e estar atento às alegações das partes, mas a fase instrutória da arbitragem deve permitir que o Tribunal Arbitral, se não satisfeito com o acervo probatório produzido, se convença da necessidade de produzir uma prova originalmente não suscitada nas alegações escritas. Penalizar a parte que deixa de suscitar ou indicar alguma prova nas alegações escritas com base na preclusão12, fere, por si só o espírito flexível da arbitragem e a busca pela verdade, além de processualizar, indevidamente, a arbitragem13. O formalismo imposto pela decisão do TJ/SP é, dessa forma, excessivo. Tal prática, além de contrariar o próprio regulamento de arbitragem escolhido pelas partes para reger sua controvérsia, (art. 25 do Regulamento da CCI14) não está em sintonia com o sistema arbitral, ao qual não se aplica o instituto da preclusão. Por outro lado, é certo que a previsibilidade, caracterizada pela prefixação das partes dos prazos a serem cumpridos e provas a serem requeridas deva ser sopesada com o estado do acervo probatório dos autos e a necessidade de se proferir uma sentença completa, fundada essencialmente nas provas, garantindo-se, ao fim e ao cabo, sua exequibilidade. O remédio para isso está no poder jurisdicional conferido aos árbitros, verdadeiros destinatários da prova na arbitragem. Não há como se conceber, portanto, que o princípio da igualdade das partes estaria ferido pelo fato de o Tribunal Arbitral ter rejeitado a alegação de preclusão do direito de produzir provas, o que foi feito por meio de sentença arbitral parcial15. Como já exposto em escrito anterior16, a liberdade das partes na arbitragem é sopesada pelo controle dos árbitros, a quem compete a última palavra, notadamente no que concerne à fase de instrução da arbitragem, crucial para o bom desfecho da arbitragem. Trata-se de medida de pura "administração de justiça", conforme ensina Charles Jarrosson17. Como bem afirma José Carlos de Magalhães, "na arbitragem, a regra é a decisão sempre se fundar na prova e não nos efeitos legais decorrentes da revelia e da preclusão"18. Espera-se que com esses breves comentários, o julgado acima citado possa ser revisto e reformado pelas instâncias superiores, expurgando-se da arbitragem o excessivo formalismo e a rigidez, próprios do sistema estatal. __________ 1 TJ/SP, Apelação Cível nº 1066484-54.2019.8.26.0053, 1ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Azuma Nishi, j. 10.03.2021. 2 Violação dos princípios do contraditório, da igualdade das partes, inter alia. 3 "Art. 23. A sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes. Nada tendo sido convencionado, o prazo para a apresentação da sentença é de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro". 4 "Art. 30.  No prazo de 5 (cinco) dias, a contar do recebimento da notificação ou da ciência pessoal da sentença arbitral, salvo se outro prazo for acordado entre as partes, a parte interessada, mediante comunicação à outra parte, poderá solicitar ao árbitro ou ao tribunal arbitral que (...)". 5 Sobre a flexibilidade do procedimento arbitral v. FRANCO MONTORO, Marcos André. Flexibilidade do procedimento arbitral. 2010. Tese (Doutoramento) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo. 6 Nesse sentido, v. Steven A Hammond: "One of the great strengths of arbitration is its procedural flexibility, which permits the process to be tailored to the particular needs of each case [.]" (Making the case in international arbitration: a common law orientation to the marshalling and presentation of evidence, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 5, n. 16, p. 171-196, jan.-mar. 2008). No mesmo sentido v. Karl-Heinz Böckstiegel: "There are many ways of managing case efficiently, and it is one of the advantages of arbitration over court litigation that arbitral tribunals can shape a tailor made procedure that takes into account the many particularizes of each case [.] Although it is important to clarify the rules of the game as early as possible, it is also important to leave room for flexibility later in the proceedings[.]" (Presenting evidence in international arbitration, ICSID Review: Foreign Investment Law Journal, Washington, v. 16, n. 1, p. 1-9, 2001). 7 Nesse sentido, dizia o referido mestre: "Tenha-se em conta que a duração rápida, usual, do procedimento dos árbitros não é, apenas, um resultado das qualidades próprias do instituto, uma consequência de suas já enaltecidas virtudes, quando indicada a alternativa para solver determinado caso concreto de conflito de interesses. Esse tempo hábil da arbitragem é, e deve ser, antes de tudo, uma obstinada preocupação. Das normas respectivas. Daqueles que a operam". LIMA, Cláudio Vianna de. A arbitragem no tempo - o tempo na arbitragem. In: GARCEZ, José Maria Rossani (Coord.). A arbitragem na era da globalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 17. 8 Segundo esse autor, "Além daquelas tradicionalmente apontadas, pode-se agregar o fato da maior flexibilidade do procedimento, já que na arbitragem este pode ser objeto de uma alfaiataria jurídica instituidora de elementos que não dizem respeito às preocupações e objetivos do legislador". COSTA, José Augusto Fontoura. Sobre luzes e sombras: arbitragem, Revista CEJ, Brasília, ano XIV, n. 48, p. 113, 2010. 9 Nesse sentido, ao menos em matéria de arbitragem internacional, assinalam Schlesinger, Baade, Herzog e Wise: "In international commercial arbitration, if the agreement fails to stipulate the applicable law, the arbitrators have the leeway to choose what they regard as the most appropriate rule. It has been suggested (although the suggestion is controversial) that, in such cases arbitrators, are not necessarily bound to apply national law, but may in fact do base their awards on the way the determine to be the rules of the lex mercatoria, a modern version of the old law merchant, which exists apart from systems of national law. In devising such rules, however, they naturally turn to preexisting rules and institutions for guidance [.]" (SCHLESINGER, Rudolf B.; BAADE, Hans W.; HERZOG, Peter E.; WISE, Edward M. Comparative Law: Cases - Text - Materials. New York: Foundation Press, 1998. p. 45). 10 CARMONA Carlos Alberto. O processo arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 21-31, jan.-abr. 2004. 11 No que se refere aos prazos de preclusão, ao menos no direito arbitral brasileiro, entende Carlos Alberto Carmona que, na esfera arbitral, os efeitos da preclusão operam em relação à oportunidade que as partes têm para arguir, questões relativas à competência, suspeição, ou impedimento do árbitro (art. 20, caput, da lei 9.307/1996). Dessa forma, Carmona, ao tecer o seu comentário ao referido dispositivo legal, assim se manifesta: "Entre essas últimas (questões em que há a atuação do princípio da disponibilidade), estão algumas das questões relativas à suspeição e impedimento do árbitro: se as partes, sabedoras de motivo para afastamento do árbitro, deixam de alegá-lo, estão tacitamente concordando que tal motivo não causará a parcialidade do julgamento (ou, pelo menos, estão aceitando o risco de eventual parcialidade), e consequentemente não podem reservar-se o direito de, proferido o laudo, trazerem à baila a questão (a não ser, é claro, que o motivo de impedimento ou suspeição tenha sido descoberto posteriormente). A preclusão, aqui, ocorrerá se a parte que tiver conhecimento do motivo que possa levar à recusa do árbitro deixar de apresentar a respectiva exceção na primeira oportunidade que tiver". CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n.º 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 284. No mesmo, ver PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo Arbitral e Sistema. São Paulo: Ed. Atlas, 2012, p. 123. 12 Ao tratar do instituto da preclusão, Eduardo de Albuquerque Parente aduz com propriedade: "Em resumo, a preclusão encontra a sua razão de ser justamente na procura pelo bom andamento do processo, pela manutenção de sua marcha rumo a um resultado (...) No entanto, o instituto [da preclusão], se tão importante no processo estatal, está longe de ter a mesma expressão no arbitral. Em prol da verdade, pode-se dizer que ele praticamente inexiste no processo arbitral nos termos do modelo estatal. O que ocorre, no mais das vezes, de fato, é o poder do árbitro de coibir conditas dolosas - como quebrar retardar o procedimento ou tomar vantagem pelo não cumprimento do prazo fixado - mediante sanções processuais semelhantes à preclusão (...)" (Processo Arbitral e Sistema. São Paulo: Ed. Atlas, 2012, p. 120-121). 13 Nesse sentido, ensina José Carlos de Magalhães: "Daí que a processualização da arbitragem, com a adoção de medidas típicas do Judiciário, com sucessivos requerimentos sobre a matéria processual, a invocação de preclusões, pedidos de retiradas de peças apresentadas fora do prazo, pode prejudicar o seu grande efeito, que é a atenção maior ao cerne da controvérsia: o mérito. Cabe aos árbitros impedir procrastinações desnecessárias, evitando discussões processuais impertinentes e não relevantes para a solução da questão controvertida. Na verdade, o que importa na discussão de qualquer controvérsia é a interpretação e a aplicação do direito material - civil, comercial, societário, trabalhista ou de outra natureza - que é o cerne da controvérsia que divide as partes." (Arbitragem: Sociedade Civil x Estado. São Paulo: Almedina, 2020, p. 260). 14 Segundo a referida regra (Regulamento de Arbitragem da CCI, versão de 2017 que foi aplicada ao caso), em especial os subitens 1 e 5, aqui transcritos para facilidade de referência: "25(1): O tribunal arbitral deverá proceder à instrução da causa com a maior brevidade possível, recorrendo a todos os meios apropriados; 25(5) A qualquer momento no decorrer do procedimento, o tribunal arbitral poderá determinar a qualquer das partes que forneça provas adicionais". 15 O que foi confirmado, inclusive, pelo juízo e primeira instancia, ao negar o pedido liminar de suspensão da arbitragem. Confira-se, nesse sentido, parte da decisão do Juízo da 16ª Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo: "Na decisão do Tribunal Arbitral, ficou consignado que, desde o início, o Consórcio já se manifestava pela perícia (fls. 255) e as partes já estavam cientes de que o procedimento de arbitragem é mais flexível do que a demanda judicial". 16 Fonte: A flexibilidade da arbitragem e o controle dos árbitros - Migalhas. Acesso em 23 jun. 2021. 17 No entendimento de Charles Jarrosson, o controle da arbitragem é exercido totalmente pelo árbitro, deixando claro que a vontade das partes encontra o seu limite na jurisdicionalidade do poder conferido ao árbitro que, diante disso, terá a última palavra. Assim, os poderes do árbitro, em matéria procedimental se justificam pela necessidade de eficácia inerente à administração da justiça (Qui tiens les rênes de l'arbitrage? Volonté des parties et autorité de l'arbitre. Revue de L'Arbitrage 1999, p. 601). 18 MAGALHÃES, José Carlos de. Arbitragem: Sociedade Civil x Estado. São Paulo: Almedina, 2020, p. 58.
Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP"), ao se pronunciar em sede de ação anulatória de sentença arbitral, decidiu, conforme transcrição parcial da ementa do correspondente julgado: "APELAÇÃO. AÇÃO ANULATÓRIA DE SENTENÇA ARBITRAL. Improcedência. Decisão reformada. Decadência não verificada. Prazo iniciado a partir do julgamento do segundo pedido de esclarecimentos, apreciado por árbitros novos, em razão da renúncia dos anteriores. Mérito. Inexistência de prova de fato que demonstre a parcialidade dos árbitros. Questão que, ainda, deveria ter sido arguida na primeira oportunidade. Art. 20 da lei 9.307/96. Vício de fundamentação existente. Percentual da indenização, ainda que fixado por equidade, não prescinde de fundamentação, sob pena de violação do inc. IX do art. 93 da CF e do art. 489, §1º do CPC, bem como do §2º do art. 21 e inc. II do art. 26, ambos da lei de arbitragem. Indenização que se mede pela extensão do dano. Art. 944 do CC. Decisão arbitral que também não conferiu prazo para a parte requerida se manifestar sobre relatório de empresa de auditoria utilizado para determinar o valor do preço final da compra e venda. Violação ao contraditório e à ampla defesa. Anulação dos capítulos da sentença arbitral que fixaram o percentual dos danos e o valor final do preço de compra e venda. Aplicação dos incs. III e VIII do art. 32 da Lei de Arbitragem. RECURSO PROVIDO EM PARTE (...)"1. Tal decisão causou perplexidade àqueles que atuam na seara arbitral. Perplexidade que se explica pela indevida interferência do Poder Judiciário no mérito da arbitragem. Essas breves linhas procurarão demonstrar as razões pelas quais não poderia o Poder Judiciário ter se imiscuído indevidamente em matéria única e exclusivamente reservada à jurisdição arbitral. De forma resumida, o litígio dizia respeito a contrato de compra e venda de quotas sociais de sociedade ligada ao ramo de diagnósticos médicos, materiais médicos, hospitalares, dentre outros, que continha cláusula compromissória, a qual, em determinado trecho, dispôs: "O Tribunal Arbitral será constituído por 3 (três) árbitros, sendo que cada Parte indicará 1 (um) árbitro, e estes, em conjunto, indicarão o árbitro presidente. A arbitragem terá sua sede na cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, Brasil, utilizando-se o português como idioma oficial para todos os seus atos. Os árbitros decidirão com base na legislação da República Federativa do Brasil, admitido o julgamento por equidade". Pois bem. Ao decidir o litigio na arbitragem, o Tribunal Arbitral, se valendo da prerrogativa conferida por ambas as partes na cláusula compromissória, decidiu: "Nesse sentido, considerando as circunstâncias trazidas pelas PARTES e avaliadas pelo Tribunal Arbitral diante de todo o contexto da negociação, o Tribunal Arbitral, valendo-se, neste tópico especifico, da equidade como critério de julgamento na fixação de indenização cabível, condena LUIZ ao pagamento, em favor de ADAVIUM, de 25% (vinte e cinco por cento) do valor histórico do preço ajustado de compra conforme números apontados por PwC em seu relatório. Nesse sentido, considerando que PwC apontou o preço de compra ajustado como sendo R$17.187.000,00, a indenização a ser paga por LUIZ equivale a R$4.296.750,00, a ser corrigido monetariamente desde a data da celebração do Contrato com base na variação de 100% do CDI, tendo em vista ser este o índice contratual de correção." Irresignada, a parte perdedora ingressou com ação anulatória de sentença arbitral, julgada improcedente, mas reformada em segunda instância, conforme a ementa do correspondente julgado acima transcrita. Basicamente, entendeu o TJSP que, ao fixar o critério indenizatório na sentença, não haveria como saber se o valor da indenização equivaleria ao valor do prejuízo efetivamente suportado, e isso, por si só, contrariava a disposição contida no art. 944 do Código Civil ("CC"), segundo o qual, a indenização se mede pela extensão do dano. Com base nessa motivação, o TJSP entendeu, inter alia, que a sentença arbitral careceria de fundamentação e a anulou, nos termos do art. 32, inciso III da Lei nº 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem"). A perplexidade gerada por tal decisão se explica pelo fato de o juízo estatal não apenas ter se imiscuído no mérito da decisão, o que é vedado por lei e pela jurisprudência consolidada dos tribunais brasileiros, em especial a do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"2), mas por ter violado frontalmente a efetiva vontade das partes, qual seja, o uso da equidade como critério de julgamento do litígio.  As partes em uma arbitragem interna ou internacional dispõem de ampla autonomia para escolher o direito aplicável ao fundo da controvérsia. O regime jurídico escolhido é variado, podendo-se aplicar ao caso diversas leis, assim como regras aceitas no universo internacional3. No entanto, é preciso consignar que as partes podem autorizar os árbitros a julgar por equidade4, fazendo valer, como ratio decidendi, o sentimento de justiça5. Autorizando as partes o julgamento por equidade, os árbitros podem eleger as situações em que a norma não merece mais aplicação ou simplesmente descartar direitos dos quais as partes livremente disponham6. Segundo o entendimento de Carlos Alberto Carmona, tais situações não seriam aplicadas pelo fato de a norma não merecer mais aplicação, porque a situação fora desprovida de previsão pelo legislador, por ser uma norma ultrapassada, ou, ainda, porque a norma causou verdadeiro desequilíbrio em uma relação jurídica, resultando em injustiça para uma das partes7. A percepção de justiça desvinculada ou não de regras jurídicas é o que representa, assim, a decisão por equidade, como entende Selma Lemes8. No caso ora discutido, o equívoco do TJSP se deu quando afirmou que o percentual da indenização, ainda que fixado por equidade, não prescindiria de fundamentação, sob pena de violação do inc. IX do art. 93 da CF e do art. 489, §1º do CPC, bem como do §2º do art. 21 e inc. II do art. 26, ambos da lei de arbitragem. Ora, se há autorização de julgamento por equidade, devem os árbitros julgar o mérito da demanda conforme o seu sentimento de justiça, à luz dos argumentos lançados pelas partes aliado à prova carreada aos autos e derrogando, se necessário9, o direito positivo. Esse tipo de julgamento somente não seria permitido se houvesse algum elemento de ordem pública material10 (e não processual) a incidir no caso, como, por exemplo, a ocorrência de prescrição extintiva11. O decisum ora em discussão interferiu de forma indevida no mérito da sentença arbitral, a qual, de forma percuciente, avaliou as circunstâncias trazidas pelas partes contendentes; considerou todo o contexto da negociação das partes; valorou a robusta prova produzida nos autos (cujos trechos foram até mesmo citados no acórdão do TJSP); para, com prévia autorização contratual, definir a indenização devida à parte vencedora utilizando o critério da equidade. Contudo, ao valorar a prova produzida na arbitragem, o TJSP "desbordou completamente do escopo da ação anulatória", como bem frisou, em recente artigo, Guilherme Rizzo do Amaral12. Com efeito, a vontade das partes deve ser respeitada quando estas autorizam o árbitro a decidir a causa por equidade. Portanto, devem os árbitros julgarem conforme o sentimento de justiça, derrogando o direito positivo, se necessário. Apenas na hipótese de os árbitros aplicarem outro critério que não o da equidade, a sentença arbitral poderia estar eivada de vícios e certamente seria passível de anulação, com base no art. 32, inciso IV, da Lei de Arbitragem. Em resumo: é preciso deixar claro que as partes não são obrigadas a autorizar o julgamento por equidade. Acontece que, se o fazem, estão pedindo para que a causa seja julgada com base no sentimento de justiça, sem a aplicação rígida ou estrita de qualquer lei13. Como bem afirma Selma Lemes, a autorização do julgamento por equidade envolve sobretudo o "entrelaçamento de uma enorme quantidade de meios de interpretação e de decisão colocada à disposição do árbitro, de critérios variados que poderá utilizar e que lhe pareçam corretos e convenientes para decidir o litígio, ou seja, alargam os poderes do árbitro na maneira de entender o litígio"14. Não há dúvidas que, após quase 25 anos de vigência da Lei de Arbitragem no Brasil, a arbitragem permanece sendo o meio preferido de resolução de litígios alternativa ao Judiciário, notadamente para casos como o ora discutido, decorrente de operação societária complexa, que necessitou de robusta produção de prova e uma escorreita decisão a qual pôs termo ao litígio. Mas é preciso que se tenha em mente que o processo arbitral tem início, meio e fim. É preciso que a parte que contrata a arbitragem tenha em mente que o resultado de uma arbitragem não pode ser alterado por instância diversa. O Poder Judiciário deve, sem qualquer dúvida, interceder numa arbitragem, mas de maneira coordenada e cooperativa, como já se pontuou em escritos anteriores desta coluna15. No entanto, o mérito é intangível e constitui a verdadeira essência da arbitragem. Espera-se que com esses breves comentários, o julgado acima citado possa ser revisto e reformado pelas instâncias superiores, de modo a simplesmente preservar a intangibilidade do mérito das sentenças arbitrais, garantindo-se, ao fim e ao cabo, segurança jurídica aos usuários da arbitragem. __________ 1 TJSP, Apelação Cível nº 1048961-82.2019.8.26.0000, rel. Des. Azuma Nishi, j. 10.03.2021. 2 Ver, nesse sentido, o seguinte julgado: STJ, Quarta Turma, AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1.670.074-SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.12.2020, DJe 12.12.2020. 3 Art. 2º, §§ 1º e 2º da Lei de Arbitragem. 4 Art. 2º, caput, da Lei de Arbitragem. 5 Nesse sentido, v. Fouchard, Gaillard e Goldman: "De la même manière qu'elles peuvent choisir de soumettre le règlement de leurs litiges à une loi étatique ou à la lex mercatoria, les parties peuvent conférer aux arbitres des pouvoirs d'amiables compositeurs" (Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 847). 6 É o que afirma Eric Loquin: "La clause d'amiable composition est une clause renonciation par laquelle les parties abandonnent à l'arbitre la disposition des droits subjectifs dont elles peuvent elles-mêmes disposer [...]. Il en résulte que l'amiable compositeur, si l'équité l'exige, peut écarter les droits dont les parties ont, une fois le litige né, la libre disposition" (Nota sobre a decisão proferida pela Corte de Cassação Francesa (Cass. Civ. 2.ª), julgado em 15.02.2001. Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité français de l'arbitrage, n. 1, p. 142, 2001). 7 Nesse sentido, v. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 65-66. O jurista português Miguel Galvão Telles vai mais além, ao entender que no julgamento por equidade se poderia até mesmo desconsiderar prazos em razão das circunstâncias de determinado caso. Assim entende o referido autor: "Um julgamento ex aequo et bono pode considerar circunstâncias do caso não tipificáveis; pode aplicar regimes sem que se verifiquem os índices abstractamente previstos ou excluí-los ainda que os índices se verifiquem; pode prescindir de formalidades ou desconsiderar prazos: tudo em razão de circunstâncias específicas do caso concreto, não ponderáveis em termos susceptíveis de formulação prévia por modo geral e abstracto. Mas o julgamento ex aequo et bono pode mais do que isso: pode, independentemente de qualquer especificidade do caso concreto, afastar os próprios critérios normativos, gerais e abstractos, subjacentes à lei de referência ou a qualquer lei" (Arbitragem comercial internacional ex aequo et bono e determinação de lei de mérito, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 19, p. 95, 2008). 8 Nesse sentido, a posição de Selma Lemes: "Representará a sentença que se respalda na consciência e percepção de justiça do árbitro, que não precisa estar vinculado às regras de direito positivo e métodos preestabelecidos de interpretação. Representará, assim, a decisão por equidade" (A arbitragem e a decisão por equidade no direito brasileiro e comparado. Arbitragem: estudos em homenagem ao Prof. Guido Fernando da Silva Soares (in memoriam). São Paulo: Atlas, 2007. p. 197). 9 A derrogação ou não do direito positivo no julgamento por equidade é bem explicada por Carlos Alberto Carmona: "Pelo que se viu, pode o árbitro, autorizado a julgar por equidade, decidir em sentido contrário àquele indicado pela lei posta, o que não deve dizer que deva ele necessariamente julgar afastando o direito positivo. Em outros termos, se a aplicação da norma levar a uma solução justa do conflito, o árbitro a aplicará, sem que isto possa ensejar em qualquer vício no julgamento. Ao conceder poderes para julgar por equidade, não podem as partes esperar que obrigatoriamente o árbitro afaste o direito positivo, o que configura mera faculdade, como se percebe claramente: neste caso, porém, será sempre interessante que o árbitro explique que, apesar da autorização para julgar por equidade, está aplicando o direito por considerar adequada a solução dada pela lei ao caso concreto" (Arbitragem e processo: um comentário à lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 66-67). 10 Nesse sentido, afirma Martim Della Valle: "Do exame da matéria, percebe-se que há dois elementos essenciais da arbitragem por equidade. O primeiro deles é a derrogação do direito positivo, quando ela é analisada sob o prisma da aplicação deste. Com efeito, excetuada a ordem pública, os árbitros investidos da missão de julgar por equidade possuem a faculdade de fazê-lo sem recurso ao direito positivo. Portanto, trata-se aqui da derrogação do direito positivo, sob reserva de ordem pública" (Da decisão por equidade na arbitragem comercial internacional. 2009. Tese (Doutoramento) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 70. Fonte: Martim.indd (usp.br). Acesso em 20 mai. 2021. 11 Ver, nesse sentido, NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 170-183. 12 Segundo o referido autor, a valoração da prova produzida na arbitragem pelo Judiciário, desborda completamente do escopo da ação anulatória. Isso porque, de regra, "o controle judicial sobre a validade das sentenças arbitrais está relacionado a aspectos estritamente formais, não sendo lícito ao magistrado togado examinar o mérito do que foi decidido pelo árbitro". Embora haja hipóteses em que a anulação da sentença arbitral possa passar pela forma como foi decidido o mérito, elas nunca incluirão o reexame das provas pelo juiz. Fonte: ConJur - Amaral: Breves comentários sobre o caso LRM x VYTTRA. Acesso em 20 mai. 2021. 13 Nesse sentido, entende Martim Della Valle: "Também é inegável que a arbitragem por equidade relaciona-se com o mérito da questão. Sem nenhuma dúvida, o principal efeito de uma cláusula de arbitragem por equidade se dá no nível da solução aplicável ao fundo. No entanto, essa aplicação ao fundo da controvérsia cria, como muito bem notado por Loquin, um paradoxo: a utilização da arbitragem por equidade serve, precipuamente, para o fim de liberar a decisão de fundo da aplicação de um direito positivo. Sujeitar a disciplina da cláusula de equidade a uma lei que a mesma cláusula tende a derrogar não se mostra uma boa solução" (Da decisão por equidade na arbitragem comercial internacional. 2009. Tese (Doutoramento) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 105. Fonte: Martim.indd (usp.br). Acesso em 20 mai. 2021. 14 LEMES, Selma Ferreira. A arbitragem e a decisão por equidade no direito brasileiro e comparado. Arbitragem: estudos em homenagem ao Prof. Guido Fernando da Silva Soares (in memoriam). São Paulo: Atlas, 2007. p. 227. 15 A título de exemplo, ver O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui" - Migalhas. Acesso em 20 mai. 2021. 
terça-feira, 27 de abril de 2021

Revisitando a confidencialidade na arbitragem

Em recente e polêmica decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP"), ao se pronunciar no bojo de ação anulatória de sentença arbitral, decidiu, conforme transcrição parcial da ementa do correspondente julgado: "Ação anulatória de sentença arbitral. Decisão que indeferiu tutela de urgência para suspensão de efeitos da sentença, assim como indeferiu trâmite do feito em segredo de justiça. Agravo de instrumento dos autores. Segredo de justiça. A regra do sistema é publicidade dos atos processuais, de acordo com os arts. 5º, LX, e 93, IX, da Constituição Federal. A luz do sol, como afirmado pelo Justice LOUIS BLANDEIS, é o melhor detergente, faz bem à administração da Justiça. A generalizada imposição de segredo nos juízos arbitrais, contrariamente ao que sucede nos processos e julgamentos do Poder Judiciário, "é nociva ao sistema jurídico, por provocar assimetria de informações e obstar a formação do direito (consolidação dos precedentes e da jurisprudência)", afirma muito corretamente a decisão agravada, da lavra da Juíza de Direito PAULA DA ROCHA E SILVA FORMOSO. Os jurisdicionados têm o direito de conhecer a jurisprudência; os empresários, especificamente, o de antever, pela coerência que sempre se espera dos que têm a nobre missão de julgar, o provável resultado dos veredictos, levando-o em consideração ao celebrar negócios mercantis (...)"1. Não é o objetivo dessas linhas discorrer, de forma aprofundada, sobre a importância do sigilo ou da confidencialidade na arbitragem, o que já foi abordado, com maestria, em diversos escritos2. O que importa aqui é tão somente advertir para os malefícios que a decisão acima mencionada pode trazer para a arbitragem. Nessas linhas, faz-se referência unicamente à arbitragem comercial, deixando de se fazer considerações às arbitragens envolvendo a administração pública e as que envolvem companhias de capital aberto. No primeiro caso, (administração pública), por disposição expressa legal3, a arbitragem não deve tramitar sob sigilo. Quanto à segunda (arbitragem envolvendo companhias de capital aberto), entende o autor dessas linhas que a arbitragem não deve tramitar totalmente de forma sigilosa, em respeito aos acionistas e investidores da companhia4. Fouchard, Gaillard e Goldman já destacavam ser a confidencialidade um dos requisitos pelos quais as partes contratantes escolhem a arbitragem para a resolução de suas controvérsias, elencando a confidencialidade como um princípio fundamental da arbitragem comercial5. As especificidades da arbitragem comercial, demonstravam ser ela - arbitragem - feita para o litígio e não o litígio ser feito para arbitragem6. A confidencialidade, se enquadra nessa dita adequação. A confidencialidade constitui mecanismo importante de proteção das informações e dos dados constantes de um processo cuja publicidade poderia ensejar prejuízo a alguma das partes. José Emílio Nunes Pinto destaca, ademais, outro aspecto, ao explicar que o sigilo na arbitragem visa a permitir que as questões possam ser dirimidas de forma amigável, impedindo que sua existência possa afetar a continuidade das relações contratuais entre as partes, nem que a existência dessa controvérsia possa ser entendida por terceiros como uma ruptura das relações entre as partes7. Isso porque, do ponto de vista mercadológico, a mera existência de uma demanda judicial pode, por vezes, gerar consideráveis consequências às partes, dado que teria o condão de afetar a percepção de terceiros a respeito das relações, dos procedimentos e até mesmo da saúde financeira dos envolvidos. Dessa forma, a possibilidade de garantir o sigilo total do procedimento arbitral pode ser extremamente valiosa, principalmente em ambientes comerciais extremamente competitivos8. Sigilo ou confidencialidade, além de elementos intrínsecos à arbitragem comercial9, são objeto de escolha das partes. Com efeito, o poder advindo da autonomia negocial privada das partes, permite que elas possam contender de forma confidencial. Essa autonomia é revelada quando as partes escolhem determinado regulamento a ser aplicado na arbitragem. O sigilo constitui regra fixada em diversos regulamentos arbitrais10. Foi justamente em razão do natural caráter confidencial da arbitragem comercial e a evolução da doutrina e da jurisprudência brasileira em matéria de arbitragem que levaram o legislador a incluir a coerente disposição contida no art. 189, inciso IV do Código de Processo Civil ("CPC"), segundo a qual: "Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: (...) IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo". Diferentemente do quanto sugerido pelo acórdão de lavra do TJSP, a mens legis da referida norma não é a frisada "A generalizada imposição de segredo nos juízos arbitrais" a qual obstaria "formação do direito (consolidação dos precedentes e da jurisprudência)". Muito pelo contrário: pretendeu o legislador, mediante estudo aprofundado e analítico ao longo de anos de prática da arbitragem no Brasil, preservar o funcionamento e a higidez do sistema arbitral, autônomo e dissociado do Poder Estatal. Sabendo que os sistemas arbitral e judicial atuam de forma coordenada e cooperativa, teve êxito o legislador ao aprimorar o sistema processual brasileiro de modo a preservar um dos mais importantes elementos da arbitragem, que é o seu caráter confidencial. O acórdão de lavra do TJSP parece deixar transparecer que os procedimentos arbitrais conteriam informações privadas para atender aos interesses dos árbitros, que teriam estabelecido, "genericamente o sigilo dos seus procedimentos". Tal afirmação não parecer ser correta. A uma porque aos árbitros cumpre tão somente respeitar a vontade das partes, que, ao escolherem determinado regulamento de câmara que administre o procedimento arbitral, preveja o sigilo da arbitragem em suas regras. A duas porque o sigilo não interessa aos árbitros, mas sim às próprias partes contendentes, que optaram conscientemente por resolver suas controvérsias numa esfera privada, privativa, reservada, cativa e dissociada do Poder Judiciário. E quais seriam as razões para essa escolha? A resposta está no mundo empresarial, em seus agentes de mercado, que, por razões lícitas e próprias a seus interesses, têm o lídimo direito de proteger o seu negócio. Segredo de negócio, nas palavras de Nelson Nery Junior, "é elemento que compõe o estabelecimento empresarial, que se encontra protegido pelo sistema constitucional brasileiro porque decorre da livre iniciativa e da livre concorrência. Existe proteção contratual e extracontratual para o segredo do negócio"11. Conquanto tenha entendido pela inconstitucionalidade inter partes do art. 189, inciso IV do CPC, o decisum deixou de analisar a essencialidade do segredo de negócio, o qual constitui elemento "protegido pelas cláusulas constitucionais da livre iniciativa (CF 1.º IV e 170 caput) e da livre concorrência (CF 170 IV), com suas repercussões na legislação infraconstitucional (v.g. proteção contra o crime de concorrência desleal tipificado na LPI 195 XI e XI e § 1.º e infração à ordem econômica descrita na lei 8884/94 21 XVI )"12. De acordo com as premissas acima, é de suma importância para as partes que contendem numa arbitragem comercial, que não venham a público dados referentes aos seus negócios. Ainda mais quando o contrato que contém a cláusula compromissória é dotado de cláusula de confidencialidade, em virtude das condições comerciais lá impostas. A própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), antes mesmo da reforma do CPC em 2015 já possuía entendimento consolidado da admissão do "processamento em segredo de justiça de ações cuja discussão envolva informações comerciais de caráter confidencial e estratégico"13. Como é sabido, a lei não contém palavras inúteis, e, se a norma processual estabeleceu que tramitam em segredo de justiça os processos que envolvam arbitragem, tal disposição não foi acrescida de forma acidental, devendo ser levada em consideração a sua razão de ser, bem como a sua utilidade14-15. A prevalecer a decisão objeto dessas linhas, dois problemas serão criados: o primeiro, de caráter jurídico, eis que se violará regra pactuada pelas partes e elemento essencial da arbitragem comercial, que não passou despercebido pelo legislador ao editar a norma do art. 189, inciso IV do CPC; o segundo, de caráter econômico, uma vez que o afastamento do sigilo da arbitragem durante a fase pós-arbitral, poderá gerar instabilidade entre os agentes econômicos, que procuram na arbitragem comercial segurança e previsibilidade no âmbito de seus negócios16. O descarte do sigilo da arbitragem poderá atenuar o interesse das partes em resolver suas controvérsias neste meio especialíssimo, restrito, privativo e adequado, agravando o bom funcionamento do mercado17. No ano em que a Lei de Arbitragem completa 25 anos desde a sua promulgação, para que a arbitragem permaneça no Brasil como o principal método de resolução de conflitos empresariais e mantenha o seu sucesso junto ao empresariado, é imprescindível que se respeite a irrestrita confidencialidade do procedimento - desde a fase pré-arbitral até a fase pós-arbitral -  mantendo-se hígida a regra constante do art. 189, inciso IV do CPC e, ao fim e ao cabo, garantindo-se segurança jurídica e previsibilidade aos usuários da arbitragem comercial. __________ 1 TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2263639-76.2020.8.26.0000, rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 02.03.2021. 2 Aqui, alguns exemplos: PINTO, José Emilio Nunes. A confidencialidade na arbitragem, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 2, 6, p. 25-36, jul./set. 2005; FICHTNER, José Antonio; MANHEIMER, Sergio Nelson e MONTEIRO, André Luis. A confidencialidade da arbitragem: regra geral e exceções, Revista de Direito Privado, v. 49, 2012, p. 227-285, jan./mar. 2012; COSTA, Guilherme Recena. Integração contratual, confidencialidade na arbitragem e segredo de justiça, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 48, p. 69-89, jan./mar. 2016; GAGLIARDI, Rafael Villar. Confidencialidade na arbitragem comercial internacional, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 36, p. 95-135, jan/mar. 2013.  3 Art. 2º, § 3º da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem").  4 O que, aliás, foi bem observado por José Emilio Nunes Pinto: "The second case in which confidentiality is banned is where any arbitral proceeding deals with disputes involving listed companies. Depending on the outcome, a given arbitration may increase or reduce the enterprise value of a listed company. The outcome of the arbitration may thus affect the trading of listed shares positively or negatively. The limitation on confidentiality in such cases is aimed at protecting a valuable intangible asset. It is the interests of the community of shareholders to be kept abreast of events that may affect the listed company and ultimately the access to information, the latter being an important pillar of public markets. In such cases, the regulatory agencies in charge of capital markets offer standard communication systems for this specific purpose." ("Ceci n'est pas un Article". Dossier of the ICC Institute of World Business Law: Is Arbitration Only As Good as the Arbitrator? Status, Powers and Role of the Arbitrator, n. 131, 2011).  5 Relatam ainda Fouchard, Gaillard e Goldman oportunidade em que a Corte de Apelações de Paris puniu uma parte que interpôs recurso perante jurisdição incompetente e que permitiu debates públicos sobre fatos que deveriam permanecer confidenciais. FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 629.  6 FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996.  7 PINTO, José Emilio Nunes. A confidencialidade na arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 2, 6, p. 25-36, jul./set. 2005.  8 Segundo Luiz Olavo Baptista: "Em geral, nas arbitragens internacionais a confidencialidade é vista como uma qualidade, pois serve para proteger os litigantes e seus problemas de curiosidade de competidores. Também serve proteger segredos comerciais ou industriais valiosos para as partes. Por essa razão, somente os participantes, seus advogados, os árbitros e, em parte, os peritos, tal como pessoas que exercem funções de secretaria, têm acesso ao procedimento. Mesmo assim, há caso em que a proteção de segredos profissionais, industriais ou comerciais levam as partes a exigir um grau de confidencialidade especial para certas informações e documentos". (Arbitragem comercial e internacional. São Paulo: Lex Magister, 2011, p. 219).  9 Nesse sentido, vale citar estudo elaborado por José Antonio Fichtner, Sergio Nelson Mannheimer e André Luis Monteiro, que exaltam a confidencialidade como uma verdadeira qualidade da arbitragem (A confidencialidade da arbitragem: regra geral e exceções, Revista de Direito Privado, v. 49, 2012, p. 227-285, jan./mar. 2012).  10 A título de exemplo, cita-se o 9º do Regulamento de Arbitragem da CCI (Câmara de Comércio Internacional), o qual indica ser estritamente confidencial o procedimento arbitral, salvo acordo em contrário entre as partes ou se vedado pela lei aplicável à arbitragem. Fonte: (iccwbo.org). Acesso em 20 abr. 2021.  11 NERY JÚNIOR, Nelson. Segredo do negócio - livre iniciativa, Soluções Práticas. p. 361-370, set. 2010, 366.  12 NERY JÚNIOR, Nelson. Segredo do negócio - livre iniciativa, Soluções Práticas. p. 361-370, set. 2010, 366-367.  13 Nesse sentido ver STJ, AgRg na MC 14.949-SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19.05.2009, DJe 18.06.2009. No mesmo sentido: (STJ, Pet no AREsp: 1.191.712-SP, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 18.12.2017; STJ, Pet no REsp 1.528.739-R, rel. Min. Assusete Magalhães, j. 20.02.2019; STJ, REsp 1.082.951-PR, rel. Min. Raul Araújo, j. 06.08.2015; e STJ, REsp: 1.217.171-RJ, rel. Min. Marco Buzzi, j. 05.09.2019.  14 A esse respeito, vale citar a opinião de Ricardo Quass Duarte: "Além disso, considerando a importância da arbitragem como mecanismo de resolução de disputas, há manifesto interesse social em que a segurança jurídica seja garantida e a vontade das partes de se submeter à arbitragem e de manter o procedimento sigiloso seja respeitada. Em realidade, seria contrário ao interesse social que o Estado estimulasse a arbitragem e, ao mesmo tempo, negasse a aplicação de uma de suas principais características (...)". E, ao refutar a pretensa inconstitucionalidade do art. 189, inciso IV do CPC, conclui: "Com o devido respeito, esse entendimento também não se revela correto, pois não faz nenhum sentido preservar-se o sigilo do procedimento arbitral durante toda a sua tramitação e, no momento da execução da sentença, escancarar publicamente o que as partes quiseram proteger". Fonte: Arbitragem e sigilo - Estadão - Souto Correa Advogados. Acesso em 20 abr. 2021.  15 A norma contida no art. 189, inciso IV do CPC, foi também interpretada de forma correta pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis, que, em seu Enunciado 13, dispôs: "O disposto no inciso IV do art. 189 abrange todo e qualquer ato judicial relacionado à arbitragem, desde que a confidencialidade seja comprovada perante o Poder Judiciário, ressalvada em qualquer caso a divulgação das decisões, preservada a identidade das partes e os fatos da causa que as identifiquem". VIII Encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis, Coord. Fredie Didier Jr., Florianópolis, 24, 25 e 26 de março de 2017.  16 Segundo Paula Forgioni: "Eis a mola propulsora do direito comercial: quanto maior o grau de segurança e de previsibilidade jurídicas proporcionadas pelo sistema, mais azeitado o fluxo de relações econômicas. A relação entre segurança, previsibilidade e funcionamento do sistema, explicada por Weber é base do pensamento de juristas modernos, é razão determinante da própria gênese do direito comercial". FORGIONI, Paula A. A interpretação dos negócios jurídicos empresariais no novo código civil brasileiro. Revista de Direito Mercantil, v. 130, p. 12. 17 O funcionamento do mercado, a chamada "praxe mercantil", bem como os padrões de conduta melhor adaptados ao seu funcionamento é descrito com clareza por Paula Forgioni (A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 5ª edição, revista, atualizada e ampliada, 2021, p. 168-174).
Como em todas as atividades comerciais (e sobretudo, no agronegócio), divergências de baixa, média ou alta complexidade podem surgir. Qualidade do produto questionada, eventual desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos agroindustriais, rompimentos antes do prazo de duração do contrato, problemas no processamento e armazenamento de produtos, na comercialização nas bolsas de mercadorias e futuros, dentre outros, constituem causas comuns de disputas entre os players do agronegócio. Recentemente, diversos estudos apontaram ser a arbitragem o método seguramente mais eficaz para a resolução de disputas comerciais, dentre as quais se incluem aquelas travadas no âmbito do agronegócio1. No entanto, além da arbitragem, existe outra ferramenta que pode ser útil aos players do agronegócio, visando uma resolução célere dos conflitos naquela seara: os chamados Dispute Boards, conceituados por Arnoldo Wald como "painéis, comitês, ou conselhos para a solução de litígios cujos membros são nomeados por ocasião da celebração do contrato e que acompanham a sua execução até o fim, podendo, conforme o caso, fazer recomendações (no caso dos Dispute Review Boards - DRB) ou tomar decisões (Dispute Adjudication Boards - DAB) ou até tendo ambas as funções (Combined Dispute Boards - CDB), conforme o caso, e dependendo dos poderes que lhes foram outorgados pelas partes"2. O dispute board é um método extrajudicial de solução de disputas muito utilizado em contratos públicos e privados3, notadamente em contratos sinalagmáticos e de trato sucessivo. A composição do Dispute Board ocorre por meio da indicação de especialistas na matéria técnica ou contratual em questão, para prevenção ou resolução das controvérsias surgidas no curso da execução contratual. O eventual comitê de Dispute Board pode ser formado já no início da relação contratual, antes da disputa, com o intuito de acompanhar a execução do contrato e para emitir recomendações e/ou decisões. No campo do agronegócio, uma série de conflitos podem ser adequadamente resolvidos por meios dos Dispute Boards: disputas no âmbito de contratos agrários de parceria e arrendamento; disputas no âmbito de contratos de financiamento rural e compra e venda de insumos (sementes e defensivos agrícolas); disputas no âmbito de contratos de fornecimento e de integração vertical; disputas no âmbito de relações societárias decorrentes de estatutos, contratos socais e acordos de acionistas ou joint ventures, operações de fusão e aquisição no agronegócio, entre outros4. Os exemplos acima não esgotam a possibilidade do uso do Dispute Boards para a resolução de conflitos agroindustriais. É digno de nota a lei 13.288/2016, que dispõe sobre os contratos de integração firmados no âmbito do agronegócio ("Lei dos Contratos de Integração"). Os contratos de integração vertical, são, com efeito, materializados pela relação contratual entre produtores integrados e integradores visando o planejamento e a realização da produção e industrialização ou comercialização de matéria-prima, bens intermediários ou bens de consumo final, com responsabilidades e obrigações recíprocas pré-estabelecidas. Renato Buranello, sintetiza esse tipo contratual da seguinte forma: "O conceito de integração é um conceito bastante genérico, podendo ser caracterizado como a combinação de processos dentro das fronteiras de uma mesma empresa, ou seja, sob um mesmo comando decisório (seja um indivíduo, empresa, conglomerado, instituição ou outra forma), e envolvendo a propriedade total dos ativos. É chamada de integração vertical quando esses processos são tecnologicamente distintos (ex: produção, processamento, distribuição, vendas) e integração horizontal quando não são distintos tecnologicamente. Pode ser nacional, quando está limitada aos limites do país, ou internacional ou geográfica, quando a empresa integra-se em mais de um país. Quando o processamento é feito em único estabelecimento ou as etapas de produção e industrialização são realizadas por uma só empresa, agregando valor ao produto, que é valorizado na primeira oferta após a etapa de industrialização, criando com isso melhores oportunidades de mercado, dá-se o nome de integração vertical. Por outro lado, quando as etapas de produção se relacionam entre si sem a intervenção industrial centralizada, mas na correlação das etapas, de forma a racionalizar a produção e maximizar a utilização dos recursos disponíveis, reduzindo os custos da etapa de produção, temos a integração horizontal. As integrações agroindustriais mais comuns são as coordenadas por uma só empresa, que executa todas as etapas, mantendo vínculos contratuais com os demais participantes, dentre eles os arrendatários e parceiros. As empresas que lideram as atividades podem ser constituídas na forma de sociedade cooperativa, sociedade limitada ou anônima, constando do objeto social autorização para integração na parceria empresarial"5. Pensando na higidez das relações agroindustriais e, sobretudo, na importância da proteção da cadeia produtiva agroindustrial, o legislador decidiu por bem criar uma comissão denominada "Comissão para Acompanhamento, Desenvolvimento e Conciliação da Integração" ou simplesmente "CADEC". As atividades do CADEC, dispostas no art. 6º da Lei dos Contratos de Integração, têm como objetivos primordiais: (i) assistir tecnicamente as partes contratantes durante a execução do contrato, sem qualquer consequência jurídica de caráter vinculante, mas tão somente opinativa; (ii) dirimir questões, fomentando a realização de acordos entre os produtores integrados e a integradora. Não há dúvidas de que, as funções inerentes ao CADEC assemelham-se aos Disputes Boards6. Com efeito, dentre as funções do CADEC, vislumbram-se: o intuito de prevenção e resolução de controvérsias; o intuito de preservação das relações agroindustriais visando a manutenção dos contratos; exploração do entendimento para a solução do conflito, e, inter alia, evitar a judicialização do conflito, seja pela via judicial, seja pela arbitragem, mitigando os custos de transação incorridos pelas partes na execução de determinado negócio jurídico. Assim, as mais diversas disputas empresariais travadas no âmbito do agronegócio, não só podem, como são incentivadas pela lei de modo a que sejam resolvidas por meio de Dispute Boards. Atenta à eficácia dos Disputes Boards, as principais instituições arbitrais no Brasil7, criaram, além de regras dispostas nos regulamentos de arbitragem, estatutos completos sobre Dispute Boards8. Exemplo disso é o Regulamento de Dispute Board da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial-Brasil ("CAMARB"), que, em detalhados dezesseis artigos, organizam o procedimento, com regras que incluem, mas não se limitam, a prazos de instituição de eventual comitê de Dispute Board, número de membros do comitê, poderes e deveres do comitê, suas modalidades (DRB ou DAB), realização de audiências, forma de decisão (ou recomendação), prazos aplicáveis, inter alia. Interessante notar a disposição do art. 14.2 do aludido Regulamento, que dispõe o que deve conter na decisão ou recomendação do comitê formado: "14.2 A Decisão ou Recomendação deve ser reduzida a escrito, datada, indicar o lugar em que foi proferida e conter: a) o relato da Controvérsia com cronologia dos eventos; b) síntese das razões da Parte requerente e da resposta da Parte requerida; c) a fundamentação técnica e contratual, amparada nos documentos apresentados pelas Partes e na audiência, caso esta tenha sido realizada; d) a conclusão, na qual o DB solucionará a Controvérsia que lhe foi submetida;" Por mais que a arbitragem constitua o meio alternativo de resolução de conflitos mais comum e tradicional no Brasil, em relação ao Poder Judiciário, deve-se dar espaço a outros métodos, igualmente à disposição das partes contratantes, mas pouco utilizados ou sequer conhecidos pelos players do agronegócio, que é o caso dos Disputes Boards. Ainda mais no momento em que vive o agronegócio brasileiro, certamente o mercado de maior pujança econômica no Brasil, a boa construção de uma cláusula de resolução de disputas no meio agroindustrial, incluindo o uso dos Disputes Boards, sem prejuízo do uso da arbitragem em caso de descontentamento com eventual decisão e/ou recomendação do comitê de Dispute Board9, além de otimizar os custos incorridos pelas partes na execução do contrato, ao fim e ao cabo, terá o condão de proteger a higidez e a estabilidade da cadeia produtiva agroindustrial10. __________ 1 Ver nesse sentido: REIS, Marcos Hokumura (Coord.). Arbitragem no agronegócio. São Paulo: Verbatim, 2018; ver ainda NUNES Thiago Marinho. Arbitragem como método adequado de resolução de conflitos nos contratos agroindustriais in LEE, João Bosco; MANGE, Flávia (eds), Revista Brasileira de Arbitragem, (Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB; Kluwer Law International 2019, Volume XVI Issue 62), p. 58 - 79. 2 WALD, Arnoldo. A Arbitragem Contratual e os Dispute Boards in Revista de Arbitragem e Mediação, v. 2, n. 6, p. 9-24, jul./set., 2005. 3 Em especial, como por exemplo de construção e infraestrutura bem como em Parcerias Público-Privadas e em Concessões. 4 Ainda, complementa Marcos Hokumura Reis: "Contratos agrários (parceria e arrendamento rural), títulos privados para financiamento do agronegócio, divisões de terras, dissolução de condomínios rurais, dentre outros, são algumas matérias que podem ser dirimidas pela arbitragem". REIS, Marcos Hokomura. Arbitragem e Agronegócio. Dados disponíveis em: https://marcoshokumurareis.jusbrasil.com.br/artigos/186162035/arbitragem-e-agronegocio. Acesso em 11 jan. 2021. 5 Fonte: Sistemas Agroindustrias e Contratos de Integração Vertical.pdf (ifsc.edu.br). Acesso em 09 jan. 2021. 6 Essa é, inclusive, a posição de Francisco de Godoy Bueno: "Mediante o atento exame das disposições da lei 13.288/2016, é possível estabelecer que as atribuições das CADECs são muito semelhantes ao que se espera dos "dispute boards". Com efeito, esses órgãos são estabelecidos pelas partes, conforme o que estiver expresso nos contratos de integração, devem ser compostos paritariamente por especialistas nomeados pelos produtores e pelos integradores, e sua função é exatamente acompanhar o cumprimento do contrato e dirimir os conflitos que venham emergir entre os contratantes, inclusive no tocante à interpretação de cláusulas contratuais". BUENO, Francisco de Godoy. Contratos agrários agroindustriais: análise à luz dos contratos atípicos. São Paulo: Almeida, 2017. p. 181. 7 A esse respeito, cita-se, notadamente, o CAM-CCBC, a CAMARB e a CIESP. 8 Segundo Carlos. Albuquerque Braga: "Tradicionais centros de arbitragem e de resolução de disputas contém regras procedimentais bem definidas sobre a forma de instituição e desenvolvimento de um comitê de solução de controvérsias. A edição desses regulamentos é bastante importante para a difusão e implementação do instituto. Além de servirem praticamente como uma cartilha sobre o seu conceito e função, eles dão às partes contratantes o conforto necessário sobre a dinâmica da sua aplicação, facilitando a sua negociação e inserção nos contratos. No Brasil, vários centros de arbitragem editaram seus regulamentos sobre os comitês de solução de controvérsias" (BRAGA, Carlos Albuquerque, Dispute Boards e Disputas de M&A, p. 61, in NASCIMBENI, Asdrubal Franco; BERTASI, Maria Odete Duque; Ranzolin, Ricardo Borges. Temas de Mediação e arbitragem IV, 4ª ed. São Paulo: Lex Editora, 2020). 9 Nesse sentido, anota Francisco de Godoy Bueno: "Os dispute boards são mecanismos complementares à arbitragem, pois, apesar de terem grande eficácia para eliminar a maior parte dos conflitos surgidos no dia a dia do cumprimento do contrato, é normal que os contratos que estabeleçam os dispute boards prevejam também a arbitragem para que se possa ter uma nova análise das decisões do board, se uma das partes estiver insatisfeita com a decisão ou recomendação, sobretudo em questões mais complexas." BUENO, Francisco de Godoy. Contratos agrários agroindustriais: análise à luz dos contratos atípicos. São Paulo: Almeida, 2017. p. 181. 10 Renato Buranello bem descreve o que representa a chamada cadeia produtiva agroindustrial, a qual confunde-se com o próprio conceito de agronegócio: "Vemos assim, que o termo agronegócio é delineado pelo que chamamos de complexo agroindustrial, ou conjunto geral de cadeias agroindustriais, consideradas todas as empresas que produzem, processam e distribuem produtos agropecuários".  BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 35.
Um tema que tem sido objeto de debates e que gerou uma série de precedentes judiciais nos últimos anos diz respeito à possibilidade da inserção de cláusulas de arbitragem em títulos executivos extrajudiciais. O ponto principal em discussão é a compatibilidade entre arbitragem e execução.  Com efeito, em determinados casos (como por exemplo, títulos de financiamento complexos do agronegócio1, determinados contratos bancários, inter alia), a inserção de cláusulas compromissórias pode ser benéfica, ainda que tais títulos (a depender de suas características e disposições) possam ser objeto de automática ação executiva (a depender, necessariamente, da presença dos requisitos da liquidez, certeza e exigibilidade, conforme disposto no art. 783 do Código de Processo Civil - "CPC"2). Nesses casos, não haverá incompatibilidade do uso da arbitragem, eis que a execução do título será exercida pela via judicial, dada a ausência do chamado poder de imperium do árbitro3. Como bem asseverou a Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 944.917/SP pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ"): "Deve-se admitir que a cláusula compromissória possa conviver com a natureza executiva do título. (...) não é razoável exigir que o credor seja obrigado a iniciar uma arbitragem para obter juízo de certeza sobre uma confissão de dívida que, no seu entender, já consta do título executivo"4.  No entanto, no caso de o devedor contestar a dívida exequenda e enfrentar matérias de defesa que tenham conexão com pontos substanciais do título executivo, deverá fazê-lo por meio da arbitragem, apresentando seus embargos executórios única e exclusivamente pela via arbitral ("Embargos Arbitrais"), já que a matéria tocará o mérito da disputa, integralmente reservado à jurisdição arbitral.  As questões atinentes à compatibilidade entre execução e arbitragem já estão pacificadas no Brasil, tendo, não só a doutrina5 como a jurisprudência dos nossos Tribunais6, em especial a do STJ, firmado entendimento de que ambos os institutos - arbitragem e execução convivem de forma harmoniosa, sem incompatibilidades7. O último e mais detalhado julgado sobre o assunto deu-se no Recurso Especial nº 465.535/SP, julgado pela Quarta Turma do STJ em 21 de junho de 20168. O correspondente acórdão, restou assim ementado:  "RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. ARBITRAGEM. EXECUÇÃO. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. CONTRATO DE LOCAÇÃO. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. EMBARGOS DO DEVEDOR. MÉRITO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL. QUESTÕES FORMAIS, ATINENTES A ATOS EXECUTIVOS OU DE DIREITOS PATRIMONIAIS INDISPONÍVEIS. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NATUREZA JURÍDICA. LEI NOVA. MARCO TEMPORAL PARA A APLICAÇÃO DO CPC/2015. PROLAÇÃO DA SENTENÇA. 1. A cláusula arbitral, uma vez contratada pelas partes, goza de força vinculante e caráter obrigatório, definindo ao juízo arbitral eleito a competência para dirimir os litígios relativos aos direitos patrimoniais disponíveis, derrogando-se a jurisdição estatal. 2. No processo de execução, a convenção arbitral não exclui a apreciação do magistrado togado, haja vista que os árbitros não são investidos do poder de império estatal à prática de atos executivos, não tendo poder coercitivo direto. 3. Na execução lastreada em contrato com cláusula arbitral, haverá limitação material do seu objeto de apreciação pelo magistrado. O Juízo estatal não terá competência para resolver as controvérsias que digam respeito ao mérito dos embargos, às questões atinentes ao título ou às obrigações ali consignadas (existência, constituição ou extinção do crédito) e às matérias que foram eleitas para serem solucionadas pela instância arbitral (kompetenz e kompetenz), que deverão ser dirimidas pela via arbitral. 4. A exceção de convenção de arbitragem levará a que o juízo estatal, ao apreciar os embargos do devedor, limite-se ao exame de questões formais do título ou atinentes aos atos executivos (v.g., irregularidade da penhora, da avaliação, da alienação), ou ainda as relacionadas a direitos patrimoniais indisponíveis, devendo, no que sobejar, extinguir a ação sem resolução do mérito. 5. Na hipótese, o devedor opôs embargos à execução, suscitando, além da cláusula arbitral, dúvidas quanto à constituição do próprio crédito previsto no título executivo extrajudicial, arguindo a inexistência da dívida pelo descumprimento justificado do contrato. Dessarte, deve-se reconhecer a derrogação do juízo togado para apreciar a referida pretensão, com a extinção do feito, podendo o recorrido instaurar procedimento arbitral próprio para tanto. 6. O Superior Tribunal de Justiça propugna que, em homenagem à natureza processual material e com o escopo de preservar-se o direito adquirido, as normas sobre honorários advocatícios não são alcançadas por lei nova. A sentença, como ato processual que qualifica o nascedouro do direito à percepção dos honorários advocatícios, deve ser considerada o marco temporal para a aplicação das regras fixadas pelo CPC/2015. 7. No caso concreto, a sentença fixou os honorários em consonância com o CPC/1973. Dessa forma, não obstante o fato de esta Corte Superior reformar o acórdão recorrido após a vigência do novo CPC, incidem, quanto aos honorários, as regras do diploma processual anterior. 8. Recurso especial provido."  O único ponto que ainda incomoda os operadores da arbitragem, em relação ao julgado acima citado, diz respeito ao possível manejo de Embargos à Execução concomitantemente à instauração de uma arbitragem a título de Embargos Arbitrais9. Isso porque o acórdão aduz que questões formais do título ou atinentes aos atos executivos (como irregularidade da penhora, da avaliação, da alienação) devem ser manejados por meios de Embargos à Execução, i.e., por meio do Poder Judiciário.  Trata-se de medida que pode se tornar extremamente onerosa para as partes, dados os custos envolvidos em ambas as demandas, e cuja finalidade seria absolutamente a mesma (i.e., qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento10). Conquanto a coercio pertença ao monopólio do Estado, não se vislumbra qualquer inconveniente de que todas as matérias que pudessem ser levantadas pelo devedor devessem ser discutidas em apenas um único instrumento processual, no caso, a arbitragem, quando houver cláusula compromissória inserta no título executivo.  Ainda que a jurisprudência dos tribunais brasileiros ande bem na discussão da matéria, o ideal que é se possa firmar entendimento de qualquer matéria cuja discussão pertença ao devedor (o executado no processo estatal, e o requerente da arbitragem), deva estar restrita à arbitragem, evitando-se duplas e paralelas discussões que deveriam ocorrer num único procedimento - a arbitragem. Ou, quando muito, que, questões relativas à irregularidade da penhora ou da avaliação errônea, possam ser levadas ao juízo da execução por simples petição nos autos da ação executiva, sem a necessidade do manejo dos Embargos à Execução, os quais, por questões contratuais e legais deverão ser processados pela via arbitral.  Com base nessas premissas, pensa-se que arbitragem e execução poderão ser mais bem harmonizadas, mitigando possíveis interferências do juízo estatal na arbitragem, mas, pelo contrário, atuando aquele juízo como o "juge d'appui"11 da arbitragem (isto é, de assistência e colaboração com o procedimento arbitral12).  Ao fim e ao cabo, tal proposta poderia proporcionar custos razoáveis às partes, além de garantir mais eficiência ao litígio (travado paralelamente em duas esferas) o que não ocorreria com o manejo simultâneo de Embargos à Execução e Embargos Arbitrais. Pensa-se que o ideal é que toda e qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento seja manejada, apenas, pela via da arbitragem, devendo tal assunto merecer destaque desde a redação das cláusulas compromissórias constantes de títulos executivos extrajudiciais. __________ 1 A esse respeito, ver aqui. Acesso em 17 fev. 2021. 2 Art. 783. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível. 3 O árbitro possui o poder de dizer o direito - a jurisdictio -, pondo fim à "crise do direito material", condenando o vencido a reaver o bem violado. A pretensão arbitral assimila-se assim a uma demanda, normalmente, de cunho condenatório. E tão somente condenatório, não executório, pois os atos de coerção são próprios da força pública, do imperium do juiz estatal. Nesse sentido, já dizia Charles Jarrosson: "La formule exécutoire ne peut être apposée sur les décisions de justice que par le juge étatique, à l'exclusion de l'arbitre, puisqu'elle ouvre la voie à un éventuel recours à la force publique. On ne comprendrait pas comment un arbitre qui tire son pouvoir juridictionnel de volontés privées, pourrait disposer ce cette force" JARROSSON, Charles. Réflexions sur l'imperium, in Études offertes à Pierre Bellet, Paris, Litec, 1991, p. 245-279, p. 268. 4 STJ, REsp 944.917/SP, Terceira Turma, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 19.08.2008. Confira-se também, a esse respeito, o Enunciado 544 do Foro Permanente de Processualistas: "Admite-se a celebração de convenção de arbitragem, ainda que a obrigação esteja representada em título executivo extrajudicial". 5 Ver, nesse sentido: REIS, Marcos Hokumura. Títulos de financiamento do agronegócio e cláusula arbitral: coexistência pacífica e benéfica. In: REIS, Marcos Hokumura (Coord.). Arbitragem no agronegócio. São Paulo: Verbatim, 2018. p. 151-157. O assunto ora tratado também foi objeto de debates na I Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do Conselho da Justiça Federal, que culminou com a aprovação do Enunciado 12: "A existência de cláusula compromissória não obsta a execução de título executivo extrajudicial, reservando-se à arbitragem o julgamento das matérias previstas no art. 917, incs. I e VI, do CPC/2015". Para uma noção geral e completa acerca do tema, cita-se a dissertação de mestrado de Fernanda Gouvêa Leão ("Arbitragem e Execução". Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2012. 6 Cita-se, a esse respeito, julgado emanado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: "Tem-se que a matéria dos presentes embargos deve ficar limitada ao reconhecimento de direitos decorrentes da ação executiva e dos títulos que a embasam, já que somente estas, em decorrência do compromisso arbitral, se encontram inexoravelmente afetas à jurisdição estatal". TJSP. Ap. n 0158979-08.2010.8.26.0100, 12ª Câmara de Direito Privado, rel. Jacob Valente, j. 29.2.2012. 7 Nesse sentido, citam-se os seguintes julgados, ambos emanados do STJ: "Deve-se admitir que a cláusula compromissória possa conviver com a natureza do título [...]. Não é razoável exigir que o credor seja obrigado a iniciar uma arbitragem para obter juízo de certeza sobre uma confissão de dívida que, no seu entender, já consta do título executivo" (STJ, REsp 944.917/SP, Terceira Turma, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 19.08.2008);  "É competente para decidir as questões de mérito relativas a contrato com cláusula arbitral, a câmara eleita pelas partes para fazê-lo. Tal competência não é retirada dos árbitros pela circunstância de uma das partes ter promovido, antes de instaurada a arbitragem, a execução extrajudicial do débito perante o juiz togado. Tendo em vista a competência da câmara arbitral, não é cabível a oposição, pela devedora, de embargos à execução do mesmo débito apurado em contrato. Tais embargos teriam o mesmo objeto do procedimento arbitral, e o juízo da execução não seria competente para conhecer das questões nele versadas" (STJ, MC 3.274/SP, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 13.09.2007). 8 STJ, REsp 1.465.535/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Luiz Felipe Salomão, J. 21.06.2016. 9 Em especial, o seguinte trecho da ementa do referido julgado: "A exceção de convenção de arbitragem levará a que o juízo estatal, ao apreciar os embargos do devedor, limite-se ao exame de questões formais do título ou atinentes aos atos executivos (v.g., irregularidade da penhora, da avaliação, da alienação), ou ainda as relacionadas a direitos patrimoniais indisponíveis, devendo, no que sobejar, extinguir a ação sem resolução do mérito". 10 Conforme a dicção do art. 917, inciso VI do CPC: Nos embargos à execução, o executado poderá alegar: (...) VI - qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento. 11 Sobre o assunto: O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui" - Migalhas (uol.com.br). Acesso em 31 jan. 2021. 12 Outro exemplo de coordenação entre a jurisdição estatal e a arbitral, bastante recente, advém de julgado emanado do Superior Tribunal de Justiça, em que restou firmado o entendimento segundo o qual é possível aplicar as normas de penhora no rosto dos autos de procedimentos arbitrais, de modo que o Poder Judiciário possa oficiar o árbitro para que este indique, em sua decisão, caso seja favorável à parte executada, a existência de ordem judicial de constrição. Merece destaque o seguinte trecho da ementa do julgado em questão: "(...) Respeitadas as peculiaridades de cada jurisdição, é possível aplicar a regra do art. 674 do CPC/73 (art. 860 do CPC/15), ao procedimento de arbitragem, a fim de permitir que o juiz oficie o árbitro para que este faça constar em sua decisão final, acaso favorável ao executado, a existência da ordem judicial de expropriação, ordem essa, por sua vez, que só será efetivada ao tempo e modo do cumprimento da sentença arbitral, no âmbito do qual deverá ser também resolvido eventual concurso especial de credores, nos termos do art. 613 do CPC/73 (parágrafo único do art. 797 do CPC/15)." STJ, Terceira Turma, REsp n.º 1.678.224-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.05.2019, DJE 09.05.2019
Um tema que tem suscitado intensos debates1, já há alguns anos, diz respeito à suposta vinculação do árbitro aos precedentes judiciais. Diversas obras, de altíssima qualidade, foram publicadas (todas com opiniões muito variadas e bem fundamentadas a respeito do assunto2), sem contar com os belíssimos estudos publicados, seja neste portal3, seja em outros canais4. Um dos pontos que ainda resta obscuro sobre esse tema e continua gerando dúvidas e debates diz respeito ao uso de dois verbos, os quais geram consequências imediatas para questão ora discutida: vincular e observar. Enquanto o verbo vincular lança a ideia de se prender ou de se amarrar, o segundo verbo, observar, é mais brando: dá-se uma ideia de estudo, de consideração. No campo da arbitragem, os autores que defendem que o árbitro se vincula ao precedente judicial, partem da (legítima) premissa de que o sistema arbitral, inserido no contexto do Estado Democrático de Direito, deve respeitar, quando o caso, as decisões proferidas pelas cortes superiores. Os que defendem que o árbitro não se vincula, de forma alguma, aos precedentes judiciais afirmam, inter alia, que a missão do árbitro é autônoma e diferente da dos magistrados, não havendo qualquer dever de o árbitro ser coerente com o ordenamento jurídico ou com o entendimento fixado pelos precedentes judiciais5. A polarização dos entendimentos acima pode ser abrandada se houver a conscientização dos usuários da arbitragem de que os precedentes judiciais (sejam eles persuasivos e/ou vinculantes), além de comporem, junto à legislação, o direito aplicável ao mérito da arbitragem, merecem ser observados pelos árbitros em determinado caso, sem qualquer tipo de vinculação. Isso porque, ao escolher a arbitragem, e, por consequência, subtrair o Poder Judiciário para a resolução de disputas de determinado caso, as partes podem escolher o regramento jurídico aplicável à causa e que deve ser aplicado pelos árbitros na decisão da lide. Tal regramento jurídico é composto pela lei aplicável ao mérito do litígio. Ao aplicar a lei, e em caso de eventual dificuldade de interpretação do texto legal, não há dúvidas de que o árbitro não só pode, como deve, observar os precedentes judiciais, emanados das cortes superiores do país promulgador da lei aplicável à correspondente disputa. Um exercício que confirma essa premissa pode ser o seguinte: não raro, antes do ingresso de eventual demanda arbitral, os advogados são normalmente consultados por seus clientes acerca das chances de êxito de determinada causa jurídica, o que é feito por meio de um "early case assessment", opinião legal ou simples memorando. Nessa análise preliminar, buscam os advogados fornecer subsídios aos seus clientes sobre os fatos em discussão, a avaliação legal dos pedidos que poderão ser realizados, e, notadamente, os riscos envolvidos, como prescrição e decadência, condenação em honorários sucumbenciais e/ou contratuais, taxa de juros aplicável, inter alia. Nessa análise, é inevitável que os advogados forneçam aos seus clientes uma avaliação legal que contemple o direito aplicável à demanda. O referido "direito aplicável à demanda" é abarcado, não só pela correspondente lei aplicável, mas também pela jurisprudência. Absoluta e extremamente normal que o memorando cite precedentes emanados das cortes superiores sobre as questões legais objeto de avaliação pelo advogado. Uma hipótese se daria, por exemplo, quando uma parte deseja saber se sua pretensão se encontra ou não prescrita. A depender do assunto em discussão (responsabilidade contratual ou extracontratual), os prazos prescricionais podem ser distintos, mas a lei brasileira não dispõe de uma resposta precisa sobre o assunto. Destarte, coube ao Superior Tribunal de Justiça ("STJ") interpretar e uniformizar tal questão, o que foi feito no julgamento dos Embargos de Divergência nº 1.281.594 - SP, em que se estabeleceu a regra segundo a qual, "Versando o presente caso sobre responsabilidade civil decorrente de possível descumprimento de contrato de compra e venda e prestação de serviço entre empresas, está sujeito à prescrição decenal (art. 205, do Código Civil)."6. Da mesma forma, uma parte que cometeu ilícitos ambientais, pergunta ao seu advogado se a sua contraparte pode exercer, em determinado prazo, pretensão indenizatória contra ela por conta de tais ilícitos. Não havendo uma resposta na lei, o Supremo Tribunal Federal ("STF") houve por bem uniformizar a questão, tendo decidido que: "Embora a Constituição e as leis ordinárias não disponham acerca do prazo prescricional para a reparação de danos civis ambientais, sendo regra a estipulação de prazo para pretensão ressarcitória, a tutela constitucional a determinados valores impõe o reconhecimento de pretensões imprescritíveis"7. Ainda, uma parte pede aos seus advogados para avaliarem se, em determinada contenda contra uma parte inadimplente, em caso de procedência numa arbitragem, qual taxa de juros o tribunal aplicará, em consonância com o disposto no artigo 406 do Código Civil ("CC"). A disposição contida no referido artigo não traz uma resposta exata à taxa de juros aplicável, estando as cortes estatais ainda divididas entre a aplicação da taxa Selic ou juros de 1% ao mês8. O advogado, nesse momento, deve mostrar ao seu cliente "para onde pende a balança" no que tange à taxa de juros, isto é, como os tribunais estatais interpretam a questão, e quais as chances de aplicação de uma ou de outra taxa na arbitragem. Se tais questões fossem, ao fim e ao cabo, levadas à arbitragem, não há dúvidas de que os árbitros deveriam observar os precedentes judiciais a respeito da matéria. Do contrário, ignorar-se-iam os primordiais requisitos de previsibilidade, calculabilidade, estabilidade, isonomia e segurança jurídica. Tais termos constituem elementos essenciais para que a prestação jurisdicional se efetive num Estado Democrático de Direito. De certo, a prestação jurisdicional é promovida não apenas pela tutela proporcionada pelo Estado, o que se dá por meio do processo judicial estatal, mas também pelo sistema arbitral, cujo fim máximo é gerar uma sentença, equiparada a título executivo judicial. Devem assim, os árbitros, em suas decisões fundadas no direito brasileiro, aplicar o texto da lei aplicável bem como, eventual precedente emanado das cortes estatais acerca da matéria atinente ao mérito da disputa, sob o risco se de realizar um julgamento equivocado. Diz-se "equivocado", pois não poderia uma decisão arbitral classificar, por exemplo, uma pretensão fundada em responsabilidade contratual em prazo inferior ou superior ao que fora decidido pelo STJ que, no âmbito estatal, uniformizou a questão silente ou obscura na lei civil. E qual seria a consequência desse "equívoco arbitral"? A lei não dá uma resposta precisa em relação a esse ponto. Apesar de autores como Paulo Magalhães Nasser9 e Guilherme Rizzo Amaral10 entenderem pela nulidade da decisão arbitral, diverge-se de tal entendimento, dada a ausência de requisitos legais para tanto11. O objetivo dessas breves notas, portanto, é tentar demonstrar que, nada obstante a autonomia do sistema arbitral, este deve conviver com os precedentes judiciais na medida em que estes compõem o direito e devem ser aplicados (sem o requisito da obrigatoriedade, mas o da observância12) pelos árbitros em suas decisões, a depender da questão envolvida. O mero fato de a arbitragem representar uma subtração do Poder Judiciário não significa, de modo algum, subtrair o direito. A ausência de observância dos árbitros acerca de determinado precedente (seja ele persuasivo, seja ele vinculante) poderá culminar numa decisão equivocada, mas que, por se considerar error in judicando, não está sujeita às hipóteses de anulação de sentença arbitral ditadas pelo art. 32 e seus incisos, da Lei de Arbitragem. As linhas acima, comprovam, que diante das peculiaridades que revestem a arbitragem, é de suma importância: a construção de uma cláusula compromissória eficaz, a escolha de uma instituição idônea para a administração do conflito, e, não menos importante, a escolha precisa, responsável e consciente dos árbitros, que apreciarão os fatos, aplicarão o direito e resolverão a controvérsia, emitindo o produto final da arbitragem que é uma sentença exequível, ou passível de ser cumprida, seja espontaneamente, seja via ação de cumprimento de sentença junto ao Poder Judiciário13. Ao fim e ao cabo: é preciso de confiança no instituto da arbitragem como método seguro de resolução de conflitos. ______________ 1 Objeto, inclusive, de recente webinar "Arbitalks" organizado pela PUC-SP em conjunto com o CMA-CIESP-FIESP e ABEArb. Disponível em: clique aqui. Acesso em 16 jan. 2021. 2 A esse respeito, ver, notadamente: NASSER, Paulo Magalhães. Vinculações Arbitrais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019; AMARAL, Guilherme Rizzo. Judicial precedent and Arbitration: are arbitrators bound by judicial precedent? A comparative study of US, UK and Brazilian Law and practice. London: Wildy, Simmonds & Hill, 2017; MARIANI, Rômulo Greff. Precedentes na Arbitragem. Belo Horizonte: Fórum, 2018; FIORAVANTI, Marcos Serra Netto. A arbitragem e os precedentes judiciais: observância, respeito ou vinculação? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018; BELLOCCHI, Márcio. Precedentes vinculantes e a extensão da expressão "aplicação do direito brasileiro" na convenção de arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. 3 Ver, a esse respeito: Arbitragem e precedentes: possível vinculação do árbitro e mecanismos ...- Migalhas (uol.com.br); Arbitragem e precedentes: Cinco premissas, cinco conclusões, um ...- Migalhas (uol.com.br) Acesso em 22 jan. 2021. 4 Sobre o tema, os estudos do Professor José Rogério Cruz e Tucci. Fontes: O árbitro e a observância do precedente judicial (acesso em 22 jan. 2021); Os árbitros não são estouvados! (e as jornadas de Direito Processual Civil) (acesso em 22 jan. 2021), dentre outros, citados ao longo deste artigo.           5 Essa é, por exemplo, a opinião de Carlos Alberto Carmona e José Augusto Bittencourt: "Diante disso, é importante ressaltar que a missão do árbitro é autônoma e diferente da dos magistrados. Não há qualquer dever de ser coerente com o ordenamento jurídico ou com o entendimento que os Tribunais Estatais dão a determinada norma jurídica. A missão do árbitro é resolver um litígio em específico e para tanto seus deveres e função são especiais. Ainda que o precedente seja tomado como norma de direito, sua não observância caracterizará, no limite, a má-aplicação do direito pelo árbitro, o que não comporta correção judicial nem expõe a sentença arbitral à demanda anulatória". CARMONA, Carlos Alberto e MACHADO FILHO, José Augusto Bittencourt. Arbitragem: jurisdição, missão e justiça in Constituição da República 30 anos depois: uma análise prática da eficiência dos direitos fundamentais. Estudos em homenagem ao Ministro Luiz Fux/Abhner Youssif Mota Arabi, Fernando Maluf, Marcello Lavenère Machado Neto (Coord.). - Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 225. 6 STJ, Embargos em Divergência em REsp 1.281.594 - SP, Corte Especial, rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 15 de maio de 2019, DJe de 23 de maio de 2019. 7 STF, Recurso Extraordinário 654.833/Acre, Plenário, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 20 de abril de 2020. 8 Nesse sentido, é a discussão que em breve será resolvida pelo STJ, no Recurso Especial nº 1.081.149 - RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, ainda pendente de julgamento final. O voto do Min. Salomão entendeu que em casos de dívida civil, essas consequências fluem a partir de momentos diferentes, o que inviabiliza a utilização da Selic. Assim, aplica-se o parágrafo 1º do artigo 161 do Código Tributário Nacional, com juros de 1%. E a correção monetária pelos índices oficiais cabíveis em cada caso. 9 NASSER, Paulo Magalhães. Vinculações Arbitrais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 158. 10 Ver, nesse sentido, AMARAL, Guilherme Rizzo. Arbitragem e Precedentes in Curso de Arbitragem (Daniel Levy, Guilherme Setoguti J. Pereira - coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 294. 11 Nesse sentido, o entendimento de Rômulo Greff Mariani: "Ocorre que, quando tratamos de comparar a decisão do árbitro com o precedente ou jurisprudência estatal, estamos no máximo discutindo por quem e como o Direito foi aplicado. Não se trata, portanto, de aferir que o mero desvio da decisão estatal pretérita determina a conclusão clara e irrefutável de que o árbitro simplesmente não aplicou o Direito à espécie". MARIANI, Rômulo Greff. Precedentes na Arbitragem. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 110. 12 Assim o é, inclusive, no caso do processo estatal. Os juízes, com efeito devem meramente observar os precedentes, como bem afirma Leonardo de Faria Beraldo: "Em segundo lugar, tenho que nem todos os padrões decisórios elencados no art. 927 do CPC são vinculantes dentro da estrutura do Poder Judiciário. Lembro a todos que o verbo que aparece na redação do dispositivo em comento é "observar", que, por sua vez, é diferente de "obrigar", "vincular", "sujeitar" ou "forçar". Ainda sobre o escopo do art. 927 no processo civil brasileiro, reitero que há um mero dever de observância, do julgador, ao proferir as decisões judiciais." (BERALDO, Leonardo de Faria. Os Precedentes na Arbitragem in Direito Internacional e Arbitragem - Estudos em Homenagem ao Prof. Cláudio Finkelstein (coord. CASADO FILHO, Napoleão, QUINTÃO, Luísa e SIMÃO, Camila). São Paulo: Quatier Latin, 2019, pp. 195-214. 13 Como já se teve a oportunidade de discutir nesta Coluna: "A importância do proferimento de uma sentença exequível e irrecorrível, guarda relação com a confiança que as partes depositaram no instituto arbitral, e principalmente nos árbitros indicados para a resolução da controvérsia. Os árbitros possuem aqui uma verdadeira obrigação de resultado: só se exoneram quando o fim prometido é alcançado, isto é, a efetiva resolução do conflito". Fonte: Os bastidores da atividade do árbitro na fase arbitral: a fase ...- Migalhas (uol.com.br). Acesso em 22 jan. 2021. ______________
Nesta terceira e última parte dos estudos sobre os bastidores da atividade do árbitro, serão discutidos os principais aspectos inerentes à fase decisória da arbitragem. Passada a fase instrutória, e recebidas as alegações finais das partes, chega-se o tão esperado momento de cumprir fielmente a missão confiada pelas partes aos árbitros: proferir uma sentença, seja ela parcial ou final. Conquanto haja a possibilidade de conversão do julgamento em diligência, foca-se nestas breves linhas o que na maioria das vezes ocorre, que é o proferimento de uma sentença. Na dicção do art. 31 da Lei de Arbitragem, a "sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo". Ao constituir o ápice do procedimento arbitral, a sentença, para que tenha eficácia, deve ser exequível, ou passível de ser cumprida, seja espontaneamente, seja via ação de cumprimento de sentença junto ao Poder Judiciário1. A importância do proferimento de uma sentença exequível e irrecorrível, guarda relação com a confiança que as partes depositaram no instituto arbitral, e principalmente nos árbitros indicados para a resolução da controvérsia. Os árbitros possuem aqui uma verdadeira obrigação de resultado: só se exoneram quando o fim prometido é alcançado, isto é, a efetiva resolução do conflito. Para que essa obrigação de resultado seja efetivamente cumprida, a interação entre os membros do tribunal arbitral deve ser intensa. Após o recebimento das alegações finais das partes, surge a fase de deliberação, em que os árbitros se reúnem para firmar suas posições acerca das matérias em discussão na arbitragem. Trata-se de momento crucial, em que se verifica, de forma efetiva, o quão independente e imparcial é o árbitro2. Como normalmente se dá a comunicação entre os árbitros durante essa fase? Não existe uma regra específica para as deliberações dos árbitros no Brasil. O modo de agir parte da forma que cada tribunal arbitral entende ser adequado. Na maior parte das vezes, e mediante prévia informação, o(a) presidente do tribunal arbitral conduz o processo deliberatório por meio da apresentação de documento que reproduza sua opinião acerca dos pontos controvertidos do litígio bem como dos pedidos das partes. A forma de tal documento pode variar: relatório completo do caso com redação resumida do conteúdo decisório, pauta ou roteiro de deliberação, em que o(a) presidente do tribunal exporá seus apontamentos acerca de cada ponto controverso ou cada pedido da parte3, ou, sob a forma de uma decision tree, prática comum nas arbitragens internacionais4. Apresentado o roteiro/pauta de deliberação ou a mencionada decision tree, devem os membros do tribunal arbitral se reunir, presencial ou remotamente, para deliberar sobre as questões a serem decididas. Podem ser acompanhados de eventual secretário administrativo do tribunal arbitral, que se encarregará de tomar notas da reunião, sem tecer considerações acerca do caso. As deliberações são reservadas aos julgadores e, eventualmente, ao secretário do tribunal, devendo ser respeitado o sigilo das deliberações, sob pena de se macular a higidez do procedimento. O processo deliberatório não é simples. Não é uma simples reunião em que o(a) presidente do tribunal arbitral tece a sua opinião acerca dos pontos litigiosos e obtém um automático "de acordo" dos demais componentes do painel. Ao revés: o processo deliberatório é um processo intelectual, com ampla interação entre os árbitros e pode durar horas ou dias, a depender do caso. A intelectualidade do processo de deliberação se justifica pela profundidade das questões normalmente postas a julgamento e na importância de que a sentença seja proferida à unanimidade, o que só se consegue mediante estudo profundo dos autos, autoridade para fazer valer sua posição, saber ouvir opiniões diversas e saber abrir mão de determinadas posições e, mediante harmonia, estabelecer consenso5. Tais atos tomam tempo, mas são necessários para a construção do consenso nas deliberações6. Evidentemente que, ter consenso e estabelecer unanimidade nas deliberações é sempre o mais desejável, porém, nem sempre possível. É normal que possa haver divergências e que um dos membros do tribunal não renuncie a sua posição, o que pode7 gerar um voto divergente, em separado8. Nada impede, entretanto, que a depender da divergência, a posição dissidente conste em nota de rodapé da decisão, prática comum e até mesmo recomendada em arbitragens internacionais9. Definida a deliberação, cabe, normalmente ao árbitro presidente redigir a primeira minuta da decisão e submetê-la aos demais membros do tribunal arbitral para apreciação e comentários. Importante consignar neste ponto que é absolutamente impróprio submeter ao secretário(a) administrativo(a) do tribunal arbitral a redação da sentença. Quando muito, é admitida a redação do relatório da sentença pelo(a) secretário(a). Elaborar os fundamentos da sentença pelo próprio árbitro é de suma importância, eis que, redigir a decisão constitui parte de um processo intelectual que pertence exclusivamente ao julgador10. O que importa, ao fim e ao cabo, é a qualidade do "produto final"11 adotada nos bastidores da atividade dos árbitros, que é justamente a qualidade da sentença. *** Com o crescimento da prática arbitral no Brasil, e o aumento de seus players, revela-se importante descrever, ainda que resumidamente, como funcionam os bastidores da atividade do árbitro. Enquanto os juízes estatais estão sujeitos a correição, recursos, bem como ao rígido controle do Conselho Nacional de Justiça ("CNJ") e permanecem em seus gabinetes diariamente recebendo advogados, despachando, realizando audiências e elaborando sentenças e, não é demais dizer, cumprindo metas impostas pelo CNJ, os árbitros não estão sujeitos a quaisquer tipos de controle. Árbitro não é árbitro de profissão, mas está árbitro, cumprindo uma missão confiada pelas partes que o(a)s indica e de forma temporária12. Quando muito, a sentença arbitral (e não o árbitro) é sujeita a uma demanda anulatória junto ao Poder Judiciário. A sentença está sujeita a controle, mas o árbitro não13. Tais pontos se colocam para justificar que essa é mais uma razão para que impere a confiança no instituto arbitral, revelando, essas breves notas, o quão importante é entender, ainda que de forma muito resumida, como funcionam os bastidores da atividade dos árbitros. __________ 1 Nesse sentido, dispõe o art. 515, inciso VII do Código de Processo Civil: "Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: (...) VII - a sentença arbitral;" 2 No mesmo sentido, a opinião de Piero Bernardini: "The process of deliberation is the moment of truth regarding the actual independence and impartiality required from party-appointed arbitrators beyond what they have stated initially in their declaration of independence notified subsequently during the course of the proceedings. It is only at the time of the deliberation that the true extent of each arbitrator's independence and impartiality comes to light" (Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014, p. 16). 3 Segundo Piero Bernardini: "(...) The best is for the chairman to prepare a kind of check list of questions for each of the issues to be examined based on the parties' arguments regarding each issue and outlining possible alternative solutions to individual issues so as to permit a full discussion". (Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014, p. 18). 4 Ver nesse sentido a opinião de Bernhard F. Meyer in Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014, pp. 59-63. No mesmo sentido ver DRAETTA, Ugo. Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, p. 87. 5 William G. Bassler exalta o princípio da colegialidade na arbitragem, da seguinte forma: "The virtue of collegiality is not more important than the duty of independence. Collegiality demands that each arbitrator respect the other arbitrator's view of the facts and the law. The facts are often nebulous and the law often equivocal or non-existent". (Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014, p. 113). 6 Segundo Ugo Draetta: "But the ultimate aim of a Chairperson is not to issue a majority award, but rather to seek the greatest possible degree of consensus between the co-arbitrators (.)" (Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, p. 86.). 7 Diz-se "poder" eis que, idealmente, no caso de divergência, basta que se inclua no dispositivo, por exemplo: "Votação por maioria". A apresentação de voto divergente em separado deve ser apresentada dependendo do nível de seriedade do dissenso, como entende Pierre Mayer: "The normal solution, whether you agree or not, is to sign and not make a dissenting opinion except, and in fact that is the answer if I may propose one, that all depends on the seriousness of the disagreement. I Would think that it is only in cases where the majority view is, in the mind of the other arbitrator, not only erroneous but really shocking that the dissenting opinion is legitimate. In other cases, you should accept that you gave been defeated". (Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014, p. 70). 8 Art. 24, § 2º da LArb: O árbitro que divergir da maioria poderá, querendo, declarar seu voto em separado. 9 Veja, nesse sentido, o relato de David. W. Rivkin: "In a different ICC case, we had very good discussions. We had a panel that had worked very well together, but in the end one of the arbitrators simply had a different view as to how the damages ought to be calculated. Because we had the trust, because we had all seen how we approached the case, and because that arbitrator felt that, while he disagreed, he understood the positions that other two of us were taking, he agreed to put that dissenting view in a simply footnote at the appropriate point of an opinion rather than writing a long and difficult dissent (.)". (Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014, p. 24). 10 Segundo Andrea Meier: "Some say a secretary may very well draft an award if he does it upon detailed instructions of the tribunal; others find this notion shocking because they feel that writing is part of the thinking process". (Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014, p. 82). Para Zachary Douglas: "I say all this despite being a fervent believer that the act of writing is the ultimate safeguard of intellectual control over the decision making process". (Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014, p. 89). 11 Assim entende Pierre Tercier: "What is important is the quality of the end product that comes out of the black box: the award." (Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014, p. 107). 12 Segundo o entendimento de Selma Ferreira Lemes: "Indaga-se o que é estar árbitro? Estar árbitro é mais do que investido para resolver a controvérsia. É ser uma pessoa disciplinada e sensível, ter disponibilidade de tempo para analisar convenientemente a demanda, preparar-se para as audiências, ter prontidão e iniciativa, não retardar as decisões e os despachos durante o procedimento arbitral (...) Enfim, estar árbitro é um ser humanista e atuar, também, como um diplomata". LEMES, Selma Ferreira. Notas sobre o Árbitro e o Procedimento Arbitral in Estudos de Direito: uma homenagem ao Prof. José Carlos de Magalhães. São Paulo: Atelier Jurídico, 2018, pp. 750-751. 13 Nesse sentido, o entendimento de Cândido Rangel Dinamarco: "Com esse perfil, a ação anulatória de sentença arbitral guarda alguma semelhança com a ação rescisória de sentenças ou acórdãos judiciais, dela diferindo em alguns aspectos (supra, n. 81). São legitimados a ela, (a) no polo ativo, aquele ou aqueles que houverem sucumbido no processo arbitral, interessados na desconstituição do laudo, e (b) no passivo, o vencedor ou vencedores, interessados em sua manutenção. São esses os sujeitos cujas esferas jurídicas serão de algum modo atingidas pelo julgamento de mérito a ser proferido na ação anulatória. O árbitro ou árbitros, embora sejam eles os autores do ato a ser anulado, não têm legitimidade para figurar na ação anulatória, tanto quanto o juiz estatal não é parte legítima à rescisória" (DINAMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 236).
Nesta segunda parte dos estudos sobre os bastidores da atividade do árbitro, serão discorridos os principais aspectos decorrentes dessa atividade na chamada fase arbitral. O ponto de partida da aludida fase ocorre com a instituição da arbitragem, nos termos do art. 19 da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") e acaba no momento em que o árbitro único ou tribunal arbitral profere a sentença arbitral, ou se provocado por meio de pedido de esclarecimentos, no momento em que o decide. Os bastidores da atividade dos árbitros na fase arbitral se manifestam em duas subfases: a fase postulatória (I), fase instrutória (II). I. Fase postulatória A fase postulatória do procedimento arbitral é compreendida pela apresentação de uma rodada de manifestações escritas, que pode englobar ainda rodadas orais, seja pela realização de audiência para exposição de pedidos cautelares, audiência para apresentação do caso, reuniões de trabalho, inter alia. Tais rodadas de manifestação são definidas no documento intitulado "Termo de Arbitragem" (ou "Ata de Missão", segundo a terminologia utilizada pelo Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional - CCI). A interação entre os membros que compõem um tribunal arbitral é de suma importância já no momento da reunião em que se discute e, finalmente, se firma o Termo de Arbitragem. De início, é preciso que haja iniciativa do tribunal arbitral, por meio do(a) presidente na invocação do art. 21, § 4º da Lei de Arbitragem de modo a indagar as partes sobre a possibilidade de realização de acordo. Havendo essa possibilidade, uma fase preliminar conciliatória pode ser instaurada, devendo os árbitros observarem que não são conciliadores, deixando a puro critério das partes a realização da fase conciliatória. Em alguns casos, árbitros podem adotar uma postura ativa na realização da conciliação, o que pode ser pernicioso ao procedimento1. Dessa forma, é imprescindível que haja harmonia entre os membros do tribunal arbitral, de modo que todas as decisões que forem tomadas nesta fase sejam, previamente, sujeitas à deliberação2. No caso de a conciliação restar infrutífera, é recomendado aos árbitros que adotem postura ativa na condução da reunião de discussão e assinatura do Termo de Arbitragem. Ademais, é necessário discutir com as partes e seus patronos critérios para tornar o procedimento mais eficiente, como por exemplo, a possibilidade de encurtamento da fase postulatória (sem a apresentação de réplicas e tréplicas) ou mesmo a substituição de réplicas e tréplicas por uma audiência de apresentação do caso, ou, o que é ainda mais raro, porém recomendável, que se se abra espaço para breve apresentação do caso durante a própria reunião para discussão e assinatura do Termo de Arbitragem3. Durante essa fase, a comunicação entre os árbitros deve ser permanente. Cada caso tem a sua peculiaridade. Disputas envolvendo contratos de construção, disputas envolvendo contratos de fusão e aquisição e disputas societárias, podem possuir uma dinâmica diferente, tanto na fase postulatória quanto na instrutória. Daí advém a necessidade de uma postura ativa do tribunal arbitral ao propor às partes que apresentem, ainda na fase postulatória, laudos de experts ou declarações testemunhais, de modo que se possa adiantar o acervo probatório dos autos, sem que se tenha de esperar até um longínquo prazo para especificação de provas. Durante a fase postulatória, recomenda-se que haja uma constante interação entre os membros do tribunal arbitral, a cada manifestação apresentada, de modo que providências a serem tomadas visem a higidez e boa condução do procedimento. Um exemplo disso, ocorre nos casos em que uma das partes tem a sua falência decretada no curso do procedimento arbitral. É imperioso que os árbitros discutam sobre essa ocorrência, notadamente em razão das implicações legais decorrentes da representação da massa falida nos autos do procedimento arbitral4. Outro ponto fundamental reside nas objeções processuais eventualmente suscitadas por uma das partes. Por exemplo, se a parte requerida faz objeção acerca da ausência de clausula compromissória e, consequentemente, ausência de jurisdição do tribunal arbitral, é imperioso que os árbitros discutam acerca da bifurcação do procedimento antes de tecer considerações sobre o mérito da controvérsia, eis que, eventual decisão advinda desse tipo de objeção jurisdicional deverá se dar ou por sentença terminativa (caso os árbitros entendam pela ausência de jurisdição, após ouvidas as partes e apresentadas as provas a respeito) ou por meio de sentença parcial de jurisdição. Não há uma receita pronta para a atuação dos árbitros na fase postulatória, mas recomenda-se que o tribunal, verdadeiro condutor da arbitragem aja com proatividade, estabelecendo propostas de encaminhamento eficiente do procedimento, como por exemplo, a designação de reuniões de trabalho com as partes e seus patronos de modo a que se estabeleça um calendário procedimental alternativo, eventualmente, em momento pós-apresentação de uma sentença parcial, seja de jurisdição, seja de mérito5. De uma forma, geral, durante a fase postulatória, não se recomenda que os árbitros façam julgamentos ou teçam considerações a respeito de aspectos do mérito das teses em discussão6, mas que tão somente discutam os tópicos mais controversos do caso de modo a, desde cedo, estabelecer entendimentos e consenso acerca de tais questões, todas de cunho procedimental7. A falha nesse dever, pode levar ao afastamento do árbitro8. No entanto, essa percepção pode mudar, de forma paulatina, quando procedimento arbitral adentra a fase instrutória, conforme se verificará no item seguinte. II. Fase instrutória A fase de instrução na arbitragem pode ocorrer de diversas formas: fase de produção de documentos por meio do conhecido Redfern Schedule ou do recente Armesto Schedule9, realização de perícia técnica por meio de perito indicado pelo tribunal arbitral, inter alia. Mas o momento principal da fase instrutória é a realização da audiência de instrução. É o momento em que os patronos das partes fazem suas respectivas sustentações orais, em que há o depoimento dos representantes das partes, oitiva de testemunhas fáticas e/ou técnicas, entre outros10. Como normalmente se dá a comunicação entre os árbitros durante essa fase? Durante a fase instrutória, a comunicação entre os árbitros deve ser ainda mais intensa do que a verificada na fase postulatória. As comunicações relativas a esta fase ocorrem, primeiramente, em momento pré-audiência de instrução. Não raro, alguns dias antes da audiência, os membros do tribunal arbitral se reúnem para uma reunião em que debaterão sobre a dinâmica da audiência, considerando, por exemplo, a possibilidade ou não de se fazer perguntas aos patronos das partes durante as suas sustentações orais, as possíveis contraditas de testemunhas e, desde logo, um consenso sobre a forma ser adotada na apreciação das eventuais contraditas. Outro ponto que é previamente discutido entre os árbitros é a possibilidade de se fazer uma acareação entre eventuais testemunhas técnicas arroladas pelas partes, o conhecido "hot tubbing". A comunicação entre os árbitros nesses momentos é de suma importância, devendo ser alcançado previamente um consenso sobre questões procedimentais pré-audiência. Tais reuniões pré-audiência são normais e recomendadas, de modo a harmonizar pensamentos e deixar os membros do tribunal arbitral "na mesma página" no momento da realização da audiência de instrução. Durante as audiências de instrução, é normal que os árbitros discutam, nos intervalos ou breves pausas acerca da credibilidade ou não de determinada testemunha e de pontos que gostariam que eventual testemunha, seja ela técnica ou fática, deveriam enfrentar. Conquanto as testemunhas sejam arroladas pelas partes, o destinatário da prova é o árbitro, de modo que a interação constante entre os membros do tribunal arbitral nos intervalos ou pausas da audiência, com impressões tiradas dos depoimentos prestados e conclusões parciais atingidas, pode levar a um desfecho eficiente da audiência. E para que se tenha eficiência, é imprescindível que haja interação harmônica entre os árbitros. Normalmente, finalizada a audiência de instrução, não havendo mais provas a serem produzidas pelas partes, os árbitros concedem prazo comum às partes para revisão conjunta das notas estenográficas da audiência, para então, ao final, determinar, se o caso, o encerramento da instrução e a concessão de prazo para apresentação de suas alegações finais. O passo seguinte, é a fase de deliberação quanto ao resultado na arbitragem, casos em que os árbitros, normalmente, se reservam o direito de proferir sentenças parciais, finais ou mesmo converter o julgamento do caso em diligência, dependendo das peculiaridades do caso. Os bastidores desta fase serão objeto do próximo texto desta Coluna. _____________ 1 Assim entende Jésus Almoguera: "Arbitrators have to be -and appear to be- independent and impartial. The concern here is twofold. Firstly, an arbitrator, while acting as a mediator, may end up receiving information from one of the parties (or both) that such party would have never disclosed to an arbitrator. If mediation discussions do not bear fruit and arbitration is resumed, the information may be used by the arbitrator or, even worse, by the other party, and this would amount to unequal treatment. Secondly, the arbitrator that has previously attempted a settlement may be influenced by the attitude and conduct of the parties during settlement discussions, and this would render him partial". ALMOGUERA, Jesús. Arbitration and Mediation Combined. The Independence and Impartiality of Arbitrators, in Miguel Angel Fernandez Ballester and David Arias Lozano (eds), Liber Amicorum Bernardo Cremades, (© Wolters Kluwer España; La Ley 2010). 2 Nesse sentido entende Ugo Draetta: "Throughout that process, however, everyone concerned should be ready to seek out, facilitate and grasp any opportunity for settlement". (Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, p. 68). Sobre o assunto ver NUNES, Thiago Marinho. Fonte: Clique aqui. Acesso em 16.10.2020. 3 Sobre o assunto, ver MUNIZ, Joaquim de Paiva. Arbitration in Brazil: are users really happy? In R. Bras. Al. Dis. Res. - RBADR | Belo Horizonte, ano 02, n. 03, p. 251-259, jan./jun. 2020, pp. 251-259. 4 Nesse sentido, as disposições constantes dos arts. 22, III, alínea "n" e art. 76, § Único da Lei nº 11.101/2005. 5 Segundo o entendimento de Selma Lemes: "Um exemplo de árbitro proativo é aquele que, ao iniciar  a segunda fase da arbitragem (precedida por uma sentença arbitral parcial de mérito), em vez de determinar a realização de uma perícia que levará muito tempo e consumirá quantia elevada, proponha  a realização de uma reunião presencial ou remota com os advogados para discutir os próximos passos do procedimento, sugerindo substituir a perícia por levantamentos efetuados por técnicos das próprias partes, fixando calendário e procedimento a serem seguidos, para, ao final, apresentarem ao tribunal arbitral ou árbitro único os valores acordados. E, se não for possível alcançar um consenso no todo, pelo menos que a perícia seja realizada para apurar uma parte remanescente do determinado do determinado na sentença arbitral de mérito. Em muitas oportunidades verificamos quão produtivo e econômico é esse proceder, a ponto de, em seguida, lavrar-se uma sentença arbitral homologatória de acordo". LEMES, Selma Ferreira. Notas sobre o Árbitro e o Procedimento Arbitral in Estudos de Direito: uma homenagem ao Prof. José Carlos de Magalhães. São Paulo: Atelier Jurídico, 2018, p. 742. 6 Nesse sentido, v. BARROS, Octávio Fragata Martins de. Como Julgam os Árbitros: uma leitura do processo decisório arbitral. São Paulo: Marcial Pons, 2017, pp. 64-65 7 Essa é a posição, por exemplo, de David W. Rivkin: "I think that, the earlier and more often, the arbitrators can discuss the issues, the better it will be for the process for building a consensus around a final award but also for shaping the process to be the most appropriate for the case". (Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014, p. 21). 8 Segundo Ugo Draetta: "Co-arbitrators should refrain from expressing their views on the merits of the dispute to the Chairperson while the proceedings are ongoing. The only time for doing is at the deliberations, except in particular circumstances when the Chairperson has asked for their opinion." (Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, p. 60). 9 Fonte: clique aqui. Acesso em 16.10.2020. 10 Sobre a importância da audiência de instrução na arbitragem ver MALUF, Fernando e LIMA, Michelle. Audiência Arbitral: a "final de copa do mundo" na arbitragem In Direito, Mercado Jurídico e Sociedade: estudos em comemoração aos três anos do grupo de jovens advogados Leading Young Lawyers (org. VAUGHN, Gustavo [et al.]. São Paulo: Lualri Editora, 2020, pp. 329-345.
Tema que raramente é tratado na arbitragem diz respeito aos bastidores da atividade do árbitro nos procedimentos arbitrais. Apesar da noção de que o exercício da atividade do árbitro se dá, essencialmente, por meio de suas decisões no curso da arbitragem, muitos, porém, não conhecem os bastidores de suas atividades1. Uma das razões para sucesso que a arbitragem brasileira alcançou, após 24 (vinte e quatro) anos de vigência da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), deve-se, sem sombra de dúvidas, ao trabalho realizado pelos árbitros. A arbitragem, como se sabe, vale o que vale o árbitro2, pois é dele a responsabilidade por entregar a prestação jurisdicional. É dele a obrigação, de resultado, de proferir uma sentença exequível e, ao fim e ao cabo, entregar a tutela jurisdicional. Os árbitros só se exoneram quando o fim prometido é alcançado, isto é, a efetiva resolução do conflito. Como é conhecida, a arbitragem possui três fases: fase pré-arbitral, fase arbitral e fase pós-arbitral. Os bastidores da atividade do árbitro ocorrem nas duas primeiras referidas fases. Dada a diversidade de assuntos tratados nessas fases, o tema desta Coluna será dividido em três partes. Na presente edição, discorrer-se-á sobre os bastidores da atividade do árbitro na fase pré-arbitral. A fase pré-arbitral inicia-se a partir da formalização da cláusula compromissória que antecede o conflito ou quando firmado o compromisso arbitral, mantendo-se dormente3 até o momento em que os árbitros (ou o árbitro único) aceitam e confirmam o encargo de julgar o litígio4. Nesta fase da arbitragem, assim como nas subsequentes, além dos cruciais elementos da independência e imparcialidade, o árbitro deve ser, nos termos da lei, competente, diligente, discreto5. Necessita também ter disponibilidade, ser eficiente, saber trabalhar em regime de harmonia e cooperação com demais membros do tribunal arbitral, ter coragem para decidir6 e, mais do que nunca, ser ético7. A primeira aparição do árbitro vem com a sua indicação. Mas antes mesmo da indicação, podem ocorrer as recomendadas entrevistas com potenciais candidatos ao posto de árbitro, em que se discute a experiência profissional do candidato, além de sua ausência de conflito, interesse e disponibilidade para assumir a função de árbitro8. Em sendo escolhido árbitro por uma das partes, o(a) profissional indicado(a) deve proceder a uma varredura em seus arquivos em vista da eventual necessidade apresentação de disclosure, por meio do qual, estancará, de uma vez só, aos olhos das partes, qualquer dúvida que lhes possa surgir sobre a sua independência e imparcialidade. Em alguns casos, o árbitro, mesmo tendo apresentado robusto disclosure pode ser impugnado. Alguns profissionais, entendem que a mera existência de impugnação lhe causaria desconforto para atuar no caso, e, de imediato, renunciam ao posto. Outros, cientes de que cumpriram seu dever legal e acima tudo ético de revelar (e ainda que tenham informado questões dispostas em domínio público), respondem "à altura"9 e permanecem no caso aguardando o julgamento das impugnações, a maioria julgada improcedente pelos órgãos formados no âmbito dos centros arbitrais10. Fora a eventual fase de impugnação, um destaque dos bastidores da atividade dos árbitros na fase pré-arbitral é a escolha da pessoa que presidirá o tribunal arbitral. Normalmente, os regulamentos arbitrais dispõem que a escolha do árbitro presidente cabe aos coárbitros, livremente, não havendo qualquer regra a respeito da participação das partes nessa escolha. Como o árbitro, seja ele coárbitro ou presidente, deve preencher o requisito de confiança nas partes, na forma do art. 13, caput, da Lei de Arbitragem11, é de bom alvitre que os árbitros formulem listas prévias com nomes de possíveis candidatos ou candidatas ao posto de presidente. Normalmente essas listas contêm 6 (seis) nomes, os quais são informados simultaneamente a ambas as partes pela secretaria do competente centro de arbitragem, devendo as partes, em prazo comum, eliminar até 2 (dois) nomes da lista, sem a necessidade de justificativa. Com os nomes dos remanescentes, os coárbitros escolhem um deles para presidir o tribunal. Tal método não é identificado na doutrina nem em qualquer outro escrito sobre tema, mas representa, na atualidade, prática comum nos bastidores da atividade pré-arbitral concernente à nomeação do(a) presidente do painel. Além de comum, constitui prática salutar, eis que faz com as que as partes participem ativamente da escolha do(a) presidente, encontrando sintonia com a norma prevista no art. 13, caput, da Lei de Arbitragem. Em resumo: os bastidores da atividade do árbitro na fase pré-arbitral estão mais ligados à composição do tribunal arbitral. Não há aqui, ainda, a intensa atividade harmônica que costuma prevalecer na fase subsequente da arbitragem, mas, por outro lado, é nesta fase em que o elemento ético deve imperar, acima de tudo, em razão do impacto no procedimento que gera a escolha do árbitro12. Afinal de contas, como aponta José Emilio Nunes Pinto, "o sucesso da arbitragem depende do árbitro ou árbitros a quem se confia a solução da controvérsia. Ele é o centro de todo o procedimento e seu desempenho determina o resultado da solução da controvérsia. Em face desse relevante papel desempenhado, surgem, não raro, questões quanto à conduta do árbitro. Dessa forma, na medida em que entendemos que a conduta é fator primordial para o sucesso de qualquer arbitragem, não podemos nos esquivar, em nome da melhor compreensão do instituto, de abordar a importância da ética no procedimento"13. No próximo texto desta coluna, as atenções serão voltadas aos bastidores da atividade do árbitro na fase arbitral, cujo ponto de partida ocorre com a instituição da arbitragem e acaba no momento em que o árbitro único ou tribunal arbitral profere a sentença arbitral, ou se provocado por meio de pedido de esclarecimentos, no momento em que o decide. __________ 1 Dentre as raras obras que tratam do assunto, ver, notadamente: Inside the Black Box: How Arbitral Tribunals Operate and Reach their Decisions (ed. Bernhard Berger and Michael E. Schneider). New York: JurisNet, 2014 e DRAETTA, Ugo. Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011. 2 Segundo Selma Ferreira Lemes: "Discorrer sobre o papel do árbitro no procedimento arbitral impõe, inicialmente, refletir sobre um adágio mundialmente conhecido: "a arbitragem vale o que vale o árbitro", fato incontroverso. E mais, saliento que "o árbitro representa a chave da abóbada da arbitragem e ao seu redor gravitam todos os temas e conceitos afeitos à arbitragem". Fonte. Acesso em 16/10/2020. 3 Para Pedro A. Batista Martins, a "fase pré-arbitral se inicia com a assinatura da convenção de arbitragem, mas se mantém dormente até o surgimento do conflito. Ela se prolonga até a aceitação da nomeação dos árbitros" (As três fases da arbitragem. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, ano XXVI, n. 87, p. 87-88, 2006). 4 Assim entende Leandro Rigueira Rennó Lima: "A primeira fase, que se refere à instauração do juízo arbitral, pode se iniciar com a formalização da cláusula compromissória, que antecede o conflito, passando pelo surgimento da controvérsia ou, se for o caso, pelo processo de confecção do compromisso arbitral, finalizando-se com a aceitação pelos árbitros de sua nomeação, que é o ato que realmente institui o juízo arbitral dentro do sistema adotado pelo nosso legislador"(Arbitragem: uma análise da fase pré-arbitral. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 38). 5 Art. 13, § 6º   da Lei de Arbitragem: "No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição". 6 Sobre o tema ver: LALIVE, Pierre. Du courage dans l'arbitrage internacional. Mélanges en l'honneur de François Knoepller. Collection Neuchateloise. Helbing & Lichtenhahn, Bâle, 2005, pp. 157-160.  Acesso em 16/10/2020. 7 A ética na arbitragem é lançada com propriedade por Catherine A. Rogers, sobretudo no campo internacional, em que, segundo a referida autora, a necessidade de uma "auto regulação" do sistema, fundada em normas claras e éticas, reforçam a credibilidade à arbitragem. No original: "While 'regulation' is a term that is generally resisted, self-regulation in international arbitration is a healthy way to preserve existing structures and strengthen the regime. The legitimacy of international arbitration is predicated in substantial part on the integrity and professional conduct of its founders and of its modern custodians - the arbitrators, counsel, experts and administrators od arbitral institutions who manage and decide the disputes. These participants build and sustain the legal frameworks and procedures on which the legitimacy of international arbitration is founded. Clearer ethical norms and a reliable enforcement regime are essential to that function and have evolved organically in international arbitration".  ROGERS Catherine A. Ethics in International Arbitration. Oxford University Press, 2014, pp. 272. 8 Na visão de Ugo Draetta: "In these preliminary meeting with the arbitrator, too, counsel must confine themselves to obtaining relevant information from that arbitrator about his or her availability, any potential conflicts of interest, and specific competence in relation to the subject matter of the dispute". (Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, pp. 28-29). No mesmo sentido é a opinião de Ricardo Dalmaso Marques: "Também por esse motivo, na arbitragem são admitidas entrevistas pelas partes com os possíveis árbitros, antes de sua efetiva indicação, não para discutir o mérito da disputa, mas para que as partes avaliem se determinada pessoa possui as qualidades esperadas para julgar aquele conflito". (Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018, p. 36). Sobre o assunto, ver NUNES, Thiago Marinho. Entrevistas com Potenciais Árbitros. Acesso em 16/10/2020. 9 Nesse sentido, afirma Ricardo Dalmaso Marques: "(...) responder à altura, principalmente quando a impugnação é infundada, é mais uma forma de assegurar a confiança na figura do árbitro e também no instituto em si". MARQUES, Ricardo Dalmaso. O Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018, p. 243. 10 Em casos de impugnação, em alguns centros de arbitragem no Brasil, a questão é levada a um colegiado, normalmente formado por membros do corpo de árbitros de determinada instituição, que, num procedimento expedito, julgam se o árbitro impugnado deve ou não ser removido. A título de exemplo, o art. 5.4 do Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC dispõe: "5.4. As partes poderão impugnar os árbitros por falta de independência, imparcialidade, ou por motivo justificado no prazo de 15 (quinze) dias do conhecimento do fato, sendo a impugnação julgada por Comitê Especial constituído por 3 (três) membros do Corpo de Árbitros nomeados pelo Presidente do CAM-CCBC". No mesmo sentido, o capítulo V do Regulamento de Arbitragem da CAMARB. Acesso em 25/10/2020. 11 Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes. 12 Nesse sentido, vide o estudo de MARÇAL, Juliana. A Ética como Elemento Caracterizador da Arbitragem in Revista de Arbitragem e Mediação, Vol, 62 (jul-set. 2019). São Paulo: Thomson Reuters, pp. 157-165. 13 PINTO, José Emilio Nunes. A importância da ética na arbitragem. In: Âmbito Jurídico. 2003. Acesso em 25/10/2020.
No dia 23 de setembro de 2020 completou-se vinte e quatro anos da promulgação da lei 9.307/96 ("LArb"). Desde o momento em que foi promulgada, a arbitragem caminhou em passos curtos no Brasil, tendo realmente começado a ser utilizada com maior frequência quando da declaração de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal ("STF") em 2001, e no ano seguinte, quando da ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 10 de junho de 19581, a qual inseriu, definitivamente, o Brasil no contexto da arbitragem comercial internacional, garantindo credibilidade e confiabilidade do instituto perante o público estrangeiro2. O aperfeiçoamento da prática arbitral brasileira, vem se consolidando há algum tempo, tendo se expandido por todas as regiões do Brasil. Teses, manuais, monografias, cursos dos mais diversos surgiram (e vem surgindo) demonstrando que a prática da arbitragem no Brasil só cresce e veio para ficar. Esse sucesso se deve não só ao legislador (que apresentou um projeto de lei moderno e baseado em diplomas de importância significativa, como a Lei Espanhola de Arbitragem3 e a Lei Modelo da Uncitral4), e que evoluiu ao longo tempo, se alinhando à tendência jurisprudencial a respeito de importantes temas, como a regulamentação da arbitragem envolvendo a administração pública, a permissão do uso de medidas cautelares pré-arbitrais perante o Poder Judiciário, inter alia5, mas também à comunidade arbitral como um todo, como advogados, in-house counsels e árbitros atuantes nessa seara que, em sua grande parte, compreendeu o "espírito" da arbitragem e suas peculiaridades. Prova disso é o índice ínfimo de anulação de sentenças arbitrais pelo Poder Judiciário, bem como a maciça jurisprudência pró-arbitragem desenvolvida no âmbito dos tribunais superiores, em especial a do Superior Tribunal de Justiça6. Com o crescimento da prática arbitral no Brasil, e o aumento de seus players, pensa-se que o estudo comparativo da arbitragem já desenvolvida em outros sistemas legais (e lá já consolidado há tempos) possa ser de grande valia para o Brasil.  A par da comparação por meio de sistemas legais7, fonte de comparação que merece ser considerada, são as diversas diretrizes criadas por respeitados órgãos internacionais, como a International Bar Association ("IBA") e o Chartered Institute of Arbitrators ("CIArb"). Nessas linhas busca-se fazer uma breve e geral introdução às diretrizes criadas pelo CIArb, em prol do bom desenvolvimento da arbitragem internacional, que podem ser perfeitamente aplicadas no âmbito interno, tanto por advogados, árbitros e magistrados. Fundado em 1915, o CIArb é uma organização que congrega inúmeros profissionais atuantes na seara da resolução de disputas (arbitragem, mediação, dispute boards, inter alia) em todo o mundo, difundindo e facilitando o uso de tais mecanismos8. Baseada em Londres, conta com aproximadamente 16.000 membros distribuídos em 39 branches em 133 países. Possui, desde 2019, uma representação no Brasil (CIArb Brazil Branch) e, ao longo de sus existência, editou uma série de diretrizes acerca de práticas consolidadas no âmbito da arbitragem internacional e que podem servir como guia útil para a orientação de advogados, in-house counsels e árbitros envolvidos em procedimentos arbitrais. O CIArb, até a presente data, editou 13 (treze) diretrizes relacionadas à arbitragem9, dentre as quais se incluem (a) entrevistas com potenciais árbitros; (b) termos para indicação e remuneração dos árbitros; (c) objeções jurisdicionais; (d) normas relativas às medidas de urgência; (e) garantia de custas10; (f) administração procedimentos arbitrais e ordens processuais; (g) peritos das partes e do tribunal arbitral; (h) arbitragens exclusivamente documentais; (i) partes ausentes ou não-participantes; (j) elaboração de sentenças arbitrais (três partes) e; (k) regras para oitiva de testemunhas11. Diversas das diretrizes acima já vêm sendo utilizadas na prática arbitral brasileira, com grande aceitação dos operadores da arbitragem e bem vistas pelo Poder Judiciário. Destacam-se as medidas de urgência, a garantia de custas, as partes ausentes ou não-participantes (revelia), as regras atinentes à prova pericial (uso de peritos pelas partes ou mediante indicação pelo Tribunal Arbitral), e as entrevistas com potenciais árbitros12. Por mais que tais diretrizes tenham sido formuladas para uso no âmbito da arbitragem internacional (e mais, para uso em tanto nos sistemas da civil law como da common law), não há dúvidas de sua utilidade e transposição para o âmbito da arbitragem doméstica, no sentido não só de garantir eficiência aos procedimentos arbitrais, mas no sentido pedagógico, ao estabelecer condutas que se espera sejam adotadas pelos atores da arbitragem. Oportuno, nesse sentido, o entendimento de Julie Bédard e Ricardo Dalmaso Marques, ao comentarem as diretrizes da IBA sobre representação das partes em arbitragem internacional: "O emprego do termo "diretrizes" em vez de "regras" tem, precisamente, o objetivo de ressaltar a natureza contratual do texto, que pode ser (i) adotado pelas partes em sua totalidade ou apenas parcialmente e (ii) aplicado pelo tribunal arbitral, após consultar as partes, adaptando os seus dispositivos às circunstâncias particulares de cada caso. Conforme mencionado, não se está tratando nas Diretrizes de ética ou conduta profissional, mas da conduta esperada dos representantes de partes em arbitragens internacionais e que deve ser incentivada caso a caso como forma de administrar o procedimento de forma eficiente (management of the proceedings)"13. A prática da arbitragem cresce a cada ano no Brasil. Esse crescimento deve caminhar paralelamente com a adoção das cautelas necessárias pelos atores da arbitragem - partes, advogados e árbitros, com base na ética e condutas profissionais que se esperam dos mencionados atores, com o fito de preservar a higidez da arbitragem e a sua grande finalidade, que é gerar uma sentença exequível por meio de um procedimento célere, eficiente, justo, mas, acima de tudo, ético14, este último, o elemento caracterizador da arbitragem15. O objeto das diretrizes do CIArb, além de enfatizar o comportamento ético que deve ser observado por seus players - partes, advogados, experts, e árbitros16 -, é o de promover uniformidade na condução dos procedimentos arbitrais17, primando-se pela previsibilidade, efetividade e celeridade e que, apesar de terem sido elaboradas tendo como base a arbitragem internacional, não só podem como se recomenda sua utilização nas arbitragens domésticas18, o que certamente aperfeiçoará o sistema arbitral brasileiro19. __________ 1 Decreto 4.311, de 23 de julho de 2002.  2 Sobre o assunto, ver NUNES, Thiago Marinho. A Convenção de Nova Iorque de 10 de Junho de 1958: Alguns Pontos Polêmicos, Revista Brasileira de Arbitragem, (Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB; Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB 2009, Volume VI Issue 23) pp. 33-53.  3 Lei 63/2011, de 14 de dezembro (versão atualizada).  4 A Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional é uma lei modelo preparada pela UNCITRAL e adotada pela Comissão das Nações Unidas sobre Direito Comercial Internacional em 21 de junho de 1985 e revista em 2006. Acessível aqui. Acesso em 21/9/2020.  5 Modificações trazidas pela Lei nº 13.129, de 26 de maio de 2015. A esse respeito, menciona-se a recente obra editada pelo Migalhas: FERREIRA, Olavo A. Alves e LUCON, Paulo Henrique dos Santos Arbitragem: 5 anos da lei 13.129, de 26 de maio de 2015. Referida obra pode ser adquirida mediante acesso ao seguinte link.  6 Dados que podem ser aferidos em pesquisa realizadas pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr") em conjunto com a Associação Brasileira dos Estudantes de Arbitragem ("ABEArb"). Fonte. Acesso em 24/9/2020.  7 Sobre a importância do direito comparado na arbitragem, vide o artigo já publicado nesta Coluna. Acesso em 24/9/2020.  8 Segundo Tim Hardy, FCIArb e Elina Zlatansla, FCIArb: "As the first ever learned society in the world to be devoted to the education and training of what is considered to be 'modern arbitration', CIArb plays a unique role in furthering the profession and in encouraging and facilitating the use of arbitration. It has a longstanding history in promoting best practices in the field and offering guidance through research and scholarly publications". CIArb Arbitration Practice Guidelines: An Overview, p. 3. Acessível aqui. Acesso em 21/9/2020.  9 Tradução livre dos títulos das diretrizes. Para verificação completa das Diretrizes aqui citadas. Acesso em 21/9/2020.  10 Esta, em particular (o chamado "Security for costs") foi recebeu um destacado comentário de José Victor Palazzi Zakia, acessível aqui. Acesso em 21/9/2020. 11 Esta última foi objeto de recente premiação pela Global Arbitration Review ("GAR") de "best innovation by an individual or organisation". Fonte. Acesso em 24/9/2020.  12 As regras sugeridas para entrevistas com potenciais árbitros estão englobadas na Diretriz n. 1. do CIArb Sobre o assunto, vide artigo nesta coluna, acessível aqui. Acesso em 24/9/2020.  13 BÉDARD, Julie e MARQUES, Ricardo Dalmaso. A conduta dos advogados e representantes de parte em geral na arbitragem internacional - as Diretrizes IBA para a Representação de Partes em Arbitragens Internacionais, in João Bosco Lee e Daniel de Andrade Levy (eds), Revista Brasileira de Arbitragem, (Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB; Kluwer Law International 2017, Volume XIV Issue 53) p. 29.  14 A ética na arbitragem é lançada com propriedade por Catherine A. Rogers, sobretudo no campo internacional, em que, segundo a referida autora, a necessidade de uma "auto regulação" do sistema, fundada em normas claras e éticas, reforçam a credibilidade à arbitragem. No original: "While 'regulation' is a term that is generally resisted, self-regulation in international arbitration is a healthy way to preserve existing structures and strengthen the regime. The legitimacy of international arbitration is predicated in substantial part on the integrity and professional conduct of its founders and of its modern custodians - the arbitrators, counsel, experts and administrators od arbitral institutions who manage and decide the disputes. These participants build and sustain the legal frameworks and procedures on which the legitimacy of international arbitration is founded. Clearer ethical norms and a reliable enforcement regime are essential to that function and have evolved organically in international arbitration".  ROGERS Catherine A. Ethics in International Arbitration. Oxford University Press, 2014, pp. 272.  15 Nesse sentido, vide o estudo de MARÇAL, Juliana. A Ética como Elemento Caracterizador da Arbitragem in Revista de Arbitragem e Mediação, Vol, 62 (jul-set. 2019). São Paulo: Thomson Reuters, pp. 157-165.  16 Para os profissionais que atuam na condição de árbitros, a atuação do CIArb é destacada por Catherine A. Rogers: "For arbitrators, specifically, the Chartered Institute of Arbitrator, or 'CIArb', has a well- established certification programme. The CIArb refers to itself as a 'Professional Organization for Arbitrators, Mediators and Adjudicators', and lists having a 'prestigious secondary professional qualification' as among the benefits of membership. The CIArb has stringent, published entry requirements, which may include extensive training, passing an examination, and completing an interview. It also has a relatively detailed code of ethics and related practice guidelines that pertain to arbitrator members". ROGERS Catherine A. Ethics in International Arbitration. Oxford University Press, 2014, pp. 255-256.  17 Nesse sentido, vide o estudo de Zharilov, Andri. Conflicts and Ethics in International Arbitration in Arbitration: The International Journal of Arbitration, Mediation and Dispute Management, Vol. 85, Issue 1 (2019) pp. 36-48.  18 Segundo Tim Hardy, FCIArb e Elina Zlatansla, FCIArb: "It is important to bear in mind that the Guidelines are designed for international commercial arbitrations although the principles and standards are equally applicable in domestic arbitrations. The Guidelines are not prescriptive and do not contain any legal or professional advice. Rather they contain suggestions and recommendations that can be used to promote consistent decision-making. They shall not be treated as binding upon the parties or the arbitral tribunal and therefore non-compliance shall not be sanctioned or interpreted as a ground for the setting aside of any award". CIArb Arbitration Practice Guidelines: An Overview, p. 3. Acessível aqui. Acesso em 21/9/2020. 19 Experiências ditas alheias, praticadas em outros povos do globo podem ser benéficas para o aperfeiçoamento do sistema interno, como já ensinavam René David (Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4) e Rodolfo Sacco (Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 49).
Um tema que tem sido discutido nos últimos anos diz respeito ao uso da arbitragem nos contratos de franquia. Tal assunto foi objeto de discussões em 2016 quando o Superior Tribunal de Justiça ("STJ") proferiu a decisão no REsp nº 1.602.076 - SP, em que se reconheceu a nulidade de cláusula compromissória inserta em contrato de franquia por entender ter havido desrespeito à regra prevista no art. 4º, § 2º da lei 9.307/96 ("LArb")1.  No bojo do referido aresto, entendeu a Terceira Turma do STJ que, "O contrato de franquia, por sua natureza, não está sujeito às regras protetivas previstas no CDC, pois não há relação de consumo, mas de fomento econômico", e, ainda, que "todos os contratos de adesão, mesmo aqueles que não consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem observar o disposto no art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96"2. Tal decisão foi objeto de críticas por parte da comunidade jurídica, notadamente em razão do entendimento exarado por aquela Corte de que todo "contrato de franquia ou franchising é inegavelmente um contrato de adesão". Tais críticas, as quais se entende corretas, se resumiam pelo fato de que "A conclusão alcançada no precedente, de que contratos de franquia são inegavelmente contratos de adesão, parece, a bem da verdade, tratar-se de uma generalização apressada e que não representa, necessariamente, a realidade vivida entre franqueados e franqueadores"3. Poucos anos depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu decisão em sentido oposto, declarando que, em relações contratuais como a da franquia empresarial, "deve ser reconhecida a validade da cláusula compromissória nos contratos de franquia, tendo em vista tratar-se de contrato empresarial, ou seja, entre dois empresários"4. Levada às instâncias superiores, o STJ entendeu por bem reformar o referido decisum, em acórdão não unânime, que decidiu, inter alia: "Os contratos de franquia, mesmo não consubstanciando relação de consumo, devem observar o que prescreve o art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96, na medida em que possuem natureza de contrato de adesão. Precedentes"5. Ou seja, o STJ manteve a posição exarada no REsp nº 1.602.076 - SP, de 2016, deixando ainda no ar os perigos de se assimilar o contrato de franquia, automaticamente, aos contratos de adesão. O voto vencido, de lavra do Ministro Marco Aurélio Belizze, adotou posição correta (na visão deste autor) ao entender que os contratos de franquia assimilam-se aos contratos empresariais e devem ser "qualificados pela especial finalidade empresarial, tendo por objeto, de parte a parte, a exploração de sua atividade econômica organizada profissionalmente, objetivando o lucro". Dessa forma, dentre outras razões, o voto vencido entendeu pela validade da cláusula compromissória inserta em determinado contrato de franquia, considerado o caso específico, sem se ater a generalidades, inter alia. O perigo imposto pela mais recente decisão do STJ é o de manter o entendimento de 2016 de que todo contrato de franquia se enquadra na natureza dos contratos de adesão, generalizando a questão. Conquanto seja discutível que as relações contratuais celebradas no âmbito da franquia empresarial possam, em grande parte, se enquadrar como contratos de adesão, não é algo que deva ser generalizado, como se regra fosse, tal como se extrai do julgamento proferido nos recursos especiais acima referidos. Isso porque, em determinados casos, a relação negocial firmada entre partes em igual patamar de status empresarial, pode não haver o chamado elemento da "dependência empresarial"6. Isso pode ocorrer mesmo nos contratos de franquia, não havendo, nesses casos, a necessidade de se destacar a cláusula compromissória nos termos do art. 4, § 2º, da LArb.  A relação contratual de franquia, com efeito, pode representar, em certos casos, relação empresarial estabelecida por contratantes com plena capacidade negocial, sem qualquer assimetria de informações7. A prevalecer o entendimento exarado pelo STJ nos mencionados recursos especiais corre-se o risco de se rotular indefinida e artificialmente todos os contratos de franquia como contratos de adesão, criando-se insuperável situação de insegurança jurídica. Nesse sentido, cita-se a lição de Felipe Vollbrecht Sperandio, tratando de matéria no âmbito securitário, mas que, de forma análoga, pode ser transposta para os contratos de franquia:  "(...) A lei de Arbitragem criou um sistema para proteger o aderente em contratos de adesão, presumindo que estaria impossibilitado de discutir os termos contratuais que lhe são impostos unilateralmente pelo proponente, especialmente a opção pela arbitragem. Nesse sentido, o artigo 4º, § 2º, da LArb prevê requisito adicional de forma para que a cláusula arbitral contida em contrato de adesão seja vinculante, o que ocorrerá em duas hipóteses: na primeira, quando o aderente iniciar a arbitragem, o que, por óbvio, extingue qualquer dúvida quanto ao seu consentimento para arbitrar; e, na segundo, quando, no momento da celebração do contrato, o aderente declarar consentimento expresso à cláusula arbitral, por escrito, seja em documento apartado, seja em negrito, com assinatura ou visto na própria cláusula. A iniciativa do legislador é louvável, mas, neste estudo, defende-se que há duas imprecisões na atual jurisprudência brasileira em relação à arbitragem em contratos de adesão. A primeira imprecisão reside na banalização da ideia de contrato de adesão. Muitos julgados simplesmente rotulam certos contratos como "contratos de adesão", com base no seu tipo ou modelo econômico. Por exemplo, o contrato de seguro, na maioria das vezes, é um contrato de adesão. Todavia existem coberturas securitárias para grandes e complexos riscos de engenharia, desenhadas de acordo com as especificações do tomador de seguros e exaustivamente negociadas entre grandes corporações amplamente assessoradas. Seria ingênuo, por exemplo, argumentar que as seguradoras têm contrato de seguro padrão e predeterminado para cobertura de riscos em usinas hidrelétricas ou usinas nucleares. Isso também se aplica a sociedades de economia mista, que precisam realizar licitação para contratar apólices de seguro. [...] As seguradoras, por vezes, apresentam propostas de cobertura securitárias feitas sob medida para os termos do edital de licitação. As sociedades de economia mista, é válido lembrar, muitas vezes têm maior aparato e poderio econômico do que as próprias seguradas. Com isso em mente, é preciso evitar a rotulação automática de contratos cognitivos, sob o risco de se afastar a jurisprudência brasileira da realidade comercial. Para aferir se um contrato é de adesão, o julgador deve averiguar se as partes negociaram o contrato em posição paritária - ou, ao menos, examinar se as partes teriam a oportunidade de negociar termos contratuais, caso assim almejassem. É necessária, portanto, disciplina metodológica para investigar detalhadamente a fase de negociação do contrato, caso a caso (...)"8. Nessa mesma linha, citam-se os contratos bancários, quase sempre rotulados, equivocadamente, como contratos de adesão. Diversos contratos bancários, como, por exemplo, os de derivativos cambiais, dentre outros, são instrumentos complexos, mapeados, examinados e negociados de forma exaustiva pelas partes envolvidas, não havendo espaço para hipossuficiência, seja técnica, jurídica ou econômica. São instrumentos cujas cláusulas são redigidas com oportunidade para que ambas as partes possam discutir ou modificar o seu conteúdo, como bem decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais: "Isto porque, não é razoável pensar que uma empresa de grande porte como a apelada não foi possível a negociação da cláusula de arbitragem. Ao contrário, os documentos constantes dos autos permitem inferir que existiram sim negociações preliminares de ambas as partes, com esclarecimentos e discussões do conteúdo do contrato. Ora, se a apelada não concordava com a instituição da cláusula de arbitragem, bastava celebrar o contrato com outra instituição financeira ou mesmo questionar a cláusula antes de aceitá-la. Nos documentos juntados aos autos não se tem notícia de tal questionamento, sendo que o pedido de anulação da cláusula foi feito somente após a crise financeira que assolou o país, ou seja, somente quando a apelada teve prejuízos  (...) Some-se a isto o fato de que no caso de empresas de grande porte é comum que antes da assinatura da avença haja efetiva análise por parte da empresa, em seus departamentos próprios, seja financeiro ou jurídico, dos termos da contratação"9. Feitas essas considerações, e utilizando-se das percucientes lições aduzidas pelo autor acima citado, "é preciso evitar a rotulação automática de contratos cognitivos, sob o risco de se afastar a jurisprudência brasileira da realidade comercial"10. Por mais que diversos contratos de franquia possam ser contratos padronizados, em que o franqueado sequer tem a possibilidade de examinar suas cláusulas, nem todo negócio jurídico firmado nesse âmbito empresarial se dá desta forma. Tudo deve ser visto caso a caso. Ainda mais, num momento em que a legislação brasileira aprimorou o seu sistema de franquia, por meio da lei 13.966/2019, não apenas incluindo a previsão do uso da arbitragem em contratos daquela natureza, mas abrindo as portas da franquia empresarial ao investidor estrangeiro, em vista da nova disposição a respeito do contrato internacional de franquia11, é essencial que haja uma mudança de entendimento das cortes superiores acerca da real natureza do contrato de franquia e o uso da arbitragem como mecanismo adequado de resolução de controvérsias advindas daquele setor. Para que haja um bom desenvolvimento do sistema de franquias no Brasil (e ainda mais atualidade, com a hipótese da atração de investimentos estrangeiros nesse setor), bem como o seu método de resolução de controvérsias por arbitragem, é preciso que os tribunais pátrios deixem de rotular o contrato de franquia, de forma automática, como contrato de adesão, sob pena de se tornar inviável o uso da arbitragem nesse setor, e, por conseguinte, criar insuperável situação de insegurança jurídica, tal como descrito nessas breves linhas. __________ 1 Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato (...) § 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa clausula. 2 STJ, REsp nº 1.602.076 - SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.09.2016, DJE 30.09.2016. 3 Ver, nesse sentido. Acesso em 10.08.2020. 4 TJSP, Ap. Civ. nº 1047574-03.2017.8.26.0100, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Alexandre Lazzarini, j. 23.03.2018. Para comentários, ver aqui. Acesso em 21.08.2020. 5 STJ, REsp nº 1.803.752 - SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2020, DJE 24.04.2020. 6 Segundo Fábio Ulhôa Coelho: Por dependência empresarial entende-se aquela situação de fato, no contexto de um contrato empresarial, em que a empresa de um dos empresários contratantes deve ser organizada de acordo com instruções ditadas pelo outro. Esta dependência tem origem contratual, de modo que o empresário dependente manifestou sua vontade no sentido de submeter-se à situação (...) A exemplo dos demais princípios de direito comercial, o da proteção do contratante mais fraco não pode ser interpretado isoladamente. Quer dizer, também o empresário dependente, o que se encontra na posição inferior na relação de assimetria, não pode invocar este princípio com o objetivo de se preservar das consequências econômicas, financeiras, patrimoniais ou administrativas das decisões que adota na condução da empresa, quando frustrarem suas expectativas ou se mostrarem prejudiciais aos seus interesses. (Curso de Direito Comercial, Volume 1: Direito de Empresa. 16ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2012. p. 93-94). 7 Ver, nesse sentido, SANTOS, Thiago Rodovalho dos. Cláusula Arbitral nos Contratos de Adesão: contratos de adesão de consumo, contratos de adesão civis, contratos de adesão empresariais. São Paulo: Almedina, 2016, pp. 82-90. 8 SPERANDIO, Felipe Vollbrecht. Curso de Arbitragem. Coordenadores: Daniel Levy e Guilherme Setoguti J. Pereira. São Paulo: Thomson Reuters Brasil/Revista dos Tribunais, 2018. p. 110-112. 9 TJMG, Ap. civ. 1.0672.08.315132-0, 14ª Câmara Cível, rel. Des. Rogério Medeiros, j. 27.10.2011. 10 SPERANDIO, Felipe Vollbrecht. Curso de Arbitragem. Coordenadores: Daniel Levy e Guilherme Setoguti J. Pereira. São Paulo: Thomson Reuters Brasil/Revista dos Tribunais, 2018. p. 110-112   11 Sobre o assunto, ver aqui.  
Um tema que tem sido raramente discutido no âmbito arbitral diz respeito à interrupção da prescrição na arbitragem1. Aprimorado em 2015, o sistema arbitral brasileiro passou a contar com o novel § 2º do art. 19 da lei 9.307/96 ("LArb"), que dispõe: "A instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração, ainda que extinta a arbitragem por ausência de jurisdição". Não é o objetivo dessas breves linhas discorrer se a inserção desta regra no sistema arbitral foi ou não tecnicamente correta, mas refletir se ela pode ou não causar certa insegurança àqueles que atuam na seara arbitral, notadamente em arbitragens complexas, como, inter alia, as de construção2. As arbitragens de construção podem englobar, desde litígios simples, como a reparação de defeitos de obra em eventual casa ou apartamento, até litígios decorrentes de obras complexas, como a construção de usinas termoelétricas, hidrelétricas, parques eólicos, entre outras. Nos casos mais complexos, o número de pleitos numa arbitragem pode ser extenso: reparação financeira decorrente de atrasos em obras, de alteração de escopo, erros de projeto, erros de orçamento, pagamentos de medições de obra em atraso, demandas de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, pretensões cujo valor pode ser de natureza líquida ou ilíquida, inter alia, estão entre os pleitos que podem surgir numa única arbitragem de construção. Isso sem contar as pretensões que tenham origem em contratos cuja tipologia seja específica, como é o caso do EPC ("Engineering, Procurement and Construction"), usual negócio jurídico firmado no âmbito do Direito da Construção em que, segundo Marcelo Botelho de Mesquita, "atribui-se, a um único contratado - ainda que se trate de consórcio de empresas - praticamente a integralidade das atividades necessárias a implantação de certo empreendimento, desde a concepção até a sua operação, englobando projetos, aquisição de materiais e de maquinário, construção das obras, capacitação do pessoal da contratante e colocação em funcionamento das instalações"3. Ocorre que, dependendo da pretensão, cuja qualificação jurídica pode variar em casos de construção, cada uma delas pode estar sujeita a prazos prescricionais diversos. A título de exemplo, cita-se, notadamente: prazos prescricionais de reparação civil (decorrente de responsabilidade civil aquiliana4) e de enriquecimento sem causa5, são de 03 (três) anos6. Prazos prescricionais decorrentes de cobranças de dívida líquida constantes de instrumento público ou particular são de 05 (cinco anos)7. Prazos decorrentes de dívida ilíquida prescrevem em 10 (dez anos), segundo a jurisprudência brasileira8. Mais recentemente, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que as pretensões decorrentes de inadimplemento contratual prescrevem em 10 (anos)9. Diante dessa miríade de pretensões, sujeitas a diferentes prazos de prescrição, pensa-se qual a melhor forma de abordar tal assunto em arbitragens (notadamente as de construção), sobretudo em momentos que eventual prazo prescricional decorrente de uma das pretensões a serem exercidas na arbitragem está próximo a expirar. Vive-se aqui o velho dilema de como interromper o prazo da prescrição em sede arbitral. Por meio da reforma ocorrida em 201510, o legislador houve por bem acrescer o supracitado § 2º do art. 19 da LArb, estabelecendo que a instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração (ou "Requerimento de Arbitragem"). Ou seja, sabendo-se que efetiva instituição da arbitragem pode levar tempo razoável11 (entre o protocolo do Requerimento de Arbitragem e a constituição do Tribunal Arbitral pode se passar meses), de modo a preservar o credor diligente12, o legislador estabeleceu que a apresentação do Requerimento de Arbitragem interrompe o curso da prescrição. No entanto, a parte não possui a obrigação de formular pedidos no aludido requerimento13. Tal manifestação não é uma petição inicial14. Nada mais é do que uma simples manifestação em que a parte descreve brevemente o litígio, lhe atribui um valor e faz um pedido, normalmente genérico, a ser detalhado no momento da celebração do Termo de Arbitragem. O problema aqui se dá em caso de eventual pretensão encontrar-se prescrita no momento da celebração do aludido Termo. Isso porque, como não há a obrigatoriedade da formulação de pedidos no Requerimento de Arbitragem, uma parte, ao não o fazer, pode se ver prejudicada mais a frente, vendo uma de suas pretensões ser fulminada pelo decurso do tempo. Toda essa celeuma, pode ter como possíveis soluções, as seguintes: a) apresentação do Requerimento de Arbitragem exaurindo todos os pedidos a serem formulados no Termo de Arbitragem; b) apresentação de Requerimento de Arbitragem com um único pedido, de natureza genérica, mas com reserva de direitos; c) ajuizamento de Protesto Interruptivo de Prescrição perante o Poder Judiciário do local da sede da arbitragem15; A opção listada no item "a" parece ser interessante, mas possui prós e contras. Vantagem: o credor diligente, já conhecendo todas as pretensões que deduzirá, simplesmente protocola o Requerimento de Arbitragem exaurindo todos os seus pedidos, garantindo a interrupção do curso da prescrição, na forma do art. 19, § 2º da LArb. Desvantagem: em casos muito complexos, como os de construção, nem sempre o credor saberá, no detalhe e com muita antecedência, a exatidão dos pleitos que formulará no Termo de Arbitragem. A opção listada no item "b" pode também funcionar, desde que a parte Requerente, faça todas as reservas de direitos a respeito dos pedidos que formulará no Termo de Arbitragem, demonstrando ser "credor diligente", para os fins da interrupção do curso do prazo prescricional. O risco aqui pode se resumir no formalismo atinente aos pedidos específicos, que, como visto, podem se sujeitar a prazos prescricionais diversos e tal formalismo não escapar à atenção dos árbitros16. Assim, uma pretensão pode não estar prescrita no momento da apresentação do Requerimento de Arbitragem, mas pode estar no momento da assinatura do Termo de Arbitragem. Já a opção listada no item "c", mostra-se a mais segura. Em sua essência, o protesto encontra previsão expressa no inciso II do art. 202 do Código Civil ("CC") e instrumentalizado pelos arts. 726 a 729 do Código de Processo Civil. Trata-se de uma medida judicial que visa a prevenir responsabilidade, prover a conservação e ressalva de seus direitos ou manifestar qualquer intenção de modo formal. Uma das formas de conservação de direitos, por meio do protesto judicial, é evitar que, sobre um credor, recaia a prescrição17. Trata-se de medida em que não há contraditório, muito menos sentença, mas é sujeito à jurisdição18. Distribuído o protesto a uma das varas cíveis de determinada comarca, o juiz determinará a citação da parte requerida, e, a partir da data de sua citação19, que é absolutamente indispensável20, será considerada interrompida a prescrição (com as ressalvas do art. 202, inciso II, do CC). Com efeito, o caráter cautelar do qual é dotado o protesto interruptivo de prescrição é perfeitamente cabível na esfera pré-arbitral. Ora, enquanto não instituída a arbitragem, formalmente não há juízo arbitral, e, para que uma parte se previna de quaisquer riscos que poderia sofrer diante da ausência de formação da jurisdição arbitral, busca-se o auxílio do Poder Judiciário. Isso não significa renúncia à resolução do litígio pela via arbitral prevista na convenção de arbitragem. Trata-se de uma intervenção em caráter de urgência do juiz estatal que possui como único intuito a preservação ou conservação de um direito da parte, em situação de emergência, o que, aliás é expressamente autorizado pelo art. 22-A da LArb. Não há dúvidas de que, apesar de o legislador ter sido salutar ao incluir uma regra sobre a interrupção da prescrição em sede arbitral, podem remanescer dúvidas acerca da prescritibilidade de determinadas pretensões, notadamente quando há uma pluralidade de pedidos, o que ocorre com frequência em arbitragens complexas, como as de construção, inter alia. Ainda que, idealmente, a questão relativa à interrupção da prescrição devesse ser contemplada no CC e não na LArb21, seguindo modelos desenvolvidos na Itália, Suíça e Portugal, por exemplo22, objetivo dessas breves linhas é tão somente demonstrar que a redação do art. 19, § 2º da LArb não confere a segurança desejada para fins de interrupção da prescrição no âmbito arbitral, remanescendo o protesto judicial como remédio legal mais adequado e seguro para este fim. __________ 1 Em termos gerais, a respeito do assunto ver: NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014. 2 Sobre a complexidade das arbitragens de construção, ver PECORARO, Eduardo. Arbitragem nos Contratos de Construção in Direito e Infraestrutura (coord. SILVA, Leonardo Toledo da). São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 231-255. 3 BOTELHO DE MESQUITA, Marcelo Alencar. Contratos Chave na Mão (Turnkey) e EPC (Engineering, Procurement and Construction) - Primeira Aproximação - Conteúdo e Qualificações. São Paulo: Almedina, 2019, p. 21. Sobre este tema, ver ainda as seguintes obras: SARRA DE DEUS, Adriana Regina. O Contrato de EPC: Engineering, Procurement and Construction. São Paulo, Almedina, 2019; CARMO. Lie Uema do. Contratos de Construção de Grande Obras. São Paulo: Almeida, 2019. 4 Art. 206, § 3º, inciso V do Código Civil. 5 Art. 206, § 3º, inciso IV do Código Civil. 6 Em casos de construção, a jurisprudência brasileira equipara a pretensão de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato à pretensão de enriquecimento sem causa. Nesse sentido, ver o seguinte julgado: "Contrato administrativo. Cobrança. Indenização por prejuízos decorrentes da execução de obra pública. Pretensão fundada na necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro. Prescrição. Inaplicabilidade do Dec. 20.930/32, cabíveis os prazos do Código Civil. Hipótese de ação de ressarcimento do enriquecimento sem causa (art. 206, § 3°, IV, CC). Decurso do prazo iniciado quando frustrada a expectativa de pagamento complementar. Prescrição configurada. Recurso desprovido". (ênfase acrescentada) TJSP, Apelação Cível nº 0208523-62.2010.8.26.0100, 13ª Câmara de Direito Público, rel. Des. Borelli Thomaz, j. em 29.2.2012. 7 Art. 206, § 5º, inciso I do Código Civil. 8 Nesse sentido: "PRESCRIÇÃO Ação monitória - Pretensão baseada em dívida ilíquida. Prescrição que se opera pela regra do artigo 205 do C.C. vigente. Não ocorrência. Apelação provida". (TJSP. Apelação nº 9118815-85.2009.8.26.0000, Des. Rel. Andrade Marques, j. 13.12.2012). 9 Nesse sentido: "O caráter secundário assumido pelas perdas e danos advindas do inadimplemento contratual, impõe seguir a sorte do principal (obrigação anteriormente assumida). Dessa forma, enquanto não prescrita a pretensão central alusiva à execução da obrigação contratual, sujeita ao prazo de 10 anos (caso não exista previsão de prazo diferenciado), não pode estar fulminado pela prescrição o provimento acessório relativo à responsabilidade civil atrelada ao descumprimento do pactuado" (STJ, Embargos em Divergência em REsp nº 1.281.594-SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 15.05.2019, DJE 23.05.2019). 10 Lei 13.129, de 26 de maio de 2015. 11 Nesse sentido, ver MARTINS, Pedro A. Batista. As três fases da arbitragem. In Revista do Advogado, São Paulo: AASP, ano XXVI, n. 87, p. 87, 2006. No mesmo sentido, ver ARMELIN, Donaldo. Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 77, out.-dez. 2007. 12 Santiago Dantas ensina que qualquer ato deliberado de cobrança, de exercício ou proteção ao direito, possui o condão de interromper a prescrição, extinguindo-se o tempo já decorrido (Prescrição e decadência. Programa de direito civil. Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito. (1942-1945). Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977. p. 404). No mesmo sentido ver. CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência. São Paulo: RT, 2008. p. 99. 13 Nesse sentido vide o art. 4.1 do Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC. Da mesma forma, o art. 2.1 do Regulamento de Arbitragem do CMA CIESP. Por sua vez, o art. 3.1 do Regulamento de Arbitragem da CAMARB dispõe, apenas, sobre "súmula das pretensões" na aludida disposição. 14 No âmbito judicial, a questão é resolvida com tranquilidade. Nesse sentido, dispõe o CPC em seu art. 240, § 1º: "A interrupção da prescrição, operada pelo despacho que ordena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, retroagirá à data de propositura da ação". 15 O Poder Judiciário do local da sede da arbitragem funciona como juízo de apoio à arbitragem. Ver, nesse sentido. 16 O que ocorrerá apenas e tão somente se a parte Requerida suscitar a ocorrência de prescrição. 17 Nesse sentido, entende Humberto Theodoro Júnior que o protesto "é ato judicial de comprovação ou de documentação da intenção do promovente. Revela-se, por meio dele, o propósito do agente de fazer atuar no mundo jurídico uma pretensão, geralmente de ordem material ou substancial. Sua finalidade, dentre outras pode ser a de [...] prover a conservação de um direito, como no caso do protesto interruptivo de prescrição" (Curso de direito processual civil: processo de execução e processo cautelar. 45. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 2, p. 622). 18 Nesse sentido, ver CIANCI, Mirna. Do interesse na ação de protesto interruptivo da prescrição. In: Prescrição no Código Civil: uma análise interdisciplinar. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 386. 19 Nesse sentido, a lição de Humberto Theodoro Jr.: "Aplicam-se ao procedimento do protesto, para fins de interrupção da prescrição, as "mesmas condições" previstas para a citação. Vale dizer: ainda que autorizado por juiz incompetente, o protesto interrompe a prescrição; e os efeitos retroagem à data do despacho inicial, se a intimação se der com observância dos prazos e requisitos do art. 240 e seus §§, do CPC/2015 (...)" (Prescrição e Decadência. Rio de Janeiro: Forense, 1ª edição, 2018, p. 158). 20 Nesse sentido, Câmara Leal entende que "não basta, porém, que o protesto seja requerido, é indispensável que seja notificado ao prescribente, porque somente por meio da notificação ou intimação é que se poderá dizer que o protesto foi feito pessoalmente ao sujeito passivo" (Da prescrição e da decadência. 3. ed. atual. por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 184). 21 Para uma análise mais detalhada dessa questão, ver NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Interrupção da Prescrição. In A Reforma da Arbitragem (org.: Leonardo Campos Melo e Renato Resende Beneduzi). Rio de Janeiro: Forense, 2016, pp. 503-533. 22 A respeito do assunto ver: NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, pp. 231-235.
terça-feira, 30 de junho de 2020

Limites do dever de conciliação do árbitro

Um tema que tem sido objeto de recentes debates, diz respeito aos deveres conciliatórios do árbitro. Num primeiro momento, tal tema pode causar certa estranheza ao leitor, eis que a função primordial do árbitro é de resolver o conflito1. Árbitro é juiz de fato e de direito, na dicção do art. 18 da lei 9.307/96 ("LArb")2. No entanto, é preciso observar o quanto disposto no art. 21, parágrafo quarto do mesmo o diploma legal, que dispõe: "Competirá ao árbitro ou ao tribunal arbitral, no início do procedimento, tentar a conciliação das partes, aplicando-se, no que couber, o art. 28 desta Lei"3. A referida disposição utiliza o verbo "tentar". Dessa forma, é preciso saber delinear com precisão os limites de tal tentativa. Isso porque, em teoria, o árbitro não é um conciliador, mas ostenta função eminentemente jurisdicional, isto é, compete ao árbitro dizer o direito (juridictio)4. Mas, antes de discutir tais limites, deve-se discorrer o momento em que a tentativa de conciliação deve ser realizada. A arbitragem se inicia com a apresentação de um requerimento de instauração de procedimento arbitral. No caso das arbitragens institucionais, i.e, aquelas administradas por câmaras, com base em regulamentos próprios, normalmente a parte requerida é notificada para apresentar sua resposta ao requerimento de instauração da arbitragem, em seguida o Tribunal Arbitral é constituído e, finalmente, as Partes, o Tribunal Arbitral e a instituição arbitral se reúnem para discutir e assinar o chamado Termo de Arbitragem. Nesse momento, as Partes definirão o escopo da controvérsia, formularão seus pedidos, estabelecerão em conjunto com o Tribunal Arbitral o calendário provisório do procedimento, inter alia. É exatamente nas reuniões para discussão e assinatura do Termo de Arbitragem que, antes de dar início aos trabalhos, os árbitros aplicam o quanto disposto no art. 21, parágrafo quarto da LArb, indagando as Partes sobre a possibilidade de haver acordo entre elas. Mas, pela dicção da lei, não basta apenas indagar. É preciso efetivamente tentar a conciliação entre as Partes. Nesse momento, consideradas as peculiaridades da real função de um conciliador e a atividade judicante do árbitro, pensa-se qual seria a mais adequada abordagem dos árbitros. A cultura do litígio e o espírito aguerrido da atividade contenciosa no Brasil, gera, naturalmente, a imediata busca por direitos mediante o efetivo exercício da pretensão, seja na esfera judicial, seja na arbitral. Dependendo da disputa que esteja em jogo, sabendo as Partes que o dispêndio financeiro poderá ser considerável, somado ao tempo de duração do procedimento, e sendo real o animus em tentar uma conciliação, nada impede que os árbitros, após consultadas as Partes, estabeleçam uma fase conciliatória prévia à apresentação dos seus argumentos de mérito. Tal fase pode comportar um cronograma que englobe a troca de submissões com foco definido (troca de documentos, por exemplo, que ajudem na compreensão do litígio por ambas as Partes, facilitando um entendimento), sendo de vital importância que não contenham uma exposição argumentativa acerca do mérito do caso. Feita essa troca de submissões, o Tribunal Arbitral pode designar uma reunião de conciliação que tenha como propósito a discussão entre as Partes acerca da troca de submissões, fulcrada no amplo diálogo entre elas. Tais discussões prévias podem, porventura, gerar um acordo ou, ao menos, fazer com que as Partes transijam em relação à parcela da demanda. Na primeira hipótese (transação total), o litígio é encerrado. Na segunda (transação parcial), o litígio prossegue, na parte não transacionada, estabelecendo-se, daí, um calendário procedimental para apresentação de submissões que tratem do mérito da controvérsia. Delineado o escopo dessa possível fase conciliatória no âmbito de uma arbitragem, é de suma importância que os árbitros observem certos limites de sua atuação nessa esfera, sob o risco de comprometer a sua independência e imparcialidade5. A atividade do conciliador é de natureza ativa. Deve o conciliador não só ouvir as Partes, mas propor soluções6, visando ao efetivo cumprimento de seu munus7. O árbitro, ao revés, ainda que tente uma conciliação, não exerce atividade conciliatória. Tal ponto requer uma extrema atenção dos profissionais atuantes na seara arbitral, eis que, se numa eventual fase conciliatória prévia, exercida com base no art. 21, parágrafo quarto da LArb, o Árbitro Único ou Tribunal Arbitral não poderão exercer o papel ativo que pertence ao conciliador, sob o risco de tornar-se impedido para julgar a controvérsia8. Árbitros que se envolvem de forma profunda numa fase conciliatória podem comprometer a sua liberdade intelectual para decidir determinado litígio, como bem afirma Ugo Draetta: "In other words, when arbitrators become too deeply involved in an attempt to bring the parties to agreement and that attempt fails, the result is that their intellectual freedom to decide the case is to some degree compromised, depending on the level of assistance they have given the parties and the kinds of suggestions they have made in order to induce them to settle. It should be borne in mind that the impartiality in question might be compromised not only by what arbitrators do or say, but also because of the information they may have acquired from the parties in the course of their involvement. Such information, in fact, might - consciously or unconsciously - have significant influence on the mental process by which the arbitrators arrive at their award in the event the parties' negotiations are unsuccessful"9. De forma idêntica (mas invocando a atividade da mediação), entende Jésus Almoguera, ao aduzir que os árbitros, quando engajados num processo prévio de mediação entre as Partes, tomam conhecimento das atitudes e conduta das Partes durante as discussões, podendo ser influenciados por uma ou outra Parte, perdendo assim o essencial requisito da imparcialidade para o exercício da função de árbitro. Assim, afirma o referido autor: "Arbitrators have to be -and appear to be- independent and impartial. The concern here is twofold. Firstly, an arbitrator, while acting as a mediator, may end up receiving information from one of the parties (or both) that such party would have never disclosed to an arbitrator. If mediation discussions do not bear fruit and arbitration is resumed, the information may be used by the arbitrator or, even worse, by the other party, and this would amount to unequal treatment. Secondly, the arbitrator that has previously attempted a settlement may be influenced by the attitude and conduct of the parties during settlement discussions, and this would render him partial"10. Conciliação e arbitragem não se opõem, não são rivais, mas ao contrário, se complementam. Como bem diz Charles Jarrosson, "arbitragem é, no final as contas, uma prolongação direta da conciliação"11. Ainda, diz o eminente Professor da Universidade de Paris II, que o "produto" da arbitragem é um ato jurisdicional que possui autoridade da coisa julgada, enquanto o "produto" oriundo da conciliação é uma transação entre as Partes, a ser tão somente homologada pelo Árbitro Único ou Tribunal Arbitral. Nesse sentido, a manifestação do árbitro na fase conciliatória é absolutamente natural, para não dizer salutar, como entende Ugo Draetta12, e não é estranha à sua missão jurisdicional, sendo a conciliação seguida de uma transação, natural no âmbito de uma arbitragem13. Diante do disposto no art. 21, parágrafo quarto da LArb e levando em consideração a relação de complementariedade entre conciliação e arbitragem, para que uma eventual fase conciliatória funcione no procedimento arbitral (a depender da pró atividade dos árbitros e da disposição das Partes para tanto) basta que haja uma administração cautelosa dessa fase, um management adequado dos árbitros em relação aos anseios das Partes, de modo a não contaminar a sua imparcialidade e independência14 e, é claro, promover o espírito conciliatório que merece prevalecer entre as Partes. __________ 1 Segundo Charles Jarrosson: "L'arbitre, à l'issue d'un procès, tranche et impose une solution à des parties qui n'en connaissent pas encore les termes lorsqu' elles s'étaient engagées à la respecter." (Les modes alternatifs de règlement des conflits: présentation générale in Révue internationale de droit comparé, 1997 (49-2), pp. 325-245. 2 "Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário". 3 Por seu turno, o art. 28 da LArb dispõe que: "Se, no decurso da arbitragem, as partes chegarem a acordo quanto ao litígio, o árbitro ou o tribunal arbitral poderá, a pedido das partes, declarar tal fato mediante sentença arbitral, que conterá os requisitos do art. 26 desta Lei". 4 Segundo Charles Jarrosson: "La fonction de l'arbitre et celle du juge sont idéntiques. Seule diffère son origine. Que la mission juridictionnelle de l'arbitre tire son origine de la volonté immédiate des parties et de celle, plus lointaine, de la loi, n'y change rien: l'arbitre dit le droit, il a la juridictio". (La notion d'arbitrage. Paris: LGDJ, 1987, p.101) 5 Axel Reeg descreve com clareza esse risco: "Engaging in settlement facilitation, for an international arbitral tribunal, may be a tricky issue. It may result in disaster if overly active arbitrators pushing hard for a settlement are successfully challenged and the tribunal falls apart". (Chapter 27: Should an International Arbitral Tribunal Engage in Settlement Facilitation?', in Patricia Louise Shaughnessy and Sherlin Tung (eds), The Powers and Duties of an Arbitrator: Liber Amicorum Pierre A. Karrer, (© Kluwer Law International; Kluwer Law International 2017) pp. 269 - 278). 6 Nesse sentido v. FOUCHARD, Philippe, GAILLARD, Emmanuel e GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996, p. 20. 7 Esse é o entendimento de Tania Almeida: "A conciliação tem sua realização e sua condução motivadas pela identificação de responsabilidades por evento(s) datado(s) no passado e pela correção presente de suas conseqüências. Ela explora o ocorrido, atribui juízo de valor ao fato e à participação dos atores envolvidos, assim como propõe a criação de soluções reparadoras e corretivas". (Mediação e Conciliação: dois paradigmas distintos, suas práticas diversas. Mediação de Conflitos: novo paradigma de acesso à justiça, Santa Cruz do Sul: Essere el mondo, 2015, p. 89). 8 Segundo Charles Jarroson: "Les rapports entre arbitrage et conciliation posent aussi le problème de la compatibilité entre les fonctions de concliliateur et d'arbitre. Un arbitre qui, postérieurement à sa nomination en tant qu'arbitre, accepte d'être nommé conciliateur est suspect (...)". (La notion d'arbitrage. Paris: LGDJ, 1987, p.195) 9 DRAETTA, Ugo. Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, p. 74. 10 ALMOGUERA, Jesús. Arbitration and Mediation Combined. The Independence and Impartiality of Arbitrators, in Miguel Angel Fernandez Ballester and David Arias Lozano (eds), Liber Amicorum Bernardo Cremades, (© Wolters Kluwer España; La Ley 2010) 11 Segundo Charles Jarrosson: "De plus, les rapports entre arbitrage et conciliation sont en principe clairs et harmonieux car les deux instituitions sont plus complémentaires que rivales, et, comme, on l'a écrit avec beaucoup de justesse l'arbitrage, en fin de compte est le pronlongément direct de la conciliation (...)". (La notion d'arbitrage. Paris: LGDJ, 1987, p.196) 12 Assim afirma o referido autor: "In conclusion, it could be said, in a general sense, that of the objectives of the arbitrators, of not the main one, must be to foster and facilitate a settlement between the parties as far is possible (.)". DRAETTA, Ugo. Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, p. 69. 13 Segundo Charles Jarrosson: "Une décision récente a parfeitement exprimé la complémentarité de l'arbitrage et la conciliation en déclarant qu'une intervention de l'arbitre n'avait été que la manifestation d'"un souci de rapprochement et de concorde qui n'était pas étranger à as mission, la conciliation suivie d'une transaction étant une issue naturelle de l'arbitrage". (La notion d'arbitrage. Paris: LGDJ, 1987, p.195). 14 Pertinente, nesse sentido, a opinião de Stefan Michael Kroll: "In light of the extensive written submissions preparing evidentiary hearings which are now prevailing in international arbitration proceedings, informing the parties about elements or the preliminary stages of the tribunal's decision-making process cannot be equated with a prejudgment of the case or raise concerns as to the independence of the tribunal". (Chapter 22: Promoting Settlements in Arbitration: The Role of the Arbitrator', in Patricia Louise Shaughnessy and Sherlin Tung (eds), The Powers and Duties of an Arbitrator: Liber Amicorum Pierre A. Karrer, (© Kluwer Law International; Kluwer Law International 2017) pp. 209 - 224.
terça-feira, 26 de maio de 2020

Entrevistas com potenciais árbitros

Um tema que raramente é tratado no âmbito da arbitragem doméstica brasileira1, mas com uma frequência maior na arbitragem internacional, diz respeito às chamadas entrevistas com potenciais árbitros. Não raro, um proeminente candidato ao posto de árbitro é convidado para uma reunião com o patrono de uma parte ou mesmo com a própria parte que tem a pretensão de indicá-lo em determinado procedimento2. Afinal de contas, na dicção do art. 13 da lei 9.307/96 ("LArb"), os árbitros devem ter a confiança3 das partes, o que faz com a que a indicação do árbitro represente uma das mais estratégicas e importantes decisões a serem tomadas na arbitragem4. Indaga-se: há algum impedimento de ordem legal ou ética para que essa entrevista seja realizada: negativa é a resposta. Com efeito, no Brasil os profissionais que atuam no âmbito da arbitragem acostumaram-se, num primeiro momento, com a seleção de nomes componentes de determinada lista de árbitros, de caráter meramente sugestivo, o que, aliás, é referendado pela legislação arbitral brasileira5. Por mais que tais listas contenham os currículos dos profissionais a elas integrados, as partes ou seus patronos, por insegurança ou exigência empresarial, convidam os potenciais candidatos para entrevistas prévias. Trata-se de prática já adotada no campo internacional, como informa Carlos Eduardo Stefen Elias6, e cuja transposição para o ambiente doméstico é tão normal quanto salutar. O assunto em foco não é regulamentado no Brasil. Não há disposições sobre o assunto na LArb, tampouco nos regulamentos de arbitragem, bem como nos códigos de ética das instituições arbitrais7. Não havendo uma norma que regulamente tal assunto, é de suma importância que os profissionais que atuam na seara da arbitragem doméstica brasileira, estejam atentos à prática internacional (consolidada há tempos), para a interpretação e/ou resolução de determinado ponto obscuro ou ausente de nossa legislação. E nesse sentido, que as presentes notas trazem à lume as diretrizes criadas, de forma detalhada, pelo Chartered Institute of Arbitrators ("CIArb"). Fundado em 1915, o CIArb é uma organização que congrega inúmeros profissionais atuantes na seara da resolução de disputas (arbitragem, mediação, dispute boards, inter alia) em todo o mundo. Baseada em Londres, conta com aproximadamente 16.000 membros distribuídos em 39 branches em 133 países. Possui, desde 2019, uma representação no Brasil (CIArb Brazil Branch) e, ao longo de sus existência, editou uma série de diretrizes acerca de práticas consolidadas no âmbito da arbitragem internacional e que podem servir como guia útil para a orientação de advogados, in-house counsels e árbitros envolvidos em procedimentos arbitrais8. A primeira diretriz do CIArb ("Guideline 1"), dispõe justamente sobre as entrevistas com potenciais candidatos ao posto de árbitro, tema destas notas. A Guideline 1 do CIArb divide-se em quatro artigos: artigo 1 - Princípios gerais; artigo 2 - Matérias a serem discutidas na entrevista; artigo 3 - Matérias que não devem ser discutidas; e artigo 4 - Entrevistas com potenciais candidatos a árbitro único ou presidentes de tribunais arbitrais. Entre essas regras, e seus respectivos comentários advindos do próprio CIArb, são dignas de destaque as seguintes: o mero fato de um potencial candidato ao posto de árbitro ser entrevistado pela parte ou por seu advogado, antes da efetiva indicação, não o torna impedido, não dando azo a impugnações; as entrevistas não devem ser realizadas em locais como restaurantes, bares, lounges, etc, devendo ser realizadas por meio de áudio ou videoconferência, e os potenciais árbitros não devem aceitar qualquer remuneração, dádivas ou presentes pela participação na entrevista. Além disso, é recomendável que a entrevista contenha uma agenda de tópicos previamente definida e acordada entre entrevistado e entrevistador; potenciais candidatos a árbitros devem discutir com as partes ou seus advogados, além de sua independência e imparcialidade, questões relativas à sua experiência profissional, atitudes adotadas, de uma forma geral, na forma de condução dos procedimentos, expertise na matéria em discussão, estudos publicados, inter alia9; é vedado aos potenciais candidatos ao posto de árbitro discutir matérias atinentes à causa propriamente dita, posições e argumentos das partes, fatos da disputa, enfim, tudo que tenha relação com o mérito da controvérsia. Se indagados para tanto, devem declinar de responder a tais questionamentos, diante de sua total impropriedade10; no caso de entrevistas com candidatos a árbitros único ou presidente de tribunal arbitral, tais candidatos só devem aceitar participar da entrevista na presença conjunta das partes e/ou seus advogados, excetuados os casos em que uma das partes/advogados prefiram não participar e não tenham objeção, após terem sido previamente informadas da entrevista. Em suma, pode-se afirmar com segurança que a realização de entrevistas com potenciais candidatos a árbitro constitui medida salutar, ainda que ex parte11, de modo a que a parte conheça a trajetória educacional e profissional do candidato, fazendo uma escolha que esteja em consonância com a confiança naquele candidato, no sentido técnico e moral12 e tendo a consciência de que os profissionais atuantes na área da arbitragem são pessoas que "atuam em um mercado e que cultivam e mantêm relações entre si, com seus clientes e com terceiros, com o objetivo de, nesse mercado, prosperar"13. Evidentemente, a cautela do potencial árbitro deve prevalecer, de modo a preservar sua independência e imparcialidade14 e, é claro, a higidez do procedimento arbitral. Nesse sentido, de vital importância, as Diretrizes elaboradas pelo CIArb, em especial a sua Guideline 1, objeto destas breves notas. __________ 1 Digno de nota a tese de doutorado defendida por Carlos Eduardo Stefen Elias, (Imparcialidade dos Árbitros. Tese de Doutoramento. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2014), assim como a obra Ricardo Dalmaso Marque (Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018). 2 Ugo Draetta entende que a parte, representada por seu in-house-counsel, deve ser envolvido na escolha do árbitro e participar de eventuais entrevistas com o potencial candidato: "he choice of a co-arbitrator should not be left exclusively to outside counsel, as ofter happens, but the in-house lawyer should be fully involved. In particular, if the candidates for co-arbitrator are interviewed, the in-house lawyer should take part in the interviews (within the permitted limits)" (Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, p. 42). 3 Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes. 4 De acordo com o preâmbulo da Guideline 1 do CIArb: "s the selection of arbitrators is one of the most important strategic decisions in arbitration, the parties may want to interview a prospective arbitrator before making an appointment instead of relying solely on publicly available information and personal recommendations" 5 Ver, nesse sentido NUNES, Thiago Marinho. As Listas Fechadas de Árbitros das Instituições Arbitrais Brasileiras. Arbitragem: Estudos Sobre a Lei nº13.129, de 26.5.2015 (org.: Francisco José Cahali, Thiago Rodovalho e Alexandre Freire). São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 543-558. 6 Nesse sentido, aduz o aludido autor: "ada a ampliação dos candidatos à função de árbitro em arbitragens internacionais e o desconhecimento, pelas partes (geralmente estrangeiras), do perfil desses candidatos, a prática da entrevista é aceita". LIAS, Carlos Eduardo Stefen. Imparcialidade dos Árbitros. Tese de Doutoramento. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2014, p. 95. 7 Ao menos em relação às instituições arbitrais mais utilizadas no Brasil, como o CAM-CCBC, CAMARB, CIESP/FIESP, não há disposições a respeito das entrevistas com potenciais árbitros. Apenas a CIESP/FIESP contém uma disposição que pode se relacionar com questões prévias à nomeação do árbitro. Nesse sentido, é a disposição do art. 6.2 do Código de Ética da referida instituição: "onsultado pela parte para verificar a possibilidade de ser indicado como árbitro, deve abster-se de efetuar qualquer comentário ou avaliações prévias do conflito a ser dirimido na arbitragem" Disponível aqui. Acesso em 18/5/2020. 8 Para a verificação das diretrizes editadas pelo CIArb e correspondentes comentários. Acesso em 18/5/2020. Outras instituições, como a Internacional Bar Association ("IBA"), também contém diretrizes a respeito do assunto, como é o caso da IBA Guidelines on Party Representation. A Guideline 8 contém orientações relativas à entrevista do árbitro na arbitragem internacional. Para verificação completa, ver. Acesso em 18/5/2020. 9 Na visão de Ugo Draetta: "In these preliminary meeting with the arbitrator, too, counsel must confine themselves to obtaining relevant information from that arbitrator about his or her availability, any potential conflicts of interest, and specific competence in relation to the subject matter of the dispute". (Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, pp. 28-29). No mesmo sentido é a opinião de Ricardo Dalmaso Marques: "Também por esse motivo, na arbitragem são admitidas entrevistas pelas partes com os possíveis árbitros, antes de sua efetiva indicação, não para discutir o mérito da disputa, mas para que as partes avaliem se determinada pessoa possui as qualidades esperadas para julgar aquele conflito". (Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018, p. 36). 10 Nesse sentido é a lição de Ugo Draetta: "It should also be borne in mind that, obviously, for an arbitrator to express his or her preliminary view on the merits of the dispute during the appointment process would be seriously improper and would result in the loss of the impartiality that is a prerequisite for an arbitrator (.)". (Behind the Scenes in International Arbitration. New York: JurisNet, 2011, p. 29). 11 Nesse sentido, a regra contida no caput artigo 8 da IBA Rules on Party Representation aduz com clareza: "8. It is not improper for a Party Representative to have Ex Parte Communications in the following circumstances (.)". 12 Ver nesse sentido, MARQUES, Ricardo Dalmaso. Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018, p. 35 13 ELIAS, Carlos Eduardo Stefen. Imparcialidade dos Árbitros. Tese de Doutoramento. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2014, p. 97. 14 De acordo com o preâmbulo da Guideline 1 do CIArb: "Accordingly, prospective arbitrators should take great care when participating in such an interview to ensure that it does not compromise the integrity of the arbitral process or their impartiality and Independence".
terça-feira, 28 de abril de 2020

A Nova Lei do Agro e a arbitragem

Em 07 de abril de 2020 foi sancionada a lei 13.986 ("Nova Lei do Agro"), a qual promoveu importantes comandos normativos com o intuito de fomentar o agronegócio nacional. A referida lei, decorre da conversão da Medida Provisória nº 987, de 1º de outubro de 2019, também conhecida como a "MP do Agro". Dialogada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em conjunto com o Ministério da Economia, o Banco Central do Brasil, entidades como a Aprosoja1, Abiove2 Febraban3, entre outros, a novel legislação estabeleceu regramentos definitivos para três institutos que já haviam sido trazidos ao ordenamento por intermédio da aludida MP do Agro, quais sejam o Fundo Garantidor Solidário4, o Patrimônio Rural em Afetação5 e a Cédula Imobiliária Rural6, inter alia. Criticada por alguns como uma legislação muito favorável ao credor7, a Nova Lei do Agro, ao revés, se lida e interpretada de forma ampla e sistemática beneficiando todos os players do agronegócio, sobretudo o produtor rural. Com efeito, a Nova Lei do Agro possibilita e expande o acesso aos produtores a novas modalidades de financiamento privado, como por exemplo a emissão de Certificados de Recebíveis Agrícolas ("CRAs"8), a participarem de operações de fusão e aquisição, entre outros negócios jurídicos de alta complexidade9, com fixação em moeda estrangeira. Além disso, fomentará o financiamento para construção de armazéns, ou financiar a compra de equipamentos agrícolas, entre outros. Em suma, as novas operações criadas pela Nova Lei do Agro não só fomentarão os negócios travados na seara interna, mas também no campo internacional, em que os títulos recebíveis do agronegócio poderão ser atrelados à moeda estrangeira, atraindo o ingresso de capital estrangeiro no Brasil em prol do agronegócio. Diante da complexidade de determinadas operações firmadas no bojo da Nova Lei do Agro e, notadamente, a inclusão dos novos e citados títulos de financiamento que certamente incrementarão as relações mantidas no campo do agronegócio, controvérsias poderão surgir e é inevitável que se pense a melhor forma de resolvê-las. Nesse momento, pode se afirmar, com toda a segurança, que a arbitragem surge como mecanismo mais apropriado para a resolução dessas disputas. Para tanto, é necessário que os títulos de financiamento a serem estruturados contenham cláusulas compromissórias, i.e, aquelas que remetem todos os eventuais litígios que decorrerem de tais instrumentos à arbitragem, nos termos da lei 9.307/96 ("LArb")10. Em casos, por exemplo, de emissões de títulos como Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio ("CDCA"), ou uma CRA, lastreadas em uma Cédula de Produto Rural ("CPR")11, emitidos em moeda estrangeira, como o dólar norte americano, por exemplo, depender do teor da controvérsia (como por exemplo, eventual alta da moeda estrangeira aplicável, a ensejar discussões sobre teoria da imprevisão, onerosidade excessiva, inter alia) é de absoluta certeza que ela poderá ser resolvida por profissionais com preparo técnico adequado não só no mercado agronegocial, mas no próprio mercado bancário e, é claro, no campo do Direito. É justamente a multidisciplinaridade presente na arbitragem, justificada pela boa escolha de árbitros, bem como pela escolha de uma reputada instituição administradora de procedimentos arbitrais, que fazem com que os players ao final da disputa se satisfaçam com o seu resultado, prosseguindo em seus negócios e garantindo segurança jurídica ao mercado. A adoção da arbitragem nesses casos pode ser benéfica, ainda que tais títulos de financiamento (a depender de suas disposições) possam ser objeto de automática ação executiva (a depender, necessariamente, da presença dos requisitos da liquidez, certeza e exigibilidade, conforme previsão do art. 783 do Código de Processo Civil12). Nesses casos, não haverá incompatibilidade do uso da arbitragem em tais títulos, eis que a sua execução será exercida pela via judicial, dada a ausência do chamado poder de imperium na arbitragem13. No entanto, em caso de o devedor contestar a dívida exequenda, deverá fazê-lo por meio da arbitragem, apresentando seus embargos executórios única e exclusivamente pela via arbitral, já que a matéria tocará o mérito da disputa, integralmente reservado à jurisdição arbitral. As questões atinentes à compatibilidade entre execução e arbitragem já estão pacificadas no Brasil, tendo não só a doutrina14 como a jurisprudência dos nossos Tribunais de Justiça como do Superior Tribunal de Justiça ("STJ") firmado entendimento de que ambos os institutos - arbitragem e execução possam conviver de forma harmoniosa15. O ponto principal que se pretende demonstrar nessas breves linhas, e sem qualquer pretensão de esgotar a matéria ainda sujeita a muito debate, é mostrar aos players do agronegócio a importância de se ter um mecanismo eficaz de resolução de disputas. Eficácia não significa que o conflito deva ser resolvido de forma rápida ou açodada. Eficácia deve ser lida no plano da eficiência. Resolução técnica e em espaço de tempo razoável, preservando as relações comerciais e estabilizando a cadeia produtiva agroindustrial. __________ 1 Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado do Mato Grosso. 2 Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais 3 Federação Brasileira de Bancos 4 Fundos de garantia constituídos e regulados por estatuto próprio, afetados ao pagamento de determinadas operações de crédito contratadas por produtores rurais (inclusive para financiamento de infraestrutura e conectividade rural). Os recursos do FGS não respondem por outras dívidas ou obrigações assumidas pelos devedores, alheias aos financiamentos. 5 Regime de afetação constituído perante o Serviço de Registro de Imóveis competente, que destaca um determinado imóvel rural, no todo ou em parte (exceto lavouras, bens móveis e semoventes), do patrimônio do seu titular, vinculando-o ao pagamento de dívidas consubstanciadas em Cédulas de Produto Rural (CPR) ou em Cédulas Imobiliárias Rurais (CIR). 6 Título de crédito cuja emissão é privativa de proprietários rurais, representativo de promessa de pagamento em dinheiro e, em caso de inadimplemento, de obrigação de entregar um imóvel sujeito a Patrimônio Rural de Afetação. 7 Notadamente em razão da perda do patrimônio afetado, sobretudo em casos que o valor do imóvel seja maior do que o da dívida (art. 28 da Nova Lei do Agro) 8 O chamado "CRA", título lastreado em direitos creditórios do agronegócio, constituem títulos de crédito nominativos de livre negociação lastreados em créditos agropecuários de emissão exclusiva das companhias securitizadadoras (regulamentado pela lei 11.076, de 30 de dezembro de 2004). 9 A respeito do nível de complexidade de tais operações, ver ZANCHIM, Kleber Luiz e NOVAES, Natália Fazano. Infraestrutura e Agronegócio: modelagem de projetos estruturados. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 18-27. 10 Diversas instituições arbitrais contêm modelos de clausulas compromissórias de arbitragem, dos mais diversos tipos, e podem ser consultadas nos respetivos websites das citadas instituições. A título de exemplo, citamos: (i) CAMARB:; (ii) CAM-CCBC:, inter alia. 11 De acordo com Marcos Hokumura Reis, "Criada pela lei 8.929, de 22 de agosto de 1994, a CPR representa uma obrigação de entrega, em data futura, de produtos rurais (ou subprodutos), conforme a quantidade, especificação do produto e local definidos no próprio título. Trata-se, portanto, de um título de crédito líquido, certo e exigível na forma expressa na cédula, passível somente de ser emitido por produtor rural, pessoa física ou jurídica, suas associações ou cooperativas". REIS, Marcos Hokumura. Títulos de financiamento do agronegócio e cláusula arbitral: coexistência pacífica e benéfica. In: REIS, Marcos Hokumura (Coord.). Arbitragem no agronegócio. São Paulo: Verbatim, 2018. p. 151-157. 12 Art. 783. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível. 13 O árbitro possui o poder de dizer o direito - a jurisdictio -, pondo fim à "crise do direito material", condenando o vencido a reaver o bem violado. A pretensão arbitral assimila-se assim a uma demanda, normalmente, de cunho condenatório. E tão somente condenatório, não executório, pois os atos de coerção são próprios da força pública, do imperium do juiz estatal. Nesse sentido, já dizia Charles Jarrosson: "La formule exécutoire ne peut être apposée sur les décisions de justice que par le juge étatique, à l'exclusion de l'arbitre, puisqu'elle ouvre la voie à un éventuel recours à la force publique. On ne comprendrait pas comment un arbitre qui tire son pouvoir juridictionnel de volontés privées, pourrait disposer ce cette force" (Réflexions sur l'imperium. Études offertes à Pierre Bellet. Paris: Litec, p. 268). 14 Ver, nesse sentido: REIS, Marcos Hokumura. Títulos de financiamento do agronegócio e cláusula arbitral: coexistência pacífica e benéfica. In: REIS, Marcos Hokumura (Coord.). Arbitragem no agronegócio. São Paulo: Verbatim, 2018. p. 151-157. O assunto ora tratado também foi objeto de debates na I Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do Conselho da Justiça Federal, que culminou com a aprovação do Enunciado 12: "A existência de cláusula compromissória não obsta a execução de título executivo extrajudicial, reservando-se à arbitragem o julgamento das matérias previstas no art. 917, incs. I e VI, do CPC/2015". Para uma noção geral e completa acerca do tema, cita-se a dissertação de mestrado de Fernanda Gouvêa Leão ("Arbitragem e Execução". Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2012, acessível aqui. 15 Nesse sentido, citam-se os seguintes julgados, ambos emanados do STJ: "Deve-se admitir que a cláusula compromissória possa conviver com a natureza do título [...]. Não é razoável exigir que o credor seja obrigado a iniciar uma arbitragem para obter juízo de certeza sobre uma confissão de dívida que, no seu entender, já consta do título executivo" (STJ, REsp 944.917/SP, 3ª Turma, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 19.08.2008); "É competente para decidir as questões de mérito relativas a contrato com cláusula arbitral, a câmara eleita pelas partes para fazê-lo. Tal competência não é retirada dos árbitros pela circunstância de uma das partes ter promovido, antes de instaurada a arbitragem, a execução extrajudicial do débito perante o juiz togado. Tendo em vista a competência da câmara arbitral, não é cabível a oposição, pela devedora, de embargos à execução do mesmo débito apurado em contrato. Tais embargos teriam o mesmo objeto do procedimento arbitral, e o juízo da execução não seria competente para conhecer das questões nele versadas" (STJ, MC 3.274/SP, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 13.09.2007). Vide ainda, o RESP 1.465.535, de relatoria do Min. Luiz Felipe Salomão: "(...) O Juízo estatal não terá competência para resolver as controvérsias que digam respeito ao mérito dos embargos, às questões atinentes ao título ou às obrigações ali consignadas (existência, constituição ou extinção do crédito) e às matérias que foram eleitas para serem solucionadas pela instância arbitral (kompetenz e kompetenz), que deverão ser dirimidas pela via arbitral (...)". STJ, REsp 1.465.535/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Luiz Felipe Salomão, J. 21/6/2016.
A arbitragem no Brasil, apesar de ter sua prática existente há muitos anos, consolidou-se a partir da edição da lei 9.307/1996. O anteprojeto de aludida lei, capitaneado por Carlos Alberto Carmona, Pedro A. Batista Martins e Selma Ferreira Lemes, se baseou em experiências alheias. No caso do Brasil, a base de apoio para a redação do anteprojeto de lei foi a antiga lei espanhola de arbitragem, bem como a Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da UNCITRAL de 19851. Tais experiências ditas alheias, praticadas em outros povos do globo podem ser benéficas para o aperfeiçoamento do direito nacional2, como o foi no direito arbitral brasileiro. O que o direito brasileiro fez, foi, na realidade, o uso do direito comparado para aperfeiçoar o seu próprio sistema jurídico. A força e importância do direito comparado conduzem a doutrina a classificá-lo como sendo mais do que um método, mas uma verdadeira disciplina jurídica autônoma3. Como ponderou Leontin-Jean Constantinesco, "no curso do tempo, os juristas se tornam cada vez mais conscientes do fato de que as experiências dos outros povos constituem uma reserva indispensável para qualquer reforma jurídica válida"4. Essa afirmação se coaduna com as metas do direito comparado e se encaixa perfeitamente no propósito das presentes linhas. O estudo da arbitragem (sobretudo a internacional) sob a perspectiva do direito comparado é fato relevante nesses dias em que, na ausência de uma regra adequada a ser a aplicada num conflito entre partes de diferentes nacionalidades, envolvendo negócios jurídicos típicos do comércio internacional, buscam os árbitros preencher uma lacuna do direito aplicável por meio de soluções advindas do direito comparado. É o que ensina Bénedicte Fauvarque-Cosson: "International commercial arbitration has become a particularly important context for the use of comparative law in recent years. A comparative approach not only brings a sense of legitimacy to the process, it is also useful as source of law. Arbitrators often like to refer to a variety of legal sources in order to justify the application of one national rule instead of another, or in order to fill a gap when there is no satisfactory solution in domestic law"5. Com efeito, por meio do direito comparado, é possível encontrar soluções que possam preencher eventuais lacunas jurídicas existentes em um determinado sistema legal, observando os diferentes sistemas legais, suas convergências e divergências, até que se chegue a um denominador comum. Foi num exercício de puro direito comparado, por exemplo, que a nova lei espanhola de arbitragem consolidou num único artigo de seu corpo legal, todas as possibilidades de caracterização da internacionalidade da arbitragem6. Da mesma forma, aplaude-se o legislador brasileiro, que, também num exercício de direito comparado, tomou por "empréstimo"7 o clássico conceito de "contrato internacional"8 de Henri Battiffol9, na redação da nova lei de franquias de 27 de dezembro de 2019 (lei 13.966/2019)10. Fez-se aqui o que alude Jan Smits, que o direito comparado preenche uma importante função no direito interno pois, influencia na eventual reforma de um direito nacional11, ou, como disse Edward Wise, possibilita e promove o "transplante" de regras dos diversos modelos estrangeiros para o direito nacional12. Pensa-se que o direito comparado sirva como verdadeira disciplina autônoma do direito, capaz de influenciar legislações e julgados em redor do mundo, aperfeiçoando tais legislações e julgados13. Um ponto que mereceria particular atenção de nosso legislador, diz respeito às regras sobre prescrição existentes no direito brasileiro e sua compatibilidade com a arbitragem14. Alguns pontos ainda restam obscuros e incompletos no direito brasileiro, merecendo destaque a comparação com diplomas como a Convenção de Nova York de 197415, bem como os Princípios Unidroit 201616 (em especial o capitulo 10 dos referidos princípios) assim como diversas legislações estrangeiras, que trazem um corpo de regras completas e específicas acerca das implicações do instituto da prescrição no âmbito da arbitragem17. É partir desse ponto que o direito comparado pode oferecer uma relevante contribuição ao direito interno brasileiro, pois, como assevera Marc Ancel, isso permitirá ao jurista uma melhor compreensão do direito nacional, cujas características particulares se evidenciam, muito mais, mediante uma comparação com o direito estrangeiro18. Mas como, tudo na vida, a cautela deve existir. A utilização do direito comparado dever ser cuidadosa, verificando-se, entre os sistemas legais, a existência de pontos comuns, pontos de divergência e pontos de convergência. Como diria Rodolfo Sacco, uma das maiores referências do direito comparado, "o comparatista [...] não pode transferir uma noção de um sistema estranho ao próprio sistema conceitual sem tomar certas precauções. Ele deve, isto sim, buscar nas regras operacionais os denominadores comuns dos diversos sistemas conceituais, para avaliar divergências e concordâncias"19. Espera-se que essas breves linhas tragam à lume as ideias desenvolvidas em outros povos, seja do ponto jurídico ou mesmo do ponto de vista sócio-político e econômico, de modo que o Brasil possa se aperfeiçoar ainda mais, aprimorando sua legislação, e sua forma de se portar perante o mundo. __________ 1 Ver, nesse sentido, STRAUBE, Frederico José. A Evolução da Arbitragem no Brasil Após a Lei 9.307/96 in Revista de Arbitragem e Mediação, Vol. 50. São Paulo: RT, (jul-set. 2016), pp. 177-183. 2 Nesse sentido, v. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4. No mesmo sentido, v. SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 49. 3 Sobre o objetivo do direito comparado, na condição de disciplina autônoma do direito, afirmam Mary Ann Glendon, Michael W. Gordon e Christopher Osakwe: "Comparative law then, as an academic discipline in its own right, is a study of the relationship, above all the historical relationship, between legal systems or between rules of more than one system" (Comparative Legal Traditions. Saint Paul: West Publishing, 1985. p. 7) 4 CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Tratado de direito comparado: introdução ao direito comparado. Edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 152 5 FAUVARQUE-COSSON, Bénédicte. Development of Comparative Law in France. In: REIMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 59-60). De igual forma é o pensamento de Emmanuel Gaillard: "Il n'est pas surprenant que le droit comparé soit, aux cotés de la jurisprudence arbitrale, des conventions internationales, et de tous les autres éléments permettant de montrer l'existence d'une acceptation générale de la règle, la première des sources auxquelles les arbitres ont recours lorsqu'ils souhaitent faire usage de la méthode des règles transnationales [...]" (Aspects philosophiques du droit de l'arbitrage international. Leiden/Boston: Les livres de poche de l'académie de droit international de l'Haye, Martinus Nijhoff Publishers, 2008. p. 84). 6 Nesse sentido, ver Lei 60, de 23.12.2003, revista em 2011. Texto integral em: https://noticias.juridicas.com/base_datos/Anterior/r2-l60-2003.html. Acesso em 30.03.2020. Ver ainda, nosso estudo publicado nesta Coluna no seguinte link: https://www.migalhas.com.br/coluna/arbitragem-legal/303150/arbitragem-domestica-vs--arbitragem-internacional. Acesso em 26/3/2020. 7 Nesse sentido, ao explicar a prática do "empréstimo" de regras jurídicas, em vez de inventar uma regra própria, diz Edward Wise o seguinte: "The history of law is characterized by prodigious amount of borrowing. Lawmakers are apt to use foreign models, with minor modifications, rather than invent entirely new rules". WISE, Edward M. The Transplant of Legal Patterns. The American Journal of Comparative Law, v. 38, p. 5, 1990 8 Nesse sentido, o art. 7º, § 2º da nova lei de franquia: "Para os fins desta Lei, entende-se como contrato internacional de franquia aquele que, pelos atos concernentes à sua conclusão ou execução, à situação das partes quanto a nacionalidade ou domicílio, ou à localização de seu objeto, tem liames com mais de um sistema jurídico." 9 O texto do parágrafo segundo do art. 7º da nova Lei de franquias adota o exato conceito de contrato internacional estabelecido por Henri Batiffol, que ensina que o contrato é internacional "quando, pelos atos concernentes à sua conclusão ou sua execução, ou à situação das partes quanto à sua nacionalidade ou seu domicílio, ou à localização de seu objeto, ele tem liames com mais de um sistema jurídico" (Contrats et conventions. Répertoire Dalloz de droit international privé, n. 9, p. 379, tradução livre). 10 Nesse sentido, vide nosso estudo publicado nesta Coluna no seguinte link: https://www.migalhas.com.br/coluna/arbitragem-legal/319283/a-nova-lei-de-franquia--arbitragem-e-contratos-internacionais. Acesso em 26/3/2020. 11 Nos dizeres originais do referido autor: "It is well known that alongside the scholarly pursuit of knowledge of similarities among and differences between legal systems, comparative law may fulfil a role in national legal practice. The most obvious example of this is the use of comparative law by national legislatures and courts in creating, reforming, and interpreting national law". SMITS, Jan M. Comparative Law and its Influence on National Legal Systems. In: REINMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: University Press, 2008. p. 514 12 Nesse sentido v. WISE, Edward M. The Transplant of Legal Patterns. The American Journal of Comparative Law (AJCL), v. 38, p. 1-22, 1990. 13 Já dizia René David que um dos pontos de utilidade do direito comparado é justamente conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4.). 14 O que há, até hoje, é a criticável norma prevista no art. 19, parágrafo 2º da Lei nº 9.307/1996. 15 Convenção sobre Prescrição em Matéria de Venda Internacional de Mercadorias, firmada em Nova York, em 14.06.1974. Íntegra em: https://uncitral.un.org/sites/uncitral.un.org/files/media-documents/uncitral/en/limit_conv_e_ebook.pdf. Acesso em 26/3/2020. 16 UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts 2016. Íntegra em: https://www.unidroit.org/english/principles/contracts/principles2016/principles2016-e.pdf. Acesso em 26.03.2020. 17 Exemplos disso, são: o Código Civil Italiano, o Código Civil Português assim como o Código de Obrigações da Suíça. A esse respeito, ver NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014. 18 ANCEL, Marc. Utilidade e métodos do direito comparado: elementos de introduçao geral ao estudo comparado dos direitos. Tradução de Sérgio José Porto. Porto Alegre: Fabris, 1980. p. 17-18 19 SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 67).
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Alteração de pedidos no curso da arbitragem

Um dos mais delicados temas tratados na arbitragem, tanto doméstica quanto a internacional, diz respeito à possibilidade ou não de alteração, emendas ou até mesmo a formulação de pedidos novos no curso de um procedimento arbitral. Tal polêmica pode ser explicada muito em razão do momento em que a demanda arbitral é estabilizada, o que ocorre quando o Termo de Arbitragem ou Ata de Missão1 são firmados. Com efeito, é exatamente neste documento - Termo de Arbitragem - que há a delimitação do objeto da lide e contém os pedidos das partes a serem, necessariamente, detalhados e quantificados nas alegações escritas (Alegações Iniciais e Resposta). Isso representa o que a mais autorizada doutrina denomina "estabilização da demanda"2. No entanto, exceções podem ocorrer. A ausência do fator rigidez na arbitragem em comparação com o processo civil pode justificar, a depender de determinados pontos durante o desenvolvimento do procedimento arbitral, a inclusão (no curso da demanda) de pedido originalmente não formulado no Termo de Arbitragem3. A esse respeito, o Regulamento de Arbitragem da CCI contém a regra disposta em seu art. 23 (4), segundo a qual: "Após a assinatura da Ata de Missão ou a sua aprovação pela Corte, nenhuma das partes poderá formular novas demandas fora dos limites da Ata de Missão, a não ser que seja autorizada a fazê-lo pelo tribunal arbitral, o qual deverá considerar a natureza de tais novas demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes". A interpretação da regra acima citada leva a crer que o procedimento arbitral possa conviver com modificações nos contornos objetivos da disputa após a assinatura do Termo de Arbitragem. Para tanto, é necessária autorização específica do Tribunal Arbitral ou Árbitro Único4, o qual deverá levar em consideração "a natureza das demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes". Mas, o que constituiria uma alteração de pedido no curso da arbitragem, a ensejar um pedido novo? A doutrina estrangeira, com foco nas arbitragens regidas pelo Regulamento da CCI, responde com clareza: "Normally, ICC arbitral tribunals do not consider a change in argument as a new claim. Typically, a new claim will imply that the relief requested is based on an entirely new ground. That new ground would need to be more than a mere correction or adjustment to the language of an existing request for relief. In a case administered under the 1998 Rules, the claimant sought to change its cause of action, preferring to argue the tort of deceit rather than contractual misrepresentation. The respondent objected by alleging that the claim was entirely new. In its final award, the arbitral tribunal found that the switch from contract to tort did not result in the making of a new claim. The tort argument was based on the same set of facts as the contractual argument. Furthermore, the claimant did not seek additional forms of relief. Accordingly, the sole arbitrator determined that the claimant's modification of its case merely amounted to a "new characterization of a claim already presented in the Terms of Reference". Similarly, adjusting the quantum of a quantified claim is not usually considered as amounting to a new claim"5. Em procedimentos arbitrais complexos, pedidos originalmente não formulados no Termo de Arbitragem, que surgem no curso da demanda, mas cujo fato gerador nasce no curso da arbitragem, podem eventualmente ser admitidos, dependendo da natureza de tais novas demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes. Em casos de disputas societárias, por exemplo, ajustes de auditoria realizados durante o curso do procedimento, podem ensejar a inclusão de novos pedidos que impliquem na majoração da disputa. De igual forma, em casos de construção, nada impede que um pleito adicional, decorrente de ajustes na obra realizados durante o curso da arbitragem, seja incluído no procedimento. Tudo dependerá, não apenas dos requisitos acima citados, mas que haja clara similitude fática dos pedidos novos em relação aos que restaram consignados no Termo de Arbitragem, mas, sobretudo, que haja intenso debate sobre tais novos pleitos, sem que haja distúrbios ao calendário do procedimento arbitral6. O exercício do contraditório nessas situações é de crucial importância, de modo a viabilizar a admissão do pedido novo, e afastar quaisquer alegações de nulidade dos atos praticados no procedimento arbitral7. Em suma, a questão relativa à alteração de pedidos no curso da arbitragem, apesar de constituir tema delicado, deve ser visto com cautela e caso a caso. Conforme já tivemos a oportunidade de expor em outro escrito desta Coluna8, os dispositivos do Código de Processo Civil não são direta ou automaticamente aplicáveis à arbitragem, e, na questão relativa aos pedidos, eventuais alterações no curso do procedimento podem representar uma exceção, e serem eventualmente acolhidos9. O mais importante de tudo é que o pedido novo não tenha o condão de gerar mais ônus às partes (como a imposição de propositura de novo procedimento arbitral, por exemplo10), tenha utilidade para garantir uma resolução completa e eficiente da disputa e, o mais importante, seja objeto de intensos e profundos debates entre as partes e o Tribunal Arbitral, assegurando o pleno contraditório e a ampla defesa das partes no procedimento arbitral. __________ 1 Nomenclatura utilizada pelo Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional - CCI. 2 "O termo de arbitragem tem na delimitação do objeto do litígio e do pedido das partes seus pontos mais importantes, que representam a estabilização da demanda. Apesar de ser a convenção de arbitragem o instrumento originário e vinculante da arbitragem, não se pode deixar de considerar que o termo de arbitragem tem o condão de reiterar os termos da convenção de arbitragem, delimitar a controvérsia e ressaltar a missão do árbitro, que deverá ater-se às suas disposições, para não gerar motivos para a anulação da sentença arbitral". (LEMES, Selma M. F. A função e o Uso do Termo de Arbitragem. Valor Econômico, p. e-2 - E-2, 08 set. 2005). No mesmo sentido, aduz Cândido Rangel Dinamarco: "Seja como for, o objeto do processo arbitral é determinado sempre pelo pedido endereçado aos árbitros, qualquer que haja sido o iter de sua formulação. Quando o compromisso não for claro, o pedido será especificado por solicitação dos árbitros, chegando-se com isso à estabilização da demanda (CPC, art. 294), que outra coisa não é senão a definitiva delimitação do objeto do processo arbitral. Quando tudo houver sido feito, havendo as partes ajustado concretamente um compromisso e nomeado os árbitros, vindo estes a aceitar o encargo, o instrumento desse ato complexo terá desde logo definido o objeto do processo arbitral que assim se instaura, cabendo ao conselho arbitral pronunciar-se afinal sobre a divergência pendente entre os contendores". (DINAMARCO, Cândido Rangel. Limites da sentença arbitral e de seu controle jurisdicional. In: AZEVEDO, Andre Gomma de (ORG.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação - volume 2. Brasília/DF/Brasil: Grupos de Pesquisa, 2003. p.19-33. 3 "Aliás, na arbitragem, a informalidade, a deformalização e a economia processual militam em favor desse entendimento. Não há, na arbitragem, a rigidez que se costuma encontrar no processo civil. A estabilização da demanda não se determina com a rapidez e com o rigor encontrados no processo estatal. Ao contrário, o desenrolar do procedimento pode nortear a alteração do próprio objeto controvertido, a necessidade de produção de provas não especificadas e a juntada de documentos a destempo". (MARTINS, Pedro A. Batista. Apontamentos sobre a lei de arbitragem. Rio de Janeiro/RJ/Brasil: Forense, 2008. p 227). No mesmo sentido, o entendimento de Eduardo de Albuquerque Parente: "Nesse prisma, também as alterações do pedido no curso do processo não obedecem ao esquema rígido do processo estatal, e sim aos preceitos inerentes ao sistema do processo arbitral, conforme vimos falando desde o início. (...) A compleição do processo arbitral, com seus influxos e princípios, não permite uma posição sectária no tocante à alteração do objeto do processo, suposto que pautado no contraditório. Evidentemente que deve haver limites, justamente para que o processo não se prolongue indefinidamente, assim como, ainda mais relevante, para que parte e árbitro não sejam surpreendidos por novas demandas". (PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo Arbitral e Sistema. São Paulo/SP/Brasil: Atlas,2012. p 174). 4 "The Terms of Reference also create a cut-off for new claims. Parties may bring new claims not made within the Request for Arbitration or the Answer only prior to the signature or approval of the Terms of Reference. Thereafter, new claims may be made only pursuant to Article 23(4), which requires the arbitral tribunal's authorization". FRY, Jason. GREENBERG, Simon. MAZZA, Francesca. MOSS, Benjamin. The Secretariat's Guide to ICC Arbitration, International Chamber of Commerce: Dispute Resolution Library, 2012 5 FRY, Jason; GREENBEERG, Simon; MAZZA, Francesca. The Secretariat's Guide to ICC Arbitration. International Chamber of Commerce, 2012, §3- 898. 6 Nesse sentido, é a lição de Karin Beyler: "Provided that the new claim is filed at a time that allows the other side to respond to it without seriously delaying the timetable that was previously agreed, there will not normally be any problems of due process and there would, therefore, be no reason not to admit the new claim, even if it could have been made earlier in the proceedings". BEYELER, Karin. Chapter 4, Part II: Commentary on the ICC Rules, Article 23 [Terms of reference], in Manuel Arroyo (ed), Arbitration in Switzerland: The Practitioner's Guide. Kluwer Law International, 2013, p. 786. 7 Nesse sentido: "Nulidade alguma haverá porém quando, apesar de toda essa irregularidade processual, o réu tiver tido oportunidade de defender-se dos novos pedidos ou causas de pedir, e particularmente quando a propósito ele houver efetivamente oferecido defesa pelo mérito, contestando, argumentando e trazendo elementos de prova. [...] Observado efetivamente o contraditório, exclui-se o prejuízo que os aditamentos ou alterações pudessem causar, e também por essa razão infraconstitucional não haverá a anular, o que é uma posição do princípio da instrumentalidade das formas" (ênfase acrescentada). DINAMARCO, Cândido Rangel. A Arbitragem na Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 146 8 Ver, notadamente, NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem, Dispositivos e Princípios do Código de Processo Civil. Coluna Arbitragem Legal. Link para acesso. 9 "O sistema processual civil brasileiro restringe a introdução de novos pedidos ao longo do procedimento. O art. 294 do CPC estabelece que o autor poderá aditar o pedido antes da citação do réu, enquanto que o art. 264, caput, determina que após a citação do réu o pedido somente poderá ser modificado com a concordância do réu. O parágrafo único do art. 164, por sua vez, estabelece que a alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo. Todavia, os arts. 264 e 294 do CPC não tem aplicação na arbitragem, onde o conceito de estabilização deve ser mitigado. Como bem ressaltado pelo magistrado, as formalidades típicas do direito processual civil não são cabíveis na arbitragem e o procedimento arbitral é inegável mais flexível que o processo judicial. É claro que em algum momento ocorrerá a estabilização da demanda também na arbitragem, mas há maior flexibilidade do que no processo judicial, até porque as partes têm maior autonomia na definição de tais questões. A autonomia da vontade tem papel de destaque na arbitragem, já que se trata de jurisdição privada, de origem contratual, onde as partes têm liberdade de escolher os julgadores, o direito aplicável à solução do litígio, assim como a forma de instituição e condução do procedimento arbitral. (LEMES, Selma Maria Ferreira; BARROS, Vera Cecília Monteiro de. Ação de anulação de sentença arbitral - Termo de arbitragem e estabilização da demandada: Comentários à sentença proferida no processo 583.00.2011.200971-0. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, ano 10, n.36, p.391-400)". 10 Nesse sentido. É a lição de Yves Derains e Eric Schawartz: "Although there is broad support for the proposition that, in order to avoid disruption and delay, there ought to be a moment in any arbitration proceeding when new claims should no longer be allowed, not all cases are the same, and in certain circumstances the admission of a new claim may not only be reasonable and legitimate, but preferable to the alternative, i.e., the commencement of a new Arbitration". DERAINS, Yves. A. SCHWARTZ, Eric. A Guide to the ICC Rules of Arbitration. Kluwer Law International, Second Edition, p. 267.
Em 27 de dezembro de 2019 foi publicada no Diário Oficial da União a lei 13.966, que revogou a antiga Lei de Franquia, lei 8.955/1994, e dispõe sobre o sistema de franquia empresarial ("Nova Lei de Franquia"). O novel sistema legal disciplina o sistema de franquia empresarial, "pelo qual um franqueador autoriza por meio de contrato um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual (...) e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício"1. Entre os diversos (e relevantes)2 pontos da nova legislação sobre franquia empresarial, merecem destaque os parágrafos primeiro e segundo do art. 7º do aludido diploma, que assim dispõem: "§ 1º As partes poderão eleger juízo arbitral para solução de controvérsias relacionadas ao contrato de franquia. § 2º Para os fins desta Lei, entende-se como contrato internacional de franquia aquele que, pelos atos concernentes à sua conclusão ou execução, à situação das partes quanto a nacionalidade ou domicílio, ou à localização de seu objeto, tem liames com mais de um sistema jurídico." Como já afirmara um autor em recente artigo publicado neste portal, a inclusão da arbitragem como método alternativo ao Judiciário para a resolução de controvérsias decorrentes dos contratos de franquia era desnecessária. Com razão, o autor do aludido texto afirma: "A segunda possível razão para o legislador ter inserido a despicienda previsão de "permissão arbitral" na Nova Lei de Franquia Empresarial adviria do entendimento de que o contrato de franquia representaria uma relação de consumo, sujeito, portanto, às normas do Código de Defesa do Consumidor, dentre elas o artigo 51, VII, que prevê a nulidade de cláusula contratual relativa ao fornecimento de produtos e serviços "que determinem a utilização compulsória de arbitragem"3. De fato, a crítica acima mencionada procede, uma vez que a Nova Lei de Franquia não precisava permitir algo que já é permitido pela lei 9.307/1996 ("LArb"), que, em seu art. 1º dispõe: "As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis". Por óbvio, a franquia empresarial, está englobada no âmbito dos direitos patrimoniais disponíveis, tal como dispõe o mencionado art. 1º da LArb. No entanto, em outros aspectos, o legislador andou bem. Somada ao estabelecimento de um caráter efetivamente empresarial, garantindo maior segurança jurídica à relação franqueador-franqueado, merece destaque a inserção expressa da franquia empresarial no âmbito internacional. Nesse sentido, conhecedor das especificidades que permeiam os contratos internacionais4, cujos efeitos jurídicos causam influência direta na própria internacionalidade do litígio, o legislador foi feliz ao conceituar "contrato internacional" no corpo da Nova Lei de Franquia, como se observa no parágrafo segundo do artigo 7º do referido diploma, supratranscrito. Nota-se um extremo cuidado do legislador ao conceituar contrato internacional, levando em consideração critérios objetivos importantes, como "atos concernentes à sua conclusão ou execução, à situação das partes quanto a nacionalidade ou domicílio, ou à localização de seu objeto, tem liames com mais de um sistema jurídico"5. Trata-se, inclusive, de disposição importante no sentido de definir a internacionalidade de eventual procedimento arbitral que venha a surgir, em razão de uma disputa nascida no âmbito de um contrato internacional de franquia. Isso porque, devido à natureza internacional do contrato, eventual procedimento arbitral que surja decorrente desse aludido contrato terá, necessariamente, status internacional6. Trata-se de premissa, inclusive, já confirmada por precedentes emanados do Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido, a Ministra Eliana Calmon, ao julgar a Sentença Estrangeira Contestada (SEC) n.º 349/JP, asseverou o seguinte: "Preliminarmente, afasto a alegação de que não se tem para exame contrato internacional. O contrato foi assinado pela requerida, empresa nacional, com empresa estrangeira, avença esta firmada no Japão e com indicação do foro japonês para dirimir as controvérsias. Logo não se trata de contrato nacional, e sim internacional"7. E, em havendo uma arbitragem puramente internacional, é imperioso que as partes envolvidas (partes, advogados, árbitros e instituição arbitral que eventualmente administre o procedimento) levem em consideração elementos cruciais que fazem com que a arbitragem internacional represente um método bastante peculiar em relação à arbitragem doméstica: (i) árbitros internacionais não estão necessariamente vinculados às disposições da lei da sede da arbitragem (lex arbitri)8, bem como não se vinculam a qualquer método de conflito de leis9; (ii) na arbitragem internacional, a lei escolhida pelas partes (no contrato) pare reger o mérito da controvérsia (lex causae e/ou a lex contractus). Trata-se de elementos amplamente aceitos na seara da arbitragem internacional10. Importante ressaltar que tais premissas acima colocadas, não se conflitam com quaisquer dispositivos da Nova Lei de Franquia. Pelo contrário, a lei é bastante clara ao facultar às partes a escolha do foro de um de seus países de domicílio11, privilegiando a ampla autonomia das partes, o que está em plena harmonia com fator "internacionalidade"12. Em suma, apesar de ser realmente desnecessária a inclusão do permissivo para utilização da arbitragem em contratos de franquia empresarial, o novel diploma encampa a importante definição da internacionalidade do contrato, o que, sem dúvida, traz segurança aos que eventualmente firmarem contratos de franquia no âmbito internacional, sobretudo no caso da existência de futuros litígios, os quais, por consequência lógica, se darão na seara da arbitragem comercial internacional, cujos efeitos jurídicos são mais abrangentes e peculiares do que os da arbitragem doméstica. __________ 1 Art. 1º da lei 13.966/2019. 2 A importância do novel diploma sobre franquia empresarial é discorrido com precisão por Luis Fernando Guerrero e Hugo Tubone Yamashita em recente artigo publicado no Jornal Empresas e Negócios ("A Busca por um Sistema de Franquias Definitivamente Empresarial"). Acesso em 18/1/2020. 3 GIUSTI, Gilberto. Nova Lei de Franquia Empresarial (13.966/19) - Qual a necessidade de dispositivo expresso "permitindo" a solução de conflitos por Arbitragem? Migalhas, edição de 30/12/2019. 4 Para uma noção geral das especificidades dos contratos internacionais ver ALMEIDA, Ricardo Ramalho. O Conceito de Contrato Internacional. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, v. 53, 2017, p. 355, 2017. 5 Curiosamente, o texto do parágrafo segundo do art. 7º da Nova Lei de Franquias adota o exato conceito de contrato internacional estabelecido por Henri Batiffol, que ensina que o contrato é internacional "quando, pelos atos concernentes à sua conclusão ou sua execução, ou à situação das partes quanto à sua nacionalidade ou seu domicílio, ou à localização de seu objeto, ele tem liames com mais de um sistema jurídico" (Contrats et conventions. Répertoire Dalloz de droit international privé, n. 9, p. 379, tradução livre). 6 A fórmula, segundo Antoine Kassis, é simples, eis que, considerando-se o contrato como internacional no sentido da utilização da regra do conflito de leis, bastaria somente saber se a internacionalidade do contrato esbarraria ou não em determinadas regras imperativas de um direito nacional. Ver, nesse sentido, KASSIS, Antoine. La réforme du droit de l'arbitrage international: Réflexions sur le texte proposé par le Comité français de l'arbitrage. Paris: L'Harmattan, 2008. p. 67 7 STJ, Corte Especial, SEC 349/JP, rel. Min. Eliana Calmon, j. 21/3/2007, DJ 21.05.2007, p. 528). De forma similar, a Ministra Nancy Andrighi, ao julgar o Recurso Especial n.º 712566/RJ, tomou como pressuposto básico para a caracterização da arbitragem internacional a internacionalidade do contrato, eis que todos os pontos de ligação da relação jurídica conectavam-se com leis de diferentes países, excluindo-se assim todas as características das quais são revestidos os contratos internos em que apenas uma única ordem jurídica é contemplada (STJ, 3.ª Turma, REsp 712566/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.08.2005, DJ 05.09.2005, p. 407). 8 Nesse sentido, a lição de Arthur Von Mehren: "In the case of judicial proceedings, sovereignty is focused; in the case of international commercial arbitrations, it is diffused or distributed. As a result, unlike the judge, the arbitrator has no lex fori." (Limitations on Party Choice of Governing Law: do they exist for International Commercial Arbitration?. The Mortimer and Raymond Sackler Institute of Advanced Studies. Tel Aviv University, 1986. p. 20). 9 Segundo Berthold Goldman: "we come across a remarkable innovation: the arbitrator is called upon to rule 'in accordance with (the rules of law) which he deems appropriate'. Thus, total freedom is left to him as to the choice of the rules of applicable law, and this choice will be direct: no allusion is made, indeed, to the passage by a rule of conflict, not only of an "arbitral" claim, but of any legal system." (La volonté des parties et le rôle de l'arbitre dans l'arbitrage international. Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité français de l'arbitrage, p. 482, 1981, free translation). 10 FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 881 11 Art. 7º, inciso II da Nova Lei de Franquias: "Art. 7º Os contratos de franquia obedecerão às seguintes condições (...) II - os contratos de franquia internacional serão escritos originalmente em língua portuguesa ou terão tradução certificada para a língua portuguesa custeada pelo franqueador, e os contratantes poderão optar, no contrato, pelo foro de um de seus países de domicílio". 12 Sobre o assunto, v. NUNES, Thiago Marinho. Reflexões sobre a Internacionalidade da Arbitragem in Revista de Arbitragem GEARB. Belo Horizonte: N. 02, Jul./Dez. 2012, p. 252.282.
Texto de autoria de Thiago Marinho Nunes e Mariana Gofferjé Pereira Este breve ensaio traça algumas linhas do que os autores produziram recentemente em estudo em homenagem ao professor Cláudio Finkelstein, intitulado "Custos e Despesas na Arbitragem Doméstica e Internacional"1. A disciplina legal acerca das custas e despesas no procedimento arbitral encontra-se no art. 27 da Lei de Arbitragem ("LArb"), que possui a seguinte redação: "Artigo 27. A sentença arbitral decidirá sobre a responsabilidade das partes acerca das custas e despesas com a arbitragem, bem como sobre verba decorrente de litigância de má-fé, se for o caso, respeitadas as disposições da convenção de arbitragem, se houver". É de fácil percepção que o dispositivo acima transcrito não impõe quaisquer restrições à autonomia privada das partes em se tratando de alocação das custas e despesas com a arbitragem. Nesse sentido, a parte final do art. 27 da LArb, enaltece a prerrogativa das partes de pôr em prática sua vontade, seja para dividir o ônus de arcar com o custo do procedimento, ou para impô-lo totalmente ao vencido, ou, ainda, para dispor segundo o seu próprio entendimento. Na ausência de comando expresso das partes, fica a decisão a cargo do tribunal arbitral quando da prolação da sentença, devendo observar eventual regulamento de arbitragem aplicável2. A despeito de a norma legal ser derrogável pelas partes, o comando do art. 27 é no sentido de que a decisão sobre a alocação de custas e despesas no momento da prolação da sentença arbitral consiste em um dever, de modo que o tribunal arbitral possui a obrigação de proferir decisão a esse respeito3. As partes têm, por consequência, direito a obtenção de uma decisão relativa à responsabilidade pelo pagamento de custos e despesas, ainda que não tenham se manifestado a esse respeito durante o procedimento4, salvo se pactuado de modo diverso. Quanto à definição de custos e despesas com a arbitragem, nos parece mais adequado utilizar o critério da centralidade como o que, em tese, o que melhor define o que integra a jurisdição do tribunal arbitral. Segundo tal critério, os custos e despesas com a arbitragem são os gastos indispensáveis, relativos à administração do procedimento. Possuem conexão de ordem primária, por exemplo: honorários dos árbitros, despesas de viagem dos árbitros e do secretário do tribunal arbitral, se o caso, honorários de eventuais peritos apontados pelo tribunal arbitral, despesas com a realização de audiências, incluindo custos de serviços de estenotipia, intérpretes, etc., e, finalmente, custos administrativos da instituição administradora do procedimento. Assim, o tribunal arbitral possui discricionariedade para, ainda quando ausente qualquer pedido expresso nesse sentido, alocar tais expensas, caso assim entenda. Nesse contexto, podem surgir dúvidas quanto a possibilidade de reembolso dos honorários contratuais, que são pactuados exclusivamente entre a parte e seu patrono, sem qualquer ingerência ou interferência da contraparte. A questão é de grande relevância, uma vez que o gasto com representação legal na arbitragem pode muitas vezes ser expressivo, podendo em alguns casos ultrapassar largamente o custo com o procedimento5. A problemática advém do fato de que, ainda que se possa argumentar que os honorários contratuais constituem expensas de conexão primária com o procedimento arbitral, a LArb não se refere expressamente aos honorários advocatícios de sucumbência e confere às partes ampla discricionariedade para escolher, se desejarem, quem as representará no procedimento arbitral (art. 21, §3o da LArb). Diferentemente do que ocorre no processo judicial, no qual presença do advogado é legalmente exigida6, na arbitragem não necessariamente o instrumento de mandato - se houver - virá acompanhado da prestação de serviços de advocacia. De mais a mais, o valor das expensas a título de honorários advocatícios contratuais dependerá de quem será o profissional contratado. É certo que as custas e despesas constituem um elemento material da sentença e assim sendo, a questão pode ou não ser controvertida. Caso as partes reclamem o reembolso de honorários advocatícios, concordando ou não quanto ao reembolso dos honorários contratuais, o tribunal arbitral automaticamente possuirá jurisdição sobre a questão controvertida, pois haverá pedido específico nesse sentido - ainda que unilateralmente. A dúvida reside no momento em que as partes não tenham formulado esse pedido na convenção de arbitragem, no termo de arbitragem e nem durante o procedimento. Seria possível afirmar que a contratação do advogado representa custo e/ou despesa com a arbitragem e que, consequentemente, a retribuição pecuniária do procurador está entre os valores que podem ser objeto de reembolso pelos árbitros7? Quando a lei processual, o regulamento de arbitragem aplicável8 ou as partes não dispõem expressamente quanto aos honorários contratuais, entende-se que tal gasto integra, ao lado das despesas com pareceristas, peritos, etc., por elas nomeados, o custo das partes. Na realidade, praticamente todas os gastos próprios de cada parte estão abarcados nessa categoria. Por esse motivo, não sendo os honorários advocatícios caracterizados como custas e despesas com a arbitragem, não há que se falar em reembolso automático dos honorários contratuais pactuados ex parte9. A mesma lógica se aplica aos honorários de assistentes técnicos e pareceristas. De fato, grande parte das vezes se trata de gasto razoavelmente incorrido, que encontra fundamento do direito fundamental da parte de defesa. Nada obstante, ainda que seja adequado no caso concreto o ressarcimento, a categoria não se encaixa na regra prevista no art. 27 da LArb ("custas e despesas com a arbitragem"). Logo, não havendo pedido expresso nesse sentido, em tese, não caberia aos árbitros condenar as partes ao reembolso de tais verbas10-11. Daí a importância de as partes se preocuparem com alocação de custas e despesas com a arbitragem já no início da relação contratual. O ideal é que esteja previsto na convenção de arbitragem o que será objeto de ressarcimento e em que medida ocorrerá quando da prolação da sentença arbitral. Veja-se que a ideia não é esgotar o assunto na redação da convenção, mas fornecer ao tribunal arbitral um ponto de partida, dotando-o ao menos das linhas mestras para a decisão sobre custas e despesas. Em todo caso, o tribunal arbitral deve invariavelmente ser diligente para solicitar esclarecimentos às partes sobre as suas expectativas, de modo a evitar surpresas desagradáveis. Caso a alocação dos custos e despesas processuais não tenham sido objeto de debate, ou a menos de pedido expresso das partes, é prudente que o tribunal arbitral as convide a se manifestar - ainda que isso não seja necessário, em razão da norma diretiva do art. 27 da LArb. Por fim, a sentença arbitral também deve dispor, "se for o caso", sobre "verba decorrente de litigância de má-fé". O legislador houve por bem explicitar que o tribunal arbitral possui o poder de condenar a parte litigante de má-fé ao pagamento de multa a esse título, se assim julgar adequado, sempre por meio da sentença arbitral final. Nesse sentido, correta é a lição de Carlos Alberto Carmona ao defender que a penalidade "comporta aplicação oficiosa"12, isto é, os árbitros podem mesmo diante da ausência de pedido específico das partes, impor a condenação a esse título. Cumpre salientar que tal pecúnia não se confunde com as custas e despesas com a arbitragem, pois eventual dano processual não se relaciona com a derrota ou o sucesso no mérito do procedimento arbitral13. Mariana Gofferjé Pereira é graduanda em Direito pela PUC/SP. Assistente jurídica em Trindade Sociedade de Advogados. __________ 1 NUNES, Thiago Marinho e PEREIRA, Mariana Gofferjé. Custos e Despesas na Arbitragem Doméstica e Internacional. Direito Internacional e Arbitragem - Estudos em Homenagem ao Prof. Cláudio Finkelstein (coord. CASADO FILHO, Napoleão, QUINTÃO, Luísa e SIMÃO, Camila). São Paulo: Quatier Latin, 2019, pp. 539-552 2 Nesse sentido v. FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 270). 3 Como pondera Gary Born, nos casos de omissão da lei processual aplicável, há presunção de autoridade do árbitro para alocar custas: "This [American, French and Swiss] pratice reflects a general principle that, absent contrary indication in the parties' agreement, internacional arbitrators should be presumed to have authority to make and award on the costs of legal representation as part of their overall remedial powers". (BORN, Gary B. International Commercial Arbitration. 2. ed. The Hague: Kluwer Law International, 2014, pp. 3089 e 3095). 4 Paralelamente, no que concerne o processo judicial, vige o mesmo entendimento quanto a expressão "a sentença condenará o vencido", presente na legislação processual desde a edição do Código de Processo Civil de 1939. O Enunciado no 256 da Súmula do Supremo Tribunal Federal pacificou àquela época a dispensa de pedido expresso das partes para condenação em honorários. O legislador manteve a mesma premissa ao longo do tempo, tanto no CPC/73, quanto no CPC/15, tornando-a enfim explícita no regramento vigente. Cf. FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 249, nota de rodapé 46. 5 Uma pesquisa conduzida pelo Chartered Institute of Arbitrators (CIArb) em 2011 concluiu que cerca de 74% dos custos incorridos pelas partes era com serviços advocatícios (CIArb Costs of International Arbitration Survey. 2011. Acesso 6 de maio de 2019). 6 Cf. art. 1o, I do Estatuto da OAB. 7 A colocação de Ricardo de Carvalho Aprigliano quanto aos pedidos de ressarcimento formulados pelas é pertinente. O autor difere o pedido principal de reparação por um direito lesionado, do pedido de reembolso dos honorários contratuais dispendidos com a representação da parte solicitante, e conclui que "(.) como tudo o mais que permeia o processo arbitral, a decisão de pleitear tal reparação integral integra a esfera de autonomia das partes, não se podendo presumir que ao pedido principal deva ser agregado um pleito de ressarcimento das despesas com a contratação de advogados se não houver formulação de pedido específico" (APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Alocação de Custas e Despesas e a Condenação em Honorários Sucumbenciais em Arbitragem. In: CARMONA, Carlos Alberto et. al. (eds.). 20 anos da Lei de Arbitragem: homenagem à Petrônio R. Muniz. São Paulo: Atlas, 2016, p. 685). Mais além, Aprigliano observa que alguns dos artigos do Código Civil (Lei no 10.406/2002) preveem expressamente que são devidos honorários de advogado (e.g. arts. 389, 395 e 404, do Código Civil). Nesses casos especificamente, a lei material encarrega-se de assegurar o reembolso dos gastos com a representação. 8 Referem-se expressamente aos honorários advocatícios art. 10.4.1, do Regulamento de Arbitragem da CAM-CCBC; art. 15.6, do Regulamento de Arbitragem da CAM-CIESP/FIESP; e art. 38(1), do Regulamento de Arbitragem da CCI. O Regulamento de Arbitragem da CAMARB é omisso. 9 Em sentido contrário v. BERALDO, Leonardo de Faria, Curso de Arbitragem: nos termos da Lei no 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2014, pp. 344-345. para quem a expressão do art. 27, da LArb abrange "(...) gastos com assistentes técnicos das partes, claro, ficam por conta de cada uma das partes e podem ser objeto de restituição ao final do processo. (...) os gastos com advogado estão, sem dúvida, dentro do conceito de 'custas e despesas com a arbitragem'". 10 Em sentido contrário, ver a lição de José Antônio Fichtner, Sérgio Nelson Mahnheimer e André Luís Monteiro Na sua visão dos referidos autores, a negativa do ressarcimento "(...) violaria o princípio maior de que o processo não deve ser fonte de prejuízo a quem tem razão e inibiria o litigante que sabe que está de acordo com a lei de utilizar todos os meios de defesa" (FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 274). 11 De todo modo, mister observar que não se trata de opor diretamente a quaisquer das partes os contratos celebrados com os advogados e experts da contraparte. Em verdade, o tribunal arbitral deve levá-los em conta como parâmetro e assim determinar o montante a ser ressarcido conforme o critério de alocação de custas e despesas adotado pelo tribunal arbitral, com base o princípio da relatividade dos contratos. Nesse sentido cf. FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 276. 12 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 375. Também se posicionam nesse sentido FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 270, pp. 280-281; e MARTINS, Pedro A. Batista. Apontamentos sobre a Lei de Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 292. 13 FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 281.
Os assuntos tratados no último escrito desta coluna basearam-se em matéria eminentemente de direito processual (litispendência e prevenção). Naquela oportunidade, algumas reflexões foram tecidas acerca da aplicação da regra processual da prevenção na arbitragem, dado o caráter principiológico da prevenção e sua utilidade no processo1. Tratar da aplicação do direito processual civil (mais precisamente, do Código de Processo Civil ou simplesmente "CPC") no âmbito da arbitragem constitui tema delicadíssimo e que deve ser tratado de forma extremamente cautelosa. Isso porque, como frisado no último escrito desta coluna, "no âmbito interno, por mais que os dispositivos do CPC não sejam aplicados à arbitragem, não há dúvidas de que seus princípios se aplicam". Não raro, as partes que contendem em procedimentos arbitrais invocam o CPC para a formulação de determinado pedido. Exemplo disso são as tutelas de urgência, requeridas, na maioria das vezes, com base no art. 300 e seguintes do CPC. Nesse caso, é preciso deixar claro que as normas contidas no CPC não se aplicam direta ou necessariamente ao procedimento arbitral, notadamente para a concessão de tutelas de urgência ou medidas liminares. Eventuais pedidos de urgência devem ser requeridos e apreciados pelo Árbitro Único ou Tribunal Arbitral com base no art. 22-B, caput e parágrafo único da lei 9.307/1996 ("LArb")2 ou de eventual norma regulamentar aplicável ao caso3. E, evidentemente, como base no princípio geral de cautela, imposto pela prática arbitral4. Da mesma forma, em matéria de apreciação de prova, não cabe a aplicação dos dispositivos do CPC previstos no art. 369 e seguintes do referido diploma legal. Como é cediço, é dever do julgador avaliar a pertinência da produção da prova requerida pelas partes, cabendo-lhe indeferir aquelas que não seriam necessárias ou nem mesmo úteis ao deslinde da controvérsia5. O princípio do livre convencimento é consagrado na prática da arbitragem, confirmada pela doutrina6 e jurisprudência brasileira7 e sem que haja qualquer vínculo dos dispositivos do CPC a respeito do assunto. Outro relevante ponto que tem suscitado debate no meio arbitral diz respeito à suposta aplicação do CPC diretamente à arbitragem diz respeito a aplicação das regras sobre honorários sucumbenciais previsto no referido diploma legal. Ainda que se entenda que o patrono da parte vencedora deva ser ressarcido pelos custos razoáveis que seu cliente despendeu durante o procedimento arbitral, não há automaticidade da aplicação do CPC no que diz respeito à alocação da verba sucumbencial. A arbitragem é regida pela LArb, em sistema autônomo, próprio, dissociado do CPC e, dependendo do caso, associada às regras constantes de determinado regulamento que seja aplicável. Salvo convenção em contrário das partes8, não se aplicam os dispositivos do CPC relativos à sucumbência na arbitragem9, mormente os percentuais estabelecidos naquele diploma processual10. Não se está aqui pretendendo afirmar que as regras do CPC sejam absolutamente inaplicáveis à arbitragem. Não há dúvidas acerca do caráter processual da arbitragem, que, como no processo civil, tem como fim o estabelecimento de uma prestação jurisdicional. Ambos os sistemas geram efeitos paralelos semelhantes11. Nesse sentido, cita-se a clássica lição de Francesco Carnelutti: "(...)Todavia, a meu aviso, com a arbitragem já estamos no terreno do processo, onde não creio que - diferentemente da transação e do processo estrangeiro - seja no caso de compreendê-la entre os equivalentes processuais. A razão está em que, à diferença do processo estrangeiro, o processo arbitral é regulado pelo nosso ordenamento jurídico não apenas no sentido de controle dos requisitos da sentença arbitral e dos seus pressupostos, mas também e acima disto, pela ingerência do Estado no desenvolvimento do próprio processo (...)"12. No entanto, suas estruturas sistêmicas são diferentes. À diferença do processo civil clássico, o processo arbitral é integralmente regido segundo a autonomia da vontade das partes, submetido a regras institucionalizadas (normalmente oriundas de regulamentos de arbitragem escolhidos de comum acordo pelas partes contendentes) e adaptadas ao caso concreto. Nesse sentido, Carlos Alberto Carmona defende que, de modo a evitar a processualização da arbitragem e sabendo-se que o árbitro, nas arbitragens domésticas, não está necessariamente vinculado aos dispositivos do Código de Processo Civil, pode ele "valer-se de mecanismos desconhecidos (porque o Código de Processo Civil não contempla), poucos conhecidos ou inacessíveis (porque a estrutura do Poder Judiciário tem conhecida deficiência econômica) ao juiz togado, de modo que o julgamento tenderá a ser de melhor qualidade"13. Como já dizia Donaldo Armelin, a arbitragem possui um sistema estrutural semelhante ao do processo civil, com a diferença de que quem julgará o litígio serão árbitros indicados pelas partes, imparciais e independentes, assim como o juiz estatal. Processo civil e arbitragem constituem, assim, "instrumentos heterônimos de solução de conflitos", na visão do saudoso mestre14. Em suma, reconhecer o caráter processual da arbitragem não significa obrigá-la a seguir o processo estatal. O CPC, repita-se, não se aplica à arbitragem. Seus dispositivos são próprios da máquina judiciária estatal e, à exceção dos seus princípios gerais, não se aplicam a qualquer arbitragem. __________ 1 Para acesso: Arbitragem legal. 2 Art. 22-B. Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário. Parágrafo único. Estando já instituída a arbitragem, a medida cautelar ou de urgência será requerida diretamente aos árbitros. 3 A título de exemplo, cita-se o art. 9.1 do Regulamento de Arbitragem da CAMARB: "O Tribunal Arbitral, mediante requerimento de qualquer das partes ou quando julgar apropriado, poderá, por decisão devidamente fundamentada, deferir tutela de evidência ou de urgência, cautelar ou antecipada". 4 "(...) Qualquer das partes, diante da existência de [1] perigo de dano irreparável a [2] direito aparente, cuja certeza está sendo objeto do processo arbitral, pode solicitar ao árbitro a concessão de medida cautelar que assegure a eficácia do resultado do processo principal". STERSI DOS SANTOS, Ricardo Soares; LAMY, Eduardo de Avelar; PETEFFI DA SILVA, Rafael. Revista de Processo - RePro. Vol. 37. Nº 213. Nov. 2012, p. 326. 5 Nesse sentido, dispõe o art. 22 da LArb: Poderá o árbitro ou o tribunal arbitral tomar o depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias ou outras provas que julgar necessárias, mediante requerimento das partes ou de ofício. No mesmo sentido, vide o art. 7.8 do Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC: "O Tribunal Arbitral adotará as medidas necessárias e convenientes para o correto desenvolvimento do procedimento, observados os princípios da ampla defesa, do contraditório e da igualdade de tratamento das partes". 6 Para Carlos Alberto Carmona: "Da mesma forma que o juiz togado, o árbitro deverá instruir a causa, ou seja, prepará-la para decisão, colhendo as provas úteis, necessárias e pertinentes para formar o seu convencimento" (ênfase acrescentada). CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. Um Comentário à lei 9.317/96. São Paulo: Atlas, 2009. p. 312-313. No mesmo sentido, é a lição de Pedro A. Batista Martins: "A produção da prova se sujeita a uma condição de admissibilidade, segundo os critérios de relevância e legalidade. [...] A relevância diz com a pertinência, a necessariedade e a utilidade da prova que a parte pretenda seja admitida no contexto do processo legal. Desse modo, o fato a provar deve ser relevante para o deslinde da controvérsia e, ademais, a prova há de se mostrar útil ao árbitro para fins da solução do caso concreto. A prova tem que resultar em um dado positivo suficiente a agregar valor ao conhecimento do árbitro sobre o fato controverso. Registre-se que é do árbitro o poder de admitir ou não as provas requeridas pelas partes. E não serão admitidas, necessariamente, todas as provas solicitadas. Tal não acarreta, como pensam e sugerem alguns advogados em arbitragem, violação ao devido processo legal e, consequentemente, a anulação da futura decisão arbitral". BATISTA MARTINS, Pedro. Panorâmica sobre as Provas na Arbitragem. In: JOBIM, Eduardo; MACHADO, Rafael Bicca (Coord.). Arbitragem no Brasil: aspectos jurídicos relevantes. São Paulo: Quartier Latin, 2008. Disponível aqui. Acesso em: 19 nov. 2019. 7 Nesse sentido: "PROCESSUAL CIVIL. ARBITRAGEM. AÇÃO ANULATÓRIA DE SENTENÇA ARBITRAL. INDEFERIMENTO DE REALIZAÇÃO DE PERÍCIA CONTÁBIL. NÃO OCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO. INVASÃO DO MÉRITO DA DECISÃO ARBITRAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO. 1. O indeferimento da realização de prova pericial pelo juízo arbitral não configura ofensa ao princípio do contraditório, mas consagração do princípio do livre convencimento motivado, sendo incabível, portanto, a pretensão de ver declarada a nulidade da sentença arbitral com base em tal argumento, sob pena de configurar invasão do Judiciário no mérito da decisão arbitral. 2. Recurso especial provido" (ênfase acrescentada). STJ, Recurso Especial no 1.500.667/RJ, rel. Min. João Otávio de Noronha, Terceira Turma, j. em 9.8.2016 8 Segundo Francisco Cahali: "Quanto aos honorários advocatícios, diversamente da sucumbência prevista no processo civil (art. 27 da lei 9.307/1996), não se faz menção expressa à sua imposição ao vencido. Porém, este custo, sem dúvida, integra a abrangente referência às "custas e despesas" com a arbitragem. Desta forma, salvo convenção ou regulamento em contrário, deve o árbitro também estabelecer na sentença a condenação ao pagamento da verba honorária em favor do vencedor. Podendo decidir como entender mais adequado, totalmente desvinculado dos critérios impostos pela legislação processual (incidência sobre o proveito econômico do vencedor), embora possam eles servir de parâmetro a ser ponderado na deliberação" (ênfase acrescentada). CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 219. 9 Ainda que se entenda, como frisou recente julgado emanado do Superior Tribunal de Justiça, que a sucumbência representaria um "princípio", conforme se infere da seguinte passagem do aresto: "Há situações em que, mesmo não sucumbindo no plano do direito material, a parte vitoriosa é considerada como geradora das causas que produziram o processo e todas as despesas a ele inerentes. Isso porque, para efeito de distribuição dos ônus sucumbenciais, ao lado do princípio da sucumbência, deve-se ter em mente o princípio da causalidade (...)". STJ, REsp nº 1.835.174-MS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJE 11/11/2019. 10 Nesse sentido, afirma Joaquim de Paiva Muniz: "Outro ponto controverso consiste na responsabilidade por custos do processo, incluindo honorários de advogados. Não existe sucumbência na arbitragem nos moldes do Código de Processo Civil, que prevê porcentagem do valor da causa pago como direito autônomo ao advogado. A praxe reside no painel arbitral condenar o perdedor a indenizar o vencedor por custos razoáveis com advogados e outros profissionais envolvidos, como assistentes técnicos, proporcionalmente ao resultado da sentença" (ênfase acrescentada). MUNIZ, Joaquim de Paiva. Guia Politicamente Incorreto da Arbitragem Brasileira: Visão Crítica de Vinte Anos de Sucesso. In: Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 50/2016, jul-set/2016, p. 213-227. No mesmo sentido, ver NUNES, Thiago Marinho e PEREIRA, Mariana Goffergé. Custos e Despesas na Arbitragem Doméstica e Internacional. Direito Internacional e Arbitragem - Estudos em Homenagem ao Prof. Cláudio Finkelstein (coord. CASADO FILHO, Napoleão, QUINTÃO, Luísa e SIMÃO, Camila). São Paulo: Quatier Latin, 2019, pp. 539-552. 11 O paralelismo dos efeitos das vias judicial e arbitral é assim explicado por Donaldo Armelin: "[...] até porque a via arbitral serve, assim como o processo civil, de veículo legal e constitucional para o acesso à Justiça, observando os mesmos princípios garantidores do devido processo legal guardadas as peculiaridades desses dois institutos" (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 79, out.-dez. 2007). 12 CARNELUTTI, Francesco. Sistema di diritto processuale civile. Pádua: Cedam, 1936. v. 1, p. 179 (tradução de Carlos Alberto Carmona em A arbitragem no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 19). 13 CARMONA, Carlos Alberto. O processo arbitral. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 28, jan.-abr. 2004. No mesmo sentido, Carlos Alberto Carmona, em aclamado estudo sobre a flexibilização do procedimento arbitral, ensina: "Há quem sustente que a fonte natural para a integração das regras lacunosas será a lei processual. Não creio nisto. Deve o árbitro orientar-se pelos princípios do direito processual, não por qualquer lei processual" (ênfase acrescentada). CARMONA, Carlos Alberto. Flexibilização do Procedimento Arbitral. In: Revista Brasileira de Arbitragem, ano VI, n. 24, out./dez. 2009, p. 9 14 Nesse sentido, afirma Donaldo Armelin: "[...] apresenta, no seu conjunto, estrutura semelhante a do processo civil, até porque ambos são instrumentos heterônimos de solução de conflitos, nos quais emerge a existência de terceiro desinteressado ao qual se atribui autoridade suficiente para o deslinde do litígio" (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 69, out.-dez. 2007).