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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Como o vinho está na moda, vou relembrar um caso ocorrido com meu amigo de todas as horas, Outrem Ego. Ele me disse que certa vez, foi convidado para ir com outro amigo dele a um jantar na casa de um empresário, muito bem sucedido. Lá chegando, foram convidados para irem ao andar debaixo, numa espécie de subsolo, para conhecer a adega de vinhos. Suntuosa, muito bem equipada e com um estoque de centenas de garrafas, muitas delas raras adquiridas em leilões internacionais e, claro, caríssimas. Todas devidamente catalogadas pelo próprio proprietário que, com muito orgulho, as mostrou dando ênfase em vários rótulos. Meu amigo se animou. Pensou: "Me dei bem. Hoje tomarei um vinho que jamais poderia tomar". Mas, que nada. Feita a visita à adega, o anfitrião os levou para o andar térreo, onde estavam outras três adegas, dessas vendidas em lojas de eletrodomésticos (embora das maiores e mais sofisticadas) e, abrindo uma das portas, escolheu duas garrafas de vinho e dali dirigiram-se à mesa para o jantar. Eram bons vinhos, mas nada que pudesse fazer frente aos raros e espetaculares da adega e que chegaram a passear nos sonhos de meu amigo. Depois, quando deu, O. Ego perguntou ao outro amigo: "Ele não bebe os vinhos lá debaixo?". "Não", respondeu, "É só para ver. Não para beber". Meu amigo retrucou: "Ele nunca beberá? Nem em ocasiões especiais? Ou com pessoas especiais?". "Acho que não. Até porque, pela idade dele e com tantas garrafas armazenadas, para toma-las todas ele já deveria ter começado a fazê-lo há muito tempo. E essas que ele bebe, ele compra a toda hora". Quando ele contou essa história, me disse: "O sujeito compra um monte de vinhos só para olhar para os rótulos e garrafas? Ele as admira como se fossem troféus! Se ainda guardasse como investimento, se deixasse os vinhos envelhecerem e depois os vendesse... Ou, então, podia guardar as garrafas vazias junto das avaliações feitas após ter bebido o conteúdo!". Pois é. Existe uma tradição na coleção de objetos. Coleciona-se selos, moedas, joias etc. e que remontam a tempos antigos, como comprovam as exposições de museus. Naturalmente, coleciona-se figurinhas até hoje, mas até isso é diferente de nosso romântico tempo de criança. Com a facilidade das compras e a quantidade de ofertas, muitas pessoas passaram a colecionar uma série de objetos. Coleciona-se canetas, bolsas, sapatos, gravatas, ternos, vestidos, automóveis (!), vinhos etc. Claro que isso é problema de cada um. Quem pode, acaba fazendo, se lhe aprouver, mas chama a atenção a manutenção de certas coleções. Ademais, já se disse que a sociedade capitalista é da abundância. Só que isso, não corresponde à realidade. Abundam produtos e serviços, mas faltam condições básicas de sobrevivência para milhões de pessoas. Aliás, toda vez que uma empresa coloca no mercado algo novo, não é a abundância sua característica, mas sua falta para a maior parte dos que não podem comprar. Então, nessa terra de escassez, manter produtos guardados sem finalidade pode ficar sem sentido. Evidentemente, que há muitas coisas que se pode ter em casa para um dia usar de verdade. Se a pessoa mantém guardados livros ou músicas e filmes nos vários formatos existentes, ela certamente poderá utilizá-los. Este é o exemplo típico de coleção que vale a pena ter: livros, filmes, músicas. Mesmo que nós compremos um livro para apenas um dia no futuro lê-lo. Quem sabe, num dia de chuva a pessoa olhe para o livro na estante e, finalmente, resolva lê-lo. Vale mesmo a pena tê-lo ali por perto. Lembro-me de uma entrevista que li com Umberto Eco. Não sei exatamente os números que o entrevistador usou. Mas, ele dizia que uma pesquisa apontava que milhões de leitores do famoso escritor italiano haviam comprado o último livro que ele publicara, mas que apenas metade (não sei o percentual exato, repito) o havia lido e perguntava o que ele achava disso. Sua resposta foi a de que tudo indicava que as pessoas queriam ler o livro, mas estavam esperando a oportunidade para fazê-lo. Tê-lo comprado era algo importante porque quando surgisse a oportunidade, elas iriam lê-lo. Sim, sem dúvida. Mas, valerá e pena guardar gravatas? Um homem precisa mesmo ter em seu armário vinte ou trinta gravatas (Ou mais)? Uma mulher trinta bolsas ou trinta sapatos (ou mais)? Aliás, como o design desses produtos varia com o tempo (quero dizer, com a moda imposta ao comportamento social, que muda com o passar do tempo), muitos deles ficarão sem utilidade e muitos sequer serão usados. Precisamos pensar mais em nossos modos de consumo. E, como disse meu amigo: "Para quem aprecia vinhos, dá uma sensação muito estranha olhar para as garrafas sabendo que ninguém irá provar seus conteúdos"!
Já cuidei do assunto dos transportes, nesta coluna, mais de uma vez e sempre deixando claro que se trata de serviço essencial, no qual o consumidor-usuário está em desvantagem exagerada diante do fornecedor do serviço, seja este público ou privado. E, tendo em vista essa posição de inferioridade, o usuário, que fica à mercê do prestador, pode sofrer toda sorte de abusos. Daí que, nesse setor, a intervenção do Estado diretamente ou por agências faz-se necessária para, regulamentando e controlando os serviços oferecidos, garantir os direitos dos passageiros. Tenho abordado os serviços do transporte aéreo e verificado que a ANAC, agência que deveria cuidar do setor, tem feito muito pouco em prol dos consumidores e, pior, tem baixado medidas em detrimento de seus direitos (como ocorreu, por exemplo, com a edição da resolução 400/2016). Na órbita internacional, seria preciso que órgãos supranacionais regulamentassem os serviços, o que, infelizmente, ocorre de forma muito frágil. Nessa área, o consumidor está ao deus-dará. Bem, se no setor aéreo é ruim, no transporte terrestre não é lá muito diferente. Anoto, antes de prosseguir, uma espécie de espanto de quem pensa no assunto. Tanto num como noutro, há serviços bem produzidos e bem oferecidos. Mas, não adianta: mais cedo ou mais tarde surgem as falhas e os abusos e fica patente o desinteresse pela manutenção da qualidade global do serviço oferecido. Veja, caro leitor, o que aconteceu com meu amigo Outrem Ego. Ele tem parentes em Juiz de Fora e foi para lá algumas vezes, via ônibus leito, saindo de São Paulo. E elogiou o serviço mais de uma vez. Disse: "É pontual, limpo, seguro, bem feito, o atendimento é simpático, os ônibus são bem dirigidos etc.". Ele indicou o serviço. "Vale a pena!", disse. Mas, como costumo dizer, no setor de transportes, bastou elogiar para algo sair errado. Veja o que aconteceu com ele na última viagem que fez para Juiz de Fora. Como das outras vezes, ele ligou para o serviço de atendimento da empresa transportadora. Escolheu horário de ida e volta nos ônibus-leito, deu seu nome e RG, assim como o de sua esposa, e pagou com cartão de crédito. Tudo certinho. Bem... Meu amigo recebeu a confirmação das passagens solicitadas via e-mail. Nesse momento, viu que seu número de RG estava errado, assim como o nome de sua esposa. Ligou, então, de volta para o serviço de atendimento. E aí começaram as decepções... O atendente disse que ele precisaria ir à Estação Rodoviária e pessoalmente solicitar a alteração no balcão da companhia. Mas, ele não tinha tempo. Aliás, não é para economizar tempo que se fazem compras via web? Outrem Ego argumentou: "Eu não tenho culpa alguma no episódio. Dei nossos números de RG e nossos nomes. Foi a atendente de vocês que anotou errado"! "Sei, disse o atendente. Há uma outra alternativa: o senhor pode chegar na Rodoviária 3 horas antes e resolver o problema no guichê". Claro que ele não topou e começou a protestar. Nisso, o atendente, disse: "Calma, meu senhor. Há uma saída... Nós cancelamos sua compra e fazemos uma nova". Meu amigo, aliviado, respondeu: "Até que enfim. Porque você não disse logo". Ah, como a alegria dura pouco para consumidores brasileiros! O atendente, então revelou: "Vou cancelar. O senhor terá apenas que pagar uma multa de 5%"! "What?", diria qualquer um. "Vocês cometem o erro e eu pago a conta?". "Sim, não há outra alternativa...", respondeu o atendente. Meu amigo, sem saída, topou indignado e imaginando que aqueles ônibus leitos não eram tão bons quanto pareciam... Eis o problema: abusos no varejo contra consumidores indefesos. Contra consumidores que não têm outra alternativa a não ser obedecer e/ou pagar uma multa. Normalmente, pequenos valores que não estimulam a reclamação, pois para reclamar se gasta mais tempo e mais dinheiro. No caso, a multa foi de cerca de R$9,00 por passagem. Há solução? A primeira, que infelizmente não se concretiza, é a dos empresários tornarem-se respeitadores dos direitos de seus usuários. Mas, neste capitalismo, onde se sabe que os clientes não têm alternativa, está difícil. A segunda, é a atuação do Estado diretamente e/ou por intermédio de suas agências, visando a garantir os direitos dos usuários. Por aqui, nós sabemos que isso não existe. Resta a terceira alternativa: o Poder Judiciário, mas penso que apenas por intermédio de ações coletivas nas quais se pleiteie a condenação por danos morais coletivos. Isso porque, as ações individuais são inviáveis por seus pequenos valores e resultados pífios que não assustam os infratores. Somente punições em elevados valores nas indenizações em ações coletivas podem fazer o quadro mudar. O dinheiro arrecadado cumpriria um duplo papel: o de obrigar o empresário a se emendar e a arrecadação para o Fundo da Lei de Ação Civil Pública, que poderia ajudar a controlar mais de perto o setor.
quinta-feira, 26 de abril de 2018

No futuro será assim? Ou já é?

Recebi um texto interessante sobre o sistema integrado de informações públicas e privadas da sociedade atual. Fiz algumas modificações e acréscimos e passo adiante com a pergunta: será que já estamos assim? Segue: O telefone toca: -- Alô! De onde falam?-- É do Google's Pizza.-- Ah, desculpe, foi engano. Aí não era a Pizzaria Mais Sabor?-- É aqui mesmo. A Google comprou. E as pizzas estão mais saborosas ainda...-- Então tá! Anote meu pedido, por favor.-- O senhor vai querer a de sempre?-- Sim... Bem, você tem marcado aí o que eu costumo pedir?-- Um momento. A planilha ligada a seu número de telefone aponta que nas últimas 8 chamadas, o senhor pediu uma grande, meia calabresa meia margherita, massa grossa. -- É isso mesmo que eu quero... -- Mas, um momento. Vejo que o senhor também pede por uma outra linha, a de final 8932. E por ali, nos últimos 4 pedidos, o senhor pediu uma grande de muzzarela. -- É da casa da minha mãe, e ela não gosta de calabresa. Mas, eu gosto. Pode mandar meia calabresa, meia margherita. -- Bem, posso sugerir, desta vez, uma mais leve? Tipo, meia ricota, meia rúcula com tomate seco, massa fina?-- Irgh! Cruz credo! Nem parece pizza!-- Não queremos ser estraga prazer... Mas, é que... Seu colesterol está elevado... -- Como você sabe?-- No cruzamento de sua linha com seu CPF e os cadastros de exames aos quais temos acesso, vejo aqui na sua planilha de saúde, que o senhor precisa se cuidar... Aliás, foi o que o cardiologista deve ter dito na consulta que o senhor fez no mês passado... -- Ok, mas eu quero minha pizza! Estou tomando os remédios direitinho.-- Desculpe-me, mas vejo que o senhor não tem tomado remédio regularmente. Pelo nosso banco de dados comerciais, faz 2 meses que o senhor adquiriu uma caixa com 30 comprimidos para colesterol com desconto na Rede Drogasil, onde é cadastrado. A receita médica mandava tomar 1 comprimido por dia. Logo, o senhor não está tomando seus medicamentos... -- Posso ter comprado em outra farmácia! -- Até pode, mas o senhor faz todos seus pagamentos com seu Cartão Mastercard Black, final 4804, e vejo que a última compra de medicamento foi mesmo há 2 meses -- Agora eu te peguei. Posso ter pago com cheque ou dinheiro!-- Cheque... O senhor retirou o último talão há mais de 1 ano. Foi há 14 meses e só foi passado um único cheque no valor de R$80,00 para pagar um almoço no Rascál. Nossos cadastros não falham... Provavelmente, naquele dia o senhor esqueceu o cartão de crédito em casa. E quanto ao dinheiro, só se pediu emprestado para alguém, pois o senhor não está acostumado a fazer retiradas no banco... -- Ah, agora você falhou. Eu retiro todo mês R$1.200,00! -- Sim, mas é para pagar sua ajudante doméstica. E, sem querer ser chato... o senhor poderia aumentá-la um pouco. Faz tanto tempo que ela trabalha na sua casa... -- Como você sabe? -- Ora, os dados do e-social demonstram isso. -- Eu vou desligar. Não quero mais pizza! -- Calma, senhor. Nós utilizamos essas informações apenas com a intenção de ajudá-lo.-- Bem, mas não tá ajudando... -- Desculpe. Acho que deveria ter ido mais devagar com o senhor. Veja como nós nos preocupamos. Na última vez que o senhor passou no pedágio, a câmara lá instalada deixou transparecer uma certa saliência em sua barriga... -- Como? -- E agora... Espere um pouco... Sim, pela câmara da padaria que o senhor frequenta, posso confirmar que sua barriga cresceu muito no último ano. Ah... Chegou a resposta: o senhor parou de ir à academia, porque agora tem que ir mais cedo ao seu trabalho... -- Chega. -- Espere mais um pouco. Eu tenho uma oferta pro senhor. A Google's Academia tem várias instalações e uma é bem pertinho de sua casa. O senhor pode começar a fazer esteira amanhã mesmo à noite. Nós oferecemos um bom desconto na primeira mensalidade. O senhor pode voltar a fazer esteira 3 vezes por semana, como fazia antes... -- Chega! Estou cheio de vocês. De Google, de Facebook, de twitter, de WhatsApp, dessa falta de privacidade. Vou fugir para uma ilha deserta no meio do pacífico, onde não haja nada disso! - Entendo senhor... Mas tem uma última coisa.- O quê???- Seu passaporte está vencido!
quinta-feira, 19 de abril de 2018

A proteção contratual no CDC

Atendendo a pedidos e também porque, a cada dia, nós da área jurídica, ficamos mais inseguros na medida em que parece mesmo que se pode falar qualquer coisa a respeito de qualquer coisa, tratarei de alguns dos princípios fundamentais para se interpretar e entender os contratos no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Por mais que a linguagem tenha, de fato, uma certa elasticidade, é muito importante que nós possamos enxergar um horizonte seguro e possível de interpretação. E, no caso específico dos contratos no CDC, há regras e princípios que precisam ser respeitados. Começo, então, cuidando do dever de informar e do princípio da transparência. Com efeito, o dever de informar é princípio e norma no CDC, por disposição do art. 6º, III, e art. 311. De fato, na sistemática da legislação consumerista o fornecedor está obrigado a prestar todas as informações acerca do produto e do serviço, suas características, qualidades, riscos, preço etc., de maneira clara e precisa, não se admitindo falhas ou omissões. Trata-se de um dever exigido mesmo antes de se iniciar qualquer relação. Impõe-se ao fornecedor o dever de informar, na fase pré-contratual, isto é, na oferta, na apresentação e na publicidade. E essa informação obrigatória vai integrar o contrato2. Concomitantemente ao dever de informar, aparece no CDC o princípio da transparência, traduzido na obrigação de o fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de conhecer o conteúdo do contrato previamente, ou seja, antes de assumir qualquer obrigação. Tal princípio está estabelecido no caput do art. 4º e surge como norma no art. 46, de modo que, em sendo descumprido tal dever, o consumidor não estará obrigado a cumprir o contrato3. O CDC reconhece um fato: o de que o consumidor é vulnerável na medida em que não só não tem acesso ao sistema produtivo como não tem condições de conhecer seu funcionamento (não tem informações técnicas), nem de ter informações sobre o resultado, que são os produtos e serviços oferecidos4. Esse reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida na Constituição Federal. Significa que o consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico. O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção não se está referindo apenas aos aspectos técnicos e administrativos para a fabricação de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas também ao elemento fundamental da decisão: é o fornecedor que escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido. O segundo aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, via de regra, o fornecedor tem em relação ao consumidor. É fato que haverá consumidores individuais com boa capacidade econômica e às vezes até superior à de pequenos fornecedores. Mas essa é a exceção da regra geral. Claro que essa vulnerabilidade se reflete em hipossuficiência no sentido original do termo - incapacidade ou fraqueza econômica. Mas o relevante na vulnerabilidade é exatamente essa ausência de informações a respeito dos produtos e serviços que se adquire. Por isso que, na interpretação dos contratos, tem-se de levar em conta a vulnerabilidade e a hipossuficiência do consumidor. Com base na proibição de qualquer forma de abuso do direito, expressamente estabelecida nos arts. 39 a 41 do CDC, que regula as práticas abusivas, firmou-se o entendimento de nenhuma forma de abuso está permitida. A questão está fortemente enraizada e surge de vez e definitivamente como princípio basilar nas relações de consumo, obrigando o intérprete a considerá-la sempre como fonte para entendimento do contrato. Na realidade, é preciso lembrar que o princípio do protecionismo é o que inaugura o sistema da lei consumerista5. Decorre diretamente do texto constitucional, que estabelece a defesa do consumidor como um dos princípios gerais da atividade econômica (inciso V do art. 170) e impõe ao Estado o dever de promover a defesa do consumidor (inciso XXXII do art. 5º). Por isso, no que tange às questões contratuais, não se pode olvidar o protecionismo que, superadas as demais alternativas para interpretação, tem de ser levado em conta para o deslinde do caso concreto. Assim, vige o princípio da interpretatio contra stipulatorem. Com base nele, nos contratos de adesão, havendo cláusulas ambíguas, vagas ou contraditórias, a interpretação faz-se contra o estipulante. Contudo, na lei consumerista, esse princípio veio estampado de maneira mais ampla no art. 47, que estabeleceu que "as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor". Isto é, toda e qualquer cláusula, ambígua ou não, tem que ser interpretada de modo mais favorável ao consumidor. Por fim, lembro que o princípio da boa-fé objetiva acabou formando um "chapéu" em torno dos direitos subjetivos das partes, de modo que nenhuma forma de abuso do exercício do direito pode ser tolerada. Isto é, a boa-fé limita o exercício do direito subjetivo para evitar qualquer tipo de abuso, o mínimo que seja. E, neste caso, o princípio aplica-se tanto ao fornecedor como ao consumidor. Como subproduto do princípio da boa-fé está o dever de cooperação e o dever de cuidado, que examino na sequência. O verbo "cooperar" tem o sentido de operar simultaneamente, trabalhar em comum, colaborar. Em termos contratuais, então, o dever de cooperação nada mais é do que sempre colaborar para que o contrato atinja o fim para o qual foi firmado. Será contrária ao dever de cooperação a ação do contraente que inviabilize a atuação da outra parte quando esta tentar cumprir sua obrigação. Por exemplo, a ação do fornecedor impondo certas dificuldades para que o consumidor efetue o pagamento: limitação de horas, especificação de locais especiais etc. O dever de cuidado, por sua vez, diz respeito ao resguardo da segurança dos contraentes. Em poucas palavras, pode ser traduzido no dever de um contraente para com o patrimônio e a integridade física ou moral do outro contraente. É a obrigação de segurança que a parte deverá ter para não causar danos morais ou materiais à outra. __________ 1 "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem". "Art. 31. A oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores". 2 Ver o teor do art. 30, que dispõe: "Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apre­sentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado". 3 Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios (...) Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. 4 Art. 4º (...) I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências; 5 "Art. 1º O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias".
quinta-feira, 5 de abril de 2018

A Justiça no caso concreto

Hoje deixo de lado o Direito do Consumidor para, num curto texto, singelo, mas que entendo ser muito simbólico, cuidar do sentido de Justiça. Nos últimos dias (aliás, nos últimos meses) a Justiça tem sido o centro das atenções no Brasil. E escrevo este texto no dia de um julgamento muito importante no STF (cujo resultado não conheço, pois escrevo agora, nesta quarta-feira, dia 4 de abril, pela manhã). Há muito o que se falar sobre a Justiça. Mas vou apenas ilustrar o assunto, citando uma decisão judicial que está no meu Manual de Filosofia do Direito1 e que, penso, serve de inspiração àqueles que resolverem refletir sobre o tema. Trata-se de uma sentença proferida numa vara criminal de Porto Alegre que, como digo aos estudantes de Direito no livro, serve de alento de que a Justiça pode ser feita. Eis o texto: "M.A.D.A., com 29 anos, brasileiro, solteiro, operário, foi indiciado pelo inquérito policial pela contravenção de vadiagem, prevista no artigo 59 da Lei das Contravenções Penais. Requer o Ministério Público a expedição de Portaria Contravencional. O que é vadiagem? A resposta é dada pelo artigo supramencionado: 'entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho...'. Trata-se de uma norma legal draconiana, injusta e parcial. Destina-se apenas ao pobre, ao miserável, ao farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau de arara do Nordeste, o boia-fria do Sul. O filho do pobre, que é pobre, sujeito está à penalização. O filho do rico, que rico é, não precisa trabalhar, porque tem renda paterna para lhe assegurar os meios de subsistência. Depois se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de Direito. Realidade dura e crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego. Constatação cruel para quem, diplomado, incursiona pelos caminhos da Justiça e sente que os pratos da balança não têm o mesmo peso. M.A. mora na Ilha das Flores (?) no estuário do Guaíba. Carrega sacos. Trabalha 'em nome' de um irmão. Seu mal foi estar em um bar na Voluntários da Pátria, às 22 horas. Mas se haveria de querer que estivesse numa uisqueria ou choperia do centro, ou num restaurante de Petrópolis, ou ainda numa boate de Ipanema? Na escala de valores utilizada para valorar as pessoas, quem toma um trago de cana, num bolicho da Volunta, às 22 horas, e não tem documento, nem um cartão de crédito, é vadio. Quem se encharca de uísque escocês numa boate da Zona Sul e ao sair, na madrugada, dirige (?) um belo carro, com a carteira recheada de 'cheques especiais', é um burguês. Este, se é pego ao cometer uma infração de trânsito, constatada a embriaguez, paga a fiança e se livra solto. Aquele, se não tem emprego, é preso por vadiagem. Não tem fiança (e mesmo que houvesse, não teria dinheiro para pagá-la) e fica preso. De outro lado, na luta para encontrar um lugar ao sol, ficará sempre de fora o mais fraco. É sabido que existe desemprego flagrante. O zé-ninguém (já está dito) não tem amigos influentes, não há apresentação, não há padrinho, não tem referências, não tem nome, nem tradição. É sempre preterido. É o Nico Bondade, já imortalizado no humorismo (mais tragédia que humor) do Chico Anísio. As mãos que produzem força, que carregam sacos, que produzem argamassa, que se agarram na picareta, nos andaimes, que trazem calos, unhas arrancadas, não podem se dar bem com a caneta (veja-se a assinatura do indiciado a fls. 5v.) nem com a vida. E hoje, para qualquer emprego, exige-se no mínimo o primeiro grau. Aliás, grau acena para graúdo. E deles é o reino da terra. Marco Antonio, apesar da imponência do nome, é miúdo. E sempre será. Sua esperança? Talvez o Reino do Céu. A lei é injusta. Claro que é. Mas a Justiça não é cega? Sim, mas o Juiz não é. Por isso: Determino o arquivamento do processo deste inquérito. Porto Alegre, 27 de setembro de 1999. Moacir Danilo Rodrigues. Juiz de Direito - 5ª Vara Criminal". __________ 1 São Paulo; Saraiva, 7ª. Edição 2018 (Cap. VIII, item 10.2)
A escola pública no Brasil está falida. É o que dizem os especialistas e com fartas provas estatísticas de testes e tudo mais. E a escola privada? Muitas delas, caríssimas, em largos e imponentes prédios e com professores bem pagos. Deveria ensinar não é mesmo? Será que consegue? Ou se trata de prestação de serviços repleta de vícios, para ficar apenas numa componente prevista na legislação protecionista do consumidor. Muito bem. Mais uma vez, volto ao tema do péssimo e caro ensino das escolas privadas, porque entra ano sai ano e fica tudo igual. Falarei sobre esses vícios não muito aparentes, nem tão ocultos, que existem na prestação do serviço escolar. Focarei meu artigo no ensino básico (infantil, fundamental e médio). Como se sabe, o ensino escolar é típico produto de consumo, isto é, trata-se de prestação de serviços regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Levanto, pois, algumas questões para nossa reflexão, ligadas às escolas particulares e a respeito dos eventuais vícios ou defeitos existentes, mas nem sempre percebidos. Se perguntarmos para os pais por que eles colocam seus filhos em escolas particulares (a maior parte delas bastante caras) a resposta natural estará ligada à qualidade do ensino. "A escola pública não é boa", dirão. Muitos pais, inclusive, sacrificam-se para conseguir pagar as mensalidades. Na verdade, com o incremento cada vez maior do capitalismo de produtos e serviços essenciais que foram saindo das mãos do Estado e passando para a iniciativa privada, e com a queda da qualidade de ensino nas escolas públicas (agora refiro especialmente o Brasil, embora o mesmo fenômeno possa ser verificado em outros lugares), o que assistimos nos últimos trinta, quarenta anos foi a transferência de vagas da escola pública para a privada e o incremento das escolas privadas, muitas delas, atualmente, empresas enormes e altamente lucrativas. Várias adotaram o regime integral, oferecendo refeições e cursos extras como atividades para preencherem o espaço de tempo dos alunos, o que se coaduna com a falta de tempo dos pais, que trabalham o dia inteiro, de modo que se acabou fazendo um encaixe de interesses: os pais trabalham enquanto os filhos estudam, fazem esportes ou atividades artísticas, lúdicas etc., liberando os pais dessas preocupações. Coloco, então, uma questão básica em relação à lei: o que a escola particular oferece? Qual é sua oferta? Respondo: a escola presta serviços essenciais de educação. Os pais, quando colocam seu filho na escola particular, esperam que seu filho aprenda. Não é isso? Espera-se que sim. É obrigação da escola fazer com que o estudante aprenda. É para isso que ela existe e, como recebem boas remunerações para tanto, essa é sua contraprestação jurídica principal. Mais eis que, com o passar do tempo, algumas situações esquisitas em termos de cumprimento da oferta têm ocorrido. Por exemplo, em muitas escolas quando o aluno é matriculado ou no início do ano letivo, a Secretaria fornece o nome e telefone de professores que dão aulas particulares. Isso! A escola, desde logo, está dizendo: "Eu ensino, mas não tanto assim. Por isso, segue uma relação para que seu filho receba um reforço no aprendizado". Na realidade, o mercado de aulas particulares cresceu tanto nos últimos anos que, atualmente, há dezenas de professores que vivem exclusivamente dessa atividade e, muitas vezes, os pais têm dificuldade de encontrar horários para encaixar seus filhos. E mais: são várias as franquias para aulas particulares, eufemisticamente intituladas de "aulas de reforço". Há redes instituídas em todo país com dezenas de unidades em operação, como já mostrei aqui antes1. Os pais pagam, então, uma mensalidade escolar caríssima e outra (às vezes, do mesmo valor) para que seu filho tenha de estudar em casa ou na sede de franquias com professores particulares. Pergunta para reflexão: não deveria ser suficiente estar na escola? Esta cobra tão caro para o quê mesmo? Não é caso de vício do serviço? Ou até defeito, tendo em vista a extensão dos danos? Para que serve passar o dia inteiro na escola? Para que as mensalidades sejam mais caras, certamente. Seria mais um caso de vício na prestação do serviço? Façamos um resumo da prestação dos serviços. O fornecedor, uma escola, ou seja, uma empresa, oferece ensino para... ensinar aos alunos certos conteúdos ditados pelos órgãos governamentais e/ou decididos por ela e com métodos também criados e decididos por ela (escola). Para tanto, ela cobra certo valor mensal (a maioria das mensalidades tem preços bastante elevados). Estabelecida a relação jurídica de consumo, pelo contrato escolar, cabe aos pais pagar as mensalidades e ao prestador do serviço cumprir sua parte: ensinar os filhos matriculados! Pausa: antes que alguém, apressadamente, use um sofisma qualquer contra o que eu estou trazendo para reflexão, quero consignar que, evidentemente, não estou me referindo a alunos que tenham algum tipo de dificuldade própria de aprendizado ou que, por motivos especiais, não consiga aprender. Faço uma abordagem relativamente ao número enorme dos alunos que não apresentam qualquer tipo de problema para estudar e incorporar conhecimento. Algumas vezes, a situação beira o absurdo quando, por exemplo, grande parte dos alunos de uma determinada sala não consegue aprender. Para mim, como professor, quando, numa sala, 50% ou mais dos estudantes fica de recuperação, a falha é claramente do professor e da escola e não dos alunos! É esse o ponto: a escola não cumprir com a oferta; com seu dever de ensinar. Não esqueçamos disso: escola é feita para ensinar! Para terminar, conto aqui uma história que vivi como professor na Faculdade de Direito da PUC/SP: certo dia, num fim de ano, um professor me diz: "Beleza, deixei a sala inteira de exame"! Espantado com a animação do "professor" (se é que se pode chamar alguém que reprova a sala toda de professor) eu rebati de pronto: "Poxa! Eu nem pensei em algo assim: estava bastante feliz por ter aprovado todos os alunos da minha turma". Realço: se grande parte de uma turma vai mal numa prova, certamente a falha é do ensino e do professor e, muitas vezes, da forma de avaliação. Não é função de nenhum tipo de ensino a reprovação. O objetivo é outro: é ensinar. Isso não é o óbvio ululante? Para muitas escolas e professores parece que não! Como desvendar o problema? Será falta de tempo? Será que os pais não têm tido oportunidade de investigar se seus filhos estão recebendo por aquilo que eles estão pagando? Ou será falta de conhecimento dos direitos inerentes à relação jurídica? Repito: é obrigação primária e jurídica da escola ensinar e ponto final! E ensinar o que é importante. Lembro mais uma vez, o que contou meu amigo Outrem Ego. Quando levava seu filho para a escola, este apontou para algumas nuvens no céu da manhã e disse: "Olha lá, pai! São cumulonimbus". Meu amigo viu as nuvens e ficou com os olhos vagando por elas. Daí, pensou: "Para que serve a uma criança de onze anos saber o nome das nuvens? Se, um dia, ele for ser meteorologista, aprenderá isso em cinco minutos". E torceu para que as nuvens não fossem de chuva e causassem estragos na cidade! __________ 1 Rede de reforço escolar ganha prêmio de microfranquia.
quinta-feira, 15 de março de 2018

A pessoa jurídica como consumidora - Parte 2

Continuo desenvolvendo o artigo que iniciei na semana passada sobre a questão da pessoa jurídica como consumidora. Como coloquei, o CDC regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o Código, independentemente do produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros. Conforme também demonstrei, a situação é clara: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo, não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a prestação de seu serviço. Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis. Por causa disso, aliás, concluí o artigo na semana passada dizendo que o despachante que adquiriu o laptop para seu uso profissional está protegido pelo CDC. Aliás, complemento os exemplos para lembrar que estão na mesma condição o dinheiro e o crédito obtido no sistema financeiro. Assim, quando uma pessoa jurídica faz um empréstimo num banco a relação é típica de consumo, pois ainda que ela utilize o dinheiro como insumo, como este é tanto produto de consumo como de produção, a situação é igual à do exemplo do laptop. Muito bem. Há ainda uma outra norma no CDC que justifica minha teoria para explicar a definição de consumidor na relação de consumo. É a do inciso I do art. 51, especificamente a segunda parte da proposição. Mas, antes de analisá-la, desde já acrescento uma constatação: o caput do art. 2º coloca a pessoa jurídica como consumidora. Ora, afinal o que é que uma pessoa jurídica pode consumir? Pessoa jurídica não come, não bebe, não dorme, não viaja, não lê, não vai ao cinema, não assiste à aula, não vai a shows, não assiste a filmes, não vê publicidade etc. Logo, para ser consumidora, ela somente poderia consumir produtos e serviços que fossem tecnicamente possíveis e lhe servissem como bens de produção e que fossem, simultaneamente, bens de consumo. Com a análise do inciso I do art. 51, o ciclo de minha explanação se encerra. Vejamos. A disposição normativa da segunda parte do inciso I do art. 51 foi feita exatamente pensando no consumidor pessoa jurídica, que adquire produto ou serviço de consumo para fins de produção. Trata-se de previsão legal a permitir que o fornecedor em circunstâncias especiais justificáveis possa estabelecer cláusula contratual limitando seu dever de indenizar. Leia-se: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis".(grifei) Pergunto: por que é que a lei resolveu excetuar do amplo e expresso sistema de responsabilidade civil objetiva, no qual o fornecedor não pode, de maneira alguma, desonerar-se de seu dever de indenizar, exatamente um caso especial de aquisição de produto ou serviço quando o consumidor é pessoa jurídica? Justamente porque sabe que é possível adquirir produto e serviço de consumo para fins de produção. Explico. A regra geral é a do dever de o fornecedor indenizar por vícios e defeitos (arts. 12 a 14 e 18 a 20). Não pode ele, mediante cláusula contratual exonerar-se dessa obrigação, mesmo que seja em parte, por expressa disposição do caput do art. 25, que dispõe, verbis: "Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas Seções anteriores". Logo, essa é a regra geral para todas as relações jurídicas de consumo regulares. Mas a lei resolveu abrir uma exceção (a do citado inciso I do art. 51). E não foi para os casos comuns, mas apenas os que envolvam o consumidor pessoa jurídica em "situações justificáveis". Quais seriam elas? A exceção legal de permissão para fixação de cláusula contratual limitadora do dever de indenizar pressupõe duas hipóteses para o atingimento de sua finalidade: a) que o tipo de operação de venda e compra de produto ou serviço seja especial, fora do padrão regular de consumo; b) que a qualidade de consumidor-pessoa jurídica, por sua vez, também justifique uma negociação prévia de cláusula contratual limitadora. Para o fornecedor exercer a prerrogativa de negociar a inserção de cláusula contratual limitadora de seu dever de indenizar é necessário que estejam presentes as duas situações previstas nas letras "a" e "b", simultaneamente. Examine-se a letra "a": Não basta que a compra seja fora do padrão para que ele possa incluir a cláusula. Por exemplo, se um consumidor-pessoa física quiser adquirir vinte microcomputadores para distribuir a seus amigos e parentes1, isso não é suficiente para a negociação e inclusão da cláusula. A compra está fora do padrão, mas não está presente o outro requisito. E, quanto à letra "b", o mesmo ocorre com duas alternativas: b.1) Não é suficiente que o consumidor seja pessoa jurídica fazendo uma aquisição regular. Por exemplo, a pessoa jurídica que adquire um microcomputador numa loja de departamentos ou diretamente do fabricante. Essa é uma aquisição comum, que recebe as garantias gerais do sistema de responsabilidade civil instituído no CDC. Não pode o fornecedor limitar sua responsabilidade. b.2) Não é suficiente que a compra seja fora do padrão. É necessário que a pessoa jurídica consumidora receba aconselhamento jurídico para que a cláusula limitadora possa ser negociada e inserida no contrato. Sem isso, isto é, sem que se estabeleça um equilíbrio prévio para a negociação da cláusula, esta não poderá ser inserida no contrato. Vê-se, pois, que o CDC abraça a tese no sentido de que há bens de consumo (produtos e serviços) que são adquiridos com o fim de produção, sem que a relação jurídica estabelecida deixe de ser de consumo, tanto que recebe ela o tratamento diferencial da norma do inciso I do art. 51 comentado. __________1 Ou qualquer outro motivo, que é de sua exclusiva esfera privada.
quinta-feira, 8 de março de 2018

A pessoa jurídica como consumidora - Parte 1

Tenho visto algumas decisões judiciais e também comentários doutrinários cuidando da questão da pessoa jurídica como consumidora e as divergentes posições têm sérias consequências jurídicas, pois envolvem a aplicação ou não das normas protecionistas do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Visando dar minha contribuição sobre o assunto, escrevo este artigo, dividindo-o em partes para facilitar a leitura neste nosso querido espaço. Farei um resumo do que escrevi em meus livros1. Começo abordando o previsto no caput do art. 2º do CDC: "Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". A mera interpretação gramatical dos termos da cabeça do artigo não é capaz de resolver os problemas que surgem. Todavia, devemos lançar mão dela, porquanto permitirá a explicitação da maior parte das questões. Diga-se, de início, o que decorre da obviedade da leitura. Consumidor é a pessoa física, a pessoa natural e também a pessoa jurídica. Quanto a esta última, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação, fundação etc. A lei emprega o verbo "adquirir", que tem de ser interpretado em seu sentido mais lato, de obter, seja a título oneroso ou gratuito. E não se trata apenas de adquirir, mas também de utilizar o produto ou o serviço, ainda quando quem o utiliza não o tenha adquirido. Isto é, a norma define como consumidor tanto quem efetivamente adquire o produto ou o serviço (ou seja, paga o preço) como aquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o consome. Assim, por exemplo, se uma pessoa compra cerveja para oferecer aos amigos numa festa, todos aqueles que a tomarem serão considerados consumidores. A norma fala também em "destinatário final". O uso desse termo facilitará, de um lado, a identificação da figura do consumidor, mas, por outro, trará um problema que tentarei resolver. Evidentemente, se alguém adquire produto não como destinatário final, mas como intermediário do ciclo de produção, não será considerado consumidor. Assim, por exemplo, se uma pessoa - física ou jurídica - adquire roupas para revendê-las, a relação jurídica dessa transação não estará sob a égide da lei 8.078/90. O problema do uso do termo "destinatário final" está relacionado a um caso específico: o daquela pessoa que adquire produto ou serviço como destinatária final, mas que usará tal bem como típico de produção. Por exemplo, o usineiro que compra uma usina para a produção de álcool. Não resta dúvida de que ele será destinatário final do produto (a usina); contudo, pode ser considerado consumidor? E um despachante que adquire num grande supermercado um laptop para desenvolver suas atividades, é considerado consumidor? Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinarei, detalhadamente, cada situação. Não se duvida do fato de que, quando uma pessoa adquire um automóvel numa concessionária, estabelece-se uma típica relação regulada pelo CDC. De um lado, o consumidor; de outro, o fornecedor. Em contrapartida, é evidente que não há relação protegida pelo Código quando a concessionária adquire o automóvel da montadora como intermediária para posterior venda ao consumidor. Nas duas hipóteses acima as situações jurídicas são simples e fáceis de ser entendidas. Numa ponta da relação está o consumidor (relação de consumo). Na outra estão fornecedores (relação de intermediação/distribuição/ comercialização/produção). O CDC regula o primeiro caso; o direito comum, o outro. Mas o que acontece se a concessionária se utiliza do veículo como "destinatária final", por exemplo, entregando-o para seu diretor usar? A resposta a essa questão é fácil: para aquele veículo a concessionária não aparece como fornecedora, mas como consumidora, e a relação está tipicamente protegida pela Lei protecionista (o que será confirmado pela exposição que se segue). Todavia, existem outras situações mais complexas. Quando, por exemplo, a montadora adquire peças para montar o veí­culo, trata-se de situação na qual as regras aplicadas são as do direito comum. São típicas relações entre fornecedores partícipes do ciclo de produção, desde a obtenção dos insumos até a comercialização do produto final no mercado para o consumidor: A visualização da hipótese é simples. Estamos diante de situações cí­clicas da produção, em que no polo final do ciclo aparece alguém adquirindo o produto como "destinatário final". Porém, vou recolocar o exemplo da usina: um fazendeiro resolve transformar-se em usineiro e, para tanto, encomenda uma usina para produção de álcool. Seria esse usineiro "destinatário final" da usina? Denotaria essa relação uma típica situação protegida pelo CDC? A situação parece diversa da anterior, porque, diferentemente da montadora, que envia as peças com o automóvel para o consumidor, na produção do álcool, este vai para o consumidor, mas a usina fica. Contudo, há coisas na montadora que também não vão para o consumidor. Por exemplo, o prédio utilizado para a montagem do veículo. Nesse caso, a montadora é "destinatária final" do prédio e, portanto, consumidora? Mas não são simplesmente a usina e o prédio "bens de produção", e, assim, não se pode querer aplicar ali a lei consumerista? O problema está em que o CDC não fala em bens de produção ou de consumo. Limitou-se a dizer "consumidor" como "destinatário final" e a definir o fornecedor (no seu art. 3º). Há meios, porém, de solucionar a pendência. Antes de tentar responder, analisemos um outro exemplo, o de uma pessoa que pretende constituir-se como despachante. Para isso vai a uma loja e compra um laptop, que utilizará para o exercício de seu trabalho. É o despachante "destinatário final" do aparelho e, portanto, consumidor? Passo, agora, às respostas, segundo meu ponto de vista. Poderíamos responder, no caso do álcool, que o usineiro é "destinatário final" da usina e, assim, aquela relação estaria protegida pelo Código. Da mesma maneira, a montadora seria "consumidora" do prédio utilizado para montagem de veículos. E, assim, resolvido estaria o caso do despachante, que é "destinatário final" do laptop. Contudo, todos esses bens são típicos "bens de produção"? O laptop pode ser e pode não ser. Os outros dois são. Seria adequado dizer, então, que o Código regula aquelas três situações? Sem dúvida que não. Em casos nos quais se negociam e adquirem bens tí­picos de produção, o CDC não pode ser aplicado por dois motivos óbvios: primeiro, porque não está dentro de seus princípios ou finalidades; segundo, porque, dado o alto grau de protecionismo e restrições para contratar e garantir, o CDC seria um entrave nas relações comerciais desse tipo, e que muitas vezes são de grande porte. A resposta para o caso da usina e da montadora é, portanto, a aplicação do direito comum: Acontece que essa resposta não resolve o problema do despachante. Quer dizer, então, que o laptop é um bem de produção, e quando ele tiver vício o despachante não poderá utilizar-se da lei 8.078/90? Ora, que diferença existe entre o despachante como pessoa jurídica, que utiliza o laptop para preencher guias, e o despachante enquanto pessoa física, que leva o aparelho para casa e escreve uma carta de amor? A solução não pode ser a mesma que a da usina e a da montadora. Tem de ser outra. O Código ajuda em parte, pois o despachante é "destinatário final", mas o bem é de produção. Para encontrarmos uma solução, precisamos utilizar certos princípios do Código e transferi-los para a noção de bens. Com efeito, o CDC regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira. Aí está o caminho indicativo para a solução. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o Código, independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros. A situação é clara: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo, não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a prestação de seu serviço de despachante. Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis. Assim, posso responder que, como o despachante adquiriu o laptop produzido e entregue ao mercado como um típico bem de consumo, a relação está protegida pelo CDC. *** Parte 2 na próxima semana. __________ 1 Por exemplo, no Curso de Direito do Consumidor (12ª. ed. São Paulo: Saraiva) ou no Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (8ª. ed. São Paulo: Saraiva) etc.
Pensemos no seguinte: o consumidor adquire um ingresso para ir ao cinema e depois tem que pagar algo a mais para marcar o lugar ou acontece o mesmo quando quer ir ao teatro. Ou, então, é o restaurante que cobra uma taxa extra para a escolha da mesa. Ou, sei lá, para assistir a uma palestra, além do ingresso é necessário pagar uma taxa para marcar o assento na sala. Quem sabe, possa-se cobrar do aluno para marcar a cadeira na sala de aula. São situações absurdas, certo? Pois é, mas é isso o que já está ocorrendo no caso de passagens aéreas. Algumas companhias cobram para marcar previamente o assento1. O consumidor paga o ticket e um "plus" para marcar o lugar no avião. Mas, não é só. Veja abaixo. O Código de Defesa do Consumidor, como se sabe, define o consumidor como vulnerável (art. 4°, I) e não resta dúvida de que no mercado de consumo, ele é a parte frágil de relação. Eu, mais de uma vez, defendi aqui neste mesmo espaço, que nem sempre o consumidor precisa de proteção. Isso porque há muitas compras de produtos e serviços que ele faz porque quer e está consciente de seu ato e das consequências dele. Mas, há, naturalmente, muitas situações nas quais o consumidor está totalmente fragilizado e sua vulnerabilidade torna-se extrema. Isso ocorre nas relações que envolvem os serviços essenciais, os serviços médicos e de saúde, etc. E um dos exemplos mais gritantes de vulnerabilidade é o que envolve o transporte aéreo. Neste, o consumidor está numa situação de inferioridade em relação ao prestador do serviço e de vulnerabilidade que permite toda sorte de abusos. Apesar de alguns avanços, especialmente por ação de alguns empresários que acreditam que seu negócio pode ser rentável respeitando seu público alvo, os fatos mostram que em pleno século XXI muitas empresas, sempre que podem, abusam de seus clientes. As companhias aéreas estão neste pacote. Esse é um setor que exige regulamentação legal e/ou ação governamental e normas internacionais amplamente fixadas. Não é possível deixar a definição das regras nas mãos das companhias aéreas. Nem vou chover no molhado aqui, pois o noticiário regular mostra que os abusos são praticados pelo mundo afora regularmente. A situação de fato da fragilidade do passageiro é evidente: ele está saindo de viagem a negócios ou a passeio, sozinho ou com seus familiares. No aeroporto, pode apenas aguardar que seu avião chegue e saia na hora (e, claro, que dê tudo certo na viagem). Se está saindo de sua casa, sua cidade, seu país ou se está voltando a angústia é a mesma. Ali, na frente de um atendente da empresa aérea, ele pode fazer muito pouca coisa além de ouvir e concordar. Ele está sempre sujeito ao ato abusivo, aberto e declarado! Aqui mesmo nesta coluna, eu tive oportunidade de criticar a ANAC (agência que devia proteger o consumidor no território nacional), que, seguindo, normas de outros países, modificou para pior o peso das bagagens que os passageiros podem levar. Ah, é verdade, a agência disse que isso traria diminuição nos preços! Infelizmente, os noticiários têm comprovado que essa era mais uma das conversas moles para boi dormir, inventada pela agência. Neste setor das companhias aéreas, a prestação dos serviços, a cada dia que passa, vai decaindo: a qualidade decresce e o preço cresce. Ou seja, tudo o que não se deveria esperar de um sistema capitalista moderno. Nesse setor, o consumidor está jogado a própria sorte e pouco ou nada pode fazer. Se fosse um caso de mau atendimento num restaurante, bastaria o consumidor ir embora e procurar outro lugar. Aliás, nesse setor, a concorrência funciona, não é mesmo? E também no comércio e geral de vestuário, produtos para casa etc. Só que no setor aéreo, com exceção de alguns trechos voados com alguma concorrência, as empresas fazem o que querem. O consumidor sofre abuso e, se quiser viajar de novo, tem que voltar ao mesmo balcão onde foi violado. Caro leitor, veja essa experiência recente de meu amigo Outrem Ego. Foi na volta de Lisboa para São Paulo. Como ele já morou em Portugal e foi e voltou muitas vezes, possui o cartão Gold da TAP, o que lhe dá certas regalias. Por exemplo, ele tem direito de despachar 3 malas de até 23 kilos cada. Muito bem. Quando voltava de lá, há alguns dias, foi ao balcão despachar 2 malas. Na balança, uma apontou 15 kilos e a outra 28,5 kilos. A atendente, então, disse que ele teria que pagar cerca de 115 euros por excesso de bagagem. Ele argumentou. Disse: "Mas, eu tenho direito de despachar 3 malas de 23 kilos cada. Tenho, portanto, o direito de colocar no avião 69 kilos de bagagem. E estou embarcando apenas 2 malas num total de 43, 5 kilos". Alguém acha que adiantou? Não. Cobraram o excesso assim mesmo. Eu deixo claro que meu amigo tem toda razão. Não se trata de excesso de peso porque pode ser ruim para o transporte. Isso não, pois na classe executiva da TAP a mala pode ter 32 kilos. Logo, passar de 23 não é problema. Trata-se de abuso, puro e simples, em função da fragilidade do consumidor naquele instante. Aliás, esse modo de cobrar por excesso de peso da bagagem é abuso franco, praticado abertamente e generalizado. Se um casal viaja junto e na mala de um há 10 kilos e na do outro 28, é cobrado excesso. Se 2 irmãos viajam juntos e ocorre o mesmo, também e assim por diante. Em linguagem consumerista, chama-se oportunidade para abuso. Nada além disso. Já passou da hora de se regrar esse setor para proteger os passageiros. Quero dizer, estamos andando para trás, pois as normas anteriores estão sendo abandonadas pelas agências reguladoras, deixando os consumidores à mercê das empresas aéreas que abusam de seus direitos. O Judiciário pode ajudar, mas já está abarrotado, além do quê, como se sabe, danos de pequenas montas não geram demandas. É um amplo espaço para as companhias aéreas irem faturando um pouco de cada vez, o tempo todo e de muitos passageiros. É capitalismo de quinta categoria. __________ 1 Algumas companhias já fazem isso. E a Gol também começou.
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

As novas formas ocultas de publicidade

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) diz que "a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal". (art. 36, "caput"). Esse texto da lei repete em parte as normas do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, que dizem que a atividade publicitária tem que ser sempre ostensiva (art. 9º, "caput") e que o anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua forma ou meio de veiculação (art. 28). Como se vê, o CDC determina que, além de ostensivo, o anúncio publicitário deve ser claro e passível de identificação imediata pelo consumidor. É a proibição da chamada publicidade clandestina. Trata-se da conhecida técnica do "merchandising", utilizada para veicular produtos e serviços de forma indireta por meio de inserções em programas e filmes. Dessa maneira, muitos produtos são veiculados sem que os consumidores se deem conta de que o que eles estão assistindo significa uma prática publicitária, mesmo nos casos mais evidentes. De fato, quando uma personagem importante na novela das oito entra num bar e pede uma Coca-Cola, o telespectador-consumidor não sabe se aquela demonstração específica é ou não publicidade do produto veiculado. Nem tudo é, mas muitas são. Existem várias maneiras de produzir o chamado merchandising. Haverá aquele que, apesar de se caracterizar por inserção indireta, não se reveste de clandestinidade. É que, em alguns casos, fica claro para o consumidor - ou telespectador - que se trata de publicidade. Cite-se como exemplo o caso do apresentador que, durante o transcurso do programa de auditório, oferece produtos e até os elogia. O problema está no merchandising típico da clandestinidade, uma vez que a finalidade dessa técnica é exatamente não aparecer como publicidade. Aliás, quando a lei surgiu, em 1990, alguns publicitários, em polvorosa, reclamaram (não só por causa dessa regra, mas também pelas outras que proíbem a publicidade enganosa e abusiva), dizendo que o CDC impediria grande parte do trabalho deles. No caso, seria o fim do merchandising. Isso porque o melhor merchandising é exatamente aquele em que a publicidade não é identificada como tal. Mas, veja, caro leitor, o CDC nada fez de novo, pois a própria norma autoregulamentadora do setor, que é de 1980, também proíbe a prática. Mas, eis que vivemos em tempos de redes sociais e agora novos modelos de publicidade, via esquemas de marketing, surgem aberta ou clandestinamente. Sei que nas redes sociais, o consumidor pode ter alguma voz, mas elas também servem para a promoção de produtos e serviços nem sempre claramente apresentados. Isso atinge adultos e crianças. Vejamos um exemplo no que diz respeito às crianças. Em matéria recente, publicada no site da revista Veja, Renato Godoy, assessor de Relações Governamentais do Programa Criança e Consumo, do Alana, relatou a estratégia utilizada pelos fabricantes da boneca LOL1. Trata-se de uma complexa estratégia de divulgação que se serve da influência de youtubers mirins e seus populares vídeos de unboxing - termo que denomina o ato de desembrulhar o produto e que já integra o vocabulário de famílias com crianças pequenas. Essa boneca, minúscula (tem apenas 8 centímetros), é entregue envolta por sete camadas de plástico, que escondem itens de vestuário e a própria identidade da personagem, que só é revelada após todo o processo de unboxing. Como diz Renato Godoy, a "característica central do brinquedo, então, já se confunde com a sua própria estratégia de divulgação. Tal como nos vídeos de youtubers mirins, o principal atrativo da boneca é o ato de desembrulhar a embalagem e encontrar as novidades, que surgem a cada camada de plástico descartada. O produto é a mensagem. E vice-versa". Os vários modelos da LOL servem para estimular o colecionismo, sentimento que atinge adultos e crianças, cuja função é vender cada vez mais o mesmo produto. A boneca Barbie está aí há muitos anos como prova do sucesso desse tipo de negócio. A matéria mostra que o preço do brinquedo varia entre 60 e 200 reais e, a demanda era e é tanta que, às vésperas do Natal, consumidores e comerciantes se queixaram da falta do produto. A criatividade humana é, realmente, brilhante. Para o bem ou para o mal. Em termos de mercado de consumo e de publicidade, as redes sociais vieram para permitir um enorme aumento de penetração na comunicação de fornecedores com consumidores - mirins ou adultos. E, de fato, nesse mundo complexo da web é muito difícil distinguir o que é e o que não é publicidade. __________ 1 Boneca LOL: um fenômeno nada espontâneo.
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

De novo! Veteranos trogloditas, bárbaros e sádicos

Sai ano entra ano e continua tudo igual. Quando alguns jovens da elite deixarão de ser fascistas? Sou obrigado a voltar ao assunto: os crimes são praticados a céu aberto, sem que se tome alguma providência (mais uma repetição anual, tal como as chuvas, os alagamentos, os deslizamentos e as mortes consequentes etc.). Refiro-me ao odioso trote violento. A humilhação causada aos novatos continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa questão? Um dos problemas nos trotes está em que, na maior parte dos casos, os próprios calouros não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Há algumas mudanças na direção certa promovidas por Centros Acadêmicos, é verdade, mas é preciso avançar mais e para tanto, haveria de se deixar claro que os calouros não só não devem participar como devem denunciar os veteranos. Sei que a pressão psicológica é grande e o medo também. Por isso, cabe às autoridades intervir. No início do ano, as violações são feitas nas vias públicas aos olhos de todas as autoridades públicas! Ou nos campi, à vista dos responsáveis pelas escolas. E, como fui obrigado a voltar ao tema, apresento na sequência alguns dos delitos praticados nos trotes e também mostro a responsabilidade das escolas, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo, total ou parcialmente, do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro. Humilhar os calouros, ridicularizando-os publicamente, pintando seus corpos, fazendo "cavalgadas" (modo esdrúxulo dos veteranos sentarem sobre os calouros de quatro ao solo fingindo serem cavalos, jumentos ou burros), amarrá-los, fazê-los engatinhar pelas ruas, fazê-los andar colados, uns nos outros, como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP). Obrigar o calouro ou a caloura a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro ou a caloura resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP). Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente. Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas delas, com a alegação de que o que ocorre fora dos campi não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim. Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que, quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizá-la, mas não se deve esquecer que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. O CDC garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a instituição de ensino pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC. Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e, nos primeiros dias de aula, distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro. Apesar de tudo, é preciso lembrar que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. Por isso, é preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas. Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de direito, medicina, sociologia, engenharia etc., possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, mas que precisa ser combatida.
Rizzatto Nunes e Rodrigo Ferrari-Nunes A questão não envolve exatamente o mercado de consumo, porém no primeiro artigo que publico neste ano, não poderia deixar de lado o tema do momento: o do julgamento pelo TRF4 do caso do ex-presidente Lula. E, por aquilo que se pode ver dos noticiários e das redes sociais, praticamente tudo já foi dito a respeito do assunto. Por isso, aproveito o episódio para focar num ponto um pouco diferente: o da posição dos estrangeiros em relação a nós brasileiros. Para tanto, o antropólogo Rodrigo e eu usaremos como base um texto publicado por um articulista do New York Times1, que tem o intuito de denegrir a imagem do Brasil. Podemos começar com uma pergunta de meu amigo Outrem Ego: "Pessoas falam de nós pelo mundo afora, mas será que eles nos entendem?". Para responder, lembramos Edward Said, que em sua obra clássica "Orientalismo"2, ensina que é sempre muito difícil julgar e conhecer um povo que não seja o nosso. Aliás, até o nosso próprio impõe dificuldades quando se busca compreendê-lo. Como mostra Said, muitas vezes esse povo estrangeiro, esse outro, é uma construção. Construção essa, feita por planejamentos estratégicos mal intencionados, com objetivos específicos não declarados, aplicadas aos meios de comunicação por supostos estudiosos, agentes governamentais, jornalistas especializados etc.. E mais: ainda que com boas intenções, a construção do "outro" faz-se muitas vezes a partir do conhecimento de si, das experiências pessoais e localizadas muito distante da vida e vivência do analisado. Essa construção, como dito, é feita pelos meios de comunicação em geral, o que envolve também as universidades e seus acadêmicos, a literatura, o cinema, etc.. Gera-se o preconceito, mas se vai muito além: cria-se uma imagem fixa que, muitas vezes, falseia completamente a realidade. Muito bem. Estamos no Brasil e como brasileiros que somos, temos todo direito de emitir nossas opiniões - garantidas constitucionalmente. E, em tempos de redes sociais, são feitos diariamente centenas e até milhares de pronunciamentos sobre diversos temas. Como se sabe, estamos na época da pós-verdade, o que significa que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Certo. Mas, isso não quer dizer que analistas, cientistas, articulistas especializados etc., possam falar "qualquer" coisa a respeito dos fatos e das pessoas. Quer sejam brasileiros ou estrangeiros. Como acima anunciado, sobre o episódio do julgamento do ex-presidente Lula, deixaremos de lado as falas dos brasileiros que expressam sua opinião. Estão apenas no uso do exercício de sua liberdade de expressão. Ora, a liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos. E essa garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que, para os gregos na antiguidade, era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação. Mas, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos (ou oferecer produtos e serviços no mercado), há um limite ético que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade e o respeito às garantias e aos direitos estabelecidos. Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim. Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos. Posto isto, vejamos agora, o que disse o articulista do jornal New York Times (NYT). Logo no início do artigo ele diz, textualmente: "O Brasil, o último país ocidental a abolir a escravatura, é uma democracia bem recente, tendo emergido da ditadura há umas três décadas"3. Como? A escravatura no Brasil foi abolida no ano de 1888, antes da instauração da República. Nos Estados Unidos da América ela aconteceu alguns anos antes, em 1863. Mas a perseguição aos negros por lá prosseguiu de forma violenta e cruel por quase todo o século XX. O jornalista do NYT não sabe disso? Não sabe ele do brutal racismo existente em seu próprio país, na sua sala de estar? Será que ele nem ouviu falar do "Experimento da Sífilis" em Tuskegee, bancado pelo governo americano de 1932 à 1972? Um experimento racista que transformou em cobaias humanas 600 homens negros durante 40 anos4! Em 1997, o presidente Bill Clinton pediu formalmente desculpa aos sobreviventes de Tuskegee, numa cerimônia na Casa Branca. E se o articulista tivesse lido - quem diria? - o jornal NYT de 25/7/1972 saberia da experiência5. Ou, falando de algo muito mais conhecido de todos: a Ku Klux Klan (KKK), organização norte americana racista, que surgiu no século XIX e que existe até hoje. Será que ninguém no NYT conhece a KKK? Nós nem deveríamos tratar desse assunto, mas como foi o articulista do prestigioso NYT que trouxe o tema, fazemos a citação e colocamos a pergunta: "Qual é a relação entre abolição da escravatura do século XIX com o julgamento de um processo pelo TRF4 em 24-1-2018?" Ele, como correspondente estrangeiro, devia guardar para si o sentimento que tem em relação ao Brasil. Teria que tratar de fatos. E sem distorções nem manipulações (ainda que absurdas como as que apresentou no início do artigo). De fato, será que quem escreve no NYT não precisa conhecer um mínimo de lógica? Adiantaria ler o restante do artigo, após um início como esse, ilógico, sem fundamento, e, como se diz, "sem pé nem cabeça"? Não! É pura perda de tempo. Mas, claro, foi citado por aqui. Aliás, muito do que se escreve e publica lá fora, chega até nós mais por causa de nosso complexo de vira-lata do que pelo conteúdo da informação. Lendo o artigo, ficamos com uma dúvida a respeito do NYT: "Será que o que se publica por lá é assim tão fraco?". Desse jeito, acabaremos até dando 'razão' ao presidente Donald Trump quando critica a imprensa local. __________ * Rodrigo Ferrari Nunes é doutor em Antropologia pela Universidade de Aberdeen na Escócia, onde é pesquisador Honorário, é mestre em Antropologia pela Universidade de British Columbia, e sócio fundador do Segredo da Música com Sandro Haick. __________ 1 NY Times. 2 Publicado entre nós pela Companhia de Bolso (Editora Schwarcz Ltda) São Paulo: 2007. 3 Endereço acima. Nossa tradução livre. 4 Estudo da Sífilis não Tratada de Tuskegee.  5 Observador.
Todo início de ano é a mesma coisa: chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileira. Acontece que, grande parte desses acontecimentos são previsíveis e, ao que tudo indica, infelizmente, repetir-se-á no ano que vem, assim como já aconteceu no ano passado, no anterior, no anterior etc.. Um longo etecetera de catástrofes, que poderiam ter sido evitadas. Já cuidei deste assunto por aqui, mas volto ao tema para deixar consignada a responsabilidade do Estado no caso. Na sequência, apresento um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado. A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando centenas de mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer, passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio. De nada adianta ficar simplesmente acusando as vítimas depois das ocorrências, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada e também nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Faço, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização. Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente, o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e também pela vítima. Pensão Os familiares que são dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Do mesmo modo, a vítima sobrevivente pode pleitear pensão pelo período em que, convalescente, tenha ficado impossibilitado de trabalhar. Outros danos materiais Além da pensão, no cômputo dos danos materiais inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como, no caso de desmoronamento da habitação, seu preço ou o custo para a construção de uma outra igual e todas as demais perdas efetivamente sofridas relacionadas ao evento. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estadia e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Danos morais Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que no caso dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo. De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às famílias das vítimas, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto. Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé, intenção de causar o dano, ou regularmente repete os mesmos erros. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor.
quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O corpo humano, o mercado de consumo e a ética

O corpo humano, dizem, é um templo recebido de Deus (ou da natureza) e que nós devemos respeitar. Fruto de admiração desde a antiguidade, passou a ser vendido pela sociedade capitalista contemporânea como um produto a ser alcançado na forma do belo. Isto é, a "beleza" virou produto de consumo. Há uma criação mercadológica e também cultural e, como decorrência dessas duas uma imposição social que a cada dia mais afeta as pessoas para que elas "pareçam" bonitas. Não como de fato são: a pressão é para que elas se pareçam com aquilo que o "mercado" diz que é belo. Há um quê de artificial nesse modo de se medir as pessoas. Aliás, não só artificial como fake (termo usual atualmente). E a utilização de modernas técnicas de manipulação de fotos, tais como o photoshop, permite a criação de imagens que nem sempre correspondem ao real. Muitas vezes, as próprias pessoas reproduzidas têm se surpreendido com sua (falsa) beleza. A verdade é que, de um jeito ou de outro, nesta sociedade em que o ter é mais importante que o ser, onde a aparência é mais importante que a essência, o que se percebe é que algumas pessoas são prisioneiras de seus símbolos: roupas de marca, joias, relógios preciosos, carros último tipo, o corpo idem. O que o mercado acaba vendendo é uma ilusão de segurança e felicidade nos símbolos oferecidos nas vitrines e em anúncios publicitários, e o que esse tipo de consumidor adquire é uma falsa ideia de si mesmo, muitas vezes gerando frustração e um vazio que o obriga à voltar às compras, às transformações etc. num círculo vicioso sem fim. O apelo pela beleza e pela estética é tamanho que, um dos aspetos mais evidentes dos avanços da ciência tecnológica é o da venda e reforma de partes do corpo humano. Quase como no filme de Frankenstein, existe a possibilidade da ficção virar realidade. Evidentemente, há muita coisa boa. O avanço da biologia e da medicina permitem os transplantes de órgãos que salvam muitas vidas, que devolvem funções de partes do corpo humano que estavam perdidas ou que dão a visão às pessoas etc. Há também o uso de vários tipos de próteses, as operações corretivas com ajuda de micro instrumentos e uma numerosa quantidade de procedimentos outrora impensáveis. Isso tudo é muito bom. Ao lado disso, porém, o mercado passou a oferecer toda sorte de cirurgias estéticas. Não só é possível deixar de usar óculos, fazendo uma fantástica, muito rápida e indolor operação oftálmica (que, aliás, é executada praticamente em série, uma atrás da outra), como homens e mulheres podem literalmente comprar partes do corpo humano, ou fazer trocas no próprio corpo com enxertos. A busca do corpo perfeito, da forma sempre esguia e jovem, esses produtos tão bem vendidos no mercado de consumo, fez surgir um enorme setor de reposição de "peças" humanas. É aquilo que eu intitulo de "fraquensteinização" do mercado. Naturalmente, não há nenhum mal em que as pessoas queiram fazer as correções que entenderem necessárias, desde que o façam conscientemente e com acompanhamento médico adequado. Podem querer fazer lipoaspiração para jogar fora as gorduras indesejáveis e difíceis de perder; ou desejar eliminar as papas dos olhos; as mulheres podem querer aumentar seus seios ou corrigi-los etc. É mero exercício do direito de cada consumidor. O mercado cuida desse assunto com alta prioridade e qualquer um pode ver. Basta ligar a tevê para perceber a quantidade de produtos e serviços ligados à forma e a beleza existentes. O marketing, por sua vez, em todas as suas vertentes, o tempo todo, mostra as pessoas de um modo que vai se impondo no imaginário e desejo dos consumidores. Nos filmes dos cinemas, nos canais de televisão, nas novelas etc são apresentados atrizes e atores magros e "sarados" com formas desenhadas, que depois os consumidores tentam "copiar" adquirindo os produtos e serviços oferecidos. Há também muita coisa esquisita. Já tive oportunidade de comentar aqui alguns casos e, recentemente, li numa matéria que a sueca Pixee Fox, que se auto intitula "desenho animado vivo" já fez mais de 100 procedimentos estéticos para ficar igual a desenhos animados. Ela, inclusive, removeu seis costelas para afinar brutalmente a cintura1. Nesse setor são, também famosos os candidatos e candidatas a ficarem iguais a boneca Barbie e ao boneco Ken. Até poder-se-ia garantir um eventual direito das pessoas fazerem esse tipo de intervenção, o que, penso, é questionável. Todavia, há algo mais grave, que é o do procedimento médico subjacente nessa questão: as excessivas intervenções são feitas por cirurgiões médicos, acompanhados de equipes com outros médicos anestesistas e seus assistentes. Pergunta-se: não há limite ético para um médico fazer tal operação? Não deveria ele se negar a fazê-la e aconselhar o interessado ou a interessada a procurar ajuda psicológica? A questão, para reflexão, está colocada. Parece-nos que as entidades de medicina responsáveis deveriam debater e cuidar desse tema. Não é só porque a ciência moderna e a incrível tecnologia que a acompanha seja capaz de construir corpos humanos com fantásticas próteses, enxertos e reformas, que se deve fazê-lo. Do ponto de vista ético, a possibilidade real de uma execução não significa necessariamente o direito de exercê-la. Não falo apenas desses exemplos de pessoas que querem ficar iguais a desenhos. Refiro a questão em sentido mais amplo, porque se for deixado que o mercado tome a decisão, com o alto faturamento que o segmento gera, o limite parece infinito. __________ 1 RedeTV.
quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Black Friday - aspectos práticos e legais

Volto ao tema e, como sempre ocorre nas mega promoções, lembro da história contada por meu amigo Outrem Ego. Num encontro de família, seu irmão chegou todo animado e disse: "Aproveitei uma baita liquidação e fiz uma economia de um mil reais em compras. Estava tudo com desconto de 50% nos preços. Se eu tivesse comprado antes teria gasto dois mil". A cunhada, esposa desse irmão, fez cara torta e falou para o marido: "Mas, a gente não precisa disso que você comprou". E meu amigo arrematou: "Mano querido, pelo que estou vendo, na verdade, você não economizou um mil reais; você gastou um mil reais!". É isso. Descontos são bons... Se precisamos do produto! Em outra importação feita dos EUA, chegamos a mais uma Black Friday apelidada por aqui, com muita razão, de Black Fraude. Não bastasse, portanto, aos consumidores adquirirem produtos sem precisar, eles ainda compram por preços regulares acreditando que estão mais baratos quando, de fato, não estão. Em matéria publicada no dia 19 de novembro p.p., a Folha de São Paulo apresentou pesquisa na qual foram acompanhados 6.875 itens por 15 dias em nove das maiores lojas de varejo que comercializam eletroeletrônicos. E descobriu o que, todo ano tem acontecido nessa promoção abrasileirada: falsos descontos1. A tática é antiga: aumenta-se o preço alguns dias antes e depois aplica-se um desconto para chegar no mesmo preço anterior (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais que por aqui se faz). Aumentar preço num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar no mesmo preço, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é publicidade enganosa, prevista no § 1º do artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), e também caracteriza o crime de publicidade enganosa prevista no art. 67 e o crime de informação falsa ou enganosa tipificada no art. 66, ambos também do CDC. De todo modo, como grande parte das vendas é feita via web, aponto a seguir, para lembrar, as regras vigentes para o comércio eletrônico. O comércio eletrônico O decreto presidencial 7.962, de 15 de março de 2013 fixou uma série de regras para o comércio eletrônico. Direitos básicos que já estavam fixados no CDC O art. 1º do decreto deixa claro que são direitos dos consumidores na contratação de compras via internet: a) O fornecimento de informações claras a respeito do produto, do serviço e do fornecedor; b) O atendimento facilitado ao consumidor; e c) O respeito ao direito de arrependimento. São determinações desnecessárias, eis que tudo isso e muito mais está estabelecido no CDC incontestavelmente. De todo modo, ajuda a fixar as determinações. A oferta eletrônica O art. 2º do decreto determina que os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações: a) O nome empresarial e o número de inscrição do fornecedor no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda (CNPJ); b) O endereço físico e eletrônico e demais informações necessárias para sua localização e contato; c) As características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; d) A discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; e) As condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e f) Informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta. Garantia de atendimento facilitado ao consumidor O decreto determina que, para garantir o atendimento facilitado ao consumidor, o fornecedor deverá: a) apresentar um sumário do contrato antes da contratação, com as informações necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor, enfatizadas as cláusulas que limitem direitos. Não nos esqueçamos da regra do § 4º do art. 54 do CDC, que determina que as cláusulas que implicarem limitação do direito do consumidor devem ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão, e que o art. 46 diz que os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. b) fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e correção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da contratação; c) confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta; d) disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua conservação e reprodução, imediatamente após a contratação; e) manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato; f) confirmar imediatamente o recebimento das demandas do consumidor pelo mesmo meio empregado por ele; g) utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para tratamento de dados do consumidor. Anoto que o fornecedor tem cinco dias para encaminhar resposta ao consumidor sobre as demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato  Desistência do negócio: prazo de 7 dias O CDC estabeleceu o direito de desistência a favor do consumidor. A intenção da lei é proteger o consumidor nesse tipo de transação para evitar compras por impulso ou efetuadas sob forte influência da publicidade ou do pessoal do telemarketing sem que o produto esteja sendo visto de perto ou o serviço possa ser testado. E, claro, no presente caso dessa suposta excelente promoção, pela pressão que a mídia e a publicidade exercem. Esse prazo garantido pela lei é de sete dias e chama-se prazo de reflexão. Se nesses sete dias o consumidor se arrepender da compra, pode desistir pura e simplesmente. O arrependimento não precisa ser justificado. Não é preciso dar qualquer satisfação do porquê da desistência. Basta desistir. A contagem do prazo dos sete dias inicia-se quando do recebimento do produto. Existem fornecedores que oferecem prazos maiores de arrependimento: dez, quinze e até trinta dias. Nesses casos, o prazo de reflexão fica automaticamente ampliado de sete para dez, quinze, trinta etc., conforme for a oferta. E, visando a dar eficácia ao contido no art. 49, o decreto 7.962 referido trouxe para o sistema uma série de outras determinações específicas. Numa delas (art. 5º "caput"), reforça que o fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor. E n'outra (§ 1º do mesmo art. 5º) disciplina aquilo que já estava inserido como garantia no CDC: que o consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados. Uma boa novidade trazida pelo decreto é a determinação de que o fornecedor envie ao consumidor a confirmação do recebimento da desistência imediatamente após a manifestação do arrependimento (§ 4º, art. 5º).  Forma de pagamento não interfere no prazo A forma de pagamento não tem nenhuma implicação com o direito de arrependimento. Não importa como o pagamento do preço será feito: à vista ou parcelado com cartão de crédito; a prazo através de boletos ou avisos bancários; através de cheque contra a entrega da mercadoria; no caixa do posto dos correios; após a prestação de serviço ou mensalmente, trimensalmente etc. Em todos esses casos ou em qualquer outro, a desistência operar-se-á da mesma maneira.  Devolução do que foi pago Feita a desistência, qualquer importância que eventualmente já tenha sido paga (entrada, adiantamento, desconto do cheque, pagamento com cartão etc.) deve ser devolvida em valores atualizados. Se, por exemplo, foi feita a autorização para débitos parcelados no cartão de crédito e apenas o primeiro (do ato da compra) tenha sido lançado, este tem que ser devolvido em dinheiro ou lançado como crédito no cartão e os demais têm que ser cancelados pela vendedora junto à administradora do cartão de crédito. Realço que sou daqueles que sempre defendeu essa posição, que inclusive acabou sendo adotada em decisões judiciais. E o decreto 7.962 citado pôs uma pá de cal numa eventual discussão que pudesse existir. Diz a norma que o exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor (§ 2º do art. 5º). E mais: que o exercício desse direito deve ser comunicado imediatamente pelo fornecedor à administradora do cartão de crédito, banco ou instituição financeira, para que: a) a transação não seja lançada na fatura ou conta do consumidor; ou b) que seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura ou conta já tenha sido realizado (§ 3º e incisos I e II do mesmo art. 5º). __________ 1 Comércio eleva desconto sem reduzir preço antes da Black Friday.
No dia 1º de novembro entrou em vigor nova regra que pune motorista que atinja os 20 pontos em sua carteira de habilitação com a suspensão do direito de dirigir por seis meses. Já tratei deste assunto por aqui e sou obrigado a retornar ao mesmo, agora estranhando que até hoje, nenhuma associação que defenda cidadãos brasileiros ou mesmo o Ministério Público, tenha movido ação judicial para declarar a inconstitucionalidade de parte do Código de Trânsito Brasileiro. Sei que existem muitos e graves problemas para nos preocuparmos, mas não é por causa disso que outros - aparentemente menos importantes (embora, pareçam-me, relevantes) - sejam deixados de lado. Como um dos assuntos preferidos de certas autoridades e da mídia é criticar motoristas, eu, com a devida licença da expressão, ficarei na contramão de direção: mostrarei algumas das violações praticadas contra os motoristas. Antes de mais nada, e para evitar confusão, coloco o óbvio: qualquer pessoa é a favor da punição a motoristas infratores, especialmente aqueles que colocam em risco a segurança e a vida dos demais (e de si mesmos). Por isso, é fundamental existirem leis que determinem o controle do trânsito, que fixem punições e estipulem critérios de aferição das infrações. No entanto, existem várias infrações ligadas ao uso de veículos que não acarretam nenhum tipo de perigo ou risco à comunidade ou às demais pessoas. Está entre essas infrações, por exemplo, estacionar em local proibido, estacionar nas chamadas "zonas azuis" sem a colocação do cartão ou uso de aplicativos, trafegar com o veículo no horário proibido nas cidades com sistema de rodízio, como a capital de São Paulo, etc. É verdade que se pode objetar que o estacionamento em alguns locais pode gerar transtorno no trânsito, como, por exemplo, na av. Paulista, em São Paulo. Nesse caso, a infração seria mais grave que estacionar em outro local proibido de menos movimento. No entanto, nem assim se justificaria, como veremos, a aplicação da pena de suspensão ou perda do direito de dirigir. Bastaria guinchar o veículo e, na hipótese, aplicar uma multa maior que as demais. Isso sim seria adequado: multas diferentes para estacionamento em local proibido em ruas diferenciadas. Ora, ainda que se admita que infrações desse tipo possam gerar a imposição de uma multa pecuniária, nada justifica que se imponha a perda ou a suspensão do direito de o motorista continuar dirigindo por infrações dessa ordem. Aliás, ao contrário, como mostrarei, o Sistema Constitucional Brasileiro proíbe que uma lei possa impor penalidade desse tipo. Uma coisa é o motorista trafegar de forma perigosa, com o veículo sem condições de dirigibilidade, fazendo conversões proibidas, movimentando-se em velocidade excessiva, fazendo ultrapassagens perigosas, dirigindo embriagado, etc., outra, muito diferente, é ser pego trafegando no horário proibido pelo rodízio ou não ter colocado o cartão da zona azul ou, ainda, estacionar o veículo em local proibido. É bem fácil perceber que no primeiro caso o motorista representa um perigo à incolumidade física das demais pessoas, podendo no segundo, quando muito, gerar transtornos de ordem administrativa ou queda na arrecadação da verba prevista para o estacionamento nas vias públicas. A punição em cada hipótese deve ser - só pode ser - muito diferente. O problema está em que as normas de trânsito estabeleceram uma confusão entre as duas formas de ação dos motoristas. Ao criar um sistema de pontuação, no qual são somados, na mesma vala comum, os dois tipos de infrações, acabou gerando, concretamente, uma violação ao direito dos motoristas. Suponhamos que alguém que sempre dirija de forma adequada e preventiva, nunca excedendo a velocidade, não fazendo ultrapassagens proibidas etc., mas que tenha que usar o automóvel para trabalhar, seja apanhado dirigindo, no período de um ano, por cinco vezes, no horário proibido pelo rodízio. Ele somará 20 pontos (4 pontos de cada vez) e ficará sem a Carteira Nacional de Habilitação - CNH. No entanto, se, no mesmo período, outro motorista for multado por excesso de velocidade por duas vezes com pontuação gravíssima não sofrerá a mesma pena, pois terá somado apenas 14 pontos (7 de cada vez). O motorista perderá a habilitação se tiver, também, tantas autuações de zona azul e por estacionamento proibido quantas forem necessárias para atingir os 20 pontos ou mais. Os exemplos, claro, se multiplicam na exata medida das combinações de infrações e pontuações. O grave nisso tudo não é só a evidente injustiça concreta da situação em que se acabam colocando os cidadãos, mas também a distorção que o sistema gera, uma vez que acaba punindo o melhor motorista em detrimento do pior. Por isso, penso, este ponto da lei é inconstitucional. Como é sabido, o princípio da isonomia, assegurado na Constituição Federal (art. 5º, "caput" e inciso I) implica que, concretamente, ninguém possa ser tratado com desigualdade pela lei ou por seu agente aplicador. Não pode a lei, portanto, punir mais quem faz menos, sob pena de violar esse princípio constitucional. O mínimo que se pode esperar da norma nesse sentido é que, se ela pretende que se punam os infratores, que aquele que cometer o delito mais perigoso seja punido com mais rigor do que aquele que cometer o de menor gravidade. Acontece que, como vimos acima, a lei colocou num mesmo patamar infratores perigosos e infratores sem nenhuma periculosidade. E esse aspecto viola o princípio da igualdade. Aliás, é possível até que um infrator sem nenhuma periculosidade seja punido e o perigoso não seja, como mostrei. Antes de prosseguir, anoto que o fato de a infração relativa à zona azul ter pontuação 4 e, por exemplo, outra por excesso de velocidade ter 7 (ou seja, há mais pontos negativos para uma do que para outra) não modifica em nada o argumento. Isso porque não existe qualquer conexão lógica entre essas infrações. A natureza de cada infração é tão diferente que impede a comparação. Logo, não há relação entre o ponto negativo 4 de uma e o ponto negativo 7 de outra. Assim, não sendo - como não é - possível fazer analogia entre infrações tão diversas, elas não podem ser comparadas. A questão das punições do CTB é penal. Para o legislador penal ordinário existe um comando constitucional a ser observado na fixação da pena. É o chamado princípio da proporcionalidade. Ele funciona como parâmetro obrigatório para o legislador e apresenta três facetas: a) a pena deve ser graduada de acordo com a relevância do bem jurídico a ser tutelado; b) deve ser levada em conta a pessoa do infrator; c) deve ser considerado o caráter retributivo, isto é, a pena deve ter a mesma pujança da conduta violadora; deve ser fixada levando em conta esse paralelo: a relação existente entre a infração delituosa e a pena. O art. 5º, XLVI, da Carta Magna dispõe que: "a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos". Ora, conforme expus, as normas de trânsito, ao fixar a pena de suspensão do direito de dirigir para os casos de infração de natureza meramente administrativa, está em total dissonância com o texto constitucional. E pior: não está de acordo com nenhum dos critérios caracterizadores do princípio constitucional da proporcionalidade. Vejamos os detalhes. Não resta dúvida de que se trata de pena administrativa de suspensão de direitos (suspensão do direito de dirigir), podendo ir até seu perdimento (perda da CNH). E essa pena: a) primeiramente, não tem graduação na relação com o bem jurídico tutelado. Com efeito, estacionar em local proibido, não colocar o talão da zona azul ou trafegar no horário proibido pelo rodízio não tem relevância jurídica suficiente que possa conduzir à suspensão ou perda do direito de dirigir; b) em segundo lugar, como a fixação é objetiva e abstrata, aplicada indistintamente a todo e qualquer motorista, não leva em consideração a pessoa do infrator. É bem possível (aliás, deve estar acontecendo e muito) que um cidadão que jamais tenha dirigido um veículo em excesso de velocidade e/ou de forma perigosa, e que dirija há muitos e muitos anos sem nunca ter causado nenhum acidente, possa estar perdendo sua habilitação apenas e tão-somente porque teve de trafegar no horário proibido pelo rodízio ou porque se viu obrigado a estacionar em local proibido, ou, ainda, porque não tinha talão da zona azul (ou iphone) ou simplesmente esqueceu-se de colocá-lo; c) em terceiro lugar, a suspensão do direito de dirigir ou o perdimento desse direito, nos casos que estou apontando, não seguem o critério da retribuição. É absolutamente desmedido suspender o direito de dirigir de quem não colocou no carro o talão da zona azul ou estacionou em local proibido ou, ainda, trafegou no horário proibido pelo rodízio. A única retribuição jurídico-constitucional adequada nesses casos é a fixação de multa. Nada mais. Finalizo, portanto, deixando consignada minha posição em prol de tantos quantos já se sentiram injustiçados por terem o direito legítimo de dirigir seus veículos cassado por infrações meramente administrativas. Se quisermos realmente construir uma nação democrática precisamos ir a cada dia amoldando nosso sistema legal aos princípios e regras constitucionais de modo a evitar desigualdades e injustiças.
No mês de outubro é comemorado o Dia das Crianças e já há alguns anos é também o mês do Halloween no Brasil. Como estamos ainda em outubro, volto aos temas. É lugar comum o conselho que os pais dão a seus filhos menores: "Nunca fale com estranhos!". Essa máxima, aliás, é universal e reconhecida como conselho necessário aos pequenos. No entanto, paradoxalmente, muitos pais deixam todos os dias que estranhos falem com seus filhos, crianças e adolescentes. Não só falem como também os assediem e tentem seduzi-los com promessas de aventuras e alegrias várias. Explico. Os menores, todos os dias, estão sujeitos aos anúncios publicitários, especialmente da tevê, mas também de outros veículos como a internet, as revistas, etc. Os responsáveis por produzirem esses anúncios, por planejarem as ofertas, por bolarem promessas atraentes, são pessoas desconhecidas. Aliás, desconhecidas também dos adultos. Essas pessoas estranhas, com intenções mais ou menos ocultas, contam estórias e apresentam uma série de fantasias para tentar convencer os pequenos a se interessarem por seus produtos e serviços e, com isso, pressionarem os pais a adquiri-los. Pergunto novamente: por que é que os pais não gostam que seus filhos falem com estranhos? Ora, porque desconfiam que algo ruim pode acontecer, têm medo que esse desconhecido tenha más intenções, que possa causar danos aos filhos, etc. Os pais sabem que, mesmo sorrindo ou estando bem vestido, o estranho pode estar escondendo algo maléfico por detrás da aparência. Pois bem. Muitos desses desconhecidos, que entram livremente em casa via televisão ou pelos outros meios para falar com as crianças e adolescentes, apresentam-se exatamente assim, travestidos de heróis, portando-se como amigos ou falando pela boca de personagens conhecidos e queridos. Quem são eles? Sim, são pessoas desconhecidas, mas bem formadas: universitários, técnicos, marqueteiros, publicitários, que estudam horas a fio e que planejam o melhor modo de ataque. Da mesma maneira que um estranho numa esquina, bem vestido, sorrindo e oferecendo guloseimas, eles podem causar muitos danos aos pequenos ainda que surjam assim virtualmente. Claro que os eventuais danos são de diversas ordens, mas hoje realço aqueles relativos à saúde dos pequenos, especialmente porque vem aí mais um (incrível!) dia do Halloween no Brasil. São as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma gorda receita, vendendo bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. Se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas, nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e para a obesidade infantil. Essa obesidade é uma pandemia. Atinge crianças e adolescentes em todas as partes do mundo. É responsável por várias doenças e muitas mortes. O fato é que, essa forma de domínio capitalista, no final do século XX e início do XXI, passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração, no que, claro, contam com a ativa participação dos consumidores. E, no caso de crianças e adolescentes, as próprias escolas, nesse ritmo, estimulam a má alimentação: as cantinas estão repletas de guloseimas recheadas de gorduras vazias e excesso de açúcar, frituras e outras porcarias repletas de calorias e de baixo valor nutritivo. Para terminar, anoto que, atualmente, inclusive, algumas escolas oferecem gratuitamente balas, pirulitos e até sorvetes para seus alunos. Um verdadeiro absurdo feito para viciar. Cabe aos pais ficarem atentos e reclamar. As crianças e adolescentes, vítimas desse processo industrial pernicioso, se pudessem e soubessem, agradeceriam.
Prezado leitor, como você pôde ler no noticiário dos últimos dias, ficou comprovado que aquela história inventada pela ANAC de que a liberação da cobrança das bagagens despachadas geraria diminuição no preço das passagens era mais uma das conversas moles para boi dormir, inventada pela agência. Parece brincadeira, mas, como estamos no Brasil, o fato é que essas agências que deveriam proteger o direito dos consumidores e cidadãos em geral, normalmente fazem o jogo das empresas e, mais ainda, o daquelas da pior espécie, que insistem em não respeitar seus clientes. Infelizmente, neste setor das companhias aéreas, a prestação dos serviços, a cada dia que passa, vai decaindo: a qualidade decresce e o preço cresce. Ou seja, tudo o que não se deveria esperar de um sistema capitalista moderno. Este é, sem dúvida, um setor que exige forte regulamentação. Não é o que vem sendo feito pela ANAC, que, na resolução 400 de 13/1/2016, diminuiu as garantias oferecidas aos consumidores. Estamos andando na contramão dos direitos dos usuários desse serviço. Cada dia que passa, o setor está mais desregulamentado ou mal regulado, e os abusos são praticados abertamente. É mesmo uma vergonha que se faça isso abertamente, sem que o consumidor possa se proteger. Como se sabe, esse setor do transporte aéreo de passageiros é um daqueles em que o consumidor está numa situação de extrema vulnerabilidade: ele fica literalmente nas mãos do transportador que decide como será sua viagem, se adequada ou inadequada, livre de problemas ou cheia de transtornos. Qualquer pessoa que viaje entende muito bem do que falo: nunca se sabe se dará tudo certo. Quer seja uma viagem de negócios ou de lazer, sempre se está numa expectativa incerta. Atrasos e falta de informações são muito comuns. Ao consumidor só resta torcer para que tudo dê certo. E já que toquei no assunto, cuido dos atrasos. Há, é verdade, atrasos honestos, tais como aqueles que envolvem eventos climáticos, acidentes ou problemas mecânicos com aeronaves ou, ainda, eventuais entraves com o tráfego aéreo envolvendo outras aeronaves. Mas não esqueçamos de que há os atrasos programados: os que envolvem voos em que as aeronaves estão com pouca ocupação. Nesta hipótese, um voo é cancelado para que um outro, posterior, saia lotado e para o qual os passageiros foram realocados. Nesse tema, lembro que, independentemente, do motivo, sempre que o atraso for superior a 4 horas, o consumidor pode pleitear indenização por danos morais. A citada resolução garante assistência material ao passageiro e o faz do seguinte modo: "Art. 27. A assistência material consiste em satisfazer as necessidades do passageiro e deverá ser oferecida gratuitamente pelo transportador, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, nos seguintes termos: I - superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação; II - superior a 2 (duas) horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; e III - superior a 4 (quatro) horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta." O que interessa aqui são os atrasos superiores a 4 horas. Neste caso, a jurisprudência pátria é pacífica em garantir indenização por danos morais aos passageiros que amargaram essa espera. Importante consignar que, nas decisões judiciais, o atraso em período menor do que 4 horas é considerado mero aborrecimento. Logo não cabe pedir indenização. Mas acima das 4 horas o pleito é viável. Lembro, também, que a responsabilidade das companhias aéreas é objetiva, como decorrência da incidência do Código de Defesa do Consumidor, especificamente o artigo 14 da lei. Alegações de que o atraso superior a 4 horas deu-se por problemas climáticos ou por ausência de piloto, do copiloto ou de membros da equipe de bordo, ou, ainda, problemas mecânicos ou de segurança da aeronave etc. não excluem a responsabilidade, pois são hipóteses de fortuito interno (previsíveis dentro da análise do risco da atividade). As exceções são as relacionadas aos fortuitos externos (e não previsíveis), tais como um terremoto ou a eclosão de um vulcão. Desse modo, na medida em que o atraso se dê por período superior a 4 horas, existe nexo de causalidade, que pode gerar, então, a condenação ao pagamento de indenização por danos morais. Não existe, claro, um valor definido, mas a pesquisa jurisprudencial mostra que as indenizações variam, dependendo daquilo que o consumidor demonstrar em juízo e que envolve o dano efetivamente sofrido, o real tempo de atraso e espera após as 4 horas e as condições de atendimento oferecido pela cia aérea (as informações, a alimentação, a hospedagem, o transporte, etc.). Por fim, anoto que é relevante, para o aumento do valor da indenização, e tem sido levado em conta nas decisões judiciais, a demonstração da perda de compromissos profissionais ou familiares.
Como é sabido, a lei 8.078/90 foi intitulada Código de Defesa do Consumidor (CDC) não só porque ela própria o estabelece (art. 1º), mas principalmente porque a Constituição Federal assim o determina (ADCT, art. 481). E, de fato, o consumidor, por ser a parte vulnerável do mercado de consumo, merece ser protegido, do mesmo como o são outras pessoas com fragilidade similar, tal como crianças e adolescentes, idosos, etc.. Mas agora pergunto: o fato de a lei ser protetiva significa dizer que o consumidor tem sempre razão? A resposta é, evidentemente, negativa. O CDC é erigido sobre os alicerces da boa-fé objetiva que, aliás, aparece explicitamente em seu corpo normativo (art. 4º, III e art. 51, IV). Essa boa-fé chamada objetiva é diversa da subjetiva. A boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença acerca de uma situação pela qual o detentor do direito acredita na sua legitimidade porque desconhece a verdadeira situação. Nesse sentido, a boa-fé pode ser encontrada em vários preceitos do Código Civil, como por exemplo no art. 1.561, quando trata dos efeitos do casamento putativo, nos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, etc.. A boa-fé objetiva, por sua vez, pode ser definida como uma boa regra de conduta, isto é, como a imposição de um dever para as partes agirem conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não o equilíbrio econômico, mas aquele das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, normalmente, há um desequilíbrio de forças. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou mesmo do consumidor. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa a garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes. Ora, o princípio da boa-fé objetiva é bilateral: devem respeitá-lo tanto o fornecedor como o consumidor. De modo que pode haver violação do princípio, inclusive, por parte daquele que a lei protege. Com efeito, a lei pretende que haja entre fornecedor e consumidor um tipo de relação que seja justa na contrapartida existente entre ambos. Desse modo, a boa-fé objetiva é parâmetro também para o comportamento do consumidor, que deve agir sob a égide do mesmo modelo. Elucido com um exemplo extraído de meus livros: o do caso do erro na oferta. O art. 30 do CDC estabelece que a oferta vincula o fornecedor e integra o contrato a ser firmado. É o fenômeno da vinculação. Oferecida a mensagem, fica o fornecedor a ela vinculado, podendo o consumidor exigir seu cumprimento forçado nos termos do art. 35. Se o fornecedor quiser voltar atrás na oferta não poderá fazê-lo, até porque, como de resto decorre da estrutura do CDC, a oferta tem caráter objetivo. Feita, a própria mensagem que a veicula é o elemento comprobatório de sua existência e vinculação. Mas, então, pode-se perguntar: não haveria erro escusável? Não pode o fornecedor voltar atrás na oferta se agiu em erro ao veiculá-la? A resposta é, em regra, não; porém, há uma exceção: é de se aceitar o erro como escusa do cumprimento da oferta, se a mensagem, ela própria, deixar patente o erro, pois caso contrário o fornecedor sempre poderia alegar que agiu em erro para negar-se a cumprir a oferta. Eis o exemplo: vamos supor que uma loja que venda eletrodomésticos resolva fazer uma oferta especial para vender televisores 20 polegadas em cores. Digamos que o preço regular dessa TV, no mercado, seja R$ 600,00. A promoção será anunciada no domingo em dois jornais de grande circulação: será oferecida a venda de 100 aparelhos de TV pelo preço de R$ 500,00 (ou o equivalente a 20% de desconto sobre o preço regular). Acontece que, por erro de digitação num dos veículos, o anúncio saiu errado. No jornal A, a TV é anunciada por R$ 450,00, e no B por somente R$ 5,00 (cinco reais!). Será difícil para o fornecedor recusar-se ao cumprimento da oferta firmada no anúncio do jornal A, porquanto é bem plausível uma promoção daquele tipo (25% de desconto sobre o preço regular). Mas, quanto ao anúncio do jornal B, pode o fornecedor recusar a oferta, porque o erro é grosseiro, flagrante. A oferta é evidentemente falha, contrariando qualquer padrão regular e usual de preço de venda do produto daquele tipo. Se o consumidor quiser adquirir a TV por apenas R$5,00 é ele quem estará violando o princípio da boa-fé objetiva e, também, violando o equilíbrio almejado na relação contratual. Não poderia, pois, na hipótese, exigir a venda do produto naquelas condições. *** PS.: Naturalmente, existem muitas situações nas quais o consumidor pode não ter razão. Afinal, cada caso é um caso. Neste artigo, eu quis apenas tratar de uma conduta que envolve a boa-fé objetiva. __________ 1 Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.
Abraham Lincoln disse: "Às vezes, é melhor ficar calado e deixar que as pessoas pensem que você é um imbecil, do que falar a acabar de vez com a dúvida". Nos últimos dias, travou-se na imprensa e nas redes sociais uma boa discussão a respeito de liberdade de expressão, especialmente por conta do episódio da exposição promovida pelo Banco Santander em Porto Alegre, que foi encerrada antecipadamente em função de protestos contra as obras lá expostas. Um pouco antes, um conhecido cantor sertanejo, que se diz estudioso da história, disse e insistiu que não houve ditadura no Brasil no período de 1964 a 1985. Foi um "militarismo vigiado" disse ele. Sabe-se lá o que isso quer dizer... Como disse meu amigo Outrem Ego a respeito da fala do cantor popular: "Quando li a patacoada, estava de bom humor e logo lembrei de Bill Clinton que, quando estava em campanha para a presidência dos EUA, foi acusado de ter fumado maconha e se defendeu dizendo: 'Fumei, mas não traguei'. E depois já na Casa Branca, pego dessa vez num flagra de sexo oral, negou que aquilo fosse sexo: 'Eu não tive relações sexuais com esta mulher, a senhorita Lewinsky'". "São fatos relatados sob outra ótica", ironizou. Mas meu amigo nem sempre está de bom humor. Certa vez ele, demonstrando seu ceticismo pela humanidade, disse: "A liberdade de expressão é um princípio que garante que a pessoa possa mostrar sua ignorância, arrogância e desrespeito pelo outro explicitamente". De fato, o papel aceita muita coisa e os microfones também. Falar e escrever é bastante fácil, seja asneira ou não. E a liberdade de expressão, direito fundamental, nem sempre é bem compreendida em suas limitações legais no Brasil. Não vou cuidar da incrível fala do cantor sertanejo, que não merece comentários nem do caso da exposição, pois muito já se falou sobre este assunto que, penso, está esgotado. Mas, num dos comentários sobre liberdade de expressão, vi que algum desses comentaristas defendia abertamente a publicidade machista de cerveja, sob o pretexto de que se tratava de liberdade de expressão. Ora, a liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos. Todavia, esse direito, entre nós, não só não é absoluto, como sua garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que, para os gregos na antiguidade, era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação. Mas, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos ou oferecer produtos e serviços no mercado, há um limite ético que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade e o respeito às garantias e direitos estabelecidos. Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim. Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos. Em nosso sistema jurídico temos leis que controlam, em alguns setores, a liberdade de expressão na sua realidade objetiva. Veja-se, por exemplo, a imposição para que a testemunha, ao depor em juízo, fale a verdade. Do mesmo modo, os advogados e as partes têm o dever de lealdade processual, proibindo-se que intencionalmente a verdade dos fatos seja alterada, adulterada, diminuída, aumentada etc. Esse dever de lealdade ___ em todas as esferas: administrativa, civil e criminal ___ é a ética fundamental da verdade imposta a todos. O mesmo se dá no regime de produção capitalista. Com base nos princípios éticos e normativos da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) regulou expressamente a informação e a publicidade enganosa e abusiva (art. 371), proibindo-as e tipificando-as como crime (arts. 67 e 682). No que diz respeito, pois, às relações jurídicas de consumo, a informação e a apresentação dos produtos e serviços, assim como os anúncios publicitários não podem faltar com a verdade daquilo que oferecem ou anunciam, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para de maneira confusa ou ambígua iludir o destinatário do anúncio: o consumidor. A lei quer a verdade objetiva e comprovada e, por isso, determina que o fornecedor mantenha comprovação dos dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem. Aproveito esse ponto para eliminar uma confusão corrente quando se trata de criação e verdade em matéria de relações de consumo: Não existe uma ampla garantia para a liberdade de criação e expressão em matéria de publicidade. O artista goza de uma garantia constitucional de criação para sua obra de arte, mas o publicitário não. Um anúncio publicitário é, em si, um produto realizado pelo publicitário ou coletivamente pelos empregados da agência. Sua razão de existir funda-se em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender. Dessa maneira, vê-se que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção. Ora, como a produção primária de produtos e serviços tem limites precisos na lei, por mais força de razão o anúncio que dela fala. Repito: a liberdade de criação e expressão da publicidade está limitada à ética que dá sustentação à lei. Por isso, não só não pode oferecer uma opinião (elemento subjetivo) como deve sempre falar e apresentar a verdade objetiva do produto e do serviço e suas maneiras de uso, consumo, suas limitações, seus riscos para o consumidor etc. Evidentemente, todas as frases, imagens, sons etc. do anúncio publicitário sofrem a mesma limitação. Naturalmente, a publicidade abusiva que envolva elementos discriminatórios, racistas, machistas há de ser expurgada. E, ao contrário do que defendeu o articulista, uma grande parte dos anúncios de cerveja é sim evidentemente machista. Só não vê quem não quer. __________ 1 "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança." 2 "Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena Detenção de três meses a um ano e multa. Parágrafo único. (Vetado). Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança: Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa: Parágrafo único. (Vetado)."
quinta-feira, 14 de setembro de 2017

A questão da execução injusta

Cuido hoje de um tema que envolve não só direito do consumidor como os outros demais setores jurídicos. Começo lembrando que o termo "execução injusta" foi construído pela doutrina1. Trata-se de procedimento de execução iniciado e efetivado por ordem do suposto credor que tem, ao final do processo, decisão definitiva contra sua pretensão. Para cuidar do tema, usarei dois casos de execução como exemplo: a) uma execução do título extrajudicial com penhora de um imóvel e b) uma execução de astreintes levada a efeito pelo credor provisório. Na primeira, vamos supor que os embargos tenham sido rejeitados, com recurso sem efeito suspensivo em superior instância. O imóvel, avaliado em R$2 milhões é levado à praça e arrematado por 70% do preço. O executado perde o bem, enquanto aguarda a(s) decisão(ões) das Cortes Superiores. Na segunda, digamos que, numa ação visando obrigação de fazer, seja fixada uma multa diária para que a obrigação imputada ao réu seja cumprida e que este deixe passar bastante tempo antes de cumprir a ordem, gerando muitos dias-multa em função do descumprimento da medida. E imaginemos que o réu, nesse tempo de espera e descumprimento, tenha buscado as instâncias superiores visando a modificação do julgado, mas ainda sem sucesso. Nesse ínterim, somados os dias-multa, o autor da ação faz penhora dos valores na conta bancária do réu e, assim que possível, efetua o levantamento da importância. Naturalmente, em ambas as hipóteses, a execução é feita por conta e risco do autor, pois, ainda que ele tenha a seu favor uma decisão judicial, esta é provisória, somente tornando-se definitiva após o transito em julgado. Assim, eventual dano ocasionado ao Réu pelo tempo de espera para a confirmação da decisão ou sua reforma é de responsabilidade do exequente. Esse é o sentido de execução injusta, matéria regulada no art. 520, I e II do CPC, nesses termos: "Art. 520 - O cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime: I - corre por iniciativa e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido; II - fica sem efeito, sobrevindo decisão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidando-se eventuais prejuízos nos mesmos autos;" Trata-se de responsabilidade objetiva do suposto credor. Por isso, havendo modificação do julgado que permitiu a execução provisória, ele arcará com todo prejuízo causado à parte contrária. Como já ensinava Chiovenda: "A lei confere a ação executória anormal ao particular a seu risco e perigo, quer dizer, fazendo-o juiz responsável da existência efetiva de seu direito à prestação: se se apurar que esse direito inexiste, ele obriga-se pelos danos. Recai num círculo vicioso a afirmação de que não se pode obrigar pelos danos aquele que se serve de um direito seu, porquanto esse direito de demandar não é absoluto, mas limitado justamente ao risco que o autor vitorioso assume. E é mais justo que suporte o dano aquela das duas partes que provocou, para vantagem própria, a medida finalmente injustificada, desde que a outra nada fez para acarretar a si própria esse dano e nada era obrigada a fazer para evitá-lo"2. E a indenização pelas perdas e danos há, evidentemente, de ser plena, sendo despicienda qualquer discussão acerca da existência ou inexistência de culpa. Nesse sentido expõe Araken de Assis: "A execução provisória constitui um direito do exequente e, enquanto se desenvolve, processa-se válida e regularmente. Sucede que também produz, no plano do direito material, resultados danosos. Logo, o exequente indenizará por ato ilícito, e a noção de culpa pouco contribuiria na definição dessa responsabilidade"3. A situação caracteriza abuso do direito, previsto no artigo 187 do Código Civil4, ou seja, ato ilícito, regulado pelos preceitos da responsabilidade civil extracontratual. Incide, pois, na hipótese, o artigo 927 do Código Civil: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Consequentemente, a mora corre desde o primeiro momento da pratica executiva danosa, nos termos do artigo 398 do Código Civil, que estabelece: "Art. 398. Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou". Tema pacificado na jurisprudência, inclusive pela Súmula nº 54 do STJ: "Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual". Essa Súmula é de 1992, mas tem sido reiteradamente aplicada, como se vê de recente julgado da terceira Turma do STJ: "Havendo ato ilícito, a mora ocorre no exato momento do cometimento do ato, razão pela qual, a partir daí, começam a incidir os juros moratórios, nos termos do art. 398 do CC"5. Logo, os juros moratórios devem ser computados a partir da data do primeiro ato danoso cometido pela execução injusta. Antes de analisar os exemplos acima trazidos, consigno, ainda, que o fato do Autor da ação oferecer caução (ou cumprir a determinação judicial de oferecê-la) não modifica sua obrigação de indenizar o Réu. Apenas garante que o valor a que o Autor for condenado será coberto total ou parcialmente pela garantia oferecida. Fiquemos, agora, com os casos exemplares que acima propus para pensarmos nos resultados. No primeiro, se os Tribunais Superiores derem ganho de causa ao Réu, acolhendo os embargos à execução por falta de título executivo hábil, o Autor terá que pagar indenização plena. Na impossibilidade de devolução do imóvel, terá que entregar em dinheiro o preço correspondente ao mesmo. Anoto: o preço, isto é, o valor real de mercado e não aquele dado como lance vencedor no leilão (70%). Isto porque a perda foi de 100% do imóvel e a indenização há de ser integral. Além disso, sobre o valor incidirá correção monetária integral e juros de mora de 1% ao mês, calculados a partir da data do início do dano e, ainda, a importância relativa aos lucros cessantes, tais como valor mensal de aluguel ou, se o imóvel for rural, o valor mensal do arrendamento ou das perdas com produção etc. Além, naturalmente, de todas as despesas judiciais, extrajudiciais e honorários de advogado. No segundo caso, digamos que o suposto credor tenha feito penhora de dinheiro depositado na conta do executado e o tenha levantado em certa data. Uma vez derrotado em sua pretensão, terá que recompor completamente as perdas e danos causados. No cálculo do valor a ser restituído/indenizado deverá ser incluída a correção monetária integral e os juros de mora de 1% ao mês calculados desde a data do início do dano mais custas, demais despesas e honorários de advogado. Além disso, tem direito aquele que foi executado injustamente, a receber o valor relativo às perdas financeiras dos investimentos que não puderam ser feitos como, por exemplo, aplicações em CDI ou CDB e demais perdas diretas, tais como os valores pagos a título de garantias oferecidas ao banco, seguro-fiança, eventuais juros e despesas incorridas com empréstimos feitos para o pagamento do valor executado etc.. Tudo a permitir a integral recomposição financeira das perdas ocasionadas. Aliás, neste caso, o cálculo das perdas e danos é bastante simples e fácil de demonstrar, eis que envolve datas conhecidas e taxas oficiais publicadas, além de outras relativas aos investimentos bancários (que podem ser calculados pela média de mercado) e as pagas a título de seguro-fiança, eventuais empréstimos etc.. A modalidade de liquidação há de ser aquela que se mostrar mais conveniente às hipóteses, aplicando-se as regras dos artigos 509 a 512 do CPC. __________ 1 Por exemplo, utilizam a expressão "execução injusta": Donaldo Armelin. O processo de execução e a reforma do código de processo civil. Reforma do código de processo civil. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.) - São Paulo: Saraiva, 1996, p. 684 e Leonardo Greco. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, v. 2, p. 49-50. 2 Giuseppe Chiovenda, Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 270. São Paulo: Saraiva, 1965. 3 Araken de Assis. Manual da execução. 14ª edição rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2012, p. 392. 4 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 5 REsp 1.556.118/ES - 3ª T. - Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino - j. 13/12/2016 - DJe 19/12/2016.
quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Educar o consumidor para salvar o planeta

Num recente artigo meu, apresentei dados sobre a destruição do planeta causada pelo consumo dos recursos naturais renováveis. Na atualidade, tirando o presidente Donald Trump e seus asseclas, que pensam diferente, está claro que o sistema de consumo está causando danos severos ao meio ambiente. A pergunta que eu faço é: de quem é a responsabilidade por essa catástrofe, do sistema capitalista ou do consumidor? Dos fornecedores ou dos hábitos de consumo? Aliás, seria possível separar um do outro? Vale a pena observar alguns fatos, para se ter uma ideia do problema, como já mostrei também por aqui. Eis alguns dados (que variam um pouco de acordo com a fonte, mas que, de todo modo, servem de indicação): a produção e o consumo dos Estados Unidos da América, com um número de consumidores que correspondem a aproximadamente 5% da população do planeta, contribuem com 36% das emissões de gases de efeito estufa e consomem 25% da energia mundial. No que se refere aos países desenvolvidos, estes congregam um quinto da população mundial. Esta minoria, porém, consome 80% de todos os recursos naturais existentes. Logo, ao contrário do que se propaga, a globalização é uma ilusão, pois não dá para "globalizar" o padrão de consumo dos EUA e dos demais países desenvolvidos. Precisaríamos de vários planetas para tanto. Esses dados mostram que é preciso mudar o foco, posto que, caso se perpetue o modelo de consumo dos dias que correm, não haverá salvação. Ao invés de se produzir mais e se consumir mais, a diminuição do consumo é que, talvez, pudesse ajudar a sustentar o planeta. Uma educação para o consumo poderia ajudar a resolver essa equação. Ela existe, mas ainda é muito incipiente e, paradoxalmente, é promovida por empresas que estão descobrindo o nicho do consumo consciente, especialmente trabalhando com produtos recicláveis. De fato, talvez os consumidores pudessem tomar consciência de seu efetivo papel como protagonistas da sociedade capitalista e também percebessem que o regime consumista no qual estão inseridos não faz bem nem a seu bolso nem a sua saúde nem a seu bem-estar e nem ao planeta. Como quero apenas fazer algumas colocações para a nossa reflexão, eu termino por aqui, deixando, na sequência, mais uma vez, uma série de máximas do comediante americano George Carlin e também algumas que eu mesmo fiz, que dizem respeito ao modo de vida da sociedade em que vivemos. De George Carlin: Nós bebemos demais, gastamos sem critérios. Dirigimosrápido demais, ficamos acordados até muito tarde,acordamos muito cansados, lemos muito pouco, assistimos TVdemais e raramente estamos com Deus.Multiplicamos nossos bens, mas reduzimos nossos valores.Aprendemos a sobreviver, mas não a viver; adicionamos anosà nossa vida e não vida aos nossos anos.Fomos e voltamos à Lua, mas temos dificuldade em cruzar arua e encontrar um novo vizinho. Conquistamos o espaço, masnão o nosso próprio.Fizemos muitas coisas maiores, mas pouquíssimas melhores.Aprendemos a nos apressar e não, a esperar.Construímos mais computadores para armazenar maisinformações, produzir mais cópias do que nunca, mas noscomunicamos cada vez menos.Estamos na era do 'fast-food' e da digestão lenta;do homem grande, de caráter pequeno; lucros acentuados erelações vazias.Essa é a era de dois empregos, vários divórcios, casaschiques e lares despedaçados.Essa é a era das viagens rápidas, fraldas e moraldescartáveis, das rapidinhas, dos cérebros ocos e daspílulas 'mágicas'. Um momento de muita coisa na vitrine e muito pouco nadispensa. Acrescento: Estamos na era das fusões de empresas e dos desempregados em profusões. Do acúmulo de cartões de crédito fácil e abundante e das dívidas impagáveis. Das dezenas de pares de sapatos nos armários de casa e das crianças andando descalças nas ruas. Nunca tivemos tanto acesso à informação, mas nosso conhecimento é paupérrimo. As pessoas sabem muito sobre automóveis, mas pouco sobre arte. Muitos consumidores têm noção dos preços das cervejas, mas desconhecem o valor da solidariedade. Tira-se foto de tudo, mas, realmente, não se aprecia quase nada.
quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O direito de não ser perturbado

Sou obrigado a voltar ao assunto, na medida em que ele não sai do noticiário. E, infelizmente, o que se constata é que o individualismo imperante adora fazer barulho desde que seja na casa dos outros. Parece mesmo que nós não aprendemos que o direito de um termina onde começa o de outro. E aqui na cidade de São Paulo, vivemos alguns paradoxos: enquanto o PSIU - Programa de Silêncio Urbano da prefeitura de São Paulo diz que "fiscaliza estabelecimentos comerciais, indústrias, instituições de ensino, templos religiosos, bailes funk/pancadões e assemelhados"1, com base na lei municipal 16.402, de 23 de março de 2016, regulamentada pelo decreto 57.443/16, ela própria autoriza que feiras realizadas em praças e parques executem músicas e shows que incomodam os moradores ao redor. Essa situação paradoxal parece estimular o padrão individualista e egoísta ao extremo, e isso acaba por ser leniente em relação às demais violações; mais cedo ou mais tarde, voltam-se para o próprio violador. Pois bem. O direito de não ser perturbado, mais conhecido como direito ao sossego, que é correlato do direito de vizinhança, nasce naturalmente da garantia constitucional do direito à intimidade e privacidade prevista no inciso X do art. 5º da Constituição Federal. Do mesmo modo que a intimidade e a privacidade, o direito ao sossego é um direito de negação, de interdição da ação dos outros. Trata-se, pois, da imposição de um limite físico, visando garantir a tranquilidade das pessoas. O direito ao silêncio é um direito sagrado não só por ser exercício pleno da intimidade e privacidade, mas também por compor a sadia qualidade de vida, garantida, do mesmo modo, no texto constitucional (artigo 6º). Ele é instituído como prerrogativa a todo indivíduo, que pode, por isso, impor que o outro cesse o ruído ou o barulho. Falei de Constituição Federal, mas o tema em análise e a atitude dos barulhentos nos remetem a tempos mais remotos. Jesus Cristo já tinha alertado para que façamos aos outros o que queremos que eles nos façam2. Todavia, parece que na sociedade capitalista brasileira, na qual se pode verificar uma falta de educação bastante ampla aliada a um baixo nível de civilização, o lema "o outro que se dane" ou "os incomodados que se mudem" está tornando-se lugar comum. Uma pena. Quem sabe se de, de fato, como diz meu amigo Outrem Ego, o barulho pudesse ser transferido para a casa dos barulhentos ou de seus parentes, a ficha caísse! *** PS.: O direito ao silêncio é um assunto de que já tratei em minhas colunas. Como se sabe, temos leis claras a respeito e o Poder Judiciário tem decidido a favor do direito de não ser perturbado. Apresento, assim, na sequência, mais uma vez as principais normas vigentes e a posição do Judiciário em alguns casos. Com efeito, a Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". A lei de Crimes Ambientais (lei 9605/98), por sua vez, pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o Código Civil Brasileiro garante o direito ao sossego no seu art. 1.277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Consigno que, para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de caráter moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras. A questão, portanto, ao contrário do que sempre é mostrado nos noticiários, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais. O Judiciário, por sua vez, considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente ou ao vivo em praças públicas etc.. __________ 1 PSIU no combate à poluição sonora. 2 Em Mateus 7:12.
quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O planeta está sendo consumido

No dia 2 de agosto p.p., os seres humanos consumiram o total de recursos que o planeta terra pode renovar em um ano. O cálculo é feito anualmente pela ONG Global Footprint Network1. No ano passado este fatídico dia chegou 24 horas depois, em 3 agosto. O diagnóstico é feito pelo exame das emissões de gases do efeito estufa e também pelos recursos consumidos pela pesca, pela pecuária, pelos cultivos, pelas construções e pela utilização da água. Para satisfazer nossas necessidades, hoje deveríamos contar com o equivalente a 1,7 planeta, declararam os representantes da ONG2. Sem consultar dados, eu gostaria de complementar os cálculos, lembrando que o consumo no planeta é desequilibrado. Se a forma de consumo dos países desenvolvidos se estendesse a todos os cantos da terra, certamente, a devastação seria muito maior. Isto é, mesmo com um índice de consumo muito menor em países emergentes, o planeta está sendo destruído. Muito bem. O que se diz é que o modelo capitalista implementado especialmente a partir da segunda metade do século XX e que se tornou devastador mais ao final é o responsável: a chamada vida para o consumo contribuiu e contribui sobremaneira para essa destruição. E para que nós possamos ter uma ideia do que foi a implementação desse modelo, eu vou me utilizar de um texto que é bem conhecido, mas que permite que nós possamos entender como esse consumo do planeta foi sendo efetivado. Houve um momento no século passado no qual ainda tínhamos esperança de que o planeta pudesse ser preservado. Foram anos em que: a) O leite, as cervejas, os refrigerantes eram vendidos em garrafas de vidro. Essas garrafas eram devolvidas às lojas. Estas as mandavam de volta aos fabricantes, que as lavavam e esterilizavam antes de cada reuso. Essas garrafas eram assim usadas várias vezes para a mesma finalidade: transportar líquidos. Ainda não se usavam garrafas plásticas que demoram séculos para serem degradadas; b) As fraldas dos bebês eram lavadas, pois ainda não havia fraldas descartáveis; c) A secagem das roupas era feita em varais unicamente com energia solar e eólica e não em máquinas secadoras elétricas; d) Por falar em roupas, os filhos menores usavam as roupas que tinham sido de seus irmãos mais velhos, e não tinham necessidade de adquirir roupas novas a toda hora; e) E por falar em energia elétrica, naquela época as pessoas possuíam apenas um aparelho de tevê em casa, e não um em cada ambiente do lar; alguns tem até na cozinha!; f) Aliás, eram tevês de 14 ou 20 polegadas e não equipamentos do tamanho de uma tela de cinema... e que são descartadas e trocadas por novos com telas planas, finas, etc. a cada 3 ou 4 anos...; g) Naquela época, havia só uma tomada em cada quarto, e não um quadro de tomadas em cada parede para alimentar uma dúzia de aparelhos; h) E, na cozinha, as pessoas faziam muitas atividades físicas, cortando, lavando, espremendo, pois ainda não havia máquinas de lavar pratos e demais utensílios, batedeiras e trituradeiras elétricas de tudo quanto é tipo; i) E quando se fosse enviar algo frágil pelo correio, usavam-se jornais velhos como proteção, e não plástico bolha ou pellets de plástico que também não se degradam rapidamente; j) Não havia tantas escadas rolantes. As pessoas subiam mais escadas. E também andavam mais a pé e não utilizavam automóveis apenas para ir à padaria da esquina. k) E por falar em automóvel e localização, as pessoas não precisavam do serviço do GPS para receber sinais de satélite no espaço e conseguir encontrar a pizzaria mais próxima.l) Naqueles tempos, não se usava motor a gasolina para cortar o gramado: era utilizado um cortador de grama que exigia músculos. O exercício era extraordinário, e não se precisava ir a uma academia para se exercitar usando esteiras elétricas; E, claro, um longo etc. de desperdícios. __________ 1 Retirei os dados do UOL. 2 Idem nota anterior.
quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Sintomas e reflexões

Eu devo confessar que não sou do tipo pessimista. Aliás, acredito que, sabendo olhar a gente consegue encontrar algo de bom. Mas, que o Brasil é um grande desafio a essa tentativa de encontro, ah! isso é mesmo. Não é de agora, claro, e infelizmente. Trata-se de uma espécie de destino insólito que tem origens muito antigas e enraizadas em nossa estrutura patrimonialista. Mas, com a implantação da democracia e das garantias de liberdades aos indivíduos, esperar-se-ia que ao menos as leis editadas fossem cumpridas por todos: Estado e pessoas. Dedico-me, neste espaço, a cuidar em larga medida do consumidor. Permito-me, no entanto, algumas digressões mais amplas, especialmente porque na sociedade capitalista o cidadão se confunde com o consumidor. Aliás, no nosso sistema, o consumidor foi elevado à figura constitucional. Nosso texto fala de pessoa física, pessoa jurídica e também de consumidor expressamente. Não quero tratar das mazelas de que tanto cuidam os meios de comunicação (e também as redes sociais). Vou partir de uma específica matéria para apontar alguns sintomas que, pelo que parece, acabam dando sustentação a tanto abuso neste nosso querido país. Li que as cantoras sertanejas Simone e Simaria tiveram seu show encerrado pela polícia, na madrugada do último sábado, 29, em Miami, na Flórida (EUA). A apresentação acontecia no River Yacht Club, quando o som foi desligado pela polícia 15 minutos antes do horário previsto para o final do show, que era 2h. O fato teria deixado o público que lotou o local revoltado e tanto as redes sociais como os principais veículos de comunicação no país deram destaque à notícia. O que aconteceu de fato? Um vizinho reclamou do barulho, pois queria exercer seu legítimo direito de dormir1. Chamou a polícia local, os policiais cumpriram sua função e puseram ordem na casa: desligaram o som! Ou seja, cumpriram a lei! Lei que garante o silêncio, como temos também entre nós2. Esse fato me fez lembrar um outro narrado por uma aluna em sala de aula. Ela havia ido aos Estados Unidos da América com os pais. Precisando fazer um telefonema, seu pai parou o veículo numa rua em frente a uma loja para poder usar um telefone público. Quando fazia a ligação, uma pessoa que trabalhava na loja saiu e, dirigindo-se à ele, disse que não poderia ficar com o veículo ali e apontou para a placa de proibido parar, que estava bem em frente. O pai fingiu que não ouviu, mas a moça passou a falar em seu ouvido, atrapalhando a ligação. Ele acabou desistindo e foi embora. Minha aluna estava indignada. Disse: "Que absurdo. O que ela tinha a ver com aquilo? Ela nem era da polícia de trânsito!". Houve certo debate na sala, pois muitos concordaram com a aluna. Mas, nem todos. Afinal, é somente a polícia que pode fazer cumprir a lei? Lembro-me de alguém ter feito uma analogia falando: "Se numa praça pública é proibido pisar no gramado e alguém pisa, os demais devem ficar quietos?" Sem querer fazer estatística a partir de situações particulares, gostaria de continuar nessa toada pensando em sintomas. A lei vale para todos ou não? E quem deve cuidar de seu cumprimento, apenas as autoridades? Vivemos num país em que se fala que há leis que pegam e leis que não pegam. Pode isso? Onde residiria o problema? Seria na educação? Não posso falar em termos estatísticos, mas há sintomas que nos fazem pensar. Meu amigo Outrem Ego vive reclamando da má educação dos vizinhos de seu prédio. "Há pessoas que simplesmente entram no elevador e se recusam a dar bom dia ou boa noite" diz ele. E ele também me contou o seguinte: foi a uma reunião na escola de sua filha. Era geral, no anfiteatro, com todos os pais. Marcada para as 19 horas, ele chegou 18:40 e havia uma fila para entrar. Numa mesa, era pedida identificação e entregue um material para leitura. A fila era grande, com umas vinte pessoas. Todos iam para o mesmo lugar e na mesma reunião. De repente, surgiu um pai, viu a fila e, devagarzinho, foi lá na frente da mesa. Ficou parado ao lado e, alguns segundos depois, furou a fila e entrou no anfiteatro. Meu amigo apenas olhou e sentiu um aperto no peito. Pensou: "Não vai dar certo... Este país está perdido". Acho que ele exagerou na generalização, mas que é mais um sintoma é. Ele disse que nem ficou tão espantado quando, naquele mesmo dia, ao comentar o assunto com um outro pai de aluno, este lhe contou algo muito, muito pior. Disse ele que, numa festa de quinze anos, na casa de um garoto, foi servida cerveja aos presentes, incluindo os adolescentes. Pode isso? Ah, isso não pode. Mas, daí o sintoma aponta para uma doença maior.Meu amigo, que viaja muito, diz que não é incomum que, na sala de espera para o embarque, com poucos lugares e muitos passageiros, alguns deles sentem numa cadeira e coloquem sua bagagem de mão na cadeira ao lado, ocupando o lugar que estava vago em detrimento dos que chegam e não têm onde sentar. Ou, no exemplo do barulho, com o que iniciei este artigo: muitos não se preocupam em ouvir som alto ou fazer festas ruidosas até tarde, incomodando os vizinhos. Há mesmo pessoas que agem como se a lei somente valesse para os outros. Algumas normas não funcionam para elas próprias, só para terceiros. Trata-se de um individualismo que gera um isolacionismo, útil para os detentores do poder. Como eu disse, não gosto de generalizar, mas são sintomas que nos fazem pensar. __________ 1 Brazil News. 2 Já escrevi mais de uma vez sobre o tema do Direito ao sossego por aqui.
quinta-feira, 6 de julho de 2017

Seres humanos existem ou não para o Estado?

O filme "Eu, Daniel Blake" tem muitas virtudes e, além de ser emocionante, humano e cativante, impressiona por uma série de fatores. Um deles chama muito a atenção: o filme passa-se nos dias atuais na Inglaterra, na cidade de Newcastle1. Assistindo ao filme, uma pergunta fica martelando: é isso mesmo? Na toda poderosa e rica Inglaterra, um cidadão britânico é tratado pelas autoridades como se nem existisse? A estupidez da burocracia dos comandos normativos e informatizados consegue mesmo fazer com que os funcionários públicos robotizados ignorem que à sua frente são pessoas reais que se apresentam? E os setores de atendimento tanto pessoal quanto via telefone são piores ainda, não só no tempo de espera, como na ausência de respostas e soluções satisfatórias. Ele, Daniel Blake, um carpinteiro de Newcastle, sofre um infarto e fica impedido de voltar ao trabalho, mas ao tentar receber seu auxílio-desemprego junto ao governo, recebe a resposta de uma funcionária incompetente de uma empresa terceirizada, de que deve voltar a trabalhar. Isso, apesar dos laudos médicos proibirem-no de fazê-lo. A película mostra um Estado cínico que finge oferecer benefícios a quem precisa e a quem tem direito por ter contribuído a vida toda como trabalhador, mas que não se importa muito com pessoas reais como Blake, que se nega a cumprir determinações burocráticas e esdrúxulas. E, pior, tudo está informatizado, mas nem todos os cidadãos sabem como se dirigir ao Estado via web, um dos problemas adicionais do personagem. Aliás, os funcionários públicos do atendimento são muito parecidos com os próprios computadores, que não conhecem regras que não sejam as que foram programadas previamente. No filme, a exceção são os funcionários que distribuem cesta básica, talvez porque comida é ainda... comida e pessoas com fome são ainda... pessoas. Mas anoto que a fila para receber a cesta era infernal... Esse roteiro lembra algum país que o leitor conhece? A Inglaterra ficou assim mesmo? Pobre por lá é também um estorvo? A parceria entre o público e o privado tem sempre que produzir coisas ruins? Em entrevista ao El Pais, o Diretor afirmou: "As grandes corporações dominam a economia e isso cria uma grande leva de pessoas pobres. O Estado deve apoiá-las, mas não quer ou não tem recursos. Por isso cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo direito ou chegou tarde a uma entrevista"2. De fato, é isso que o filme nos mostra. Há, é verdade, pessoas que se incomodam, além dos funcionários públicos desumanos, mas quem vence é o sistema com seus funcionários-robôs insensíveis. Um mal do capitalismo? Da Europa? Do mundo? Deixarei o Brasil de lado. Já sabemos muito das coisas ruins que existem por aqui. Penso que as empresas podem construir relações afetivas e bons atendimentos apesar do capitalismo selvagem e agressivo e também que o Estado pode melhorar na sua relação com as pessoas. Mas isso somente ocorre se as pessoas forem tratadas como seres humanos e por seres humanos que compreendam que as interações devem ser humanas! Regras são bem-vindas, mas, como já dizia Aristóteles há cerca de 2.400 anos, como uma das características da lei é sua generalidade, ela não pode prever todas as particularidades das situações do dia a dia. O aplicador, quer seja um juiz ou um funcionário público, tem que estar atento às situações e, por isso, deve agir com bom senso. A Justiça do caso concreto (isto é, a equidade) é uma virtude importante do aplicador da lei que, com prudência, consegue encontrar um modo de sanar a lacuna natural do sistema legal abstrato. Infelizmente, talvez a estupidez seja uma característica mais comum que a compreensão e a decisão sábia, justa. E, às vezes, seria preciso tão pouco. Fico ainda na Europa. Cito um caso de menor importância, mas que ainda assim simboliza o mesmo problema, guardadas as devidas proporções: A esposa de meu amigo Outrem Ego foi admoestada por um policial de trânsito em Lisboa. Nada grave, mas conto assim mesmo. Tentava ela estacionar numa rua, mas havia passado a placa que estava na calçada e não sabia, ao certo, se podia ou não. Quando manobrava avistou um Policial de Trânsito. Abriu a janela e perguntou: "Olá, bom dia. Por favor, pode me informar se posso parar o veículo aqui?". Recebeu, de volta, uma cara feia e a seguir uma pergunta de forma estúpida: "Tu tens carta de condução?" Ela disse: "Sim". "E o que aprendeste na escola de condução? Não sabes ler placas? Venha, saia do veículo agora". Ela obedeceu. O Policial a levou alguns metros para trás e mostrou uma placa e disse rispidamente: "Vá! Diga, o que aquela placa ali quer dizer?". E apontou para a placa de proibido estacionar. Não bastava dizer que era proibido? Claro que os exemplos se multiplicam pelo mundo afora e nem preciso ilustrar com os casos brasileiros, pois o leitor sabe muito bem que os serviços públicos por aqui são muito ruins e os privados também (ainda que nos privados haja ilhas de excelência, embora a preços altos). Mas, chama a atenção que, em pleno século XXI, nós ainda não conseguimos serviços públicos e privados adequados oferecidos por pessoas educadas. A má educação é mato! E, como o filme mostrou, desculpando-me pelo trocadilho e pelo spoiler, também mata! __________ 1 Do Diretor Ken Loach e que venceu a Palma de Ouro em Cannes em 2016. 2 Conferir em Carta Capital.
Como o leitor deve ter visto, pois foi amplamente divulgado, entre os dias 8 e 13 de junho passados, a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado de São Paulo (Procon-SP) executou uma fiscalização em restaurantes da cidade de São Paulo. Em 7 deles, as equipes encontraram produtos vencidos. Parece pouco, não é? Só que não: o número de restaurantes fiscalizados foi de apenas 23! Ora, são praticamente 30% dos avaliados. E todos restaurantes de primeira linha1. Além do problema com os produtos vencidos, outros 6 restaurantes mantinham na cozinha produtos abertos sem informação da data de abertura, infringindo determinação da vigilância sanitária2. E entre os que apresentaram problemas com a validade, 2 também foram flagrados quanto a essa mesma irregularidade. Muito bem, as autuações foram feitas e as defesas serão apresentadas. Eventuais multas somente serão impostas após o exame das defesas. Mas, como disse meu amigo Outrem Ego, quando leu as matérias publicadas nos jornais: "A julgar pelas falas dos responsáveis pelos estabelecimentos, a alternativa que nós temos é comer em casa mesmo". Ele se referia a alguns depoimentos. Cito: Ao jornal Estado, a proprietária de um dos restaurantes contestou o resultado da fiscalização dizendo: "Estou aqui há 15 anos e nunca recebi uma autuação desse gênero. Sabemos que não somos perfeitos, que há falhas, que tudo deveria estar etiquetado, mas uma coisa muito distinta é dizer que servíamos comida imprópria para consumo. Era uma comida que daria para o meu filho, sem dúvidas"3. E continuou: "Posso falar com muita segurança que zelamos pelo que servimos. A fiscalização coloca em jogo todo o cuidado e carinho que temos", completou. Ela se disse "entristecida" com a operação. "Como cidadã, me entristece ver o meu dinheiro aplicado nisso, sabendo que há outros problemas mais graves para serem tratados". Outros estabelecimentos deram algumas desculpas, mas admitiram em parte as falhas. E um deles também disse: "os produtos fora da validade encontrados não seriam preparados para os clientes. Eles tinham sido deixados por um representante que queria apresentar seu produto e foram doados, ainda dentro do prazo de validade, aos funcionários, que se esqueceram de levar para casa. Temos uma nutricionista que visita a casa diariamente e preza pela qualidade de todos os ingredientes servidos aos nossos clientes4." Muito bem, caro leitor, a pergunta que faço é a seguinte: como consumidores que somos e que nos vemos obrigados a almoçar, jantar, lanchar fora de casa a trabalho ou lazer, sozinhos ou acompanhados de amigos e familiares (o que inclui idosos e crianças), podemos ficar tranquilos em relação à qualidade dos produtos que ingerimos? Como também disse meu amigo: "Minha mulher e eu tomamos um cuidado enorme com produtos guardados em casa e só os consumimos e os entregamos a nossos filhos se estiverem dentro do prazo de validade. Aliás, não é exatamente para isso que servem os prazos de validade?" Sem dúvida. Mas, o caso mostra que é bem capaz que estejamos pagando mais caro para ingerir produtos vencidos. Esse assunto sempre vem à tona quando envolve esse tipo de fiscalização. Porém, o que realmente preocupa e que eu gostaria de colocar, é o dos números. São Paulo tem milhares de restaurantes. Não sei se a amostragem feita a partir da fiscalização do Procon serve como elemento estatístico, mas pode dar uma ideia. Se 30% dos restaurantes estão irregulares, então, a quantidade de produtos que podem causar mal à saúde vendidos diariamente apenas na capital paulista é extraordinária. Sem qualquer pretensão numérica e apenas fazendo um jogo, pode-se dizer que um consumidor comum acaba ingerindo produtos fora do prazo de validade em 3 de cada 10 restaurantes visitados. É muito! Caberia não só ao Procon, mas também aos demais órgãos de vigilância sanitária exercer a fiscalização com muito mais constância para que possamos saber quais os estabelecimentos confiáveis. O que assusta a mim como consumidor e que, penso, deve assustar o leitor, é o fato irretorquível de que existem restaurantes que nos entregam produtos deteriorados. Isso é inadmissível! Não há qualquer desculpa possível! E, por fim, para ficar com uma posição que eu entendo ser fundamental: poder-se-ia fiscalizar todos para punir os infratores e também para tornar público o nome dos estabelecimentos que cumprem todas as regras de higiene, segurança, e de guarda e manuseio dos alimentos. Seria um bom quadro para examinarmos via internet antes de marcarmos para jantar com nossos amigos e familiares5. __________ 1 No site do Procon há detalhes do trabalho realizado. 2 Ver nota anterior e a seguinte reportagem. 3 Ver nota anterior. 4 Ver nota anterior. 5 No site do Procon (ver nota 1 acima) estão os nomes de todos os estabelecimentos visitados, inclusive os aprovados. Falta, como disse, visitar muitos mais!
quinta-feira, 8 de junho de 2017

O automóvel é um produto fora da lei?

Vivemos um momento de conflitos e indefinições no que diz respeito às garantias e direitos estabelecidos não só no Brasil, como em vários outros países. É uma época em que as opiniões estão em toda parte, divididas ou unificadas, muitas delas contraditórias em relação às outras, embora tratem do mesmo objeto. Bem, não serei eu a engrossar esse caldo um pouco indigesto. Mas, gostaria de retornar a um tema que gera um certo embate e que tem relação direta com mercado de consumo e leis de proteção ao consumidor. Isso, naturalmente, como um convite à reflexão de um assunto um pouco fora da política (falo "um pouco fora" porque numa sociedade democrática falar de leis, em algum sentido, é também falar de política). Cuidarei dos veículos automotores e do excesso de velocidade e o farei pela via do direito do consumidor, a partir de um paradoxo e também de um problema de lógica do sistema legal: levarei em consideração o fato de que um automóvel não passa de um produto controlado e regulado pela legislação. Muito bem. Dizem os artigos 8º "caput" e 10 "caput" do Código de Defesa do Consumidor: "Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito". "Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança". Por uma série de normas e procedimentos, as autoridades responsáveis nos respectivos setores regulam a produção dos bens de consumo, visando não só assegurar sua qualidade, adequação, durabilidade etc., como os vários aspectos que envolvem a segurança para evitar que os consumidores possam sofrer danos com seu uso. A questão que coloco, então, envolve conforme antecipei um dos paradoxos da sociedade capitalista, assim como aponta para um problema de implementação efetiva dos elementos lógicos que deveriam dar base ao sistema jurídico. Explico: Se a velocidade máxima permitida para tráfego por rodovias no Brasil - não só no Brasil, mas é o que nos interessa - é de 120km por hora, como é que se pode permitir que a indústria automobilística produza e venda veículos que alcancem velocidades muito superiores a isso? (Grifei o muito porque, efetivamente, na atualidade qualquer automóvel consegue atingir velocidades de 150, 180, 200 Km por hora e mais). São essas, portanto, as perguntas: se a velocidade máxima permitida é de 120km/hora, a lei não deveria simplesmente proibir a produção de veículos que pudessem atingir velocidades superiores? E mais, ainda que sem norma específica, ao vender tais veículos, a indústria não estaria infringindo as normas de segurança fixadas no CDC, conforme se pode ler nos artigos 8º e 10 que acima transcrevi? (Faço um parêntese para lembrar algo conhecido de todos. mas que não posso abordar para não fugir do assunto. Os veículos estão, como apontei, preparados para infrigirem a lei e, além disso, algumas montadoras fazem anúncios publicitários oferecendo seus produtos realçando exatamente essa "qualidade", mostrando automóveis com muita potência e capazes de atingir altas velocidades e até mesmo em tempo recorde! E isso para seduzir seus potenciais compradores!). Deixo, assim, postas essas questões para reflexão dos leitores, lembrando, como gosto sempre de fazer, que para nós da área jurídica o que importa é o rigor do argumento, a lógica que lhe dá sustentação, assim como seu uso harmônico e coerente em relação ao sistema jurídico e sua teleológica razoabilidade. No entanto, prosseguindo no mesmo tema, trago ainda outro ponto que envolve o mesmo aspecto e que também está regulado no CDC. Enquanto não se proíbe a fabricação desses verdadeiros carros de corrida, resta perguntar e responder uma questão relativa a responsabilidade pelos acidentes ocasionados pelos verdadeiros bólidos dirigidos em velocidades acima do máximo permitido. Com efeito, dispõe o art. 12 do CDC: "Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos". É regra que trata da responsabilidade civil objetiva em caso de acidente de consumo. O CDC é bastante restrito quanto às excludentes de responsabilidade (na verdade, excludentes do nexo de causalidade) capazes de isentarem os fornecedores indicados. Para nossa análise, o que interessa é o previsto no inciso II do parágrafo 1º e o inciso III do parágrafo 3º do mesmo artigo. Leiamos os dois parágrafos: "§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em circulação." "§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro". O problema é excesso de velocidade. Esta pode se dar de duas formas: a) a norma de trânsito proíbe transitar acima de 60km/hora ou 70km/hora etc e o motorista supera essas velocidades, por exemplo, transitando a 100km/hora e causa acidente; b) independentemente do limite estabelecido ou que seja o máximo de 120km/hora, o motorista trafega a 150km/hora, 180km/hora ou mais. Pergunto: se o fabricante somente não responde quando comprove a culpa exclusiva do consumidor e, se este, assumindo os riscos e agindo com culpa, desenvolve velocidade muito acima do permitido e causa o acidente, não estar-se-ia diante de um caso de não exclusão da responsabilidade porque a culpa não seria exclusiva, mas concorrente, uma vez que o produto em si é a causa primária que permite a infração e o acidente correspondente? Veja-se que o legislador utilizou-se do advérbio "só" no "caput" do art. 12 do CDC para deixar claro que a excludente somente se verifica naquelas hipóteses e, por isso, quando se refere a ato do consumidor, exige a prova de sua culpa exclusiva. Assim, quando o consumidor trafega acima do permitido, mas dentro do possível admitido pelo sistema legal (por exemplo, a 100km/hora), se causar acidente sua culpa é exclusiva, pois infringiu sozinho a lei. Ademais, nesse caso, a hipótese do inciso II do § 1º também socorre o fabricante, eis que o veículo está sendo usado dentro dos riscos que razoavelmente dele se esperam. O problema se dá quando o consumidor ultrapassa o máximo permitido de 120km/hora. Sua culpa, nesse caso, é exclusiva ou concorrente? O embaraço surge aqui, pois se a indústria vende veículos que são capazes de superar - e em muito - o máximo da velocidade permitida (e, de certo modo, alguns anúncios publicitários e matérias especializadas de tevê, jornais e revistas até estimulam o movimento em alta velocidade) quando o consumidor (culpado, evidentemente) trafega a mais de 120km/hora, a culpa não seria concorrente? E, nesse caso, o fabricante seria também responsável pelos danos? Quando fiz esse tipo de questionamento em sala de aula, surgiram comparações com armas tais como facas e revólveres. Disseram: se o consumidor usa a faca para matar ao invés de utilizá-la na cozinha ou o revolver também para matar ao invés de para se proteger, então age com culpa exclusiva. O fabricante não tem nenhuma relação com a ocorrência. Verdade. Mas, a diferença é que a faca é feita para cortar e o revólver para atirar. Com esses objetos o defeito se dá se eles não cumprirem o fim ao qual se destinam (cortar e atirar). Com o automóvel é diferente: ele nasce infrator, pois está apto a ir além do permitido legalmente. Poder-se-ia querer lançar toda culpa no consumidor em função da possiblidade real do meio. Entrega-se a ele um veículo que facilmente atinge velocidades excessivas, mas ao mesmo tempo se erige um comando legal (e moral) que deve agir em sua consciência para impedir que ele acelere mais quando atinja o limite máximo. Tubo bem. Mas, quando ele passa do limite o faz porque o meio permite e quem o fabricou é que, nesse ponto passa a agir com ele. Daí a concorrência de culpas. São essas minhas considerações e, pois, minha contribuição para um debate sobre essa questão do excesso de velocidade, desta feita pela via do Direito do Consumidor.
Meu amigo Outrem Ego trabalhou num grande banco estrangeiro, que tem agências no mundo todo. Há muitos anos, no início da década de oitenta, ele fez um curso sobre concessão de crédito de massa e sua cobrança (isto é, cobrança de créditos do varejo; também de massa, portanto, e no qual se incluem dívidas de cartões de crédito). Foi um excelente aprendizado, como ele diz, e cujo modelo acabou sendo implantado em todo o planeta. Das várias coisas que ele contou, uma sobre cartões de crédito é bastante interessante. "O professor", disse ele, "perguntou a nós, alunos, quais eram as prioridades do consumidor no que dizia respeito ao pagamento de suas dívidas: 'Quando ele recebe seu salário no fim do mês, o que ele escolhe pagar em primeiro lugar?'. Nós respondemos que, logicamente, pela ordem de importância: medicamentos, alimentação, serviços públicos essenciais como energia elétrica, água e gás, escola do filhos, aluguel da casa etc." Meu amigo prosseguiu: "O professor, então disse: 'É isso mesmo! O consumidor estabelece uma escala de prioridades. Ele, consciente ou inconscientemente, constrói uma pirâmide de prioridades. No topo estão os itens de primeira necessidade e na medida em que se desce a montanha vão aparecendo os débitos menos necessários ou menos urgentes. É natural, portanto, que os débitos com os bancos estejam na base da pirâmide. Ele paga todo mundo apenas se tiver dinheiro para tanto'." Outrem Ego disse que, na sequência, o professor apresentou o pulo do gato: "Nós, que trabalhamos nos bancos, temos de dar um jeito de inverter a pirâmide. Temos de colocar no topo nossos créditos. E dá para fazer: basta conseguir colocar o cartão de crédito em todas as operações existentes. No comércio, na indústria, na prestação de serviços, o que inclui médicos e hospitais, e até nas escolas, nos serviços públicos etc. Como o cartão será o instrumento mais importante do poder de compra do consumidor, a primeira coisa que ele deverá fazer quando receber seu salário será pagar sua fatura. Estaremos no topo da pirâmide." É isso! Atualmente, já se pode pagar quase tudo com cartão de crédito. Existe uma verdadeira invasão de cartões, uma superexposição ao cartão de crédito; inclusive, os grandes estabelecimentos comerciais se utilizam de seu próprio cartão. Quem ainda não cansou de ouvir o caixa dizer: "Você tem cartão de crédito X?". Aliás, não é incomum, o consumidor possuir mais 4, 5, 6 ou mais cartões. De fato, tendo em vista sua praticidade, o cartão de crédito talvez seja o exemplo mais representativo da evolução das formas de pagamento na sociedade de consumo. O pagamento em moeda corrente e mesmo através do cheque foi sendo substituído pelo chamado "dinheiro de plástico". E isso por uma série de facilidades que ele oferece, além daquelas apresentadas pelo professor americano. O cartão poupa o consumidor das complicadas tarefas de assinar contratos para obtenção do crédito; idas e vindas aos bancos; permite compra sem dinheiro, enquanto este está em alguma aplicação financeira ou ainda não chegou; colabora com o controle do orçamento doméstico, uma vez que o extrato aponta todas as compras feitas; além de uma série de outros benefícios e serviços oferecidos pelos administradores (seguros automáticos, saque de dinheiro etc.). Tudo isso, é claro, aliado à enorme facilidade que é ter no bolso apenas um pequeno documento de plástico, substituindo papel moeda, talão de cheques, etc. Como no Brasil os juros cobrados pelos administradores dos cartões são muito elevados, nem todas essas vantagens estão implementadas. O consumidor acaba fugindo do financiamento - aliás, deve fazê-lo para não correr o risco de se endividar1 --, e o cartão de crédito acaba funcionando mais como um cartão de compra. E, ademais, por isso mesmo, o cartão tem também sido usado na função de débito, firmando-se cada vez mais como um instrumento de compra e não de financiamento. Mas, sem dúvida, não dá para viver sem eles. __________ 1 O lado negativo do uso excessivo do cartão de crédito é exatamente este: o consumidor acaba se perdendo nas aquisições à prazo, se descontrola e se endivida ou, pior, se superendivida.
Está difícil tratar de qualquer assunto que não seja algo ligado a delações, a manifestações, à corrupção, à crise política enfim. Mas, apesar de tudo, as pessoas continuam a viver suas vidas com as dificuldades inerentes e com mais ou menos perspectivas de que as coisas melhorem. Como nesses últimos dois dias, vi que está sendo anunciado, por publicidade massiva, que aproxima-se mais um "Feirão da Casa Própria" promovido pela Caixa Econômica Federal (CEF), resolvi voltar a esse assunto, que já tive oportunidade de aqui tratar. Também aqui nesta coluna, afirmei que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem: a esperança de, passando um creme, ficar com a pele mais bonita ou mais saudável; de, usando um novo xampu, ficar com os cabelos mais sedosos; a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita ou de fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; pagar prêmios de seguros para garantir o próprio futuro e, também, o da família; poupar de forma adequada para conseguir chegar nesse futuro e ter tempo ainda de gozar a vida etc etc. O mercado oferece o futuro de uma vida melhor. E, sabemos que o consumidor tem pressa. Aliás, foi o próprio mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não há tempo para nada; nem se pode perder tempo algum. Recebe-se à vista e paga-se a prazo, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o dia das mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem que entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel -- criadas e continuam pagando as prestações de seu financiamento. Como é que diz mesmo a propaganda?: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável... Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. O consumidor, desprotegido, é transparente, fácil presa desse tipo de iniciativa. Por ocasião de uma dessas promoções de venda de imóveis, meu amigo Outrem disse: "Sempre que vejo isso, me vem a imagem do marido que diz pra sua mulher num sábado à tarde: 'Querida, vamos dar uma saidinha? Vamos até o shopping, pois eu preciso comprar uma gravata e vou te comprar uma bolsa. Depois, na volta, já que estamos no caminho, nós aproveitamos e compramos um apartamento de três quartos porque este aqui com dois está pequeno demais'". É mesmo desanimador. O chamado "Feirão da Casa Própria", promovido nos últimos anos, é um esquema de vendas que acabou vingando. A CEF gasta milhões de reais em anúncios espalhados na mídia, num tipo de oferta que envolve o consumidor em seus temores, anseios e esperanças. Ademais, nessa questão, surge o problema da desinformação, pois o comprador está agindo contra as cautelas normais e necessárias que se exige nesse tipo de transação. Tem razão o meu amigo: uma casa ou um apartamento não devem jamais ser comprados numa exposição de fim de semana, como se a pessoa estivesse comprando frutas na feira livre ou numa liquidação tipo queima de estoque de roupas ou sapatos. A casa própria é, para a grande maioria dos consumidores, o mais importante (e mais caro) negócio da vida inteira. É a realização de um sonho e, por isso, deve ser tratado com a reflexão e o carinho que merece. Indo numa dessas "promoções", o consumidor corre o risco de comprar um imóvel por impulso, sem qualquer avaliação objetiva, pois, quando chega ao local, sofre todo tipo de pressão e influência dos vendedores, cujo maior interesse é vender, fechar um bom negócio com polpudas comissões. Para o comprador, fica, às vezes, a frustração (mais uma e essa praticamente definitiva) de morar onde não tinha exatamente planejado e, ainda por cima, endividado pelo compromisso assumido de longo prazo (10, 15, 20 anos ou mais). Ora, é fato conhecido que, antes de se comprar um imóvel, é preciso conhecê-lo, examinando-o para ver se ele atende às necessidades e expectativas. Deve-se vistoriá-lo não só de dia, no horário marcado pelo corretor ou vendedor, mas também em outro período, procurando conhecer as condições da vizinhança à noite - barulhos, trânsito, feira livre, etc. É importante conhecer a região para ver se ela oferece aquilo que o comprador precisa, como escolas, farmácias, supermercados, etc. Aliás, esse tipo de operação rouba mercado dos advogados, que deveriam ser sempre consultados antes do fechamento desse negócio. Não só há necessidade da produção e exame de certidões forenses e do Cartório do Registro Imobiliário, como da avaliação de todas as peculiaridades daquela específica operação jurídica. Por exemplo, a compra de imóvel por empreitada ou preço de custo ou feita pelo Sistema Financeiro de Habitação etc. envolve aspectos bem diferenciados. Em alguns casos é preciso inclusive checar se não há projeto para desapropriação do local: se o imóvel está localizado numa rua importante ou perto de estrada ou área de manancial etc. É preciso saber, ainda, em alguns casos, se a área não é de proteção ambiental, etc. Lembro, naturalmente, que cada situação comporta componentes próprios de avaliação que devem ser levados em consideração, além das preliminares e genéricas que apresentei. As questões concretas e particulares devem, por isso, ser levadas a um advogado especialista que, como já disse, deve intervir em contratos de compra e venda desse tipo. É uma pena. O capitalismo é selvagem, ganancioso e egoísta e o consumidor - vítima frágil do modelo - jogado a própria sorte, apresenta-se cada vez mais desesperado, correndo atrás do futuro de bem-estar decorrente da aquisição de produtos e serviços que não chega (quero dizer, pelo menos não chega para muitos milhões de consumidores).