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Análise e Conjuntura Política

Conjuntura política, social e econômica brasileira.

Alon Feuerwerker
Semanas atrás, a agitação em torno da anunciada instabilidade, talvez terminal, do governo Jair Bolsonaro trouxe um ânimo para a oposição, que andava meio entorpecida (natural, nas circunstâncias) e recebeu uma lufada de ar naquele 15 de maio. Baixada a poeira, a realidade se impôs: tudo continua mais ou menos do jeito que estava. A oposição tem um longo caminho pela frente, pois a hegemonia da direita leva jeito de ser menos provisória do que poderia parecer no pós-eleição. E os atritos intestinos no governo e no bloco político nascido da longa crise (aí sim, a palavra cabe) de 2013-18 são, como a diz palavra, internos. Os personagens em luta pelo poder são uma turma só. Algum governista está tão infeliz que apoiaria a volta do PT, ou algum satélite? Se você não vive no mundo da lua, e por isso respondeu negativamente, pode concluir fácil que as melancias estão chacoalhando e se ajeitando na carroceria do caminhão situacionista mas ele não está perto de capotar. E nunca esteve. Mais uma batalha de Itararé. A raiz da agitação está num fato e numa constatação. O fato: a eleição do ano passado teve um vencedor, o bolsonarismo, um perdedor, o petismo, e os dizimados, o chamado centro liberal e a social-democracia não propriamente de esquerda. A constatação: a relativa instabilidade deve-se a que os dizimados querem mandar nos vencedores. Mas isso só seria viável se os dizimados aceitassem juntar com os derrotados numa frente ampla para emparedar o governo. E o que exatamente têm a oferecer à esquerda, além da agenda do progressismo liberal? A liberdade de Lula? Mais oxigênio (recursos) para os sindicatos? A volta da reforma agrária? Mais orçamento para os pobres? Difícil. O dito centro está aprisionado pela direita pois as diferenças entre ambos não estão no que fazer. Estão no jeito de fazer. O pedaço da elite econômica e política que torce o nariz para Bolsonaro não tem alternativa à agenda dele. Daí que enquanto o apocalipse era anunciado o Congresso voltava a andar, e sintonizado. Então tudo são flores para o governismo? Não. Ele tem seu encontro marcado com a crescente turbulência política se a economia e os empregos não reagirem. Mas isso ainda leva algum tempo. E quanto mais o Congresso enrolar na reforma da previdência mais o presidente poderá dizer que a situação só não melhora por causa dos políticos. Sim, a tática tem limite, pois governos são eleitos para resolver, e não para explicar por que não resolveram. E a esquerda? Tem um problema, uma oportunidade e uma dúvida. O problema é o isolamento social. A oportunidade é a onda antiestablishment, quem sabe?, abrir possibilidades para o "novo de esquerda", pois a direita está no poder. A dúvida? Se dá prioridade a alternativas eleitorais próprias ou se apoia dissidências do outro lado. A resposta a essa última questão vai depender principalmente de que programa a esquerda vai levar às campanhas eleitorais do próximo ano e de 2022. Se optar por uma plataforma liberal-progressista, termo que a Ciência Política vem usando, será quase automático que não consiga se distinguir do tal centro, e será natural o apoio a terceiros. Mas se preferir um caminho mais raiz, explorando a polarização social e o custo do ajuste austeroliberal, a esquerda precisará construir dentro de seu campo alternativas eleitorais. Algumas viáveis, algumas destinadas a preparar o terreno para dali a dois anos. Quando enfrentará ou Bolsonaro ou um bolsonarismo recauchutado para agradar aos salões. * Os Estados Unidos do livre-comércio distribuem sanções e sobretaxas a torto e a direito, como cura para todos os males. E esta semana China e Rússia saíram em defesa da "globalização de face humana". O mundo não está para principiantes.
segunda-feira, 3 de junho de 2019

O capitão e a microinfluência política

As manifestações de rua da última semana funcionaram como termômetro acurado da governabilidade e consolidaram Jair Bolsonaro como principal (talvez único) líder nacional da microinfluência política, fenômeno que triunfou nas urnas em outubro passado derrotando o establishment e cuja resiliência insiste em desdizer os prognósticos de fatia expressiva dos formadores de opinião. O presidente, acossado pelo noticiário tóxico muitas vezes produzido pelo seu próprio entorno, saiu fortalecido de uma espécie de campeonato de mobilização popular instigado pelos opositores, que abraçaram a bandeira da educação para atacar a nova gestão, mas não produziram fato novo desestabilizador e tampouco credenciaram condutores eleitoralmente viáveis da pauta. Há quem diga que os reais ganhadores do Fla-Flu das ruas seriam, na verdade Sérgio Moro e Paulo Guedes, aclamados pelos ativistas no domingo passado. Faz sentido. São dois ministros e, portanto, funcionários de Bolsonaro. Enquanto as ameaças reais à continuidade do projeto bolsonarista de poder povoam a Esplanada dos Ministérios, os atores exógenos que miram a sucessão presidencial seguem digladiando pelo protagonismo da mediação do debate público. E nesse flanco reside possivelmente a mais perene fortaleza do presidente: a capacidade de desintermediar a interlocução com seus seguidores. Trata-se de um contingente numeroso (basta lembrar que 35% dos brasileiros avaliam a atual administração como boa ou ótima e outros 25% a consideram regular), com características sócio-econômicas heterogêneas e matizes ideológicos pulverizados. Um universo que permanece interagindo com a convocações feitas pelo Planalto e até agora segue cético aos apelos da política tradicional. É simbólico: os protestos do dia 26 foram boicotados pela ala mais moderada do PSL, por movimentos que ganharam relevância com o impeachment de Dilma Rousseff como o MBL e o VPR, pelo Novo e por importantes caciques do PSDB que se beneficiaram da onda bolsonarista em 2018. O resultado é conhecido. Perda súbita de alcance na trincheira de influência digital e constrangimento com as dúvidas levantadas acerca da lealdade ao governo ao qual dão, em alguma medida, sustentação. No mesmo contexto, Bolsonaro dribla os caciques partidários ao acenar de forma contundente (e controversa) aos cristãos conservadores, segmento cuja capilaridade de influência horizontal nas redes sociais tem surpreendido os peritos no tema. A mensagem transmitida na sexta-feira em que o presidente sugere a indicação de um ministro evangélico para o Supremo Tribunal Federal tem caráter cirúrgico para esse público, fiel ao novo governo e dotado de alta capacidade de disseminação orgânica de conteúdo, sobretudo nas correntes de WhatsApp. A má notícia para o governo é que a disrupção em curso traz consequências que, embora precificadas, tendem a colocá-lo numa constante montanha-russa com o Congresso Nacional. Vilanizado em praça pública sob os aplausos do bolsonarismo, o Parlamento reage emitindo sinais difusos e alarmantes para a tão desejada previsibilidade, valor caro ao mercado e aos investidores. Ao passo que dão o placar elástico de 70 a 4 em favor do governo na principal votação da semana no Senado (a MP da Reforma Administrativa), os congressistas endurecem, por exemplo, na concessão de crédito suplementar. É um aditivo vital para o custeio da máquina até o final do ano e que evitaria a ultrapassagem da linha da responsabilidade fiscal. Depende do Legislativo, portanto, a condução de uma agenda fundamental na equação mais elementar à mesa do Planalto. Mesmo revigorado com a energia das ruas, o presidente sabe que pode chegar à primeira ceia de Natal no cargo com o indigesto cardápio da insatisfação social, potencializada pelo binômio (falta de) trabalho/renda. É neste cenário que se vislumbra um campo minado, muito semelhante ao vocalizado recentemente por um dos próceres do Centrão, Paulinho da Força (SD). Se o Congresso aprovar as reformas e devolver vitalidade à economia, o presidente ganha tônus e pavimenta o caminho da reeleição. E tudo o que os parlamentares desejam é um chefe do Executivo mais frágil, que se veja obrigado a atravessar a praça dos Três Poderes a pé mais vezes. Com o impasse contratado, emerge uma figura estratégica para desequilibrar o xadrez: o presidente do STF, Dias Toffoli. Subitamente, o ministro foi guindado à condição de aliado do Planalto em recentes tentativas de institucionalizar a agenda positiva, que, a rigor, serve à governabilidade. Foi assim na reedição do "pacto" entre os poderes, em que Toffoli demonstrou estar mais confortável no figurino proposto que os representantes do Legislativo. Convém monitorar com lupa os próximos passos dessa aliança. Como Bolsonaro terá em curto espaço de tempo a tarefa de indicar pelo menos dois novos integrantes da Corte Suprema, a configuração de forças de seu governo, em especial no biênio 2021-22, passa inexoravelmente pelo apetite do Judiciário em avançar no campo investigativo e punitivo sobre o Legislativo. Como se vê, nada indica que o país navegará em mares serenos. Aliás, conforme decisão soberana do eleitor.
A conjuntura anda meio paradoxal. O governo começou a contornar a ameaça de as medidas provisórias no Congresso caducarem, o dito centrão não se mostrou tão coeso assim, ficou evidente que a cúpula do Congresso tem poucas saídas além de tocar a pauta econômica governamental, etc. Não fosse uma entrevista atrapalhada do ministro da Economia, Paulo Guedes, a coisa teria transcorrido em certa paz. Mas permanece uma tensão política resiliente. E a tensão tem características originais. Não é entre governo e oposição. É disputa essencialmente dentro do bloco político-social que elegeu Jair Bolsonaro com 46% no primeiro turno e 55% no segundo. Usando livremente a linguagem algumas vezes bem-humorada das redes sociais, é uma luta entre o bolsonarismo raiz e o nutella para decidir quem vai mandar no governo. Domingo, o primeiro foi às ruas e mostrou disposição de combate. Como a esquerda havia mostrado dia 15. Mas a esquerda está completamente fora do jogo, lançada à defensiva estratégica. É improvável que apoie os nutellas contra os raiz. Muito menos o inverso. E ontem ficou claro que estes últimos não se recolheram. Colocaram na rua menos gente que a esquerda? Mas a comparação talvez seja outra. Quem sairia de casa para defender a reabilitação do presidencialismo de coalizão? Quem levantaria uma faixa "governabilidade já!"? Esse é um problema do bloco que reúne os saudosos da hegemonia do agora Novo PSDB de João Doria, o bolsonarismo arrependido, o bolsonarismo escanteado no governo e o dito centrão: se essa aliança informal mostra musculatura na opinião pública, falta-lhe povo. Também porque não é sexy exigir que o presidente da República ofereça cargos em troca de apoio congressual ou defender que o Judiciário seja um freio ao poder do Bonaparte. A luta para reabilitar o presidencialismo de coalizão na preferência popular é inglória, pois rema contra uma lavagem cerebral de anos, para não dizer décadas. A reabilitação não é impossível, mas depende principalmente de o governo fracassar na economia e, junto com isso, a base bolsonarista concluir que a culpa foi do próprio Bolsonaro, por não ter seguido os trâmites tradicionais da política. Depende também de romper a aliança Bolsonaro-Guedes-Sérgio Moro. Daí o Congresso e o dito centrão estarem numa sinuca de bico. Têm duas armas possíveis para emparedar o governo: sabotar a agenda econômica e ameaçar com o impeachment. Para a segunda, falta-lhes rua. Contra a primeira, há o risco real de o tiro sair pela culatra: em vez de emparedarem, serem emparedados pela base bolsonarista. Não lhes resta por enquanto, além do choro e ranger de dentes, outra saída senão comparecer e votar. É um jogo arriscado para o governo? Em algum grau sim. As atribulações da família presidencial oferecem um potencial de oportunidade para o Legislativo explorar o "efeito Tim Maia", o "me dê motivo". Uma dificuldade do Congresso: para derrubar o presidente é preciso achar (ou fabricar) algo contra o próprio presidente. E sempre é bom lembrar: este não pode ser investigado por fatos anteriores ao início do mandato dele na Presidência. Está na lei e na jurisprudência recente. Claro que tudo pode mudar, e o constitucionalismo iluminista-criativo está aí para isso mesmo. Mas golpes exigem povo, e até agora não está claro quem poderia fornecer. A esquerda e o petismo sairiam às ruas para apoiar a assunção do vice Hamilton Mourão? Por enquanto improvável. A esquerda pode não ter lido o 18 Brumário, talvez ocupada demais com as pautas do marxismo cultural, mas sabe que a tragédia pode se repetir como comédia, ou "farsa". Da última vez em que topou isso, abriu espaço para uma década de governos tucanos em aliança com o centrão. E as forças hoje em luta interna contra o bolsonarismo raiz estiveram na linha de frente das ações pela derrubada do último governo petista. É tudo muito recente. Seria mais natural portanto adotar a tática de observar a disputa intestina no adversário. Ainda que a questão não esteja tão pacificada assim na oposição, com uma parte estudando posições mais, digamos, pragmáticas. Pois a esquerda governa estados e municípios que precisam de dinheiro. E o que o "centro" em busca da ressurreição teria a oferecer à esquerda? Eleições antecipadas? A liberdade e a elegibilidade de Lula? Um governo de caráter provisório que reabrisse o debate da agenda econômica? A rediscussão dos mecanismos de financiamento do movimento sindical? Um freio na Lava Jato? A conclusão é imediata: a turma que sonha com um bolsonarismo sem Bolsonaro não tem por enquanto garrafas suficientes para entregar.
Aqui e ali ouvem-se lamentos pelo desprestígio da dita arte da articulação política. Ou da habilidade política, na versão miniaturizada. Mas até os cachorros do Pavlov aprenderam a salivar conforme os estímulos certos, e é compreensível o presidente desconfiar da receita clássica. Dos dois governantes recentes experts em articulação política, um já completou o primeiro aniversário na prisão e o outro anda num entra e sai. Atenção: não discuto a justeza dos castigos impostos a Lula e Temer. Apenas constato. E na política discutir se as coisas são justas ou não talvez seja desperdício de tempo. Tanto pediram que aconteceu. O bonapartismo de Bolsonaro é produto de três décadas de esculacho e achincalhe da (articulação) política. Começou logo depois do fim dos governos militares. Quando José Sarney lutava por votos que evitassem ele ser deposto na Constituinte, o sarneyzista Roberto Cardoso Alves explicou: "É dando que se recebe". A política é assim desde que o mundo é mundo, e em qualquer lugar do mundo, mas foi a senha para o Robertão virar alvo dos milicianos recrutados pela opinião pública, na cruzada contra o pecado mortal rotulado de fisiologismo. E desde então pede-se ao presidente da hora que governe sem os políticos. Ou contra eles. E a coisa veio vindo assim, aos trancos e barrancos, até a Lava Jato aparecer para pescar nesse tanque. Quando toda contribuição eleitoral, declarada ou não, fica suspeita se o beneficiado defende algum interesse do doador, a consequência é o Ministério Público divertir-se num pesque e pague em que os peixes são os políticos. Mas também isso é produto de um trabalho sistemático e continuado de anos. O eleito defender interesses de quem o ajudou com dinheiro na campanha virou com o tempo grave violação ética. E aí, naturalmente, o financiamento eleitoral deslizou para as sombras e a clandestinidade. A clandestinidade é um caldo de cultura ótimo para o crime. E aconteceu. Os operadores clandestinos de recursos eleitorais passaram a querer, e pegar, um naco do negócio. E aí todo o sistema político foi contaminado e ficou vulnerável para valer. E veio a recessão de 2015, e foi dito ao povo que dinheiro tinha, mas infelizmente estava sendo desviado pela corrupção e pelo desperdício. No Brasil tem muito dos dois, mas se ambos desaparecessem instantaneamente o problema fiscal continuaria praticamente do mesmo tamanho. Mas vá você argumentar. Depois de anos de lavagem cerebral, o Brasil está convencido: um governo que não roube será capaz de prover serviços públicos de qualidade e manter as contas organizadas, algo essencial para o desenvolvimento. E isso sem aumentar impostos. Então, dada a situação econômica ruim - e provavelmente vai piorar, antes de talvez melhorar -, se o presidente deixar-se enredar numa teia política e for acusado de ser o responsável pelo sofrimento do povo, por ter cedido à velha política, sua excelência estará a caminho da guilhotina. O que não será um grande problema para a elite e a opinião pública, desde que Bolsonaro já tenha entregado a mercadoria, a reforma da Previdência. O ex-mito seria descartado a um custo quase zero, e outros abocanhariam a máquina rumo a 2022. É razoável Bolsonaro não achar graça nisso, pois é humano que queira continuar com a cabeça politicamente grudada no pescoço. E é natural ele imaginar que se sobreviver aos primeiros quatro anos poderá ganhar mais quatro. Tem sido a lógica desde que a reeleição foi introduzida. Daí o presidente resistir à divisão de poder com o Congresso. É mais saboroso ter tudo para si. E seria arriscadíssimo aparecer daqui a pouco como sócio de alguma confusão. Já bastam as dele e do entorno vindas do passado. Mas nestas ele não pode nem ser investigado. E o Legislativo tampouco vai conseguir achar saídas fáceis. Não tem clima social ou político para pautas bomba. A última ameaça do dito centrão é votar uma reforma da Previdência da lavra dos congressistas. E impor ao governo uma agenda econômica pró-mercado mas nascida no Legislativo. E lá são ameaças? Não será exatamente o que o governo quer? Um parâmetro sempre importante da política é a resposta à pergunta "se nada acontecer, acontece o quê?". Se nada acontecer, é provável que alguma reforma da Previdência passe? Sim. Ou seja, a relação custo-benefício de se meter agora numa negociação de divisão de poder com o Congresso seria péssima para o presidente da República. Mas a condição para o plano andar é outros fazerem o serviço legislativo. Ou virá a narrativa de que a confusão está atrapalhando a economia. O presidente parece acreditar que o Congresso não tem saída a não ser aprovar a pauta do mercado. Na dúvida, o governo vai tratar de reocupar a rua. Depois das maciças manifestações do dia 15, precisa restabelecer o equilíbrio. E assim pressionar o Congresso de fora para dentro. Temia-se isso da esquerda. Mas quem está fazendo é a direita. Comum acontecer. Pode dar errado? Só se a esquerda topar juntar com a direita ex-bolsonarista para levar ao poder alguém "de centro". Improvável. Ou se vier uma ruptura intestina. Mas isso ainda não está no horizonte próximo.  
Em disputas políticas encaixar a narrativa desejada é mais ou menos como encaixar a pegada no quimono do oponente no judô: meio caminho andado para deixar o adversário de costas no chão. E na política um ippon vale tanto quanto no tatame. Mas a política tem especificidades. A narrativa bem encaixada exige não ser percebida como narrativa, mas tradução única e fiel da realidade. Melhor ainda se a transição entre narrativas contraditórias acontece imperceptivelmente. Por exemplo, a narrativa dominante do momento conta que o governo Bolsonaro se divide entre ideológicos e pragmáticos. Estes vêm encaixando melhor a pegada no quimono adversário do que aqueles, e estão em certa vantagem. Mas quando foi mesmo que a luta contra a chamada velha política e o chamado fisiologismo perdeu de repente protagonismo em favor da ética da responsabilidade? E depois ainda dizem que o presidente é ruim de jogo. Será? Veja você que ele deixou para ceder espaço político-orçamentário quando isso está sendo quase implorado pelo establishment, em nome da centralidade da sacrossanta reforma da previdência social. Bolsonaro vai cometer o que a opinião pública chama fisiologismo, mas o custo político será quase zero. Ponto. Significa sem turbulências? De jeito nenhum. A turma do PSL, por exemplo, parece inconsolável por não ter como governar sozinha. Ou ocupar sozinha os cargos apetitosos. Acontece que o establishment já percebeu: não é suficiente mandar o mercado pressionar o Congresso, e junto intimidar as excelências com a ameaça de aplicar a força policial. Aliás, quanto mais cedo o ministro da Justiça notar isso melhor (para ele). O governo é meio neófito, mas leva jeito de ter entendido que governos só têm duas opções: governar ou colapsar. E é sempre bom lembrar: não se conhece poder que preferiu o suicídio político para manter a coerência na narrativa original. Na Argentina, os liberais antes celebrados como paradigma de coerência agora congelam preços e controlam câmbio. Vale a velha regra do Império, adaptada: nada mais parecido com um heterodoxo que um ortodoxo politicamente pressionado. Qual é o problema do presidente? Ele precisa fazer o caminho de volta da nova para a velha política sem perder substância, e mora aí a utilidade do chamado olavismo. Este serve para reafirmar a autenticidade. Como foram a política externa e as políticas sociais para Lula. Bolsonaro tem três opções: 1) rompe com o círculo militar e com a dita velha política e naufraga amarrado ao leme da nau olavista, 2) rompe com o olavismo e aceita virar um pato manco tutelado com menos de seis meses de governo ou 3) segue o jogo. Fica claro agora que a recentíssima ofensiva olavista-bolsonarista contra os generais tratou de colocar uma barreira de contenção ao namoro da elite com um certo sonho bonapartista-institucional-militar-chique. Onde está o problema? As duas análises de conjuntura anteriores chamaram a atenção para o efeito político das dificuldades econômicas. Um governo de base gelatinosa e conflagrada fica mais vulnerável quando falta pão. As projeções econômicas têm sofrido, mas não principalmente por causa de incerteza nas reformas. É porque contrai a demanda agregada. E quanto mais certeza de que vai haver reformas, mais o consumidor temerá o arrocho, e mais se retrairá. Pelo menos no curto prazo. As projeções econômicas aceleraram o mergulho exatamente quando a reforma da previdência ganhou mais musculatura e deu sinais de que vai passar. O que está fazendo a economia sofrer não são as incertezas, é a certeza do dinheiro pouco. O risco para o governo é alguma hora consolidar a narrativa de que a economia vai mal por causa da zorra política. Por enquanto as estatísticas mostram que o eleitorado está lançando a culpa na conta do PT. Mas alguma hora o centrismo hibernante vai dizer que a bagunça bolsonarista é a culpada. Será uma narrativa conveniente, pois a opção seria admitir que a política econômica talvez não seja tão boa assim. E isso nem pensar. Mais ou menos o que está acontecendo na Argentina. A narrativa preferida no péssimo momento eleitoral da direita é "a economia não colapsou por causa das políticas do Macri, mas pelo medo da volta da Cristina". Será? Nas receitas como a de Paulo Guedes, as coisas costumam piorar antes de melhorar. Não sei quanto de fato Bolsonaro curte o olavismo, mas o presidente parece acreditar que precisa do radicalismo e do histrionismo dele para atravessar o tempo das vacas magras.  
O senso primeiro sobre o governo Bolsonaro sustentava-se em duas convicções: 1) sólidos fundamentos, massa crítica intelectual e gerencial na economia e 2) dificuldades potenciais na política, causadas principalmente pela dispersão (ainda maior) do quadro partidário-parlamentar. Havia também a percepção, bem difundida, de que a segunda poderia atrapalhar a primeira. A "velha política" iria colocar obstáculos a uma aprovação rápida da reforma da previdência e isso poderia enervar o mercado, atrasando o necessário despertar do instinto animal empresarial. Um semestre depois, a política vai razoavelmente conforme desejado. As espumas do noticiário podem conduzir ao erro na análise, mas a agenda previdenciária tem maioria potencial para ser aprovada com alguma tranquilidade. Depende de uma mínima execução política, muito provável. Quem vendeu uma tramitação rápida vendeu terreno na lua, mas só é problema para quem comprou. O restrospecto das últimas reformas da previdência indica que a atual está muito dentro do prazo. Vai ser algo emagrecida mas tem imensa possibilidade de passar na Câmara, e ir com músculos ao Senado. A economia das mudanças será crescente no tempo, então a esperança de elas induzirem a reação econômica está baseada centralmente na teoria das expectativas. O #jáestádandocerto substituiria o #temdedarcerto. E, como num balanço de parquinho, pequenos impulsos criariam um movimento amplo. Mas o andamento do plano convive com um ruído, que parece crescente: a economia não apenas não reage, mas traz sinais de sofrimento progressivo. As previsões de crescimento do PIB descem os degraus, a confiança do consumidor idem, o desempenho da indústria decepciona. Rareiam boas notícias. E tem o nervo exposto do desemprego. Dá a impressão de ter virado estrutural na casa de dois dígitos. E é razoável aceitar que a primeira reação do consumidor ao avanço da reforma da previdência seja de cautela. Se vai ser mais difícil se aposentar e vai ser preciso poupar, a prudência tem lógica. Onde está então o risco? As dificuldades econômicas trazerem desalento, isso bater na popularidade do presidente e do governo, e daí a falta de base própria sólida no Congresso começar a elevar demais o custo, inclusive orçamentário, de disciplinar a maioria. O risco que o governo corre é atolar. Se por enquanto o alarido em torno das atrações do circo mantém a plateia entretida, e a torcida mobilizada pelo seu gladiador-chefe (é o que se filtra das redes sociais), uma hora o pão vai ter de aparecer. Daí que o Planalto esteja à cata de boias econômicas.
A satisfação com produtos ou serviços pode ser medida pela equação S = En - Ex. Satisfação é entrega menos expectativa. Uma entrega bacana produz frustração se a expectativa veio hipertrofiada. Vendas brilhantes saem pela culatra se o entregue fica abaixo do prometido. O governo Bolsonaro nasceu da urna produzindo alta expectativa em dois campos: economia e segurança pública. Duas variáveis que vão definir o tanto de satisfação ou insatisfação do eleitorado quando o presidente se apresentar à reeleição, ou o bloco de poder dele aparecer em 2022 com outro nome. São variáveis importantes também ao longo do mandato, especialmente numa política como a brasileira, cada vez mais habituada a surpresas. Melhora econômica não produz automaticamente avanços na segurança. Uma prova foram os governos do PT. As regiões mais dinâmicas do período, no Nordeste, experimentaram piora expressiva na segurança. As exceções, como Pernambuco, só confirmavam a regra. Mas melhora econômica, principalmente quando traz muito emprego, tem efeito indireto positivo sobre outras variáveis. Dinheiro no bolso ajuda a resolver, ou relativizar, desafios não estritamente econômicos. O contrário também é verdade: na casa em que falta pão todos brigam e ninguém tem razão. Na segurança, até agora, o governo parece colocar as fichas em mudanças legais de endurecimento penal. Uma aposta arriscada, mas tem sua vantagem: ainda que os índices não melhorem, a violência legal - ou nem tanto - contra o crime é um anestésico coletivo poderoso. Mesmo que só até certo ponto. E sempre será possível culpar os governadores. Ainda que a escolha do ministro da Justiça tenha trazido o tema para mais perto do presidente da República. Vital mesmo é a economia. Nesta, a velocidade de criação de empregos. E a qualidade deles. Qual é a aposta do governo? Que a reforma da Previdência melhore decisivamente a expectativa fiscal, e portanto reduza juros, e portanto desperte o otimismo do investidor e do consumidor. Onde está a dúvida? Se vai funcionar do jeito prometido. Supondo que haja mesmo uma reforma da Previdência, o dinheiro poupado vai ser usado para abater dívida? Ou o governo e o Congresso vão preferir engordar o caixa para investir, e assim melhorar o humor das bases eleitorais rumo a 2022? Ajuda a austeridade o fato de que o resultado previsto no curto prazo pelo projeto de reforma é relativamente menor. A poupança será crescente com o tempo. Mas um governo sem sustentação congressual própria fica mais vulnerável às demandas para gastar. E haverá pressão social por mais investimento e gasto público, para compensar menos dinheiro no bolso dos afetados pela reforma. Porque déficit público é sinônimo de superavit privado. Não custa lembrar. Outro detalhe: a redução drástica do déficit depende também de o BNDES devolver uma dinheirama ao Tesouro. Mas isso implica menos dinheiro para o banco emprestar. Aí também a ideia é o capital privado interno e principalmente externo ocupar o espaço. No bottom line, tudo afinal depende disso. Uma característica do debate econômico no Brasil é operar com dois motores estáveis: o efeito-manada e a interdição. A palavra de ordem do Plano Cruzado nos anos 80 volta de tempos em tempos. "Tem que dar certo (não deveria ser 'tem de'?)". E as (más) experiências pregressas nunca servem de lição. As ideias econômicas oficiais entre nós nunca admitirem crítica, apenas autocrítica a posteriori. Os flancos fiscais abertos do Cruzado eram só nota de rodapé, até a coisa afundar. O mesmo problema foi subestimado no Plano Collor. O "populismo" cambial do Real era #mimimi, até o desabamento de 1999. Esses exemplos tratam de tempos algo antigos, mas vale a pena lembrar. A interdição do debate e o efeito-manada vêm em doses ainda mais cavalares quando a base do governo é gelatinosa, e é o caso agora. O ministro da Economia tem o apoio unânime da opinião pública (da), então só se discute o custo de aprovar a coisa no Congresso. É o único ponto da pauta. Tudo facilitado pela demonização do papel do Estado. Ainda que nunca tenha havido ciclo econômico benigno no Brasil sem participação decisiva estatal. E dos presidentes eleitos após a redemocratização o único que acabou bem foi Lula. Os demais? Ou não acabaram ou acabaram mal. Quando o debate econômico vira culto religioso, a favor, o próprio governo se torna o mais vulnerável ao risco. Ainda que no começo ele não perceba isso.  
Regra na política: um lado querer exatamente o que acusa o outro de tramar, quando o outro está no poder. O governo Bolsonaro, por exemplo, adoraria achar um caminho para alinhar completamente o Supremo Tribunal Federal ao Executivo. Há iniciativas abertas, como a CPI da #LavaToga, ou a amputação, escondida na reforma da Previdência, da chamada Lei da Bengala. E há o sonho de mudar a aritmética do STF ampliando decisivamente o número de ministros. Era previsível, e foi previsto: o maior risco político de 2019 seria a frustração do Bonaparte, atrapalhado pela profusão de núcleos de poder numa Brasília desorganizada pela fraqueza dos governos Dilma II e Temer. Parece uma aberração histórica, mas só parece: o Bonaparte da hora precisa dar um jeito de o seu "Congresso de Viena" não ficar só no papel, mas para tanto é essencial concentrar a força. E o único jeito é suprimir os focos de resistência. E o STF é a bola da vez. Os últimos dois bolsões resistentes ao bonapartismo-raiz são o STF e o assim chamado centrão. Mas é difícil enquadrar o segundo se o primeiro continua a ser uma válvula de escape. Então é hora de colocar os tanques para rodar. A dúvida? Se a empreitada vai acabar como a Batalha de Berlim (1945), na capitulação incondicional do inimigo, ou como a de Moscou (1941-42), com a necessidade de recuo. Ou se, desta vez, a Lava-Jato vai encontrar sua Stalingrado (1943). O STF precisou bater em retirada da manobra do chega-pra-lá na imprensa. O acordo essencial entre esta e o bolsonarismo vai firme: se não mexerem na liberdade de imprensa, lato sensu, façam o que quiserem. Há lamúrias localizadas, por o combate à dita velha política atrapalhar a reforma da previdência, mas é só. No resto, vale o risco que a faca fez no chão. E o Planalto foi inteligente, não vacilou: aproveitou para declarar seu amor à imprensa livre. E marcou uns pontinhos. Do episódio todo, a constatação de estarmos um pouco mais avançados que os americanos na partidarização aberta das instituições. Ali não teve como acusar formalmente Donald Trump de conspirar com os russos para se eleger, pois infelizmente os investigadores não acharam nenhum traço de prova. Agora, a oposição democrata agarra o fio desencapado da "obstrução". Mas nem disso Trump foi acusado após a longa caçada. Como tuitaria ele próprio, SAD! Se fosse aqui. Por isso, os ministros-alvo no STF preferem não ficar esperando sentados, na ilusão de que "as instituições estão funcionando". Eles mesmos convivem há anos com o sepultamento do in dubio pro reo e do falecido art. 5º, LVII da Constituição, o que só define a culpa após o trânsito em julgado. Entre outras flexibilidades jurídicas. Mas, se o sistema de freios e contrapesos está desligado, uma hora a conta vai chegar. E chegou. Agora é correr atrás do prejuízo. Como vai acabar? E quando? É improvável que o conflito aberto entre poderes esteja perto de terminar, talvez estejamos mais perto do fim do começo que do começo do fim. Mas o Planalto pode suportar bem uma loga queda de braço com o outro extremo da Praça dos Três Poderes, se a terceira ponta do triângulo entregar a mercadoria. Nesse jogo de três, ganha quem junta dois. O Planalto pode aumentar o fogo que esquenta a chapa do Supremo mas precisa ao mesmo tempo fazer a coisa andar no Congresso. Se não, virá automaticamente o incremento do nervosismo no mercado financeiro, que hoje em dia é o parâmetro decisivo para as ações governamentais. Vide as idas e vindas do aumento do diesel. Bonapartes não podem dar a impressão de estarem manietados. * Enquanto olavistas, militares, lavajatistas, liberais, garantistas, neo-iluministas e outros bichos se engalfinham na disputa pelo poder, a oposição, inteligentemente, assiste de fora e cuida de seus próprios assuntos. Não tem problema dar uns pitacos, mas o mais arriscado seria se meter nessa briga de facções. #FicaaDica.
Jair Bolsonaro está como o malabarista que precisa manter em pé e rodando muitos pratinhos sobre varetas: precisa ao mesmo tempo manter o apoio popular, do mercado financeiro, das Forças Armadas e da imprensa. Ah, sim, e conquistar um Congresso que o presidente também precisa de vez em quando esmurrar, para continuar falando ao povão. Não seria missão fácil para um calejado. E nessa escola Bolsonaro é calouro. No essencial, entretanto, os pratinhos estão rodando. A variável a medir é a estabilidade do equilíbrio. Se perturbações localizadas tendem a desarrumar completamente a cena ou se a natureza trabalha para o sistema sempre se reequilibrar. Desde que a perturbação fique dentro de certos limites, o cenário até agora é de equilíbrio estável. Em linguagem matemática, a segunda derivada por enquanto é positiva. Ou seja, perturbações localizadas não desestabilizam o conjunto. Por duas razões. A primeira: não há alternativa imediata real de poder fora do bloco de direita conservador-liberal. Ah, mas o vice-presidente é paquerado pelos que sonham com um "bolsonarismo sem Bolsonaro". Essas aspas são autoexplicativas. A segunda: no limite, toda a base social e política do bolsonarismo trabalha para ajudar o governo no essencial: a economia. Todos apoiam firmemente Paulo Guedes, na esperança de quebrar o ciclo de estagnação, essa marca da década que termina. Um exemplo é a imprensa. Os rififis com o poder são diários, mas apenas em questões, para a opinião pública(da), acessórias. No que conta, a reforma da previdência, o modo é de campanha. A crítica? Ao que pode atrapalhar a aprovação. A previdência se transformou na "Lava Jato da economia". É desse apoio que o governo precisa. Ele não quer ceder totalmente ao fisiologismo da velha política. Pois 1) o povão chiaria e 2) já distribuiu ou reservou as melhores posições para a nova. E o mercado financeiro? Vai resmungar, os ativos vão oscilar, mas, na última linha, se o governo entregar pelo menos uns 50% da reforma prometida, e assim ganhar velocidade, o dinheiro vai festejar. E já tem uma nova cenoura na frente: a reforma tributária. Para as Forças Armadas, Bolsonaro acoplou um belo plano de carreira na mudança "previdenciária". Na contabilidade oficial, elas são responsáveis por uns 15% do déficit e vão entrar com 1% do sacrifício. Melhor que isso só dois disso, como se diz. Resta o principal: o povão. O governo aplica aí medidas tópicas, como o 13% do Bolsa Família, mas o jogo será decidido no crescimento e na geração de empregos. Se ambas as curvas embicarem para cima, 2020 e 2022 serão menos íngremes. Se não... Qual é então o principal vetor a acompanhar? Partindo da premissa de que alguma reforma da previdência será aprovada em 2019, e alguma reforma tributária vai andar, qual será o impacto disso, imediato e nos próximos três anos? O prometido boom de investimentos compensará uma maior propensão do consumidor a poupar? Até que ponto as deficiências estruturais (educação, infraestrutura, pouca inovação) continuação segurando o necessário aumento de produtividade? Por enquanto, as expectativas não são brilhantes. Mas governo é governo. Como está demonstrado no caso do preço do diesel. Não há caso de governo que tenha se suicidado para manter a coerência. Se a coisa não anda, muda-se o roteiro do filme. * Pela enésima vez, frustram-se os teóricos da possibilidade de um presidente popular ser tutelado. Tem gente que vive de - e gosta de - (se) enganar.
A dificuldade política do governo não está na falta de diálogo ou habilidade. Se fosse só isso, e se o presidente reservasse para cada parlamentar da potencial base uns 30 minutos, e se gastasse umas quatro horas diárias na coisa, em menos de dois meses o problema estaria resolvido e a reforma da previdência seria votada no primeiro semestre. Restaria a questão da habilidade, mas Jair Bolsonaro sabe ser boa praça quando precisa. O ponto é outro: os parlamentares, deputados principalmente, não querem ajudar o governo a dar certo e depois serem atropelados em suas bases na eleição de 2022 por bolsonaristas armados do discurso da nova política e vitaminados pelos cargos federais. Pois, no mentalmente entorpecido Brasil, deputados que pressionam por poder são rotulados fisiológicos, enquanto as divisões do bolsonarismo avançam como legiões romanas sobre os cargos federais. E os conflitos internos entre os subgrupos deles são tratados respeitosamente pela opinião pública como disputa entre ideológicos e pragmáticos. Aí a palavra "fisiológico" não aparece. E ainda dizem que o governo tem problemas de comunicação. Nessa operação de promover a ocupação maciça da máquina enquanto os outros são acusados de fisiologismo o governo é um sucesso absoluto de comunicação. Mas não existe almoço grátis e o Parlamento está inquieto. Também pudera! Os (e as) parlamentares sabem que cada novato no primeiro e segundo escalão no Executivo é potencial candidato em 2022. Ainda mais se tiver autoridade sobre dinheiro para prefeituras, que aliás têm eleição ano que vem. Se Bolsonaro chega bem na reta final, estarão dadas as condições para o bolsonarismo esmagar os atuais aliados na urna. Em algum grau essa disputa é insolúvel, pois o bolsonarismo também tem boas razões para tentar diminuir a força eleitoral dos aliados. Depender muito de aliados na política não é bom. E Bolsonaro é produto de uma demanda bonapartista, ou cesarista, não seria prudente ele repentinamente vestir a roupa de conciliador e agregador. Então não tem solução? Melhor ir com calma. O presidente sabe: em condições razoavelmente normais de temperatura e pressão o Congresso aprova alguma reforma da previdência. E isso vai injetar algum otimismo no mercado e velocidade na política. Já se fala na reforma tributária. Mas, e o risco de desidratar a previdenciária? Bem, até agora "um trilhão de economia em dez anos" é postulado, ou dogma, não questionado. Ninguém diz exatamente quanto será economizado com cada medida. Sabe-se apenas a cota de sacrifício dos militares: 1% do total. O resto é mistério. E não é impossível o número final estar subestimado, já prevendo a lipoaspiração. Ou seja, o Planalto espera que o Congresso, especialmente os presidentes das duas Casas, entregue a mercadoria para o ansioso mercado, em nome do superior interesse nacional, enquanto as tropas bolsonaristas se ocupam de tomar o Estado para a partir dele consolidar seu poder. E é exatamente isso que o eleitor fiel de Bolsonaro espera dele. Se vai dar certo? Os fatos dirão, mas a probabilidade é razoável. Apesar dos resmungos localizados, o centro da agenda governamental, a política econômica, mantém apoio maciço nos grupos sociais hegemônicos e na opinião pública. E a Lava Jato continua à caça da velha política. E o Judiciário está sob ataque. E as Forças Armadas estão coesas. Claro que vai depender da execução. Mas não é tão difícil assim. O governo precisará errar muito para não entregar nada. E se entregar quase qualquer coisa isso será avaliado como avanço. O risco maior? A política econômica não dar o resultado esperado no médio e longo prazos. Um "Efeito Macri". Mas isso, se é perfeitamente possível, ainda não está no radar.
A eleição de Donald Trump funcionou também como destampador de um assunto que parecia velho: as pendências remanescentes entre os dois lados da Guerra Civil americana. Na Alemanha, a memória dos maciços bombardeios aliados na reta final da Segunda Guerra, sobre cidades alemãs sem nenhum significado militar, vem alimentando o revisionismo de direita. O Brasil curte uma autoflagelação, mas a disputa política sobre o passado é algo universal. Não é jabuticaba. A narrativa sobre o que ficou para trás é fonte de poder para o discurso pelo futuro. Exige porém certos cuidados: a verossimilhança é importante, e não escorregar para muito longe dos fatos é essencial. Os fatos, sabe-se e ando repetindo aqui, são teimosos. A retomada da narrativa de 1964 como revolução democrática é fonte de poder para a coalizão que demoliu, primeiro nas celas e tribunais e depois nas urnas, a Nova República. Que um dia já foi chique (Diretas Já, Tancredo, Constituinte). Hoje é escombros. E chegou a hora de o outro lado insistir numa história embelezada sobre os fatos de meio século atrás. A Nova República virar Velha Política foi a deixa para reavivar a versão de os militares terem sido chamados pela sociedade em 1964 para impedir que os comunistas tomassem o poder. Assim como o endurecimento do regime em 1968/69 foi a deixa ideal para que apoiadores da derrubada de Jango (Juscelino, Ulysses, Montoro) vestissem a roupa de líderes democráticos. Falta um "alta" na afirmação de que "a sociedade" chamou os militares para derrubar João Goulart. E se o problema era o comunismo bastava prender, exilar e eventualmente matar os comunistas, e fazer a eleição de 1965 sem os comunistas e sem os amigos dos comunistas. Mas não foi assim. As listas de cassações falam por si. E a eleição só voltou mesmo em 1989. Mas quem quer saber de fatos? Então bola pra frente. Mostrar 1964 como revolução democrática e não golpe militar é combustível político para a coalizão no poder, que reproduz não só as alianças do imediato pós-1964 mas também a política econômica. E o governo pode alimentar a base social com ideologia enquanto não chegam os resultados. Nesse debate, por enquanto, o bolsonarismo mantém a iniciativa. Governos têm potencialmente vantagem nisso, mas o atual parece sistemático: vai lançando ao ar teses, até mais mais disparatadas, e faz a discussão orbitar em torno delas. Enquanto se discute se o nazismo era de esquerda ou se a Terra é plana, ninguém conhece direito a proposta para a previdência. Algumas coisas ajudam o bolsonarismo nessa tática. Ajuda-o a generalizada insuficiência em cultura e intelecto, um traço nacional. É também inteligente disseminar teses absurdas. A tentação da crítica é focar no ridículo da coisa, e deixa-se de enfrentar o debate no mérito. O "nossa, que absurdo" substitui a argumentação, e aí vira um Fla-Flu. Sem contar que manter um fluxo ininterrupto de acusações obriga os adversários a passar o tempo se defendendo. Foi um expediente muito usado pelo PT, em especial nas campanhas presidenciais. E funcionou. Agora assiste-se à volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. Vamos ver de que jeito o pessoal sai dessa. E uma hora vai sair. Pois, como não existe mesmo almoço grátis, a linha governamental ajuda a amplificar e tirar a poeira de uma oposição que vinha algo isolada e paralisada, isolamento e paralisação naturais em início de governo. É a antiga constatação: quando o sujeito interfere na realidade, ela também o transforma em algum grau. A cada ação, gera-se uma reação. Falta porém ainda à oposição um componente essencial: o mal-estar do povo. Poderá ser medido nas pesquisas sobre a popularidade do governo. Se de fato a provável reforma da previdência desencadear um ciclo de crescimento, o governo vai se segurar. Se não, aí sim haverá motivo para o uso da expressão "crise". * Sobre a reforma da previdência, é razoável supor que se houver mesmo economia imediata de recursos do Tesouro o efeito imediato será recessivo. Menos dinheiro na mão do público e mais estímulo a poupar implicarão menos impulso a consumir. A menos que o comércio exterior compense, ou que sejam adotadas medidas keynesianas compensatórias. Esta eu vi nas redes e gostei: não há nada mais parecido com um keynesiano do que um liberal politicamente pressionado. Ainda mais quando tem eleição municipal logo ali, e quando o Parlamento depende de eleger bases municipais se quiser reproduzir dois anos depois os próprios mandatos. #FicaaDica
A frase está em latim: "Ave César, os que vão morrer te saúdam". Era o brado dos gladiadores para o imperador romano antes de começarem os jogos no Coliseu. Os coitados dos lutadores, escravizados, não tinham mesmo muita opção. O Palácio do Planalto quer mais ou menos isso dos políticos na Câmara e no Senado: que votem as medidas impopulares propostas pelo governo, especialmente a reforma da previdência, e conformem-se depois em morrer nas eleições. Não chega a ser previsão apocalíptica, pois mesmo em plena onda antipetista ano passado os gladiadores de Temer, que deram a cara na luta para aprovar reformas, ou tiveram imensa dificuldade para voltar ou simplesmente não voltaram. Jair Bolsonaro assumiu e distribuiu os cargos entre os dele. Oficiais da reserva e da ativa Lava Jato. Seguidores de Olavo de Carvalho. E alguns quadros parlamentares vinculados às "bancadas temáticas". Ou seja, não dividiu poder com ninguém. Pôde fazer isso ao surfar no clamor por uma "nova política", que segundo os formuladores dela consiste em trocar as pessoas más e impuras pelas boas e puras. Trata-se naturalmente de uma mistificação, mas de tempo em tempo encontra ouvidos crédulos. Uma regra, sem exceção: a nova política de hoje é a velha política de amanhã. Entre o hoje e o amanhã sempre tem um tempinho para enrolar o distinto público. É um período em que o poder precisa dar passos decisivos para se consolidar. Mas se o gladiador romano não tinha opção além de obedecer o imperador e torcer para sobreviver até a luta seguinte, não é o caso dos parlamentares. Eles têm a alternativa de simplesmente não fazer o que o Planalto deseja, e esperar o tempo passar. E são ajudados pelo governo Bolsonaro não ter sido a primeira escolha do establishment econômico e social. A boa vontade é limitada. Isso introduz um vetor de fragilidade potencial. Que aliás começa a se manifestar nas pesquisas de popularidade. O Planalto acredita que vai dobrar o Congresso denunciando o "fisiologismo" em oposição ao patriotismo. As coisas são mais complicadas. Para os militares, garantiu-se o patriotismo deles embutindo na reforma uma generosa reestruturação da carreira. O presidente talvez acredite que vai aprovar a mudança da previdência e também concentrar as chaves do orçamento Federal nas mãos de seu grupo mais próximo, para alavancar a ampliação decisiva de uma base política própria em 2020 e 2022. O bolsonarismo não deixa de ter alguma razão nesse desejo. Governos sem base própria enfrentam risco maior de colapso quando a popularidade declina além de um patamar. Com exceções, certos aliados só são úteis quando você não precisa deles. Políticos são dotados de olfato sensível para o cheiro de sangue na água. Bolsonaro abre múltiplas frentes de atrito e é visto como mal menor por boa parte do establishment. Então basta esperar a hora em que o governo vai precisar de apoio. A nova administração vem abrindo espaço inédito para referências religiosas, particularmente cristãs. Talvez fosse o caso de a turma dar uma folheada na Bíblia e estudar a interpretação de José para o sonho do Faraó com as vacas gordas e as magras. #FicaaDica. * Num governo de retificações quase diárias, a declaração mais retificada admite a participação brasileira numa intervenção militar na Venezuela. Ou a coisa está bagunçada além do razoável ou tem caroço debaixo desse angu.
É bom um pé atrás quando se ouve falar em "política de Estado e não de governo". Costuma ser boa rota de fuga para quem, tendo perdido a eleição, ou uma disputa qualquer de poder, precisa ganhar na paz o que não conseguiu na guerra. Acontece no debate sobre a política exterior. Os formuladores e executores dela levam uma vantagem na discussão: é fraco o argumento de que tem de ser de tal jeito porque há muito tempo vem sendo assim. Como é fraco o argumento de que não pode mudar porque atravessou governos de diferentes orientações. O ponto é saber se ela atende o interesse nacional. Mas quem define o que é "interesse nacional"? Mesmo coisas supostamente consensuais podem não ser. Por exemplo, manter a América do Sul livre de armas de destruição em massa e da presença militar extra-continental. Na política exterior bolsonarista, a prioridade regional parece outra: estreitar a relação com os Estados Unidos ao ponto de estabelecer uma aliança, inclusive militar, que se mostre escudo e vacina contra transformações políticas indesejadas aqui e nos demais países do continente. Há precedente. Durante a Guerra Fria estava vedado ao forte Partido Comunista Italiano participar do governo, também porque o país era membro da Otan, a aliança militar ocidental criada para confrontar a URSS. Mesmo com o papel decisivo do PCI na resistência ao nazi-fascismo. As tentativas de resumir a atual política externa a aspectos puramente "ideológicos" parece insuficiente. Num exercício de especulação, talvez projete o desejo de ingressar numa "Otas", uma aliança no Atlântico Sul similar à que Washington lidera na parte norte do oceano. Já houve conversas sobre isso no passado e o Brasil torpedeou. Seria um gol e tanto para os Estados Unidos, estabeleceria aqui uma área de domínio militar (e portanto político) praticamente indisputável. Sem contar a projeção para a África Ocidental-Meridional. Um "Trampolim da Vitória" como o da Segunda Guerra, mas para o século 21. O foco da política externa americana é conter a influência econômica da China pelo mundo. Os sinais são abundantes. Deixadas as coisas como estão, os chineses vão ultrapassar e dar tchauzinho logo logo. Então Washington simplesmente não pode deixar como está. Daí o cerco a empresas chinesas de presença global, as ameaças a quem pensa em estreitar relações econômicas com Pequim, o esforço para derrubar governos que não rezem pela cartilha, mesmo que o método de governar seja igualzinho ao de aliados convenientemente deixados em paz. Um presidente americano disse no século passado que para onde pendesse o Brasil penderia a América do Sul. Na época houve chiadeira, mas a experiência mostra que tinha algum fundamento. Ele só não explicou se a tendência viria na paz ou precisaria ser imposta no braço. Outro dia o Alexandre Garcia me contou que perguntou durante a Guerra das Malvinas ao então presidente João Figueiredo por que o Brasil estava com a Argentina contra o Reino Unido. Figueiredo mostrou o mapa. "Está vendo a Argentina? Ela vai estar aqui perto para sempre". #FicaaDica. A Europa curtiu a Otan porque havia a URSS. Como os vizinhos brasileiros vão receber uma política que estabelece na prática uma hegemonia total americana coadjuvada pelo Brasil? Essa pergunta tem sua importância porque, afinal, esses vizinhos estarão aí para todo o sempre.
É erro político acreditar que alguém conseguirá tutelar um presidente da República recém-instalado e com a popularidade essencialmente preservada. Outro equívoco é imaginar que o presidente, por isso, pode fazer o que dá na telha. Ele decide, mas dentro de limites definidos, em última instância, pela correlação de forças no governo, nos demais poderes e na sociedade. Costumam levar vantagem nas disputas internas do poder os núcleos mais organizados, disciplinados e dotados de clareza estratégica. E, sempre, mais conectados aos grupos de pressão social influentes. Outro detalhe: é comum a polarização em início de governo ser intestina ao próprio governo. Pois a oposição não carrega expectativa de poder. O que acontece na administração Bolsonaro? Quadros provenientes das Forças Armadas estão, no popular, comendo pelas beiradas e ganhando espaço. "Os militares" vai propositalmente entre aspas no título desta análise. Não há no Planalto um "Partido Militar" atuando com comando centralizado e hierarquia, paralelamente ao presidente da República. O bolsonarismo enxerga-se como uma revolução. E toda revolução costuma trazer duas tendências, que em certo momento entram em choque mortal: 1) a revolução precisa e quer expandir-se e 2) o novo poder, para consolidar-se e governar, precisa expurgar seus elementos mais "radicais". E alguma hora precisa fazer a velha superestrutura trabalhar para o novo status quo. A crise entre "o olavismo" e "os militares" é indicação de que a segunda tendência vai aos poucos prevalecendo sobre a primeira, e o processo nunca é linear ou indolor. Mas costuma ser irreversível. Num paralelo histórico que talvez desagrade ao bolsonarismo, este parece estar transitando da "revolução permanente" para o "bolsonarismo num só país". Não é casual que o choque mais visível e agudo apareça na política externa. O governo precisa decidir se a prioridade é 1) alinhar-se a - ou seguir a diretriz de - uma "internacional trompista" ou 2) adotar para valer a linha de "o Brasil primeiro". E isso vem sendo exposto na crise venezuelana. Como já vinha dando as caras em outros temas externos. O desfecho ideal para o bolsonarismo na Venezuela seria uma "Revolução dos Cravos" de sinal trocado. A cúpula militar degolar o governo bolivariano sem derramamento de sangue, e promover rapidamente a transição pacífica para um regime constitucional alinhado ao "Ocidente". Mas a coisa não parece estar tão à mão, ainda que cautela analítica em situações voláteis seja bom. Se tal saída não rolar, até onde o Brasil está disposto a ir na colaboração com o "regime change" em Caracas? A questão, de ordem prática, talvez seja o foco mais emblemático da tensão entre as duas tendências. Que algumas vezes é explicada como oposição entre alas "adulta" e "infantil", ou "racional" e "irracional". São descrições insuficientes. Uns parecem acreditar que a sobrevivência do bolsonarismo depende centralmente de livrar a América do Sul de qualquer núcleo de poder relacionado aos partidos do Foro de São Paulo. Outros talvez achem que é melhor cuidar de consolidar o poder por aqui mesmo, a arriscar um conflito de consequências políticas - regionais e internas - potencialmente desestabilizadoras. Ambas as correntes têm argumentos. A favor da segunda, há duas coisas que governos precisam pensar muitas vezes antes de fazer: convocar um plebiscito e começar uma guerra. #FicaaDica.
Na entradinha do Carnaval o governo editou medida provisória proibindo na prática descontar em folha qualquer taxa para sindicato. O mecanismo vinha sendo aprovado em assembleias após a reforma trabalhista acabar com o imposto sindical. Era uma forma de contornar a asfixia.Margareth Thatcher e Ronald Reagan atuaram contra os sindicatos, com sucesso. Fernando Henrique Cardoso abriu seu governo quebrando a espinha dos petroleiros. Faz parte dos ciclos político-econômicos orientados a dar mais oxigênio ao capital, para relançar a economia.Não é novidade que o atual período político se inspira no de 1964. Mas aquele regime nunca precisou - ou vai saber nem quis - eliminar o sindicalismo. Manteve, buscando extirpar os elementos para ele malignos. A repressão foi brutal. Mas não teve como meta eliminar os sindicatos.Seria porém errado centrar a análise no desejo do governo. Todo poder faz o possível para enfraquecer e no limite eliminar qualquer resistência. Bolsonaro, como Temer, não ataca a estrutura porque quer, mas porque precisa, pela agenda. E principalmente porque pode.E resmungar contra a ofensiva antissindical é inócuo. Para o resmungo ter efeito, o bolsonarismo precisaria sofrer algum dano de imagem por tentar liquidar os sindicatos. É o contrário: o eleitorado do presidente quer mesmo que ele quebre a coluna vertebral do trabalhismo.Pois é uma necessidade objetiva para a estratégia de relançamento econômico. O crescimento brasileiro desde os anos 80 é baixo, e um fator central é o muito lento avanço da produtividade. O Brasil não é competitivo globalmente nesse aspecto, com exceção da agricultura.A recuperação das margens pós-crise continua dependendo da contração dos custos. Especialmente do trabalho. Se não dá para produzir muito mais por hora, que ela custe menos. Nisso ajuda a alta taxa de desemprego. Por isso ela é em boa medida estrutural.Onde está o problema? Na baixa participação das exportações na economia. O Brasil não é a China, aqui as coisas dependem mais do mercado interno (lá também isso está aumentando). Uma hipótese para nem a economia nem o emprego terem mudado de dinâmica após a reforma trabalhista.Mas a persistência da estagnação não vem tendo maior efeito político, ainda que seja provável uma reação político-sindical futura. E o retardo na reação explica-se também pela fraqueza orgânica dos movimentos trabalhistas. Ela tem três razões, e a mais importante fica algo escondida.Há a mudança organizacional do mundo do trabalho, aspecto muito na moda nos debates. E há o relativo desenraizamento das cúpulas sindicais, após trinta anos em que ir aos gabinetes do poder e ao Ministério Público trazia mais resultado que ir aos locais de trabalho.O aspecto menos debatido: a pulverização da organização sindical, nascida da reação ao avanço do sindicalismo petista-cultista a partir dos anos 80, finalmente cobra o custo. As razões históricas da "indústria de sindicatos" são conhecidas. E num governo firmemente disposto a matar o sindicalismo, a dispersão pinta ser fatal. O "fatal" não deve ser lido como "definitiva", pois as ondas sempre provocam contraondas. Mas que o sindicalismo está numa sinuca, isso está.
Cada um vê o imbroglio venezuelano conforme as lentes da ideologia, e esse é um direito inalienável. Há poucas coisas mais inúteis em política internacional do que discutir "quem tem razão". Costuma ter razão quem tem a força para impor seu desejo. Os propagandistas entram na história para dar um trato na cena, fazer a limpeza e o embelezamento. Como aquele sujeito em Pulp Fiction. Não viu o filme? Veja. Quem "tem razão" na Venezuela? Depende. Se você defende que o melhor para a América do Sul agora é estancar a penetração russa e chinesa, e quem sabe iraniana, e de quebra varrer a esquerda que apoia o chavismo, faz sentido apoiar as pressões contra o governo de Nicolás Maduro. Se você acha que o mais importante é conter a tentativa americana de retomar a região como esfera de influência, fique do outro lado. Mas se você é movido por teses como a defesa dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos e do respeito irrestrito à separação dos poderes numa democracia que permita a alternância real no governo, aí talvez seja o caso de cautela. Porque a cada acusação contra o chavismo nesses temas há pelo menos um caso de país amigo dos Estados Unidos, e agora do Brasil, onde isso é deixado para lá. Então deixemos para lá. A Venezuela é o país da hora onde enfrentam-se as potências que disputam a hegemonia planetária. Os Estados Unidos têm força militar suficiente para tentar resistir à perda de protagonismo para a economia da China. E a Rússia parece ter retomado o poderio militar para conter o declínio deflagrado pela dissolução da União Soviética. Por que a Venezuela? Tem muito petróleo e a América do Sul é um celeiro de commodities. Está em curso portanto um movimento baseado na interpretação mais crua da Doutrina Monroe, "A América para os americanos". E no princípio da projeção de poder (militar). Se a Ucrânia, a Síria e a Coreia do Norte são muito longe dos Estados Unidos, a Venezuela é muito longe da China e da Rússia. O recado de Trump é claro: se longe de casa precisamos negociar e aceitar acordos, aqui nas redondezas fazemos o que dá na telha. E o Brasil? Se o plano de uma derrubada "limpa" do chavismo der certo, com as Forças Armadas dali coesas degolando o governo sem maiores reações e conseguindo estabilidade social e militar, e eventualmente política, tudo bem. O bolsonarismo celebrará a queda de mais um desafeto e vida que segue. Quem sabe até com oportunidades econômicas, com o Brasil entrando de sócio minoritário no desmonte da PDVSA. Mas, e se der errado? Um risco para o Brasil é a disputa política na Venezuela enveredar para a guerra civil, coisa de que o continente parecia ter se livrado com o acordo de paz na Colômbia. E já que o Brasil decidiu ser protagonista na "guerra pela Venezuela", será difícil simplesmente voltar para casa e dizer "virem-se, não temos nada a ver com isso". Até porque nossa fronteira norte é extensa, porosa e cheia de povos indígenas. Povos para os quais a fronteira e as nacionalidades produzidas após a ocupação hispano-portuguesa têm importância apenas relativa. Em miúdos, gente para quem ser da tribo é mais importante do que ser "brasileiro" ou "venezuelano". Em tempo de paz, isso tem sido um desafio latente para o Brasil, particularmente para nossas Forças Armadas. Como ficaria a coisa em tempo de guerra? Especialmente se ela transbordar para cá? Isso traria um conflito bélico para dentro de nossas fronteiras pela primeira vez desde a Guerra do Paraguai. Ela deu na Abolição e na República. #FicaaDica.
As escaramuças (por enquanto são só isso) em torno do presidente da República (e com a participação dele) têm sido retratadas como disputa entre um núcleo fundamentalista imaturo e outros núcleos maduros e, portanto, carregados de razão. O primeiro reuniria antes de tudo os filhos, em primeiro lugar o do meio. Na periferia, alguns ministros da esfera de influência do chamado olavismo. Já o segundo congregaria a equipe econômica e os militares. Desconfie das simplificações. Elas são como a Física do ensino médio: úteis para fins didáticos mas inúteis quando precisam explicar o fenômeno na essência. Dizer que "o problema de Jair Bolsonaro são os filhos" explica tudo e ao mesmo tempo não explica nada. Duvida? Faça o teste. Tente responder a esta pergunta que deriva da afirmação acima: "Se o presidente precisar afastar do entorno os filhos, especialmente Carlos, com quem exatamente poderá contar?" Hoje em dia, a lista mais comprida da área que reúne a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios é a de candidatos a tutelar o presidente da República. É consequência, esperada, do projeto "vamos eleger o Bolsonaro para derrotar o PT e depois a gente vê o que faz". O então candidato do PSL aceitou jogar esse jogo, cuidando de reduzir a incerteza na política econômica. Mas nunca deu qualquer sinal de que, no poder, faria um governo de Paulos Guedes. Presidentes muito fracos são levados a engolir a tutela, e isso não costuma ser suficiente. Fernando Collor, acuado, montou um ministério dito ético, vertebrado pelo PFL, e mesmo assim caiu. Dilma Roussef entregou a articulação política a Michel Temer, e o resultado é sabido. Nos dois casos, o que era para ser ampliação da base de governo acabou virando o centro ou parte da conspiração para derrubar o governo. Bolsonaro tem muitos defeitos, mas não nasceu ontem. Há exceções? Uma que confirma a regra foi Itamar Franco. No começo achou que governaria. Foi trucidado pela imprensa do Sudeste (nessas horas Minas Gerais não faz parte do Sudeste). Teve de entregar a presidência de fato ao ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Só sobreviveu porque abriu mão de qualquer poder, ou perspectiva de poder imediato. Caiu sem cair, esperando voltar em quatro anos. Mas FHC aprovou a reeleição e deixou Itamar na mão. Bolsonaro, ao contrário de Collor, Dilma e Itamar, não está fraco. O núcleo duro da sua base social continua mobilizado pela agenda maximalista de endurecimento penal, valores conservadores e alinhamento com Donald Trump. E o empresariado só quer saber da reforma da Previdência, remédio do momento para curar a economia atacada pela estagnação. E na hora "h" o mercado vai apertar o torniquete no pescoço do Congresso até este entregar a mercadoria. O que pode dar errado? Alguém das internas reunir massa crítica e começar a drenar poder. O vice dá seus passinhos mas, notem, Bolsonaro nunca passa recibo. O vice tem estabilidade no emprego. Então, a bazuca presidencial volta-se contra quem ensaia apresentar-se como moderado, confiável e racional. É por aí que o poder começa a cortar cabeças. O que fica mais fácil quando o alvo potencial comete um erro. E o erro número zero em palácio é o sujeito achar que há espaço para fazer uma política própria diferente da do chefe. Ainda mais quando o chefe está forte e cercado por fiéis. Exigir que o poder mande os mais fiéis para a degola a troco de nada é um passaporte para a desgraça.
Por enquanto são só escaramuças, apimentadas pelo folclore de figuras algo exóticas em posição de visibilidade. A guerra mesmo virá quando entrarem em debate dois pontos: a reforma da previdência, de Paulo Guedes, e o pacote de Sérgio Moro. Isso, claro, se não estourar antes uma guerra de verdade na nossa fronteira norte, com o Brasil de coadjuvante dos Estados Unidos.Mas é algo provável que a situação da Venezuela ainda fique um tempo em banho-maria, dada a tática de cerco "humanitário". Então é também esperado que um belo dia as flores deste "recesso estendido" (pela internação do presidente) deem lugar ao debate duro sobre as aposentadorias e a segurança pública. E nos dois temas a avenida está aberta para vitórias expressivas do governo.Aí, as impressões de que "fulano foi derrotado, sicrano não se dá com beltrano, ninguém segue a orientação do outro fulano" etc. vão deixar de ser notícia, e vai sobrar a realidade crua: os líderes de fato do governo na Câmara e no Senado são os presidentes da Câmara e do Senado. E líderes de direito fracos nessa circunstância não chega a ser problema. Talvez seja solução.E na hora do concerto os maestros vão encontrar orquestras com imensa vontade de tocar afinadas. A disputa será para ver quem é mais duro no enfrentamento dos bandidos, em certas categorias de crime. Como por exemplo a corrupção e o banditismo urbano rotineiro. E na mudança previdenciária haverá briga de rua pelo protagonismo que atraia simpatia do mercado. Onde e quando começarão os problemas? No pacote de Moro, o céu pinta ser de brigadeiro. Também pelo ministro ter se tornado um enfant gâté da opinião pública. Mas o decisivo é não haver resistência social expressiva no horizonte para a nova ideologia dominante na área criminal. A chacina desta semana em Santa Teresa foi recebida com bocejos. É o novo normal.Já na Previdência há um risco. Se o governo quer mesmo fazer da reforma um instrumento de justiça social precisará apontar para as camadas burocráticas privilegiadas que engolem dezenas de bilhões/ano do orçamento. Guedes está certo: a previdência social no Brasil é um mecanismo de concentração de renda. O problema dele: esses grupos estão politicamente fortalecidos.Os velhos ameaçados pela miséria, os idosos do campo, os jovens que provavelmente vão morrer antes de se aposentar não irão ao salão verde da Câmara pressionar e ameaçar os parlamentares. A elite burocrática sim. E dirá que atacar seus privilégios é - surpresa! - enfraquecer a "luta contra a corrupção". E na hora h será tentador para o Congresso ceder ao poder real.Mas isso terá um custo. Os militares, por exemplo, têm dificuldade de aceitar sacrifícios maiores e ver um procurador em início de carreira ganhar mais que um general quatro estrelas. E alguém sempre poderá lembrar aos deputados e senadores que vão esfolar o povão enquanto continua dormindo numa gaveta da Câmara dos Deputados a proibição dos supersalários do Judiciário.Alguma reforma da previdência vai passar. E a resultante política será função de duas variáveis: 1) quanto produzirá de percepção de ter promovido Justiça social e 2) quanto trará de investimentos, empregos e renda. O ótimo para o governo será muito das duas. Mas muito só de uma até ajudará a justificar por que a outra não desempenhou tão bem assim.Agora, se a resultante for pouco das duas, aí a avenida da política vai se abrir para a oposição.
A eleição para o comando da Câmara dos Deputados e do Senado foi igual, o governo confirmou sua maioria potencial. Mas foi diferente num aspecto importante de acompanhar no tempo: os deputados preservaram a liderança do establishment parlamentar, os senadores não. Em consequência, o cenário da Câmara dos Deputados emerge mais organizado. Nada que no Senado não possa ser resolvido conforme os solavancos da estrada vão acomodando as melancias na carroceria do caminhão. Mas vai exigir algum trabalho do Palácio do Planalto. No Senado, a liderança tradicional foi varrida, e o novo presidente, Davi Alcolumbre (DEM-AP), terá uma ampla base de apoio, mas não é um líder político automático. Foi mais um candidato "anti". Mas um bom líder e um bom diálogo com Alcolumbre são caminhos ao alcance do governo. Na oposição, a vida anda um pouco mais complicada, mas ela sobreviveu. Na Câmara, PT, PSB, PSOL e Rede entregaram a seus candidatos 80% de seus votos. Marcelo Freixo (PSOL-RJ) foi prejudicado pela luta interna do PT, mas mesmo aqui a ampla maioria seguiu a direção partidária. O governismo na Câmara está distribuído em dois blocos. Um duro, com três centenas de deputados, e um mais dito centrista, com pouco mais de cem integrantes. Neste segundo, há uma minoria, PDT e PCdoB, que está ali por razões táticas. Mas a ampla maioria é governista na agenda. Na Câmara, os votos que eventualmente faltarem ao governo na sua base dura poderão ser pescados no varejo da sublegenda light. Já no Senado, o "anti-Renan" mostrou-se esmagador ao final, mas é impossível saber agora quantos desses votos estão comprometidos com a agenda do Planalto. De todo modo, o governo ultrapassou a primeira barreira. Na Câmara, uma situação relativamente pacificada. Já no Senado, além de tudo, será preciso observar como a "nova política" impactará o caso de Flávio Bolsonaro. Será, no curto prazo, um bom termômetro do grau de controle. * A tragédia de Brumadinho é um problema para a agenda produtivista do governo Bolsonaro. Mas o avanço das investigações parece indicar que a causa está mais na esfera criminal que na conceitual, ou ideológica. Resta monitorar como o acontecimento vai refletir no Congresso. Mais provável é os efeitos não serem sistêmicos. Um caminho possível é a caça aos culpados dominar a pauta. O que permitiria aos parlamentares da esfera bolsonarista dar uma satisfação à opinião pública sem abrir mão de políticas de desenvolvimento de forças produtivas. * O realismo fantástico da política brasileira, com sua abundância de notícias atraentes todos os dias, impede que se preste mais atenção no cenário internacional. As tensões entre de um lado Estados Unidos e União Europeia e de outro Rússia e China escalam de maneira consistente. Estados Unidos e Europa têm um problema. Não produzem quase nada que algum outro não produza, ou não possa produzir, melhor e mais barato. Em consequência, precisam apertar o torniquete, inclusive militar. Um cenário que tem semelhanças com um século atrás. Não significa que vai haver guerra, mas uma pradaria seca pode pegar fogo num acidente.
As eleições para as mesas da Câmara dos Deputados e do Senado e a tragédia de Brumadinho/MG marcam o ponto final do já mambembe período de graça do governo Jair Bolsonaro. Acabou a "fase de estudos". Agora a coisa é para valer. Inícios de governo são como extensões da campanha. A nomeação e posse dos ministros, os primeiros pronunciamentos, os projetos, as esperanças. Talvez por isso se fale em "período de graça". A campanha continua, mas um lado já está nocauteado e o outro ocupa o palanque sozinho. É um período em que governo e governante não precisam necessariamente mostrar destreza operacional, o simples preenchimento dos espaços funciona bem como vetor de comunicação. Mesmo as polêmicas giram em torno de falas, assinaturas em papéis. Coisas assim, digamos, "virtuais". Mas isso agora é passado. No Congresso, o governo precisará mostrar capacidade política. Em Brumadinho, capacidade operacional, e será também politicamente responsabilizado pelos desdobramentos jurídicos. Dizer que "vou acabar com a incompetência e a impunidade" dá voto, mas tem consequências. O governo tem uma ampla base política potencial no Legislativo. O desafio está na palavrinha "potencial". Como no futebol, não basta ter elenco. É preciso colocar para jogar. A nova comissão técnica não tem muita experiência em liderar aquela turma. Vejamos no que vai dar. Mas desafio mesmo está em Brumadinho. A tragédia cruza três pontos decisivos da agenda bolsonarista: 1) libertar a força produtiva do capital, 2) privatizar estatais para torná-las mais eficientes e vantajosas para o conjunto da sociedade e 3) colocar criminosos na cadeia. A conexão de Brumadinho com o item 1 é óbvia. Sobre o item 3, o nomear Sérgio Moro ministro, o governo ganhou musculatura no plano semiótico mas perdeu o clássico trunfo de manter distância das decisões do Judiciário. Pois no imaginário popular Moro é talvez o primeiro ministro "da Justiça", sensu lato. O povão quer que ele mande. No caso do item 2, a tragédia de Brumadinho oferece uma nova oportunidade para a contranarrativa do "querem privatizar as estatais para o lucro ser o único objetivo dessas empresas, desprezando os direitos sociais e trabalhistas e a necessidade de defender o meio ambiente". O que estaria sendo dito se a tragédia tivesse sido responsabilidade da Petrobras? Só aplicar com sinal trocado. #FicaaDica Detalhe: em Brumadinho há o vetor ambiental, mas também um relacionado à segurança no trabalho. Ao extinguir o Ministério do Trabalho Bolsonaro perdeu o personagem que poderia fazer o governo centralizar esse desdobramento. Tudo tem dois lados. * Na eleição das mesas do Congresso o governo precisa (muito) que os novos presidentes tenham liderança, capacidade de diálogo e foco na agenda econômica. E couro grosso para não fazer do Legislativo uma biruta de aeroporto girando ao sabor das manchetes do dia. O problema: o bolsonarismo é rebento da rejeição à política. O risco: um ou dois "bolsonaros para o Bolsonaro".
O governo Jair Bolsonaro experimenta sua curva de aprendizagem. E faz isso na velocidade das redes sociais. Está tendo de aprender rapidinho, pois - como previsto - desta vez não se percebe um "período de graça". Coisa que aliás parece mesmo ter saído de moda. Outra previsão que se realiza: o aperto da burocracia sobre o novo poder. Em meio ao barulho, à fumaça e à gritaria da batalha, como avaliar o estado das coisas? O sinal mais útil é a consistência de cada exército. E, ao menos por enquanto, o da direita está completamente íntegro. Aliás, as disputas internas no bolsonarismo são um sintoma de não enxergar ameaças reais no horizonte. Inclusive porque na esquerda também se nota a inclinação a aproveitar o interregno para algum ajuste de contas. A tática parece mais orientada por objetivos relacionados à busca de hegemonia no dito campo progressista, e menos por alguma vontade real de oferecer agora alternativas à maioria social e política criada em 2018. Tudo isso é lógico. A guerra política costuma concentrar-se na disputa do poder disponível. E o poder à disposição para ser disputado hoje é o interno de cada bloco. Direita e esquerda trocam desaforos nas redes sociais, mas em cada uma a briga é pelo controle da própria tropa. "É a correlação de forças, estúpido". Quando a delação dos executivos da JBS explodiu no colo de Michel Temer, o mercado soluçou mas logo voltou ao voo de cruzeiro. Por uma razão simples: rapidamente ficou claro que se o presidente caísse assumiria alguém parecido. As alternativas disponíveis eram só duas: um temerismo com Temer ou um sem Temer. O que é o primeiro gabinete Bolsonaro (na suposição de que todos os governos promovem reformas ministeriais)? Um amalgamado amplo, sob a hegemonia da direita "de raiz". Agrupa o universo que deseja remover sem dó e sem medo todas as barreiras para a aceleração do capitalismo brasileiro, custe o que custar. Daí que a principal tensão no bloco seja o recorrente "o que vão dizer da gente lá fora?", a preocupação com o impacto, no comércio exterior, da agenda sócio-ambiental e comportamental. É o mote central dos "liberais progressistas", taticamente dizimados na urna mas sempre bem posicionados para a guerra cultural. O destino do primeiro gabinete Bolsonaro decide-se na votação da reforma da Previdência, para o que as eleições das mesas do Congresso têm importância. Entretanto, se o bolsonarismo precisar recorrer no futuro aos serviços da "velha política" para buscar a meta central, receberá o apoio de quem hoje exige dele o apego à "nova". Daí se verá o renascer do realismo, que já aparece nas polêmicas da política externa. A vida é dura. Como conciliar a cruzada mundial pela democracia ocidental-cristã e a necessidade premente de mercados e investimentos? Na dúvida, o governo Bolsonaro tenta derrubar Nicolás Maduro enquanto a bancada do PSL faz amizade com Xi Jinping. * Alguma ameaça real ao bolsonarismo? Já se nota a movimentação para tutelar o presidente recém-empossado. Coisa normal nas circunstâncias. As atribulações do primogênito são um problema crescente. Ainda estão longe do pai? Já ensejam o acender dos apetites por um "bolsonarismo com Bolsonaro e sem os Bolsonaros". É bom ficar de olho.
Não acredite na sinceridade do governante quando diz que a existência de uma oposição forte e a alternância são essenciais para as coisas andarem bem. É cascata. Todo líder deseja eliminar os oponentes ou cooptar (uma forma de eliminação), e perpetuar no poder a ele e/ou ao grupo. Daí que, por exemplo, a higidez da assim chamada democracia representativa dependa não principalmente dos códigos escritos, mas de algum equilíbrio de forças. Se estiver suficientemente forte, o governante - qualquer um - dará, no popular, uma banana para os tais códigos. E do que depende essa força? Principalmente da capacidade de impor o medo. Mas a eficácia da ameaça de punição será maior quanto mais apetitoso é o prêmio por se submeter. Por isso, no poder líderes cuidam de recompensar a tribo. "Política não fisiológica" é um oxímoro. A política é o exercício da fisiologia que mantem vivo o organismo das relações de poder. Se o primeiro ministério de Luiz Inácio Lula da Silva premiou essencialmente o PT, o gabinete inaugural de Jair Bolsonaro não obedece, para espanto de alguns, a fantasia do "critério técnico". Leis da natureza são teimosas. A equipe do governo sustenta-se essencialmente em quatro partidos: o PEM (Partido da Economia de Mercado), o PM (Partido dos Militares), o POC (Partido do Olavo de Carvalho) e o PLJ (Partido da Lava Jato). Siglas que mesmo não registradas no TSE ajudaram a construir o desfecho eleitoral. Há também tribos não tão contempladas quantitativamente, mas ainda assim essenciais. O PA (Partido do Agronegócio) e o PE (Partido dos Evangélicos). Na extrema periferia do sistema, políticos não "puros" mas sortudos, sobreviventes da caça à política. As legendas informais têm as características dos seus irmãos formais. Têm chefes, regras internas, programa. E uma disciplina a seguir, e portanto a ser imposta. Se não se investe energia para manter o edifício organizado, a tendência natural é desorganizar. Uma diferença aparente de Bolsonaro para Lula é que este só tinha, a rigor, um partido para premiar. Mas se a coisa for olhada mais de perto fica claro que não era bem assim. O PT organizou-se como um partido de tendências, e o presidente precisou/decidiu contemplá-las todas. As melancias vão se ajeitando na carroceria do caminhão conforme os solavancos da estrada. Algumas frutas despedaçam-se, outras caem no caminho. Isso não é problema. Onde está o xis da questão? Na capacidade de o presidente mediar os conflitos para uma resultante boa. Aí é que mora o perigo. Que solução Jair Bolsonaro providenciará para o conflito entre os evangélicos e o agronegócio (e outros ramos do empresariado) em torno da mudança ou não da embaixada em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém? Uma hora o presidente vai ter de resolver. Como fazer os políticos votar uma reforma da previdência que possa ser vendida ao público como justa e ao mesmo tempo preservar, ao menos em parte, as condições privilegiadas dos segmentos da burocracia estatal decisivos para a eleição do atual presidente da República? A lista só vai crescer com o passar do tempo. Um dia alguém disse que o presidente dos Estados Unidos talvez se achasse o sujeito mais poderoso da Terra, mas não passava mesmo era de um guarda de trânsito. Organizando um tráfego mais ou menos caótico, mas um guarda de trânsito. E tudo feito de um jeito de que possa ser explicado. * Solavancos são normais, mas a quantidade virou notícia neste início de governo. O primeiro impulso é dizer que as pessoas são incompetentes. Competência e incompetência são parâmetros algo subjetivos. Para objetivar, precisa complementar. Competência para fazer o quê? Talvez o ruído esteja em outro lugar. Talvez as pessoas tenham sido escaladas não na melhor posição para cada uma delas. Faça você mesmo o teste. Simule um roque (o do xadrez) nas posições no Planalto. É uma simulação interessante. Em alguns casos divertida.
Todo poder político trabalha, antes de tudo, para perpetuar-se. Frases como "eles têm projeto de poder, nós temos projeto de país" servem para consumir papel e tinta (literais ou eletrônicos) mas não têm significado real no mundo da política. Um atributo notável de Jair Bolsonaro é a transparência: a alternância com a esquerda não está mesmo nos planos.   Seria (e foi) esperado que esse apego viesse embalado como do mais alto interesse nacional. Tanto eficaz será a comunicação de qualquer líder e governo quanto mais o interesse particular for apresentado, e aceito, como interesse geral. Também por isso o governo Bolsonaro começou bem a disputa da comunicação. O "Brasil acima de tudo" continua funcionando.   Governar é decidir, e também saber comunicar a decisão. Quem pede moderação e conciliação no discurso bolsonarista pede que o novo regime abra mão de sua principal fonte de poder: a convicção popular, alimentada por anos, de que a solução para os principais problemas do país reside na eliminação de um pedaço da política. Ou da própria sociedade.   É esperado que os operadores encarregados de aprovar as coisas no Congresso peçam alívio no discurso. Também parece ser o sentimento dos estrategistas, quase todos militares. O problema? Quando propõem a conciliação, governos nascidos de batalhas políticas radicalizadas acabam passando a ideia de fraqueza. A última vítima disso foi Dilma Rousseff.   O poder é permanentemente rondado por quem deseja tomar o lugar. No caso de Jair Bolsonaro o perigo imediato não está na esquerda, isolada e por enquanto dividida. Vem da eleitoralmente pulverizada mas socialmente sempre influente direita não bolsonarista. É quem melhor personifica no Brasil o dito globalismo, besta-fera do bolsonarismo.   É uma corrente que está apenas à espera de as coisas começarem a dar errado para se apresentar como a solução à mão. Exemplos: 1) O PSDB oferecer-se para entrar no governo Collor, 2) o "ministério ético" do próprio Collor, 3) a nomeação de Fernando Henrique ministro da Fazenda de Itamar e 4) Dilma entregar a Michel Temer a articulação política na crise.   O único caso em que isso "deu certo" foi o terceiro, ao custo de Itamar abrir mão do poder real, concessão necessária para não ser derrubado. Na prática o governo Fernando Henrique Cardoso começou não em janeiro de 1995, mas em maio de 1993. Apesar das tentativas de manter viva a ideia de ter havido um governo Itamar Franco até o final de 1994.   Qual o desafio imediato de Bolsonaro? Inverter rapidamente as expectativas econômicas para impedir o surgimento de uma bolha de frustração que drene seu prestígio popular antes de o governo apresentar resultados. O instrumento à disposição é manter a luta ideológica bem aquecida e tentar despertar o chamado "instinto animal" do empresariado.   Jair Bolsonaro assume em condições bastante razoáveis. Inflação controlada, PIB em (lenta) recuperação, apoio maciço no empresariado e (potencialmente) no Congresso, imprensa ou favorável ou não radicalmente hostil, oposição entretida em disputas internas (coisa normal depois de derrota), Forças Armadas a favor e atuando como poder moderador.   Mas, como se diz, uma hora o governo precisará entregar a mercadoria. A economia precisa reagir, até porque a ideia é substituir progressivamente as proteções estatais ao povão por oportunidades que a economia privada oferecerá a esse povão. E quando esse despertar econômico é tentado mais pelo lado do investimento que do consumo o prêmio costuma demorar mais.   *   Não há registro no Brasil de Congresso Nacional que tenha criado problemas para governos que largam com amplo apoio na elite. Fernando Collor tinha uma base formal estreitíssima e não teve a menor dificuldade para aprovar o enxugamento temporário de liquidez que quando ele caiu em desgraça se transformou no "sequestro da poupança". Recordar é viver.   *   O governo Bolsonaro oferece uma grande oportunidade para o jornalismo. Acabou o tempo em que bastava se indignar a seguir a cartilha das causas pré-definidas como "do bem". A coisa agora vai exigir mais sofisticação, pois o novo poder se apresenta com uma ideologia estruturada. Para criticar, antes de tudo é preciso entender o que outro está dizendo.
O futuro governo Bolsonaro coloca-se contra o globalismo, definido por ele como a exigência de subordinação das nações a instâncias supranacionais dominadas por vetores fora do alcance do processo político de cada país. O termo não deve ser confundido com "globalização", que é o novo nome de velhos fenômenos, bem descritos há um século por Rudolf Hilferding. As duas coisas estão relacionadas, mas não são a mesma coisa. A essência do antiglobalismo, quando podado de seus aspectos patológico-conspiratórios, é o "aqui mandamos nós". Associa-se ao chamado "populismo de direita". Até pelo menos a passagem do milênio era o contrário: quem levantava a bandeira da luta contra a globalização era a esquerda. Em algum momento isso mudou, e a esquerda passou a defender uma globalização "de face humana", e portanto passou a tecer amizade com instâncias que poderiam impor essa "humanização". A globalização "humana" é outra tese descendente de ideias já com um século nas costas, e que quando nasceram provocaram igual polêmica. Lavoisier tinha mesmo razão. O pilar central da política externa do governo Bolsonaro promete ser o bilateralismo. No quarto de século de hegemonia tucano-petista foi o multilateralismo. Era visto como o caminho natural de um país desejoso de ser potência, mas que só tinha o soft power para pôr na mesa. E o Brasil deu gás ao multilateralismo, para estar em turma na hora das confusões. O problema - para a esquerda - é aquele mundo do pós-Guerra Fria estar saindo de cena. E a realidade anda mais com a cara do pré-Primeira Guerra. Velhas potências ameaçadas de decadência e incomodadas com a ascensão de novas. Na boa? Situações assim não se resolvem em fóruns internacionais. Um bom exemplo são os movimentos dos Estados Unidos. Pareceu maluquice quando Donald Trump abriu guerra, ao mesmo tempo, com o Nafta, a China, a União Europeia e os acordos do clima. Dois anos e muito bate-boca depois, Canadá e México toparam refazer o Nafta, a China topou to buy american e a UE topou gastar mais com sua defesa. E os acordos do clima - eu aposto - vão ser revistos para facilitar o desenvolvimento. Os críticos do bolsonarismo dizem, com razão, que é um risco o Brasil agir como os Estados Unidos, pois o Brasil não é os Estados Unidos. Contra esse argumento, o novo regime desloca-se para virar forte aliado de Washington, esperando usar a força do amigo quando o bicho pegar. É arriscado, mas o caso Khashoggi mostra que Trump valoriza os amigos. E os negócios. O novo governo diz que está defendendo os interesses do Brasil quando se aproxima dos Estados Unidos. Isso poderá ser medido em resultados. Vamos aguardar. Mas por enquanto o argumento dificulta a vida dos críticos. Inclusive porque os mesmos críticos vêm de políticas que pareciam subordinar os interesses nacionais do Brasil ao tal globalismo hoje estigmatizado. Em miúdos, o bolsonarismo está algo blindado das acusações de entreguismo porque a esquerda vem aceitando há algum tempo a caracterização ideológica de que nacionalismo é algo ruim. Se é fácil caricaturar Bolsonaro quando bate continência para John Bolton, mais difícil é dizer-se nacionalista e atacá-lo quando critica o Acordo de Paris. Se será complicado para Bolsonaro rodar simultaneamente os pratos da soberania e do ultraliberalismo, tampouco será simples para a oposição atacar o pró-americanismo no novo regime e ao mesmo tempo fazer coro à necessidade de o Brasil seguir caninamente as diretrizes da globalização "humana". Enquanto ficar assim, esse jogo não sai do zero a zero. * Esta semana lanço o "Brasil em capítulos: um olhar sobre a política, do impeachment à eleição de 2018". Reúne todos os meus textos do período. Espero você num dos eventos de lançamento: 4/12, 18h30, na Livraria da Vila em SP, Rua Fradique Coutinho 915. 5/12, 19h, na Livraria da Travessa no Rio, Av. Visconde de Pirajá 572. 6/12,19h, na Livraria Leitura em Brasília, Shopping Pier 21 Asa Sul. Obrigado pela audiência em 2018. E até 2019, se Deus quiser.
Certas ideias infiltram-se no debate público cheias de lógica, apenas para fracassar mais adiante, por total inviabilidade. E esse percurso não é neutro, costuma lançar na coluna de perdedor quem nelas investiu capital político. Foi assim com o "controle social da mídia" proposto pelo PT. Pinta ser assim com o "escola sem partido" anabolizado pelo bolsonarismo. O PT passou década e meia no governo falando no "controle social da mídia", e colheu só desgaste. Não conseguiu implantar qualquer tipo de controle, mas deu gás às teses de que o objetivo último do partido é acabar com a liberdade de imprensa, como praticada em países como o nosso. Não foi só por isso, claro, mas também por isso deu no que deu. O "escola sem partido" ensaia ser para o bolsonarismo um ponto focal de organização política e intelectual dos adversários, que agora terão a vantagem de desfraldar a bandeira da liberdade. Uma vantagem e tanto. Outra notícia boa para a oposição: ao contrário do PT e seu "controle social da mídia", talvez haja votos para passar a coisa no Congresso Nacional. Pois o desgaste que o novo governo vai colher com o debate parlamentar do "escola sem partido" nem se compara à corrosão que sofrerá com as tentativas de implantar na vida real, se virar lei. Em primeiro lugar, por oferecer ao STF a oportunidade de manifestar mais uma vez seu poder, e agora como guardião das liberdades e garantias fundamentais da Constituição. Mas não só. Melhor ainda será, para a oposição, se o STF deixar passar. Aí a guerra se espalhará pelas escolas e universidades, e assim ganhará amplo espaço na imprensa. E vai ser uma guerra perpétua, pois, como no "controle social da mídia" do petismo, inexiste em projetos como o "escola sem partido" qualquer possibilidade de adotar parâmetros objetivos. Como medir a "doutrinação" aceitável na difusão das ideias? Boa sorte a quem tentar descobrir. Um monarquista empedernido se revoltará contra a tese de as revoluções francesa e americana terem sido saltos adiante no processo civilizatório. Um socialista clássico se rebelará contra a tentativa de enquadrar o socialismo na categoria de "totalitarismo". E então? E quando o debate passa a ser sobre religião? Uma escola vinculada a determinada crença tem todo o direito de dizer aos alunos que o critério de certo e errado, de verdade e mentira, foi estabelecido pelos textos sagrados dela. E também de informar que dúvidas sobre a atualidade das regras devem ser dirimidas com representantes da respectiva hierarquia religiosa. Mas se, por exemplo, escolas católicas devem poder ensinar aos alunos que Jesus Cristo foi o Messias, as judaicas também devem poder contestar que não. E as de fé islâmica devem ter toda a liberdade de defender que Jesus foi apenas um profeta, e não filho de Deus, ou Deus. E se os pais não concordarem? Ou explicam em casa que não é bem assim ou trocam de escola. "E nas escolas públicas?" Bem, aí só há duas possibilidades: 1) ou cada professor tem liberdade para ensinar ou 2) estabelece-se uma ideologia oficial. São os dois sistemas conhecidos. Toda tentativa de achar um terceiro fracassou. O "escola sem partido" só seria viável no segundo. E seria um desafio brabo num planeta digitalizado e interconectado em tempo real. Radicalizar na agenda dita "comportamental" vai ser tentação, na impossibilidade de apresentar resultados econômicos instantâneos. Será uma maneira de manter coesa e energizada a base social do bolsonarismo, pois talvez as circunstâncias da economia obriguem a recuos nas agendas da política externa e ambiental. Mas também vai ser oxigênio para a oposição. Assim será com o "escola sem partido". Se o governo for esperto, dá um jeito de dizer que está fazendo e ao mesmo tempo desidrata a coisa até a irrelevância. Deixa pra lá. Mas talvez falte ao ideologicamente coeso governo bolsonarista, todo imbuído do sentido de missão, o passarinho na gaiola na mina de carvão. O que quando morre dá o sinal de perigo. Até a semana que vem.
Em agosto, quando a eleição começava a esquentar, veio ao Brasil o secretário (lá ministro chama assim) de Defesa dos Estados Unidos, Jim Mattis. Por que a visita? Parte do esforço de Washington para conter a expansão da influência chinesa. Isso não é suposição, ou dedução: ele mesmo fez questão de afirmar.   No governo de Donald Trump, a contenção da China ombreia com a contenção do Islã político na lista de prioridades em política externa. E há dois séculos os EUA olham as terras do Alasca a Ushuaia pelas lentes da Doutrina Monroe, "América para os americanos". A conclusão é imediata.   Na teoria, os "americanos" de Monroe não são só os do norte, mas todos os habitantes entre o Estreito de Behring e o Canal de Beagle. Na prática, dada a brutal desproporção entre os Estados Unidos e os vizinhos, a doutrina reserva o território à influência norte-americana, excluindo da denominação o Canadá e o México.   É esperado portanto que em períodos de disputa aberta da hegemonia Washington aperte o torniquete por aqui. Foi assim nas pressões sobre Getúlio Vargas na Segunda Guerra e na deposição de João Goulart, acontecimento que aliás só é explicável no contexto da Guerra Fria deles contra a União Soviética.   No front externo, Bolsonaro precisaria absorver ao menos em parte a sabedoria de Getúlio. O único erro que o líder da Revolução de 30 não podia correr na Segunda Guerra era terminar encaixotado do lado errado da história. E não cometeu. Pendulou, mas alinhou-se aos vitoriosos a tempo, e com ganhos materiais para o Brasil.   Nações com capacidade limitada de projeção de poder, hard ou soft, precisam de governantes com frieza, cinismo e inteligência para pendular sem arriscar o pescoço, o deles e o do país, e timing para alinhar no lado e momento certos. Assim é também quando se olha a disputa agora de hegemonia entre Estados Unidos e China.   A China é o contendor mais formidável que os EUA já tiveram, se não globalmente ao menos por aqui. Apenas para pegar os últimos cem anos, nem alemães nem soviéticos tinham em escala parecida as duas mercadorias que os chineses têm em abundância e oferecem aos países da América do Sul: capitais e mercados.   O principal nó da política dos EUA para as Américas é desejar reduzir a influência chinesa aqui quando, ao mesmo tempo, Trump impulsiona ali o buy american and hire american. Resta o quê? Os laços civilizatórios que unem os americanos do norte, do centro e do sul. E principalmente a força militar.   É visível que os Estados Unidos estão empenhados em fortalecer e impulsionar governos amigos na região. Mas há o detalhe: numa era em que os países sul-americanos mantêm eleições periódicas, o esforço americano para conter o soft power do dinheiro e do mercado chineses só se pagará se trouxer resultados aqui.   Pode-se gostar ou não do que escreve o novo chanceler, Ernesto Araújo, a respeito do papel de Trump na defesa do que chama de Ocidente. Lá na frente, entretanto, a política externa do governo Bolsonaro será julgada pelos resultados materiais que o Brasil vai colher da aproximação com a Casa Branca.   O presidente eleito tem o direito de desconfiar da penetração maciça de capitais chineses no Brasil. Mas precisará apresentar alternativas. Precisará mostrar que sua política externa abriu mercados a atraiu capitais para impulsionar o avanço das empresas brasileiras e melhorar a vida dos trabalhadores brasileiros.   Ao fim e ao cabo, o que o novo chanceler escreveu em seus artigos e seu blog ficará apenas para análise dos historiadores e dos acadêmicos. Porque, como dizem os americanos, at the end of the day os resultados materiais serão o parâmetro para saber se a política externa da dupla Bolsonaro-Araújo deu certo ou errado.   Até a semana que vem.
quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Acabou o mimimi, diz Alon Feuerwerker

Que a eleição deste ano selou o colapso da Nova República já se disse. Mas esse colapso ensaia ser mais amplo. Parece ter fim também o pilar central das políticas econômico-sociais pós-redemocratização: a ideia de promover inclusão social principalmente pelo redistributivismo via Estado. As políticas sociais não vão acabar, mas sairão de moda. O pensamento econômico-social estruturante do novo regime é nítido: só mais capitalismo, e com menos amarras, será capaz de promover crescimento e prosperidade, inclusive para os mais pobres. Se vai funcionar, ou até quando, é outra história. Na teoria, serão uma linha e uma agenda do agrado do mundo empresarial. Mas atenção: o "choque de capitalismo", para funcionar, terá de atacar cartórios e benesses que sustentam o status quo na economia brasileira há décadas, ou há séculos. Aqui, como Fernando Collor na largada, talvez Jair Bolsonaro deixe a direita indignada. Mas Collor não disse só isso, disse também que deixaria a esquerda perplexa. Acho que agora não vai acontecer, pois até as franjas mais moderadas da esquerda começam a perceber a disposição de combate e o plano estratégico do adversário. Vem aí um período de sofrimento operacional para a nova oposição. Até porque o novo regime não perece muito preocupado com certas formalidades que estiveram em moda nas 3 últimas décadas, quando jogar o jogo democrático-parlamentar-institucional era visto como valor pela opinião pública e pela sociedade. Agora, o jogo mudou: a única regra é "não se faz omelete sem quebrar os ovos". O plano de voo inicial parece seguir 2 "sem" Sem políticos e sem luvas de pelica, que no jargão das hoje célebres redes sociais é o "sem mimimi". Vai dar certo? Dependerá essencialmente da economia, onde as perspectivas não são tão cinzentas, já que vivemos um início de recuperação, até certo ponto inevitável depois da recessão de 2015/16. E a esquerda? Vai enfrentar um período operacionalmente difícil mas politicamente promissor. Também porque no novo regime, apesar dos muitos militares influentes, parece que ninguém leu Sun Tzu. Quando você não deixa uma saída para o inimigo ele vai multiplicar as próprias forças e a disposição de combate, para sobreviver. * Para já ir adotando a novilíngua dos novos tempos, as reclamações contra a nomeação de Sérgio Moro para a Justiça serão recebidas como mimimi. Mais uma evidência de que certas formalidades e salamaleques da hoje velha Nova República deixaram de ter serventia e repousam no arquivo à espera apenas de algum historiador curioso.
2022 está mais visível a partir de 2018 do que 2018 visto de 2014. Naquele final de ano, Dilma Rousseff fora reeleita e Aécio Neves era o principal líder da oposição e candidato natural ao Planalto. Mas havia uma crise econômica e uma Lava Jato no caminho. Depois Dilma foi deposta, e não se elegeu ao Senado agora por Minas. Aécio teve de recuar para a Câmara. Se não houver surpresas (como é perigosa essa premissa!), Jair Bolsonaro será candidato à reeleição sem desafiantes sérios na direita. Se houver surpresa, o nome virá do bolsonarismo. Podendo vir até da nova sublegenda bolsonarista, o PSDB. Os tucanos foram a Fênix do segundo turno, ao custo de mandar ao arquivo as últimas veleidades "de centro". Mas sobreviveram. Bolsonaro não tem desafiantes na direita porque a velha guarda do bloco foi aposentada ou jogada às traças, e porque as novas estrelas podem todas concorrer à reeleição em 2022. Caso dos governadores de SP, RJ, MG e GO. Eis por que o novo presidente terá muita dificuldade se quiser acabar com a reeleição para já. Desarrumaria demais a coisa na base natural dele. Vai saber... No Brasil nem o passado é previsível. Azar de quem vive de fazer previsão. Mas uma tem grande chance de emplacar: a opinião pública vai ser tomada por movimentações sobre uma oposição de centro ao bolsonarismo. Assunto que ocupará tempo e espaço até que sua anemia seja finalmente constatada. Não que isso vá impedir a continuação do sonho. Acontecerá também na esquerda. Surgirão estímulos para alternativas não petistas. Se o PSB tivesse vencido em SP seria o pivô disso, e Márcio França estaria a caminho de disputar a vaga com Ciro Gomes. Mas perdeu. E Ciro? Dinamitadas as pontes, dependerá da condensação de um antipetismo de esquerda. Não parece muito promissor. Até porque o PT estará na oposição. Mas vai saber... Hoje o centrismo anda em baixa pelo mundo. A última vítima desse declínio parece ser Angela Merkel, que se debate para continuar agarrada a um poder a caminho de lhe escapar. A crise de 2008/09 vem produzindo coisas parecidas com as trazidas pela sua velha parenta de 1929. Não que o desfecho vá ser o mesmo. Mas também é bom ficar de olho. Para já, é provável que um bolsonarismo neoempoderado tente reduzir a influência do petismo no Nordeste. Por ser governo tem uma chance. Mas é erro achar que o Nordeste votou com o PT apenas por governismo. Aliás o PT nem governo mais é. O novo regime precisará de políticas concretas contra a pobreza e a desigualdade regional. Vai conseguir fazer sem dinheiro? Também é provável que a esquerda cresça no Sul/Sudeste, graças inclusive a certos aspectos culturais algo caricaturais do bolsonarismo, e das características do caminho econômico proposto. A não ser que se consiga trazer crescimento econômico com forte criação de empregos de qualidade. Não tem sido a tradição por aqui nas últimas décadas. Mas quem sabe? O certo é que uma hora o circo da agenda dita comportamental não mais será suficiente e precisará aparecer o pão, lato sensu. O novo governo receberá uma camadinha de tolerância, mas ainda está por ser medido quanto ela durará. O bolsonarismo vai manter agregada sua base no curto prazo estigmatizando a esquerda, mas uma hora isso não mais bastará. E tem a política externa. A tendência é uma melhor coordenação entre o Itamaraty e o Departamento de Estado, mas é ingenuidade achar que a atual orientação é responsabilidade do PT. Ela vem desde pelo menos os governos militares, e sobreviveu intocada a todo tipo de alternância após a redemocratização. A disrupção ali vai enfrentar resistência institucional. É preciso saber quais as vantagens comerciais e outras econômicas que a Casa Branca está disposta a oferecer a Bolsonaro em troca de um maior alinhamento do Planalto. Bom estar atento, para saber disso, às eleições parlamentares ali mês que vem. Se elas reconfirmarem o poder de Donald Trump será um cenário. Mas e se não? E nunca é prudente subestimar o nacionalismo entre nós. Ele anda meio démodé por causa do desgaste do petismo e da renovada atratividade de uma direita liberal. Mas o nacionalismo está por aí à espera das dificuldades da vida real. Esperando o "novo Brasil" encontrar seu primeiro inverno. Cuja chegada aliás é a única previsão com 100% de probabilidade de acerto.
A revolta contra a corrupção tem servido de combustível para as macroalternâncias de poder no Brasil do último mais de meio século. Em 1964 a intervenção militar anunciava-se com o objetivo de eliminar a subversão e a corrupção. Em 1985 repudiou-se a corrupção ligada à falta de democracia. Agora rejeita-se a corrupção associada à reprodução da política. Mas é preciso algum cuidado na análise porque a troca de guarda, que atingiu especialmente o lado direito do espectro político, não teve como característica alavancar personagens que fizeram da luta anticorrupção o vetor principal de sua trajetória recente. A onda de degolas e esmagamentos, ao contrário, pegou muitos nomes das hostes anticorrupção. Um detalhe curioso deste segundo turno é o ainda pouco impacto que acusações e revelações de irregularidades têm tido sobre o desempenho de alguns candidatos-surpresa, lançados ao palco pelo tsunami bolsonarista do final do primeiro turno. Há algum desgaste aqui e ali, mas nada que, por enquanto, tenha produzido onda em sentido contrário. 2018 é diferente de 1964 na metodologia: em vez de um golpe, eleições. Mas na essência ambas as situações são antagônicas a 1985: busca-se a ordem imposta pela autoridade, em vez de enxergar no modorrento jogo político democrático a saída para os impasses da economia e da vida cotidiana. A Nova República colapsa não apenas nos atores, mas na ideia em si. Daí que o tsunami tenha trazido à praia não principalmente uma leva de combatentes da corrupção, mas uma onda de personagens simbólicos e de currículo ligado à imposição de autoridade, inclusive com o uso da violência. O próprio Bolsonaro é o exemplo mais nítido: o que em eleições anteriores seria visto como defeito hoje é louvado, ou ao menos tolerado. Ainda falta uma semana para o segundo turno, mas se não vier outra surpresa fechar-se-á o ciclo da alternância. Não com o PT, e aliás o governo nem é mais do PT, mas com o sistema (re)inaugurado em 1985, onze anos depois de a Aliança Renovadora Nacional, a governista Arena, ter sido esmagada na urna pelo oposicionista Movimento Democrático Brasileiro. Aliás o então regime só sobreviveu mais uma década a 1974 por causa de mudanças legislativas impostas para evitar alternância no poder. O casuísmo mais exuberante foi o Pacote de Abril de 1977. De um certo ângulo, a derrota eleitoral de 1974 foi o início do fim do ciclo. E, a rigor, a eleição deste ano é a primeira grande onda contra aquela de quase meio século atrás. Na aritmética a Câmara tem três dezenas de siglas e o Senado duas dezenas. Na política os agrupamentos que tranquilamente fariam parte de uma "Arena" conquistaram de longe maiorias nas duas casas. O que corresponderia ao velho MDB (não o de agora) foi absorvido pela "rearenização". E a oposição a essa maioria está circunscrita à esquerda. Em 1974 o maremoto antigovernista foi provocado principalmente pela decepção com a economia. O milagre econômico passara, a inflação estava de volta. E a população, claro, castigou o governo. Mas o governo tinha recursos para não cair, e com o tempo o eleitorado acabou trocando o regime. Com as acusações de corrupção de sempre turbinando a coisa. Agora, depois de uma recessão de tempos de guerra nos governos Dilma e Temer em 2015/16, o eleitor foi à urna pela mudança. Varreu o autodenominado centro, talvez a representação mais paradigmática da Nova República. E circunscreveu a esquerda a um cercadinho. Para a alternância "da ordem", escolheu o produto que estava disponível. Uma Arena do século 21. Qual é o problema? Os governos que a Arena apoiava tinham à disposição forças praticamente ilimitadas para impor seu diktat. Em 2019 a ordem eleita deverá ser imposta por meio dos mecanismos constitucionais democráticos da Constituição de 1988, a que já cansou. Um eventual novo governo de direita, que parece provável, estará circunscrito a isso. Pelo menos num primeiro momento, ou até a coisa ameaçar atolar. Uma característica da alternância de agora é a emergência de múltiplos entes estatais empoderados pelas ações contra a corrupção. Já escrevi aqui que o próximo movimento do novo Executivo deverá ser a (re)imposição do seu Poder Moderador. Tem número no Congresso para isso. Mas não basta. Reescrevendo o Garrincha, vai ter de combinar com alguns russos.
1) Finalmente acabou a Nova República O primeiro turno fechou a era da Nova República, inaugurada em 1985. Os dois pilares básicos dela finalmente ruíram: o governo dos políticos e a política no governo. O frentismo centrista neste segundo turno é exigido do PT apenas como gesto de capitulação final. Pois não se exige o mesmo do nome do PSL. O vetor dominante agora é antifrentista. A hora é dos bonapartes. 2) Próximo movimento será o Executivo retomar o Poder Moderador O Brasil já teve um bocado de Constituições, mas nunca deixou de ter um Poder Moderador, como o imposto desde D. Pedro I. Quando Executivo e Congresso foram para o ralo nos acontecimentos recentes a coisa escorreu para o Judiciário e as Forças Armadas. Se o novo presidente quiser governar mesmo, não ser só um figurante, vai ter de retomar esse poder. 3) Narrativas têm consequências. Frentismo? Difícil Os criadores da narrativa da "ameaça dos extremos" tiveram mais sucesso na difusão da tese na imprensa do que entre os eleitores. Mesmo com a ideia maciçamente martelada na campanha. Mas se poucos dias atrás o sujeito dizia que PT e Bolsonaro eram ameaças iguais, como explicar agora a necessidade de se aliar a um para derrotar o outro? Complexo. 4) O tsunami pegou em cheio quem estava na praia Se você tem o poder de provocar um terremoto, não é prudente esperar na praia pelo tsunami. O terremoto começou em 2013 e ganhou intensidade em 2015/16. Agora veio a onda, que atingiu muita gente, mas principalmente quem está no governo central. Quem havia sido empurrado para a montanha, mesmo contra a vontade, teve mais chance de sobreviver. 5) Engenharia de obra feita é fácil. E pode ser útil de vez em quando O "se" não joga. E depois de a coisa acontecer é fácil falar. Mas se o nome do PSDB fosse de direita raiz, e não nutella, é razoável supor que seria mais competitivo e as bancadas não sofreriam tanto. Retrospectivamente, foi errado Alckmin acreditar na teoria do "candidato de centro" e foi errado Dória não se apresentar para a disputa política aberta dentro do partido. 6) O apreço pela democracia detectado nas pesquisas é duvidoso As pesquisas garantem que o brasileiro adora a democracia. Mas talvez não se tenha explicado direito aos pesquisados o que é "democracia". Qual seria o resultado se se perguntasse algo como "você acha aceitável o governo oferecer cargos aos partidos para eles apoiarem o governo, inclusive no Congresso?" Eu tenho um palpite sobre a resposta. 7) Quem quiser ser candidato em 22 tem de começar já O debate "TV x redes sociais" ainda corre, e sem que haja evidências definitivas a sustentar as opiniões definitivas. Mas uma coisa é certa. Se a campanha eleitoral de 2018 foi longa, a de 2022 será mais longa ainda. Na real, o segundo turno deste ano já é em certa medida um ensaio para daqui a quatro anos. Quem chegar antes no córrego vai beber água limpa. 8) É possível a guerra política contornar a agenda econômica Mesmo antes da eleição já se nota alguma convergência nas agendas econômicas, como era previsível -e foi previsto. Mas a guerra política terá combustível de sobra na agenda não econômica. Ensaia-se um cenário tipo Trump. Uma quase guerra civil em assuntos não econômicos mas a economia contornando a confusão, pelo menos até certo ponto. 9) As pessoas falam mal das pesquisas mas continuam obcecadas por elas neste segundo turno. Até mais.