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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Neste ano começou mais cedo. E foi na cidade de Niterói: deslizamento, mortes, destruição. E nem começou a temporada de chuvas. (Mas saiu do noticiário após a quase queda do viaduto em São Paulo...) Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado. As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando centenas de mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer, passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio. De nada adianta ficar simplesmente acusando as vítimas depois das ocorrências, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada e também nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. Como se sabe, a legislação brasileira é clara a respeito. A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Lembro que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. É necessário apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização. Antes de prosseguir, lembro também que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau de participação (culpa) da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Naturalmente, os familiares que são dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Do mesmo modo, a vítima sobrevivente pode pleitear pensão pelo período em que, convalescente, tenha ficado impossibilitado de trabalhar. E além da pensão, no cômputo dos danos materiais inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como, no caso de desmoronamento da habitação, seu preço ou o custo para a construção de uma outra igual e todas as demais perdas efetivamente sofridas relacionadas ao evento. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estadia e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que no caso dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo, que levará em consideração dentre outros elementos a assistência às famílias das vítimas, o grau de participação ou omissão dos agentes públicos, a necessidade de punição exemplar etc.
quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Os consumidores querem mesmo proteção?

Caro leitor, eu estudo e penso a questão da defesa do consumidor há mais de 30 anos, desde a década de 80 do século passado, quando, na Faculdade de Direito da PUC/SP, começou-se a estudar o tema. Isso antes da edição do Código de Defesa do Consumidor (que, como se sabe, é de 1990). E meu primeiro livro sobre o assunto é de 1991. Nesses anos todos, foram muitas as vezes que me perguntaram e eu mesmo me indaguei: será que o consumidor quer mesmo ser protegido? Por vezes parece que ele quer ser enganado ou prefere ser enganado do que aceitar a verdade. Não há dúvidas de que ele precisa de proteção, mas seria bom se ele (se) ajudasse. Vejamos mais uma vez como o consumidor se envolve com o marketing, com a oferta, com a publicidade etc. Lembro de uma antiga publicidade na qual aparecia uma modelo muito bonita com um corpo escultural e que dizia algo mais ou menos assim: "Oi, eu tenho esse corpo porque uso....". Daí, ela falava o nome do produto, um massageador. Quando fui perguntado em sala de aula sobre o anúncio, de pronto respondi: "Para a propaganda não ser enganosa, a personagem teria de completar a fala, dizendo: E faço controle alimentar com um nutricionista, já fiz lipoaspiração, fiz implantes, faço muitos exercícios na academia todos os dias etc.". Na ocasião, curioso, fiz uma pesquisa para ver as reclamações existentes contra o produto ou, pelo menos, contra a propaganda, que era descaradamente enganosa. Mas, nada encontrei. Por quê? Na verdade, muitas vezes o consumidor não gosta de declarar que foi enganado, especialmente nos casos em que a mentira é muito evidente. Ele tem vergonha de confessar. É como na fabula da raposa e as uvas: apesar da fome, prefere dizer que as uvas estão verdes. Ele convence a si mesmo de que deu azar. Para ele o produto não funcionou, mas ele não foi bobo de acreditar em algo tão descaradamente falso. Como é que se diz mesmo na atualidade? As pessoas acreditam no que querem acreditar. E nenhum de nós está livre desse sistema. Vejam o que sempre ocorre nas eleições e, claro, também nas recentes. As pessoas acreditam em todo tipo de pesquisa, ainda que nas eleições anteriores os mesmos Institutos que as fazem, em alguns casos, errem feio (E, claro, muitas vezes acertam). E, pior, acreditam nos comentaristas, muitos deles absoluta e claramente parciais. Como se diz atualmente: há fake news. Sim, mas há também fake opinion e fake publicity. Aliás, como poderia dizer o consumidor ou a consumidora que comprou o "aparelho mágico" que deixa o corpo maravilhoso, "só não vê quem não quer". Esse fenômeno de se acreditar em qualquer coisa não é novo. Talvez exista desde sempre. E há exemplos incríveis. No livro "Ciência e Pseudociência", Ronaldo Pilati conta alguns1. Veja este: em 1997, os adeptos da Seita Heaven's Gate acreditavam que o mundo acabaria e que a salvação, para seus membros, estaria em uma espaçonave que seguia o cometa Hale-Bopp. Alguns integrantes tiveram a ideia de comprar um telescópio para produzir evidência de que a nave existia. Focalizaram o cometa, mas nenhuma nave. O que fizeram então? Levaram o telescópio à loja e pediram o dinheiro de volta, pois era um produto com defeito2... Veja-se outro episódio recente que gerou uma incrível discussão: o do músico Roger Waters, marqueteiro de primeira linha, que usou no Brasil a mesma tática que usa em alguns lugares do mundo para se promover falando de políticos. Sempre dá certo. Mas, muitos não conseguem ver o jogo que ele faz. Não é só ele que faz. Há outros como, por exemplo, Bono Vox do U2. É mesmo impressionante as cifras que esses artistas faturam como grandes capitalistas que são, fingindo não ser. É a versão musical do massageador que gera um corpo extraordinário. E a fã ou o fã, como uma consumidora apaixonada ou consumidor apaixonado, não percebe. Isto é, não quer ver. O fato é que, essas versões dos fatos são enfiadas pela goela das pessoas e repetidas tantas vezes que soam como verdades. Estratégias de marketing mais fake news mais fake opinions. As pesquisas mostram que as pessoas se acostumam com as coisas rotineiras, comuns, banais e acabam aceitando-as como válidas e verdadeiras. Ou, então, aceitam os fatos como se eles não pudessem ser diferentes. O que se percebe é que os consumidores estão tão absorvidos pelo mundo do marketing, da publicidade, das compras, que não conseguem se dar conta dos direitos que poderiam ter. Eles vão sendo amaciados e tornam-se passivos na avaliação do real, acatando regras, contratos, imagens, textos, notícias, pronunciamentos, ou pior, diante de uma realidade que, melhor avaliada, levaria a descoberta da verdade, acabam aceitando-a porque foram acostumados ao cômodo e inexorável andar das circunstâncias que não lhes pertence. *** ET.: Voltarei ao assunto, pois penso que as redes sociais - ao contrário do que alguns dizem - são uma esperança a favor da busca dos fatos verdadeiros e da informação verdadeira, assim como possibilitarão uma maior liberdade ao pensamento de cada um. __________ 1 São Paulo: Editora Contexto, 2018. 2 Idem, Ibidem, p. 17.
quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Os compradores compulsivos

O vício é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. E o consumismo fez nascer um vício, uma doença típica da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e também é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles. O comprador compulsivo é aquele que se satisfaz não com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ele pode literalmente adquirir qualquer coisa que lhe surja na frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra o satisfará. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, esse tipo de comprador é um consumidor típico e, portanto, frequenta os mesmos lugares que os demais. Daí, ele acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ele mesmo quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, joias, etc. e com isso, às vezes, nem ele nem os que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ele é exagerado ou uma espécie de colecionador. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. Como eu costumo dizer, parafraseando Descartes: "Consumo, logo existo". Somos uma sociedade de consumidores e, infelizmente, as pessoas são vistas, avaliadas, medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem adquirir. No século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica. Além disso, o sistema capitalista compreendeu bem uma das questões de ordem psicológica, que poderia ser capaz de frear as vendas. Falo do dinheiro que se gasta quando se compra. Se uma pessoa tivesse que pagar em dinheiro toda e qualquer compra, saberia, ao menos quando carregasse as moedas, "o peso" de sua perda. Ela estaria trocando, por exemplo, alguns maços de papel moeda por um terno, um sapato ou uma bolsa. Trocaria muitos maços de dinheiro por uma viagem ao exterior e entregaria uma mala cheia dele para adquirir um automóvel. A pessoa "enxergaria" o quanto estava gastando. Mas, o comprador não percebe isso. Ele simplesmente passa um cheque ou uma TED que representa o dinheiro e que, sintomaticamente, ele nem possui concretamente, pois está no banco. Quer dizer, está num número de conta. Nem no cofre da agência bancária está. Ou, então, passa um cartão de crédito e, neste caso, nem dinheiro precisa ter. O mercado, pois, insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um, mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença. Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. É claro que, se o comprador com oneomania for uma pessoa de posses e puder gastar muito dinheiro, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize. Assim, um outro modo de identificação da doença está em verificar o excesso da compra de produtos, que jamais são usados. Trata-se de mais uma característica da sociedade capitalista que é, simultaneamente, da falta e do desperdício.
quinta-feira, 18 de outubro de 2018

O marketing é mais um tijolo na parede

Já tive oportunidade de lembrar que candidatos em eleições seguem o modelo típico da sociedade capitalista: são pensados e produzidos do mesmo modo que os produtos que os consumidores encontram nas prateleiras de supermercados e lojas de shopping centers. E o candidato é apresentado ao eleitor dentro da lógica da oferta e da publicidade à disposição dos partidos. Aliás, as campanhas contratam os melhores publicitários para montar a propaganda e atualmente contratam os que mais entendem de redes sociais. E até a embalagem é bem estudada: cortes de cabelo, roupas, maquiagem, a postura etc., tudo é muito bem arquitetado. E o que sai de dentro da embalagem? As falas. São planejadas, discutidas, ensaiadas, muito antes de serem pronunciadas, de tal modo que possam atingir os ouvidos, corações e mentes do público alvo (o eleitor). Assim, pronto o produto (candidato), ele é entregue ao mercado de consumo (público alvo, imprensa, organismos institucionais etc.) como algo a ser comprado num dia certo, o das eleições. Muito bem. Na semana passada, deu muito o que falar a "colocação política" de um dos fundadores da banda Pink Floyd, Roger Waters. Teve de tudo: críticas, elogios, vaias, aplausos, comentários na imprensa escrita, nas tevês, nas rádios, nas redes sociais, etc. Só pelo que eu escrevi no parágrafo anterior, algo chama a atenção: a publicidade massiva e gratuita. Isso mesmo! O que Roger Waters fez não passa da melhor estratégia de marketing conhecida. Conseguir espaço gratuito em todos os veículos de comunicação não é para qualquer um. Tinha que ser feito por um autêntico representante do capitalismo mundial. E, claro, os consumidores - admiradores ou não do músico - acreditam que é para valer. Mostro na sequência como funciona esse tipo de sistema. Roger Waters é um autêntico inglês, nascido em Surrey, Inglaterra. Ele se apresenta como simpático ao socialismo e ao comunismo, mas fatura como um autêntico capitalista. O ingresso mais barato para seus shows no Brasil custa R$180,00, passando por R$220,00, R$287,00, R$395,00, R$701,00 e chegando a R$1.620,00 (no camarote). É apenas mais um socialista caviar, como se diz. Aliás, se o músico realmente quisesse fazer alguma diferença visando ajudar a mudar o mundo, ele seria um dos que poderiam, de fato, contribuir. Como inglês, poderia candidatar-se ao Parlamento Britânico e até tentar ser o Primeiro Ministro. Certamente, poderia influir nos destinos do capitalismo e das injustiças do mundo. Será que ele não sabe que foi sua pátria-mãe, a Inglaterra, que inventou o capitalismo moderno? O capitalismo, sistema econômico baseado na propriedade privada, que produz os bens de consumo e os comercializa visando o lucro, foi definido pelo filósofo escocês Adam Smith em 1776 (no estudo A Riqueza das Nações) em meio à Revolução Industrial na Inglaterra. O sistema funciona nesse modelo até hoje com a ajuda, apoio, incentivo etc. do imperialismo capitalista britânico. O músico não gosta do Donald Trump? Ora, se ele quisesse fazer algo contra o presidente norte-americano, poderia, sendo político britânico, lutar para que sua Imperialista Coroa não apoiasse o presidente que ele chama da fascista. Dou apenas um exemplo: em abril deste ano os EUA atacaram a Síria com o apoio explícito do Reino Unido e da França. Caro leitor, não pense que estou aqui a criticar o músico. Na verdade, estou apenas mostrando a eficiência de sua tática típica de mercado. Resolvi escrever este artigo apenas para demonstrar do que se trata. É um exame da estratégia de capitalista inglês como ele é. Ele sabe muito bem manipular a opinião pública e seus fãs (clientes/consumidores). Se tem alguma coisa autêntica na tática, ela é certamente a que envolve as técnicas de mercado que visam a faturar cada vez mais, aumentando as receitas e o lucro. Como na letra da famosa música do disco The Wall, permito-me fazer uma inversão para mostrar como funciona o marketing do capitalismo atual: a "fala política" do músico não passa de mais um tijolo no muro ("Another brick in the wall").
Nesta semana, comemora-se o Dia das crianças. A essa altura, quem podia comprar já comprou os presentes para serem entregues, como manda o calendário comercial-capitalista da ocasião. Quero, então, mais uma vez, aproveitar a data para propor uma reflexão sobre o tema. Nós, adultos, em matéria de consumo, estamos praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de ilusão e controle. Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo assustador que nos obriga a consumir, consumir e consumir é o da tomada de consciência do processo histórico, que se instituiu a partir das chamadas revoluções burguesa e industrial e que vem sendo vendida como um projeto de liberdade. Falsa liberdade, na medida em que quase todo seu exercício se resume a adquirir produtos e serviços cuja escolha é limitada àquilo que é decidido unilateralmente pelos fornecedores. Vamos, pois, alguns de nós adultos, lutando contra o poder opressivo do mercado e outros nem se dando conta desse aprisionamento. Muito bem. Pergunto: é esse o futuro que desejamos para nossas crianças? É esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indivíduos se medem pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e não por aquilo que são? Claro que nem toda culpa é do mercado, mas com certeza o modelo que faz com que o cidadão se aliene nas compras e acredite na publicidade, o atordoa de tal modo que ele, jogado à própria individualidade, não sabe como agir. Vendo tevê ou navegando na web, por exemplo, assiste-se ao mundo perfeito dos anúncios publicitários: o de bancos mostrando seus gerentes sempre sorrindo e oferecendo vantagens a seus clientes, enquanto na realidade os clientes são enganados a torto e a direito, assinando contratos com cláusulas abusivas, recebendo cobranças de taxas absurdas, sendo obrigados a aderir a operações casadas ilegais, etc. Há, também, a propaganda de veículos maravilhosos, que nunca quebram; de smartphones mágicos; de alimentos exuberantes etc.; enfim, um longo desfile de produtos e serviços muito diferentes do real. Há, pois, dois mundos: o da publicidade e o dos fatos. É incumbência dos adultos conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para tentar desvendar as enganações e discernir sobre o que é válido e verdadeiro. Mas, refaço a pergunta: e nossas crianças, como estão posicionadas nesta sociedade capitalista? Como é que elas recebem o espetacular assédio do marketing e suas armas? Com mais influência que em relação aos adultos. Mas, claro, há muitos pais absorvidos por todas as formas de consumo e, inclusive, utilizam-se do próprio mercado para controlar seus filhos, o que é uma pena. Não que seja fácil. Ainda que, por exemplo, os pais tenham o costume de limitar a exposição de seus filhos à tevê, basta um pouco de tempo para a percepção do ataque (uma verdadeira guerra de anúncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, se o filho tem seu tempo limitado de uso da internet, são suficientes também apenas alguns minutos para a explosão de ofertas. E, se não bastasse isso, há toda a sedução do merchandising feito em programas de tevê, filmes de cinema, vídeo e até teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato é inevitável e não há mesmo nada de errado em frequentar shoppings, cinemas, teatros, viajar, assistir tevê etc. Não é mesmo fácil. Mas, é lição de casa que precisa ser feita. Cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos. É comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem da maior parte deles. Pode ser um bom precedente para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. E, evidentemente, cabe aos pais dizer não. A criança pode até se frustrar, mas será por algo válido, uma boa experiência que ela levará consigo, pois na vida adulta ela perceberá que a frustração é um elemento comum no jogo social. Os pais são, pois, os primeiros responsáveis por alertar seus filhos contra o assédio feito pelo marketing infantil hoje tão sofisticado e difundido. Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e serviços. Qual deve ser a função do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve comprá-los sem exagero. As crianças, se pudessem, agradeceriam as lições.
Uma questão jurídica que tem gerado polêmica no tema da responsabilidade civil do transportador é a da definição do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão. Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo - que, diga-se, não lhe pertence - e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou, em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração. O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz por que quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar. O outro lado do risco da atividade é o do risco social engendrado pela exploração do mercado. A simples colocação de produtos e serviços gera esse risco. Inexoravelmente, a existência em si do empreendimento traz potencialmente risco de danos às pessoas. Decorre disso que, quem se estabelece deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar, não só para buscar evitá-los, mas também para se prevenir sobre suas eventuais perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas, deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão. O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador nem por ele evitado. Todavia, não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o caso de certas ocorrências da natureza, tais como tempestades e nevoeiros, no caso do transportador aéreo. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno - que, aliás, ocorre constantemente -- é integrante típico do risco daquele negócio. Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas e/ou terrestres geradas pelas cinzas do vulcão, que impedem a navegação nem pela interdição de aeroportos por conta de terremotos e tsunamis. Resguardados, claro, os direitos dos passageiros de remarcação de passagens e cancelamento da reserva com recebimento imediato dos valores pagos.
A confusão está estabelecida. Nas redes sociais (o que é compreensível) mas também nos veículos de comunicação (infelizmente, o que não seria de se aceitar), estabeleceu-se uma confusão enorme no significado das palavras. O que era para ser claro e objetivo semanticamente falando ganhou sentidos opostos; o que devia ser obscuro em sua essência mais profunda, parece muito simples. Vou citar dois exemplos trazidos por meu amigo Outrem Ego. Ele, sempre preocupado com a clareza das comunicações, me perguntou: "Como é que alguém pode ser contra uma política de Direitos Humanos? Estes não seriam os direitos fundamentais de todas as pessoas?". Sim, sem dúvida. E colocando a questão da obscuridade onde deveria tudo ser claro, questionou: "Onde está escrito que quem é a favor dos Direitos Humanos é ao mesmo tempo a favor de bandidos?". De fato, não só não está escrito, como ninguém duvida que quem comete crimes deve ser punido e cumprir a pena a qual foi condenado (a). Entrando mais ainda na seara do obscuro tratado com singeleza, perguntou: "Quer dizer que quem é contra o aborto é fundamentalista religioso ou antifeminista? Pois saiba meu amigo, que não sou fundamentalista religioso, embora cristão e sempre fui feminista, sempre defendi o direito à igualdade de todos, homens e mulheres". Realmente, essa retórica é simultaneamente simplista e superficial. Há muitas mulheres contra o aborto e a favor de seus direitos como iguais, feministas sem serem abortistas. São apenas dois casos, mas simbolicamente importantes para que possamos refletir sobre o problema. Não estamos vivendo apenas uma era de radicalizações de lado a lado. É pior: as pessoas estão confundindo os significados de conceitos que são muito caros para um bom entendimento das virtudes dos seres humanos. Some-se a isso a ideia (e realidade) de que a pós-verdade é um dos elementos mais marcantes da sociedade atual e corremos o risco de viver um caos comunicativo. Eu sei que existem comunicações claras e comunicações obscuras. Entre os dois extremos há, certamente, uma ampla zona cinzenta na qual cada um pode tomar o partido que quiser, mas é preciso que nos extremos nós possamos ter certeza do que está sendo dito, feito e comunicado, sob pena de tudo se perder num enorme cipoal de palavras. Nós que somos da área jurídica, muitas vezes, pensamos que tudo pode ser dito ou escrito e a respeito de qualquer coisa. Mas, não é nem pode ser assim. Ainda que a chamada Ciência do Direito não seja exata como as matemáticas, tem que haver um núcleo de comunicação em que a segurança se estabeleça. Segue um exemplo que eu gosto de dar: num estádio de futebol estão 1.000 bacharéis em física e química. No centro do gramado está colocada uma vasilha cheia de água sobre a boca de um fogão acesso. A água começa a ferver. Distribui-se um questionário com a seguinte pergunta: "A água está fervendo. Qual é a temperatura dela em Celsius: a) 80 graus; b) 100 graus: c) 30 graus e d) 55 graus". A resposta todos conhecem. Não é uma questão de opinião. Se algum dos bacharéis presentes não quiser apontar 100 graus porque pensa diferente, então, ele simplesmente errou a resposta. E ponto. No Direito, isso é possível? E nas comunicações sociais seria possível também? No Direito, tem que ser, em alguma medida. Por mais que a linguagem jurídica seja fortemente retórica, certamente há de haver algumas questões que se possa fazer a bacharéis em direito a que eles respondam num mesmo sentido. Aliás, se assim não fosse, como é que os professores fariam avaliações na Faculdade de Direito? Ou como é que se fariam avaliações nos exames da OAB ou para ingresso em qualquer carreira jurídica? E nas comunicações sociais? Parece mais difícil, isso é certo. Mas, nem tudo o que se diz pode passar como verdadeiro ou como falso. Nem tudo o que se diz pode ficar sujeito a diversas interpretações díspares. Afinal, quando alguém dá "bom dia", o sentido imediato deve ser o de um cumprimento, ainda que o dia não esteja lá essas coisas. A verdade é que, com ou sem eleições, com ou sem paixões exacerbadas pela defesa de temas novos ou antigos, com ou sem defesa de assuntos polêmicos, a manipulação das comunicações sociais fica cada dia mais clara, ainda que, para nosso espanto, nem sempre seja fácil identificar o agente manipulador.
quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Está na hora do voto facultativo

Aproveitando as eleições que se aproximam, volto ao tema do voto facultativo, algo que envolve a sociedade de consumo no viés da atuação política dos consumidores-cidadãos e seus representantes eleitos. Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos apenas um dos aspectos de nossa democracia, esse do fato do voto ser obrigatório entre nós. De todos os países do mundo, apenas 21 ainda adotam esse modelo, sendo 10 na América Latina e do Sul1. E dentre os 15 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever2. Penso que o voto obrigatório é contrário à natural liberdade que se espera numa democracia e transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa democracia, o voto há que ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão. A obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a sua aquisição. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. O sistema serve apenas para legitimar uma estrutura de poder antiga e que agora está em xeque no Brasil. Para ser ter uma ideia, uma pesquisa publicada pela Revista Exame mostra que 79% dos brasileiros não lembra do nome em quem votou em 20143. Esse dado comprova que milhões de brasileiros vão às urnas para se livrar da obrigação de votar e para não perder vários direitos retirados de quem não vota, como, por exemplo, tirar passaporte. Por isso, sou daqueles que acreditam que o voto facultativo tem tudo de positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que, de fato, possa representar seus pensamentos, seus desejos, assim como do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução do voto distrital, a do candidato avulso (sem partido) etc. Mas, o fim do voto obrigatório parece-me um bom começo. Agora um outro aspecto: como também já tive oportunidade de tratar, as democracias contemporâneas são formadas por cidadãos-consumidores. Isto é, uma característica marcante das sociedades capitalistas é que elas são formadas basicamente por consumidores. Os direitos dos cidadãos são exercidos em larga medida pela atuação enquanto consumidores, pois no cotidiano as ações são "vividas" pelo e para o consumo. Ademais, em relação ao Estado, está claro que ele é um agente prestador de serviços (além de produtor) e se comunica com os cidadãos do mesmo modo que as empresas privadas com seus clientes. Nesse sentido, é que se diz que o eleitor é um cliente do Estado. Como o regime é democrático e as autoridades são guindadas a seus cargos pelos votos dos eleitores, estes esperam, legitimamente, que as ações e tomadas de decisões daqueles estejam, de algum modo, então, em consonância com suas necessidades, interesses e direitos. Os cidadãos-consumidores têm que se comunicar livremente com seus representantes. A propósito, se olharmos para uma série de reinvindicações feitas nos últimos meses e anos, veremos que boa parte delas envolve direitos típicos dos consumidores, tais como transportes decentes, melhor atendimento médico e hospitalar, educação de boa qualidade e mais segurança pública. Esses pleitos são bem-vindos e representam o direito que têm os cidadãos de se manifestar livremente e de exigir que se lhes entreguem produtos e serviços decentes a preços módicos; e, também, que a política seja executada de forma honesta e transparente. Por isso tudo, penso que a liberdade para o voto é um objetivo a ser perseguido. __________ 1 O que é voto obrigatório? 2 O voto obrigatório no mundo e (2) Voto obrigatório no mundo. 3 79% dos brasileiros não lembram em quem votaram para o Congresso.
quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O mercado é capaz de se autorregular?

Há quem acredite que, deixado à própria sorte, o mercado se autorregule e, com isso, resolva uma série de problemas dos consumidores, inclusive oferecendo melhores produtos e serviços a menores preços. De fato, na atualidade, é possível encontrar empresários e empresas que realmente se preocupam com a qualidade de seus produtos e serviços, com a questão ambiental, com entrega de parte do lucro a causas sociais, etc. Mas, são uma minoria. Infelizmente. A verdade é que o mercado precisa de regulação sim. E, ao menos no caso brasileiro, não só por determinação constitucional e legal, mas também por questão de ordem política e social, o Estado é o responsável pela fiscalização de tudo o quanto ocorre no mercado de consumo. Quando me refiro a Estado quero dizer todos os entes da Federação nas suas esferas de competência: a União, os Estados-membros e os municípios. É verdade, também, que uma parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado tem uma certa autonomia em relação à fiscalização do Estado, tais como a indústria e comércio de vestuário, a produção e distribuição de livros, jornais e revistas, a oferta de cursos livres, etc. No entanto, um amplo setor da economia está atrelado às determinações do Estado diretamente ou por intermédio de suas agências e autarquias e/ou são explorações autorizadas a funcionar apenas pelo Estado ou mediante concessão. Não é porque o Estado privatizou certos setores que não tem mais responsabilidade sobre eles. Ademais, não adianta acreditar que o mercado de consumo resolve suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" de mercado que fosse capaz de corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: os empresários modernos e as grandes corporações que eles dirigem querem faturar mais alto, nem que para isso eles tenham que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios e piorar a qualidade de seus produtos e serviços. Para lucrar mais, esses empresários acabam correndo mais risco de oferecer piores produtos e serviços ao consumidor. E, com o fenômeno da chamada globalização (que tem mais de 20 anos), o quadro piorou. Por conta da abertura do mercado de vários países, do incremento da tecnologia e das comunicações, da melhora das condições de distribuição etc, as grandes corporações acabaram por mudar seus polos de produção para locais que ainda não tinham tradição de produção de qualidade. Essas empresas foram buscar maiores lucros, pagando menores salários e produzindo bens de consumo de pior qualidade. As conhecidas marcas mundiais passaram a atuar cada vez mais no marketing de manutenção da grife e, em alguns casos, tais marcas foram produzidas já no ambiente globalizado iludindo os consumidores que acabam adquirindo a marca em detrimento do próprio produto. Dizendo em outros termos: o fato do produto ou serviço ser oferecido por marca conhecida mundialmente não garante sua qualidade. Pode até ser que outrora o produto feito na matriz em que foi criado fosse bom, mas não se pode mais garantir que continue sendo, na medida em que são produzidos em locais que não têm mão de obra qualificada e ambiente de trabalho solidificado na experiência. Ora, como a regra mercadológica é faturar, ainda que piore a qualidade e a segurança dos produtos e dos serviços, exige-se maior participação do Estado diretamente na economia. É um grave erro o Estado sair do mercado, deixando que este resolva os próprios problemas criados. Muitas vezes, é apenas o Estado que pode resolvê-los. Mas, é evidente que de nada adianta ter uma regulação apenas para inglês ver. Cito, por todos os demais, o exemplo do setor aéreo. Ali há de tudo um pouco de ruim: problemas de infraestrutura e administração nos aeroportos; esquemas escusos inventados e implantados pelas companhias aéreas contra os consumidores apenas com a intenção de aferir maior receita; ocorrência regular de overbooking; casos repetidos de atrasos e cancelamentos inexplicáveis; além dos novos mecanismos ocultos de faturamento expressamente autorizados pela Anac, dentre os quais se destacam a mudança das franquias de pesos nas bagagens, a cobrança pela marcação de assentos etc. Nesse setor a responsabilidade do Estado decorre diretamente de seu direito e de seu dever de fiscalização. As companhias aéreas não podem atuar sem a autorização direta dos órgãos governamentais e não podem também fazer promessas e ofertas ao público consumidor que violem o sistema legal. O mesmo se dá em vários outros setores: no de brinquedos, no de alimentos, no de medicamentos, no financeiro etc. Enfim, a cada dia que passa, apesar dos avanços propostos por algumas empresas, fica mais demonstrado que o mercado de consumo deve sofrer ação direta do Estado, em todas as suas áreas de competência e atuação, para garantir o mínimo de qualidade e segurança dos produtos e serviços oferecidos.
As promessas do candidato Ciro Gomes de que, se eleito, liberaria mais de 60 milhões de brasileiros que estão negativados nos serviços de proteção ao crédito deu o que falar. Mas, seria viável do ponto de vista do sistema de consumo estabelecido? É o que respondo na sequência. Bem, incialmente, já que estou falando de campanha política dos presidenciáveis e de Direito do Consumidor, quero lembrar que, de todos, o mais ligado aos direitos dos consumidores é o candidato Geraldo Alckmin, que é um dos principais responsáveis pela existência da lei. Como se sabe, o Código de Defesa do Consumidor, isto é, a lei 8.078/90, nasceu do projeto de lei de 1988 de autoria do então deputado Federal Geraldo Alckmin. Quanto à proposta do candidato Ciro, penso que ela não se sustenta, pelos seguintes motivos. 1) Boa parte dos inadimplentes que estão negativados podem já, neste instante, hoje mesmo, fechar composições amigáveis com os credores em condições favoráveis iguais ou melhores que as prometidas. Os bancos, por exemplo, em relação aos devedores que não possuem bens nem deram garantias (o que representa uma enorme parcela dos negativados) oferecem enormes descontos e parcelamentos bastante facilitados. Aliás, oferecem o tempo todo, mesmo que o devedor não peça. 2) Veja, caro leitor, o descalabro: no Brasil, praticamente metade dos devedores, são superendividados. São cerca de 30 milhões de pessoas1. Um mero acordo não resolve o problema deles. É necessário muito mais: educação, planejamento financeiro, mudança de estilo de vida e de consumo, etc. Cada caso tem peculiaridades próprias. 3) Agora pergunto: por que, afinal, os devedores não aceitam as propostas vantajosas que já existem? Tudo indica que a maior parte não aceita porque não tem condições de pagar de qualquer modo. Logo, nenhuma oferta resolveria o problema desses devedores. 4) Assim, a proposta do candidato de pagar essas dívidas (com grandes ou pequenos descontos) e fazer refinanciamento, pode, simplesmente, fazer com que o devedor troque de credor: antes era o banco A, agora é o banco público X. Ele continuará sem pagar, pois o problema dele é outro (como mostro na sequência). 5) Além disso, lembro que a lei garante que, sempre que o consumidor inadimplente feche acordo com o credor para quitar sua dívida à vista ou a prazo, ele pode exigir que seu nome seja retirado do serviço de proteção ao crédito. Já é assim. 6) O problema é mais profundo. Diz respeito à falta de educação financeira e -- simultaneamente ou não - da incapacidade de resistir ao assédio das ofertas turbinadas pelo marketing da sociedade de consumo. 7) Naturalmente, estão fora desse quadro todos aqueles que se endividaram por situações que fugiram ao controle, tais como perda de emprego, acidentes com a própria pessoa ou familiares próximos, doenças, do mesmo modo com a própria pessoa ou com seus familiares próximos, golpes sofridos com negócios etc. Há um bom número de pessoas nessa situação. 8) Retornando ao problema. Falta necessariamente capacidade para administrar as finanças controlando os gastos, optando pelas melhores e mais baratas formas de financiamento, deixando de comprar o supérfluo etc. Falta, pois, educação para o consumo. Educação financeira e planejada. Algo que pode e deve começar logo cedo com crianças e adolescentes e ser constante na vida adulta. 9) Existem manuais e aulas sendo oferecidos no mercado por associações de defesa do consumidor e até pelos Procons e bancos. Algo já implantado e que pode ser ampliado. Por exemplo, o Procon do Estado de São Paulo tem um Programa de Apoio ao Superendividado feito em conjunto com o Tribunal de Justiça de São Paulo, com inscrições on-line. 10) Tudo indica que a solução é a educação para o consumo. Nada além disso. Até porque a experiência mostra que a negativação do consumidor não é um mal em si. Muitas vezes, é a negativação do consumidor que evita que ele afunde mais ainda em suas dívidas. Não nos esqueçamos de que a negativação é um bloqueio às compras. E se o consumidor não consegue evitar que suas dívidas aumentem, ela pode ser de grande valia, pois impede que a situação se deteriore ainda mais. Repito: simplesmente retirar o nome dos órgãos de proteção ao consumidor sem que ele possa realmente quitar suas dívidas (à vista ou a prazo) e sem que ele aprenda a se organizar para as compras futuras é trocar seis por meia dúzia. Ele trocará de credor e brevemente voltará ao cadastro de inadimplentes. Simples assim. __________ 1 Segundo pesquisa do IDEC.
Como se sabe, no Direito do Consumidor, é decadencial o prazo para a apresentação de reclamação por vícios, conforme disciplinado no art. 26 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), verbis: "Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços. § 2° Obstam a decadência: I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca; II - (Vetado). III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento. § 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito". Desde a edição do CDC, em meus livros e comentários, defendi que a reclamação que obsta a decadência podia - e pode - ser verbal. Na realidade, à primeira vista, a leitura do inciso I do § 2º do art. 26 traz fácil entendimento, uma vez que, realmente, a interpretação gramatical aponta um dos sentidos do texto: obsta a decadência a reclamação feita pelo consumidor ao fornecedor. Todavia, era de se perguntar: a) A reclamação pode ser verbal? b) Tem que ser feita pessoalmente ou pode ser pelo telefone? c) Tem que ser feita pelo próprio consumidor ou por alguma entidade de defesa do consumidor em seu nome? d) A que pessoa real no fornecedor a reclamação tem que chegar? Minhas respostas sempre foram as seguintes. É evidente que uma norma protecionista que tenha conferido prazos curtos (30 e 90 dias) para o consumidor agir e não decair de seu direito tenha que ser interpretada da maneira mais ampla e abrangente possível em relação à forma de constituição dessa garantia. Além do fato de que a regra básica é de proteção ao consumidor (art. 1º), reconhecido como vulnerável (inciso I do art. 4º), cuja interpretação necessariamente deve buscar igualdade real (art. 5º, caput e inciso I, da CF), para gerar equilíbrio no caso concreto (art. 4º, III) etc. Essas características devem ser levadas em conta para o sentido de tudo o que está estabelecido no § 2º. Assim, a lei exige que o consumidor comprove que fez a reclamação, mas nada impede que esta seja verbal, pessoalmente ou por telefone. A prova dessa reclamação, se necessária, será feita no processo judicial, por todos os meios admitidos. É claro que, para o consumidor se garantir plenamente e não correr o risco de perder seu direito, o ideal será que faça a reclamação por escrito e a entregue ao fornecedor: por intermédio de Cartório de Títulos e Documentos; mediante o serviço de correios com aviso de recebimento; ou protocolando cópia diretamente no estabelecimento do fornecedor. Acontece que não se deve olvidar da realidade do mercado e da dinâmica do atendimento existente. São centenas de empresas que têm colocado à disposição do cliente os Serviços de Atendimento ao Consumidor, conhecidos como SACs1, exatamente para receber, via telefone, as reclamações relativas a vícios dos produtos e dos serviços. Supor que o consumidor, em vez de se servir desse atendimento oferecido, vá burocratizar a relação, preparando um documento escrito e remetendo-o pelo cartório, é ir contra o andamento natural das relações de consumo. Além do que, como o SAC é oferecido pelo fornecedor, como serviço posto à disposição do consumidor, ele integra a oferta e, como ela, vincula o ofertante (arts. 30 e segs. do CDC). Esta sempre foi minha posição, que me pareceu adequada ao modelo legal e ao sistema capitalista vigente. Pois bem. Recentemente, confirmando esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça, em Acórdão da lavra da ministra Nancy Andrighi, reconheceu expressamente o direito do consumidor fazer reclamação verbal e com isso obstaculizar o decurso do prazo decadencial2. Extrai-se do voto: "(...) 4. É causa obstativa da decadência, entretanto, a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca , nos termos do art. 26, § 2º, II, do CDC. 5. Infere-se do supracitado dispositivo legal que a lei não preestabelece uma forma para a realização da reclamação, exigindo apenas comprovação de que o fornecedor tomou ciência inequívoca quanto ao propósito do consumidor de reclamar pelos vícios do produto ou serviço. 6. A despeito de não haver forma prevista em lei para dar-se tal reclamação, é certo que, para que uma maior segurança do consumidor, o ideal é que a reclamação seja feita por escrito e entregue ao fornecedor por intermédio, por exemplo, do serviço de correios com aviso de recebimento, do Cartório de Títulos e Documentos ou, ainda, protocolando uma cópia no próprio estabelecimento do fornecedor. (...) 8. Com efeito, a reclamação obstativa da decadência, prevista no art. 26, § 2º, I, do CDC, pode ser feita documentalmente - por meio físico ou eletrônico - ou mesmo verbalmente - pessoalmente ou por telefone - e, consequentemente, a sua comprovação pode dar-se por todos os meios admitidos em direito". __________ 1 Para se ter uma ideia, no Brasil as médias e grandes empresas organizaram os SACs (Serviços de Atendimento ao Consumidor), por meio dos quais recebem reclamações e pedidos de seus clientes por telefone e e-mail. São 622 SACs distribuídos em 49 áreas, segundo o levantamento feito pela revista Consumidor Moderno, n. 24. 2 Recurso Especial 1.442.597 - DF, Relatora Ministra Nancy Andrighi, v. u., julg. 24-10-2017 (CJe: 30/10/2017). Texto integral.
Um dos mais marcantes aspectos do Código de Defesa do Consumidor (CDC), apesar de regrar uma série de direitos subjetivos individuais dos consumidores, é o de sua preocupação especial com a proteção coletiva, isto é, de toda a coletividade de consumidores. Se observarmos o título III da lei, "Defesa do Consumidor em Juízo", perceberemos como isso é significativo na lei 8.078/90. Muito embora a proteção individual não esteja excluída - o que, aliás, era mesmo de se esperar -, a natureza do regramento é claramente coletiva. Tanto que, como se sabe, o CDC é o responsável, no Sistema Jurídico Nacional, por fixar o sentido de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos. A lei consumerista permite a proteção dos consumidores em larga escala mediante Ações Civis Públicas (ACP). É por elas que o consumidor pode ser protegido por iniciativa de associações e do Ministério Público (MP) em todas as esferas. E existe uma luta intensa no Judiciário contra esse direito fundamental. Várias empresas de grande porte, quando acionadas em Juízo, fazem um esforço enorme para tentar desconstituir a ação coletiva atacando as associações que a propõe. Isso acaba por reforçar a importância das ações propostas pelo MP. E, olhando bem de perto o CDC, o que se percebe é que ele, digamos assim, "quer mais", ele "gostaria" que existissem muitas ações coletivas, pois um de seus alicerces fundamentais na questão processual é exatamente este de controlar como um todo os atos dos fornecedores. Além disso, é importante lembrar que as ações coletivas são, talvez, as únicas capazes de fazer cessar aquilo que eu chamo de "abusos de varejo": uma tática empresarial dolosa de impingir pequenas perdas a centenas ou milhares de consumidores simultaneamente. Veja-se um exemplo disso, numa mala-direta enviada por um grande banco: "Prezado(a) Cliente, Temos uma novidade que vai aumentar ainda mais a sua tranquilidade. O Serviço de Proteção do seu Cartão de Crédito (...) foi ampliado e, a partir do vencimento de sua próxima fatura, você contará com o novo Seguro Cartão (...). Agora, além da proteção contra perda e roubo de seu cartão de crédito, você terá a mesma proteção para saques feitos sob coação em sua conta corrente. E mais: com o Seguro Cartão (...) você contará com um conjunto de coberturas e serviços, como renda por hospitalização e cobertura por Morte Acidental e Invalidez Permanente em consequência de crime, além de serviços de táxi, despachante, transferência inter-hospitalar e transmissão de mensagens. Por apenas R$3,50 mensais, somente R$1,00 a mais do que você paga atualmente, você terá acesso a todos esses benefícios. Esta é uma segurança da qual você não deve abrir mão. Porém, caso você queira manter apenas a cobertura atual, basta que nos próximos 30 dias você entre em contato com o (...) por Telefone. Cordialmente," Perceba o abuso: o banco já lançou o valor de R$1,00 na fatura do consumidor. Se este não tiver interesse no novo produto/serviço enviado/lançado, terá que tomar a iniciativa de telefonar para o banco para cancelar o que nunca pediu. Some-se a isso a eventual dificuldade de ligar para o banco visando o cancelamento. Agora, como se trata de apenas R$1,00 ao mês, muito provavelmente os consumidores nada farão, nem reclamarão. Individualmente não compensa. Mas, o banco terá enorme vantagem com seus milhares de clientes. Somente uma Ação Coletiva teria eficácia na resolução desse tipo de problema. Lembre-se, também, de um outro exemplo vergonhoso: o da maquiagem de pesos e medidas feita diversas vezes pelas grandes indústrias de alimentos, na qual os produtos tiveram seu peso líquido diminuído sem que os consumidores soubessem. Manteve-se o preço e diminuiu-se o peso ou a medida dos produtos em pequenas quantidades e metragens, de modo que não só os prejuízos foram individualmente pequenos, como por isso mesmo, demorou a ser notado! Apesar dos avanços, a área jurídica ainda não respira uma atmosfera cultural de ações coletivas. Uma explicação possível para isso, diz respeito ao ponto da história em que elas foram trazidas para as relações de consumo. O CDC surgiu no cenário jurídico nacional com muitos anos de atraso, gerando um problema típico de memória. Explico: quase todos aqueles que militam na área jurídica formados até 1990 não entendiam as inovações que a lei trouxe, porque foram estudar relações de consumo com base no aprendizado obtido no Direito Privado. E mesmo depois dessa data, ainda demorou muitos anos até que os conceitos introduzidos no sistema jurídico pelo CDC pudessem começar a ser entendidos. O prestígio de nosso Código Civil de 1916 impregnou o modo de percepção dos estudiosos do direito que, com base no seu acervo mnemônico, acabavam interpretando -- e ainda o fazem -- as normas a partir do clássico modelo privatista. O vetusto Código Civil, que entrou em vigor em 1917, recebeu forte influência do direito privado europeu do século anterior, e que já não tinha plena relação com a nossa realidade. Ora, esse direito civil não estava aparelhado para atender as demandas típicas do processo de industrialização capitalista do século XX e seu modo de produção estandartizada, seus esquemas de oferta e marketing, sua capacidade de distribuição etc. E, apesar da edição do novo Código Civil (de 2002), que é muito mais moderno e atualizado que seu antecessor (incorporando, inclusive, vários aspectos que envolvem a sociedade capitalista atual), por influência, em parte, dessa legislação antiga e a interpretação que dela se fez, têm-se até hoje dificuldade para se compreender muitos aspectos da sociedade de massas, dentre os quais o sentido das ações coletivas. É por isso, por exemplo - repetindo o que acima disse -, que em pleno ano de 2018, ainda se tente discutir a legitimidade de associações de consumidores para defender os direitos da coletividade de consumidores.
quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Engana-me que eu gosto. Novamente.

Este é um tema recorrente para mim. Não só nas questões que envolvem consumidor e capitalismo, mas em muitas outras como análises econômicas, pesquisas científicas, discursos políticos, promessas de candidatos etc. O tema da enganação, mas não aquelas muito bem articuladas; falo de mentiras que, apesar de evidentes, nelas muitas pessoas acreditam. Para piorar o quadro, como se sabe, estamos na época da pós-verdade, o que significa que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Isso facilita muito as coisas que envolvem falácias e mentiras, enganações explícitas e outras nem tanto. Como já disse aqui, existem várias versões para o significado da expressão "para inglês ver" e que remontam à sua origem. Uma delas diz que em 1815, os portugueses e os britânicos firmaram um compromisso, no qual Portugal se comprometeu a não mais traficar escravos. Todavia, como Portugal não vinha cumprindo o compromisso, o Parlamento Britânico acabou aprovando uma lei que criminalizava a escravatura e concedia, unilateralmente, à frota real britânica poderes para abordar e inspecionar os navios portugueses. Como estratégia para enganar os ingleses, os portugueses carregavam a embarcação que ia à frente da frota com uma carga inofensiva para ser inspecionada, levando os escravos nos navios depois e que se safavam da inspeção. Outra versão, liga ao mesmo tema, diz que, em 1831, o governo português promulgou uma lei proibindo o tráfico negreiro, mas como o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, começou a circular a expressão de que a lei fora feita apenas "para inglês ver". E ainda outra versão diz que, após a partida da família real português para o Brasil, Portugal passou a ser uma espécie de protetorado da Inglaterra, que assumiu o comando da máquina militar portuguesa na luta conjunta contra a França. Mas os metódicos ingleses que queriam tudo organizado e por escrito tinham problemas com os práticos portugueses. Assim, a cada imposição organizacional inglesa, os portugueses botavam tudo por escrito, para mostrar que estava tudo em ordem. Porém, era só no papel. Servia apenas para agradar os ingleses e dizer que estava tudo arrumado, isto é, era só para os ingleses lerem (ou verem). Na prática, as coisas eram bem diferentes. O mesmo se dava nas visitas dos generais ingleses a certos locais, que eram preparados (maquiados, como hoje diríamos) para dar uma aparência diversa do real. Se os ingleses exigiam a construção de uma estrada, os portugueses deixavam pás, pedras e material para a construção no local da visita. Assim, diziam que já a estavam construindo. Era o que os ingleses viam. Ficou a expressão e o aprendizado. Mas, naquela época, consta que, de fato, os ingleses eram enganados. Li, há muito tempo, um livro de um escritor norte-americano, que mostrava vários casos nos quais o publicitário enganava o cliente. Atenção: o foco era a enganação do cliente pelo próprio publicitário (quem o havia contratado) e não a enganação do público alvo (o consumidor). Muito bem. Dentre os vários cases, ele contava um em que a agência de publicidade, depois de gastar milhares de dólares do cliente, gabava-se do sucesso da empreitada, que era vender mais sorvetes. Detalhe: foi feita uma campanha na praia no verão e deu certo! O autor disse: vender sorvete na praia no verão é fácil. O duro é vender no inverno debaixo da neve. Vejamos exemplos daqui: já há muito tempo, as agências reguladoras não cumprem a missão para a qual foram criadas, que é resolver conflitos entre as empresas públicas e privadas e seus clientes, regulamentando o setor, mas sempre respeitando as leis e direitos estabelecidos, em especial a legislação de proteção ao consumidor. E, como disse acima, o pior é que as decisões e ações das agências não são feitas de modo que pudessem iludir a plateia. Não. Elas são abertamente violadoras de direitos e enganadoras. Infelizmente, elas continuam agindo desse modo e a céu aberto. Lembro dois exemplos escandalosos: o da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, que não respeita o direito dos consumidores (como ficou claro no caso da franquia de coparticipação que pretendia implemantar nos planos de saúde, projeto do qual ela foi obrigada a recuar) e o da ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil, que comumente regula o setor para proteger as companhias aéreas em detrimento dos direitos dos passageiros (como a imprensa denunciou diversas vezes). Repito: a questão nem é de empresas ou entidades que agem de forma enganosa e/ou mentirosa. O que chama a atenção é o fato de que tudo é feito descaradamente. Há algo muito estranho no ar. Parece que existe uma espécie de atordoamento que permite que a frase do título deste artigo se torne, de fato, algo real e aceitável.
quinta-feira, 26 de julho de 2018

O corpo humano como produto de consumo

Por conta do episódio da morte da paciente do médico conhecido como "Dr. Bumbum", volto ao tema do corpo humano como produto de consumo e colocando o problema do limite ético da medicina. O corpo humano, dizem, é um templo recebido de Deus (ou da natureza) e que nós devemos respeitar. Fruto de admiração desde a antiguidade, passou a ser vendido pela sociedade capitalista contemporânea como um produto a ser alcançado na forma do belo. Isto é, a "beleza" virou produto de consumo. Há uma criação mercadológica e também cultural e, como decorrência dessas duas, uma imposição social que cada dia mais afeta as pessoas para que elas "pareçam" bonitas. Não como de fato são: a pressão é para que elas se pareçam com aquilo que o "mercado" diz que é belo. Há um quê de artificial nesse modo de se medir as pessoas. Aliás, não só artificial como - para atualizar a linguagem -- fake. E a utilização de modernas técnicas de manipulação de fotos, tais como o photoshop, permite a criação de imagens que nem sempre correspondem ao real. Muitas vezes, as próprias pessoas reproduzidas têm se surpreendido com sua (falsa) beleza. A verdade é que, de um jeito ou de outro, nesta sociedade em que o ter é mais importante que o ser e onde a aparência é mais importante que a essência, o que se percebe é que algumas pessoas são prisioneiras de seus símbolos: roupas de marca, jóias, relógios preciosos, carros último tipo, o corpo idem. O que o mercado acaba vendendo é uma ilusão de segurança e felicidade nos símbolos oferecidos nas vitrines e em anúncios publicitários, e o que esse tipo de consumidor adquire é uma falsa idéia de si mesmo, muitas vezes gerando frustração e um vazio que o obriga a voltar às compras, às transformações etc num círculo vicioso sem fim. O apelo pela beleza e pela estética é tamanho que um dos aspetos mais evidentes dos avanços da ciência tecnológica é o da venda e reforma de partes do corpo humano. Quase como no filme de Frankenstein, existe a possibilidade de a ficção virar realidade. Evidentemente, há muita coisa boa. O avanço da biologia e da medicina permite os transplantes de órgãos que salvam muitas vidas, que devolvem funções de partes do corpo humano que estavam perdidas ou que dão a visão às pessoas etc. Há também o uso de vários tipos de próteses, as operações corretivas com ajuda de micro instrumentos e uma numerosa quantidade de procedimentos outrora impensáveis. Isso tudo é muito bom. Ao lado disso, porém, o mercado passou a oferecer toda sorte de cirurgias estéticas. Não só é possível deixar de usar óculos, fazendo uma fantástica, muito rápida e indolor operação oftálmica (que, aliás, é executada praticamente em série, uma atrás da outra), como homens e mulheres podem literalmente comprar partes do corpo humano, ou fazer trocas no próprio corpo com enxertos. A busca do corpo perfeito, da forma sempre esguia e jovem, esses produtos tão bem vendidos no mercado de consumo, fez surgir um enorme setor de reposição de "peças" humanas. É aquilo que eu intitulo de "frankensteinização" do mercado. Naturalmente, não há nenhum mal em que as pessoas queiram fazer as correções que entenderem necessárias, desde que o façam conscientemente e com acompanhamento médico adequado. Podem querer fazer lipoaspiração para jogar fora as gorduras indesejáveis e difíceis de perder; ou desejar eliminar as papas dos olhos; as mulheres podem querer aumentar seus seios ou corrigi-los etc. É mero exercício do direito de cada consumidor. O mercado cuida desse assunto com alta prioridade e qualquer um pode ver. Basta ligar a tevê para perceber a quantidade de produtos e serviços ligados à forma e a beleza existentes. O marketing, por sua vez, em todas as suas vertentes, o tempo todo, mostra as pessoas de um modo que vai se impondo no imaginário e desejo dos consumidores. Nos filmes dos cinemas, nos canais de televisão, nas novelas etc são apresentados atrizes e atores magros e "sarados" com formas desenhadas, que depois os consumidores tentam "copiar" adquirindo os produtos e serviços oferecidos. Há também muita coisa esquisita. Já tive oportunidade de comentar aqui alguns casos e, recentemente, li numa matéria que a sueca Pixee Fox, que se auto intitula "desenho animado vivo", já fez mais de 100 procedimentos estéticos para ficar igual a desenhos animados. Ela, inclusive, removeu seis costelas para afinar brutalmente a cintura1. Nesse setor, são também famosos os candidatos e candidatas a ficarem iguais a boneca Barbie e ao boneco Ken. Até se poderia garantir um eventual direito de as pessoas fazerem esse tipo de intervenção, o que, penso, é questionável. Todavia, há algo mais grave, que é o do procedimento médico subjacente nessa questão: as excessivas intervenções são feitas por cirurgiões médicos, acompanhados de equipes com outros médicos anestesistas e seus assistentes. Pergunta-se: não há limite ético para um médico fazer tal operação? Não deveria ele se negar a fazê-la e aconselhar o interessado ou a interessada a procurar ajuda psicológica? A questão, para reflexão, está colocada. Parece-nos que as entidades de medicina responsáveis deveriam debater e cuidar desse tema. Não é só porque a ciência moderna e a incrível tecnologia que a acompanha seja capaz de construir corpos humanos com fantásticas próteses, enxertos e reformas, que se deve fazê-lo. Do ponto de vista ético, a possibilidade real de uma execução não significa necessariamente o direito de exercê-la. Não falo apenas desses exemplos de pessoas que querem ficar iguais a desenhos. Refiro a questão em sentido mais amplo, porque se deixamos a decisão ao mercado, com o alto faturamento que o segmento gera, o limite parece infinito. __________ 1 "Sei que minha mãe está desapontada", declara modelo que realizou mais de 100 cirurgias plásticas.
quinta-feira, 28 de junho de 2018

A culpa é de quem soltou o burro?

Não falarei de consumo (a não ser que se considerem esses fatos algo reproduzido e consumido como informação, o que também é o caso; e/ou, também, se considerem a estupidez como produto de consumo). Albert Einstein, com a propriedade de sempre, disse: "Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana". Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta. Para garantir que o genial pensador tem razão não precisamos ir muito longe. Basta ficarmos com os últimos dias. Nos Estados Unidos da América do Norte, crianças são enjaulados e separadas de pais e mães que pretendem ingressar no território norte- americano e lá permanecer (algumas dessas pessoas entram escondidas e outras pedem asilo). Isso é já terrível; as declarações das autoridades americanas não ajudam em nada. E basta assistir aos vídeos sexistas, machistas e incrivelmente ridículos produzidos por torcedores brasileiros na Rússia, para ver como Einstein tem razão. O que preocupa nesse infinito de idiotice é observar que, no caso do vídeo, são homens jovens. Não se trata da minha geração (acima dos 60 anos), que se pressupõe ser uma geração machista. Não! São homens que deviam estar sintonizados com o direito da modernidade. É de assustar. Pelo que se vê, o infinito vai para todos os lados. E quando estava escrevendo este artigo, vejo que o ministro brasileiro do Turismo Vinicius Lummertz, quis minimizar a repercussão. Disse ele que acredita que os brasileiros andam intolerantes com as falhas humanas e afirmou ainda que o caso não foi tão grave, já que "não morreu ninguém"1. Esse tipo de atitude, ainda mais vindo de uma autoridade, só piora o quadro. Como disse meu amigo Outrem Ego: "Uma saída, no caso brasileiro, seria criar o tipo penal da 'idiotice'. Punir-se-ia quem é abertamente estúpido, isto é, quem é, gosta de ser e ainda por cima adora mostrar pra todo mundo. Cestas básicas e trabalhos comunitários seriam boas penas alternativas para eles. E, talvez, aula de civilidade. E bota hora-aula nisso"! Mas a pergunta que fica, em pleno decorrer do século XXI, é: afinal, de quem é a culpa? Seria de algum espírito maléfico? Ou, como Einstein diz, não há saída? Quem criou uma humanidade assim tão infinitamente limitada? Será culpa de Deus ou do demônio? Penso que de nenhum dos dois, mas assim mesmo conto essa história na sequência para terminar: O burro está solto Um burro estava amarrado a uma árvore. O demônio veio e o soltou. O burro entrou na horta dos camponeses vizinhos e começou a comer tudo. A mulher do dono da horta, quando viu aquilo, pegou o rifle e matou o burro. O dono do burro viu o burro morto, ficou enraivecido e também pegou seu rifle e atirou contra a mulher. Ao voltar para casa, o camponês encontrou a mulher morta e matou o dono do burro. Os filhos do dono do burro, ao ver o pai morto, queimaram a fazenda do camponês. O camponês, em represália, os matou. Daí, um anjo vendo tudo aquilo, foi ao demônio e disse: "Viu o que você fez"? Mas, o demônio respondeu: "Eu não fiz nada. Só soltei o burro". __________  1 Ministro do Turismo minimiza assédio de brasileiros: "Não morreu ninguém".
Em tempos de Copa do mundo, retomo um assunto que envolve todo o globo e que se tornou evidente: o capitalismo global insiste em não mudar seus modos de exploração e, por isso, o planeta continua em grande risco. O modo de exploração não só das reservas naturais existentes, como de muitas das conquistas sociais nos vários países que compõem o mundo, vão se alterando nem sempre na melhor direção. Já passou muito da hora de uma efetiva mudança nos hábitos de consumo, não só aqui como em outros lugares. Para se ter uma ideia do que quero dizer, veja na sequência esses dados (que variam um pouco de acordo com a fonte, mas de todo modo indicam o problema). A produção e o consumo dos Estados Unidos da América (apesar da crise vivida por lá, com alguma recuperação nos últimos meses), com um número de consumidores que corresponde a aproximadamente 5% da população do planeta, contribuem com 36% das emissões de gases de efeito estufa e consomem 25% da energia mundial. No que se refere aos países desenvolvidos, estes congregam um quinto da população mundial. Esta minoria, porém, consome 80% de todos os recursos naturais existentes. Logo, ao contrário do que se propaga, a globalização é uma ilusão, pois não dá para "globalizar" o padrão de consumo dos EUA e dos demais países desenvolvidos. Precisaríamos de vários planetas para tanto. Esses dados mostram que é preciso mudar o foco, posto que, caso se perpetue o modelo de consumo dos dias que correm, não haverá salvação. Ao invés de se produzir mais e se consumir mais, a diminuição do consumo é que talvez pudesse ajudar a sustentar o planeta. Além disso e atrelado a isso, um outro elemento que talvez pudesse colaborar para que o planeta não viesse a ser destruído seria o da educação para o consumo, de tal modo que os consumidores pudessem tomar consciência de seu efetivo papel como protagonistas da sociedade capitalista e também percebessem que o regime consumista no qual estão inseridos não faz bem nem a seu bolso nem a sua saúde nem a seu bem-estar e, claro, nem ao planeta. Para concluir, relembro as máximas do comediante americano George Carlin e também algumas que eu mesmo fiz, que dizem respeito ao modo de vida da sociedade em que vivemos. De George Carlin: Se um homem sorri o tempo todo, ele provavelmente está vendendo algo que não funciona. Nós bebemos demais, gastamos sem critérios. Dirigimos rápido demais, ficamos acordados até muito tarde, acordamos muito cansados, lemos muito pouco, assistimos TV demais e raramente estamos com Deus.Multiplicamos nossos bens, mas reduzimos nossos valores.Aprendemos a sobreviver, mas não a viver; adicionamos anos à nossa vida e não vida aos nossos anos.Fomos e voltamos à Lua, mas temos dificuldade em cruzar a rua e encontrar um novo vizinho. Conquistamos o espaço, mas não o nosso próprio.Fizemos muitas coisas maiores, mas pouquíssimas melhores.Aprendemos a nos apressar e não, a esperar.Construímos mais computadores para armazenar mais informações, produzir mais cópias do que nunca, mas nos comunicamos cada vez menos.Estamos na era do 'fast-food' e da digestão lenta; do homem grande, de caráter pequeno; lucros acentuados e relações vazias.Essa é a era de dois empregos, vários divórcios, casas chiques e lares despedaçados.Essa é a era das viagens rápidas, fraldas e moral descartáveis, das rapidinhas, dos cérebros ocos e das pílulas 'mágicas'. Um momento de muita coisa na vitrine e muito pouco na dispensa. Acrescento: Estamos na era das fusões de empresas e dos desempregados em profusões. Do acúmulo de cartões de crédito fácil e abundante e das dívidas impagáveis. Das dezenas de pares de sapatos nos armários de casa e das crianças andando descalças nas ruas. Nunca tivemos tanto acesso à informação, mas nosso conhecimento é paupérrimo. As pessoas sabem muito sobre automóveis, mas pouco sobre arte. Muitos consumidores têm noção dos preços das cervejas, mas desconhecem o valor da solidariedade. Tira-se foto de tudo mas, realmente, não se aprecia quase nada.
quinta-feira, 14 de junho de 2018

O futebol como produto de consumo

Já que a Copa do Mundo está começando, vou também falar um pouco de futebol. Meu amigo Outrem Ego, sempre nostálgico das coisas boas do planeta, disse que ia aos campos de futebol quando garoto, "num tempo de um certo amor amador". Ele disse que "até alguns jogadores amavam seus clubes" e lembrou do maior de todos, Pelé, que ficou no Santos até o fim: de 1956 até 1974. "Só depois de aposentado", disse, "aos 34 anos, é que decidiu ir ao New York Cosmos, nos Estados Unidos da América do Norte, uma espécie de prêmio de aposentadoria". Será que esse romantismo realmente existiu? Não sei, mas o que se pode verificar é que, hoje, não existe mesmo. O que vale são transações comerciais milionárias, negócios de todo tipo e, inclusive, com enorme poder sobre os governos. O futebol, na atualidade, é um dos maiores negócios do mundo. Adotando os modelos das grandes corporações da sociedade capitalista contemporânea, os cartolas conseguiram criar um modelo de oferta de entretenimento altamente rentável. Seus métodos são os mesmos utilizados no mercado para a produção, distribuição e venda de produtos e serviços. Veja, meu caro leitor, um exemplo: o desenho dos formatos dos vários tipos de competições existentes. A disputa entre os times é mais ou menos sem fim. Todos concorrem a alguma vaga, ou no grupo dos 4 ou dos 8 de cima ou dos 4 ou dos 8 de baixo e, mesmo não vencendo, conseguem se classificar para outras competições ou, pelo menos, não são rebaixados. E, até nas competições de baixo, a disputa segue o mesmo padrão, etc. Tudo a fazer com que os consumidores, isto é, os torcedores, fiquem praticamente o tempo todo do ano ligados nos jogos de seu time, num espetáculo sem fim, cujo objetivo maior é faturar. Um outro exemplo, mais triste: a corrupção! A Fifa e as Confederações locais, ou melhor, os dirigentes dessas entidades, fazem negócios escusos pelo mundo afora. Nem preciso me alongar por aqui, na medida em que vários ex-dirigentes estão processados e/ou presos por conta das falcatruas descobertas. O pior é que as ações criminosas desses dirigentes causam danos às pessoas dos países em que os torneios são realizados, como se vê nos casos de superfaturamentos nas construções dos estádios da Copa do Mundo do Brasil de 2014. Aliás, desde que a Fifa tornou-se de fato uma grande empresa internacional, os abusos não pararam. O problema está, em parte, no modelo. Infelizmente, meu caro leitor, quase tudo que se apropria do modo de produção capitalista contemporâneo e seus modelos de controle, invasão, corrupção, enganação, apodrece. Grande parte dos empresários desses tempos globalizados é gananciosa e só visa ao lucro, custe o que custar. Como já referi várias vezes, sua arma de ataque para a tomada do mercado - esse bem que não lhe pertence - é o marketing, cuja ponta de lança é a publicidade. E, esse império materialista do mercado, com sua grande mão invisível e também visível, absorveu praticamente todo o corpo social, acabando por imiscuir-se em setores antes imunes. Veja o exemplo dos esportes ditos amadores: A Olimpíada é, atualmente, um enorme negócio. E, claro, do futebol nem preciso repetir, porque faz muito tempo que a organização, local ou internacional, tem como meta o faturamento. A propósito, a Fifa, hoje, funciona como uma grande empresa franqueadora e licenciadora de produtos e serviços. Como também já referi e foi dito por Octávio Paz, "o mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores". É fatal: neste capitalismo deve haver resultado financeiro, não importando se o produto é bom, se funciona adequadamente, se as promessas da publicidade serão cumpridas. O que vale é a meta. E, nesse sentido, a Fifa tem um poder só comparado às grandes corporações do planeta. Ela consegue impor a governos e nações seus interesses, seus modelos, seus estádios. Ela consegue determinar quanto de gasto os países farão em prol dela, isto é, em prol de seu faturamento crescente. E isso, mesmo que as populações locais estivessem precisando de outros bens. Claro que, tudo isso é feito com muito marketing e moderna publicidade, mexendo com a paixão dos torcedores, fazendo com que eles acreditem que o resultado de um jogo ou de um campeonato resolverá muitos problemas e que trará orgulho e benefícios à nação.Tudo muito moderno, com tecnologia de ponta e seus atualizados sistemas de vendas. A Copa do Mundo de Futebol, além de um grande espetáculo, é, de fato, um enorme negócio que envolve bilhões de dólares. Está em jogo um grande lucro dos empresários envolvidos no negócio, financiados pelos patrocinadores, afetando os meios de comunicação televisivos, os fabricantes de roupas e calçados, os editores, etc.
quinta-feira, 7 de junho de 2018

A Petrobras e a relação com os consumidores

Já que nos últimos dias falou-se à exaustão da Petrobras e sua política de preços, resolvi meter minha colher no assunto para lembrar alguns pontos que, penso, são relevantes. Inicialmente, lembro que a Petrobras não é uma empresa privada, que está no mercado para agir livremente obtendo o maior lucro possível a qualquer custo e independentemente das consequências de seus atos e estratégias. Não! Ela é uma empresa pública: uma sociedade de economia mista. E como tal, tem outros deveres, outras funções muito diversas, das que têm as empresas privadas. A sociedade de economia mista (SEM), como se sabe, integra a Administração Pública Indireta. Apesar disso, é, por força de lei, pessoa jurídica do Direito Privado sob a forma de Sociedade Anônima, regulada e estabelecida, pois, pela Lei das S.A. A SEM pode tanto explorar atividade econômica tipicamente privada de produção ou comercialização de produtos, como pode prestar serviços públicos. Mas isso não quer dizer que uma SEM -- a Petrobras, por exemplo -- deva atuar no mercado como uma mera empresa privada, visando exclusivamente ao lucro, utilizando de métodos capitalistas tradicionais (e, muitas vezes, altamente reprováveis) apenas e tão somente por estar estabelecida como S.A. Seus limites estão estabelecidos no próprio texto constitucional. Com efeito, o caput do artigo 173 estabelece o imperativo de segurança nacional e de interesse coletivo: "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei". O § 1º do mesmo artigo, por sua vez, permite, como acima referi, a exploração da atividade privada e a da prestação de serviços públicos: "§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:..." Também como afirmei, a SEM tem características de pessoa jurídica de Direito Privado, o que está firmado no inciso II desse mesmo § 1º: "II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;" Todavia, a SEM mantém características próprias das pessoas jurídicas de Direito Público, tais como a fiscalização pelo Estado e pela sociedade, além da exigência de licitação para contratação de obras, serviços, compras e alienações de bens, conforme fixado nos incisos I e III do mesmo §: "I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; " Além disso, ela deve se valer de concursos públicos para contratação de seus empregados (art. 37, incisos I e II da CF). Muito bem. Eu li, mais de uma vez, que o "mercado" (ah, o mercado, sempre ele...), o "mercado" elogiava muito a condução do ex-presidente da Petrobras que estabeleceu aumentos diários do preço dos combustíveis e, também, por meses em percentuais altíssimos. E são elogios que estão por todo lado. Não só o "mercado", mas também muitos "especialistas"gostaram... Deu no que deu! É preciso admitir que algo tão importante como o preço dos combustíveis deve ser estabelecido não apenas com os problemas enfrentados no momento presente, mas também levando-se em consideração as consequências futuras. Não parece um equilíbrio fácil de se obter, mas que deve ser buscado de algum modo. Naturalmente, não estou dizendo que a SEM pode ser usada para fins diversos daqueles para os quais foi criada. Ao contrário, quando isso ocorre, trata-se de abuso de direito. Esse abuso é caracterizado, por exemplo, quando o acionista controlador, valendo-se de sua posição privilegiada, busca atingir objetivo estranho ao do objetivo legal estabelecido na empresa. Nesse caso, há desvio de finalidade. Há também abuso no exercício do poder, quando são ultrapassados os limites impostos por seu fim econômico ou social ou mesmo quando há violação ao princípio da boa-fé objetiva e até aos bons costumes. Mas, veja-se bem. Se, de um lado, há desvio ilegal quando o acionista controlador esquece que a SEM é uma empresa privada com fins econômicos específicos e somente age em função do bem comum ou social, de outro, a busca apenas do lucro como se fosse uma empresa privada comum é também um desvio ilegal. É do equilíbrio entre essas duas situações, legalmente estabelecidas, que se pode identificar uma boa e correta administração de uma SEM. Esse deve ser o objetivo da administração de uma Sociedade de economia mista: estabelecer de forma clara e equilibrada a relação entre o interesse público e o privado. Aliás, se é para agir como se a SEM fosse uma empresa privada comum, ter-se-ia que, antes, alterar o texto constitucional. Quem diz que uma empresa como a Petrobras pode agir sem esse freio legal, desconhece ou desconsidera as normas existentes. Sei, claro, que não é fácil obter esse equilíbrio entre o interesse público e o privado, mas pergunto: não é por isso que os dirigentes dessas empresas ganham vultosos salários? Para fazer jus aos polpudos vencimentos, não devem, eles, cumprir os comandos legais?
quinta-feira, 24 de maio de 2018

Prefeitura viola direitos do consumidor

Meu amigo Outrem Ego foi convidado para uma festa de casamento. Especificamente, num buffet muito antigo na cidade de São Paulo. Eu lembrei do lugar, porque estive lá há mais de 10 anos numa festa. Estava, pois, tudo pronto para o evento. Quero dizer, os noivos haviam pago pelos serviços, contratado os músicos, acertado com o padre que lá faria a cerimônia e distribuído os convites. Agora, veja o que aconteceu: uma semana antes da data da festa, a prefeitura de São Paulo simplesmente interditou o lugar, alegando problemas fiscais, de falta de alvará adequado ou algo semelhante. Como disse meu amigo indignado: "Quando a prefeitura faz algo assim, ela não se preocupa com os danos que podem causar aos consumidores que não tem nenhuma responsabilidade na questão? Ela proíbe o evento sem sequer enviar um aviso às reais vítimas?" Bem, não entrarei no mérito da existência ou não de autorização/alvará para funcionamento do local, até porque não conheço os fatos. Vou trabalhar com um elemento óbvio: se o serviço de buffet funciona lá há muitos anos, não havia nenhuma surpresa para os fiscais da prefeitura em relação ao local. Certamente, foram centenas de eventos os promovidos nesses anos todos. O mínimo que se exigiria, e se exige, para a aplicação de uma penalidade tão forte como essa (de fechamento do local) é que a prefeitura dê prazo suficiente para que os terceiros atingidos (isto é, os consumidores) e que tenham eventos agendados, possam realiza-los e, inclusive, tenham a oportunidade até de encontrar outro local para fazê-lo. O que não tem nenhum cabimento, é a atitude de simplesmente ir ao local e lacrá-lo independentemente dos eventos pré-agendados. A única justificativa para uma atitude como essa seria a da falta de segurança no local o que, no caso, não parece ter sido o fundamento, pois o serviço funciona há muitos anos do mesmo modo (repito, claro, que não conheço os detalhes. Por isso, falo em tese). Se foi, como indicou meu amigo, uma discussão sobre procedimento de renovação de alvará ou algo semelhante como o descumprimento de procedimentos que não implicassem em risco para os usuários, então, não havia fundamento para a ação que violou os usuários-consumidores. No caso, tratava-se de um casamento, programado durante meses, com gastos de tempo e dinheiro que envolvem sacrifício pessoal. E que, como todos sabem - qualquer funcionário público sabe disso --, envolve dezenas de pessoas, familiares e amigos num grande esforço. Afora o evidente fato de que todos as pessoas têm o direito de realizar seu sonho de festejar seu casamento junto de parentes e amigos numa festa especial. É direito básico do exercício da cidadania e frustrá-lo indevidamente gera danos morais incomensuráveis. Aliás, basta perguntar para qualquer funcionário público que esteja prestes a celebrar bodas, se ele gostaria que alguns dias antes o local previsto para o evento fosse lacrado.
Como o vinho está na moda, vou relembrar um caso ocorrido com meu amigo de todas as horas, Outrem Ego. Ele me disse que certa vez, foi convidado para ir com outro amigo dele a um jantar na casa de um empresário, muito bem sucedido. Lá chegando, foram convidados para irem ao andar debaixo, numa espécie de subsolo, para conhecer a adega de vinhos. Suntuosa, muito bem equipada e com um estoque de centenas de garrafas, muitas delas raras adquiridas em leilões internacionais e, claro, caríssimas. Todas devidamente catalogadas pelo próprio proprietário que, com muito orgulho, as mostrou dando ênfase em vários rótulos. Meu amigo se animou. Pensou: "Me dei bem. Hoje tomarei um vinho que jamais poderia tomar". Mas, que nada. Feita a visita à adega, o anfitrião os levou para o andar térreo, onde estavam outras três adegas, dessas vendidas em lojas de eletrodomésticos (embora das maiores e mais sofisticadas) e, abrindo uma das portas, escolheu duas garrafas de vinho e dali dirigiram-se à mesa para o jantar. Eram bons vinhos, mas nada que pudesse fazer frente aos raros e espetaculares da adega e que chegaram a passear nos sonhos de meu amigo. Depois, quando deu, O. Ego perguntou ao outro amigo: "Ele não bebe os vinhos lá debaixo?". "Não", respondeu, "É só para ver. Não para beber". Meu amigo retrucou: "Ele nunca beberá? Nem em ocasiões especiais? Ou com pessoas especiais?". "Acho que não. Até porque, pela idade dele e com tantas garrafas armazenadas, para toma-las todas ele já deveria ter começado a fazê-lo há muito tempo. E essas que ele bebe, ele compra a toda hora". Quando ele contou essa história, me disse: "O sujeito compra um monte de vinhos só para olhar para os rótulos e garrafas? Ele as admira como se fossem troféus! Se ainda guardasse como investimento, se deixasse os vinhos envelhecerem e depois os vendesse... Ou, então, podia guardar as garrafas vazias junto das avaliações feitas após ter bebido o conteúdo!". Pois é. Existe uma tradição na coleção de objetos. Coleciona-se selos, moedas, joias etc. e que remontam a tempos antigos, como comprovam as exposições de museus. Naturalmente, coleciona-se figurinhas até hoje, mas até isso é diferente de nosso romântico tempo de criança. Com a facilidade das compras e a quantidade de ofertas, muitas pessoas passaram a colecionar uma série de objetos. Coleciona-se canetas, bolsas, sapatos, gravatas, ternos, vestidos, automóveis (!), vinhos etc. Claro que isso é problema de cada um. Quem pode, acaba fazendo, se lhe aprouver, mas chama a atenção a manutenção de certas coleções. Ademais, já se disse que a sociedade capitalista é da abundância. Só que isso, não corresponde à realidade. Abundam produtos e serviços, mas faltam condições básicas de sobrevivência para milhões de pessoas. Aliás, toda vez que uma empresa coloca no mercado algo novo, não é a abundância sua característica, mas sua falta para a maior parte dos que não podem comprar. Então, nessa terra de escassez, manter produtos guardados sem finalidade pode ficar sem sentido. Evidentemente, que há muitas coisas que se pode ter em casa para um dia usar de verdade. Se a pessoa mantém guardados livros ou músicas e filmes nos vários formatos existentes, ela certamente poderá utilizá-los. Este é o exemplo típico de coleção que vale a pena ter: livros, filmes, músicas. Mesmo que nós compremos um livro para apenas um dia no futuro lê-lo. Quem sabe, num dia de chuva a pessoa olhe para o livro na estante e, finalmente, resolva lê-lo. Vale mesmo a pena tê-lo ali por perto. Lembro-me de uma entrevista que li com Umberto Eco. Não sei exatamente os números que o entrevistador usou. Mas, ele dizia que uma pesquisa apontava que milhões de leitores do famoso escritor italiano haviam comprado o último livro que ele publicara, mas que apenas metade (não sei o percentual exato, repito) o havia lido e perguntava o que ele achava disso. Sua resposta foi a de que tudo indicava que as pessoas queriam ler o livro, mas estavam esperando a oportunidade para fazê-lo. Tê-lo comprado era algo importante porque quando surgisse a oportunidade, elas iriam lê-lo. Sim, sem dúvida. Mas, valerá e pena guardar gravatas? Um homem precisa mesmo ter em seu armário vinte ou trinta gravatas (Ou mais)? Uma mulher trinta bolsas ou trinta sapatos (ou mais)? Aliás, como o design desses produtos varia com o tempo (quero dizer, com a moda imposta ao comportamento social, que muda com o passar do tempo), muitos deles ficarão sem utilidade e muitos sequer serão usados. Precisamos pensar mais em nossos modos de consumo. E, como disse meu amigo: "Para quem aprecia vinhos, dá uma sensação muito estranha olhar para as garrafas sabendo que ninguém irá provar seus conteúdos"!
Já cuidei do assunto dos transportes, nesta coluna, mais de uma vez e sempre deixando claro que se trata de serviço essencial, no qual o consumidor-usuário está em desvantagem exagerada diante do fornecedor do serviço, seja este público ou privado. E, tendo em vista essa posição de inferioridade, o usuário, que fica à mercê do prestador, pode sofrer toda sorte de abusos. Daí que, nesse setor, a intervenção do Estado diretamente ou por agências faz-se necessária para, regulamentando e controlando os serviços oferecidos, garantir os direitos dos passageiros. Tenho abordado os serviços do transporte aéreo e verificado que a ANAC, agência que deveria cuidar do setor, tem feito muito pouco em prol dos consumidores e, pior, tem baixado medidas em detrimento de seus direitos (como ocorreu, por exemplo, com a edição da resolução 400/2016). Na órbita internacional, seria preciso que órgãos supranacionais regulamentassem os serviços, o que, infelizmente, ocorre de forma muito frágil. Nessa área, o consumidor está ao deus-dará. Bem, se no setor aéreo é ruim, no transporte terrestre não é lá muito diferente. Anoto, antes de prosseguir, uma espécie de espanto de quem pensa no assunto. Tanto num como noutro, há serviços bem produzidos e bem oferecidos. Mas, não adianta: mais cedo ou mais tarde surgem as falhas e os abusos e fica patente o desinteresse pela manutenção da qualidade global do serviço oferecido. Veja, caro leitor, o que aconteceu com meu amigo Outrem Ego. Ele tem parentes em Juiz de Fora e foi para lá algumas vezes, via ônibus leito, saindo de São Paulo. E elogiou o serviço mais de uma vez. Disse: "É pontual, limpo, seguro, bem feito, o atendimento é simpático, os ônibus são bem dirigidos etc.". Ele indicou o serviço. "Vale a pena!", disse. Mas, como costumo dizer, no setor de transportes, bastou elogiar para algo sair errado. Veja o que aconteceu com ele na última viagem que fez para Juiz de Fora. Como das outras vezes, ele ligou para o serviço de atendimento da empresa transportadora. Escolheu horário de ida e volta nos ônibus-leito, deu seu nome e RG, assim como o de sua esposa, e pagou com cartão de crédito. Tudo certinho. Bem... Meu amigo recebeu a confirmação das passagens solicitadas via e-mail. Nesse momento, viu que seu número de RG estava errado, assim como o nome de sua esposa. Ligou, então, de volta para o serviço de atendimento. E aí começaram as decepções... O atendente disse que ele precisaria ir à Estação Rodoviária e pessoalmente solicitar a alteração no balcão da companhia. Mas, ele não tinha tempo. Aliás, não é para economizar tempo que se fazem compras via web? Outrem Ego argumentou: "Eu não tenho culpa alguma no episódio. Dei nossos números de RG e nossos nomes. Foi a atendente de vocês que anotou errado"! "Sei, disse o atendente. Há uma outra alternativa: o senhor pode chegar na Rodoviária 3 horas antes e resolver o problema no guichê". Claro que ele não topou e começou a protestar. Nisso, o atendente, disse: "Calma, meu senhor. Há uma saída... Nós cancelamos sua compra e fazemos uma nova". Meu amigo, aliviado, respondeu: "Até que enfim. Porque você não disse logo". Ah, como a alegria dura pouco para consumidores brasileiros! O atendente, então revelou: "Vou cancelar. O senhor terá apenas que pagar uma multa de 5%"! "What?", diria qualquer um. "Vocês cometem o erro e eu pago a conta?". "Sim, não há outra alternativa...", respondeu o atendente. Meu amigo, sem saída, topou indignado e imaginando que aqueles ônibus leitos não eram tão bons quanto pareciam... Eis o problema: abusos no varejo contra consumidores indefesos. Contra consumidores que não têm outra alternativa a não ser obedecer e/ou pagar uma multa. Normalmente, pequenos valores que não estimulam a reclamação, pois para reclamar se gasta mais tempo e mais dinheiro. No caso, a multa foi de cerca de R$9,00 por passagem. Há solução? A primeira, que infelizmente não se concretiza, é a dos empresários tornarem-se respeitadores dos direitos de seus usuários. Mas, neste capitalismo, onde se sabe que os clientes não têm alternativa, está difícil. A segunda, é a atuação do Estado diretamente e/ou por intermédio de suas agências, visando a garantir os direitos dos usuários. Por aqui, nós sabemos que isso não existe. Resta a terceira alternativa: o Poder Judiciário, mas penso que apenas por intermédio de ações coletivas nas quais se pleiteie a condenação por danos morais coletivos. Isso porque, as ações individuais são inviáveis por seus pequenos valores e resultados pífios que não assustam os infratores. Somente punições em elevados valores nas indenizações em ações coletivas podem fazer o quadro mudar. O dinheiro arrecadado cumpriria um duplo papel: o de obrigar o empresário a se emendar e a arrecadação para o Fundo da Lei de Ação Civil Pública, que poderia ajudar a controlar mais de perto o setor.
quinta-feira, 26 de abril de 2018

No futuro será assim? Ou já é?

Recebi um texto interessante sobre o sistema integrado de informações públicas e privadas da sociedade atual. Fiz algumas modificações e acréscimos e passo adiante com a pergunta: será que já estamos assim? Segue: O telefone toca: -- Alô! De onde falam?-- É do Google's Pizza.-- Ah, desculpe, foi engano. Aí não era a Pizzaria Mais Sabor?-- É aqui mesmo. A Google comprou. E as pizzas estão mais saborosas ainda...-- Então tá! Anote meu pedido, por favor.-- O senhor vai querer a de sempre?-- Sim... Bem, você tem marcado aí o que eu costumo pedir?-- Um momento. A planilha ligada a seu número de telefone aponta que nas últimas 8 chamadas, o senhor pediu uma grande, meia calabresa meia margherita, massa grossa. -- É isso mesmo que eu quero... -- Mas, um momento. Vejo que o senhor também pede por uma outra linha, a de final 8932. E por ali, nos últimos 4 pedidos, o senhor pediu uma grande de muzzarela. -- É da casa da minha mãe, e ela não gosta de calabresa. Mas, eu gosto. Pode mandar meia calabresa, meia margherita. -- Bem, posso sugerir, desta vez, uma mais leve? Tipo, meia ricota, meia rúcula com tomate seco, massa fina?-- Irgh! Cruz credo! Nem parece pizza!-- Não queremos ser estraga prazer... Mas, é que... Seu colesterol está elevado... -- Como você sabe?-- No cruzamento de sua linha com seu CPF e os cadastros de exames aos quais temos acesso, vejo aqui na sua planilha de saúde, que o senhor precisa se cuidar... Aliás, foi o que o cardiologista deve ter dito na consulta que o senhor fez no mês passado... -- Ok, mas eu quero minha pizza! Estou tomando os remédios direitinho.-- Desculpe-me, mas vejo que o senhor não tem tomado remédio regularmente. Pelo nosso banco de dados comerciais, faz 2 meses que o senhor adquiriu uma caixa com 30 comprimidos para colesterol com desconto na Rede Drogasil, onde é cadastrado. A receita médica mandava tomar 1 comprimido por dia. Logo, o senhor não está tomando seus medicamentos... -- Posso ter comprado em outra farmácia! -- Até pode, mas o senhor faz todos seus pagamentos com seu Cartão Mastercard Black, final 4804, e vejo que a última compra de medicamento foi mesmo há 2 meses -- Agora eu te peguei. Posso ter pago com cheque ou dinheiro!-- Cheque... O senhor retirou o último talão há mais de 1 ano. Foi há 14 meses e só foi passado um único cheque no valor de R$80,00 para pagar um almoço no Rascál. Nossos cadastros não falham... Provavelmente, naquele dia o senhor esqueceu o cartão de crédito em casa. E quanto ao dinheiro, só se pediu emprestado para alguém, pois o senhor não está acostumado a fazer retiradas no banco... -- Ah, agora você falhou. Eu retiro todo mês R$1.200,00! -- Sim, mas é para pagar sua ajudante doméstica. E, sem querer ser chato... o senhor poderia aumentá-la um pouco. Faz tanto tempo que ela trabalha na sua casa... -- Como você sabe? -- Ora, os dados do e-social demonstram isso. -- Eu vou desligar. Não quero mais pizza! -- Calma, senhor. Nós utilizamos essas informações apenas com a intenção de ajudá-lo.-- Bem, mas não tá ajudando... -- Desculpe. Acho que deveria ter ido mais devagar com o senhor. Veja como nós nos preocupamos. Na última vez que o senhor passou no pedágio, a câmara lá instalada deixou transparecer uma certa saliência em sua barriga... -- Como? -- E agora... Espere um pouco... Sim, pela câmara da padaria que o senhor frequenta, posso confirmar que sua barriga cresceu muito no último ano. Ah... Chegou a resposta: o senhor parou de ir à academia, porque agora tem que ir mais cedo ao seu trabalho... -- Chega. -- Espere mais um pouco. Eu tenho uma oferta pro senhor. A Google's Academia tem várias instalações e uma é bem pertinho de sua casa. O senhor pode começar a fazer esteira amanhã mesmo à noite. Nós oferecemos um bom desconto na primeira mensalidade. O senhor pode voltar a fazer esteira 3 vezes por semana, como fazia antes... -- Chega! Estou cheio de vocês. De Google, de Facebook, de twitter, de WhatsApp, dessa falta de privacidade. Vou fugir para uma ilha deserta no meio do pacífico, onde não haja nada disso! - Entendo senhor... Mas tem uma última coisa.- O quê???- Seu passaporte está vencido!
quinta-feira, 19 de abril de 2018

A proteção contratual no CDC

Atendendo a pedidos e também porque, a cada dia, nós da área jurídica, ficamos mais inseguros na medida em que parece mesmo que se pode falar qualquer coisa a respeito de qualquer coisa, tratarei de alguns dos princípios fundamentais para se interpretar e entender os contratos no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Por mais que a linguagem tenha, de fato, uma certa elasticidade, é muito importante que nós possamos enxergar um horizonte seguro e possível de interpretação. E, no caso específico dos contratos no CDC, há regras e princípios que precisam ser respeitados. Começo, então, cuidando do dever de informar e do princípio da transparência. Com efeito, o dever de informar é princípio e norma no CDC, por disposição do art. 6º, III, e art. 311. De fato, na sistemática da legislação consumerista o fornecedor está obrigado a prestar todas as informações acerca do produto e do serviço, suas características, qualidades, riscos, preço etc., de maneira clara e precisa, não se admitindo falhas ou omissões. Trata-se de um dever exigido mesmo antes de se iniciar qualquer relação. Impõe-se ao fornecedor o dever de informar, na fase pré-contratual, isto é, na oferta, na apresentação e na publicidade. E essa informação obrigatória vai integrar o contrato2. Concomitantemente ao dever de informar, aparece no CDC o princípio da transparência, traduzido na obrigação de o fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de conhecer o conteúdo do contrato previamente, ou seja, antes de assumir qualquer obrigação. Tal princípio está estabelecido no caput do art. 4º e surge como norma no art. 46, de modo que, em sendo descumprido tal dever, o consumidor não estará obrigado a cumprir o contrato3. O CDC reconhece um fato: o de que o consumidor é vulnerável na medida em que não só não tem acesso ao sistema produtivo como não tem condições de conhecer seu funcionamento (não tem informações técnicas), nem de ter informações sobre o resultado, que são os produtos e serviços oferecidos4. Esse reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida na Constituição Federal. Significa que o consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico. O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção não se está referindo apenas aos aspectos técnicos e administrativos para a fabricação de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas também ao elemento fundamental da decisão: é o fornecedor que escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido. O segundo aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, via de regra, o fornecedor tem em relação ao consumidor. É fato que haverá consumidores individuais com boa capacidade econômica e às vezes até superior à de pequenos fornecedores. Mas essa é a exceção da regra geral. Claro que essa vulnerabilidade se reflete em hipossuficiência no sentido original do termo - incapacidade ou fraqueza econômica. Mas o relevante na vulnerabilidade é exatamente essa ausência de informações a respeito dos produtos e serviços que se adquire. Por isso que, na interpretação dos contratos, tem-se de levar em conta a vulnerabilidade e a hipossuficiência do consumidor. Com base na proibição de qualquer forma de abuso do direito, expressamente estabelecida nos arts. 39 a 41 do CDC, que regula as práticas abusivas, firmou-se o entendimento de nenhuma forma de abuso está permitida. A questão está fortemente enraizada e surge de vez e definitivamente como princípio basilar nas relações de consumo, obrigando o intérprete a considerá-la sempre como fonte para entendimento do contrato. Na realidade, é preciso lembrar que o princípio do protecionismo é o que inaugura o sistema da lei consumerista5. Decorre diretamente do texto constitucional, que estabelece a defesa do consumidor como um dos princípios gerais da atividade econômica (inciso V do art. 170) e impõe ao Estado o dever de promover a defesa do consumidor (inciso XXXII do art. 5º). Por isso, no que tange às questões contratuais, não se pode olvidar o protecionismo que, superadas as demais alternativas para interpretação, tem de ser levado em conta para o deslinde do caso concreto. Assim, vige o princípio da interpretatio contra stipulatorem. Com base nele, nos contratos de adesão, havendo cláusulas ambíguas, vagas ou contraditórias, a interpretação faz-se contra o estipulante. Contudo, na lei consumerista, esse princípio veio estampado de maneira mais ampla no art. 47, que estabeleceu que "as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor". Isto é, toda e qualquer cláusula, ambígua ou não, tem que ser interpretada de modo mais favorável ao consumidor. Por fim, lembro que o princípio da boa-fé objetiva acabou formando um "chapéu" em torno dos direitos subjetivos das partes, de modo que nenhuma forma de abuso do exercício do direito pode ser tolerada. Isto é, a boa-fé limita o exercício do direito subjetivo para evitar qualquer tipo de abuso, o mínimo que seja. E, neste caso, o princípio aplica-se tanto ao fornecedor como ao consumidor. Como subproduto do princípio da boa-fé está o dever de cooperação e o dever de cuidado, que examino na sequência. O verbo "cooperar" tem o sentido de operar simultaneamente, trabalhar em comum, colaborar. Em termos contratuais, então, o dever de cooperação nada mais é do que sempre colaborar para que o contrato atinja o fim para o qual foi firmado. Será contrária ao dever de cooperação a ação do contraente que inviabilize a atuação da outra parte quando esta tentar cumprir sua obrigação. Por exemplo, a ação do fornecedor impondo certas dificuldades para que o consumidor efetue o pagamento: limitação de horas, especificação de locais especiais etc. O dever de cuidado, por sua vez, diz respeito ao resguardo da segurança dos contraentes. Em poucas palavras, pode ser traduzido no dever de um contraente para com o patrimônio e a integridade física ou moral do outro contraente. É a obrigação de segurança que a parte deverá ter para não causar danos morais ou materiais à outra. __________ 1 "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem". "Art. 31. A oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores". 2 Ver o teor do art. 30, que dispõe: "Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apre­sentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado". 3 Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios (...) Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. 4 Art. 4º (...) I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências; 5 "Art. 1º O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias".
quinta-feira, 5 de abril de 2018

A Justiça no caso concreto

Hoje deixo de lado o Direito do Consumidor para, num curto texto, singelo, mas que entendo ser muito simbólico, cuidar do sentido de Justiça. Nos últimos dias (aliás, nos últimos meses) a Justiça tem sido o centro das atenções no Brasil. E escrevo este texto no dia de um julgamento muito importante no STF (cujo resultado não conheço, pois escrevo agora, nesta quarta-feira, dia 4 de abril, pela manhã). Há muito o que se falar sobre a Justiça. Mas vou apenas ilustrar o assunto, citando uma decisão judicial que está no meu Manual de Filosofia do Direito1 e que, penso, serve de inspiração àqueles que resolverem refletir sobre o tema. Trata-se de uma sentença proferida numa vara criminal de Porto Alegre que, como digo aos estudantes de Direito no livro, serve de alento de que a Justiça pode ser feita. Eis o texto: "M.A.D.A., com 29 anos, brasileiro, solteiro, operário, foi indiciado pelo inquérito policial pela contravenção de vadiagem, prevista no artigo 59 da Lei das Contravenções Penais. Requer o Ministério Público a expedição de Portaria Contravencional. O que é vadiagem? A resposta é dada pelo artigo supramencionado: 'entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho...'. Trata-se de uma norma legal draconiana, injusta e parcial. Destina-se apenas ao pobre, ao miserável, ao farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau de arara do Nordeste, o boia-fria do Sul. O filho do pobre, que é pobre, sujeito está à penalização. O filho do rico, que rico é, não precisa trabalhar, porque tem renda paterna para lhe assegurar os meios de subsistência. Depois se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de Direito. Realidade dura e crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego. Constatação cruel para quem, diplomado, incursiona pelos caminhos da Justiça e sente que os pratos da balança não têm o mesmo peso. M.A. mora na Ilha das Flores (?) no estuário do Guaíba. Carrega sacos. Trabalha 'em nome' de um irmão. Seu mal foi estar em um bar na Voluntários da Pátria, às 22 horas. Mas se haveria de querer que estivesse numa uisqueria ou choperia do centro, ou num restaurante de Petrópolis, ou ainda numa boate de Ipanema? Na escala de valores utilizada para valorar as pessoas, quem toma um trago de cana, num bolicho da Volunta, às 22 horas, e não tem documento, nem um cartão de crédito, é vadio. Quem se encharca de uísque escocês numa boate da Zona Sul e ao sair, na madrugada, dirige (?) um belo carro, com a carteira recheada de 'cheques especiais', é um burguês. Este, se é pego ao cometer uma infração de trânsito, constatada a embriaguez, paga a fiança e se livra solto. Aquele, se não tem emprego, é preso por vadiagem. Não tem fiança (e mesmo que houvesse, não teria dinheiro para pagá-la) e fica preso. De outro lado, na luta para encontrar um lugar ao sol, ficará sempre de fora o mais fraco. É sabido que existe desemprego flagrante. O zé-ninguém (já está dito) não tem amigos influentes, não há apresentação, não há padrinho, não tem referências, não tem nome, nem tradição. É sempre preterido. É o Nico Bondade, já imortalizado no humorismo (mais tragédia que humor) do Chico Anísio. As mãos que produzem força, que carregam sacos, que produzem argamassa, que se agarram na picareta, nos andaimes, que trazem calos, unhas arrancadas, não podem se dar bem com a caneta (veja-se a assinatura do indiciado a fls. 5v.) nem com a vida. E hoje, para qualquer emprego, exige-se no mínimo o primeiro grau. Aliás, grau acena para graúdo. E deles é o reino da terra. Marco Antonio, apesar da imponência do nome, é miúdo. E sempre será. Sua esperança? Talvez o Reino do Céu. A lei é injusta. Claro que é. Mas a Justiça não é cega? Sim, mas o Juiz não é. Por isso: Determino o arquivamento do processo deste inquérito. Porto Alegre, 27 de setembro de 1999. Moacir Danilo Rodrigues. Juiz de Direito - 5ª Vara Criminal". __________ 1 São Paulo; Saraiva, 7ª. Edição 2018 (Cap. VIII, item 10.2)
A escola pública no Brasil está falida. É o que dizem os especialistas e com fartas provas estatísticas de testes e tudo mais. E a escola privada? Muitas delas, caríssimas, em largos e imponentes prédios e com professores bem pagos. Deveria ensinar não é mesmo? Será que consegue? Ou se trata de prestação de serviços repleta de vícios, para ficar apenas numa componente prevista na legislação protecionista do consumidor. Muito bem. Mais uma vez, volto ao tema do péssimo e caro ensino das escolas privadas, porque entra ano sai ano e fica tudo igual. Falarei sobre esses vícios não muito aparentes, nem tão ocultos, que existem na prestação do serviço escolar. Focarei meu artigo no ensino básico (infantil, fundamental e médio). Como se sabe, o ensino escolar é típico produto de consumo, isto é, trata-se de prestação de serviços regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Levanto, pois, algumas questões para nossa reflexão, ligadas às escolas particulares e a respeito dos eventuais vícios ou defeitos existentes, mas nem sempre percebidos. Se perguntarmos para os pais por que eles colocam seus filhos em escolas particulares (a maior parte delas bastante caras) a resposta natural estará ligada à qualidade do ensino. "A escola pública não é boa", dirão. Muitos pais, inclusive, sacrificam-se para conseguir pagar as mensalidades. Na verdade, com o incremento cada vez maior do capitalismo de produtos e serviços essenciais que foram saindo das mãos do Estado e passando para a iniciativa privada, e com a queda da qualidade de ensino nas escolas públicas (agora refiro especialmente o Brasil, embora o mesmo fenômeno possa ser verificado em outros lugares), o que assistimos nos últimos trinta, quarenta anos foi a transferência de vagas da escola pública para a privada e o incremento das escolas privadas, muitas delas, atualmente, empresas enormes e altamente lucrativas. Várias adotaram o regime integral, oferecendo refeições e cursos extras como atividades para preencherem o espaço de tempo dos alunos, o que se coaduna com a falta de tempo dos pais, que trabalham o dia inteiro, de modo que se acabou fazendo um encaixe de interesses: os pais trabalham enquanto os filhos estudam, fazem esportes ou atividades artísticas, lúdicas etc., liberando os pais dessas preocupações. Coloco, então, uma questão básica em relação à lei: o que a escola particular oferece? Qual é sua oferta? Respondo: a escola presta serviços essenciais de educação. Os pais, quando colocam seu filho na escola particular, esperam que seu filho aprenda. Não é isso? Espera-se que sim. É obrigação da escola fazer com que o estudante aprenda. É para isso que ela existe e, como recebem boas remunerações para tanto, essa é sua contraprestação jurídica principal. Mais eis que, com o passar do tempo, algumas situações esquisitas em termos de cumprimento da oferta têm ocorrido. Por exemplo, em muitas escolas quando o aluno é matriculado ou no início do ano letivo, a Secretaria fornece o nome e telefone de professores que dão aulas particulares. Isso! A escola, desde logo, está dizendo: "Eu ensino, mas não tanto assim. Por isso, segue uma relação para que seu filho receba um reforço no aprendizado". Na realidade, o mercado de aulas particulares cresceu tanto nos últimos anos que, atualmente, há dezenas de professores que vivem exclusivamente dessa atividade e, muitas vezes, os pais têm dificuldade de encontrar horários para encaixar seus filhos. E mais: são várias as franquias para aulas particulares, eufemisticamente intituladas de "aulas de reforço". Há redes instituídas em todo país com dezenas de unidades em operação, como já mostrei aqui antes1. Os pais pagam, então, uma mensalidade escolar caríssima e outra (às vezes, do mesmo valor) para que seu filho tenha de estudar em casa ou na sede de franquias com professores particulares. Pergunta para reflexão: não deveria ser suficiente estar na escola? Esta cobra tão caro para o quê mesmo? Não é caso de vício do serviço? Ou até defeito, tendo em vista a extensão dos danos? Para que serve passar o dia inteiro na escola? Para que as mensalidades sejam mais caras, certamente. Seria mais um caso de vício na prestação do serviço? Façamos um resumo da prestação dos serviços. O fornecedor, uma escola, ou seja, uma empresa, oferece ensino para... ensinar aos alunos certos conteúdos ditados pelos órgãos governamentais e/ou decididos por ela e com métodos também criados e decididos por ela (escola). Para tanto, ela cobra certo valor mensal (a maioria das mensalidades tem preços bastante elevados). Estabelecida a relação jurídica de consumo, pelo contrato escolar, cabe aos pais pagar as mensalidades e ao prestador do serviço cumprir sua parte: ensinar os filhos matriculados! Pausa: antes que alguém, apressadamente, use um sofisma qualquer contra o que eu estou trazendo para reflexão, quero consignar que, evidentemente, não estou me referindo a alunos que tenham algum tipo de dificuldade própria de aprendizado ou que, por motivos especiais, não consiga aprender. Faço uma abordagem relativamente ao número enorme dos alunos que não apresentam qualquer tipo de problema para estudar e incorporar conhecimento. Algumas vezes, a situação beira o absurdo quando, por exemplo, grande parte dos alunos de uma determinada sala não consegue aprender. Para mim, como professor, quando, numa sala, 50% ou mais dos estudantes fica de recuperação, a falha é claramente do professor e da escola e não dos alunos! É esse o ponto: a escola não cumprir com a oferta; com seu dever de ensinar. Não esqueçamos disso: escola é feita para ensinar! Para terminar, conto aqui uma história que vivi como professor na Faculdade de Direito da PUC/SP: certo dia, num fim de ano, um professor me diz: "Beleza, deixei a sala inteira de exame"! Espantado com a animação do "professor" (se é que se pode chamar alguém que reprova a sala toda de professor) eu rebati de pronto: "Poxa! Eu nem pensei em algo assim: estava bastante feliz por ter aprovado todos os alunos da minha turma". Realço: se grande parte de uma turma vai mal numa prova, certamente a falha é do ensino e do professor e, muitas vezes, da forma de avaliação. Não é função de nenhum tipo de ensino a reprovação. O objetivo é outro: é ensinar. Isso não é o óbvio ululante? Para muitas escolas e professores parece que não! Como desvendar o problema? Será falta de tempo? Será que os pais não têm tido oportunidade de investigar se seus filhos estão recebendo por aquilo que eles estão pagando? Ou será falta de conhecimento dos direitos inerentes à relação jurídica? Repito: é obrigação primária e jurídica da escola ensinar e ponto final! E ensinar o que é importante. Lembro mais uma vez, o que contou meu amigo Outrem Ego. Quando levava seu filho para a escola, este apontou para algumas nuvens no céu da manhã e disse: "Olha lá, pai! São cumulonimbus". Meu amigo viu as nuvens e ficou com os olhos vagando por elas. Daí, pensou: "Para que serve a uma criança de onze anos saber o nome das nuvens? Se, um dia, ele for ser meteorologista, aprenderá isso em cinco minutos". E torceu para que as nuvens não fossem de chuva e causassem estragos na cidade! __________ 1 Rede de reforço escolar ganha prêmio de microfranquia.
quinta-feira, 15 de março de 2018

A pessoa jurídica como consumidora - Parte 2

Continuo desenvolvendo o artigo que iniciei na semana passada sobre a questão da pessoa jurídica como consumidora. Como coloquei, o CDC regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o Código, independentemente do produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros. Conforme também demonstrei, a situação é clara: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo, não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a prestação de seu serviço. Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis. Por causa disso, aliás, concluí o artigo na semana passada dizendo que o despachante que adquiriu o laptop para seu uso profissional está protegido pelo CDC. Aliás, complemento os exemplos para lembrar que estão na mesma condição o dinheiro e o crédito obtido no sistema financeiro. Assim, quando uma pessoa jurídica faz um empréstimo num banco a relação é típica de consumo, pois ainda que ela utilize o dinheiro como insumo, como este é tanto produto de consumo como de produção, a situação é igual à do exemplo do laptop. Muito bem. Há ainda uma outra norma no CDC que justifica minha teoria para explicar a definição de consumidor na relação de consumo. É a do inciso I do art. 51, especificamente a segunda parte da proposição. Mas, antes de analisá-la, desde já acrescento uma constatação: o caput do art. 2º coloca a pessoa jurídica como consumidora. Ora, afinal o que é que uma pessoa jurídica pode consumir? Pessoa jurídica não come, não bebe, não dorme, não viaja, não lê, não vai ao cinema, não assiste à aula, não vai a shows, não assiste a filmes, não vê publicidade etc. Logo, para ser consumidora, ela somente poderia consumir produtos e serviços que fossem tecnicamente possíveis e lhe servissem como bens de produção e que fossem, simultaneamente, bens de consumo. Com a análise do inciso I do art. 51, o ciclo de minha explanação se encerra. Vejamos. A disposição normativa da segunda parte do inciso I do art. 51 foi feita exatamente pensando no consumidor pessoa jurídica, que adquire produto ou serviço de consumo para fins de produção. Trata-se de previsão legal a permitir que o fornecedor em circunstâncias especiais justificáveis possa estabelecer cláusula contratual limitando seu dever de indenizar. Leia-se: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis".(grifei) Pergunto: por que é que a lei resolveu excetuar do amplo e expresso sistema de responsabilidade civil objetiva, no qual o fornecedor não pode, de maneira alguma, desonerar-se de seu dever de indenizar, exatamente um caso especial de aquisição de produto ou serviço quando o consumidor é pessoa jurídica? Justamente porque sabe que é possível adquirir produto e serviço de consumo para fins de produção. Explico. A regra geral é a do dever de o fornecedor indenizar por vícios e defeitos (arts. 12 a 14 e 18 a 20). Não pode ele, mediante cláusula contratual exonerar-se dessa obrigação, mesmo que seja em parte, por expressa disposição do caput do art. 25, que dispõe, verbis: "Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas Seções anteriores". Logo, essa é a regra geral para todas as relações jurídicas de consumo regulares. Mas a lei resolveu abrir uma exceção (a do citado inciso I do art. 51). E não foi para os casos comuns, mas apenas os que envolvam o consumidor pessoa jurídica em "situações justificáveis". Quais seriam elas? A exceção legal de permissão para fixação de cláusula contratual limitadora do dever de indenizar pressupõe duas hipóteses para o atingimento de sua finalidade: a) que o tipo de operação de venda e compra de produto ou serviço seja especial, fora do padrão regular de consumo; b) que a qualidade de consumidor-pessoa jurídica, por sua vez, também justifique uma negociação prévia de cláusula contratual limitadora. Para o fornecedor exercer a prerrogativa de negociar a inserção de cláusula contratual limitadora de seu dever de indenizar é necessário que estejam presentes as duas situações previstas nas letras "a" e "b", simultaneamente. Examine-se a letra "a": Não basta que a compra seja fora do padrão para que ele possa incluir a cláusula. Por exemplo, se um consumidor-pessoa física quiser adquirir vinte microcomputadores para distribuir a seus amigos e parentes1, isso não é suficiente para a negociação e inclusão da cláusula. A compra está fora do padrão, mas não está presente o outro requisito. E, quanto à letra "b", o mesmo ocorre com duas alternativas: b.1) Não é suficiente que o consumidor seja pessoa jurídica fazendo uma aquisição regular. Por exemplo, a pessoa jurídica que adquire um microcomputador numa loja de departamentos ou diretamente do fabricante. Essa é uma aquisição comum, que recebe as garantias gerais do sistema de responsabilidade civil instituído no CDC. Não pode o fornecedor limitar sua responsabilidade. b.2) Não é suficiente que a compra seja fora do padrão. É necessário que a pessoa jurídica consumidora receba aconselhamento jurídico para que a cláusula limitadora possa ser negociada e inserida no contrato. Sem isso, isto é, sem que se estabeleça um equilíbrio prévio para a negociação da cláusula, esta não poderá ser inserida no contrato. Vê-se, pois, que o CDC abraça a tese no sentido de que há bens de consumo (produtos e serviços) que são adquiridos com o fim de produção, sem que a relação jurídica estabelecida deixe de ser de consumo, tanto que recebe ela o tratamento diferencial da norma do inciso I do art. 51 comentado. __________1 Ou qualquer outro motivo, que é de sua exclusiva esfera privada.
quinta-feira, 8 de março de 2018

A pessoa jurídica como consumidora - Parte 1

Tenho visto algumas decisões judiciais e também comentários doutrinários cuidando da questão da pessoa jurídica como consumidora e as divergentes posições têm sérias consequências jurídicas, pois envolvem a aplicação ou não das normas protecionistas do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Visando dar minha contribuição sobre o assunto, escrevo este artigo, dividindo-o em partes para facilitar a leitura neste nosso querido espaço. Farei um resumo do que escrevi em meus livros1. Começo abordando o previsto no caput do art. 2º do CDC: "Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". A mera interpretação gramatical dos termos da cabeça do artigo não é capaz de resolver os problemas que surgem. Todavia, devemos lançar mão dela, porquanto permitirá a explicitação da maior parte das questões. Diga-se, de início, o que decorre da obviedade da leitura. Consumidor é a pessoa física, a pessoa natural e também a pessoa jurídica. Quanto a esta última, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação, fundação etc. A lei emprega o verbo "adquirir", que tem de ser interpretado em seu sentido mais lato, de obter, seja a título oneroso ou gratuito. E não se trata apenas de adquirir, mas também de utilizar o produto ou o serviço, ainda quando quem o utiliza não o tenha adquirido. Isto é, a norma define como consumidor tanto quem efetivamente adquire o produto ou o serviço (ou seja, paga o preço) como aquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o consome. Assim, por exemplo, se uma pessoa compra cerveja para oferecer aos amigos numa festa, todos aqueles que a tomarem serão considerados consumidores. A norma fala também em "destinatário final". O uso desse termo facilitará, de um lado, a identificação da figura do consumidor, mas, por outro, trará um problema que tentarei resolver. Evidentemente, se alguém adquire produto não como destinatário final, mas como intermediário do ciclo de produção, não será considerado consumidor. Assim, por exemplo, se uma pessoa - física ou jurídica - adquire roupas para revendê-las, a relação jurídica dessa transação não estará sob a égide da lei 8.078/90. O problema do uso do termo "destinatário final" está relacionado a um caso específico: o daquela pessoa que adquire produto ou serviço como destinatária final, mas que usará tal bem como típico de produção. Por exemplo, o usineiro que compra uma usina para a produção de álcool. Não resta dúvida de que ele será destinatário final do produto (a usina); contudo, pode ser considerado consumidor? E um despachante que adquire num grande supermercado um laptop para desenvolver suas atividades, é considerado consumidor? Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinarei, detalhadamente, cada situação. Não se duvida do fato de que, quando uma pessoa adquire um automóvel numa concessionária, estabelece-se uma típica relação regulada pelo CDC. De um lado, o consumidor; de outro, o fornecedor. Em contrapartida, é evidente que não há relação protegida pelo Código quando a concessionária adquire o automóvel da montadora como intermediária para posterior venda ao consumidor. Nas duas hipóteses acima as situações jurídicas são simples e fáceis de ser entendidas. Numa ponta da relação está o consumidor (relação de consumo). Na outra estão fornecedores (relação de intermediação/distribuição/ comercialização/produção). O CDC regula o primeiro caso; o direito comum, o outro. Mas o que acontece se a concessionária se utiliza do veículo como "destinatária final", por exemplo, entregando-o para seu diretor usar? A resposta a essa questão é fácil: para aquele veículo a concessionária não aparece como fornecedora, mas como consumidora, e a relação está tipicamente protegida pela Lei protecionista (o que será confirmado pela exposição que se segue). Todavia, existem outras situações mais complexas. Quando, por exemplo, a montadora adquire peças para montar o veí­culo, trata-se de situação na qual as regras aplicadas são as do direito comum. São típicas relações entre fornecedores partícipes do ciclo de produção, desde a obtenção dos insumos até a comercialização do produto final no mercado para o consumidor: A visualização da hipótese é simples. Estamos diante de situações cí­clicas da produção, em que no polo final do ciclo aparece alguém adquirindo o produto como "destinatário final". Porém, vou recolocar o exemplo da usina: um fazendeiro resolve transformar-se em usineiro e, para tanto, encomenda uma usina para produção de álcool. Seria esse usineiro "destinatário final" da usina? Denotaria essa relação uma típica situação protegida pelo CDC? A situação parece diversa da anterior, porque, diferentemente da montadora, que envia as peças com o automóvel para o consumidor, na produção do álcool, este vai para o consumidor, mas a usina fica. Contudo, há coisas na montadora que também não vão para o consumidor. Por exemplo, o prédio utilizado para a montagem do veículo. Nesse caso, a montadora é "destinatária final" do prédio e, portanto, consumidora? Mas não são simplesmente a usina e o prédio "bens de produção", e, assim, não se pode querer aplicar ali a lei consumerista? O problema está em que o CDC não fala em bens de produção ou de consumo. Limitou-se a dizer "consumidor" como "destinatário final" e a definir o fornecedor (no seu art. 3º). Há meios, porém, de solucionar a pendência. Antes de tentar responder, analisemos um outro exemplo, o de uma pessoa que pretende constituir-se como despachante. Para isso vai a uma loja e compra um laptop, que utilizará para o exercício de seu trabalho. É o despachante "destinatário final" do aparelho e, portanto, consumidor? Passo, agora, às respostas, segundo meu ponto de vista. Poderíamos responder, no caso do álcool, que o usineiro é "destinatário final" da usina e, assim, aquela relação estaria protegida pelo Código. Da mesma maneira, a montadora seria "consumidora" do prédio utilizado para montagem de veículos. E, assim, resolvido estaria o caso do despachante, que é "destinatário final" do laptop. Contudo, todos esses bens são típicos "bens de produção"? O laptop pode ser e pode não ser. Os outros dois são. Seria adequado dizer, então, que o Código regula aquelas três situações? Sem dúvida que não. Em casos nos quais se negociam e adquirem bens tí­picos de produção, o CDC não pode ser aplicado por dois motivos óbvios: primeiro, porque não está dentro de seus princípios ou finalidades; segundo, porque, dado o alto grau de protecionismo e restrições para contratar e garantir, o CDC seria um entrave nas relações comerciais desse tipo, e que muitas vezes são de grande porte. A resposta para o caso da usina e da montadora é, portanto, a aplicação do direito comum: Acontece que essa resposta não resolve o problema do despachante. Quer dizer, então, que o laptop é um bem de produção, e quando ele tiver vício o despachante não poderá utilizar-se da lei 8.078/90? Ora, que diferença existe entre o despachante como pessoa jurídica, que utiliza o laptop para preencher guias, e o despachante enquanto pessoa física, que leva o aparelho para casa e escreve uma carta de amor? A solução não pode ser a mesma que a da usina e a da montadora. Tem de ser outra. O Código ajuda em parte, pois o despachante é "destinatário final", mas o bem é de produção. Para encontrarmos uma solução, precisamos utilizar certos princípios do Código e transferi-los para a noção de bens. Com efeito, o CDC regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira. Aí está o caminho indicativo para a solução. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o Código, independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros. A situação é clara: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo, não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a prestação de seu serviço de despachante. Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis. Assim, posso responder que, como o despachante adquiriu o laptop produzido e entregue ao mercado como um típico bem de consumo, a relação está protegida pelo CDC. *** Parte 2 na próxima semana. __________ 1 Por exemplo, no Curso de Direito do Consumidor (12ª. ed. São Paulo: Saraiva) ou no Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (8ª. ed. São Paulo: Saraiva) etc.
Pensemos no seguinte: o consumidor adquire um ingresso para ir ao cinema e depois tem que pagar algo a mais para marcar o lugar ou acontece o mesmo quando quer ir ao teatro. Ou, então, é o restaurante que cobra uma taxa extra para a escolha da mesa. Ou, sei lá, para assistir a uma palestra, além do ingresso é necessário pagar uma taxa para marcar o assento na sala. Quem sabe, possa-se cobrar do aluno para marcar a cadeira na sala de aula. São situações absurdas, certo? Pois é, mas é isso o que já está ocorrendo no caso de passagens aéreas. Algumas companhias cobram para marcar previamente o assento1. O consumidor paga o ticket e um "plus" para marcar o lugar no avião. Mas, não é só. Veja abaixo. O Código de Defesa do Consumidor, como se sabe, define o consumidor como vulnerável (art. 4°, I) e não resta dúvida de que no mercado de consumo, ele é a parte frágil de relação. Eu, mais de uma vez, defendi aqui neste mesmo espaço, que nem sempre o consumidor precisa de proteção. Isso porque há muitas compras de produtos e serviços que ele faz porque quer e está consciente de seu ato e das consequências dele. Mas, há, naturalmente, muitas situações nas quais o consumidor está totalmente fragilizado e sua vulnerabilidade torna-se extrema. Isso ocorre nas relações que envolvem os serviços essenciais, os serviços médicos e de saúde, etc. E um dos exemplos mais gritantes de vulnerabilidade é o que envolve o transporte aéreo. Neste, o consumidor está numa situação de inferioridade em relação ao prestador do serviço e de vulnerabilidade que permite toda sorte de abusos. Apesar de alguns avanços, especialmente por ação de alguns empresários que acreditam que seu negócio pode ser rentável respeitando seu público alvo, os fatos mostram que em pleno século XXI muitas empresas, sempre que podem, abusam de seus clientes. As companhias aéreas estão neste pacote. Esse é um setor que exige regulamentação legal e/ou ação governamental e normas internacionais amplamente fixadas. Não é possível deixar a definição das regras nas mãos das companhias aéreas. Nem vou chover no molhado aqui, pois o noticiário regular mostra que os abusos são praticados pelo mundo afora regularmente. A situação de fato da fragilidade do passageiro é evidente: ele está saindo de viagem a negócios ou a passeio, sozinho ou com seus familiares. No aeroporto, pode apenas aguardar que seu avião chegue e saia na hora (e, claro, que dê tudo certo na viagem). Se está saindo de sua casa, sua cidade, seu país ou se está voltando a angústia é a mesma. Ali, na frente de um atendente da empresa aérea, ele pode fazer muito pouca coisa além de ouvir e concordar. Ele está sempre sujeito ao ato abusivo, aberto e declarado! Aqui mesmo nesta coluna, eu tive oportunidade de criticar a ANAC (agência que devia proteger o consumidor no território nacional), que, seguindo, normas de outros países, modificou para pior o peso das bagagens que os passageiros podem levar. Ah, é verdade, a agência disse que isso traria diminuição nos preços! Infelizmente, os noticiários têm comprovado que essa era mais uma das conversas moles para boi dormir, inventada pela agência. Neste setor das companhias aéreas, a prestação dos serviços, a cada dia que passa, vai decaindo: a qualidade decresce e o preço cresce. Ou seja, tudo o que não se deveria esperar de um sistema capitalista moderno. Nesse setor, o consumidor está jogado a própria sorte e pouco ou nada pode fazer. Se fosse um caso de mau atendimento num restaurante, bastaria o consumidor ir embora e procurar outro lugar. Aliás, nesse setor, a concorrência funciona, não é mesmo? E também no comércio e geral de vestuário, produtos para casa etc. Só que no setor aéreo, com exceção de alguns trechos voados com alguma concorrência, as empresas fazem o que querem. O consumidor sofre abuso e, se quiser viajar de novo, tem que voltar ao mesmo balcão onde foi violado. Caro leitor, veja essa experiência recente de meu amigo Outrem Ego. Foi na volta de Lisboa para São Paulo. Como ele já morou em Portugal e foi e voltou muitas vezes, possui o cartão Gold da TAP, o que lhe dá certas regalias. Por exemplo, ele tem direito de despachar 3 malas de até 23 kilos cada. Muito bem. Quando voltava de lá, há alguns dias, foi ao balcão despachar 2 malas. Na balança, uma apontou 15 kilos e a outra 28,5 kilos. A atendente, então, disse que ele teria que pagar cerca de 115 euros por excesso de bagagem. Ele argumentou. Disse: "Mas, eu tenho direito de despachar 3 malas de 23 kilos cada. Tenho, portanto, o direito de colocar no avião 69 kilos de bagagem. E estou embarcando apenas 2 malas num total de 43, 5 kilos". Alguém acha que adiantou? Não. Cobraram o excesso assim mesmo. Eu deixo claro que meu amigo tem toda razão. Não se trata de excesso de peso porque pode ser ruim para o transporte. Isso não, pois na classe executiva da TAP a mala pode ter 32 kilos. Logo, passar de 23 não é problema. Trata-se de abuso, puro e simples, em função da fragilidade do consumidor naquele instante. Aliás, esse modo de cobrar por excesso de peso da bagagem é abuso franco, praticado abertamente e generalizado. Se um casal viaja junto e na mala de um há 10 kilos e na do outro 28, é cobrado excesso. Se 2 irmãos viajam juntos e ocorre o mesmo, também e assim por diante. Em linguagem consumerista, chama-se oportunidade para abuso. Nada além disso. Já passou da hora de se regrar esse setor para proteger os passageiros. Quero dizer, estamos andando para trás, pois as normas anteriores estão sendo abandonadas pelas agências reguladoras, deixando os consumidores à mercê das empresas aéreas que abusam de seus direitos. O Judiciário pode ajudar, mas já está abarrotado, além do quê, como se sabe, danos de pequenas montas não geram demandas. É um amplo espaço para as companhias aéreas irem faturando um pouco de cada vez, o tempo todo e de muitos passageiros. É capitalismo de quinta categoria. __________ 1 Algumas companhias já fazem isso. E a Gol também começou.
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

As novas formas ocultas de publicidade

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) diz que "a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal". (art. 36, "caput"). Esse texto da lei repete em parte as normas do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, que dizem que a atividade publicitária tem que ser sempre ostensiva (art. 9º, "caput") e que o anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua forma ou meio de veiculação (art. 28). Como se vê, o CDC determina que, além de ostensivo, o anúncio publicitário deve ser claro e passível de identificação imediata pelo consumidor. É a proibição da chamada publicidade clandestina. Trata-se da conhecida técnica do "merchandising", utilizada para veicular produtos e serviços de forma indireta por meio de inserções em programas e filmes. Dessa maneira, muitos produtos são veiculados sem que os consumidores se deem conta de que o que eles estão assistindo significa uma prática publicitária, mesmo nos casos mais evidentes. De fato, quando uma personagem importante na novela das oito entra num bar e pede uma Coca-Cola, o telespectador-consumidor não sabe se aquela demonstração específica é ou não publicidade do produto veiculado. Nem tudo é, mas muitas são. Existem várias maneiras de produzir o chamado merchandising. Haverá aquele que, apesar de se caracterizar por inserção indireta, não se reveste de clandestinidade. É que, em alguns casos, fica claro para o consumidor - ou telespectador - que se trata de publicidade. Cite-se como exemplo o caso do apresentador que, durante o transcurso do programa de auditório, oferece produtos e até os elogia. O problema está no merchandising típico da clandestinidade, uma vez que a finalidade dessa técnica é exatamente não aparecer como publicidade. Aliás, quando a lei surgiu, em 1990, alguns publicitários, em polvorosa, reclamaram (não só por causa dessa regra, mas também pelas outras que proíbem a publicidade enganosa e abusiva), dizendo que o CDC impediria grande parte do trabalho deles. No caso, seria o fim do merchandising. Isso porque o melhor merchandising é exatamente aquele em que a publicidade não é identificada como tal. Mas, veja, caro leitor, o CDC nada fez de novo, pois a própria norma autoregulamentadora do setor, que é de 1980, também proíbe a prática. Mas, eis que vivemos em tempos de redes sociais e agora novos modelos de publicidade, via esquemas de marketing, surgem aberta ou clandestinamente. Sei que nas redes sociais, o consumidor pode ter alguma voz, mas elas também servem para a promoção de produtos e serviços nem sempre claramente apresentados. Isso atinge adultos e crianças. Vejamos um exemplo no que diz respeito às crianças. Em matéria recente, publicada no site da revista Veja, Renato Godoy, assessor de Relações Governamentais do Programa Criança e Consumo, do Alana, relatou a estratégia utilizada pelos fabricantes da boneca LOL1. Trata-se de uma complexa estratégia de divulgação que se serve da influência de youtubers mirins e seus populares vídeos de unboxing - termo que denomina o ato de desembrulhar o produto e que já integra o vocabulário de famílias com crianças pequenas. Essa boneca, minúscula (tem apenas 8 centímetros), é entregue envolta por sete camadas de plástico, que escondem itens de vestuário e a própria identidade da personagem, que só é revelada após todo o processo de unboxing. Como diz Renato Godoy, a "característica central do brinquedo, então, já se confunde com a sua própria estratégia de divulgação. Tal como nos vídeos de youtubers mirins, o principal atrativo da boneca é o ato de desembrulhar a embalagem e encontrar as novidades, que surgem a cada camada de plástico descartada. O produto é a mensagem. E vice-versa". Os vários modelos da LOL servem para estimular o colecionismo, sentimento que atinge adultos e crianças, cuja função é vender cada vez mais o mesmo produto. A boneca Barbie está aí há muitos anos como prova do sucesso desse tipo de negócio. A matéria mostra que o preço do brinquedo varia entre 60 e 200 reais e, a demanda era e é tanta que, às vésperas do Natal, consumidores e comerciantes se queixaram da falta do produto. A criatividade humana é, realmente, brilhante. Para o bem ou para o mal. Em termos de mercado de consumo e de publicidade, as redes sociais vieram para permitir um enorme aumento de penetração na comunicação de fornecedores com consumidores - mirins ou adultos. E, de fato, nesse mundo complexo da web é muito difícil distinguir o que é e o que não é publicidade. __________ 1 Boneca LOL: um fenômeno nada espontâneo.
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

De novo! Veteranos trogloditas, bárbaros e sádicos

Sai ano entra ano e continua tudo igual. Quando alguns jovens da elite deixarão de ser fascistas? Sou obrigado a voltar ao assunto: os crimes são praticados a céu aberto, sem que se tome alguma providência (mais uma repetição anual, tal como as chuvas, os alagamentos, os deslizamentos e as mortes consequentes etc.). Refiro-me ao odioso trote violento. A humilhação causada aos novatos continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa questão? Um dos problemas nos trotes está em que, na maior parte dos casos, os próprios calouros não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Há algumas mudanças na direção certa promovidas por Centros Acadêmicos, é verdade, mas é preciso avançar mais e para tanto, haveria de se deixar claro que os calouros não só não devem participar como devem denunciar os veteranos. Sei que a pressão psicológica é grande e o medo também. Por isso, cabe às autoridades intervir. No início do ano, as violações são feitas nas vias públicas aos olhos de todas as autoridades públicas! Ou nos campi, à vista dos responsáveis pelas escolas. E, como fui obrigado a voltar ao tema, apresento na sequência alguns dos delitos praticados nos trotes e também mostro a responsabilidade das escolas, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo, total ou parcialmente, do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro. Humilhar os calouros, ridicularizando-os publicamente, pintando seus corpos, fazendo "cavalgadas" (modo esdrúxulo dos veteranos sentarem sobre os calouros de quatro ao solo fingindo serem cavalos, jumentos ou burros), amarrá-los, fazê-los engatinhar pelas ruas, fazê-los andar colados, uns nos outros, como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP). Obrigar o calouro ou a caloura a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro ou a caloura resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP). Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente. Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas delas, com a alegação de que o que ocorre fora dos campi não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim. Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que, quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizá-la, mas não se deve esquecer que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. O CDC garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a instituição de ensino pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC. Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e, nos primeiros dias de aula, distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro. Apesar de tudo, é preciso lembrar que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. Por isso, é preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas. Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de direito, medicina, sociologia, engenharia etc., possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, mas que precisa ser combatida.