O tema da vida intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas tem sido bastante abordado nos últimos dias. Por isso, resolvi publicar aqui na minha coluna um trecho que escrevi já há muitos anos e que está em meus livros Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 8ª. Edição, 2015) e Curso de Direito do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 13ª edição, 2019).
Como antecipei na semana passada, o texto é um pouco longo. Por isso, o dividi em duas partes. Hoje publico a segunda parte.
Visto isso e continuando nossa análise, diga-se que o campo da privacidade poderia ser definido ou, melhor dizendo, delimitado pelo âmbito público. Tudo que não puder ser pensado como público - difusamente falando - é de ser tido como privado.
É nessa restrita esfera que se desenvolve a outra, a da intimidade. A privacidade é o primeiro invólucro separador da esfera pública. A intimidade é o envoltório existente dentro da outra capa separadora.
Tudo se passa como se no público, que funciona como um grande círculo social, estivessem presentes círculos mais constritos que detivessem em seu interior o espaço mais limitado da intimidade.
Explica-se: há soluções jurídicas que se desenvolvem no plano público. Um anúncio publicitário de venda de apartamentos feito por uma construtora; o voto nas eleições municipais, estaduais etc.; o delito penal; o trabalho do magistrado etc. Há, também, as relações que se estabelecem na órbita privada: a vida em família; o amor e o sexo; as ações no domicílio civil etc.
É nesta última esfera que se vai verificar a garantia do direito à intimidade. Ela é o último círculo constrito, que se resguarda até contra aqueles outros que compõem o círculo um pouco mais amplo de esfera privada. A relação entre pai, mãe e filhos compõe a vida privada. A relação de resguardo do segredo juvenil em relação aos pais ou destes em relação aos filhos designa o limite da esfera íntima. É por isso que a questão da consciência é sempre de intimidade, porque comporta o limite psíquico e efetivo do indivíduo, enquanto pessoa real, concretamente destacada de qualquer âmbito social.
Queremos colocar outra explicação que seja capaz de lidar com problemas que os exemplos trazidos pelos autores que cuidam desse assunto (e que aqui foram repetidos) sugerem. Não é fácil distinguir o público do privado e este do aspecto íntimo pelos fatos concretos. Isso porque os atos do Presidente da República, por exemplo, são primordialmente públicos. Porém, por certo ele vive em família, e nesse âmbito goza de uma experiência privada, tendo consciência e nesta experimentando sua intimidade. Na outra ponta, ainda como exemplo, há o cidadão comum, pai, mal-educado, que espanca o filho na esfera privada, cometendo assim um delito na esfera pública.
Pensamos que o vislumbre dessas instâncias e limitações se dá no entendimento do significado de papel social. Por essa perspectiva tem-se a possibilidade de não confundir público, privado e íntimo com as várias situações sociais apontadas, que geram dificuldade de apreensão por conta da vagueza ou abstração dos conceitos. Ou, dizendo de outra forma, a compreensão do fenômeno de intimidade, privacidade ou publicidade dos direitos, ações, interesses e fatos pode ser mais bem operada se a examinarmos na perspectiva dos papéis sociais.
Os conceitos são aqueles já transcritos acima. O que propomos é que, toda vez que tivermos necessidade de abordar qualquer fenômeno jurídico com vistas a definir se sua área de atuação, abrangência, limite e garantia é da intimidade ou da privacidade ou se caracteriza como pública, lancemos mão daqueles conceitos que definem o papel social. Dessa forma teremos condições de avaliar o fenômeno real, concretamente existente, sem correr o risco de nos perder na ausência de limites claros de termos abstratos e por demais genéricos1.
Assim, tomemos o exemplo do Presidente da República: a pessoa real, isto é, o sujeito concreto, a pessoa física que exerce esse cargo público, tem impregnado em si, 24 horas por dia, 365 dias por ano, o papel social de Presidente da República. Dormindo ou acordado, às 4 horas da madrugada ou às 4 da tarde, ele é Presidente (é evidente que as esferas de sua vida privada e íntima sofrem o peso dessa "publicização" de sua personalidade).
Agora, perguntamos: o Presidente da República pode ir ao cinema e pode namorar? A resposta é sim. Mas dá um trabalho enorme (que o cidadão comum não tem). É conhecido o caso do ex-Presidente Itamar Franco, que, às vezes, ia com sua namorada para sua cidade, Juiz de Fora, e gostava de, com ela, ir ao cinema. Era um problema, pois ele saía de casa e era seguido pelos repórteres (e, como se sabe, ficava bravo e brigava com a imprensa). Pergunta-se: pratica alguma violação o repórter que corre atrás do Presidente da República, quando este vai ao cinema com a namorada?
A resposta é não. Não nos esqueçamos de que o Senhor Itamar Franco - e qualquer outro no cargo - era Presidente o tempo todo, 24 horas por dia. Ora, como ele estava saindo em público para ir a um lugar público (o cinema), não tinha como reclamar do repórter, que estava exercendo seu trabalho e, por sua vez, seu papel (um homem público pode ser mostrado ao público o tempo todo, naquilo que for de seu papel público).
Suponhamos, então, que o Presidente da República saia do cinema e vá para um hotel com sua namorada. Até onde o repórter pode mostrar? Ou, de outra forma, onde termina o público, onde começa o privado?
A resposta é que a imprensa pode ir até a porta do hotel (limite do público). Lá dentro, no quarto, com a namorada, ressurge o sujeito, a pessoa real, pessoa física, que, como homem, namora uma mulher. Tem o direito de namorar uma mulher, como qualquer outra pessoa. Nesse âmbito, não há público: a esfera é privada e resguardada constitucionalmente. Não é o Presidente da República quem namora, é o sujeito físico-psíquico. Quando muito pode-se definir a pessoa que namora como o "namorado", que é outro papel social. Contudo, é papel social privado, que tem resguardo constitucional. Do papel social de Presidente, namorar não faz parte.
E será nessa esfera privada que se desenvolverá a outra, íntima, que também é preservada constitucionalmente. É nela que a pessoa real que está no cargo de Presidente se revelará como homem, por exemplo, no ato de amor, nos carinhos, no ato sexual. Essa esfera está preservada contra os curiosos e, naturalmente, contra a imprensa, e também gera um interdito para a namorada, que não pode falar daquela intimidade. Mas aqui não há nenhuma novidade, uma vez que estamos na esfera íntima dentro do âmbito privado. Todo cidadão está preservado: a namorada do Presidente da República não pode falar de suas relações sexuais, mas também não pode a namorada de José da Silva, cidadão comum, nem ele dela.
Há ainda outros pontos a ressaltar e que o exemplo do Presidente da República é muito bom para elucidar: o cargo público confere ao titular certos conhecimentos que pertencem ao cargo, e que, por vezes, não podem - ou não devem - tornar-se públicos. São conhecimentos de informações privilegiadas, como, por exemplo, mudanças previstas para a taxa de câmbio, que somente podem ser anunciadas publicamente quando for o caso de serem implementadas.
Na realidade o exemplo demonstra a existência de uma esfera privada dentro do âmbito público governamental: os membros dos Ministérios que detêm essa informação devem preservá-la. Estão todos interligados nessa esfera privada. Ocorre que o sujeito real, enquanto ego concreto, também detém essa informação, e ela não pode sair de sua esfera íntima, nem para ser dita à namorada. Ou seja, o direito à intimidade é, por sua vez, uma interdição à anunciação pública ou mesmo privada dessa intimidade.
O Presidente da República, o Ministro, o funcionário público não podem levar informações do âmbito privado do governo para o âmbito privado do lar, nem do âmbito privado do governo para o âmbito íntimo, dentro do privado familiar. São limites que se impõem. Logo, a garantia constitucional do direito à intimidade e à privacidade é também garantia desses próprios direitos quando relacionados ao âmbito público.
Pode-se por isso dizer que nem tudo que é público torna-se privado e nem tudo que é privado ou íntimo pode tornar-se público.
E, para concluir, aproveitemos uma vez mais o exemplo do Presidente da República que namora. Vamos voltar ao Presidente indo para o hotel com a namorada. Ele e ela ingressam no quarto. Já vimos que ali cessa o direito de a imprensa olhar e falar. Ele e ela namoram na intimidade do quarto, intimidade esta resguardada contra os olhos do público e que limita os próprios parceiros (ele não pode falar dela nem ela dele). Mas vamos supor que ele lhe dê um tapa. Nessa ação ilícita, há interesse público?
É possível até discutir se, quando José da Silva, cidadão comum, leva um tapa da esposa, há interesse público ou não na questão. Perguntar-se-á se, no caso, a vida privada de José da Silva e sua esposa poderá ser devassada pela imprensa. Nós entendemos que a vida privada ainda nessa hipótese tem de ser preservada, pois não se vislumbra interesse público algum nesse tipo de delito. Outros delitos haverá em que o aspecto público se realça, como no caso do psicopata assassino que diz ao seu psiquiatra que no dia seguinte irá matar seu vizinho: o psiquiatra não só não pode guardar esse segredo da intimidade de seu mister como tem o dever de denunciar seu cliente para salvar a vida da outra pessoa2.
Porém, em se tratando do Presidente da República, que na privacidade de seu quarto de hotel dá um tapa na namorada, o interesse público ressurge. A confusão (no sentido de mistura dos papéis sociais) que se estabelece entre o papel de Presidente e o de namorado faz com que o papel público se sobreponha. A imprensa terá todo o direito de explorar o assunto, já que a relação privada deixou de sê-lo quando o tapa foi desferido.
Essa circunstância da somatória de papéis sociais é inelutável, uma vez que, como vimos, cada um de nós, pessoas reais, é um centro aglutinante de papéis sociais; um amálgama de papéis. Papéis privados e papéis públicos. Toda vez que estiverem presentes, simultaneamente, num ato qualquer, dois ou mais papéis públicos ou privados, e sempre que do fenômeno não se puder claramente separar o que é privado e o que é público, ou melhor, o que é apenas privado, tem-se de interpretá-lo como relevante na órbita pública. Afinal, o direito é sempre público.
Em suma, pela perspectiva do papel social, temos mais elementos para diferenciar nos fenômenos ocorrentes o que é público, o que é privado e o que pertence à intimidade.
O público define-se pela ocupação do papel social exercido; da mesma maneira o privado. Em ambos os casos não há exercício isolado, pois necessariamente as ações envolvem o indivíduo. O íntimo é, então, o último invólucro, o último círculo constrito que envolve o sujeito real, concreto, o ser físico-psíquico, sua consciência, o ego vivo propriamente dito, que sempre está presente com um centro aglutinador que suporta a carga de todos os papéis sociais por ele experimentados e vivenciados. O sujeito concreto funciona como um átomo capaz de amalgamar todos os papéis sociais.
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1 É certo que temos consciência de que o conceito de papel social é por sua vez, também, abstrato e padece do problema da generalidade. Porém, a nosso ver, ele é bem controlável no nível do exemplo concreto, o que o torna mais preciso e, por isso, útil.
2 Esse é um assunto que gera toda sorte de discussões, com várias posições possíveis de serem tomadas, e que não é o caso de abordar neste trabalho.