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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 25 de junho de 2020

Direito do Consumidor - Saneamento

quinta-feira, 18 de junho de 2020

A lei 14.010 de 10/6/20 e o art. 49 do CDC

Na semana passada, o Congresso Nacional aprovou a lei14.010 (de 10/6/2020), que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus (Covid 19). Foram várias as alterações feitas, mas o que aqui me interessa comentar é uma delas, que atingiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Com efeito, dispõe o art. 8º da lei, verbis: "Art. 8º Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos". Vou aproveitar a oportunidade para fazer alguns comentários a respeito do art. 49 do CDC, que nem sempre é bem compreendido. De início afirmo: se era para alterar algo no art. 49, o legislador poderia ter feito de forma definitiva, pois, como pretendo demonstrar, a regra já não poderia ser utilizada para esse tipo de serviço, dentre outros. Explico minha posição na sequência. Nas compras feitas fora do estabelecimento comercial, os contratos firmados seguem as regras básicas estabelecidas no art. 49, que assim dispõe: "Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 (sete) dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados". Essa norma foi criada para dar maior proteção aos consumidores que adquirem produtos ou serviços fora do estabelecimento comercial, sobretudo: a) via web e/ou internet; b) em seu domicílio, recebendo a visita do vendedor; c) pelo telefone (vendas por telemarketing); d) mediante correspondência (mala-direta, carta-resposta etc..); É verdade que a norma refere apenas por telefone e em domicílio. Contudo, a citação é evidentemente exemplificativa, porquanto o texto faz uso do advérbio "especialmente". Na época da feitura da lei (1990), chamavam mais a atenção do legislador esses dois tipos, mas atualmente a web e os aplicativos tornaram-se os principais canais de vendas fora do estabelecimento comercial. Olhando de perto, acabamos descobrindo detalhes importantes. Por exemplo, a lei parte do pressuposto de que nesse tipo de compra, o consumidor está ainda mais desprevenido e despreparado por que não tem acesso direto ao produto ou serviço. Para o legislador, o consumidor que faz a compra desse modo está mais fragilizado. No entanto, pelo que penso, não é verdade que as aquisições feitas "no" estabelecimento comercial são mais bem estudadas, refletidas e decididas do que as que são feitas "fora". Muitas vezes se dá o contrário: os vendedores são treinados para provocar e influenciar o consumidor, estimulando-o a fazer a compra. São utilizadas várias técnicas de aproximação, sugestão e indução para a aquisição. Nem mesmo as chamadas "compras por impulso" ocorre mais via web que na visita ao estabelecimento comercial. Quem compra por impulso, o faz por qualquer meio. De todo modo, minha pergunta é: há casos de compras de produtos ou serviços que, por sua natureza, possam ser excluídos da hipótese de incidência do artigo 49? Penso que sim. No início da redação do art. 49 está disposto que "o consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 (sete) dias ...". É o chamado prazo de reflexão ou arrependimento: no período de 7 dias o consumidor que adquire produto ou serviço ou assina algum contrato pode desistir do negócio quando feito fora do estabelecimento comercial. A ideia de um prazo de "reflexão" pressupõe, como adiantei acima, o fato de que, como o consumidor não esteve em contato real com o produto ou serviço, isto é, como ainda não "tocou" concretamente o produto ou "testou" o serviço, pode querer desistir do negócio depois que o avaliar melhor. Ou, em outros termos, a lei dá oportunidade para que o consumidor, uma vez tendo recebido o produto ou avaliado melhor o serviço, possa, no prazo de 7 dias, desistir da aquisição feita. Muita embora seja evidente a intenção do legislador, a regra dos 7 dias para o exercício do arrependimento não funciona para o caso da compra de alguns produtos e serviços. Digo mais: se fosse mesmo para permitir prazo de reflexão, a regra deveria ser estendida para compras no próprio estabelecimento, pois como apontei, no local o consumidor está sujeito a muitas formas de sugestão. A verdade é que, em muitas hipóteses, a aquisição feita pelo consumidor no conforto de sua casa e no tempo que ele deseje para pensar, é muito mais segura do que as feitas no local físico. Um gerente de banco tem muito mais condições de influenciar uma decisão olhando para o consumidor e com ele conversando, do que esse mesmo consumidor decidindo o que fazer diretamente em sua conta via web, onde pode obter informações mais objetivas. Esse é exatamente o ponto: certos produtos e serviços podem ser adquiridos diretamente via web/internet sem que isso modifique os critérios de decisão ou possa alterar a qualidade do que foi adquirido. E, como já referi, do conforto do lar pode ser ainda mais seguro. Em alguns casos, não tem sentido algum permitir o cancelamento da compra por violar o princípio da boa-fé objetiva, base das relações jurídicas de consumo, e, também, por não representar nenhum benefício nem garantia ao consumidor. Imagine-se um consumidor que, entrando em sua conta bancária pela internet faça uma aplicação em ações. Teria 7 dias para se arrepender? E na questão das passagens aéreas? Adquirindo a passagem aérea via web/internet ou aplicativo, o consumidor está muito, mas muito mais protegido, do que se estivesse num balcão físico da companhia aérea para fazer a compra. De forma tranquila, em casa, o consumidor tem completo conhecimento de todas as informações necessárias para a tomada de decisão. Examina as datas, horários e comodidades de cada voo existente, descobre as opções de assentos e classe, checa trechos e condições de cada decolagem, localidade, aeroportos etc. E mais: pode comparar com as ofertas das companhias aéreas concorrentes. Do conforto de seu lar, ele compara tudo isso mais preços, tarifas, taxas oferecidas pelas várias empresas. E aqui, repito, para colocar um fato notório: o consumidor não tem essas opções para decidir num estabelecimento físico da companhia aérea. Trata-se de exemplo típico de compra mais vantajosa sendo feita fora do estabelecimento. E, claro, se é mais vantajosa, como de fato é, não há que se falar em incidência do art. 49 do CDC. E a questão das compras de produtos para consumo imediato via web/internet/aplicativos/telefone e que a nova lei diz não sofrer a incidência do art. 49? Como antecipei, penso que essa norma do CDC não foi feita para esse tipo de compra. De fato, se é para consumo imediato, não tem sentido falar em 7 dias de prazo para reflexão. Aliás, esse prazo de reflexão colocado na norma é a prova de que ela não foi feita para esse tipo de compra. Nada impede, naturalmente, que o consumidor devolva o produto que recebe por inadequação ou vício. Mas, poder desistir como se a compra estivesse inserida no contexto do art, 49, penso que não.
O tema da vida intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas tem sido bastante abordado nos últimos dias. Por isso, resolvi publicar aqui na minha coluna um trecho que escrevi já há muitos anos e que está em meus livros Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 8ª. Edição, 2015) e Curso de Direito do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 13ª edição, 2019). Como antecipei na semana passada, o texto é um pouco longo. Por isso, o dividi em duas partes. Hoje publico a segunda parte. Visto isso e continuando nossa análise, diga-se que o campo da privacidade poderia ser definido ou, melhor dizendo, delimitado pelo âmbito público. Tudo que não puder ser pensado como público - difusamente falando - é de ser tido como privado. É nessa restrita esfera que se desenvolve a outra, a da intimidade. A privacidade é o primeiro invólucro separador da esfera pública. A intimidade é o envoltório existente dentro da outra capa separadora. Tudo se passa como se no público, que funciona como um grande círculo social, estivessem presentes círculos mais constritos que detivessem em seu interior o espaço mais limitado da intimidade. Explica-se: há soluções jurídicas que se desenvolvem no plano público. Um anúncio publicitário de venda de apartamentos feito por uma construtora; o voto nas eleições municipais, estaduais etc.; o delito penal; o trabalho do magistrado etc. Há, também, as relações que se estabelecem na órbita privada: a vida em família; o amor e o sexo; as ações no domicílio civil etc. É nesta última esfera que se vai verificar a garantia do direito à intimidade. Ela é o último círculo constrito, que se resguarda até contra aqueles outros que compõem o círculo um pouco mais amplo de esfera privada. A relação entre pai, mãe e filhos compõe a vida privada. A relação de resguardo do segredo juvenil em relação aos pais ou destes em relação aos filhos designa o limite da esfera íntima. É por isso que a questão da consciência é sempre de intimidade, porque comporta o limite psíquico e efetivo do indivíduo, enquanto pessoa real, concretamente destacada de qualquer âmbito social. Queremos colocar outra explicação que seja capaz de lidar com problemas que os exemplos trazidos pelos autores que cuidam desse assunto (e que aqui foram repetidos) sugerem. Não é fácil distinguir o público do privado e este do aspecto íntimo pelos fatos concretos. Isso porque os atos do Presidente da República, por exemplo, são primordialmente públicos. Porém, por certo ele vive em família, e nesse âmbito goza de uma experiência privada, tendo consciência e nesta experimentando sua intimidade. Na outra ponta, ainda como exemplo, há o cidadão comum, pai, mal-educado, que espanca o filho na esfera privada, cometendo assim um delito na esfera pública. Pensamos que o vislumbre dessas instâncias e limitações se dá no entendimento do significado de papel social. Por essa perspectiva tem-se a possibilidade de não confundir público, privado e íntimo com as várias situações sociais apontadas, que geram dificuldade de apreensão por conta da vagueza ou abstração dos conceitos. Ou, dizendo de outra forma, a compreensão do fenômeno de intimidade, privacidade ou publicidade dos direitos, ações, interesses e fatos pode ser mais bem operada se a examinarmos na perspectiva dos papéis sociais. Os conceitos são aqueles já transcritos acima. O que propomos é que, toda vez que tivermos necessidade de abordar qualquer fenômeno jurídico com vistas a definir se sua área de atuação, abrangência, limite e garantia é da intimidade ou da privacidade ou se caracteriza como pública, lancemos mão daqueles conceitos que definem o papel social. Dessa forma teremos condições de avaliar o fenômeno real, concretamente existente, sem correr o risco de nos perder na ausência de limites claros de termos abstratos e por demais genéricos1. Assim, tomemos o exemplo do Presidente da República: a pessoa real, isto é, o sujeito concreto, a pessoa física que exerce esse cargo público, tem impregnado em si, 24 horas por dia, 365 dias por ano, o papel social de Presidente da República. Dormindo ou acordado, às 4 horas da madrugada ou às 4 da tarde, ele é Presidente (é evidente que as esferas de sua vida privada e íntima sofrem o peso dessa "publicização" de sua personalidade). Agora, perguntamos: o Presidente da República pode ir ao cinema e pode namorar? A resposta é sim. Mas dá um trabalho enorme (que o cidadão comum não tem). É conhecido o caso do ex-Presidente Itamar Franco, que, às vezes, ia com sua namorada para sua cidade, Juiz de Fora, e gostava de, com ela, ir ao cinema. Era um problema, pois ele saía de casa e era seguido pelos repórteres (e, como se sabe, ficava bravo e brigava com a imprensa). Pergunta-se: pratica alguma violação o repórter que corre atrás do Presidente da República, quando este vai ao cinema com a namorada? A resposta é não. Não nos esqueçamos de que o Senhor Itamar Franco - e qualquer outro no cargo - era Presidente o tempo todo, 24 horas por dia. Ora, como ele estava saindo em público para ir a um lugar público (o cinema), não tinha como reclamar do repórter, que estava exercendo seu trabalho e, por sua vez, seu papel (um homem público pode ser mostrado ao público o tempo todo, naquilo que for de seu papel público). Suponhamos, então, que o Presidente da República saia do cinema e vá para um hotel com sua namorada. Até onde o repórter pode mostrar? Ou, de outra forma, onde termina o público, onde começa o privado? A resposta é que a imprensa pode ir até a porta do hotel (limite do público). Lá dentro, no quarto, com a namorada, ressurge o sujeito, a pessoa real, pessoa física, que, como homem, namora uma mulher. Tem o direito de namorar uma mulher, como qualquer outra pessoa. Nesse âmbito, não há público: a esfera é privada e resguardada constitucionalmente. Não é o Presidente da República quem namora, é o sujeito físico-psíquico. Quando muito pode-se definir a pessoa que namora como o "namorado", que é outro papel social. Contudo, é papel social privado, que tem resguardo constitucional. Do papel social de Presidente, namorar não faz parte. E será nessa esfera privada que se desenvolverá a outra, íntima, que também é preservada constitucionalmente. É nela que a pessoa real que está no cargo de Presidente se revelará como homem, por exemplo, no ato de amor, nos carinhos, no ato sexual. Essa esfera está preservada contra os curiosos e, naturalmente, contra a imprensa, e também gera um interdito para a namorada, que não pode falar daquela intimidade. Mas aqui não há nenhuma novidade, uma vez que estamos na esfera íntima dentro do âmbito privado. Todo cidadão está preservado: a namorada do Presidente da República não pode falar de suas relações sexuais, mas também não pode a namorada de José da Silva, cidadão comum, nem ele dela. Há ainda outros pontos a ressaltar e que o exemplo do Presidente da República é muito bom para elucidar: o cargo público confere ao titular certos conhecimentos que pertencem ao cargo, e que, por vezes, não podem - ou não devem - tornar-se públicos. São conhecimentos de informações privilegiadas, como, por exemplo, mudanças previstas para a taxa de câmbio, que somente podem ser anunciadas publicamente quando for o caso de serem implementadas. Na realidade o exemplo demonstra a existência de uma esfera privada dentro do âmbito público governamental: os membros dos Ministérios que detêm essa informação devem preservá-la. Estão todos interligados nessa esfera privada. Ocorre que o sujeito real, enquanto ego concreto, também detém essa informação, e ela não pode sair de sua esfera íntima, nem para ser dita à namorada. Ou seja, o direito à intimidade é, por sua vez, uma interdição à anunciação pública ou mesmo privada dessa intimidade. O Presidente da República, o Ministro, o funcionário público não podem levar informações do âmbito privado do governo para o âmbito privado do lar, nem do âmbito privado do governo para o âmbito íntimo, dentro do privado familiar. São limites que se impõem. Logo, a garantia constitucional do direito à intimidade e à privacidade é também garantia desses próprios direitos quando relacionados ao âmbito público. Pode-se por isso dizer que nem tudo que é público torna-se privado e nem tudo que é privado ou íntimo pode tornar-se público. E, para concluir, aproveitemos uma vez mais o exemplo do Presidente da República que namora. Vamos voltar ao Presidente indo para o hotel com a namorada. Ele e ela ingressam no quarto. Já vimos que ali cessa o direito de a imprensa olhar e falar. Ele e ela namoram na intimidade do quarto, intimidade esta resguardada contra os olhos do público e que limita os próprios parceiros (ele não pode falar dela nem ela dele). Mas vamos supor que ele lhe dê um tapa. Nessa ação ilícita, há interesse público? É possível até discutir se, quando José da Silva, cidadão comum, leva um tapa da esposa, há interesse público ou não na questão. Perguntar-se-á se, no caso, a vida privada de José da Silva e sua esposa poderá ser devassada pela imprensa. Nós entendemos que a vida privada ainda nessa hipótese tem de ser preservada, pois não se vislumbra interesse público algum nesse tipo de delito. Outros delitos haverá em que o aspecto público se realça, como no caso do psicopata assassino que diz ao seu psiquiatra que no dia seguinte irá matar seu vizinho: o psiquiatra não só não pode guardar esse segredo da intimidade de seu mister como tem o dever de denunciar seu cliente para salvar a vida da outra pessoa2. Porém, em se tratando do Presidente da República, que na privacidade de seu quarto de hotel dá um tapa na namorada, o interesse público ressurge. A confusão (no sentido de mistura dos papéis sociais) que se estabelece entre o papel de Presidente e o de namorado faz com que o papel público se sobreponha. A imprensa terá todo o direito de explorar o assunto, já que a relação privada deixou de sê-lo quando o tapa foi desferido. Essa circunstância da somatória de papéis sociais é inelutável, uma vez que, como vimos, cada um de nós, pessoas reais, é um centro aglutinante de papéis sociais; um amálgama de papéis. Papéis privados e papéis públicos. Toda vez que estiverem presentes, simultaneamente, num ato qualquer, dois ou mais papéis públicos ou privados, e sempre que do fenômeno não se puder claramente separar o que é privado e o que é público, ou melhor, o que é apenas privado, tem-se de interpretá-lo como relevante na órbita pública. Afinal, o direito é sempre público. Em suma, pela perspectiva do papel social, temos mais elementos para diferenciar nos fenômenos ocorrentes o que é público, o que é privado e o que pertence à intimidade. O público define-se pela ocupação do papel social exercido; da mesma maneira o privado. Em ambos os casos não há exercício isolado, pois necessariamente as ações envolvem o indivíduo. O íntimo é, então, o último invólucro, o último círculo constrito que envolve o sujeito real, concreto, o ser físico-psíquico, sua consciência, o ego vivo propriamente dito, que sempre está presente com um centro aglutinador que suporta a carga de todos os papéis sociais por ele experimentados e vivenciados. O sujeito concreto funciona como um átomo capaz de amalgamar todos os papéis sociais. __________ 1 É certo que temos consciência de que o conceito de papel social é por sua vez, também, abstrato e padece do problema da generalidade. Porém, a nosso ver, ele é bem controlável no nível do exemplo concreto, o que o torna mais preciso e, por isso, útil. 2 Esse é um assunto que gera toda sorte de discussões, com várias posições possíveis de serem tomadas, e que não é o caso de abordar neste trabalho.
quinta-feira, 28 de maio de 2020

Intimidade, vida privada e vida pública

O tema da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas tem sido bastante abordado nos últimos dias. Por isso, resolvi publicar aqui na minha coluna um trecho do que escrevi já há muitos anos e que está em meus livros Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 8ª. Edição, 2015) e Curso de Direito do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 13ª edição, 2019). Como é um pouco longo, dividi o artigo em duas partes. Hoje publico a primeira e na próxima semana a segunda. Segue. 1ª Parte Direito à intimidade, vida privada, honra e imagem As garantias estabelecidas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal são relevantes para uma reflexão sobre os direitos do consumidor, porquanto este poderá ser vítima de violações que a norma magna pretende evitar. Vejamos o conteúdo expresso do inciso X: "Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Como se observa, a Constituição Federal pretende dar guarida absoluta ("são invioláveis") à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. Tomemos cada um desses conceitos para compreender a extensão do preceito normativo. Intimidade e vida privada Os dois termos não podem ser dissociados, uma vez que, obviamente, o valor semântico de um lembra o outro. Porém, como a norma constitucional utiliza os dois, é preciso esclarecê-los. Aliás, de pronto, surge a indagação: são os dois conceitos designativos do mesmo sentido? A doutrina que já analisou a questão respondeu que não, apesar da necessária imbricação de ambos1. Para entender o exato significado dos conceitos, tem-se de lembrar certos aspectos da vida social na qual estão presentes as pessoas, naquilo que diz respeito a sua individualidade na relação com o coletivo. É preciso distinguir o âmbito público do âmbito privado. Com efeito, o público é sempre aquilo que, como o nome diz, aponta para a participação aberta a todos ou para a possibilidade de participação de todos. É o que pertence ao povo ou à coletividade; ou mesmo apenas os atos vivenciados por poucas testemunhas, mas, assim, com caráter público. É ainda o formato real e abstrato dos atos do governo2. O privado é o oposto do público, e, embora o conceito seja da Antiguidade, ainda guarda o sentido de privus, "ser privado de", isto é, ser privado do público. É o que ocorre no domínio do lar, na órbita pessoal, no restrito âmbito doméstico, quer física, quer psiquicamente. Dessa maneira, pode-se perceber que todo indivíduo tem uma esfera privada de direitos e interesses. Mas nem todos têm uma atuação no âmbito público. O cidadão comum, vai-se dizer, é o exemplo daquele que tem apenas vida privada. O político é aquele que tem basicamente vida pública - mas tem, também, vida privada. O cidadão comum, é verdade, poderá ter uma aparição ou reconhecimento público, quando, por exemplo, agir, ainda que esporadicamente, de forma pública: participando de um programa de televisão, cometendo um delito numa praça, enganando consumidores na venda de produtos falsificados. A distinção entre as duas esferas pode ser feita a partir da hipótese do papel social. Com efeito, a sociologia jurídica desenvolveu o conceito de papel social3. O surgimento dos papéis está ligado ao crescimento da sociedade, de maneira que o conceito atualmente utilizado é o de complexidade, ou melhor, alta complexidade social. O sentido de complexidade social está relacionado ao dado concreto e real das ações possíveis do indivíduo. Ou, melhor dizendo, o mundo real se apresenta ao indivíduo oferecendo latentemente ações que ele pode realizar. Mas a quantidade de ações é tão grande que, de fato, real e historicamente, o mundo apresenta sempre muito mais possibilidades do que aquelas que o indivíduo vai realizar em toda a sua vida. O indivíduo está, assim, fadado a escolher. Desde que entra no mundo, vai agindo a partir de escolhas; não há alternativa. A essas escolhas se dá o nome de seletividade. Esta é uma operação de seleção para optar diante da complexidade de ações possíveis. A cada ato, a cada passo, o indivíduo age por seleção e vai compondo o quadro de seu destino. A inexorabilidade da seleção tem como função reduzir a complexidade do mundo: a cada escolha que a pessoa faz, opera-se a seleção e reduz-se a complexidade - escolheu algo entre muitos4. Mas, simultaneamente, enquanto se opera a seleção, vai-se produzindo um enorme contingente que ficou de lado: escolheu ser advogado; em compensação, não será juiz, promotor de justiça, procurador, delegado etc. Para essa teoria dos papéis sociais, o que vale é o dado objetivo da escolha. Não se está - isso não importa para o papel social , pensando na motivação que levou à escolha (se foi consciente ou inconsciente, por desejo, vontade ou "sem querer") nem na capacidade ou condição da pessoa que escolheu (força física, inteligência, força intelectual, arranjo político ou familiar, ação entre amigos etc.), nem ainda nos interesses que geraram a seleção (econômicos, jurídicos, religiosos etc.). O que vale é a seleção objetivamente operada5. Assim, por exemplo, não interessa perguntar por que o candidato ao vestibular tornou-se estudante de Direito: se por vocação, ameaça dos pais, acidente - "ele queria fazer Medicina mas não conseguia passar" - ou qualquer outro motivo. O que importa é a seleção: o indivíduo tornou-se estudante de Direito; e o contingente: logo, não é estudante de Medicina, Engenharia, Administração de Empresas etc. Os papéis sociais foram-se criando por conta das inúmeras seleções operadas pelos indivíduos no mundo. A produção desses papéis tem sua explicação na exata medida em que as sociedades crescem em complexidade. O crescimento da complexidade oferece alternativas infindáveis; estas acabam sendo selecionadas, indo compor, pelos encontros de sentidos das opções operadas, os papéis sociais. Na realidade, a complexidade da sociedade é tamanha que para o indivíduo as alternativas que lhe oferece o mundo não são ações puras, mas papéis sociais postos à sua disposição para serem selecionados. A escolha é de papéis e não de ações6. Os papéis sociais podem ser, assim, definidos como repertórios formais de funções sociais - ações e comportamentos - preenchidos temporalmente por indivíduos. Isso significa que, estando no papel, o indivíduo deve comportar-se de acordo com o figurino normativo para ele previsto. Para o comportamento socialmente adequado ao papel, basta agir como o esperado: todas as demais pessoas têm uma expectativa normativa de que o indivíduo, naquele papel, vai comportar-se como se espera que se comporte. Isso traz vantagens e desvantagens. A vantagem está ligada à economia de ações: no papel, para o indivíduo estar bem socialmente, basta agir como se espera que vá agir. O comportamento já estava pronto e ele se enquadrou; amoldou-se à estrutura normativa reinante formalmente no papel. Ele passa, então, a participar da sociedade dentro de maior estabilidade. A desvantagem está relacionada ao próprio indivíduo, à pessoa que existe "por detrás" do papel: ela deixa de ser vista como tal. Apresenta-se, comunica-se e é cobrada a partir do papel por ela assumido. Essa relação indivíduo-papel, do ponto de vista social, pode gerar conflitos. Não resta dúvida de que, apesar da fixidez do papel, o indivíduo real nele absorvido irradia, no comportamento resultante do exercício do papel, vários aspectos de sua personalidade, além de nele desempenhar suas aptidões pessoais, tais como habilidades manuais, inteligência, ponderação, discrição etc. E a teoria dos papéis sociais pode, então, contribuir sobremaneira para a elucidação da questão do público e do privado no que diz respeito ao indivíduo. É que, do ponto de vista da complexidade social, os papéis oferecidos à seleção são públicos e privados. O comportamento de um lado e a expectativa social - de todas as outras pessoas e papéis - de outro variam de acordo com o tipo de papel. Se é privado, a exigência pública é uma, digamos, mais liberal. Se é público, é outra, extremamente rigorosa em termos do controle das alternativas de ações e comportamentos possíveis. E um problema resiste ligado à relação indivíduo-papel. Trata-se do fato de que na verdade o indivíduo real - psíquica e fisicamente considerado - é um centro de papéis; é um feixe de papéis que dispõe de inúmeras ações e comportamentos. Cada indivíduo é uma soma de papéis e por vezes esse indivíduo, enquanto ser real, confunde-se com os papéis que exerce. O indivíduo é simultaneamente pai, filho, irmão, estudante, profissional, político, torcedor etc., num composto de papéis sociais. E nesse todo podem estar papéis sociais públicos e privados, nem sempre sendo fácil distinguir quando o comportamento social real é de um ou de outro. Há muito ainda o que dizer a respeito dos papéis sociais: a possibilidade de o indivíduo irradiar sua luz pessoal para o papel; a institucionalização dos papéis etc. Mas para o assunto que se está aqui estudando e que na sequência se desenvolverá o que apresentamos é o suficiente7. Continuaremos na próxima semana. __________ 1 Acompanhamos aqui os Professores David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (Curso de direito constitucional, S. Paulo: Saraiva, 1998, item 2.1.1). 2 Ressalvem-se os chamados "segredos de Estado", justificáveis apenas na exata medida em que são segredos para preservar o bem público: segurança, paz etc. 3 Assim, por exemplo e pelos demais: Niklas Luhmann, (Legitimação pelo procedimento, Brasília: UNB, 1980, especialmente, p. 71 e s.). 4 A escolha gera um alívio ao indivíduo. Como o mundo se apresenta com alta complexidade e milhões de possibilidades, isso por si só é fator gerador de angústia. A seleção a diminui. 5 Nem importa saber se a pessoa gostou ou não da escolha, apesar de tudo isso poder ter alguma validez na seleção "papel-indivíduo". 6 É muito raro que um indivíduo isolada e conscientemente "crie" um novo papel social. Este surge espontaneamente, da ilimitada e intrincada soma de ações e relações sociais preexistentes entre os demais papéis sociais. 7 Para mais informações ver Niklas Luhmann, (Legitimação pelo procedimento, cit.).
quinta-feira, 21 de maio de 2020

A pandemia, o direito do consumidor e o Procon

A Fundação Procon de São Paulo (Procon) sempre foi motivo de orgulho para a população paulistana. Por lá passaram alguns dos melhores diretores e administradores públicos e que colocaram o Procon de São Paulo em evidência no Brasil inteiro, funcionando como fonte inspiradora para os demais órgãos de proteção ao consumidor existentes. Como se sabe, o consumidor brasileiro é violado no varejo e no atacado. É mesmo fundamental que tenhamos um órgão como o Procon. Órgão este que tem que estar preparado para fiscalizar e mandar cumprir a lei, com destaque para o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Em situações normais de temperatura e pressão isso já exige muito, pois são milhões de transações diárias na cidade e no Estado de São Paulo. Mas, eis que veio a pandemia e atingiu milhões de relações jurídicas de consumo em praticamente todas as esferas reguladas pela lei. O Procon foi chamado a atuar. E o fez com maestria. Foi e está sendo forte na fiscalização dos abusos e foi e está sendo justo e racional nos casos que exigem harmonia. Isso. Harmonização é a palavra chave e, como eu sempre defendi, tem que ser a palavra chave para a resolução dos conflitos de consumo. O diretor atual, dr. Fernando Capez, tem dado aulas diárias de como se deve agir em situações de grave crise, como esta que estamos vivendo. Ele tem agido com rigor contra os infratores e tem publicado orientações ponderadas para solucionar os conflitos que surgiram. Como eu disse, sempre defendi que o mercado de consumo somente cresce e se solidifica com a implementação de relações justas e harmoniosas. Os conflitos sempre existirão. Isso é inevitável numa sociedade que produz em massa. Mas, uma vez surgido, é possível sim resolvê-lo administrativamente, sem que haja a intervenção do já tão atolado Poder Judiciário. E nesse ponto, a atuação de um órgão como o Procon é fundamental. A respeito desse tema - da inevitabilidade do surgimento do vício e do defeito dos produtos e serviços - e como digo, o atendimento no pós-venda é fundamental. Não só atendimento dentro da lei e bem feito por representantes dos fornecedores treinados, como também a criação e existência de espaço para negociações. E, aqui, mais uma vez a atuação do Procon é importantíssima. Essa direção estadual pode ser vista também no âmbito dos Procons municipais que, também, têm atuado com firmeza e racionalidade. Cito por todos, o Procon de Santos, capitaneado pelo dr. Rafael Quaresma que, do mesmo modo, têm ágido com competência exemplar. Com tantos problemas afligindo a população, é mesmo muito bom que nós tenhamos um órgão como o Procon atuando com competência e eficácia.
quinta-feira, 14 de maio de 2020

Coronavírus: otimismo e realidade

Para os otimistas, tudo tem um lado bom. E, como em matéria de Covid-19 as notícias são de dar arrepios e calafrios, resolvi escrever este artigo, um pouco mais ameno. Na verdade, elaborei um texto de espécie otimista-realista. Certa feita, aqui mesmo nesta coluna, eu fiz um comentário apontando que a cada ano que passa, e sempre mais cedo, os seres humanos consomem o total de recursos que o planeta Terra pode renovar em um ano. Os dados são de 2017. Neste ano, o fato se deu em 2 de agosto; em 2016, um dia depois, 3 de agosto. Ou seja, mais ou menos no início de agosto, todo ano, a humanidade consome os recursos que nosso planeta pode renovar. Esse cálculo é feito anualmente pela ONG Global Footprint Network1. O diagnóstico tem como base as emissões de gases do efeito estufa e, também, os recursos consumidos pela pesca, pela pecuária, pelos cultivos, pelas construções e pela utilização da água. Na realidade, os representantes da ONG dizem que, para satisfazer nossas necessidades, hoje deveríamos contar com o equivalente a 1,7 planeta2. De fato, o que se constata é um enorme desiquilíbrio no consumo global. Se o modo de consumo dos países desenvolvidos se estendesse a todos os cantos da terra, certamente, a devastação seria muito maior. Isto é, mesmo com um índice de consumo muito menor em países emergentes, o planeta está sendo destruído. Muito bem. O que se diz é que o modelo capitalista implementado especialmente a partir da segunda metade do século XX e que se tornou devastador mais ao final é o responsável: a chamada vida para o consumo contribuiu e contribui sobremaneira para essa destruição. Veja, meu caro leitor, essa quarentena mundial prova que a desaceleração da economia, isto é, que a paralização das atividades de consumo em geral renovou os recursos naturais: a poluição do ar regrediu, o consumo de energia elétrica caiu, em alguns lugares, nos mares, os peixes voltaram, enfim, fez bem ao planeta e naturalmente também às pessoas. Isso, claro, é apenas um pedaço da história do consumo, pois há centenas de milhares de pessoas que sequer têm acesso ao mercado. Como eu gosto de afirmar, o primeiro direito do consumidor é o direito a ter direitos com liberdade para consumir: direito de escolher o que consumir livremente; o direito de poder consumir. Agora, veja esses dados publicados pelo Instituto Trata Brasil (são números de 2018). O Brasil está entre as 10 maiores economias do mundo, mas 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada. 47% da população não possui coleta de esgoto. Por ano, são feitas 233 mil internações de pessoas com doenças de veiculação hídrica (Diretamente: amebíase, giardíase, gastroenterite, febres tifoide e paratifoide, hepatite infecciosa etc. Indiretamente, a água também está ligada à transmissão de verminoses, como esquistossomose, ascaridíase, teníase etc.). Isso dá o incrível número de 638 internações por dia!. Como era de se esperar, os índices de qualidade do saneamento variam pelas regiões do país, sendo que os melhores índices estão na região sul e sudeste e os piores estão na região norte. A pandemia, que atingiu o mundo inteiro, pode mesmo ajudar a melhorar índices climáticos, o que é bom para o planeta. Mas, ela vai passar. Esperemos que haja alguma alteração no consumo a favor do meio ambiente. Contudo, não podemos esquecer de todos aqueles que não tem acesso ao mínimo para serem chamados de consumidor, numa sociedade apelidada de sociedade de consumo, tanto no Brasil como em vários lugares do mundo. __________ 1 Humanidade esgota hoje os recursos planetários que é capaz de renovar neste ano. 2 Idem nota anterior.
Hoje escrevo mais uma vez para tratar de alguns efeitos jurídicos nas relações de consumo por conta da pandemia gerada pela covid-19. Desta feita, quero abordar um ponto específico e que pode gerar problemas: o dos cancelamentos dos eventos que estão marcados para datas posteriores ao recolhimento compulsório. Por exemplo, uma cerimônia de casamento que esteja marcada para o segundo semestre (até lá, esperamos que a vida volte ao normal). Como sempre, repriso as questões jurídicas essenciais. Já escrevi aqui mesmo nesta coluna que o evento da covid-19 é algo extraordinário e assim deve ser encarado do ponto de vista jurídico. Sabemos que o Código de Defesa do Consumidor não apresenta como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior. Mas, como já o demonstrei, essas hipóteses são de fortuito interno e força maior interna. Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, naturalmente, o mesmo se deu e se dá na eclosão de uma pandemia, como esta da covid-19. Evento absolutamente fora de qualquer possibilidade de previsão e, infelizmente, inevitável. Realço que todas as relações jurídicas foram afetadas. Falo de todas porque ninguém escapou. A diferença para alguns é que o evento acabou trazendo benefícios, pois puderam produzir e vender mais, os estoques acabaram etc. Porém, em milhares, aliás, milhões de relações jurídicas (de consumo ou não) a situação, de fato, foi e é de prejuízo para os dois lados da relação (ou para os vários lados da relação). Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. E não resta dúvida alguma de que, se o evento, qualquer que seja ele, estava marcado para datas dentro do período de quarentena, ambos os lados da transação (consumidor e fornecedor) podem simplesmente rever o negócio, sem possibilidade de cobrança de multa ou de pagamento de indenizações. Agora, levanto essa questão: e se o evento estava marcado para depois que acabarem as restrições da quarentena? Por exemplo, uma festa de casamento marcada para outubro. Digamos que, por causa da pandemia, os noivos ficaram impossibilitados de realizar o evento, eis que perderam o emprego ou tiveram suas rendas reduzidas de tal modo que se tornou impossível manter a data de cerimônia. (Antes de prosseguir, lembro o óbvio: se um casal decide adiar seu casamento, evidentemente o foi por algo muito grave.) Dito isso, transcrevo o outro argumento jurídico favorável ao consumidor. Trata-se da regra do inciso V do art. 6º do CDC, que dispõe ser direito básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas". A garantia de revisão das cláusulas contratuais em razão dos fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas tem, também, fundamento nos outros princípios instituídos no CDC: boa-fé e equilíbrio (art. 4º, III) e vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I). Entenda-se, então, claramente o sentido de revisão trazido pela lei consumerista. Não se trata da cláusula rebus sic stantibus, mas, sim, de revisão pura, decorrente de fatos posteriores ao pacto, independentemente de ter havido ou não previsão ou possibilidade de previsão dos acontecimentos. Como se sabe, a teoria da imprevisão prevista na regra do rebus sic stantibus tem como pressuposto o fato de que, na oportunidade da assinatura do contrato, as partes não tinham condições de prever aqueles acontecimentos, que acabaram surgindo. Por isso se fala em imprevisão. A alteração do contrato em época futura tem como base certos fatos que no passado, quando do fechamento do negócio, as partes não tinham condições de prever. Para que se faça a revisão do contrato, basta que após ter ele sido firmado surjam fatos que o tornem excessivamente oneroso. Não se pergunta, nem interessa saber, se, na data de seu fechamento, as partes podiam ou não prever os acontecimentos futuros. Basta ter havido alteração substancial capaz de tornar o contrato excessivo para o consumidor. E, claro, na hipótese desta pandemia nem se pode pensar em discutir a imprevisibilidade. Mas, veja-se: é caso de imprevisibilidade que afeta a relação jurídica de consumo e, também, aquilo que não estava previsto exatamente na relação (como regra). Esse é o ponto diferente: os noivos foram atingidos na sua capacidade como pessoas; ficaram sem poder pagar o que estava estabelecido por causa da pandemia. Contra a vontade e interesse deles, o negócio teve que ser modificado. É um caso especial em que a relação é atingida e, também, o consumidor na sua integridade e capacidade financeira. Termino, como sempre, lembrando que, cada caso é um caso, mas significativamente neste momento crucial que vivemos, certamente é preciso examinar cada uma das situações com muito critério e sempre tendo em vista o fim pretendido na relação jurídica, que é fundada no princípio da boa-fé objetiva e que deve ser interpretada com critérios de razoabilidade, bom senso e justiça do caso concreto.
Hoje escrevo para tratar de alguns efeitos jurídicos nas relações de consumo por conta da pandemia gerada pela covid-19, no que respeita às mensalidades escolares, especialmente por algo que me chamou a atenção nos últimos dias nas discussões nas redes sociais: a questão do desconto nas mensalidades e, de outro lado, os argumentos de escolas que dizem que continuam oferendo os serviços e, por isso, continuam cobrando regularmente. Não vou repetir o que já está publicado nas redes e nos informativos de imprensa. Naturalmente, há argumentos a favor dos descontos. Concordo com boa parte deles: muitas escolas acabaram tendo diminuição de seus custos e, numa situação como esta, é justo que ofereçam descontos nas mensalidades. Vou, agora, levantar alguns pontos para reflexão e que envolvem o outro lado da relação: o das escolas que não tiveram redução de seus custos. Primeiramente, repriso as questões jurídicas essenciais. Já escrevi aqui mesmo nesta coluna que o evento da covid19 - pandemia que gerou consequências jamais vistas no mundo - é algo extraordinário e assim deve ser encarado do ponto de vista jurídico. Sabemos que o Código de Defesa do Consumidor não apresenta como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior. Mas, como já o demonstrei, essas hipóteses são de fortuito interno e força maior interna. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo do negócio) pelo fornecedor nem por eles evitado. Todavia, não elidem a responsabilidade. Cito o exemplo que vale por todos: o do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, claro, o mesmo se deu e se dá na eclosão de uma pandemia, como esta da covid-19. Evento absolutamente fora de qualquer possibilidade de previsão e, infelizmente, inevitável. Todas as relações jurídicas foram afetadas. Falo de todas porque sim, ninguém escapou. A diferença para alguns é que o evento acabou trazendo benefícios, pois puderam produzir e vender mais, os estoques acabaram etc. Porém, em milhares, aliás, milhões de relações jurídicas (de consumo ou não) a situação, de fato, foi e é de prejuízo para os dois lados da relação (ou para os vários lados da relação). Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. Há, também, outros argumentos a favor do consumidor como, por exemplo, o de referência ao inciso V do art. 6º do CDC, que dispõe ser direito básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas". Agora, voltemos à questão das escolas postas no início. Vamos imaginar que, impedida de oferecer aulas presenciais por conta da pandemia, a escola consiga substituí-las por aulas online, por sistemas de rede social, internet etc. Lembro que, algumas já tem um sistema funcionando porque oferecem cursos à distância (EAD). Mas, já tendo um sistema e tendo-o que ampliar para acolher os alunos dos cursos presenciais ou não tendo um sistema e tendo que cria-lo desde o início, o que se percebe é que a escola, provavelmente, teve que arcar com custos não previstos. Pode acontecer, como acontece, da escola, inclusive, continuar pagando os professores regularmente, pois eles continuarão a dar aulas (ao invés de presenciais, no sistema EAD, comparecendo aos estúdios que foram produzidos ou mesmo dando aulas diretamente de suas residências). Naturalmente, não estou esquecendo que existem outros custos de manutenção, tais como água, energia elétrica, segurança, pagamento de outros funcionários etc. que podem ter diminuído ou aumentado. E, também, que a escola pode sofrer com a inadimplência dos estudantes. De todo modo, num quadro como este acima, muitas escolas podem ter tido aumento de suas despesas, o que somado ao fato de que elas não deixaram de fornecer os serviços contratados, justificaria que não reduzissem as mensalidades. Com regra, cada caso é um caso, mas significativamente neste momento crucial que vivemos, certamente é preciso examinar cada uma das situações com muito critério e sempre tendo em vista o fim pretendido na relação jurídica, que é fundada no princípio da boa-fé objetiva e que deve ser interpretada com critérios de razoabilidade, bom senso e Justiça do caso concreto.
quinta-feira, 16 de abril de 2020

Tempo é vida

Em momento de reclusão como este, retorno ao tema importante do tempo, especialmente na sociedade em que vivemos. Proponho um reflexão sobre seu uso e sua perda. Meu amigo Outrem Ego, certo dia, reclamou de sua ida ao dentista. Ele teve que tratar um canal e disse: "Fazia anos que não ia ao dentista ou, como se diz agora, endodontista. (É assim que meu dentista se apresenta: É mole?). Ele envolveu meu dente em uma espécie de máscara de borracha que tampou minha boca e parte de meu rosto. Minha boca ficou aberta sem que eu pudesse evitar. Aliás, bem aberta. Daí, com uma espécie de câmara, ele foi com umas agulhinhas até o local da infecção, cutucou, remexeu e resolveu tudo. Tudo muito moderno. Mas, algo não mudou: o sofrimento. Não doía, mas eu sofri profundamente. Tava difícil de respirar. Demorou muito tempo. Parecia que não ia acabar nunca. Mas quer saber? Qual não foi minha surpresa, quando após o serviço acabar eu perceber que se passara apenas cinquenta minutos. Eu pensava que estava lá há horas". Não há nenhuma novidade na descrição feita por meu amigo. Esse é um tipo de tempo, subjetivo. Todos sabem que uma hora de amor dura muito pouco, e ao contrário de meia hora na cadeira do dentista. Ou, como disse, brincando, Einstein: "Você entende a relatividade quando vê que uma hora com a sua namorada parece um minuto e um minuto sentado num formigueiro parece uma hora". Esse tempo subjetivo, de todo modo, tem muita importância para o mercado. Por exemplo, nas diversões públicas, como um filme no cinema. Para que o espectador aguente um filme longo, ele há de ser muito bom. E isso acontece mesmo. Quantos filmes longos não assistimos e que "acabaram depressa"? Ou que ficamos torcendo para não acabar? E o inverso é verdadeiro: há filmes que depois de vinte, trinta minutos de exposição nos fazem mexer na cadeira sem parar ou que nos faz levantar e ir embora do cinema. Aliás, é comum que as pessoas descubram que o filme é ruim ou chato exatamente porque "percebam a poltrona". Em filmes bons, a cadeira passa despercebida. Há também um tempo sagrado, o tempo das festas periódicas, por exemplo. O "Tempo sagrado é indefinidamente repetível. De certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que o tempo sagrado 'não flui', que não constitui uma 'duração' irreversível. É um tempo ontológico por excelência... A cada festa periódica reencontra-se o mesmo Tempo sagrado - o mesmo que se manifestara na festa do ano precedente ou na festa de há um século... Em outras palavras, reencontra-se na festa a 'primeira aparição do Tempo sagrado', tal qual ela se efetuou 'ab origine'"1. O outro tempo é o profano, este nosso do dia a dia da vida social, de certo modo privado de religiosidade ou ao menos de significação religiosa2. O mercado de consumo apoderou-se também desses dois. Há muito a dizer sobre isso, mas coloco para o que interessa aqui que, simultaneamente, o mercado, de um lado, "rouba", digamos assim, significação do tempo sagrado (pelos menos os das festas periódicas) transformando as oferendas rituais em meros presentes adquiridos repetida e indefinidamente todo ano, pagos à vista ou em prestações e baseado na mera materialidade do produto. E, de outro lado, confere um aspecto "religioso" ou "sagrado" ao próprio mercado, criando templos de consumo, como os shoppings-centers, ou tomando os rituais das festas e inserindo-as em várias diversões públicas, como nas competições esportivas. O tempo profano, que nunca se repete, pode ser medido. Ele "passa" ou, como dizem os filósofos, ele "dura". E, exatamente porque passa ou dura, ele se perde. Uma vez vivido, não volta mais. É o nosso tempo de relógio; uma duração que experienciamos no presente a cada segundo, a cada instante e que se perde na imensidão do passado também a todo momento. O futuro vai chegando, passando pelo presente e se perdendo no passado. Essa experiência do presente, essa duração nunca mais retorna. Daí que esse nosso tempo pode ser medido e perdido. Esse tempo, isto é, essa duração tem um custo, tem um preço e ademais tem um valor. O salário do trabalhador é medido em parte pelo tempo dedicado à prestação do serviço, o que se converte em custo para o empregador. Daí que a busca de eficiência e aumento de produtividade tem relação direta com a passagem do tempo. Quanto mais produtivo é o trabalhador no mesmo espaço de tempo, menos custo para o empregador na relação com o resultado do trabalho: a mercadoria produzida ou o serviço prestado ao consumidor. Por isso, o salário pode também ser majorado na relação com a produtividade no tempo. O trabalhador é também um consumidor (e há, claro, muitos consumidores não trabalhadores). O tempo para o consumidor tem valor. Valor objetivo: de troca do valor de seu próprio tempo, pois enquanto consume ou o gasta para consumir, perde-o para exercer outras atividades que não de consumo (embora, cada vez mais a maior parte de suas atividades como pessoas possam ser traduzidas como de consumo; ações de consumo). Valor subjetivo: o que ele quer fazer com seu tempo, é problema dele. Só a ele diz respeito. É direito pessoal, privado e da esfera de sua intimidade; é uma prerrogativa que lhe pertence. Pergunto: Qual é o sonho do consumidor? Apenas comprar? E comprar é viver? Viver é passar o tempo, como se diz. Perder tempo é, em certa medida, perder vida. Mas, pelo que se vê da sociedade, é perder vida para o consumo. No modelo do mercado atual, aquilo que se passou a intitular de "consumismo" (a necessidade e o desejo de comprar incessantemente) criou uma "urgência para o consumo". Há uma imposição para que o tempo que reste após aquele gasto no trabalho (e/ou nos estudos) seja utilizado no consumo; seja literalmente consumido. É uma oferta de prazer, na verdade. O consumo como prazer. Oferece-se um prazer no imediato e, talvez, porque isso não consiga preencher a alma do consumidor, este continue na busca incessante desse prazer imerso no consumismo irrefreado. O mercado oferece economia de tempo, bem-vinda, permitindo que o consumidor ao invés de ir ao banco, faça as transações em casa; que, ao invés de ir até às lojas, adquira produtos pela internet e os receba em sua residência; que converse com seus amigos ou faça negócios via internet sem ter que atravessar o trânsito das cidades, ganhando, pois, tempo. Em tudo isso e em muito mais, há mesmo economia de tempo, mas esse tempo ganho é gasto com consumo sem fim e urgente. Os pacotes de viagem são um bom exemplo desse modelo: É oferecido que o consumidor "conheça" toda a Europa em apenas quinze dias! O consumidor chega na cidade, é levado para o hotel, hospeda-se, desfaz as malas, sai de ônibus, este para em alguns pontos, ele tira muitas fotos, volta para o hotel, toma banho, sai para jantar com o grupo em algum restaurante, dorme, refaz as malas, acorda cedo, é levado para o aeroporto, viaja para outra cidade; e começa tudo de novo. Ufa! Enfim, ao cabo de quinze dias, muitos deles gastos em aeroportos, ônibus e fazendo e refazendo malas, o consumidor leva para casa centenas de fotos de algumas cidades, como se tivesse mesmo conhecido a Europa inteira. Será que era com isso que o consumidor sonhava? O fato é que precisamos aproveitar da melhor forma o nosso tempo. __________ 1 Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 60. 2 Idem, ibidem, p. 59.
quinta-feira, 9 de abril de 2020

O que é uma doação?

Diz o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) que os "órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". Anoto o dado importante para a análise, o de que a lei liga o aspecto da essencialidade do serviço com o aspecto de sua continuidade, isto é, sua não interrupção. Para deixar claro o significado disso, distingo os dois aspectos para a compreensão do que se pode entender por essencial e, também, contínuo. É pela natureza dos serviços prestados, primeiramente, que se pode definir de sua essencialidade ou não. Assim, pode-se dizer que, em geral, o serviço público, exatamente pelo fato de sê-lo (público), somente pode ser essencial. Não poderia a sociedade funcionar sem um mínimo de segurança pública, sem a existência dos serviços do Poder Judiciário, sem algum serviço de saúde etc. Nesse sentido, é que se diz que todo serviço público é essencial. Assim, também o são os serviços de fornecimento de energia elétrica, de água e esgoto, de coleta de lixo, de telefonia etc. (privatizados ou não). Mas, então, é de perguntar: se todo serviço público é essencial, por que é que a norma estipulou que somente nos essenciais eles são contínuos? Para solucionar o problema, aponto dois aspectos: a) o caráter não essencial de alguns serviços; b) o aspecto de urgência. Existem determinados serviços como, por exemplo, os de ordem burocrática, que, de per si, não se revestem de essencialidade. São serviços auxiliares que: a) servem para que a máquina estatal funcione; b) fornecem documentos solicitados pelo administrado (por exemplo, certidões). Se se fosse levantar algum caráter de essencialidade nesses serviços, só indiretamente poder-se-ia fazê-lo. Claro que, existirão até mesmo documentos cujo serviço de expedição se reveste de essencialidade, e não estou olvidando disso. Por exemplo, o pedido de certidão para obter a soltura de alguém preso. Nessas hipóteses especiais, é o caso concreto que designará a essencialidade do serviço requerido. O outro ponto é também relevante. Há no serviço considerado essencial um aspecto real e concreto de urgência, isto é, necessidade concreta e efetiva de sua prestação. O serviço de fornecimento de água para uma residência não habitada não se reveste dessa urgência. Contudo, o fornecimento de água para uma família é essencial e absolutamente urgente, uma vez que as pessoas precisam de água para sobreviver. Essa é a preocupação da norma. Para ficarmos com exemplos no assunto deste artigo, lembro que ninguém pode duvidar da essencialidade e urgência do serviço de telefonia celular para a pessoa que tenha seu veículo quebrado à noite num lugar ermo; ou que esteja acompanhado de alguém que sofra um ataque cardíaco; ou - para ficarmos com o que nos assola no momento - um idoso que, morando sozinho, precise de cuidados médicos por causa do coronavírus ou outra doença. Logo, vê-se que o serviço público essencial revestido, também, do caráter de urgente não pode ser descontinuado. Isso decorre da natureza do próprio serviço e/ou da situação concretamente existente. E mais: no caso brasileiro, a Lei Federal também define o que vem a ser serviço essencial. Trata-se da Lei de Greve - lei 7.783, de 28 de junho de 1989. Como essa norma obriga os sindicatos, trabalhadores e empregadores a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, acabou definindo o que entende por essencial. A regra está no inciso VII do art. 10, que dispõe, verbis: "Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais: I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; II - assistência médica e hospitalar; III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; IV - funerários; V - transporte coletivo; VI - captação e tratamento de esgoto e lixo; VII - telecomunicações: VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais; X - controle de tráfego aéreo; XI - compensação bancária". Desse modo, se o serviço é essencial, naturalmente, no caso da telefonia, o produto que utiliza o serviço (o aparelho celular, o smartphone, o carregador etc.) também o é. Sei que, como está sendo divulgado, o aparelho celular pode ser propagador do vírus. Assim, é preciso mantê-lo sempre higienizado. Mas, de todo modo, penso que a oferta aos proprietários de aparelhos celulares não pode ser descontinuada. É preciso que haja algum tipo de atendimento em casos de quebra dos aparelhos para que o usuário não fique sem esse serviço essencial e urgente.
quinta-feira, 26 de março de 2020

Aspectos da natureza humana

Escrevo para tratar dos efeitos jurídicos nas relações de consumo por conta da Pandemia gerada pelo Covid-19, especialmente no que respeita às viagens aéreas, hospedagens, passeios agendados etc. Começo tratando do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão. Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo - que, diga-se, não lhe pertence - e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou, em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração. O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz por que quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar. Decorre disso que, quem se estabelece deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar, não só para buscar evitá-los, mas também para se prevenir sobre suas eventuais perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas, deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão. O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que, no que respeita ao transporte, o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Isso vale para o serviço de transporte, para o serviço de hospedagem, para os pacotes de viagem etc. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador ou pelo administrador do hotel, nem por eles evitado. Todavia, não elidem a responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o caso de certas ocorrências da natureza, tais como chuvas e nevoeiros, no caso do transportador aéreo. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno - que, aliás, ocorre constantemente - é integrante típico do risco daquele negócio. Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, claro, o mesmo se dá na eclosão de uma pandemia, como está da Covid-19. Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados por causa das medidas de segurança adotadas. Por outro lado, os consumidores que cancelam os voos marcados ou mudam a data da viagem também não podem ser responsabilizados, estando livres do pagamento de multas e, aliás, se não puderem mais viajar, podem simplesmente pedir o reembolso dos valores pagos. Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. Se não se pode responsabilizar o companhia aérea pelo cancelamento do voo, também não se pode responsabilizar o consumidor. O mesmo se dá com o cancelamento que o consumidor faça em hotéis e outras atividades atreladas à viagem afetada pela circunstância excepcional. Não pode o hotel ou os demais agentes cobrarem multas por mudanças de datas e devem devolver os eventuais valores já adiantados acaso haja cancelamento definitivo pelo consumidor. Sei que há outros argumentos a favor do consumidor como, por exemplo, o de referência ao inciso V do art. 6º do CDC, que dispõe ser direito básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas". Tudo bem. É mais um argumento favorável, mas penso que a constatação da existência de um caso fortuito externo que atinge a relação jurídica de consumo como um todo é suficiente para resolver a situação.
Neste nosso Brasil varonil costuma-se dizer que há "leis que pegam e leis que não pegam", frase que nem deveria existir... De todo modo, ontem, dia 11 de março, uma de nossas mais importantes "leis que pegaram" fez 29 anos: a lei 8.078/90, isto é, o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Como sempre tenho dito, a boa notícia é que o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, sempre lembrada tanto em setembro quando foi editada (11/9/1990) como em março (mês em que entrou em vigor; mês em que também se comemora o dia mundial dos direitos dos consumidores). Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes a existência dessa lei tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. E, claro, com 29 anos de idade seria de se esperar que a lei fosse cumprida por todos o tempo todo. Mas, ainda não é bem assim. Com um início de vigência que, lembro-me bem, assustou empresários em geral, muitos publicitários e os grandes conglomerados em especial, aos poucos o CDC foi se firmando e deixando de ser o bicho-papão de que o acusavam injustamente. Ao que me consta, ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como também da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento melhor qualificado, enfim, a norma fez o mercado amadurecer. Para ficarmos apenas com um exemplo: antes do CDC, muitos produtos não traziam estampados nas embalagens seus prazos de validade. Lembro-me bem que eu fiquei espantado com o curto prazo de validade de alguns produtos. Até água em garrafa tem curto prazo de validade! Antes da lei 8.078/90, nós consumidores, muito provavelmente, ingerimos toneladas de produtos vencidos e sorvemos milhares de litros de bebidas ultrapassadas. (Ocorre-me um fato tão terrível quanto peculiar: sou da época dos refrigerantes em garrafa - apenas em garrafa - e agora me vem a memória de quantas vezes, quando garoto, retirei a tampinha e com a mão limpei as marcas de ferrugem que estavam na boca da garrafa, antes de beber o refrigerante... Sabe-se lá, das vezes que adoeci, quantas não estavam relacionadas com produtos e bebidas deteriorados...) Pois bem, o susto dos empresários passou. A lei teve, como tem, muito boa eficácia. Porém, ao mesmo tempo em que os consumidores passaram a ficar mais escolados em matéria de consumo, os empresários também, o que faz com que ainda tenhamos uma série de abusos bem planejados. Naturalmente, o bom fornecedor é ainda, e sempre será, aquele que desenvolve seu projeto de negócio, claro, visando o lucro, mas respeitando seus clientes. Dizem que "a palavra convence, mas o exemplo arrasta". Por isso, gosto de ilustrar ou fundamentar meus argumentos com casos reais. Lembro, assim, uma história que já narrei. A do vendedor de amendoins na praia: ele passa gritando e dando uma amostra de seu produto para os banhistas; caminha alguns metros repetindo esse gesto para depois voltar. Enquanto ele vai, os veranistas comem o amendoim recebido - e de graça! - e quando ele volta, quem gostou tem a oportunidade de comprar um pacotinho, momento em que o negócio é concretizado. Desse simples modo de oferecer e vender o amendoim, pode-se extrair um dos melhores exemplos de como o empresário deve tratar o consumidor: em primeiro lugar o vendedor faz uma propaganda honesta, oferecendo de graça seu produto para que o consumidor experimente; depois ele somente vende para o consumidor que de fato quer comprar, uma vez que o produto foi previamente examinado, testado e aprovado. Quanto ao consumidor que experimentou mas não comprou, ainda assim o negócio foi bem feito. O custo do amendoim oferecido gratuitamente faz parte do custo total do negócio, porém funciona sempre como investimento, pois, até para aquele que não comprou fica a lembrança da boa imagem que o vendedor construiu, respeitando inclusive seu desinteresse em adquirir o produto. Por conta disso, esse consumidor torna-se um cliente em potencial, podendo adquirir o produto em outra oportunidade. Fazer sucesso como fornecedor, muitas vezes, é simples assim.
Faz já muitos anos que fala dos avanços da tecnologia, como se suas descobertas e criações fossem mesmo capaz de resolver todos os problemas da humanidade. E ela está em todos os setores: nas indústrias em geral, nas pesquisas científicas, na administração da saúde, na medicina etc. Há alguns dias, fui visitar um escritório num desses prédios modernos da capital paulista. Cadastrei-me na entrada e pediram-me que passasse minha mão numa espécie de scanner. Depois daquilo, andei pelo prédio ultrapassando as catracas apenas colocando minha mão cadastrada nos aparelhos. Poxa, que moderno... De fato, a tecnologia nunca foi tão marcante, abundante, rápida, eficaz. Será? Proponho uma reflexão. Esse modelo de desenvolvimento está mesmo no rumo certo? E o avanço tecnológico, fruto do capitalismo globalizado, trouxe ou trará melhor qualidade de vida e bem estar para todos? Ficarei longe de números, pois seria muito desanimador. Eles mostram que a resposta é bem negativa: grande parte da humanidade passa fome, a violência é extraordinária, milhões de pessoas sofrem no mundo todo por causas que deveriam ter sido extirpadas há muito tempo e não foram etc., um longo etc. Mas, a tecnologia pode nos iludir. Ela tomou um rumo incrível. Por exemplo, são projetados automóveis, ônibus e caminhões de transporte que não precisam de motoristas... É, realmente, um motorista é algo que atrapalha, não é? Aliás, os veículos que ainda podem ser dirigidos por motoristas são superpotentes: são capazes de andar a 200 Km por hora, 250Km por ora. A única dificuldade, é que não se pode acelerar acima dos 120 Km... (Já cuidei desse assunto aqui, falando dos "automóveis fora da lei".). E os tais drones. Aeronaves não tripuladas. Algumas muito eficientes tornaram-se armas perigosíssimas, como mostrou os EUA no ataque de janeiro em Bagdá. Como se sabe, nessa investida foi morto o comandante da força de elite iraniana Al-Quds, o general Qassem Soleimani. Tecnologia de ponta! Já existem casas inteligentes, que abrem e fecham janelas automaticamente, acendem a apagam luzes do mesmo modo e, também, o aparelho de ar condicionado e outras coisas mais. Sério? Pra que isso serve mesmo? Descansar os braços? Na medicina os avanços são incríveis. Por exemplo, no mercado da aparência, a medicina estética e cosmética reforma os corpos das pessoas de muitas formas. Na odontologia também. Na oftalmologia os avanços são realmente sólidos: uma operação para curar a miopia demora alguns minutos com plena eficácia. O mesmo se dá na operação de catarata. Ótimo. Não queria falar de números e não vou, mas claro que esse tipo de procedimento não é para todos e seu preço é bem salgado. Agora veja meu caro leitor: acima afirmei que na área da medicina os avanços são incríveis. E a direção desses avanços. O caminho estará certo? Todos os anos milhares de pessoas morrem por causa de gripe. Sim, uma simples gripe continua matando. O surto recente que envolve o coronavírus com origem na China mostra que os avanços da ciência não são tantos assim. Análises publicadas revelaram que 80% do material genético do novo vírus é igual ao da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) - um outro tipo de coronavírus, responsável por provocar um surto da doença em 2002 e 2003. Isto é, em pleno século XXI, os vírus matam as pessoas como matavam no século XX, XIX etc. Aliás, os mosquitos também continuam transmitindo doenças e matando, como é o caso da dengue. A China, mostrando toda sua potência, construiu um hospital em apenas 10 dias. Realmente incrível. Mas, o "bichinho" que infecta as pessoas não se incomoda com essa engenharia fantástica... Não sou pessimista, mas realmente, não sei se o caminho da ciência está sendo bem trilhado!
Se já não bastassem os problemas com carboidratos, proteínas, gorduras, calorias etc. que atingem os consumidores crianças, jovens, adolescentes, adultos, idosos, enfim, todos os consumidores, a cada dia fica mais claro que, na sociedade capitalista contemporânea, que só conhece o lucro e só pensa nele, muitos produtos vendidos são falsificados, adulterados e deteriorados. E não se trata apenas de se "vender gato por lebre". Há muitos produtos autênticos que fazem mal por suas próprias substâncias, por falta de informação ou por informação imprecisa etc. N'outro dia, meu amigo Outrem Ego me perguntou: "Você gosta de escondidinho?". Eu disse que sim, especialmente o original com carne seca e purê de mandioca. Ele, então, acrescentou se eu conhecia tudo o que se "escondia" nos produtos alimentícios. "Como é que a gente, isto é, como é que o consumidor pode identificar se os produtos que ingere são, de fato, de boa qualidade", indagou. Realmente, é difícil fazer essa identificação. Em boa parte das vezes, o consumidor se serve dos olhos e do nariz: aparência e cheiro são boas alternativas para se aferir qualidade, mas nem sempre dá certo. E depois, quando experimenta, o sabor também é referência. Claro que o consumidor-comprador pode lançar mão das cautelas tradicionais como, por exemplo, se for adquirir carnes vermelhas, verificar se elas apresentam zonas (ou manchas) escurecidas ou zonas ou pontos secos, sinais de deterioração. Ou, então, nunca comprar carne moída que já estava triturada quando ele chegou no açougue (Deve-se sempre escolher a carne inteira e pedir para moer à vista). Também não deve comprar carne de porco que apresente pequenas bolinhas brancas (conhecidas como "canjica"). Bem, como comecei deixe-me lembrar das cautelas para compras de aves: a sua carne estará boa quando tiver consistência firme, cor amarelo-pálida, brilhante e com odor (cheiro) suave, e estará deteriorada quando: apresentar cor esverdeada; sua consistência não estiver firme; e/ou apresentar cheiro forte. E, quanto aos peixes, o consumidor só deve adquirir os que tiverem o corpo rijo (duro), escamas firmes e os olhos salientes e brilhantes. Já os peixes secos, como o bacalhau, estarão deteriorados se apresentarem manchas úmidas ou avermelhadas. Você, meu caro leitor, quer compre os próprios alimentos para preparar quer os compre prontos, sabe muito bem que o mercado está repleto de fraudes de todo tipo e também de produtos deteriorados, que transmitem doenças nem sempre de forma rápida a se poder perceber o que causou o mal (O que gera um grande problema de prova e investigação - pessoal ou pelas autoridades). O noticiário trás regularmente à tona alguns casos envolvendo a venda de produtos deteriorados por falha na produção industrial, no armazenamento, na distribuição etc. ou mesmo por clara má-fé do fornecedor. Esse mundo capitalista, às vezes, é de arrepiar e de tirar o apetite! Não é à toa que alguns bons restaurantes, desde há muito tempo, passaram a abrir suas cozinhas para que os clientes possam ver como a comida está sendo preparada ou, pelo menos, permitem que eles façam uma visita nas instalações. Porém, nem sempre isso é suficiente - lembremos das carnes preparadas, dos embutidos etc. Por isso, inclusive, os consumeristas dizem que um bom modo de conhecer a higiene do restaurante é ir, antes de mais nada, ao banheiro local. Se ele estiver asseado, é um bom começo. Mas, se nem o banheiro, que é escancarado ao olhar do consumidor, está limpo, o que se dirá do resto? Claro que, como diz meu amigo, Outrem Ego, "Dá para 'maquiar' o banheiro. Este pode estar tinindo, lindo, cheiroso e ainda assim a comida não estar no mesmo padrão. Não é fácil mesmo a vida de consumidor, especialmente se estiver com fome". Essa situação de fragilidade do consumidor em relação aos serviços e produtos oferecidos e adquiridos, já disse mais de uma vez aqui nesta coluna, é uma característica universal e que a nossa lei de proteção expressamente reconhece: ele é vulnerável, porque não só não tem acesso aos meios de produção e distribuição como é obrigado a acreditar (confiar?) nas informações que se lhe dirigem. Ademais, em relação aos alimentos, ele pode se enganar com os olhos e com o olfato. Essa, digamos, natureza frágil do consumidor em geral e no caso da alimentação em particular é visível de muitas maneiras. Vejam-se as frutas. Meu querido e referido amigo adora goiabas - pelo menos adorava. Ele contou que, na sua infância, costumava pegar goiaba no pé junto dos amigos. Eles amarravam a blusa na frente, dando um nó dos dois lados, de modo a gerar uma espécie de saco. Dentro enchiam de goiabas apanhadas nas goiabeiras das casas dos próprios amigos e se empanturravam. Ele disse que muitas vezes comiam até o bigato ou melhor, a metade que não viam... Quando Outrem Ego cresceu e deparou-se, na feira, com goiabas maravilhosas, brilhantes, redondas, lindas, ficou desconfiado. Havia algo estranho. Ele disse que, em primeiro lugar, as goiabas plantadas naturalmente têm tamanhos diferentes no mesmo pé, não são redondas, bonitas etc. São diferentes uma das outras e muito saborosas. "Agora estão todas iguais, lindas e para meu paladar, sem gosto. Pelo menos, como eu me lembro". Daí que, a cada dia é mais difícil se alimentar bem e sem preocupações. Nenhuma área está isenta de fraudes e/ou problemas de qualidade. Podem ser produtos "in natura" ou industrializados. Se a verdade é que, como se diz, "você é o que você come", é preciso tomar muito cuidado para continuar sendo o que se é.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A inveja tornou-se produto de consumo

Começo contando uma espécie de anedota: Três estudantes que estavam na mesma Universidade, ao irem participar de uma excursão numa grande floresta, perderam-se do restante do grupo. De repente, um deles encontrou uma garrafa mágica, a abriu e dela saiu um gênio. Este disse aos três: "Eu sou um gênio e dou a cada um de vocês o direito de realizar um desejo. Vocês podem me pedir qualquer coisa". O primeiro, muito ambicioso e competitivo, disse: "Eu tenho um vizinho, o John, ele mora numa mansão incrível! Eu quero uma mansão maior que a dele". O segundo, do tipo solidário, disse: "Eu tenho um vizinho, o Henry. Ele mora num castelo maravilho. Eu quero um castelo igualzinho ao dele". O terceiro, invejoso, disse: "Eu tenho um vizinho, o Igor. Ele tem um porco. Eu quero que você mate o porco dele". *** A inveja está tão presente em nossas vidas que, tudo indica, tornou-se produto de consumo. Nas redes sociais está presente constantemente. Há muitas pessoas e profissionais sofrendo ataques apenas e tão somente porque se dão bem, porque fazem sucesso. Isso ocorre em todas as profissões e carreiras: são advogados, juízes, economistas, médicos, políticos, empresários etc. sendo atacados por pessoas invejosas. O efeito da inveja na sociedade nem sempre é facilmente identificado; às vezes nem mesmo o invejoso percebe claramente o sentimento. Até atitudes de sarcasmo ou ironia podem ocultar a inveja. De todo modo, o que os pesquisadores mostram é que em locais nos quais as pessoas são invejosas, a sociedade fica estagnada, parada ou até mesmo anda para trás. Ao contrário dos meios competitivos, onde o movimento social é para a frente, em direção ao progresso. Quando pesquisamos a doutrina sobre a inveja, percebemos que alguns dizem que o invejoso quer possuir o que o outro possui. Mas, isso não é verdade. Quem diz isso não entende a inveja. O invejoso não quer o que o outro tem. Não! Querer o que outro tem está ligado à admiração e, também, à competição. Com efeito, a admiração é um sentimento positivo, pois faz crescer o admirado e o admirador. Quero dizer: de algum modo, quando alguém admira o outro ou as obras e realizações do outro, este é enaltecido e elevado moralmente (e, muitas vezes, materialmente, quando, por exemplo, valorizam-se suas obras) e, num certo sentido, o admirador também se enaltece, pois participa de alguma maneira do objeto admirado; guarda-o dentro de si, faz com que ele melhore sua alma, sua experiência de vida. Assim, a admiração e também os modelos competitivos estimulam os agentes sociais e impulsionam o movimento das sociedades; são elementos dinâmicos que dão vida e geram progresso. E não pensemos que competição diz respeito apenas aos esportes. Ela está em todos os lugares e se for bem administrada é bastante saudável: existe competição entre cientistas, pesquisadores, escritores, artistas, professores, médicos, advogados, engenheiros etc. A história da humanidade mostra como isso é muito bom para os casos de desenvolvimento e superação: um superando o outro, um ultrapassando o que o outro fez, melhorando suas invenções, aperfeiçoando sua arte, reorganizando as pesquisas do outro, aperfeiçoando seus produtos e serviços etc. Isso é progresso. Já, como dizia Bertrand Russell, "o invejoso, em vez de sentir prazer com o que possui, sofre com o que os outros têm". Ele é, assim, negativo e inativo, passivo. Fica no sofrimento olhando o outro. E o mais importante: ele não quer ter o que o outro tem; nem igual nem melhor. O invejoso quer tirar o que o outro tem! Mas, como eu disse acima, nem sempre a inveja é facilmente identificável, porque o invejoso pode agir nas sombras, às escondidas, por meio de intrigas e fofocas. Ele aumenta, inventa, deturpa, sempre com o objetivo de diminuir a imagem do invejado ou tentando fazer com que o invejado perca o que possui, que pode ser uma propriedade, um cargo, um título honorífico, um namoro ou casamento sólido, a alegria no lar, a felicidade entre amigos, um emprego seguro, rentável ou que dê visibilidade, enfim, qualquer bem material ou imaterial que afete o invejoso. Portanto, a inveja é sempre negativa, é ação de diminuição de bens, posições, dignidades. E em tempos de redes sociais os ataques são facilmente multiplicados e tornaram-se verdadeiros produtos de massa num grande mercado de consumo.
Hoje falo da ganância, a sede de ganho sem limites. Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1. No livro citado, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente"2. Esse tipo de conduta não é novo nem surpreendente e já se verificou no Brasil inúmeras vezes. Apenas para ficar com um exemplo recente: com a crise da qualidade da água na cidade do Rio de Janeiro, os preços da água mineral dispararam3. Esses aumentos se caracterizam como práticas abusivas proibidas pela legislação protecionista do consumidor e, evidentemente, odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos fornecedores, colocando à mostra os defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza4; trata-se de um vício humano, sempre combatido. Mas, o que chamou a atenção no episódio do furacão na Flórida não foi tanto a ganância, mas a incrível e aberta defesa feita por muitos economistas do ato ganancioso como elemento intrínseco do sistema e - pasme-se - positivo! Dentre os vários "teóricos de mercado" que fizeram esse tipo de defesa naquela oportunidade, refiro, por todos, o economista Thomas Sowell para quem o termo "extorsão", utilizado pelas vítimas dos comerciantes, não passava de uma "expressão emocionalmente poderosa porém economicamente sem sentido, à qual a maioria dos economistas não dá atenção, porque lhes parece vaga demais"5. Sandel fala dele: "Preços mais altos de gelo, água engarrafada, consertos em telhados, geradores e quartos de motel têm a vantagem, argumentou Sowell, de limitar o uso pelos consumidores, aumentando o incentivo para que empresas de locais mais afastados forneçam as mercadorias e os serviços de maior necessidade depois do furacão. Se um saco de gelo alcança dez dólares quando a Flórida enfrenta falta de energia no calor de agosto, os fabricantes de gelo considerarão vantajoso produzir e transportar mais. Não há nada injusto nesses preços, explicou Sowell; eles simplesmente refletem o valor que compradores e vendedores resolvem atribuir às coisas quando as compram e vendem"6. Trata-se de um sofisma ridículo e pueril, pois obviamente os fabricantes de gelo somente se motivariam se o preço se mantivesse nas alturas de forma constante. No caso, o preço foi elevado excessivamente, fixado para um curto período de tempo e imposto contra consumidores desesperados. Eis, pois, uma mostra de um dos aspectos mais perniciosos da sociedade capitalista mas, que, de todo modo, acaba ajudando a realçar a importância de nossa lei protecionista do consumidor, editada há quase 30 anos. __________ 1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11. 2 Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores. 3 Preço da água mineral dispara e aumento pode passar de 40%, diz Procon-RJ. 4 Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade). 5 Ibidem, p.12. 6 Ibidem, p. 12.
Volto ao tema da responsabilidade do Estado nas catástrofes climáticas. Aliás, todo início de ano as chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileiras; e boa parte dessas catástrofes são previsíveis. Os acontecimentos envolvendo o drama das pessoas nos alagamentos, deslizamentos de terras, quedas de barreiras, destruição de imóveis etc nos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e outros são o retrato de uma política de omissão que, ao que tudo indica, infelizmente, repetir-se-á no ano que vem, assim como já aconteceu no ano passado e nos anteriores. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos. A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando centenas de mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer, passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio. De nada adianta ficar simplesmente acusando as vítimas depois das ocorrências, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada e também nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Faço, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização. Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente, o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e também pela vítima. Pensão Os familiares que são dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Do mesmo modo, a vítima sobrevivente pode pleitear pensão pelo período em que, convalescente, tenha ficado impossibilitado de trabalhar. Outros danos materiais Além da pensão, no cômputo dos danos materiais inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como, no caso de desmoronamento da habitação, seu preço ou o custo para a construção de uma outra igual e todas as demais perdas efetivamente sofridas relacionadas ao evento. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estadia e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Danos morais Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que no caso dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo. De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às famílias das vítimas, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto. Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé, intenção de causar o dano, ou regularmente repete os mesmos erros. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Um texto para o Natal

Mas uma vez, no último artigo do ano, eu abandono o tema do consumidor e publico um texto para a época de Natal. Desta feita, apresento um trecho do meu romance "A Visita". Trata-se do diálogo entre o personagem principal e Teresa, a misteriosa senhora que a todo momento frequenta a casa deste personagem e que dá título ao livro. Eis o trecho: Tereza começa a conversa: - Você é um homem de fé e de sorte. - Tenho de admitir que sim. Tive sorte. - Sabe o que dizem, né? Aproveite a sorte enquanto ela está a seu favor! (...) - Mas, nesse meu caso, parece até que os céus queriam me proteger. - Quem sabe... - Um anjo da guarda. - É mesmo. Fiz uma pausa, pois, ao mencionar "anjo da guarda", lembrei-me de uma passagem muito linda, contada pelo Flávio, que, junto do Benê, são meus amigos mais próximos. Disse para Tereza: - Acabei de me lembrar de meu amigo Flávio. - O que tem ele? - É uma história linda que ele me contou. É sobre um anjo da guarda. Quer ouvir? - Oba! Adoro histórias de anjos - disse Tereza, sorrindo e, como sempre, ajeitando-se na poltrona. - O Flávio é jornalista. Escreve num jornal e conta suas reportagens num programa de rádio FM. Ouça o que ele me contou. É de arrepiar! Um dia, ele estava sentado do lado de fora do estúdio da rádio, aguardando a hora de entrar no ar. Naquele momento, uma mulher de uns trinta anos mais ou menos entrou na antessala e sentou-se a seu lado. Os dois se cumprimentaram e ela perguntou se ele também participaria do programa. "Qual programa?", ele perguntou de volta. "O que começa às quinze horas". "Não", disse Flávio, "sou jornalista e entrarei no ar daqui a pouco, às quatorze e quarenta e cinco, para ler um boletim". Daí ele aproveitou e perguntou para ela: "A senhora vai participar? Qual é o assunto?". "Ah!", respondeu ela, "Hoje, vão comentar a respeito de um livro que trata dos anjos e eu vim contar a minha experiência". Flávio ficou intrigado e pediu: "A senhora pode me contar o que se passou?". "Claro!", disse ela sorrindo e contou o seguinte: "Eu tenho uma filha de cinco anos, a Gabriela, linda, fofa, o amor da minha vida. Quando ela era ainda bebê e dormia no berço, aconteceu algo assustador e mágico ao mesmo tempo... Eu moro num apartamento que fica no décimo-quinto andar do prédio. Era uma tarde ensolarada. Gabriela dormia no seu quarto e eu estava na área de serviço passando roupa. Tocou a campainha. Fui atender. Era uma menina de cabelos castanhos lisos caindo sobre os ombros que aparentava ter uns dez, onze anos. Ela segurava uma boneca nos braços e disse: 'Vim brincar com a Gabriela. Vá buscá-la, por favor'. Eu achei estranho e respondi: 'A Gabriela é muito pequena para brincar com você'. Nesse instante, ela aumentou o tom de voz e, de forma muito incisiva, olhando bem para mim falou: 'Ande! Pegue a Gabriela já!'. Eu senti um calafrio percorrer meu corpo inteiro e fui correndo até o quarto: Gabriela havia escalado a borda do berço e estava no parapeito da janela aberta. Nessa época, meu marido e eu ainda não havíamos instalado rede de proteção porque pensávamos que a Gabriela era muito pequena e que não havia perigo. Agarrei-a em meus braços e a mantive colada em meu coração que batia a mil" - disse ela com lágrimas nos olhos. E terminou: "Voltei para a sala: a menina não estava mais lá. Depois, perguntei para o porteiro e para outras pessoas do prédio: ninguém conhecia uma menina com aquelas características. Era o anjo da guarda da Gabriela. Graças a Deus!". - Adorei! É mesmo de arrepiar. - Não é? Muito legal essa história. Será que funciona assim? - Por que não? - É mesmo. Por que não? Mas, Tereza, tem a ver com sorte ou com fé? Você disse que, se a pessoa tem fé e almeja alguma coisa com muita vontade e concentração, ela consegue. Desde que seja para o bem, claro. - Sim. - E a pessoa recebe sinais de como deve agir. É isso? - Isso também. Às vezes, Deus manda buscar ou, então, manda um trem para a pessoa embarcar. Mas Ele não faz nada no lugar da pessoa... Você conhece aquela história do crente que morava à beira do rio e de quando vieram as enchentes? - Não. - É assim. João, muito crente em Deus, morava sozinho numa casinha à beira de um rio. Com as chuvas constantes, as águas começaram a subir e chegaram até o pé da porta da casa dele. Alguém bateu à sua porta e disse: "João, pegue suas coisas e vamos embora!". João respondeu: "Não. Deus não deixará nada de ruim acontecer comigo. Ficarei aqui rezando". As águas subiram mais. Quando estava na beira da janela da sala, um barco apareceu. Um homem que o conduzia falou com João pela janela aberta: "Vamos! Suba no barco porque as águas não param de subir". Mas não adiantou. Ele disse que estava protegido e ficaria ali rezando. Porém, as águas continuaram a subir. E, para não se afogar, João foi para o telhado da casa, onde ficou rezando. Surgiu um helicóptero. O piloto lançou uma corda com uma cadeira na ponta e, pelo megafone, falou: "Ei, você. Agarre na corda, sente na cadeirinha e aperte o cinto. Eu vou tirá-lo daí e levá-lo para um lugar seguro". João gesticulou que não iria e não foi. Permaneceu no telhado rezando. Só que as águas subiram mais e mais. Ele acabou morrendo afogado... quando chegou ao céu, João foi imediatamente falar com São Pedro. Disse: "Quero falar com Deus. Preciso fazer uma reclamação!". Vendo a aflição do homem, São Pedro abriu a porta e indicou a direção. João parou, então, diante de Deus e disse: "Como é que o Senhor foi deixar acontecer uma coisa dessas comigo? Eu acreditei tanto no Seu poder; acreditei o tempo todo. Fiquei rezando até o fim para que o Senhor me salvasse e morri afogado!". Deus respondeu: "Meu querido filho João, o que você queria que eu mais fizesse? Mandei baterem na sua porta, mas você não seguiu o homem. Depois, mandei outro te buscar num barco, mas você rejeitou. Então, enviei um piloto de helicóptero e você negou-se a sair de lá. Eu fiz a minha parte!". Ela acabou de falar, deu uma bela risada e disse: "Muito boa! Muito boa!". (...) Passou-se um breve período e ela emendou: - É assim mesmo que funciona. Deus faz a parte dele e a pessoa tem de fazer a dela. Às vezes, a dela é muito trabalhosa, às vezes é simples, como tomar um barco. E tem mais: acontece bastante de a pessoa encontrar um trem parado na estação e não perceber que deveria embarcar nele. O vagão está lá, de portas abertas, prontinho para o embarque e ela não entra. É ela quem deve dar o passo na direção certa. - Isso tem tamanho? - Como assim? - Isso vale também para as pequenas coisas? - Meu caro Luiz, a bondade, a caridade, a compaixão, o ato de ajudar alguém ou a si próprio não têm tamanho. Não é algo que se meça por quantidade, metragem, peso. O bem é sempre o bem não importa a quem nem como. O bem é uma virtude, uma qualidade. * Desejo Boas festas para todos!
quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Consumidor e meio ambiente: relação conflituosa

Chegando ao fim do ano, retomo o tema da relação consumidor-meio ambiente, aproveitando a reunião mundial do clima COP25, que se realiza em Madri. Parto, especialmente, do discurso da jovem ativista sueca Greta Thunberg, que apresentou uma série de dados mostrando a crise planetária em termos ambientais, sociais e humanos. Na verdade, os dados são conhecidos neste assunto, que se tornou evidente: o capitalismo global insiste em não mudar seus modos de produção e exploração e, por isso, o planeta continua em grande risco. De fato, os métodos de exploração não só das reservas naturais existentes, como de muitas das conquistas sociais nos vários países que compõem o mundo, se alteraram muito pouco e, ainda assim, nem sempre na melhor direção. Já passou muito da hora de uma efetiva mudança nos hábitos de consumo, não só aqui como em outros lugares. Para se ter uma ideia do que quero dizer, veja na sequência esses dados (que variam um pouco de acordo com a fonte, mas de todo modo indicam o problema). A produção e o consumo dos Estados Unidos da América, com um número de consumidores que corresponde a aproximadamente 5% da população do planeta, contribuem com cerca de 36% das emissões de gases de efeito estufa e consomem em torno de 25% da energia mundial. No que se refere aos países desenvolvidos, estes congregam um quinto da população do planeta. Esta minoria, porém, consome cerca de 80% de todos os recursos naturais existentes. Logo, ao contrário do que se propaga, a globalização é uma ilusão, pois não dá para "globalizar" o padrão de consumo dos EUA e dos demais países desenvolvidos. Precisaríamos de vários planetas para tanto. Esses dados mostram que é preciso mudar o foco, posto que, caso se perpetue o modelo de consumo dos dias que correm, não haverá salvação. Ao invés de se produzir mais e se consumir mais, a diminuição do consumo é que talvez pudesse ajudar a sustentar o planeta. Além disso e atrelado a isso, um outro elemento que talvez pudesse colaborar para que o planeta não viesse a ser destruído seria o da educação para o consumo, de tal modo que os consumidores pudessem tomar consciência de seu efetivo papel como protagonistas da sociedade capitalista e, também, percebessem que o regime consumista no qual estão inseridos não faz bem a seu bolso nem a sua saúde, nem a seu bem-estar e, claro, nem ao planeta. Para concluir, deixo algumas máximas de minha autoria, que dizem respeito ao modo de vida da sociedade em que vivemos, para reflexão de fim de ano: - Estamos na era das fusões de empresas e dos desempregados em profusões. - Do acúmulo de cartões de crédito fácil e abundante e das dívidas impagáveis. - Das dezenas de pares de sapatos nos armários das casas e das crianças andando descalças nas ruas. - Nunca tivemos tanto acesso à informação, mas nosso conhecimento é paupérrimo. - As pessoas sabem muito sobre automóveis, mas pouco sobre arte. - Muitos consumidores têm noção dos preços das cervejas, mas desconhecem o valor da solidariedade. - Tira-se foto de tudo, mas, realmente, não se aprecia quase nada.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

A doença das compras compulsivas se alastra

Volto ao tema do vício, que é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. Há vícios de todo tipo e um específico ligado às compras, contemporâneo e fruto da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e, também, é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles. Mas, veja leitor, que interessante: a pessoa compradora compulsiva não é aquela que se satisfaz com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode adquirir qualquer coisa que lhes surja pela frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra gerará satisfação. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, essa pessoa é uma consumidora típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares que as demais. Daí, ela acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ela mesma quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, joias etc. e com isso, às vezes, nem ela, nem as demais pessoas que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de colecionadora. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. Como eu costumo dizer, parafraseando Descartes: "Consumo, logo existo". Somos uma sociedade de consumidores e, infelizmente, as pessoas são vistas, avaliadas, medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem adquirir. E, no século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica. Além disso, o sistema capitalista compreendeu bem uma das questões de ordem psicológica, que poderia ser capaz de frear as vendas. Falo do dinheiro que se gasta quando se compra. Se uma pessoa tivesse que pagar em papel moeda toda e qualquer compra, saberia, ao menos quando carregasse as moedas, "o peso" de sua perda. Ela estaria trocando, por exemplo, alguns maços de papel moeda por um terno, um sapato ou uma bolsa. Trocaria muitos maços de dinheiro por uma viagem ao exterior e entregaria uma mala cheia dele para adquirir um automóvel. A pessoa "enxergaria" o quanto estava gastando. Mas, o comprador não percebe isso. Durante muitos anos, ele simplesmente passava um cheque, que representava o dinheiro e que, sintomaticamente, ele nem possuía concretamente, pois estava no banco. Quer dizer, estava num número numa conta. Nem no cofre da agência bancária estava. O sistema financeiro foi ampliando essa ocultação. Num primeiro momento, então, como disse, o consumidor passava um cheque, que representava o dinheiro que ele possuía. Mas, depois, por conta do sistema de créditos, ele passava o cheque sem nem mesmo ter o dinheiro. Com o cheque especial, o crédito que estava à disposição funcionava como uma tentação dizendo "me usa que eu te satisfaço". Isso é tão verdadeiro, que, com a "evolução" do sistema capitalista e seus modos de estímulo para as compras e controle dos consumidores, o cheque especial, que no início tinha de ser solicitado, passou a ser colocado na conta corrente -- acoplado à ela --, sem que o cliente pedisse. Fica lá, virtualmente, como uma possibilidade. Na realidade, uma provocação ao consumo. Mudou mais ainda. O cheque está desaparecendo. O sistema de cartão de crédito é hoje um outro fortíssimo estímulo às compras. Ele é, digamos, assim, mágico. Um pedaço de plástico que dá acesso aos bens materiais existentes no mercado. Com ele se pode, quase que literalmente, adquirir tudo o que existe. Aliás, o usuário do cartão nem precisa ter dinheiro. Na atualidade, com o espetacular incremento da web/internet e dos aplicativos, não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias online, os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele. Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas. Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença. Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. É claro que, se a oneomania for de uma pessoa de posses, com liberdade para gastar, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize e sem se endividar. Encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em várias cidades brasileiras os grupos de auto-ajuda intitulados "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", e que muito ajudam os doentes. Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas boas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.
quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Black Friday já faz parte do calendário

Que fomos catequizados e que adoramos copiar o que vem do estrangeiro é fato conhecido. Passamos dezenas de anos fazendo isso e continuamos. Como já comentei aqui, somos copiadores vorazes, inclusive de leis que não nos dizem respeito - como é o caso exemplar do regime dotal do casamento, copiado da Europa e introduzido no vetusto Código Civil de 1916. Estamos a todo vapor com o Halloween, que serve para empanturrar nossas crianças de açucares e gorduras. E, claro, chegamos à mais uma edição da Black Friday. Como se sabe, o termo foi criado pelo varejo nos Estados Unidos para nomear a ação de vendas anual, que acontece sempre na última sexta-feira de novembro após o feriado de Ação de Graças. Por lá, todo ano, o volume de vendas é muito alto, pois os descontos são realmente verdadeiros e os empresários norte-americanos querem se livrar do estoque antigo e, no lugar, colocar as novas mercadorias para as vendas do período natalino que se inicia. Mas, como não poderia deixar de ser, por aqui, nem tudo é desconto verdadeiro. Todo ano, os veículos de comunicação apontam dezenas de denúncias contra as enganações perpetradas por muitos comerciantes, que usam uma tática antiga: aumentar o preço na véspera ou alguns dias antes e depois aplicar um desconto para chegar no mesmo preço anterior (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais). Aumentar preço num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar no mesmo preço, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é, como se sabe, publicidade enganosa prevista no CDC: "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços." Além disso, o ato caracteriza o crime de publicidade enganosa: "Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena: Detenção de três meses a um ano e multa." E ainda o crime de informação falsa ou enganosa, este tanto na forma dolosa como culposa: "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa. § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena: Detenção de um a seis meses ou multa." Para terminar, lembro apenas que, naturalmente, descontos são bons... Se precisamos do produto ou do serviço!
quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Para entender o contrato de adesão

O contrato de adesão foi amplamente regulado no Código de Defesa do Consumidor. Logo, há quase trinta anos. No entanto, às vezes, ainda são encontradas dúvidas sobre sua forma e validade. Para entender a natureza dos contratos de adesão nas relações de consumo, proponho, então, que olhemos um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E essa sociedade tem uma origem bastante remota que precisamos pontuar, especialmente naquilo que nos interessa para entender a chamada sociedade de massa, com sua produção em série, na sociedade capitalista contemporânea. Parto do período pós-Revolução Industrial. Com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais para vender para mais consumidores (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para mais pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização de produtos e serviços. Essa produção homogeneizada, "standartizada", em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção é um modelo que deu certo; veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial teve um incremento, e na Segunda Guerra Mundial se solidificou. A partir da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações, da melhoria dos transportes etc., o modelo se fortaleceu ainda mais e cresceu em níveis extraordinários. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passou a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos se pudesse considerar a noção de globalização. Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo, destaca-se uma que interessa ao presente artigo: a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e se a reproduz milhares, milhões de vezes. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta certa quantia em dinheiro na criação de um único modelo, e depois o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de consumidores. Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade, quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Quem planeja a oferta de um serviço ou de um produto qualquer, por exemplo, financeiro, bancário, securitário a ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o digitaliza e/ou o imprime, distribuindo-o milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela lei 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor: no seu art. 54 está regulado o contrato de adesão. E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços, o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. Este é o modo de produção de produtos e serviços de massa do século XX. Anoto, todavia, que por força da tradição privatista, ainda há quem utilize uma hermenêutica típica das relações privadas para as relações de consumo e, especialmente, nas questões contratuais. Verifica-se, ainda, de vez em quando, uma espécie de memória privatista, que faz com que o intérprete leia o contrato de adesão com base na ideia do brocardo latino pacta sunt servanda, inaplicável às relações jurídicas de consumo. Sabe-se que nas relações contratuais no direito civil, pressupõe-se que aqueles que querem contratar sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo num pedaço de papel. São proposições organizadas em forma de cláusulas que, impressas num pedaço de papel, fazem surgir o contrato escrito. É a tentativa de delineamento objetivo de uma vontade, portanto, elemento subjetivo. É a escrita posta no contrato, o que o direito civil tradicional pretendia controlar. Então, quando nos referíamos às relações contratuais privatistas, estávamos fazendo uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que deviam representar a vontade das partes que lá estavam, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E, uma vez que tal fora feito, pacta sunt servanda, isto é, o pacto devia ser respeitado. Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é equivocado, porque o consumidor não senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC passou a controlar, e de forma inteligente. Vê-se-, pois, que esses pontos históricos do fundamento da sociedade contemporânea são importantes para a exata compreensão do contrato de adesão. Repito: em contrato de consumo deve-se esquecer o brocardo pacta sunt servanda.
quinta-feira, 7 de novembro de 2019

A tranquilidade do consumidor é viável?

Relembro aqui uma conversa que tive com um excelente jurista, enquanto ele e eu aguardávamos o embarque num aeroporto. Estávamos indo fazer conferência num Congresso. Ele reclamava da má formação oferecida pelas escolas de Direito, das falhas dos concursos públicos para as várias carreiras jurídicas e de como, apesar da aparente dificuldade que esses certames ofereciam, alguns dos aprovados e aprovadas não eram capazes de bem interpretar o sistema legal, de compreender o fenômeno social e jurídico em sua complexidade e, enfim, de exercer a atividade com as habilidades exigidas para a profissão. Muitos dos/das concurseiros (as), estudantes diuturnos das questões usualmente utilizadas, conseguiam, com esses estudos, ultrapassar o concurso público assumindo a carreira escolhida (ou na qual haviam conseguido entrar, pois tentavam muitas, em diferentes setores). E alguns/algumas dentre eles/elas ingressavam em carreiras públicas sem jamais terem trabalhado um único dia na vida. Saíam dos bancos escolares apenas como estudantes, iam para os cursinhos e ficavam por lá alguns meses e até anos. Daí, passavam no concurso e em breve estavam acusando, julgando etc. Mas, sem experiência alguma. Refletindo sobre o tema, eu disse: "Sabe, estamos aqui falando da área jurídica por que a conhecemos mais ou menos bem, desde a Faculdade de Direito até a vivência nas carreiras. Mas, algo me ocorreu... Pergunto a você: nós vamos embarcar daqui a pouco num avião. Será que a pessoa que faz a manutenção da aeronave, foi boa estudante? Será que tem experiência? Será que entende bem do riscado? Ou, melhor, será que o engenheiro responsável entende mesmo do negócio?" E prossegui: "Quando alguém contrata um advogado ou uma advogada, certamente, espera que o profissional ou a profissional saiba como agir. E se está aguardando um julgamento, acredita que o juiz ou a juíza saiba decidir e assim por diante. E, nós, pobres usuários das companhias aéreas? Com certeza esperamos que o avião esteja em perfeitas condições de voo, que o comandante ou a comandante (e seus auxiliares) esteja preparado ou preparada para assumir o comando da aeronave, que esteja em boas condições de saúde etc." "Sim", respondeu ele. "Isso vale para qualquer profissão. Se vamos ao consultório dentário, esperamos que quem nos atenda compreenda o que nossa boca mostra e como efetuar os procedimentos exigidos. E, no hospital, que nos avaliem corretamente...". "Estamos seguros de que nosso avião alçará voo, viajara e descerá em condições adequadas?" - perguntou. "Acho que nem pensamos nisso", conclui um pouco preocupado. De fato, quando embarcamos num avião, não pensamos em problemas (nem devemos pensar para não passarmos nervoso...). É pressuposto que tudo funcione bem. Inconscientemente, aceitamos que não só todos os envolvidos na atividade sejam profissionais gabaritados como estejam no gozo pleno de suas faculdades mentais e em perfeito estado de saúde, bem alimentados, com o sono em dia etc. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman diz que vivemos tempos "líquidos": estamos na idade da incerteza, isto é, tempos de estados líquidos em oposição à solidez representada pelos estados de certeza. Como obter algum tipo de tranquilidade em qualquer setor? Em termos de segurança nos aeroportos, os fatos nos dizem que, ao que parece, alguém está cuidando do assunto. Mas, o que sentimos quando há um ataque num aeroporto ou quando uma aeronave cai? Essa questão envolve, naturalmente, todo tipo de produto e serviço, produzido com mais ou menos técnicas e controlados com maior ou menor qualidade. Não há possibilidade de se obter 100% de certeza de que produtos e serviços sempre funcionarão adequadamente e a contento. Nos iludimos que sim ou, simplesmente, não pensamos nisso (o que parece ser a regra). É que, infelizmente, do ponto de vista da segurança dos produtos e serviços (e, também, da qualidade e da eficiência) é impossível que qualquer empresa ou órgão público consiga atingir o topo da certeza da inevitabilidade do dano decorrente de algum vício ou defeito. Por mais que se esforcem, por mais que desenvolvam controles de qualidade e segurança, alguma coisa sempre escapa por ser da própria natureza do produto ou do serviço (uma falha mecânica, um desgaste inesperado etc.) ou por envolver a natureza humana (pessoas que cometem seus erros ou suas loucuras...). Não há, pois, produto ou serviço sem vício ou defeito! Ou, como diz meu amigo Outrem Ego: "Até foguete da Nasa apresenta falhas...".
quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Halloween: o aprisionamento do consumidor

Há um pensamento atribuído a Aldous Huxley que cuida da ditadura perfeita. Não sei se é dele, mas poderia ser. É o seguinte: "A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão". (grifei) O tema, claro, era e é o da sociedade de consumo e o projeto de alienação dos consumidores. Coloquei essa abertura porque, em vários momentos, parece que as coisas são assim mesmo. E alguns eventos inventados para compras chamam bastante atenção. Hoje, 31 de outubro, volto ao assunto do Halloween. Esse evento demonstra os modos de controle que o mercado exerce sobre os consumidores em geral, bem como a dificuldade que existe para a tomada de consciência da possibilidade de libertação das amarras tão bem engendradas pelo capitalismo contemporâneo. 31 de outubro é o dia das bruxas. Já é parte do calendário comercial e, como já denunciei aqui, o pior de tudo, é que muitas escolas aderiram! São as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma gorda receita, vendendo bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. É verdade que algumas escolas, não conseguindo fugir do evento, estão começando a fazer atividades didáticas e lúdicas, sem o emporcalhamento de doces e guloseimas oferecidos em grandes quantidades e sem nenhuma função de educação ou saúde. Mas, é pouco, pois, infelizmente, tudo indica que o tal dia das bruxas, famoso nos Estados Unidos, instalou-se entre nós, alegre (ou de forma macabra) e impunemente. Pensemos um pouco nessa questão do Halloween no Brasil. O que, afinal de contas, as crianças brasileiras têm a ver com essa festa pagã? Nada. Trata-se de uma importação sem qualquer fundamento ou justificativa local. É apenas algo que o mercado deseja. Para se ter uma ideia do que está em jogo, nos Estados Unidos, a festa do terror, das bruxas e dos fantasmas já se tornou o segundo maior momento de faturamento do mercado, perdendo apenas para o Natal. Lembro que certa vez, diante da reclamação de meu amigo Outrem Ego a respeito desse dia, eu objetei que também tínhamos a Páscoa e mais ainda o Natal, este que, por muitos anos - e ainda até hoje - faz, por exemplo, com que comamos, em pleno calor tropical, comidas gordas, doces, frutos secos, nozes etc., alimentos típicos de lugares frios, de onde a festa foi importada. "É verdade", disse ele. "Mas, isso se deu em outros tempos. Eu pensava que atualmente nós pudéssemos lutar contra esse tipo de imposição; que poderíamos resistir". Tudo indica que não. De fato, a conscientização a respeito do controle exercido pelo mercado, algo que vem se esboçando desde fins do século XX, ainda é pequena. Mesmo reclamando e reivindicando direitos, o consumidor ainda está longe de escapar dessas armadilhas, que são inventadas a todo momento. No meu tempo de criança ou adolescente (há cinquenta anos) seria impensável um dia das bruxas no Brasil. Não sei quando começou. Mas, possivelmente há cerca de quinze ou vinte anos, alguma escola de inglês deve ter feito a programação para seguir o ritual norte americano. Depois, no ano seguinte mais uma escola e mais outra etc. Com a importação via tevê à cabo e também tevê aberta de cada vez mais enlatados americanos que reproduzem a comemoração (Basta ficar com o exemplo famoso do grande filme de Steve Spielberg, E. T., no qual o evento é retratado), aos poucos, os brasileiros foram se acostumando com a festa, como se ela também fizesse parte de nossa realidade. Daí, mais um ano, e a festa foi parar nas escolas; depois em baladas de adultos e, enfim, chegou o momento em que parece que ela tem a ver conosco. Evidentemente, o mercado, sempre de olho nas oportunidades, deu sua contribuição e eis que temos entre nós crescendo vigorosamente uma festa importada, sem qualquer fundamento cultural e mesmo sem sentido ritualístico. Se ainda existisse algum significado simbólico na festa, vá lá. Mas, nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e a obesidade infantil. O processo de controle é lento, mas constante. Aqueles que atuam no mercado são espertos o suficiente para entender um pouco a alma do consumidor e acabam descobrindo a necessidade de preencher os espaços existentes no lar, no convívio doméstico, na relação entre pais e filhos. Daí, na presente hipótese, oferecem, com essa estranha comemoração, mais uma boa desculpa de ocupação desse tempo, que fica, como quase sempre, intermediado pelo dinheiro gasto. É o consumismo enlatado e alienante, esteja ou não de acordo com nossas tradições.
quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Mais um dia das crianças na sociedade capitalista

Pronto. Mais um dia para compra de presentes! Vou relembrar essa história do nascimento de mais um dia comemorativo. Nos anos vinte do século passado, o deputado Federal Galdino do Valle Filho teve a ideia de homenagear as crianças, criando um dia para elas. A ideia vingou e, por intermédio do decreto 4.867, de 5 de novembro de 1924, o presidente Arthur Bernardes oficializou o dia 12 de outubro como o Dia das Crianças. Todavia, a data ficou esquecida por muitos anos. Mas, veja, meu caro leitor, que significativo: em 1960, a fábrica de brinquedos Estrela fez uma promoção conjunta com a Johnson & Johnson para lançar a "Semana do Bebê Robusto" e, com isso, aumentar suas vendas. A estratégia de marketing deu certo. Logo depois, outras empresas lançaram-se no mesmo projeto, divulgando a semana da criança para aumentar suas vendas e, no ano seguinte, os fabricantes fizeram renascer a data do antigo decreto. Assim, o dia 12 de outubro passou a ser comemorado como o Dia das Crianças, isto é, o dia em que as crianças ganham presentes. E, claro, época em que o mercado de produtos para crianças fatura alto. Na verdade, a ONU reconhece o dia 20 de novembro como o Dia Universal (ou Mundial) das Crianças, pois foi nessa data do ano de 1959 que foi publicada a Declaração Universal dos Direitos das Crianças. E, embora essa data seja, também, lembrada entre nós, é o dia 12 de outubro que conta, pelo menos em termos de compras. Pensemos nisso. Dia 12 de outubro é feriado nacional desde 1980, dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira oficial do Brasil. E, como no dia 15 de outubro se comemora o Dia do Professor, acabou-se juntando uma data n'outra, e nesta nossa terra de Macunaíma, criou-se a Semana do Saco Cheio: foram os estudantes universitários que, por volta dos anos oitenta do século passado, inventaram mais uma semana para enforcar aulas. E não é que pegou? Atualmente, essa semana fica sem aulas em muitos colégios e universidades. Já faz parte do calendário escolar. Mais um filão para o mercado: dia de presentes, precedido de semana de compras; feriado, semana sem aulas, pacotes de viagens, hotéis, turismo enfim. O capitalismo agradece. Mas, retorno às crianças. Com efeito, cabe aos pais decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. O primeiro caminho é descobrir o que dar. Tem-se, portanto, que refletir sobre a qualidade do presente. Haverá coisas úteis e porcarias. Coisas indispensáveis e outras desnecessárias. O mercado saberá oferecer de tudo. O marketing sedutor, aliado ao sistema de crédito e parcelamento consegue convencer até quem não pode comprar a adquirir produtos e se endividar (ou aumentar ainda mais seu endividamento). Há também a questão da quantidade. Quantos presentes uma criança deve ganhar de uma só vez? Como se trata de uma data específica para a criança e esta, às vezes, tem muitas pessoas à volta para presenteá-la, é comum que ela acabe ganhando muitas coisas. Acontece que é também comum que as crianças que recebam muitos brinquedos logo se desinteressem da maior parte deles. A criança que ganha muita coisa numa só ocasião tende a desvalorizar tudo ou escolhe um e abandona o restante. É preciso, pois, aproveitar a data para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. Assim, a criança pode aprender a valorizar o que ganha (como o adulto aprende a duras penas).
Já era para ter acabado, não é? Mas, parece não ter fim. O Código de Defesa do Consumidor fez 29 anos e nele a oferta e a publicidade enganosa são claramente proibidas. Sei que muita coisa mudou e melhorou. Mas, por que não acaba? Parece um vício. Como se para vender o fornecedor tivesse sempre que forçar um pouquinho. Há muitos casos. Vou narrar alguns quase inocentes. Ontem, resolvi assistir até o fim a um anúncio de cerca de 4 minutos na internet. Grande parte dele foi utilizado para mostrar a denúncia que um ex-técnico de uma empresa faz: a empresa em que ele trabalhou produzia smartphones e enganava os consumidores lançando novos modelos todo ano, mas sem muita inovação, vendendo-os a preços maiores e com componentes de pior qualidade. Além disso, utilizam a tática de deixar os modelos antigos mais lentos por atualizações realizadas. É uma acusação que vi anteriormente e mais de uma vez. O anúncio continua e diz que toda a equipe do técnico foi mandada embora porque o setor foi transferido para a China. E que foi oferecido a ele uma vaga por lá. Mas ele não aceitou e pediu demissão. Então, a equipe toda se reuniu e resolveu produzir um novo smartphone, que dura mais, com bateria maior e com componentes de ótima qualidade. O preço é o maior atrativo: cerca de R$1.600,00. Até aí Ok. Mas, o anúncio diz que é barato porque eles não gastam dinheiro em propaganda (Como assim?, pensei. Aquele anúncio era o quê?). E ainda por cima ofereciam 50% de desconto para os primeiros 5.000 que comprassem o aparelho. Aquilo que eu intitulo de "marketing de pressão". Poxa! Perdi cerca de 4 minutos para descobrir que se tratava de propaganda comum, com as mesmas técnicas das demais. Estava indo bem. Mas não gostei do final. Outro caso: na tevê há um anúncio muito reproduzido de uma empresa que vende essas maquininhas de fechamento de compras. O simpático ator diz em alto e bom tom: "Só um porcento de taxa!" Acontece que no mesmo momento em que ele fala "Só um porcento de taxa", em baixo, do lado direito de quem olha, aparece escrito "1 % nos primeiros três meses". Parece bobo. E é. Mas, o que espanta é que ainda se faça esse tipo de anúncio! Num outro, a presidente de uma montadora de veículos diz: "Cliente que não estiver satisfeito com o serviço não paga". Tomara que a empresa cumpra a promessa. O Procon de São Paulo, que está em alta, fazendo um trabalho excelente, poderia investigar essa montadora. Eu não sei se é verdade, mas vi que aparece na tela algo como "Ver instruções no site...". Será uma forma de enganar o consumidor? Pode ser que não ou que sim. Seria preciso checar. Confesso que não sei responder à pergunta que formulei no título deste artigo. Apenas constato que as coisas ainda são assim, sem precisar que fossem. Lembro que, excluindo o último caso, que exige avaliação, os outros dois narrados enganam e, repito, parecem até inocentes, mas não são. O que vejo é que eles ocultam um tipo de mentalidade que ainda existe no mundo da oferta e da publicidade, que acredita que é preciso enganar o consumidor de algum modo para poder vender.
Em tempos de ofensas verbais de todo tipo, é preciso muito cuidado com o uso das palavras e das comunicações. Eu já comentei aqui nesta coluna, que na sociedade capitalista contemporânea, há muito tempo os profissionais de marketing descobriram que, para vender produtos e serviços, a comunicação com seu público-alvo poderia ser feita de modo indireto, com subterfúgios, com imagens ao invés de palavras, com frases que não necessariamente falassem do produto nem do serviço a ser vendido etc.. Posso dizer, sem medo de errar que, a grosso modo, antigamente a oferta apontava para a coisa em si e, com o passar do tempo, foi buscando metáforas ou símbolos que pudessem agradar e atrair o consumidor para as compras. Por exemplo, antigamente um anúncio de tevê diria o seguinte a respeito de uma geladeira: "Nossa geladeira é linda, espaçosa, dura muito e mantém os produtos fresquinhos". Mais para a frente, o anúncio diria: "Se você tiver nossa geladeira em sua cozinha, irá brilhar e ser especial. Todo mundo admira quem tem uma geladeira como essa". A comunicação passou, digamos assim, de uma fase de apresentação concreta do bem a ser vendido para uma fase psicológica, social e até política da inserção do consumidor na sociedade. Cada vez mais, o criador da mensagem passou a investigar os anseios, desejos e interesses do consumidor. Não esqueceu, claro, das necessidades de seu público-alvo, mas passou a chamar a atenção de seu coração, de sua imaginação e, também, de sua própria imagem construída no meio social. O problema é que isso, de algum modo, afetou e afeta a comunicação feita pelas pessoas em relação aos fornecedores, às instituições, ao grupo social a que pertencem etc. Ingressou também no universo de comunicação entre as pessoas que discutem entre si e lutam para defenderem seus pontos de vista. Algumas palavras e frases têm indicações expressas e outras, são metafóricas, mas carregadas de sentido (por exemplo, "cdf", "rolezeiro", "patricinha", "playboy", "mauricinho" "coxinha", "mortadela" etc.). Mas, em todos os casos, quer nos expressos, quer nos indiretos, há grande chance de confusão e incompreensão não só de quem recebe a comunicação como também por quem a faz e, dependendo do ambiente, pode significar "bullying", ofensa à honra etc. Vejamos um exemplo: um discurso de um presidente é feito. Todos ouvem e em seguida surgem as interpretações das palavras proferidas das mais variadas formas possíveis. Ou surgem grupos muito díspares com duas interpretações completamente antagônicas. Tanto faz o que foi dito no discurso: um grupo diz "excelente" e outro afirma "uma catástrofe". O grande escritor e semiólogo Umberto Eco, já falecido, ensina que a vida é um paradigma das palavras. A partir da ideia de que semiose é um processo de produção de significados, diz ele que existe uma "semiose artificial da linguagem verbal, a qual se revela insuficiente para dar conta da realidade ou é usada explicitamente e com malícia para mascará-la, quase sempre com fins de poder"1. De todo modo, muitos termos, tomados ao pé da letra de forma descuidada, isto é, sem um estudo mais aprofundado, podem gerar equívocos importantes ou simplesmente engraçados. A subjetividade dos que opinam é de tal modo expressada que, muitas vezes, parece que cada lado está se referindo a falas tão diversas quanto seria possível. As palavras são as mesmas e proferidas na mesma ordem e entonação, mas uns leem e escutam uma coisa e outros algo totalmente diferente. Essa "flexibilização" da linguagem pode até ser útil para que se vendam produtos e serviços (e, naturalmente, às vezes, se revelam falsas e enganosas) mas, quando se trata de uma comunicação social e/ou política podem gerar uma boa confusão: fica difícil saber afinal do que se trata, quais são os verdadeiros interesses em jogo etc. Tudo bem, trata-se de democracia, mas que é confuso é. E fica difícil responder à pergunta do título: as palavras estão ganhando ou perdendo sentido? __________ 1 "Entre e mentira e a ironia". RJ: Editora Record, 2ª. Ed., 2006, págs. 30 e 31.