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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O Código de Defesa do Consumidor faz 30 anos

Amanhã, 11 de setembro de 2020, a lei 8.078/90, isto é, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), completa 30 anos de existência.  Como sempre tenho dito, a boa notícia é que o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, sempre lembrada tanto em setembro como em março (mês em que entrou em vigor; mês em que também se comemora o dia mundial dos direitos dos consumidores). Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil.                   E, claro, com 30 anos de idade seria de se esperar que a lei fosse cumprida por todos o tempo todo. Não é bem assim, mas certamente o CDC é uma lei que impactou positivamente as relações jurídicas de consumo e colocou o Brasil na linha de frente do que existe de mais moderno em termos de leis de proteção aos consumidores. Lembro de alguns fatos. No início de sua vigência, o texto assustou empresários em geral, muitos publicitários e os grandes conglomerados em especial. Eles pensavam que estavam perdendo sua liberdade de ação ou, simplesmente, queria continuar cometendo certos abusos (vários ainda cometem, infelizmente). Mas, aos poucos o CDC foi se firmando e deixando de ser o bicho-papão de que o acusavam  injustamente. Ao que me consta, ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como, também, da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento melhor qualificado, enfim, a norma ajudou o mercado a amadurecer. Vou dar um exemplo de algo que, talvez, poucos se lembrem: antes do CDC, a maior parte dos produtos não trazia estampada nas embalagens seu prazo de validade. Lembro-me bem que eu fiquei espantado com o curto prazo de validade de alguns produtos. Até água em garrafa ou em copo plástico tem curto prazo de vida sadia! Antes da lei 8.078/90, nós consumidores, provavelmente, tenhamos ingerido toneladas de produtos vencidos e sorvido milhares de litros de bebidas ultrapassadas. Como me contou meu amigo Outrem Ego: "Sou da época dos refrigerantes em garrafa, e me vem à memória quantas vezes, quando garoto, retirei a tampinha e com a mão limpei as marcas de ferrugem que estavam na boca da garrafa, antes de beber o refrigerante... Das vezes que adoeci, sabe-se lá quantas não estavam relacionadas com produtos e bebidas deteriorados". Pois bem, o susto dos empresários passou. A lei teve, como tem, muito boa eficácia - ou, como se costuma dizer no Brasil, é "uma lei que pegou". Não resta dúvida que as pessoas  passaram a descobrir que tinham muitos direitos garantidos pelo CDC e resolveram exigi-los,  não só por intermédio de ações judiciais quando foi preciso, mas também no dia a dia das compras fazendo exigências e reclamando aos próprios fornecedores ou aos órgãos de defesa do consumidor públicos e privados. Essa consciência que o consumidor adquiriu fortaleceu o mercado. Ao mesmo tempo em que os consumidores passaram a ficar mais escolados em matéria de consumo, os empresários também. Muitos destes, passaram a adotar a lei como elemento de marketing para atrair seus clientes, o que foi bem vindo e, de fato, dá resultados.  Essa é mais uma virtude da lei consumerista: deixou realçado que o  bom fornecedor é aquele que desenvolve seu projeto de negócio, claro, visando o lucro, mas respeitando seus clientes.                                                                        Citando meu amigo novamente, num exemplo que aqui já referi: "É quase tão simples como vender amendoim nas areias perto do mar". Explico: Na praia, o vendedor de amendoins passa gritando e dando uma amostra de seu produto para os banhistas; caminha alguns metros repetindo esse gesto para depois voltar. Enquanto ele vai, os veranistas comem o amendoim recebido - e de graça! - e quando ele volta, quem gostou tem a oportunidade de comprar um pacotinho, momento em que o negócio é concretizado. Desse singelo modo de oferecer e vender o amendoim, pode-se extrair um dos  melhores exemplos de como o fornecedor deve tratar o consumidor: em primeiro lugar o vendedor faz uma propaganda honesta, oferecendo de graça seu produto para que o consumidor experimente; depois ele somente vende para o consumidor que, de fato, quer comprar, uma vez que o produto foi previamente examinado, testado e aprovado. Quanto ao consumidor que experimentou mas não comprou, ainda assim o negócio foi bem feito. O custo do amendoim oferecido gratuitamente faz parte do custo total do negócio, porém funciona sempre como investimento, pois, até para aquele que não comprou fica a lembrança da boa imagem que o vendedor construiu, respeitando inclusive seu desinteresse em adquirir o produto. Por conta disso, esse consumidor torna-se um cliente em potencial, podendo tornar-se um comprador em outra oportunidade.
Acidentes causados por produtos e serviços acontecem constantemente. E, muitas vezes, feita e perícia técnica não se constata dolo ou culpa (negligência, imprudência ou imperícia)  do fornecedor. Por isso mesmo, é que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) regrou a responsabilidade civil objetiva do fornecedor. Teço alguns comentários a respeito. Uma das características principais da atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa a ação do empreendedor está aberta, simultaneamente, ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades  por parte do empresário, é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. Mas o risco é dele.  Muito bem. O CDC, compreendendo o funcionamento do binômio risco/custo (ao qual se deve acrescentar outro: custo/benefício) resolveu cuidar dos elementos ligados ao resultado da produção (no caso dos produtos) e ao resultado da prestação de serviços (que incorpora muitas vezes os produtos com os quais e através dos quais é prestado o serviço). Dito de outro modo: o CDC não se preocupou com os meios em que se produzem objetos ou se prestam os serviços, mas com a qualidade com que eles são entregues ao consumidor, controlando os vícios e defeitos e determinando trocas, devoluções de valores pagos e ressarcimento de prejuízos.  A responsabilidade civil objetiva do fornecedor prevista na lei tem, assim, foco na relação de causalidade que envolve o consumidor, o produto e/ou serviço e o dano. Há algo de bem inteligente nisso: o CDC sabe que, de um lado, com todo o incremento da tecnologia é bastante difícil provar culpa do fabricante, montador, produtor, prestador do serviço etc., assim como que, mesmo com todos os esforços, sincera e adequadamente empreendidos, por esses agentes econômicos, ainda assim haverá vícios e defeitos.   Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria muitas vezes lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como se dava no regime anterior ao CDC).  Cito um exemplo de um acidente ocorrido num parque de diversões, por falha em um dos brinquedos (algo que, infelizmente, ocorre). Temos que admitir que a falha do funcionamento do aparelho de diversões possa ter se dado sem que se verifique qualquer grau de culpa dos responsáveis.  É, num outro exemplo, algo corriqueiro no caso de vícios e defeitos ocorrentes nos veículos automotores (Aliás, é por ocorrências desse tipo, sem participação direta do fornecedor, que em larga medida o CDC prevê o recall, que tem sido largamente utilizado por esse setor).  Para deixar bem esmiuçado esse aspecto: como se sabe, de regra, o fabricante, produtor, prestador de serviços etc. não agem com negligência, imprudência ou imperícia exatamente por causa das consequências negativas para seu negócio. Como é notório, o negligente é aquele que causa dano por omissão (ex.:o motorista que não coloca óleo no freio do automóvel e, por causa disso, numa brecada, o freio falha, causando um acidente); o imprudente é quem causa dano por ação (ex.: o motorista que, dirigindo seu carro, passa o sinal vermelho de trânsito, atingindo outro veículo); e o imperito é o profissional que não age com a destreza que dele se espera (ex.: o médico que deixa um instrumento cirúrgico dentro do corpo do paciente operado).  Ora, pode muito bem acontecer - como, repito, ocorre regularmente na indústria automobilística - do fabricante de um aparelho de diversões públicas ou do prestador do serviço por ele responsável, agir dentro de todas as regras técnicas exigidas para a manutenção e funcionamento adequado do produto e ainda assim, este, em algum momento, apresentar falha de funcionamento. Ou seja, pode acontecer do aparelho gerar danos aos usuários a despeito de todos os esforços em sentido oposto feito pelo prestador do serviço; apesar de não se constatar nenhuma das características da culpa (nem dolo).  Do ponto de vista da lei, a situação é simples, posto que o prestador do serviço responde de forma objetiva, bastando ao consumidor demonstrar o nexo de causalidade entre os danos e o defeito do serviço.  Em termos técnicos e factuais, a questão é mesmo da inevitabilidade. Por mais que os sistemas de controle de qualidade se desenvolvam, o fornecedor não consegue impedir que, mais cedo ou mais tarde, seu produto ou serviço cause dano por vício ou defeito, sem explicação científica ou técnica, É algo que decorre da própria natureza das coisas.  Concluo com uma afirmação de meu amigo Outrem Ego: "Não há produto ou serviço sem vício ou defeito. Até foguete da Nasa apresenta falhas".
quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Os colecionadores de objetos

Num dia desses, li que um artista americano famoso e muito rico "coleciona" casas. Têm várias, em diferentes Estados americanos e todas muito grandes. A matéria dizia: "casas espetaculares". Ontem li que há jogadores de futebol endinheirados que "colecionam" automóveis. E veículos raros, que custam milhões de euros ou dólares. E nesta pandemia, todos eles estão bem escondidos em suas mansões... Pois, como sempre diz meu amigo Outrem Ego, "pessoa rica, cheia de dinheiro no banco, muitos bens no patrimônio, mas com um medo danado de mosquitos, vírus e outros perigos naturais" Já cuidei desse assunto aqui, mas como ele não sai de cena, volto ao tema, em plena pandemia. Muito bem, talvez quem tenha várias casas possa curti-las e quem tem muitos automóveis também. Pode ser. Mas, a questão das coleções na sociedade de consumo vai muito além. Aliás, por falar no meu amigo, lembro essa história que ele me contou: Certa vez, foi convidado para ir com outro amigo dele a um jantar na casa de um empresário. "Modo de dizer", disse ele. "É que o empresário era investidor de empresas falidas... Sei lá. Mas tinha muito dinheiro, pelo menos pelo que pude ver de sua casa e demais coisas e também do que ele falava". Pois bem. Conta meu amigo que lá chegando, foram convidados para irem ao andar debaixo, numa espécie de subsolo, para conhecer a adega de vinhos. Suntuosa, muito bem equipada e com um estoque de centenas de garrafas, muitas delas raras adquiridas em leilões internacionais e, claro, caríssimas. Todas devidamente catalogadas pelo próprio proprietário que, com muito orgulho, as mostrou dando ênfase em vários rótulos. Outrem Ego se animou. Pensou: "Me dei bem. Hoje tomarei um vinho que jamais poderia tomar". Mas, que nada. Feita a visita à adega, o anfitrião os levou para o andar térreo até outras três adegas dessas compradas em lojas de eletrodomésticos (embora das maiores e mais sofisticadas) e, abrindo uma das portas, escolheu duas garrafas de vinho e dali dirigiram-se à mesa para o jantar. Eram bons vinhos, mas nada que pudesse fazer frente aos raros e espetaculares da adega e que chegaram a passear nos sonhos de meu amigo. Depois, quando deu, perguntou ao outro amigo: "Ele não bebe os vinhos lá debaixo?". "Não", respondeu o amigo, "É só para ver. Não para beber". Outrem Ego retrucou: "Ele nunca beberá? Nem em ocasiões especiais? Ou com pessoas especiais?". "Acho que não.  Até porque, pela idade dele e com tantas garrafas armazenadas, para tomá-las todas ele já deveria ter começado a fazê-lo há muito tempo. E essas que ele bebe, ele compra a toda hora". Quando Outrem Ego me contou essa história, concluiu: "O sujeito compra um monte de vinhos só para olhar para os rótulos e garrafas? Ele as admira como se fossem troféus! Se ainda guardasse como investimento, se deixasse os vinhos envelhecerem e depois os vendesse... Ou, então, podia guardar as garrafas vazias junto das avaliações feitas após ter bebido o conteúdo!".  Há, é verdade, uma tradição na coleção de objetos. Coleciona-se selos, moedas, joias etc. e que remontam a tempos antigos, como comprovam as exposições de museus. Mas, com o avanço da produção e reprodução cada vez mais precisa e mais barata, os modos de colecionar acabaram crescendo. Naturalmente, coleciona-se figurinhas até hoje, mas até isso é diferente de nosso romântico tempo de criança. Com a facilidade das compras e quantidade de ofertas, muitas pessoas passaram a colecionar uma série de objetos. Coleciona-se canetas, bolsas, sapatos, gravatas, ternos, vestidos, automóveis (!) etc.  Claro que isso é problema de cada um. Quem pode, acaba fazendo se lhe aprouver, mas que é estranho manter certas coleções é. Quero dizer, se for mesmo para estabelecer uma coleção autêntica, com catálogo e demonstração como num museu (não importando nem local nem tamanho) talvez se justifique. O problema, ao que parece, está mais relacionado ao fato de, muitas vezes, a pessoa guarda coisas, repetidas ou não, para nunca usar e daí ela perde a finalidade. Já se disse que a sociedade capitalista é da abundância, mas, claro, isso não corresponde à realidade. Abundam produtos e serviços, mas faltam condições básicas de sobrevivência para milhões de pessoas. Aliás, toda vez que uma empresa coloca no mercado algo novo, não é a abundância sua característica, mas sua falta para a maior parte dos que não podem comprar. Então, nessa terra de escassez, manter produtos guardados sem finalidade pode ficar sem sentido. Evidentemente, que há muitas coisas que se pode ter em casa para um dia usar de verdade. Se a pessoa mantém guardados livros, ela certamente poderá utilizá-los. Aliás, esse é o exemplo típico de coleção que vale a pena ter. Mesmo que nós compremos um livro para apenas um dia no futuro lê-lo. Quem sabe, num dia de chuva, a pessoa olhe para o livro na estante e, finalmente, resolva lê-lo. Vale mesmo a pena tê-lo ali por perto (Eu ainda torço para que o livro impresso sobreviva!) Lembro-me de uma entrevista que li com Umberto Eco. Não sei exatamente os números que o entrevistador usou. Mas, ele dizia que uma pesquisa apontava que milhões de leitores do famoso escritor italiano haviam comprado o último livro que ele publicara, mas que apenas metade (não sei o percentual exato, repito) o havia lido e perguntava o que ele achava disso. Sua resposta foi a de que tudo indicava que as pessoas queriam ler o livro, mas estavam esperando a oportunidade para fazê-lo. Tê-lo comprado era algo importante porque quando surgisse a oportunidade, elas iriam lê-lo. Penso que, realmente, vale a pena comprar livros e guardá-los ainda que a leitura somente ocorra no futuro. Mas, valerá guardar gravatas? Um homem precisa mesmo ter em seu armário vinte ou trinta gravatas (ou mais)? Uma mulher vinte bolsas ou vinte sapatos (ou mais)? Aliás, como o design desses produtos varia com o tempo (quero dizer, com a moda imposta ao comportamento social, que muda com o passar do tempo), muitos deles ficarão sem utilidade e muitos sequer serão usados. É isso. Apenas uma apresentação de uma questão que talvez permita uma reflexão sobre os nossos modos de consumo, com ou sem pandemia.
Bem, em plena pandemia, temos uma greve de um serviço essencial. Não sei se ao sair publicado este artigo a greve dos funcionários dos correios ainda continua, mas, ainda que tenha acabado, penso valer a pena tratar do assunto, pois sempre demora algum tempo para o serviço retornar ao normal e até lá vários danos já terão sido causados. E, claro, não é a primeira vez que trato do tema nesta coluna, porém, como os fatos se repetem, me vejo obrigado a voltar a cuidar dos direitos dos consumidores e dos fornecedores nesse período de greve. Evidentemente, todo dano causado aos usuários é de responsabilidade primeira da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor: ela responde pelos vícios ou defeitos de seus serviços, o que inclui, naturalmente, a ausência destes. E não há necessidade de que seja apurada sua culpa, eis que a sua responsabilidade é objetiva e decorre da exploração da atividade empresarial desenvolvida e seu risco. O empreendedor público, privado ou de atividade privatizada explora o mercado de consumo e a própria exploração da atividade gera risco social, independentemente de sua vontade. É lógico que, por exemplo, quando uma correspondência entregue pelo consumidor aos serviços do correio não chega a seu destino no prazo ou simplesmente se extravia, essa falha não se dá por interesse da empresa. Ela não decorre da vontade dos administradores da ECT, mas da atividade em si, eis que falhas sempre existirão no sistema de leitura ótica, na incorreta observação do pessoal que faz seleção dos envelopes e pacotes, no transporte etc. Portanto, o dano existirá, apesar da vontade em sentido contrário dos administradores e funcionários. A lei sabe disso. Ela sabe que, apesar do esforço do prestador do serviço, em algum momento, por evento imprevisto, o serviço falhará, causando danos ao consumidor. Naturalmente, a responsabilidade é a mesma na sua ausência, como a que ocorre no período de greve e que persistirá mesmo após seu fim por mais algum tempo até que o serviço se normalize. Por isso tudo, a lei estabeleceu a responsabilidade objetiva. Basta a constatação do serviço contratado e seu defeito para que possa ser pedida indenização. De fato, a ausência de um serviço como o dos correios sempre gera danos em larga escala, atingindo fornecedores e consumidores. Para o funcionamento dos serviços em massificados, como os de telefonia, tevês a cabo, cartões de crédito, empréstimos bancários etc. e/ou todo tipo de serviço regular e, também, de venda de produtos é fundamental o serviço dos correios. Isto porque, é através dele que a maior parte das faturas é entregue mensalmente para pagamento embora, atualmente, muitas delas estejam sendo entregues via web/internet, aplicativos, e-mail etc. Entretanto, o não recebimento de uma fatura/boleto não retira a responsabilidade do consumidor em pagá-la no prazo se o credor manda as faturas pelo correio mas, simultaneamente, coloca à disposição do consumidor outro modo de quitar o débito. Cabe ao fornecedor entregar o documento antes da data do vencimento. Todavia, com a paralisação dos serviços do correio, a entrega fica prejudicada. O fornecedor, então, tem que oferecer uma alternativa de pagamento ao consumidor. As segundas vias devem ser oferecidas via e-mail, acesso ao site, por ligação telefônica etc. Se essas segundas opções são oferecidas, cabe ao consumidor utilizá-las para o pagamento da dívida. Aliás, é bom também lembrar que, mesmo quando os serviços dos correios não estão paralisados, isso não impede que alguma correspondência não seja entregue. Logo, até fora desse período crítico, pode acontecer de o consumidor não receber fatura para pagamento dentro do prazo ou simplesmente não a receber. Mas, de outro lado, se o consumidor não recebe a fatura para pagamento nem tem à sua disposição outro meio para fazê-lo, não se pode imputar a ele a responsabilidade pela quitação da dívida no prazo. Não tem sentido culpá-lo pelo que ele não fez. É risco do fornecedor entregar a fatura com tempo suficiente para pagamento, risco esse que não pode ser repassado ao consumidor. Todavia, o consumidor pode ter problemas nessa questão. É que, para, eventualmente, tentar não ser responsabilizado, o consumidor tem que provar que não recebeu a fatura, o que é muito difícil de fazer quando ela não é entregue. Dá para fazer a prova, por exemplo, se o consumidor avisou por escrito seu novo endereço para recebimento da fatura e ela foi enviada ao antigo ou quando o próprio correio coloca carimbo de entrega atrasada (Nesse caso, é a ECT que deve ser responsabilizada pelo atraso). No entanto, afora essas exceções, o consumidor acaba sendo responsabilizado pelo atraso. Por isso é que se aconselha que o consumidor mantenha uma agenda com datas dos vencimentos de suas faturas regulares. Se, até a véspera do vencimento, ainda não recebeu alguma, então, ele pode e deve entrar em contato com o credor, solicitando segunda via. Essa é uma regra geral para o dia-a-dia de todos os consumidores que, evidentemente, nesse período de greve, deve ser imediatamente seguida. (Anoto que, para aquele que não faz esse tipo de controle, a saída é pegar as contas do mês anterior, ver as datas dos vencimentos e checar o prazo que existe para pagá-las). Atualmente, todos os grandes fornecedores mantêm Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) e/ou sites, nos quais é possível obter uma segunda via da fatura. Se o credor não tiver esse tipo de serviço, como já disse acima, ele é obrigado a dar outra alternativa para pagamento, como, por exemplo, envio do boleto via e-mail ou apresentação de dados bancários para depósito em conta (nº de conta corrente, banco e agência, número do CNPJ - se for pessoa jurídica - ou CPF - se for pessoa física). Repito: se o credor não der alternativa, o consumidor não pode ser responsabilizado pelo atraso. Naturalmente, uma boa atitude dos fornecedores - que é o que se espera -- é a de não cobrar multas daqueles que, eventualmente, pagarem suas faturas fora do vencimento no período de greve, pois não se pode responsabilizar o consumidor que pretende pagar suas dívidas se ele tem dificuldade em fazê-lo.
quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Afinal, fila é boa ou ruim?

Agora, é tudo muito rápido. O sistema capitalista, cada vez mais veloz, se impõe como uma perspectiva necessária de consumo, numa espécie de círculo que aprisiona o consumidor: Este tem de consumir porque é isto que alimenta sua vida e como esta não pode ser preenchida satisfatoriamente com produtos e serviços, então a saída, é consumir mais. Tudo numa correria constante e cada vez maior. O mercado oferece economia de tempo, bem-vinda, permitindo que o consumidor ao invés de ir ao banco, faça as transações em casa; que, ao invés de ir até as lojas, adquira produtos pela internet e os receba em sua residência; que converse com seus amigos ou faça negócios via internet sem ter que atravessar o trânsito das cidades, ganhando, pois, tempo. Em tudo isso e em muito mais, há mesmo economia de tempo, mas esse tempo ganho é gasto com consumo sem fim e urgente. Os pacotes de viagem são um bom exemplo desse modelo: é oferecido que o consumidor "conheça" toda a Europa em apenas quinze dias! O consumidor chega na cidade, é levado para o hotel, hospeda-se, desfaz as malas, sai de ônibus, este para em alguns pontos, ele tira muitas fotos, volta para o hotel, toma banho, sai para jantar com o grupo em algum restaurante, dorme, refaz as malas, acorda cedo, é levado para o aeroporto, viaja para outra cidade; e começa tudo de novo. Enfim, ao cabo de quinze dias, muitos deles gastos em aeroportos, ônibus e fazendo e refazendo malas, o consumidor leva para casa centenas de fotos de algumas cidades, como se tivesse mesmo conhecido a Europa inteira. E esse tipo de pacote é um grande sucesso. E, como disse, nessa urgência, é importante não deixar o consumidor perceber o tempo passar. E nas filas, o que acontece? O que sente o consumidor? Sim, porque há filas reais e virtuais. Há filas boas e filas ruins. Num restaurante, por exemplo, a fila é sinal de qualidade. A busca por ingressos de shows e jogos de futebol muito aguardados sempre geram filas quilométricas e quando os ingressos são vendidos via web/internet ocorre até congestionamento na rede. A verdade é que há filas inevitáveis, como são esses dos exemplos acima de shows e eventos muito aguardados. E isso não só não é irregular, como raramente leva algum consumidor a reclamar (há, ao contrário, comemorações de alguns que conseguem os ingressos. Há, também, exatamente por causa disso, os conhecidos problemas com os cambistas que adquirem esses bilhetes para revendê-los, assunto que não interessa aqui. Aliás, há também técnicas de fura-filas, algumas oferecidas pelos próprios fornecedores, tema que já abordei nesta coluna). Os fornecedores podem, em algumas circunstâncias específicas trazer algum alívio para os consumidores que aguardam nas filas. Nos restaurantes, quando há espaço, são oferecidos aperitivos e petiscos para quem aguarda. E veja leitor esse caso que refiro a seguir. Trata-se de um case de um supermercado do Estado americano de Connecticut, que é elogiado por prestar um ótimo serviço ao consumidor e que usa a seguinte tática: Quando as filas nos caixas passam de três pessoas, seus funcionários começam a distribuir doces, balas, chocolates e outras guloseimas para quem espera e aproveitam para fazer pesquisa sobre os produtos. Desse modo, o tempo passa mais facilmente e pesquisas que interessam são feitas. A ideia é tornar agradável a espera inevitável. E a isolamento ocasionado pela pandemia, acabou gerando filas sem sempre desejáveis. Mas, era previsível. É que muitos serviços foram paralisados. E se nós levarmos em conta os serviços essenciais oferecidos a milhares e até milhões de consumidores, que ficaram suspensos por semanas, quando de seu retorno, as filas não podem ser evitadas. Além disso, pelos procedimentos de resguardo da saúde, o atendimento fica mais dificultado. Dou um exemplo, por todos: centenas de pessoas fizeram uma longa fila em frente à sede do Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt, no centro de São Paulo, na avenida Cásper Líbero, para tirarem a carteira de identidade (RG) na manhã dos dias 11 e 12 deste mês1. Esse serviço também era realizado no Poupatempo, cujas unidades foram fechadas em função da pandemia. Daí, sem alternativa, os interessados foram ao único local existente neste momento para esse tipo de serviço. Não tem jeito: no início do retorno ao atendimento dos serviços que estavam paralisados, filas se formarão por causa da demanda represada. Isso não significa que haja má prestação do serviço, mas pura e tão somente comparecimento simultâneo de muitas pessoas aos locais de atendimento. Até retornarmos à normalidade, esse tipo de fila pela volta dos serviços subtraídos pelo isolamento da pandemia continuará a existir sem que haja, repito, necessariamente, uma má prestação do serviço. ____________ 1 clique aqui.
quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O que é preço mesmo?

A pandemia acelerou uma forma de fixar o preço dos produtos e serviços oferecidos. Quase como um vírus, o método parece que afetou quase todos os anunciantes. Eu, mais de uma vez, perguntei: o que é preço? Respondo que é o valor que o fornecedor pretende receber pelo produto ou serviço oferecido. Naturalmente, o preço é sempre à vista. Isto é, o preço é sempre o de seu valor presente. O que pode variar é a forma de pagamento: à vista, a prazo, em parcelas, em dinheiro ou pelo cartão de crédito, via boleto etc. E as liquidações? Bem, elas eram aquele momento - às vezes, muito aguardado pelo consumidor - em que os produtos e os serviços eram vendidos com descontos (grandes ou pequenos). Ainda é assim na black Friday (embora, haja muita fraude por aí...) e em outras liquidações sazonais. Pois bem. A moda, agora, generalizada é fixar o preço com desconto. Isso! Parece que não existe mais preço certo e sim preço "com desconto". Sempre. Até em curso de em Faculdade, graduação, especialização, em várias modalidades, o que inclui, direito, o preço já aparece com desconto. "Aproveite: 30% off" "Compre agora: 50% de desconto" E por aí vai. Claro que o consumidor gosta de desconto. Mas, se o preço é fixado logo de início com desconto, então, se conclui que não há desconto. Simples assim. Isso porque quem fixa o preço é o fornecedor. Se ele ia fixar, por exemplo, em R$100,00, quando desse o desconto seria menor do que aquele preço inicial. Mas, não. Ele fixa em R$200,00 e dá 50% de desconto para chegar no valor querido no começo. Pegou! Sei que não é ilegal, pois é claramente apresentado. Mas, em alguns casos beira ao ridículo. Há, por exemplo, um anúncio que aparece insistentemente nos canais pagos que oferece uma "cinta para emagrecimento" (não vou entrar no mérito sobre ser enganosa ou não a publicidade, pois não é o escopo do presente artigo...). Muito bem. No referido anúncio o preço aparece com 80% de desconto. Isso! 80% de desconto! E não é nenhuma promoção, pois o anúncio está no ar há semanas. Há mais. O anúncio diz que se o consumidor compra uma cinta, ganha outra de presente! Ou seja, com 80% de desconto. O preço é de apenas 20%. Ganhando mais uma, são 2 por 20%. Logo, uma custa apenas 10%. Então, o preço do produto é de 10% do valor anunciado. É o pagamento é feito em 10 parcelas sem acréscimo. Assim, o consumidor compra o produto pagando por ele 1% ao mês (por 10 meses) para atingir os 10%. Será mesmo que o consumidor compra por causa disso? Meu caro leitor, com pandemia ou sem pandemia do coronavírus, o fato é que na sociedade capitalista existe uma outra pandemia eterna, que é essa de tentar vender a qualquer custo (com altos descontos...), mesmo sendo assim tão pueril.
quinta-feira, 30 de julho de 2020

O prazo de validade dos produtos alimentícios

Com ou sem pandemia, os produtos alimentícios colocados à venda devem ter prazos de validade claramente indicados. Vou cuidar de alguns aspectos que envolvem essa questão e que, nem sempre é bem compreendida. Anoto, inicialmente, que não existe proibição para que um produto, cujo prazo de validade esteja para vencer seja comercializado. Desde que, claro, a data fatal seja apresentada de forma evidente para o consumidor. Aliás, é exatamente por isso que alguns supermercados fazem promoções oferecendo produtos com descontos altíssimos (70, 80 ou 90%): estão vendendo produtos cujo prazo de validade expirará em curto espaço de tempo. Naturalmente, cabe ao consumidor decidir comprar ou não, mas se o fizer é ele que deve consumir o produto rapidamente, dentro do prazo da validade que ainda resta. Quanto aos produtos oferecidos fora do prazo, não resta dúvida de que a presunção é a de que eles não podem mais ser consumidos. E, se não podem ser consumidos, não podem ser vendidos. A questão jurídica relevante é a de que, o prazo de validade é fixado pelo produtor: é ele que detém o conhecimento adequado para definir quanto tempo dura seu produto. Se ele próprio fixa uma data, a partir desta o produto tem que ser descartado. Muitos consumidores fazem uma confusão nessa questão do prazo de validade porque, em sua casa, às vezes, eles ingerem um produto vencido há um, dois ou até mais dias e não sofrem nenhum problema de saúde. Se eles fazem isso, o problema é deles, obviamente. O que acontece, na prática, é que o produtor sempre deixa uma margem de tempo de sobra, pois sabe que o consumidor pode consumir no último dia ou até comprar no último dia do prazo de validade (como ocorre nas promoções) e precisa consumir sem sofrer mal algum. Então, sempre existe uma margem de tolerância para depois. Se assim não fosse, seria como num passe de mágica: o requeijão vence dia 10. No dia 11 ele apodrece? Não. E isso é que geram algumas discussões. Para o Código de Defesa do Consumidor (CDC), o prazo é um limite formal que deve ser respeitado. É presunção de que o produto está impróprio para o consumo. A norma é clara nesse sentido: "§ 6° São impróprios ao uso e consumo: I - os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos;" (Artigo 18 do CDC) Mas, do ponto de vista penal, surge uma discussão. Na hipótese, incide a Lei nº 8.137/90, cujo artigo 7º, inciso IX dispõe: Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo: (.) IX - vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo; Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa" Uma das condições impróprias é, como vimos, o produto estar com prazo de validade vencido. A discussão que se trava, então, diz respeito ao fato de que o crime seria formal e sua aplicação pura e simples implicaria num delito gerado por responsabilidade objetiva, algo inaceitável no campo penal. Daí, surgir a discussão sobre se deve ser feita perícia para constatar se o produto que estava fora de prazo, realmente estava impróprio para consumo ou se bastava constatar que estava fora do prazo, especialmente porque quem fixa esse é o produtor. Há decisões judiciais nos dois sentidos. Levado um desses casos ao Superior Tribunal de Justiça, ficou decidido que havia de se fazer prova de que o produto estava mesmo impróprio para o consumo. Cito um trecho do Acórdão: "A materialidade do crime descrito art. 7º, inciso IX, da Lei n. 8.137/1990 apenas se perfaz com a realização da perícia, não sendo possível iniciar a ação penal sem a constatação da materialidade delitiva. De fato, cuidando-se de crime que deixa vestígios, revela-se indispensável a perícia, conforme estabelece o art. 158 do Código de Processo Penal, a fim de aferir a efetiva impropriedade do alimento para o consumo humano" (Habeas Corpus nº 412.180 - SC, Relator Ministro Ribeiro Dantas, j. 12-12-2017, v.u.).
quinta-feira, 23 de julho de 2020

Os direitos dos consumidores idosos - parte 2

Continuo, hoje, apresentando alguns aspectos dos direitos garantidos aos consumidores idosos no Brasil, focando no Estatuto do Idoso (EI: Lei 10.741/03). Planos de saúde Com efeito, o EI regra alguns direitos que o idoso goza no que diz respeito à proteção à sua saúde. Ressalto, nesse ponto, um dos aspectos mais importantes, o de que ficou proibida a cobrança de valores diferenciados ao idoso pelos Planos de Saúde. A discriminação em função da idade ficou vedada (§ 3º do art. 15). Assim, com o estabelecimento dessa norma, ficou simplesmente proibido o aumento da contraprestação pecuniária dos usuários-idosos dos planos privados de assistência à saúde. Descontos em ingresso O consumidor-idoso tem direito a 50% (cinquenta por cento) de desconto nos ingressos para toda e qualquer atividade de diversões públicas, tais como eventos esportivos, culturais, artísticos e de lazer (art. 23, EI). Desse modo, cinemas, teatros, estádios de futebol etc. somente poderão cobrar metade do valor de face dos ingressos. A lei nada fala a respeito da qualidade dos assentos nos locais em que os serviços de diversões e culturais estão sendo oferecidos e todos sabem que muitos deles cobram preços diferentes em função da localização: arquibancada, geral, numerada nos estádios de futebol; galeria, plateia, balcão, camarote nos teatros, etc. A interpretação que se deve dar ao texto é, evidentemente, que cabe ao consumidor-idoso escolher o assento e pagar metade do preço, independentemente de sua localização. Para exigir o desconto, basta que o consumidor-idoso apresente qualquer documento que comprove sua idade. As normas do capítulo no qual está inserido esse direito nada dizem a respeito, mas por analogia com o § 1º do art. 39 (que cuida do transporte), entendo que é o máximo que o fornecedor pode exigir. Serviços de transporte No que respeita aos transportes públicos, o EI fixa uma série de direitos: a) aos consumidores-idosos usuários dos serviços de transporte coletivo urbano e semi-urbano é assegurada: a1) a gratuidade. Essa regra vale para os idosos com idade igual ou superior a 65(sessenta e cinco) anos e estão excluídos da garantia os serviços de transporte seletivos ou especiais prestados simultaneamente aos regulares; a2) as empresas de transporte coletivo deverão reservar 10% (dez porcento) dos assentos para os idosos, devidamente identificados; b) no transporte interestadual: b1) fica assegurada a reserva de 2 vagas gratuitas por veículo para os idosos com renda igual ou inferior a dois salários-mínimos; b2) sempre que o número de idosos interessados numa viagem específica exceder as duas vagas reservadas, os demais (que perceberem até dois salários-mínimos) terão direito ao desconto de 50% no preço da passagem. O artigo 41 garante aos idosos 5% de vagas "em estacionamentos públicos e privados", que deverão "ser posicionadas de forma a garantir comodidade" na sua utilização, mas remete a regulamentação à lei local, o que dificulta sua implementação. Já o art. 42 garante prioridade no embarque em todo o sistema de transporte coletivo, de modo que os prestadores de serviços em geral devem cumprir tal regra tanto nas rodoviárias, como nos portos e aeroportos. A propósito, anote-se que nos embarques feitos em aeroportos, as companhias aéreas têm de dar preferência aos idosos juntamente com pessoas com crianças de colo e portadores de deficiência. Aponto, e repito, que, para o idoso ter acesso a todos esses benefícios, basta que demonstre a idade mediante a apresentação de qualquer documento pessoal (§ 1º, art. 39, EI). Internação do idoso As entidades de atendimento do idoso, quer sejam governamentais ou privadas, estão sujeitas à inscrição de seus programas junto aos órgãos competentes existentes: Vigilância Sanitária e Conselho Municipal da Pessoa idosa e, na falta deste, no Conselho Estadual ou Nacional da pessoa idosa (Parágrafo único do art. 48). A oferta dos serviços feitas por essas entidades está regulada pelo CDC (art. 30 e seguintes), assim como o contrato a ser firmado deve obedecer ao comando da lei de proteção ao consumidor (arts. 46 e seguintes), mas o EI, no seu artigo 50, regrou especificamente o mínimo no que respeita a oferta e contratação. Obrigou a que seja feito contrato escrito; determinou a oferta de uma série de itens no que diz respeito à qualidade dos serviços oferecidos (incisos II a XVII), dentre os quais se destacam a necessidade de criar espaço para o recebimento de visitas (inciso VII), a obrigação de fornecer atividades educacionais, esportivas, culturais e de lazer (inciso IX), o dever de manter arquivo atualizado com todas as informações referentes a cada idoso individualmente, tais como data de ingresso na entidade, nome do idoso e de seu responsável, com endereço atualizado, relação de seus pertences - cujo recibo tem de ser oferecido na entrada, conforme inciso XIV --, valores cobrados a título de preço e contribuições, assim como suas alterações e todos os demais dados que envolvam o idoso (inciso XV). Conclusão Estão aí, pois, alguns direitos estabelecidos em lei a favor do consumidor-idoso. Resta a esperança de que algum dia, em nosso país, os idosos possam mesmo ser respeitados, o tempo todo, com ou sem lei!
quinta-feira, 16 de julho de 2020

Os direitos dos consumidores idosos - parte 1

Os idosos, por sua condição de idade mais avançada, receberam, nos últimos anos, em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, proteção advindas de leis especialmente desenhadas para tanto. Há normas que protegem os idosos com problemas de saúde e outras que simplesmente garantem direitos especiais a todos. Aliás, existe um movimento mundial de vários setores do mercado capitalista que oferecem produtos e serviços aos idosos para que eles possam bem viver, independentemente de ainda estarem trabalhando ou aposentados. E na atual crise de isolamento com a pandemia do Covid-19, os idosos tiveram que ser tratados de forma especial porque compõe um grupo de risco maior que as demais pessoas. E isso, independentemente de possuírem algum problema de saúde. Se tiverem, a situação se agrava. Cuido, então, de apresentar um panorama dos direitos garantidos aos idosos no Brasil. Começo pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90-CDC), que considera os idosos consumidores especialmente vulneráveis e, na sequência, comento algumas regras firmadas no Estatuto do Idoso (EI: Lei 10.741/03). Em primeiro lugar, lembro que, por força de expressa disposição legal, o consumidor é considerado vulnerável porque, no mercado de consumo, ele é apenas aquele que atua no polo final, sem ter condições de saber como os produtos e serviços são fabricados e oferecidos, quais são suas reais condições de operacionalidade, funcionamento, qualidade; se as informações fornecidas são verdadeiras ou não; se, inclusive, ele precisa mesmo adquirir determinado produto ou serviço etc. Enfim, o consumidor é aquele que age, digamos assim, passivamente no mercado de consumo, na medida em que ele não determina nem conhece os modos de produção, os meios de distribuição e sequer decide pela criação deste ou daquele produto ou serviço. Assim, independentemente de sua idade, o consumidor precisa mesmo de proteção legal. Além disso, o CDC deu especial proteção a certos tipos de consumidores, protegendo-os mais fortemente que os demais no capítulo das práticas comerciais. Lá, especificamente no artigo 39, estabeleceu que é "vedado ao fornecedor prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social" (inciso IV). De modo que, o idosos-consumidores já tinham proteção legal especial nas relações de consumo. É verdade que, com o EI, de pronto, estabeleceu-se novo marco de idade para a caracterização dos idosos, o que ampliou o leque de proteção. Idosa, por definição legal, é toda pessoa que tiver idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos (art. 1º, EI). O EI garante o direito à prioridade, buscando assegurar aos idosos atendimento preferencial numa série de serviços públicos e privados. Aliás, atender pessoas idosas discriminando-as positivamente sempre foi uma exigência da concreta aplicação do princípio da isonomia do texto constitucional. Para dar atendimento preferencial - qualquer que fosse, e indistintamente de ser público ou privado - bastava, em primeiro lugar, ser educado - como se faz oferecendo o lugar no ônibus -- ou exigindo os direitos garantidos na Constituição Federal. Esse tratamento diferenciado como obrigatório, claro, é um reforço àquilo que já existia. Mas, o que preocupa é o fato de que, mais uma vez se coloca na lei algo que o próprio Estado não respeita nem tenta aplicar concretamente. Veja-se, a título de exemplo, o que regularmente ocorre, infelizmente, com os milhares de aposentados (maiores de 60 anos!) que fazem filas diariamente em frente aos postos do INSS pelo Brasil afora; eles ficam várias horas por dia debaixo de sol e chuva, muitos passam mal, desmaiam, adoecem; centenas têm mais de setenta e até oitenta anos; outros fazem filas nos postos de saúde e hospitais públicos etc. Ora, como é que se aplicará a lei que dá proteção aos idoso se o Poder Público -- e suas autarquias -- é o primeiro a não cumpri-la? Faço questão de colocar aqui esse comentário, eis que para dar prioridade aos idosos, o Poder Público jamais precisou de lei ordinária: bastava cumprir o comando constitucional. ++++++++++ Continuo na próxima semana.
Com o isolamento social e com muitas pessoas trancadas em suas casas e apartamentos veio à tona novamente a questão do barulho, que causa danos de várias ordens. Volto, então, ao assunto lembrando, desde logo, que a violação do sossego no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais violado abertamente. Parece que nas sociedades industrializadas contemporâneas, nesta era capitalista do império globalizante em que vivemos, tudo faz barulho. Existe mesmo uma busca incessante em sua produção: são músicas em altos volumes nos automóveis, nas lojas e nos restaurantes, nos clubes, nas academias, nos intervalos dos espetáculos teatrais e nos cinemas, nos estádios de futebol, onde há também o barulho das torcidas que atinge toda a redondeza; nas festas de aniversário e de casamento; são shows ao vivo em estádios que vão muito além de suas arquibancadas; são bares, boates e danceterias que invadem o espaço dos vizinhos etc. De fato, todo o sistema é assim. Há excesso de ruído por todos os lados: dos veículos nas ruas, das máquinas nas fábricas, das construções, das oficinas etc. Trata-se de um enorme amontoado de ações barulhentas, algumas ensurdecedoras, nem sempre em nome do tão sonhado progresso. A pandemia eliminou muitos desses barulhos, em especial os ligados às atividades públicas que envolvem muitas pessoas em conjunto. No entanto, permaneceram os sons "privados" dos aparelhos eletrônicos domésticos que saem pelas janelas de apartamentos e casas perturbando os vizinhos com seus exagerados volumes. Há também latidos incessantes de cachorros. Enfim, os barulhos, ruídos, sons em altos volumes entram nas casas e apartamentos a toda hora sem pedir licença. É verdade que algumas pessoas até se acostumaram com isso e outras dizem que "gostam", mas o fato é que barulho não solicitado fere o direito sagrado ao sossego e pode gerar danos à saúde. O direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito que envolve uma série de transtornos já avaliados e julgados pelo Poder Judiciário. Vejamos. A Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo Decreto-Lei nº 24.645/1934, revogado, que dispunha: "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Os temas dessa antiga norma foram incorporados na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) estabelece, no seu art. 32, pena de detenção para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de reclusão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o Código Civil garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras.
Em tempos de quarentena, com um crescimento enorme de anúncios de produtos e serviços e vendas pela web/internet, vale a pena lembrar as regras vigentes do Código de defesa do Consumidor (CDC) para o setor e, também, as do decreto presidencial que regulamentou o comércio eletrônico. Com efeito, o decreto 7.962, de 15 de março de 2013, fixou uma série de regras para o comércio eletrônico. O art. 1º do Decreto deixa claro que são direitos dos consumidores na contratação de compras via Internet: a) O fornecimento de informações claras a respeito do produto, do serviço e do fornecedor; b) O atendimento facilitado ao consumidor; e c) O respeito ao direito de arrependimento. Na realidade, essas são determinações desnecessárias, eis que tudo isso e muito mais está estabelecido no CDC incontestavelmente. Mas, o art. 2º do Decreto elenca obrigações, que muitos sites não cumprem. Existem anunciantes de todos os portes que não respeitam a lei. Esse artigo diz que os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações: a) O nome empresarial e o número de inscrição do fornecedor no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda (CNPJ); b) O endereço físico e eletrônico e demais informações necessárias para sua localização e contato; c) As características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; d) A discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; e) As condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e f) Informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta. O decreto determina, ainda, que, para garantir o atendimento facilitado ao consumidor, o fornecedor deverá: a) apresentar um sumário do contrato antes da contratação, com as informações necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor, enfatizadas as cláusulas que limitem direitos; b) fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e correção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da contratação; c) confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta; d) disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua conservação e reprodução, imediatamente após a contratação; e) manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato; f) confirmar imediatamente o recebimento das demandas do consumidor pelo mesmo meio empregado por ele; g) utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para tratamento de dados do consumidor. Anoto que o fornecedor tem cinco dias para encaminhar resposta ao consumidor sobre as demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato, conforme previsto na norma. O CDC, no art. 49, estabeleceu o direito de desistência a favor do consumidor nas compras feitas via web. Visando dar eficácia ao contido nesta norma, o Decreto 7.962 referido trouxe para o sistema uma série de outras determinações específicas. Numa delas (art. 5º "caput"), reforça que o fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor. E n'outra (§ 1º do mesmo art. 5º) disciplina aquilo que já estava inserido como garantia no CDC: que o consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados. Uma boa novidade trazida pelo Decreto é a determinação de que o fornecedor envie ao consumidor a confirmação do recebimento da desistência imediatamente após a manifestação do arrependimento (§ 4º, art. 5º). (Anoto que, recentemente, foi aprovada a lei 14.010, de 10-6-2020, que dentre outras regras, modificou o CDC exatamente nesse ponto, conforme comentei no meu artigo aqui publicado em 18 de junho p.p.. O art. 8º dessa Lei dispôs: "Art. 8º - Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos".) Volto ao tema do decreto. Se consumidor desistir do negócio no prazo legal (de 7 dias) ou no prazo que o fornecedor conceder (se for maior), qualquer importância que eventualmente já tenha sido paga (entrada, adiantamento, desconto do cheque, pagamento com cartão etc.) deve ser devolvida em valores atualizados. Se, por exemplo, foi feita a autorização para débitos parcelados no cartão de crédito e apenas o primeiro (do ato da compra) tenha sido lançado, este tem que ser devolvido em dinheiro ou lançado como crédito no cartão e os demais têm que ser cancelados pela vendedora junto à administradora do cartão de crédito. Por fim, lembro que a norma diz que o exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor (§ 2º do art. 5º); e que o exercício desse direito deve ser comunicado imediatamente pelo fornecedor à administradora do cartão de crédito, banco ou instituição financeira, para que: a) a transação não seja lançada na fatura ou conta do consumidor; ou b) que seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura ou conta já tenha sido realizado (§ 3º e incisos I e II do mesmo art. 5º).
quinta-feira, 25 de junho de 2020

Direito do Consumidor - Saneamento

quinta-feira, 18 de junho de 2020

A lei 14.010 de 10/6/20 e o art. 49 do CDC

Na semana passada, o Congresso Nacional aprovou a lei14.010 (de 10/6/2020), que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus (Covid 19). Foram várias as alterações feitas, mas o que aqui me interessa comentar é uma delas, que atingiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Com efeito, dispõe o art. 8º da lei, verbis: "Art. 8º Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos". Vou aproveitar a oportunidade para fazer alguns comentários a respeito do art. 49 do CDC, que nem sempre é bem compreendido. De início afirmo: se era para alterar algo no art. 49, o legislador poderia ter feito de forma definitiva, pois, como pretendo demonstrar, a regra já não poderia ser utilizada para esse tipo de serviço, dentre outros. Explico minha posição na sequência. Nas compras feitas fora do estabelecimento comercial, os contratos firmados seguem as regras básicas estabelecidas no art. 49, que assim dispõe: "Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 (sete) dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados". Essa norma foi criada para dar maior proteção aos consumidores que adquirem produtos ou serviços fora do estabelecimento comercial, sobretudo: a) via web e/ou internet; b) em seu domicílio, recebendo a visita do vendedor; c) pelo telefone (vendas por telemarketing); d) mediante correspondência (mala-direta, carta-resposta etc..); É verdade que a norma refere apenas por telefone e em domicílio. Contudo, a citação é evidentemente exemplificativa, porquanto o texto faz uso do advérbio "especialmente". Na época da feitura da lei (1990), chamavam mais a atenção do legislador esses dois tipos, mas atualmente a web e os aplicativos tornaram-se os principais canais de vendas fora do estabelecimento comercial. Olhando de perto, acabamos descobrindo detalhes importantes. Por exemplo, a lei parte do pressuposto de que nesse tipo de compra, o consumidor está ainda mais desprevenido e despreparado por que não tem acesso direto ao produto ou serviço. Para o legislador, o consumidor que faz a compra desse modo está mais fragilizado. No entanto, pelo que penso, não é verdade que as aquisições feitas "no" estabelecimento comercial são mais bem estudadas, refletidas e decididas do que as que são feitas "fora". Muitas vezes se dá o contrário: os vendedores são treinados para provocar e influenciar o consumidor, estimulando-o a fazer a compra. São utilizadas várias técnicas de aproximação, sugestão e indução para a aquisição. Nem mesmo as chamadas "compras por impulso" ocorre mais via web que na visita ao estabelecimento comercial. Quem compra por impulso, o faz por qualquer meio. De todo modo, minha pergunta é: há casos de compras de produtos ou serviços que, por sua natureza, possam ser excluídos da hipótese de incidência do artigo 49? Penso que sim. No início da redação do art. 49 está disposto que "o consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 (sete) dias ...". É o chamado prazo de reflexão ou arrependimento: no período de 7 dias o consumidor que adquire produto ou serviço ou assina algum contrato pode desistir do negócio quando feito fora do estabelecimento comercial. A ideia de um prazo de "reflexão" pressupõe, como adiantei acima, o fato de que, como o consumidor não esteve em contato real com o produto ou serviço, isto é, como ainda não "tocou" concretamente o produto ou "testou" o serviço, pode querer desistir do negócio depois que o avaliar melhor. Ou, em outros termos, a lei dá oportunidade para que o consumidor, uma vez tendo recebido o produto ou avaliado melhor o serviço, possa, no prazo de 7 dias, desistir da aquisição feita. Muita embora seja evidente a intenção do legislador, a regra dos 7 dias para o exercício do arrependimento não funciona para o caso da compra de alguns produtos e serviços. Digo mais: se fosse mesmo para permitir prazo de reflexão, a regra deveria ser estendida para compras no próprio estabelecimento, pois como apontei, no local o consumidor está sujeito a muitas formas de sugestão. A verdade é que, em muitas hipóteses, a aquisição feita pelo consumidor no conforto de sua casa e no tempo que ele deseje para pensar, é muito mais segura do que as feitas no local físico. Um gerente de banco tem muito mais condições de influenciar uma decisão olhando para o consumidor e com ele conversando, do que esse mesmo consumidor decidindo o que fazer diretamente em sua conta via web, onde pode obter informações mais objetivas. Esse é exatamente o ponto: certos produtos e serviços podem ser adquiridos diretamente via web/internet sem que isso modifique os critérios de decisão ou possa alterar a qualidade do que foi adquirido. E, como já referi, do conforto do lar pode ser ainda mais seguro. Em alguns casos, não tem sentido algum permitir o cancelamento da compra por violar o princípio da boa-fé objetiva, base das relações jurídicas de consumo, e, também, por não representar nenhum benefício nem garantia ao consumidor. Imagine-se um consumidor que, entrando em sua conta bancária pela internet faça uma aplicação em ações. Teria 7 dias para se arrepender? E na questão das passagens aéreas? Adquirindo a passagem aérea via web/internet ou aplicativo, o consumidor está muito, mas muito mais protegido, do que se estivesse num balcão físico da companhia aérea para fazer a compra. De forma tranquila, em casa, o consumidor tem completo conhecimento de todas as informações necessárias para a tomada de decisão. Examina as datas, horários e comodidades de cada voo existente, descobre as opções de assentos e classe, checa trechos e condições de cada decolagem, localidade, aeroportos etc. E mais: pode comparar com as ofertas das companhias aéreas concorrentes. Do conforto de seu lar, ele compara tudo isso mais preços, tarifas, taxas oferecidas pelas várias empresas. E aqui, repito, para colocar um fato notório: o consumidor não tem essas opções para decidir num estabelecimento físico da companhia aérea. Trata-se de exemplo típico de compra mais vantajosa sendo feita fora do estabelecimento. E, claro, se é mais vantajosa, como de fato é, não há que se falar em incidência do art. 49 do CDC. E a questão das compras de produtos para consumo imediato via web/internet/aplicativos/telefone e que a nova lei diz não sofrer a incidência do art. 49? Como antecipei, penso que essa norma do CDC não foi feita para esse tipo de compra. De fato, se é para consumo imediato, não tem sentido falar em 7 dias de prazo para reflexão. Aliás, esse prazo de reflexão colocado na norma é a prova de que ela não foi feita para esse tipo de compra. Nada impede, naturalmente, que o consumidor devolva o produto que recebe por inadequação ou vício. Mas, poder desistir como se a compra estivesse inserida no contexto do art, 49, penso que não.
O tema da vida intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas tem sido bastante abordado nos últimos dias. Por isso, resolvi publicar aqui na minha coluna um trecho que escrevi já há muitos anos e que está em meus livros Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 8ª. Edição, 2015) e Curso de Direito do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 13ª edição, 2019). Como antecipei na semana passada, o texto é um pouco longo. Por isso, o dividi em duas partes. Hoje publico a segunda parte. Visto isso e continuando nossa análise, diga-se que o campo da privacidade poderia ser definido ou, melhor dizendo, delimitado pelo âmbito público. Tudo que não puder ser pensado como público - difusamente falando - é de ser tido como privado. É nessa restrita esfera que se desenvolve a outra, a da intimidade. A privacidade é o primeiro invólucro separador da esfera pública. A intimidade é o envoltório existente dentro da outra capa separadora. Tudo se passa como se no público, que funciona como um grande círculo social, estivessem presentes círculos mais constritos que detivessem em seu interior o espaço mais limitado da intimidade. Explica-se: há soluções jurídicas que se desenvolvem no plano público. Um anúncio publicitário de venda de apartamentos feito por uma construtora; o voto nas eleições municipais, estaduais etc.; o delito penal; o trabalho do magistrado etc. Há, também, as relações que se estabelecem na órbita privada: a vida em família; o amor e o sexo; as ações no domicílio civil etc. É nesta última esfera que se vai verificar a garantia do direito à intimidade. Ela é o último círculo constrito, que se resguarda até contra aqueles outros que compõem o círculo um pouco mais amplo de esfera privada. A relação entre pai, mãe e filhos compõe a vida privada. A relação de resguardo do segredo juvenil em relação aos pais ou destes em relação aos filhos designa o limite da esfera íntima. É por isso que a questão da consciência é sempre de intimidade, porque comporta o limite psíquico e efetivo do indivíduo, enquanto pessoa real, concretamente destacada de qualquer âmbito social. Queremos colocar outra explicação que seja capaz de lidar com problemas que os exemplos trazidos pelos autores que cuidam desse assunto (e que aqui foram repetidos) sugerem. Não é fácil distinguir o público do privado e este do aspecto íntimo pelos fatos concretos. Isso porque os atos do Presidente da República, por exemplo, são primordialmente públicos. Porém, por certo ele vive em família, e nesse âmbito goza de uma experiência privada, tendo consciência e nesta experimentando sua intimidade. Na outra ponta, ainda como exemplo, há o cidadão comum, pai, mal-educado, que espanca o filho na esfera privada, cometendo assim um delito na esfera pública. Pensamos que o vislumbre dessas instâncias e limitações se dá no entendimento do significado de papel social. Por essa perspectiva tem-se a possibilidade de não confundir público, privado e íntimo com as várias situações sociais apontadas, que geram dificuldade de apreensão por conta da vagueza ou abstração dos conceitos. Ou, dizendo de outra forma, a compreensão do fenômeno de intimidade, privacidade ou publicidade dos direitos, ações, interesses e fatos pode ser mais bem operada se a examinarmos na perspectiva dos papéis sociais. Os conceitos são aqueles já transcritos acima. O que propomos é que, toda vez que tivermos necessidade de abordar qualquer fenômeno jurídico com vistas a definir se sua área de atuação, abrangência, limite e garantia é da intimidade ou da privacidade ou se caracteriza como pública, lancemos mão daqueles conceitos que definem o papel social. Dessa forma teremos condições de avaliar o fenômeno real, concretamente existente, sem correr o risco de nos perder na ausência de limites claros de termos abstratos e por demais genéricos1. Assim, tomemos o exemplo do Presidente da República: a pessoa real, isto é, o sujeito concreto, a pessoa física que exerce esse cargo público, tem impregnado em si, 24 horas por dia, 365 dias por ano, o papel social de Presidente da República. Dormindo ou acordado, às 4 horas da madrugada ou às 4 da tarde, ele é Presidente (é evidente que as esferas de sua vida privada e íntima sofrem o peso dessa "publicização" de sua personalidade). Agora, perguntamos: o Presidente da República pode ir ao cinema e pode namorar? A resposta é sim. Mas dá um trabalho enorme (que o cidadão comum não tem). É conhecido o caso do ex-Presidente Itamar Franco, que, às vezes, ia com sua namorada para sua cidade, Juiz de Fora, e gostava de, com ela, ir ao cinema. Era um problema, pois ele saía de casa e era seguido pelos repórteres (e, como se sabe, ficava bravo e brigava com a imprensa). Pergunta-se: pratica alguma violação o repórter que corre atrás do Presidente da República, quando este vai ao cinema com a namorada? A resposta é não. Não nos esqueçamos de que o Senhor Itamar Franco - e qualquer outro no cargo - era Presidente o tempo todo, 24 horas por dia. Ora, como ele estava saindo em público para ir a um lugar público (o cinema), não tinha como reclamar do repórter, que estava exercendo seu trabalho e, por sua vez, seu papel (um homem público pode ser mostrado ao público o tempo todo, naquilo que for de seu papel público). Suponhamos, então, que o Presidente da República saia do cinema e vá para um hotel com sua namorada. Até onde o repórter pode mostrar? Ou, de outra forma, onde termina o público, onde começa o privado? A resposta é que a imprensa pode ir até a porta do hotel (limite do público). Lá dentro, no quarto, com a namorada, ressurge o sujeito, a pessoa real, pessoa física, que, como homem, namora uma mulher. Tem o direito de namorar uma mulher, como qualquer outra pessoa. Nesse âmbito, não há público: a esfera é privada e resguardada constitucionalmente. Não é o Presidente da República quem namora, é o sujeito físico-psíquico. Quando muito pode-se definir a pessoa que namora como o "namorado", que é outro papel social. Contudo, é papel social privado, que tem resguardo constitucional. Do papel social de Presidente, namorar não faz parte. E será nessa esfera privada que se desenvolverá a outra, íntima, que também é preservada constitucionalmente. É nela que a pessoa real que está no cargo de Presidente se revelará como homem, por exemplo, no ato de amor, nos carinhos, no ato sexual. Essa esfera está preservada contra os curiosos e, naturalmente, contra a imprensa, e também gera um interdito para a namorada, que não pode falar daquela intimidade. Mas aqui não há nenhuma novidade, uma vez que estamos na esfera íntima dentro do âmbito privado. Todo cidadão está preservado: a namorada do Presidente da República não pode falar de suas relações sexuais, mas também não pode a namorada de José da Silva, cidadão comum, nem ele dela. Há ainda outros pontos a ressaltar e que o exemplo do Presidente da República é muito bom para elucidar: o cargo público confere ao titular certos conhecimentos que pertencem ao cargo, e que, por vezes, não podem - ou não devem - tornar-se públicos. São conhecimentos de informações privilegiadas, como, por exemplo, mudanças previstas para a taxa de câmbio, que somente podem ser anunciadas publicamente quando for o caso de serem implementadas. Na realidade o exemplo demonstra a existência de uma esfera privada dentro do âmbito público governamental: os membros dos Ministérios que detêm essa informação devem preservá-la. Estão todos interligados nessa esfera privada. Ocorre que o sujeito real, enquanto ego concreto, também detém essa informação, e ela não pode sair de sua esfera íntima, nem para ser dita à namorada. Ou seja, o direito à intimidade é, por sua vez, uma interdição à anunciação pública ou mesmo privada dessa intimidade. O Presidente da República, o Ministro, o funcionário público não podem levar informações do âmbito privado do governo para o âmbito privado do lar, nem do âmbito privado do governo para o âmbito íntimo, dentro do privado familiar. São limites que se impõem. Logo, a garantia constitucional do direito à intimidade e à privacidade é também garantia desses próprios direitos quando relacionados ao âmbito público. Pode-se por isso dizer que nem tudo que é público torna-se privado e nem tudo que é privado ou íntimo pode tornar-se público. E, para concluir, aproveitemos uma vez mais o exemplo do Presidente da República que namora. Vamos voltar ao Presidente indo para o hotel com a namorada. Ele e ela ingressam no quarto. Já vimos que ali cessa o direito de a imprensa olhar e falar. Ele e ela namoram na intimidade do quarto, intimidade esta resguardada contra os olhos do público e que limita os próprios parceiros (ele não pode falar dela nem ela dele). Mas vamos supor que ele lhe dê um tapa. Nessa ação ilícita, há interesse público? É possível até discutir se, quando José da Silva, cidadão comum, leva um tapa da esposa, há interesse público ou não na questão. Perguntar-se-á se, no caso, a vida privada de José da Silva e sua esposa poderá ser devassada pela imprensa. Nós entendemos que a vida privada ainda nessa hipótese tem de ser preservada, pois não se vislumbra interesse público algum nesse tipo de delito. Outros delitos haverá em que o aspecto público se realça, como no caso do psicopata assassino que diz ao seu psiquiatra que no dia seguinte irá matar seu vizinho: o psiquiatra não só não pode guardar esse segredo da intimidade de seu mister como tem o dever de denunciar seu cliente para salvar a vida da outra pessoa2. Porém, em se tratando do Presidente da República, que na privacidade de seu quarto de hotel dá um tapa na namorada, o interesse público ressurge. A confusão (no sentido de mistura dos papéis sociais) que se estabelece entre o papel de Presidente e o de namorado faz com que o papel público se sobreponha. A imprensa terá todo o direito de explorar o assunto, já que a relação privada deixou de sê-lo quando o tapa foi desferido. Essa circunstância da somatória de papéis sociais é inelutável, uma vez que, como vimos, cada um de nós, pessoas reais, é um centro aglutinante de papéis sociais; um amálgama de papéis. Papéis privados e papéis públicos. Toda vez que estiverem presentes, simultaneamente, num ato qualquer, dois ou mais papéis públicos ou privados, e sempre que do fenômeno não se puder claramente separar o que é privado e o que é público, ou melhor, o que é apenas privado, tem-se de interpretá-lo como relevante na órbita pública. Afinal, o direito é sempre público. Em suma, pela perspectiva do papel social, temos mais elementos para diferenciar nos fenômenos ocorrentes o que é público, o que é privado e o que pertence à intimidade. O público define-se pela ocupação do papel social exercido; da mesma maneira o privado. Em ambos os casos não há exercício isolado, pois necessariamente as ações envolvem o indivíduo. O íntimo é, então, o último invólucro, o último círculo constrito que envolve o sujeito real, concreto, o ser físico-psíquico, sua consciência, o ego vivo propriamente dito, que sempre está presente com um centro aglutinador que suporta a carga de todos os papéis sociais por ele experimentados e vivenciados. O sujeito concreto funciona como um átomo capaz de amalgamar todos os papéis sociais. __________ 1 É certo que temos consciência de que o conceito de papel social é por sua vez, também, abstrato e padece do problema da generalidade. Porém, a nosso ver, ele é bem controlável no nível do exemplo concreto, o que o torna mais preciso e, por isso, útil. 2 Esse é um assunto que gera toda sorte de discussões, com várias posições possíveis de serem tomadas, e que não é o caso de abordar neste trabalho.
quinta-feira, 28 de maio de 2020

Intimidade, vida privada e vida pública

O tema da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas tem sido bastante abordado nos últimos dias. Por isso, resolvi publicar aqui na minha coluna um trecho do que escrevi já há muitos anos e que está em meus livros Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 8ª. Edição, 2015) e Curso de Direito do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 13ª edição, 2019). Como é um pouco longo, dividi o artigo em duas partes. Hoje publico a primeira e na próxima semana a segunda. Segue. 1ª Parte Direito à intimidade, vida privada, honra e imagem As garantias estabelecidas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal são relevantes para uma reflexão sobre os direitos do consumidor, porquanto este poderá ser vítima de violações que a norma magna pretende evitar. Vejamos o conteúdo expresso do inciso X: "Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Como se observa, a Constituição Federal pretende dar guarida absoluta ("são invioláveis") à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. Tomemos cada um desses conceitos para compreender a extensão do preceito normativo. Intimidade e vida privada Os dois termos não podem ser dissociados, uma vez que, obviamente, o valor semântico de um lembra o outro. Porém, como a norma constitucional utiliza os dois, é preciso esclarecê-los. Aliás, de pronto, surge a indagação: são os dois conceitos designativos do mesmo sentido? A doutrina que já analisou a questão respondeu que não, apesar da necessária imbricação de ambos1. Para entender o exato significado dos conceitos, tem-se de lembrar certos aspectos da vida social na qual estão presentes as pessoas, naquilo que diz respeito a sua individualidade na relação com o coletivo. É preciso distinguir o âmbito público do âmbito privado. Com efeito, o público é sempre aquilo que, como o nome diz, aponta para a participação aberta a todos ou para a possibilidade de participação de todos. É o que pertence ao povo ou à coletividade; ou mesmo apenas os atos vivenciados por poucas testemunhas, mas, assim, com caráter público. É ainda o formato real e abstrato dos atos do governo2. O privado é o oposto do público, e, embora o conceito seja da Antiguidade, ainda guarda o sentido de privus, "ser privado de", isto é, ser privado do público. É o que ocorre no domínio do lar, na órbita pessoal, no restrito âmbito doméstico, quer física, quer psiquicamente. Dessa maneira, pode-se perceber que todo indivíduo tem uma esfera privada de direitos e interesses. Mas nem todos têm uma atuação no âmbito público. O cidadão comum, vai-se dizer, é o exemplo daquele que tem apenas vida privada. O político é aquele que tem basicamente vida pública - mas tem, também, vida privada. O cidadão comum, é verdade, poderá ter uma aparição ou reconhecimento público, quando, por exemplo, agir, ainda que esporadicamente, de forma pública: participando de um programa de televisão, cometendo um delito numa praça, enganando consumidores na venda de produtos falsificados. A distinção entre as duas esferas pode ser feita a partir da hipótese do papel social. Com efeito, a sociologia jurídica desenvolveu o conceito de papel social3. O surgimento dos papéis está ligado ao crescimento da sociedade, de maneira que o conceito atualmente utilizado é o de complexidade, ou melhor, alta complexidade social. O sentido de complexidade social está relacionado ao dado concreto e real das ações possíveis do indivíduo. Ou, melhor dizendo, o mundo real se apresenta ao indivíduo oferecendo latentemente ações que ele pode realizar. Mas a quantidade de ações é tão grande que, de fato, real e historicamente, o mundo apresenta sempre muito mais possibilidades do que aquelas que o indivíduo vai realizar em toda a sua vida. O indivíduo está, assim, fadado a escolher. Desde que entra no mundo, vai agindo a partir de escolhas; não há alternativa. A essas escolhas se dá o nome de seletividade. Esta é uma operação de seleção para optar diante da complexidade de ações possíveis. A cada ato, a cada passo, o indivíduo age por seleção e vai compondo o quadro de seu destino. A inexorabilidade da seleção tem como função reduzir a complexidade do mundo: a cada escolha que a pessoa faz, opera-se a seleção e reduz-se a complexidade - escolheu algo entre muitos4. Mas, simultaneamente, enquanto se opera a seleção, vai-se produzindo um enorme contingente que ficou de lado: escolheu ser advogado; em compensação, não será juiz, promotor de justiça, procurador, delegado etc. Para essa teoria dos papéis sociais, o que vale é o dado objetivo da escolha. Não se está - isso não importa para o papel social , pensando na motivação que levou à escolha (se foi consciente ou inconsciente, por desejo, vontade ou "sem querer") nem na capacidade ou condição da pessoa que escolheu (força física, inteligência, força intelectual, arranjo político ou familiar, ação entre amigos etc.), nem ainda nos interesses que geraram a seleção (econômicos, jurídicos, religiosos etc.). O que vale é a seleção objetivamente operada5. Assim, por exemplo, não interessa perguntar por que o candidato ao vestibular tornou-se estudante de Direito: se por vocação, ameaça dos pais, acidente - "ele queria fazer Medicina mas não conseguia passar" - ou qualquer outro motivo. O que importa é a seleção: o indivíduo tornou-se estudante de Direito; e o contingente: logo, não é estudante de Medicina, Engenharia, Administração de Empresas etc. Os papéis sociais foram-se criando por conta das inúmeras seleções operadas pelos indivíduos no mundo. A produção desses papéis tem sua explicação na exata medida em que as sociedades crescem em complexidade. O crescimento da complexidade oferece alternativas infindáveis; estas acabam sendo selecionadas, indo compor, pelos encontros de sentidos das opções operadas, os papéis sociais. Na realidade, a complexidade da sociedade é tamanha que para o indivíduo as alternativas que lhe oferece o mundo não são ações puras, mas papéis sociais postos à sua disposição para serem selecionados. A escolha é de papéis e não de ações6. Os papéis sociais podem ser, assim, definidos como repertórios formais de funções sociais - ações e comportamentos - preenchidos temporalmente por indivíduos. Isso significa que, estando no papel, o indivíduo deve comportar-se de acordo com o figurino normativo para ele previsto. Para o comportamento socialmente adequado ao papel, basta agir como o esperado: todas as demais pessoas têm uma expectativa normativa de que o indivíduo, naquele papel, vai comportar-se como se espera que se comporte. Isso traz vantagens e desvantagens. A vantagem está ligada à economia de ações: no papel, para o indivíduo estar bem socialmente, basta agir como se espera que vá agir. O comportamento já estava pronto e ele se enquadrou; amoldou-se à estrutura normativa reinante formalmente no papel. Ele passa, então, a participar da sociedade dentro de maior estabilidade. A desvantagem está relacionada ao próprio indivíduo, à pessoa que existe "por detrás" do papel: ela deixa de ser vista como tal. Apresenta-se, comunica-se e é cobrada a partir do papel por ela assumido. Essa relação indivíduo-papel, do ponto de vista social, pode gerar conflitos. Não resta dúvida de que, apesar da fixidez do papel, o indivíduo real nele absorvido irradia, no comportamento resultante do exercício do papel, vários aspectos de sua personalidade, além de nele desempenhar suas aptidões pessoais, tais como habilidades manuais, inteligência, ponderação, discrição etc. E a teoria dos papéis sociais pode, então, contribuir sobremaneira para a elucidação da questão do público e do privado no que diz respeito ao indivíduo. É que, do ponto de vista da complexidade social, os papéis oferecidos à seleção são públicos e privados. O comportamento de um lado e a expectativa social - de todas as outras pessoas e papéis - de outro variam de acordo com o tipo de papel. Se é privado, a exigência pública é uma, digamos, mais liberal. Se é público, é outra, extremamente rigorosa em termos do controle das alternativas de ações e comportamentos possíveis. E um problema resiste ligado à relação indivíduo-papel. Trata-se do fato de que na verdade o indivíduo real - psíquica e fisicamente considerado - é um centro de papéis; é um feixe de papéis que dispõe de inúmeras ações e comportamentos. Cada indivíduo é uma soma de papéis e por vezes esse indivíduo, enquanto ser real, confunde-se com os papéis que exerce. O indivíduo é simultaneamente pai, filho, irmão, estudante, profissional, político, torcedor etc., num composto de papéis sociais. E nesse todo podem estar papéis sociais públicos e privados, nem sempre sendo fácil distinguir quando o comportamento social real é de um ou de outro. Há muito ainda o que dizer a respeito dos papéis sociais: a possibilidade de o indivíduo irradiar sua luz pessoal para o papel; a institucionalização dos papéis etc. Mas para o assunto que se está aqui estudando e que na sequência se desenvolverá o que apresentamos é o suficiente7. Continuaremos na próxima semana. __________ 1 Acompanhamos aqui os Professores David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (Curso de direito constitucional, S. Paulo: Saraiva, 1998, item 2.1.1). 2 Ressalvem-se os chamados "segredos de Estado", justificáveis apenas na exata medida em que são segredos para preservar o bem público: segurança, paz etc. 3 Assim, por exemplo e pelos demais: Niklas Luhmann, (Legitimação pelo procedimento, Brasília: UNB, 1980, especialmente, p. 71 e s.). 4 A escolha gera um alívio ao indivíduo. Como o mundo se apresenta com alta complexidade e milhões de possibilidades, isso por si só é fator gerador de angústia. A seleção a diminui. 5 Nem importa saber se a pessoa gostou ou não da escolha, apesar de tudo isso poder ter alguma validez na seleção "papel-indivíduo". 6 É muito raro que um indivíduo isolada e conscientemente "crie" um novo papel social. Este surge espontaneamente, da ilimitada e intrincada soma de ações e relações sociais preexistentes entre os demais papéis sociais. 7 Para mais informações ver Niklas Luhmann, (Legitimação pelo procedimento, cit.).
quinta-feira, 21 de maio de 2020

A pandemia, o direito do consumidor e o Procon

A Fundação Procon de São Paulo (Procon) sempre foi motivo de orgulho para a população paulistana. Por lá passaram alguns dos melhores diretores e administradores públicos e que colocaram o Procon de São Paulo em evidência no Brasil inteiro, funcionando como fonte inspiradora para os demais órgãos de proteção ao consumidor existentes. Como se sabe, o consumidor brasileiro é violado no varejo e no atacado. É mesmo fundamental que tenhamos um órgão como o Procon. Órgão este que tem que estar preparado para fiscalizar e mandar cumprir a lei, com destaque para o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Em situações normais de temperatura e pressão isso já exige muito, pois são milhões de transações diárias na cidade e no Estado de São Paulo. Mas, eis que veio a pandemia e atingiu milhões de relações jurídicas de consumo em praticamente todas as esferas reguladas pela lei. O Procon foi chamado a atuar. E o fez com maestria. Foi e está sendo forte na fiscalização dos abusos e foi e está sendo justo e racional nos casos que exigem harmonia. Isso. Harmonização é a palavra chave e, como eu sempre defendi, tem que ser a palavra chave para a resolução dos conflitos de consumo. O diretor atual, dr. Fernando Capez, tem dado aulas diárias de como se deve agir em situações de grave crise, como esta que estamos vivendo. Ele tem agido com rigor contra os infratores e tem publicado orientações ponderadas para solucionar os conflitos que surgiram. Como eu disse, sempre defendi que o mercado de consumo somente cresce e se solidifica com a implementação de relações justas e harmoniosas. Os conflitos sempre existirão. Isso é inevitável numa sociedade que produz em massa. Mas, uma vez surgido, é possível sim resolvê-lo administrativamente, sem que haja a intervenção do já tão atolado Poder Judiciário. E nesse ponto, a atuação de um órgão como o Procon é fundamental. A respeito desse tema - da inevitabilidade do surgimento do vício e do defeito dos produtos e serviços - e como digo, o atendimento no pós-venda é fundamental. Não só atendimento dentro da lei e bem feito por representantes dos fornecedores treinados, como também a criação e existência de espaço para negociações. E, aqui, mais uma vez a atuação do Procon é importantíssima. Essa direção estadual pode ser vista também no âmbito dos Procons municipais que, também, têm atuado com firmeza e racionalidade. Cito por todos, o Procon de Santos, capitaneado pelo dr. Rafael Quaresma que, do mesmo modo, têm ágido com competência exemplar. Com tantos problemas afligindo a população, é mesmo muito bom que nós tenhamos um órgão como o Procon atuando com competência e eficácia.
quinta-feira, 14 de maio de 2020

Coronavírus: otimismo e realidade

Para os otimistas, tudo tem um lado bom. E, como em matéria de Covid-19 as notícias são de dar arrepios e calafrios, resolvi escrever este artigo, um pouco mais ameno. Na verdade, elaborei um texto de espécie otimista-realista. Certa feita, aqui mesmo nesta coluna, eu fiz um comentário apontando que a cada ano que passa, e sempre mais cedo, os seres humanos consomem o total de recursos que o planeta Terra pode renovar em um ano. Os dados são de 2017. Neste ano, o fato se deu em 2 de agosto; em 2016, um dia depois, 3 de agosto. Ou seja, mais ou menos no início de agosto, todo ano, a humanidade consome os recursos que nosso planeta pode renovar. Esse cálculo é feito anualmente pela ONG Global Footprint Network1. O diagnóstico tem como base as emissões de gases do efeito estufa e, também, os recursos consumidos pela pesca, pela pecuária, pelos cultivos, pelas construções e pela utilização da água. Na realidade, os representantes da ONG dizem que, para satisfazer nossas necessidades, hoje deveríamos contar com o equivalente a 1,7 planeta2. De fato, o que se constata é um enorme desiquilíbrio no consumo global. Se o modo de consumo dos países desenvolvidos se estendesse a todos os cantos da terra, certamente, a devastação seria muito maior. Isto é, mesmo com um índice de consumo muito menor em países emergentes, o planeta está sendo destruído. Muito bem. O que se diz é que o modelo capitalista implementado especialmente a partir da segunda metade do século XX e que se tornou devastador mais ao final é o responsável: a chamada vida para o consumo contribuiu e contribui sobremaneira para essa destruição. Veja, meu caro leitor, essa quarentena mundial prova que a desaceleração da economia, isto é, que a paralização das atividades de consumo em geral renovou os recursos naturais: a poluição do ar regrediu, o consumo de energia elétrica caiu, em alguns lugares, nos mares, os peixes voltaram, enfim, fez bem ao planeta e naturalmente também às pessoas. Isso, claro, é apenas um pedaço da história do consumo, pois há centenas de milhares de pessoas que sequer têm acesso ao mercado. Como eu gosto de afirmar, o primeiro direito do consumidor é o direito a ter direitos com liberdade para consumir: direito de escolher o que consumir livremente; o direito de poder consumir. Agora, veja esses dados publicados pelo Instituto Trata Brasil (são números de 2018). O Brasil está entre as 10 maiores economias do mundo, mas 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada. 47% da população não possui coleta de esgoto. Por ano, são feitas 233 mil internações de pessoas com doenças de veiculação hídrica (Diretamente: amebíase, giardíase, gastroenterite, febres tifoide e paratifoide, hepatite infecciosa etc. Indiretamente, a água também está ligada à transmissão de verminoses, como esquistossomose, ascaridíase, teníase etc.). Isso dá o incrível número de 638 internações por dia!. Como era de se esperar, os índices de qualidade do saneamento variam pelas regiões do país, sendo que os melhores índices estão na região sul e sudeste e os piores estão na região norte. A pandemia, que atingiu o mundo inteiro, pode mesmo ajudar a melhorar índices climáticos, o que é bom para o planeta. Mas, ela vai passar. Esperemos que haja alguma alteração no consumo a favor do meio ambiente. Contudo, não podemos esquecer de todos aqueles que não tem acesso ao mínimo para serem chamados de consumidor, numa sociedade apelidada de sociedade de consumo, tanto no Brasil como em vários lugares do mundo. __________ 1 Humanidade esgota hoje os recursos planetários que é capaz de renovar neste ano. 2 Idem nota anterior.
Hoje escrevo mais uma vez para tratar de alguns efeitos jurídicos nas relações de consumo por conta da pandemia gerada pela covid-19. Desta feita, quero abordar um ponto específico e que pode gerar problemas: o dos cancelamentos dos eventos que estão marcados para datas posteriores ao recolhimento compulsório. Por exemplo, uma cerimônia de casamento que esteja marcada para o segundo semestre (até lá, esperamos que a vida volte ao normal). Como sempre, repriso as questões jurídicas essenciais. Já escrevi aqui mesmo nesta coluna que o evento da covid-19 é algo extraordinário e assim deve ser encarado do ponto de vista jurídico. Sabemos que o Código de Defesa do Consumidor não apresenta como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior. Mas, como já o demonstrei, essas hipóteses são de fortuito interno e força maior interna. Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, naturalmente, o mesmo se deu e se dá na eclosão de uma pandemia, como esta da covid-19. Evento absolutamente fora de qualquer possibilidade de previsão e, infelizmente, inevitável. Realço que todas as relações jurídicas foram afetadas. Falo de todas porque ninguém escapou. A diferença para alguns é que o evento acabou trazendo benefícios, pois puderam produzir e vender mais, os estoques acabaram etc. Porém, em milhares, aliás, milhões de relações jurídicas (de consumo ou não) a situação, de fato, foi e é de prejuízo para os dois lados da relação (ou para os vários lados da relação). Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. E não resta dúvida alguma de que, se o evento, qualquer que seja ele, estava marcado para datas dentro do período de quarentena, ambos os lados da transação (consumidor e fornecedor) podem simplesmente rever o negócio, sem possibilidade de cobrança de multa ou de pagamento de indenizações. Agora, levanto essa questão: e se o evento estava marcado para depois que acabarem as restrições da quarentena? Por exemplo, uma festa de casamento marcada para outubro. Digamos que, por causa da pandemia, os noivos ficaram impossibilitados de realizar o evento, eis que perderam o emprego ou tiveram suas rendas reduzidas de tal modo que se tornou impossível manter a data de cerimônia. (Antes de prosseguir, lembro o óbvio: se um casal decide adiar seu casamento, evidentemente o foi por algo muito grave.) Dito isso, transcrevo o outro argumento jurídico favorável ao consumidor. Trata-se da regra do inciso V do art. 6º do CDC, que dispõe ser direito básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas". A garantia de revisão das cláusulas contratuais em razão dos fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas tem, também, fundamento nos outros princípios instituídos no CDC: boa-fé e equilíbrio (art. 4º, III) e vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I). Entenda-se, então, claramente o sentido de revisão trazido pela lei consumerista. Não se trata da cláusula rebus sic stantibus, mas, sim, de revisão pura, decorrente de fatos posteriores ao pacto, independentemente de ter havido ou não previsão ou possibilidade de previsão dos acontecimentos. Como se sabe, a teoria da imprevisão prevista na regra do rebus sic stantibus tem como pressuposto o fato de que, na oportunidade da assinatura do contrato, as partes não tinham condições de prever aqueles acontecimentos, que acabaram surgindo. Por isso se fala em imprevisão. A alteração do contrato em época futura tem como base certos fatos que no passado, quando do fechamento do negócio, as partes não tinham condições de prever. Para que se faça a revisão do contrato, basta que após ter ele sido firmado surjam fatos que o tornem excessivamente oneroso. Não se pergunta, nem interessa saber, se, na data de seu fechamento, as partes podiam ou não prever os acontecimentos futuros. Basta ter havido alteração substancial capaz de tornar o contrato excessivo para o consumidor. E, claro, na hipótese desta pandemia nem se pode pensar em discutir a imprevisibilidade. Mas, veja-se: é caso de imprevisibilidade que afeta a relação jurídica de consumo e, também, aquilo que não estava previsto exatamente na relação (como regra). Esse é o ponto diferente: os noivos foram atingidos na sua capacidade como pessoas; ficaram sem poder pagar o que estava estabelecido por causa da pandemia. Contra a vontade e interesse deles, o negócio teve que ser modificado. É um caso especial em que a relação é atingida e, também, o consumidor na sua integridade e capacidade financeira. Termino, como sempre, lembrando que, cada caso é um caso, mas significativamente neste momento crucial que vivemos, certamente é preciso examinar cada uma das situações com muito critério e sempre tendo em vista o fim pretendido na relação jurídica, que é fundada no princípio da boa-fé objetiva e que deve ser interpretada com critérios de razoabilidade, bom senso e justiça do caso concreto.
Hoje escrevo para tratar de alguns efeitos jurídicos nas relações de consumo por conta da pandemia gerada pela covid-19, no que respeita às mensalidades escolares, especialmente por algo que me chamou a atenção nos últimos dias nas discussões nas redes sociais: a questão do desconto nas mensalidades e, de outro lado, os argumentos de escolas que dizem que continuam oferendo os serviços e, por isso, continuam cobrando regularmente. Não vou repetir o que já está publicado nas redes e nos informativos de imprensa. Naturalmente, há argumentos a favor dos descontos. Concordo com boa parte deles: muitas escolas acabaram tendo diminuição de seus custos e, numa situação como esta, é justo que ofereçam descontos nas mensalidades. Vou, agora, levantar alguns pontos para reflexão e que envolvem o outro lado da relação: o das escolas que não tiveram redução de seus custos. Primeiramente, repriso as questões jurídicas essenciais. Já escrevi aqui mesmo nesta coluna que o evento da covid19 - pandemia que gerou consequências jamais vistas no mundo - é algo extraordinário e assim deve ser encarado do ponto de vista jurídico. Sabemos que o Código de Defesa do Consumidor não apresenta como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior. Mas, como já o demonstrei, essas hipóteses são de fortuito interno e força maior interna. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo do negócio) pelo fornecedor nem por eles evitado. Todavia, não elidem a responsabilidade. Cito o exemplo que vale por todos: o do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, claro, o mesmo se deu e se dá na eclosão de uma pandemia, como esta da covid-19. Evento absolutamente fora de qualquer possibilidade de previsão e, infelizmente, inevitável. Todas as relações jurídicas foram afetadas. Falo de todas porque sim, ninguém escapou. A diferença para alguns é que o evento acabou trazendo benefícios, pois puderam produzir e vender mais, os estoques acabaram etc. Porém, em milhares, aliás, milhões de relações jurídicas (de consumo ou não) a situação, de fato, foi e é de prejuízo para os dois lados da relação (ou para os vários lados da relação). Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. Há, também, outros argumentos a favor do consumidor como, por exemplo, o de referência ao inciso V do art. 6º do CDC, que dispõe ser direito básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas". Agora, voltemos à questão das escolas postas no início. Vamos imaginar que, impedida de oferecer aulas presenciais por conta da pandemia, a escola consiga substituí-las por aulas online, por sistemas de rede social, internet etc. Lembro que, algumas já tem um sistema funcionando porque oferecem cursos à distância (EAD). Mas, já tendo um sistema e tendo-o que ampliar para acolher os alunos dos cursos presenciais ou não tendo um sistema e tendo que cria-lo desde o início, o que se percebe é que a escola, provavelmente, teve que arcar com custos não previstos. Pode acontecer, como acontece, da escola, inclusive, continuar pagando os professores regularmente, pois eles continuarão a dar aulas (ao invés de presenciais, no sistema EAD, comparecendo aos estúdios que foram produzidos ou mesmo dando aulas diretamente de suas residências). Naturalmente, não estou esquecendo que existem outros custos de manutenção, tais como água, energia elétrica, segurança, pagamento de outros funcionários etc. que podem ter diminuído ou aumentado. E, também, que a escola pode sofrer com a inadimplência dos estudantes. De todo modo, num quadro como este acima, muitas escolas podem ter tido aumento de suas despesas, o que somado ao fato de que elas não deixaram de fornecer os serviços contratados, justificaria que não reduzissem as mensalidades. Com regra, cada caso é um caso, mas significativamente neste momento crucial que vivemos, certamente é preciso examinar cada uma das situações com muito critério e sempre tendo em vista o fim pretendido na relação jurídica, que é fundada no princípio da boa-fé objetiva e que deve ser interpretada com critérios de razoabilidade, bom senso e Justiça do caso concreto.
quinta-feira, 16 de abril de 2020

Tempo é vida

Em momento de reclusão como este, retorno ao tema importante do tempo, especialmente na sociedade em que vivemos. Proponho um reflexão sobre seu uso e sua perda. Meu amigo Outrem Ego, certo dia, reclamou de sua ida ao dentista. Ele teve que tratar um canal e disse: "Fazia anos que não ia ao dentista ou, como se diz agora, endodontista. (É assim que meu dentista se apresenta: É mole?). Ele envolveu meu dente em uma espécie de máscara de borracha que tampou minha boca e parte de meu rosto. Minha boca ficou aberta sem que eu pudesse evitar. Aliás, bem aberta. Daí, com uma espécie de câmara, ele foi com umas agulhinhas até o local da infecção, cutucou, remexeu e resolveu tudo. Tudo muito moderno. Mas, algo não mudou: o sofrimento. Não doía, mas eu sofri profundamente. Tava difícil de respirar. Demorou muito tempo. Parecia que não ia acabar nunca. Mas quer saber? Qual não foi minha surpresa, quando após o serviço acabar eu perceber que se passara apenas cinquenta minutos. Eu pensava que estava lá há horas". Não há nenhuma novidade na descrição feita por meu amigo. Esse é um tipo de tempo, subjetivo. Todos sabem que uma hora de amor dura muito pouco, e ao contrário de meia hora na cadeira do dentista. Ou, como disse, brincando, Einstein: "Você entende a relatividade quando vê que uma hora com a sua namorada parece um minuto e um minuto sentado num formigueiro parece uma hora". Esse tempo subjetivo, de todo modo, tem muita importância para o mercado. Por exemplo, nas diversões públicas, como um filme no cinema. Para que o espectador aguente um filme longo, ele há de ser muito bom. E isso acontece mesmo. Quantos filmes longos não assistimos e que "acabaram depressa"? Ou que ficamos torcendo para não acabar? E o inverso é verdadeiro: há filmes que depois de vinte, trinta minutos de exposição nos fazem mexer na cadeira sem parar ou que nos faz levantar e ir embora do cinema. Aliás, é comum que as pessoas descubram que o filme é ruim ou chato exatamente porque "percebam a poltrona". Em filmes bons, a cadeira passa despercebida. Há também um tempo sagrado, o tempo das festas periódicas, por exemplo. O "Tempo sagrado é indefinidamente repetível. De certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que o tempo sagrado 'não flui', que não constitui uma 'duração' irreversível. É um tempo ontológico por excelência... A cada festa periódica reencontra-se o mesmo Tempo sagrado - o mesmo que se manifestara na festa do ano precedente ou na festa de há um século... Em outras palavras, reencontra-se na festa a 'primeira aparição do Tempo sagrado', tal qual ela se efetuou 'ab origine'"1. O outro tempo é o profano, este nosso do dia a dia da vida social, de certo modo privado de religiosidade ou ao menos de significação religiosa2. O mercado de consumo apoderou-se também desses dois. Há muito a dizer sobre isso, mas coloco para o que interessa aqui que, simultaneamente, o mercado, de um lado, "rouba", digamos assim, significação do tempo sagrado (pelos menos os das festas periódicas) transformando as oferendas rituais em meros presentes adquiridos repetida e indefinidamente todo ano, pagos à vista ou em prestações e baseado na mera materialidade do produto. E, de outro lado, confere um aspecto "religioso" ou "sagrado" ao próprio mercado, criando templos de consumo, como os shoppings-centers, ou tomando os rituais das festas e inserindo-as em várias diversões públicas, como nas competições esportivas. O tempo profano, que nunca se repete, pode ser medido. Ele "passa" ou, como dizem os filósofos, ele "dura". E, exatamente porque passa ou dura, ele se perde. Uma vez vivido, não volta mais. É o nosso tempo de relógio; uma duração que experienciamos no presente a cada segundo, a cada instante e que se perde na imensidão do passado também a todo momento. O futuro vai chegando, passando pelo presente e se perdendo no passado. Essa experiência do presente, essa duração nunca mais retorna. Daí que esse nosso tempo pode ser medido e perdido. Esse tempo, isto é, essa duração tem um custo, tem um preço e ademais tem um valor. O salário do trabalhador é medido em parte pelo tempo dedicado à prestação do serviço, o que se converte em custo para o empregador. Daí que a busca de eficiência e aumento de produtividade tem relação direta com a passagem do tempo. Quanto mais produtivo é o trabalhador no mesmo espaço de tempo, menos custo para o empregador na relação com o resultado do trabalho: a mercadoria produzida ou o serviço prestado ao consumidor. Por isso, o salário pode também ser majorado na relação com a produtividade no tempo. O trabalhador é também um consumidor (e há, claro, muitos consumidores não trabalhadores). O tempo para o consumidor tem valor. Valor objetivo: de troca do valor de seu próprio tempo, pois enquanto consume ou o gasta para consumir, perde-o para exercer outras atividades que não de consumo (embora, cada vez mais a maior parte de suas atividades como pessoas possam ser traduzidas como de consumo; ações de consumo). Valor subjetivo: o que ele quer fazer com seu tempo, é problema dele. Só a ele diz respeito. É direito pessoal, privado e da esfera de sua intimidade; é uma prerrogativa que lhe pertence. Pergunto: Qual é o sonho do consumidor? Apenas comprar? E comprar é viver? Viver é passar o tempo, como se diz. Perder tempo é, em certa medida, perder vida. Mas, pelo que se vê da sociedade, é perder vida para o consumo. No modelo do mercado atual, aquilo que se passou a intitular de "consumismo" (a necessidade e o desejo de comprar incessantemente) criou uma "urgência para o consumo". Há uma imposição para que o tempo que reste após aquele gasto no trabalho (e/ou nos estudos) seja utilizado no consumo; seja literalmente consumido. É uma oferta de prazer, na verdade. O consumo como prazer. Oferece-se um prazer no imediato e, talvez, porque isso não consiga preencher a alma do consumidor, este continue na busca incessante desse prazer imerso no consumismo irrefreado. O mercado oferece economia de tempo, bem-vinda, permitindo que o consumidor ao invés de ir ao banco, faça as transações em casa; que, ao invés de ir até às lojas, adquira produtos pela internet e os receba em sua residência; que converse com seus amigos ou faça negócios via internet sem ter que atravessar o trânsito das cidades, ganhando, pois, tempo. Em tudo isso e em muito mais, há mesmo economia de tempo, mas esse tempo ganho é gasto com consumo sem fim e urgente. Os pacotes de viagem são um bom exemplo desse modelo: É oferecido que o consumidor "conheça" toda a Europa em apenas quinze dias! O consumidor chega na cidade, é levado para o hotel, hospeda-se, desfaz as malas, sai de ônibus, este para em alguns pontos, ele tira muitas fotos, volta para o hotel, toma banho, sai para jantar com o grupo em algum restaurante, dorme, refaz as malas, acorda cedo, é levado para o aeroporto, viaja para outra cidade; e começa tudo de novo. Ufa! Enfim, ao cabo de quinze dias, muitos deles gastos em aeroportos, ônibus e fazendo e refazendo malas, o consumidor leva para casa centenas de fotos de algumas cidades, como se tivesse mesmo conhecido a Europa inteira. Será que era com isso que o consumidor sonhava? O fato é que precisamos aproveitar da melhor forma o nosso tempo. __________ 1 Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 60. 2 Idem, ibidem, p. 59.
quinta-feira, 9 de abril de 2020

O que é uma doação?

Diz o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) que os "órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". Anoto o dado importante para a análise, o de que a lei liga o aspecto da essencialidade do serviço com o aspecto de sua continuidade, isto é, sua não interrupção. Para deixar claro o significado disso, distingo os dois aspectos para a compreensão do que se pode entender por essencial e, também, contínuo. É pela natureza dos serviços prestados, primeiramente, que se pode definir de sua essencialidade ou não. Assim, pode-se dizer que, em geral, o serviço público, exatamente pelo fato de sê-lo (público), somente pode ser essencial. Não poderia a sociedade funcionar sem um mínimo de segurança pública, sem a existência dos serviços do Poder Judiciário, sem algum serviço de saúde etc. Nesse sentido, é que se diz que todo serviço público é essencial. Assim, também o são os serviços de fornecimento de energia elétrica, de água e esgoto, de coleta de lixo, de telefonia etc. (privatizados ou não). Mas, então, é de perguntar: se todo serviço público é essencial, por que é que a norma estipulou que somente nos essenciais eles são contínuos? Para solucionar o problema, aponto dois aspectos: a) o caráter não essencial de alguns serviços; b) o aspecto de urgência. Existem determinados serviços como, por exemplo, os de ordem burocrática, que, de per si, não se revestem de essencialidade. São serviços auxiliares que: a) servem para que a máquina estatal funcione; b) fornecem documentos solicitados pelo administrado (por exemplo, certidões). Se se fosse levantar algum caráter de essencialidade nesses serviços, só indiretamente poder-se-ia fazê-lo. Claro que, existirão até mesmo documentos cujo serviço de expedição se reveste de essencialidade, e não estou olvidando disso. Por exemplo, o pedido de certidão para obter a soltura de alguém preso. Nessas hipóteses especiais, é o caso concreto que designará a essencialidade do serviço requerido. O outro ponto é também relevante. Há no serviço considerado essencial um aspecto real e concreto de urgência, isto é, necessidade concreta e efetiva de sua prestação. O serviço de fornecimento de água para uma residência não habitada não se reveste dessa urgência. Contudo, o fornecimento de água para uma família é essencial e absolutamente urgente, uma vez que as pessoas precisam de água para sobreviver. Essa é a preocupação da norma. Para ficarmos com exemplos no assunto deste artigo, lembro que ninguém pode duvidar da essencialidade e urgência do serviço de telefonia celular para a pessoa que tenha seu veículo quebrado à noite num lugar ermo; ou que esteja acompanhado de alguém que sofra um ataque cardíaco; ou - para ficarmos com o que nos assola no momento - um idoso que, morando sozinho, precise de cuidados médicos por causa do coronavírus ou outra doença. Logo, vê-se que o serviço público essencial revestido, também, do caráter de urgente não pode ser descontinuado. Isso decorre da natureza do próprio serviço e/ou da situação concretamente existente. E mais: no caso brasileiro, a Lei Federal também define o que vem a ser serviço essencial. Trata-se da Lei de Greve - lei 7.783, de 28 de junho de 1989. Como essa norma obriga os sindicatos, trabalhadores e empregadores a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, acabou definindo o que entende por essencial. A regra está no inciso VII do art. 10, que dispõe, verbis: "Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais: I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; II - assistência médica e hospitalar; III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; IV - funerários; V - transporte coletivo; VI - captação e tratamento de esgoto e lixo; VII - telecomunicações: VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais; X - controle de tráfego aéreo; XI - compensação bancária". Desse modo, se o serviço é essencial, naturalmente, no caso da telefonia, o produto que utiliza o serviço (o aparelho celular, o smartphone, o carregador etc.) também o é. Sei que, como está sendo divulgado, o aparelho celular pode ser propagador do vírus. Assim, é preciso mantê-lo sempre higienizado. Mas, de todo modo, penso que a oferta aos proprietários de aparelhos celulares não pode ser descontinuada. É preciso que haja algum tipo de atendimento em casos de quebra dos aparelhos para que o usuário não fique sem esse serviço essencial e urgente.
quinta-feira, 26 de março de 2020

Aspectos da natureza humana

Escrevo para tratar dos efeitos jurídicos nas relações de consumo por conta da Pandemia gerada pelo Covid-19, especialmente no que respeita às viagens aéreas, hospedagens, passeios agendados etc. Começo tratando do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão. Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo - que, diga-se, não lhe pertence - e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou, em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração. O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz por que quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar. Decorre disso que, quem se estabelece deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar, não só para buscar evitá-los, mas também para se prevenir sobre suas eventuais perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas, deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão. O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que, no que respeita ao transporte, o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Isso vale para o serviço de transporte, para o serviço de hospedagem, para os pacotes de viagem etc. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador ou pelo administrador do hotel, nem por eles evitado. Todavia, não elidem a responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o caso de certas ocorrências da natureza, tais como chuvas e nevoeiros, no caso do transportador aéreo. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno - que, aliás, ocorre constantemente - é integrante típico do risco daquele negócio. Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, claro, o mesmo se dá na eclosão de uma pandemia, como está da Covid-19. Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados por causa das medidas de segurança adotadas. Por outro lado, os consumidores que cancelam os voos marcados ou mudam a data da viagem também não podem ser responsabilizados, estando livres do pagamento de multas e, aliás, se não puderem mais viajar, podem simplesmente pedir o reembolso dos valores pagos. Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. Se não se pode responsabilizar o companhia aérea pelo cancelamento do voo, também não se pode responsabilizar o consumidor. O mesmo se dá com o cancelamento que o consumidor faça em hotéis e outras atividades atreladas à viagem afetada pela circunstância excepcional. Não pode o hotel ou os demais agentes cobrarem multas por mudanças de datas e devem devolver os eventuais valores já adiantados acaso haja cancelamento definitivo pelo consumidor. Sei que há outros argumentos a favor do consumidor como, por exemplo, o de referência ao inciso V do art. 6º do CDC, que dispõe ser direito básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas". Tudo bem. É mais um argumento favorável, mas penso que a constatação da existência de um caso fortuito externo que atinge a relação jurídica de consumo como um todo é suficiente para resolver a situação.
Neste nosso Brasil varonil costuma-se dizer que há "leis que pegam e leis que não pegam", frase que nem deveria existir... De todo modo, ontem, dia 11 de março, uma de nossas mais importantes "leis que pegaram" fez 29 anos: a lei 8.078/90, isto é, o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Como sempre tenho dito, a boa notícia é que o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, sempre lembrada tanto em setembro quando foi editada (11/9/1990) como em março (mês em que entrou em vigor; mês em que também se comemora o dia mundial dos direitos dos consumidores). Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes a existência dessa lei tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. E, claro, com 29 anos de idade seria de se esperar que a lei fosse cumprida por todos o tempo todo. Mas, ainda não é bem assim. Com um início de vigência que, lembro-me bem, assustou empresários em geral, muitos publicitários e os grandes conglomerados em especial, aos poucos o CDC foi se firmando e deixando de ser o bicho-papão de que o acusavam injustamente. Ao que me consta, ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como também da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento melhor qualificado, enfim, a norma fez o mercado amadurecer. Para ficarmos apenas com um exemplo: antes do CDC, muitos produtos não traziam estampados nas embalagens seus prazos de validade. Lembro-me bem que eu fiquei espantado com o curto prazo de validade de alguns produtos. Até água em garrafa tem curto prazo de validade! Antes da lei 8.078/90, nós consumidores, muito provavelmente, ingerimos toneladas de produtos vencidos e sorvemos milhares de litros de bebidas ultrapassadas. (Ocorre-me um fato tão terrível quanto peculiar: sou da época dos refrigerantes em garrafa - apenas em garrafa - e agora me vem a memória de quantas vezes, quando garoto, retirei a tampinha e com a mão limpei as marcas de ferrugem que estavam na boca da garrafa, antes de beber o refrigerante... Sabe-se lá, das vezes que adoeci, quantas não estavam relacionadas com produtos e bebidas deteriorados...) Pois bem, o susto dos empresários passou. A lei teve, como tem, muito boa eficácia. Porém, ao mesmo tempo em que os consumidores passaram a ficar mais escolados em matéria de consumo, os empresários também, o que faz com que ainda tenhamos uma série de abusos bem planejados. Naturalmente, o bom fornecedor é ainda, e sempre será, aquele que desenvolve seu projeto de negócio, claro, visando o lucro, mas respeitando seus clientes. Dizem que "a palavra convence, mas o exemplo arrasta". Por isso, gosto de ilustrar ou fundamentar meus argumentos com casos reais. Lembro, assim, uma história que já narrei. A do vendedor de amendoins na praia: ele passa gritando e dando uma amostra de seu produto para os banhistas; caminha alguns metros repetindo esse gesto para depois voltar. Enquanto ele vai, os veranistas comem o amendoim recebido - e de graça! - e quando ele volta, quem gostou tem a oportunidade de comprar um pacotinho, momento em que o negócio é concretizado. Desse simples modo de oferecer e vender o amendoim, pode-se extrair um dos melhores exemplos de como o empresário deve tratar o consumidor: em primeiro lugar o vendedor faz uma propaganda honesta, oferecendo de graça seu produto para que o consumidor experimente; depois ele somente vende para o consumidor que de fato quer comprar, uma vez que o produto foi previamente examinado, testado e aprovado. Quanto ao consumidor que experimentou mas não comprou, ainda assim o negócio foi bem feito. O custo do amendoim oferecido gratuitamente faz parte do custo total do negócio, porém funciona sempre como investimento, pois, até para aquele que não comprou fica a lembrança da boa imagem que o vendedor construiu, respeitando inclusive seu desinteresse em adquirir o produto. Por conta disso, esse consumidor torna-se um cliente em potencial, podendo adquirir o produto em outra oportunidade. Fazer sucesso como fornecedor, muitas vezes, é simples assim.
Faz já muitos anos que fala dos avanços da tecnologia, como se suas descobertas e criações fossem mesmo capaz de resolver todos os problemas da humanidade. E ela está em todos os setores: nas indústrias em geral, nas pesquisas científicas, na administração da saúde, na medicina etc. Há alguns dias, fui visitar um escritório num desses prédios modernos da capital paulista. Cadastrei-me na entrada e pediram-me que passasse minha mão numa espécie de scanner. Depois daquilo, andei pelo prédio ultrapassando as catracas apenas colocando minha mão cadastrada nos aparelhos. Poxa, que moderno... De fato, a tecnologia nunca foi tão marcante, abundante, rápida, eficaz. Será? Proponho uma reflexão. Esse modelo de desenvolvimento está mesmo no rumo certo? E o avanço tecnológico, fruto do capitalismo globalizado, trouxe ou trará melhor qualidade de vida e bem estar para todos? Ficarei longe de números, pois seria muito desanimador. Eles mostram que a resposta é bem negativa: grande parte da humanidade passa fome, a violência é extraordinária, milhões de pessoas sofrem no mundo todo por causas que deveriam ter sido extirpadas há muito tempo e não foram etc., um longo etc. Mas, a tecnologia pode nos iludir. Ela tomou um rumo incrível. Por exemplo, são projetados automóveis, ônibus e caminhões de transporte que não precisam de motoristas... É, realmente, um motorista é algo que atrapalha, não é? Aliás, os veículos que ainda podem ser dirigidos por motoristas são superpotentes: são capazes de andar a 200 Km por hora, 250Km por ora. A única dificuldade, é que não se pode acelerar acima dos 120 Km... (Já cuidei desse assunto aqui, falando dos "automóveis fora da lei".). E os tais drones. Aeronaves não tripuladas. Algumas muito eficientes tornaram-se armas perigosíssimas, como mostrou os EUA no ataque de janeiro em Bagdá. Como se sabe, nessa investida foi morto o comandante da força de elite iraniana Al-Quds, o general Qassem Soleimani. Tecnologia de ponta! Já existem casas inteligentes, que abrem e fecham janelas automaticamente, acendem a apagam luzes do mesmo modo e, também, o aparelho de ar condicionado e outras coisas mais. Sério? Pra que isso serve mesmo? Descansar os braços? Na medicina os avanços são incríveis. Por exemplo, no mercado da aparência, a medicina estética e cosmética reforma os corpos das pessoas de muitas formas. Na odontologia também. Na oftalmologia os avanços são realmente sólidos: uma operação para curar a miopia demora alguns minutos com plena eficácia. O mesmo se dá na operação de catarata. Ótimo. Não queria falar de números e não vou, mas claro que esse tipo de procedimento não é para todos e seu preço é bem salgado. Agora veja meu caro leitor: acima afirmei que na área da medicina os avanços são incríveis. E a direção desses avanços. O caminho estará certo? Todos os anos milhares de pessoas morrem por causa de gripe. Sim, uma simples gripe continua matando. O surto recente que envolve o coronavírus com origem na China mostra que os avanços da ciência não são tantos assim. Análises publicadas revelaram que 80% do material genético do novo vírus é igual ao da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) - um outro tipo de coronavírus, responsável por provocar um surto da doença em 2002 e 2003. Isto é, em pleno século XXI, os vírus matam as pessoas como matavam no século XX, XIX etc. Aliás, os mosquitos também continuam transmitindo doenças e matando, como é o caso da dengue. A China, mostrando toda sua potência, construiu um hospital em apenas 10 dias. Realmente incrível. Mas, o "bichinho" que infecta as pessoas não se incomoda com essa engenharia fantástica... Não sou pessimista, mas realmente, não sei se o caminho da ciência está sendo bem trilhado!
Se já não bastassem os problemas com carboidratos, proteínas, gorduras, calorias etc. que atingem os consumidores crianças, jovens, adolescentes, adultos, idosos, enfim, todos os consumidores, a cada dia fica mais claro que, na sociedade capitalista contemporânea, que só conhece o lucro e só pensa nele, muitos produtos vendidos são falsificados, adulterados e deteriorados. E não se trata apenas de se "vender gato por lebre". Há muitos produtos autênticos que fazem mal por suas próprias substâncias, por falta de informação ou por informação imprecisa etc. N'outro dia, meu amigo Outrem Ego me perguntou: "Você gosta de escondidinho?". Eu disse que sim, especialmente o original com carne seca e purê de mandioca. Ele, então, acrescentou se eu conhecia tudo o que se "escondia" nos produtos alimentícios. "Como é que a gente, isto é, como é que o consumidor pode identificar se os produtos que ingere são, de fato, de boa qualidade", indagou. Realmente, é difícil fazer essa identificação. Em boa parte das vezes, o consumidor se serve dos olhos e do nariz: aparência e cheiro são boas alternativas para se aferir qualidade, mas nem sempre dá certo. E depois, quando experimenta, o sabor também é referência. Claro que o consumidor-comprador pode lançar mão das cautelas tradicionais como, por exemplo, se for adquirir carnes vermelhas, verificar se elas apresentam zonas (ou manchas) escurecidas ou zonas ou pontos secos, sinais de deterioração. Ou, então, nunca comprar carne moída que já estava triturada quando ele chegou no açougue (Deve-se sempre escolher a carne inteira e pedir para moer à vista). Também não deve comprar carne de porco que apresente pequenas bolinhas brancas (conhecidas como "canjica"). Bem, como comecei deixe-me lembrar das cautelas para compras de aves: a sua carne estará boa quando tiver consistência firme, cor amarelo-pálida, brilhante e com odor (cheiro) suave, e estará deteriorada quando: apresentar cor esverdeada; sua consistência não estiver firme; e/ou apresentar cheiro forte. E, quanto aos peixes, o consumidor só deve adquirir os que tiverem o corpo rijo (duro), escamas firmes e os olhos salientes e brilhantes. Já os peixes secos, como o bacalhau, estarão deteriorados se apresentarem manchas úmidas ou avermelhadas. Você, meu caro leitor, quer compre os próprios alimentos para preparar quer os compre prontos, sabe muito bem que o mercado está repleto de fraudes de todo tipo e também de produtos deteriorados, que transmitem doenças nem sempre de forma rápida a se poder perceber o que causou o mal (O que gera um grande problema de prova e investigação - pessoal ou pelas autoridades). O noticiário trás regularmente à tona alguns casos envolvendo a venda de produtos deteriorados por falha na produção industrial, no armazenamento, na distribuição etc. ou mesmo por clara má-fé do fornecedor. Esse mundo capitalista, às vezes, é de arrepiar e de tirar o apetite! Não é à toa que alguns bons restaurantes, desde há muito tempo, passaram a abrir suas cozinhas para que os clientes possam ver como a comida está sendo preparada ou, pelo menos, permitem que eles façam uma visita nas instalações. Porém, nem sempre isso é suficiente - lembremos das carnes preparadas, dos embutidos etc. Por isso, inclusive, os consumeristas dizem que um bom modo de conhecer a higiene do restaurante é ir, antes de mais nada, ao banheiro local. Se ele estiver asseado, é um bom começo. Mas, se nem o banheiro, que é escancarado ao olhar do consumidor, está limpo, o que se dirá do resto? Claro que, como diz meu amigo, Outrem Ego, "Dá para 'maquiar' o banheiro. Este pode estar tinindo, lindo, cheiroso e ainda assim a comida não estar no mesmo padrão. Não é fácil mesmo a vida de consumidor, especialmente se estiver com fome". Essa situação de fragilidade do consumidor em relação aos serviços e produtos oferecidos e adquiridos, já disse mais de uma vez aqui nesta coluna, é uma característica universal e que a nossa lei de proteção expressamente reconhece: ele é vulnerável, porque não só não tem acesso aos meios de produção e distribuição como é obrigado a acreditar (confiar?) nas informações que se lhe dirigem. Ademais, em relação aos alimentos, ele pode se enganar com os olhos e com o olfato. Essa, digamos, natureza frágil do consumidor em geral e no caso da alimentação em particular é visível de muitas maneiras. Vejam-se as frutas. Meu querido e referido amigo adora goiabas - pelo menos adorava. Ele contou que, na sua infância, costumava pegar goiaba no pé junto dos amigos. Eles amarravam a blusa na frente, dando um nó dos dois lados, de modo a gerar uma espécie de saco. Dentro enchiam de goiabas apanhadas nas goiabeiras das casas dos próprios amigos e se empanturravam. Ele disse que muitas vezes comiam até o bigato ou melhor, a metade que não viam... Quando Outrem Ego cresceu e deparou-se, na feira, com goiabas maravilhosas, brilhantes, redondas, lindas, ficou desconfiado. Havia algo estranho. Ele disse que, em primeiro lugar, as goiabas plantadas naturalmente têm tamanhos diferentes no mesmo pé, não são redondas, bonitas etc. São diferentes uma das outras e muito saborosas. "Agora estão todas iguais, lindas e para meu paladar, sem gosto. Pelo menos, como eu me lembro". Daí que, a cada dia é mais difícil se alimentar bem e sem preocupações. Nenhuma área está isenta de fraudes e/ou problemas de qualidade. Podem ser produtos "in natura" ou industrializados. Se a verdade é que, como se diz, "você é o que você come", é preciso tomar muito cuidado para continuar sendo o que se é.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A inveja tornou-se produto de consumo

Começo contando uma espécie de anedota: Três estudantes que estavam na mesma Universidade, ao irem participar de uma excursão numa grande floresta, perderam-se do restante do grupo. De repente, um deles encontrou uma garrafa mágica, a abriu e dela saiu um gênio. Este disse aos três: "Eu sou um gênio e dou a cada um de vocês o direito de realizar um desejo. Vocês podem me pedir qualquer coisa". O primeiro, muito ambicioso e competitivo, disse: "Eu tenho um vizinho, o John, ele mora numa mansão incrível! Eu quero uma mansão maior que a dele". O segundo, do tipo solidário, disse: "Eu tenho um vizinho, o Henry. Ele mora num castelo maravilho. Eu quero um castelo igualzinho ao dele". O terceiro, invejoso, disse: "Eu tenho um vizinho, o Igor. Ele tem um porco. Eu quero que você mate o porco dele". *** A inveja está tão presente em nossas vidas que, tudo indica, tornou-se produto de consumo. Nas redes sociais está presente constantemente. Há muitas pessoas e profissionais sofrendo ataques apenas e tão somente porque se dão bem, porque fazem sucesso. Isso ocorre em todas as profissões e carreiras: são advogados, juízes, economistas, médicos, políticos, empresários etc. sendo atacados por pessoas invejosas. O efeito da inveja na sociedade nem sempre é facilmente identificado; às vezes nem mesmo o invejoso percebe claramente o sentimento. Até atitudes de sarcasmo ou ironia podem ocultar a inveja. De todo modo, o que os pesquisadores mostram é que em locais nos quais as pessoas são invejosas, a sociedade fica estagnada, parada ou até mesmo anda para trás. Ao contrário dos meios competitivos, onde o movimento social é para a frente, em direção ao progresso. Quando pesquisamos a doutrina sobre a inveja, percebemos que alguns dizem que o invejoso quer possuir o que o outro possui. Mas, isso não é verdade. Quem diz isso não entende a inveja. O invejoso não quer o que o outro tem. Não! Querer o que outro tem está ligado à admiração e, também, à competição. Com efeito, a admiração é um sentimento positivo, pois faz crescer o admirado e o admirador. Quero dizer: de algum modo, quando alguém admira o outro ou as obras e realizações do outro, este é enaltecido e elevado moralmente (e, muitas vezes, materialmente, quando, por exemplo, valorizam-se suas obras) e, num certo sentido, o admirador também se enaltece, pois participa de alguma maneira do objeto admirado; guarda-o dentro de si, faz com que ele melhore sua alma, sua experiência de vida. Assim, a admiração e também os modelos competitivos estimulam os agentes sociais e impulsionam o movimento das sociedades; são elementos dinâmicos que dão vida e geram progresso. E não pensemos que competição diz respeito apenas aos esportes. Ela está em todos os lugares e se for bem administrada é bastante saudável: existe competição entre cientistas, pesquisadores, escritores, artistas, professores, médicos, advogados, engenheiros etc. A história da humanidade mostra como isso é muito bom para os casos de desenvolvimento e superação: um superando o outro, um ultrapassando o que o outro fez, melhorando suas invenções, aperfeiçoando sua arte, reorganizando as pesquisas do outro, aperfeiçoando seus produtos e serviços etc. Isso é progresso. Já, como dizia Bertrand Russell, "o invejoso, em vez de sentir prazer com o que possui, sofre com o que os outros têm". Ele é, assim, negativo e inativo, passivo. Fica no sofrimento olhando o outro. E o mais importante: ele não quer ter o que o outro tem; nem igual nem melhor. O invejoso quer tirar o que o outro tem! Mas, como eu disse acima, nem sempre a inveja é facilmente identificável, porque o invejoso pode agir nas sombras, às escondidas, por meio de intrigas e fofocas. Ele aumenta, inventa, deturpa, sempre com o objetivo de diminuir a imagem do invejado ou tentando fazer com que o invejado perca o que possui, que pode ser uma propriedade, um cargo, um título honorífico, um namoro ou casamento sólido, a alegria no lar, a felicidade entre amigos, um emprego seguro, rentável ou que dê visibilidade, enfim, qualquer bem material ou imaterial que afete o invejoso. Portanto, a inveja é sempre negativa, é ação de diminuição de bens, posições, dignidades. E em tempos de redes sociais os ataques são facilmente multiplicados e tornaram-se verdadeiros produtos de massa num grande mercado de consumo.
Hoje falo da ganância, a sede de ganho sem limites. Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1. No livro citado, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente"2. Esse tipo de conduta não é novo nem surpreendente e já se verificou no Brasil inúmeras vezes. Apenas para ficar com um exemplo recente: com a crise da qualidade da água na cidade do Rio de Janeiro, os preços da água mineral dispararam3. Esses aumentos se caracterizam como práticas abusivas proibidas pela legislação protecionista do consumidor e, evidentemente, odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos fornecedores, colocando à mostra os defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza4; trata-se de um vício humano, sempre combatido. Mas, o que chamou a atenção no episódio do furacão na Flórida não foi tanto a ganância, mas a incrível e aberta defesa feita por muitos economistas do ato ganancioso como elemento intrínseco do sistema e - pasme-se - positivo! Dentre os vários "teóricos de mercado" que fizeram esse tipo de defesa naquela oportunidade, refiro, por todos, o economista Thomas Sowell para quem o termo "extorsão", utilizado pelas vítimas dos comerciantes, não passava de uma "expressão emocionalmente poderosa porém economicamente sem sentido, à qual a maioria dos economistas não dá atenção, porque lhes parece vaga demais"5. Sandel fala dele: "Preços mais altos de gelo, água engarrafada, consertos em telhados, geradores e quartos de motel têm a vantagem, argumentou Sowell, de limitar o uso pelos consumidores, aumentando o incentivo para que empresas de locais mais afastados forneçam as mercadorias e os serviços de maior necessidade depois do furacão. Se um saco de gelo alcança dez dólares quando a Flórida enfrenta falta de energia no calor de agosto, os fabricantes de gelo considerarão vantajoso produzir e transportar mais. Não há nada injusto nesses preços, explicou Sowell; eles simplesmente refletem o valor que compradores e vendedores resolvem atribuir às coisas quando as compram e vendem"6. Trata-se de um sofisma ridículo e pueril, pois obviamente os fabricantes de gelo somente se motivariam se o preço se mantivesse nas alturas de forma constante. No caso, o preço foi elevado excessivamente, fixado para um curto período de tempo e imposto contra consumidores desesperados. Eis, pois, uma mostra de um dos aspectos mais perniciosos da sociedade capitalista mas, que, de todo modo, acaba ajudando a realçar a importância de nossa lei protecionista do consumidor, editada há quase 30 anos. __________ 1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11. 2 Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores. 3 Preço da água mineral dispara e aumento pode passar de 40%, diz Procon-RJ. 4 Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade). 5 Ibidem, p.12. 6 Ibidem, p. 12.