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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Na data de hoje, 11 de março de 2021, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) faz 30 anos de sua entrada em vigor (o que se deu em 11/3/1991). Na próxima segunda-feira, dia 15 de março, é comemorado o Dia Mundial do Consumidor. Famoso porque foi nesse dia, há quase 60  anos (em 1962), que o então presidente americano John Kennedy enviou ao Congresso uma mensagem na qual defendia os direitos dos consumidores, dentre estes, o direito a segurança, informação e escolha e o direito de ser ouvido, tema que já abordei aqui mais de uma vez. Mas, aproveito o aniversário do CDC para lembrar algumas virtudes de nossa famosa lei consumerista.  Os autores do anteprojeto apresentado pelo então deputado Geraldo Alckmin, que  fez nascer o CDC,  pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Trata-se de uma lei tão importante que fez com que nós, importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu, e ainda serve, de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, nele inspiradas.  Não resta dúvida de que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto  houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como seu texto foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e, também, em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea, o exercício da cidadania confunde-se com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nos esportes em geral, nas diversões públicas em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como cursos, livros, filmes etc.;  os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; as matrículas e os cursos realizados em escolas particulares de todos os níveis de ensino;  a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos;  a aquisição de imóveis e da tão sonhada casa própria e um interminável etc. Tudo  regulado pela lei 8078/90. Por isso, digo  que, o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a Constituição Federal de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Realço algo importante: o CDC não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege o vulnerável que é  o consumidor, aliás, como ele é em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido. Ademais, leis que protegem o consumidor são a favor do mercado e não contra. Basta olhar para a sociedade da América do Norte e verificar que a proteção lá existente há mais tempo ajudou em muito o crescimento do mercado. E, como também já disse aqui, o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, uma data sempre lembrada. Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. De todo modo, apesar da longeva vigência, o consumidor ainda tem que lutar para fazer valer seus direitos em várias situações. Mas, repito, dá orgulho saber que o CDC é uma lei que impactou positivamente as relações jurídicas de consumo e colocou o Brasil na linha de frente do que existe de mais moderno em termos de leis de proteção aos consumidores.
quinta-feira, 4 de março de 2021

O direito às milhagens aéreas e a pandemia

Como se sabe, várias companhias aéreas oferecem programas de benefícios de fidelidade ao consumidor. Este acumula milhagens, que pode usar na compra de passagens aéreas, upgrade etc. Muito bem. Já mostrei aqui, mais de uma vez, que o fornecedor corre riscos no seu empreendimento. É o chamado risco da atividade: o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo - que, diga-se, não lhe pertence - e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso,  assume o risco do fracasso. Ou, em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro,  mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração. Decorre disso que, quem  se estabelece, deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar, não só para buscar evitá-los, mas também para se prevenir sobre suas eventuais perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas, deve saber  calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão. O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). E a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que, no que respeita ao transporte,  o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Isso vale para o serviço de transporte, para o serviço de  hospedagem, para os pacotes de viagem etc. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador ou pelo administrador do hotel, nem por eles evitado. Todavia, não elidem a responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, claro, o mesmo se dá na eclosão de uma pandemia, como esta da Covid-19. Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados por causa das medidas de segurança adotadas. Por outro lado, os consumidores que cancelam os voos marcados ou mudam a data da viagem também não podem ser responsabilizados, estando livres do pagamento de multas e, aliás, se não puderem mais viajar, podem simplesmente pedir o reembolso dos valores pagos.  Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. Se não se pode responsabilizar o companhia aérea pelo cancelamento do voo, também não se pode responsabilizar o consumidor. Agora, pergunto: e o que acontece com as milhagens que a cia aérea oferece de forma cumulativa? Explico. Algumas cias aéreas oferecem benefícios especiais aos consumidores fiéis que viajam com elas constantemente. Por exemplo, se viajam 10 mil milhas ganham um cartão prata, se viajam 20 mil milhas ganham um cartão ouro etc. Em cada uma dessas categorias os benefícios são diferenciados: atendimento Vip no aeroporto, com sala de espera especial, escolha de poltronas mais confortáveis, troca mais barata para classe executiva etc. Acontece que, com a pandemia, milhares de consumidores que gozavam desses benefícios não puderam viajar e algumas cias aéreas passaram a trocar o consumidor para uma categoria inferior por causa disso. Por exemplo, quem era ouro foi rebaixado para prata. Para se manter no padrão ouro, o consumidor deveria ter viajado uma certa quantidade  de milhas, o que não pôde ser feito. Isso está correto? Certamente, não! Do mesmo modo, que o fortuito externo afetou a relação jurídica nos cancelamentos de voos e de reservas (de lado a lado), sem que isso pudesse gerar responsabilidade por danos de uma parte à outra, não pode a cia aérea cancelar o benefício oferecido pela falta de voos no período da pandemia. Ela está obrigada a manter a categoria do consumidor até o fim das medidas excepcionais existentes em função da pandemia. Não se trata de uma responsabilidade por dano direto, mas da obrigação de garantia de um direito pré-estabelecido que, uma vez retirado, gera perdas ao consumidor.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

A incrível desinformação no caso Petrobras

É direito básico do consumidor (e, também, de todo cidadão) receber informações adequadas sobre produtos e serviços. E, naturalmente, quando os serviços são as próprias informações, estas devem seguir os padrões legais de objetividade, clareza, certeza, veracidade etc. Já disse aqui que, estamos na época da pós-verdade, o que significa que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Certo. Mas, isso não significa que analistas, cientistas, articulistas especializados, possam falar "qualquer" coisa a respeito dos fatos e das pessoas. Nesses últimos dias, eu ouvi e li várias colocações de articulistas (alguns se apresentando como especialistas) a respeito da troca de comando na Petrobras e, especialmente, envolvendo a questão do preço dos combustíveis. Foi um show de desinformação! Antes de prosseguir, quero consignar que, não vou cuidar da troca do comando da empresa, algo decidido pelo presidente da República, pois isso é irrelevante para o que eu vou demonstrar (novamente...). Escrevi sobre isso há apenas duas semanas. Lembro, então, que a Petrobras não é uma empresa privada, que está no mercado para agir livremente obtendo o maior lucro possível a qualquer custo e independentemente das consequências de seus atos e estratégias. Não! Ela é uma empresa pública: uma sociedade de economia mista (SEM). E como tal, tem outros deveres, outras funções muito diversas, das que têm as empresas privadas. Pelo que li e ouvi, o "mercado" não faz a mínima ideia do que seja uma SEM (Torço para que lá, no âmbito da Petrobras, os dirigentes saibam...). Ora, como se sabe, a SEM integra a Administração Pública Indireta. Apesar disso, é, por força de lei, pessoa jurídica do Direito Privado sob a forma de Sociedade Anônima, regulada e estabelecida, pois, pela Lei das S.A.       A SEM pode tanto explorar atividade econômica tipicamente privada de produção ou comercialização de produtos, como pode prestar serviços públicos. Mas isso não quer dizer que uma SEM -- a Petrobras, por exemplo -- deva atuar no mercado como uma mera empresa privada, visando exclusivamente ao lucro, utilizando de métodos capitalistas tradicionais (e, muitas vezes, altamente reprováveis) apenas e tão somente por estar estabelecida como S.A. Seus limites estão estabelecidos no próprio texto constitucional (art. 173, caput e parágrafos). Vou repetir o óbvio: não estou dizendo que a SEM pode ser usada para fins diversos daqueles para os quais foi criada. Ao contrário, quando isso ocorre, trata-se de abuso de direito. Esse abuso é caracterizado, por exemplo,  quando o acionista controlador, valendo-se de sua posição privilegiada, busca atingir objetivo estranho ao do objetivo legal estabelecido na empresa. Nesse caso, há desvio de finalidade. Há também abuso no exercício do poder, quando são ultrapassados os limites impostos por seu fim econômico ou social ou mesmo quando há violação ao princípio da boa-fé objetiva e até aos bons costumes. Mas, realço. Se, de um lado, há desvio ilegal quando o acionista controlador esquece que a SEM é uma empresa privada com fins econômicos específicos e somente age em função do bem comum ou social, de outro, a busca apenas do lucro como se fosse uma empresa privada comum é também um desvio ilegal. É do equilíbrio entre essas duas situações, legalmente estabelecidas,  que se pode identificar uma boa e correta administração de uma SEM. Esse deve ser o objetivo da administração de uma Sociedade de Economia Mista: estabelecer de forma clara e equilibrada a relação entre o interesse público e o privado. Aliás, se é para agir como se a SEM fosse uma empresa privada comum, ter-se-ia que, antes, alterar o texto constitucional. Quem diz que uma empresa como a Petrobras pode agir sem esse freio legal, desconhece ou desconsidera as normas existentes. Pelo que li e ouvi, os articulistas nada sabem sobre isso.
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A responsabilidade civil dos fabricantes de vacinas

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade civil objetiva dos fornecedores pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços (arts. 12, 13 e 14) e ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade) tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Para que se possa compreender o porquê dessa ampla responsabilização, é preciso conhecer a teoria do risco do negócio ou da atividade, que é sua base e que eu resumo na sequência. A Constituição Federal garante a livre iniciativa para a exploração da atividade econômica, em harmonia com uma série de princípios (CF, art. 170), iniciativa esta que é, de fato, de uma forma ou de outra, característica da sociedade capitalista contemporânea. E uma das características principais da atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa, a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades por parte do empresário é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. Mas o risco é dele. Dentro dessa estratégia geral dos negócios, como fruto da teoria do risco, um item específico é o que está intimamente ligado à sistemática normativa adotada pelo CDC. É aquele voltado à avaliação da qualidade do produto e do serviço, especialmente a adequação, a finalidade, a proteção à saúde, a segurança e a durabilidade. Tudo referendado e complementado pela informação. Em realidade, a palavra "qualidade" do produto ou do serviço pode ser o aspecto determinante, na medida em que não se pode compreender qualidade sem o respeito aos direitos básicos do consumidor. Nesse ponto da busca da qualidade surge, então, de novo e particularmente, o problema do risco/custo/benefício, acrescido agora de outro aspecto considerado tanto na teoria do risco quanto pelo CDC: a produção em série. Em produções massificadas, seriadas, de larga escala, é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número enorme de consumidores. Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem que correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. Aliado a isso está o indelével fato de que produções desse tipo envolvem dezenas, centenas ou milhares de componentes físicos e eletrônicos que se relacionam, operados por outra quantidade enorme de mãos que os manuseiam direta ou indiretamente. E, também, na área da saúde e de medicamentos, os componentes químicos, biológicos etc. A falha é inexorável: por mais que o fornecedor queira, não consegue evitar que seus produtos ou serviços cheguem ao mercado sem vício/defeito. Logo, temos de lidar com esse fato inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito. Ora, é a receita e o patrimônio do fabricante, produtor, prestador de serviço etc. que respondem pela indenização relativa ao prejuízo sofrido pelo consumidor. O motivo, aliás, é simples: a receita e o patrimônio abarcam "todos" os produtos e serviços oferecidos. "Todos", isto é, tanto os produtos e serviços sem vício/defeito quanto aqueles que ingressaram no mercado com vício/defeito geram o faturamento do produtor. Há, ainda, mais elementos que explicam porque o sistema normativo do CDC adotou a responsabilização objetiva. É o relacionado não só à dificuldade da demonstração da culpa do fornecedor, assim como ao fato de que, efetivamente, muitas vezes, ele não tem mesmo culpa de o produto ou serviço terem sido oferecidos com vício/defeito. Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria fatalmente lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos. Vê-se, só por isso, que, se o consumidor tivesse de demonstrar a culpa do produtor, não conseguiria. Ademais, ainda que culpa houvesse, a produção da prova, como um ônus seu, levaria ao insucesso, pois ele não teria acesso ao sistema de produção e, também, a prova técnica posterior ao evento danoso teria pouca possibilidade de demonstrar a culpa. O estabelecimento da responsabilidade de indenizar nasce, portanto, do nexo de causalidade existente entre o consumidor (lesado), o produto e/ou serviço e o dano efetivamente ocorrente. Fica, assim, demonstrada, a  teoria - e a realidade - fundante da responsabilidade civil objetiva estatuída no CDC, assim como as amplas garantias indenizatórias em favor do consumidor que sofreu o dano - ou seus familiares ou, ainda, o equiparado e seus familiares. Muito bem. Quando se trata do produto "vacina", este já nasce com uma perspectiva de causar dano a alguém. Ainda que haja um mínimo percentual de casos com efeitos colaterais, como são milhares ou milhões de doses, alguém sempre acaba sendo atingido. Portanto, não há qualquer dúvida de que os fabricantes de vacinas - que, aliás, faturam milhões com sua produção e venda - respondem civilmente e de forma objetiva com seu patrimônio pelos danos que a pessoa sofrer por conta dos efeitos colaterais.
Novamente está na ordem do dia a discussão sobre a política de preços da Petrobras e, naturalmente, apontando para aumento. Volto, assim, ao tema, eis que, ao que parece, não se tem levado em consideração vários aspectos que envolvem nossa querida estatal. Inicialmente, lembro: a Petrobras não é uma empresa privada, que está no mercado para agir livremente obtendo o maior lucro possível a qualquer custo e independentemente das consequências de seus atos e estratégias. Não! Ela é uma empresa pública: uma sociedade de economia mista. E como tal, tem outros deveres, outras funções muito diversas, das que têm as empresas privadas. A sociedade de economia mista (SEM), como se sabe, integra a Administração Pública Indireta. Apesar disso, é, por força de lei, pessoa jurídica do direito privado sob a forma de Sociedade Anônima, regulada e estabelecida, pois, pela Lei das S.A. A SEM pode tanto explorar atividade econômica tipicamente privada de produção ou comercialização de produtos, como pode prestar serviços públicos. Mas isso não quer dizer que uma SEM -- a Petrobras, por exemplo -- deva atuar no mercado como uma mera empresa privada, visando exclusivamente ao lucro, utilizando de métodos capitalistas tradicionais (e, muitas vezes, altamente reprováveis) apenas e tão somente por estar estabelecida como S.A. Seus limites estão estabelecidos no próprio texto constitucional. Com efeito, o caput do artigo 173 estabelece o imperativo de segurança nacional e de interesse coletivo: "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei." O § 1º do mesmo artigo, por sua vez, permite, como acima referi, a exploração da atividade privada e a da prestação de serviços públicos: "§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:..." Também como afirmei, a SEM tem características de pessoa jurídica de direito privado, o que está firmado no inciso II desse mesmo § 1º: "II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;" Todavia, a SEM mantém características próprias das pessoas jurídicas de direito público, tais como a fiscalização pelo Estado e pela sociedade, além da exigência de licitação para contratação de obras, serviços, compras e alienações de bens,  conforme fixado nos incisos I e III do mesmo §: "I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;                          II - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;"  Além disso,  ela deve se valer de concursos públicos para contratação de seus empregados (art. 37, incisos I e II da CF). Muito bem. É preciso admitir que algo tão importante como o preço dos combustíveis deve ser estabelecido não apenas com os problemas enfrentados no momento presente, mas também levando-se em consideração as consequências futuras. Não parece um equilíbrio fácil de se obter, mas que deve ser buscado de algum modo. Obviamente, não estou dizendo que a SEM pode ser usada para fins diversos daqueles para os quais foi criada. Ao contrário, quando isso ocorre, trata-se de abuso de direito. Esse abuso é caracterizado, por exemplo,  quando o acionista controlador, valendo-se de sua posição privilegiada, busca atingir objetivo estranho ao do objetivo legal estabelecido na empresa. Nesse caso, há desvio de finalidade. Há também abuso no exercício do poder, quando são ultrapassados os limites impostos por seu fim econômico ou social ou mesmo quando há violação ao princípio da boa-fé objetiva e até aos bons costumes. Mas, realço. Se, de um lado, há desvio ilegal quando o acionista controlador esquece que a SEM é uma empresa privada com fins econômicos específicos e somente age em função do bem comum ou social, de outro, a busca apenas do lucro como se fosse uma empresa privada comum é também um desvio ilegal. É do equilíbrio entre essas duas situações, legalmente estabelecidas,  que se pode identificar uma boa e correta administração de uma SEM. Esse deve ser o objetivo da administração de uma Sociedade de Economia Mista: estabelecer de forma clara e equilibrada a relação entre o interesse público e o privado. Aliás, se é para agir como se a SEM fosse uma empresa privada comum, ter-se-ia que, antes, alterar o texto constitucional. Quem diz que uma empresa como a Petrobras pode agir sem esse freio legal, desconhece ou desconsidera as normas existentes. Sei, claro, que não é fácil obter esse equilíbrio entre o interesse público e o privado, mas pergunto, como já fiz antes aqui neste espaço: não é por isso que os dirigentes dessas empresas ganham vultosos salários? Para fazer jus aos polpudos vencimentos, não devem, eles, cumprir os comandos legais?  
O Procon/SP, com razão, notificou à Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS requerendo que ela determine a suspensão dos aumentos autorizados para os planos de saúde coletivos e aplique apenas o reajuste implementado nos planos de saúde individuais (de 8,14%). Nos planos coletivos os aumentos foram muito acima desse percentual, com índices de 32%, 40%, 70% etc. Primeiramente, refiro o que é óbvio: depois que um contrato é firmado com o consumidor (qualquer que seja o contrato: de compra e venda de produto ou de prestação de serviço, para qualquer produto e para qualquer serviço) o preço não pode mais ser modificado. Poder-se-ia aceitar a mudança para a diminuição do preço, mas nunca para seu aumento. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), no seu artigo 51, inciso X, disciplinou a questão claramente: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...)  X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;" Quando comentei pela primeira vez a lei, há mais de 20 anos, observei que essa norma era mais uma daquelas que o legislador se viu obrigado a inserir, como corolário dos abusos sempre praticados contra o consumidor no país.      Veja-se a que ponto chegamos. É a lei que tem de dizer: "após o fechamento do negócio, no qual se fixou as prestações das partes, o objeto da obrigação e o preço, uma delas - o vendedor ou prestador do serviço - não pode mais, sem o consentimento da outra, mudar (aumentar) o preço". Isso devia ser pressuposto indiscutível, de tal forma embutido nas relações que ninguém se lembrasse de citá-lo. No entanto, o legislador foi obrigado a transformá-lo em norma! A regra, é verdade, dirige-se aos casos em que o negócio já foi firmado, uma vez que, no sistema de liberdade de preços atualmente vigente no País, o valor inicialmente é fixado de forma livre pelo fornecedor. O que ele não pode fazer é modificá-lo para aumentá-lo após ter efetuado a transação. Por preço há que se entender aquilo que é cobrado e pago pelo consumidor, de maneira que estão aí incluídos o preço do produto, do valor dos serviços prestados, o prêmio do seguro, o custo do financiamento - taxas, despesas etc. -, bem como a taxa de juros cobrada etc. A regra do inciso X foi inteligente ao referir-se à variação direta ou indireta do preço. É bastante comum a inserção de cláusula contratual - que sempre foi potestativa - que permite ao fornecedor escolher o índice de reajuste numa "cesta" de índices, da qual tomará o maior. Posteriormente, foi acrescido o inciso XIII no artigo 39 do CDC1, nesses termos: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...) XIII - aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido". Essa regra do inciso XIII do art. 39 lembra a do inciso X do art. 51, no que se relaciona com reajuste diverso do estipulado, bem como remete ao inciso IV do mesmo art. 512. Lá se trata de nulidade das cláusulas contratuais firmadas. Aqui, cuida-se da prática efetiva de reajuste exagerado por aplicação de fórmula ilegal ou que não esteja prevista no contrato. E a Lei que regula os planos e seguros privados de assistência à saúde (lei 9.656/98), por sua vez e na linha dos princípios estabelecidos no CDC, fixou no inciso XI de seu artigo 16 o seguinte: Art. 16.  Dos contratos, regulamentos ou condições gerais dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei devem constar dispositivos que indiquem com clareza:  (...) XI - os critérios de reajuste e revisão das contraprestações pecuniárias". Ora, lembremos uma distinção importante: o "reajuste" de um preço é aceitável. Por exemplo, aplicando-se um índice prefixado e oficial de correção monetária. Isso é diferente de "aumento" puro e simples do preço. Uma revisão, no caso, implicaria numa necessidade de comprovação efetiva e até individualizada,  a partir de critérios justos e objetivos conforme previsto na lei e, também, que estivessem em plena sintonia com o princípio da boa-fé objetiva (honestidade, lealdade, equilíbrio, dever de cooperação, dever de cuidado e equidade). Na presente situação, ainda que as operadoras de planos de saúde queiram modificar seus preços, arguindo que sofreram aumento de custos, tudo indica que, no período da pandemia, houve diminuição desses custos. Assim, se era para modificar algo, seria caso de diminuição. Pergunto: será que um dia assistiremos à redução do preço? __________ 1 Inciso incluído pela lei 9,870 de 23-11-1999.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Outro conto de Natal

Mais uma vez, no último artigo do ano, eu abandono o tema do consumidor e publico um texto para a época de Natal. Hoje, apresento um outro trecho do meu romance "A Visita". Trata-se de uma fala do personagem principal para seus amigos e amigas. Eis o trecho: "(...) Estava sereno, tranquilo e as palavras saíam naturalmente. Disse: Camila, as crianças e eu estamos muito felizes de recebê-los aqui nesta noite em que comemoramos dezoito anos de nosso casamento. Eu gostaria de dividir com vocês um pensamento e uma história... Ouçam. Esse é o pensamento: Deus nunca chega tarde... Agora, eu narro a história... Numa pequena cidade do interior deste nosso Estado, há uma associação cristã que atende a famílias carentes. Ela recebe doações de mantimentos de todo tipo, produtos de higiene pessoal, brinquedos, roupas etc. e, naturalmente, dinheiro. Todo mês, as famílias carentes cadastradas vão até a sede da associação para receber o que precisam... Dona Elvira, a presidente da associação, uma pessoa maravilhosa, a havia fundado com o dinheiro que recebeu de herança muitos anos antes. Lourdes, sua filha de quatorze anos, adora ajudá-la na recepção dos produtos doados e na distribuição às famílias carentes. Uma vez por mês, nos domingos pela manhã, Dona Elvira faz uma reunião para a qual são convidados os doadores. Ela estabeleceu uma tradição: as pessoas que comparecem assistem a uma palestra, tratando de temas filosóficos ou cristãos, proferida por algum convidado especial. Quando a exposição termina, abre-se um debate e, ao final, todos rezam. Mas não se trata de uma reza comum. Não. Eles rezam pelo bem de alguém que não está presente. Funciona assim: o convidado levanta-se e apresenta-se; depois, indica uma pessoa e diz o que ela fez de bom para si ou para outrem. Daí, todos oram por essa pessoa. Rezam para que ela seja feliz e receba proteção divina... Algo muito bacana, não acham? A pessoa que recebe a benção da oração não sabe que essas outras bondosas pessoas estão lá a rezar por ela. Na verdade, nem sabe que elas existem. A pessoa ganha esse presente porque merece! Dona Elvira deixa os convites para a reunião mensal em cima do balcão de entrada. Qualquer pessoa pode pegá-los, levá-los e distribuí-los... Muito bem. Vejam agora o que aconteceu... Num certo fim de semana anterior ao da reunião, Lourdes pegou alguns convites e perguntou para a mãe: 'Posso distribuir os convites nas casas da redondeza?'. Dona Elvira, a mãe, disse: 'Não há necessidade, querida. Muitos convites foram retirados e, por aqui na vizinhança, todos sabem da reunião'. 'Mas, mãe', objetou Lourdes, 'e se alguém nunca tiver recebido? E não souber das reuniões?'. 'Não tem problema. Nossas reuniões são um sucesso. Estão sempre cheias'. A jovem Lourdes insistiu: 'Ah, mãe, não sei... Pode ser que alguém precise e não saiba. Eu olhei para os convites e eles me chamaram. Estou com muita vontade de deixá-los pelas casas. Mal não vai fazer, não é? Posso entregar? Posso, posso?'. Diante da insistência da filha, Dona Elvira permitiu, mas alertou: ''Está bem. Pode ir. Mas não vá muito longe, ok?. E não demore. São três horas. Volte até as cinco'. Lourdes recolheu os folhetos e saiu saltitante. Andou bastante e entregou quase todos. Quando eram quase cinco horas, só lhe restava um folheto. De repente, viu, ao final de uma rua sem saída, uma casa isolada, após um terreno baldio. Olhou para o folheto, depois para a casa novamente e resolveu ir até lá para entregá-lo. Apressou o passo, pois estava quase na hora de voltar e ela não gostava de desobedecer a mãe... A casa estava toda fechada, portas e janelas. Lourdes tocou a campainha. Ninguém atendeu. Tocou novamente. Sem resposta. Tentou uma terceira vez e nada. Sentou-se ao pé da porta e pareceu-lhe que havia gente lá dentro. Então, encostou o ouvido na madeira da porta. Ouviu um ruído. Tocou novamente a campainha, mas sem tirar o dedo por quase um minuto. Uma luz, então, foi acesa no interior da casa. Logo depois, a porta se abriu e surgiu uma senhora de idade avançada. Não tinha cara de bons amigos e perguntou com uma voz amarga: 'O que você quer?'. Lourdes estendeu o braço, entregando o folheto e disse: 'Jesus te ama!'. Lágrimas desceram pelo rosto da senhora, que a abraçou e apenas disse: 'Obrigado!...'. "No fim de semana seguinte, ocorreu a reunião. Depois da palestra e dos debates, três pessoas pediram que todos rezassem pela alma e pela vida de outras que indicaram, contando o que de bom elas haviam feito. E, como sempre, foi um momento bonito e tocante... "A quarta e última a falar foi uma senhora que se sentara no fundo da sala. Ela levantou-se e falou: 'Eu venho pedir que rezemos por uma menina. Não sei o nome dela, mas tenho a imagem de seu rosto iluminado aqui comigo em meu coração. Ela deve ter quatorze, quinze anos, olhos e cabelos castanhos, uma franjinha caindo na testa - quando a vi, estava de rabo de cavalo -, tem duas maçãs do rosto bem salientes, um sorriso amplo, com dentes perfeitos... Vim pedir que rezemos por ela... Eu sou viúva há dez anos e vivo sozinha numa casa que fica no fim de uma rua perto daqui. Meu filho Jorge mora em outro Estado distante e está sempre muito ocupado com sua mulher e seus próprios filhos, de modo que pouco fala comigo. Faz tempo que nem me telefona. Minha filha, Marta, é um sucesso. Tornou-se médica e vive, literalmente, o dia inteiro dentro de um hospital na capital federal. Se envolveu tanto com o trabalho, que se esqueceu de que ainda tem mãe. Para piorar, minhas duas melhores amigas faleceram há três anos. Eu não aguentava mais minha solidão. Há cerca de seis meses, comecei a me sentir tão mal, tão abandonada que não via outra saída. Comecei, então, a me preparar para minha morte. Não foi uma decisão fácil e, também, é muito complicado escolher a forma. Poderia ser muito ruim, poderia... Em vez de morrer, eu ficaria muito doente. Mas eu havia encontrado o caminho: tomaria todos os meus medicamentos de uma só vez, esvaziando as embalagens. Seria certeiro. Estava tudo pronto. Eu iria executar o plano na semana passada, domingo à tarde...'. 'Então, domingo eu nem almocei. Comi apenas um pão pela manhã. Lá pelo fim da tarde, eu peguei uma garrafa de água, todos os remédios (que são muitos) e levei tudo para meu quarto. Olhei bastante para a foto de meu falecido marido, Gusmão. Disse para ele em voz alta: 'Desculpe, querido. Não aguento mais. Espero que você possa me amparar quando eu sair daqui'. Abri a garrafa e deixei-a ao lado do copo. Tirei os comprimidos das caixas e os coloquei em fila. Eram dezenas'. 'De repente, ouvi a campainha tocar. Fiquei paralisada e em silêncio, aguardando que a pessoa fosse embora. Passou um pouco e eu enchi o copo com água. A campainha tocou de novo. Continuei quieta. Depois, juntei os comprimidos em grupos de quatro ou cinco. Ouvi a campainha novamente. Aguardei mais um pouco e, como se fez silêncio, pensei que a pessoa tivesse desistido. Daí, comecei a execução: coloquei os primeiros comprimidos na minha mão esquerda e peguei o copo cheio de água com a mão direita. Quando ia colocar os comprimidos na boca, a campainha recomeçou a tocar e, dessa vez, sem parar, ininterruptamente. Larguei os comprimidos na cama, devolvi o copo de água para a cômoda e desci para a sala. Abri a porta e lá estava aquela menina, brilhando como o sol. Ela me entregou um folheto e disse: 'Jesus te ama!'. 'Naquele instante, meu coração se aqueceu de um modo que não se aquecia há muitos anos... O resto vocês já sabem, porque estou aqui em corpo e alma. Essa menina me salvou. Rezemos por ela'. Assim que a senhora sentou-se, Dona Elvira tomou a palavra e, dirigindo-se a ela, disse: 'Jesus te salvou' e, depois, dirigindo-se aos demais presentes, falou: 'Vamos rezar pela Lourdes. A menina é minha filha'".
quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A pandemia, o isolamento e o direito de sonhar

Esta situação inusitada trazida pela pandemia do Covid-19, com isolamentos por todo lado, fechamento do comércio, perda de empregos, aulas à distância, afastamento das pessoas entre si etc. me fez pensar, mais uma vez, no sonho de obtenção de um capitalismo mais honesto e uma sociedade mais justa.  Em matéria de capitalismo, lembro que o nosso Código de Defesa do Consumidor - que já tem 30 anos de existência - criou um novo patamar de respeito para as relações de consumo. Foi uma luta aprová-lo, mas ele acabou surgindo, tardiamente, mas veio. Nasceu no século XX, muitos anos atrasado.  Para ser ter um ideia do tempo, nos Estados Unidos da América do Norte --  o país que lidera o capitalismo contemporâneo --  a proteção ao consumidor havia começado em 1890 com a Lei Shermann, que é a lei antitruste americana. Isto é, exatamente um século antes do nosso CDC (a Lei nº 9078 de 1980) numa sociedade que se construía como sociedade capitalista de massa, surgia uma lei de proteção ao consumidor. É verdade que, mesmo por lá, a consciência social e cultural da defesa do consumidor ganhou fôlego maior a partir dos anos 1960, especialmente com o surgimento das associações dos consumidores com Ralf Nader. Ou seja, o verdadeiro movimento consumerista (como se costuma chamar) começou para valer na segunda metade do século XX. Mas é importante atentarmos para essa preocupação existente já no século XIX com a questão do mercado de consumo, no país mais poderoso do mundo. Por outro lado, como se sabe, nossa lei consumerista,  apesar de tardia - e em parte por causa disso - acabou incorporando várias normas modernas protecionistas e isso gerou resultados altamente positivos a favor dos consumidores e do próprio mercado produtor. O CDC foi um sonho que se realizou e que dá frutos diariamente. Ele gerou mais igualdade, trouxe harmonia às relações jurídicas, fez com que o resultado das transações fosse mais honesto, enfim, é um marco da evolução jurídica no país.  Naturalmente, falta mais, até porque uma única lei não poderia resolver todas as mazelas sociais perpetradas pelo capitalismo da última geração globalizada e dominada por empresários com enorme poder de fogo. Mas, os consumeristas sonham ainda mais e lutam para implementar os objetivos de conseguir obter uma sociedade mais humana e justa. E, como disse na abertura, pensando no tema, lembrei de um texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano (falecido em 2015) sobre o direito de sonhar, que ele intitula mais poeticamente de direito ao delírio. Trata-se de um lindo texto extraído de um de seus livros. Não fala só de capitalismo, mas como este, de algum modo, está no centro de quase tudo, eu o transcrevo abaixo para nosso deleite. Vale a pena lê-lo.  Eis: O direito ao delírio1 Por Eduardo Galeano Que tal se delirarmos por um tempinho? Que tal se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia,  para imaginar outro mundo possível?O ar estará limpo de todo veneno que não venha  dos medos humanos e das humanas paixões.Nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães. As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelos supermercados, nem serão, também, assistidas pelo televisor.O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas.Será incorporado aos códigos penais o delito de estupidez, que cometem os que vivem para ter ou para ganhar, em vez de viver por viver e só. Assim como canta o pássaro, sem saber que canta, e como brinca a criança, sem saber que brinca.Ninguém viverá para trabalhar, mas todos nós trabalharemos para viver. Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo;  nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas.Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos. Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas. A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude e ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo. A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e, nem por falecimento nem por fortuna, se converterá o canalha em um virtuoso cavalheiro. A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio.Porque a comida e a comunicação  são direitos humanos.Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.As crianças de rua não serão tratadas  como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.A educação não será o privilégio daqueles que possam pagá-la. A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, bem grudadinhas, costas contra costas.A Igreja proclamará outro mandamento que Deus havia esquecido: "Amarás a natureza da qual fazes parte". Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma. Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados,  porque eles são os que se desesperaram de muito, muito esperar e eles se perderam de muito, muito procurar. Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido quando tenham nascido e tenham vivido onde tenham vivido,  sem que importe nenhum pouquinho as fronteiras do mapa nem do tempo. Seremos imperfeitos porque  a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégio dos deuses. __________ 1 É trecho do livro "Patas Arriba": Buenos Aires, dezembro de 1998, ps. 222/224.  O trecho do livro traduzido para o português pode ser encontrado na web. Este, eu extraí de um vídeo do próprio autor.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

As lorotas e as enganações continuam firmes

Existem várias versões para o significado da expressão "para inglês ver" e que remontam  à sua origem. Uma delas diz que em 1815, os portugueses e os britânicos firmaram um compromisso, no qual Portugal se comprometeu a não mais traficar escravos. Todavia, como Portugal não vinha cumprindo o compromisso, o Parlamento Britânico acabou aprovando uma lei que criminalizava a escravatura e concedia, unilateralmente, à frota real britânica poderes para abordar e inspecionar os navios portugueses. Como estratégia para enganar os ingleses, os portugueses carregavam a embarcação que ia a frente da frota com uma carga inofensiva para ser inspecionada, levando os escravos nos navios depois e com isso se safavam da inspeção. Outra versão, ligada ao mesmo tema, diz que em 1831 a governo português promulgou uma lei proibindo o tráfico negreiro, mas como o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, começou a circular a expressão de que a lei fora feita apenas "para inglês ver". E ainda outra versão diz que, após a partida da família real portuguesa para o Brasil, Portugal passou a ser uma espécie de protetorado da Inglaterra, que assumiu o comando da máquina militar portuguesa na luta conjunta contra a França. Mas, os metódicos ingleses que queriam tudo organizado e por escrito tinham problemas com os práticos portugueses. Assim, a cada imposição organizacional inglesa, os portugueses botavam tudo por escrito, para mostrar que estava tudo em ordem. Mas, era só no papel. Servia apenas para agradar os ingleses e dizer que estava tudo arrumado, isto é, era só para os ingleses lerem (ou verem). Na prática, as coisas eram bem diferentes. O mesmo se dava nas visitas dos generais ingleses a certos locais, que eram preparados (maquiados, como hoje diríamos) para dar uma aparência diversa do real. Se os ingleses exigiam a construção de uma estrada, os portugueses deixavam pás, pedras e material para a construção da mesma no local da visita. Assim, diziam que já estavam construindo. Era o que os ingleses viam. Ficou a expressão e o aprendizado. Mas, naquela época, consta que, de fato, os ingleses eram enganados. Continuo cuidando de um tema básico quando se trata de relações de consumo: o das mentiras e toda sorte de enganações perpetradas por muitos fornecedores. E, anoto que, de outro lado, uma grande parcela de consumidores diante das enganações, não as percebem; aceitam o falso sem senso crítico, apenas porque ele tornou-se banal ou é bem produzido, bem comunicado ou apresentado por alguém que detém autoridade. Muitas delas, apenas para inglês ver.  De há muito tempo que os consumeristas  descobriram que um dos fundamentos da sociedade capitalista de consumo é a mentira. Alguns setores empresariais  são desonestos na relação com seus clientes. Não há, claro, nenhuma novidade nisso. Quem conhece um pouco de história do comércio, da indústria, da economia etc. sabe muito bem que os segredos, as artimanhas, os conchavos, os acertos escusos etc. estão na base da produção e distribuição de produtos e serviços. Transparência não é um termo muito conhecido ou utilizado e está na raiz do sistema de produção e venda. Como diria Sócrates que aqui já referi, "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". Parafraseando-o, posso dizer que no processo de produção capitalista se faz muita coisa, mas se mostra outra diferente. Algumas comunicações falaciosas tornam-se lugares comuns e de tantos serem utilizadas, a população passa a nelas acreditar, inclusive algumas expressões utilizadas regularmente. Por exemplo, é costume referir-se à indústria de veículos como a "indústria nacional de veículos". Mas nós não temos, propriamente, uma  indústria nacional de veículos. São todas estrangeiras, aqui estabelecidas, muitas delas com enormes incentivos e que, todos os anos, enviam para o exterior os gordos lucros obtidos. Talvez devêssemos lamentar que não tenhamos um veículo nacional como têm os americanos, os franceses, os italianos, os japoneses, os alemães, os coreanos e os chineses. O fato é que, as versões surradas dos fatos são enfiadas pela goela da população e repetidas tantas vezes que soam como verdades. As pessoas se acostumam com as coisas rotineiras, comuns, banais e acabam aceitando-as como válidas e verdadeiras. Ou, então, aceitam os fatos como se eles não pudessem ser diferentes. Neste ponto cito um exemplo dado por meu amigo Outrem Ego. Disse-me ele que só percebeu que a cidade de São Paulo era tão esburacada quando viajou pela primeira vez ao exterior. Há alguns anos ele dirigiu mais de 500 quilômetros por ruas e estradas americanas sem ter passado por nenhum buraco. Mas, foi só quando retornou à cidade de São Paulo que ele percebeu como nossas ruas são incrivelmente esburacadas, onduladas e estragadas. Vale dizer, que sem alternativa ou jogadas à própria sorte, as pessoas acatam as regras, as imagens recebidas, o local em que vivem como se as coisas não pudessem ser de outro modo. Quanto aos consumidores, uma boa parte está tão absorvida pelo mundo do marketing e da publicidade, que não consegue se dar conta exatamente do que acontece. Eles vão sendo amaciados pelas imagens, textos e, muitas vezes, têm dificuldade de entender exatamente o que está sendo oferecido, tal como os ingleses do período acima citado.
Em mês de Black Friday, que por aqui entre nós, como se diz, tem muito de fraude, focarei as mentiras apresentadas pelas empresas, mas no ponto específico de sua execução. Quero dizer, quando uma "empresa mente", como se trata de uma pessoa jurídica, a comunicação enganosa ao consumidor é feita por uma pessoa humana, que,  também, é consumidora. É o que eu intitulo de ato de "consumidor contra consumidor". O Código de Defesa do Consumidor (CDC) tipificou o crime de informação ou afirmação enganosa em relação aos produtos e serviços, mesmo por omissão1. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa regra é bastante didática. Isto é, apesar de pretender punir os enganadores, os fornecedores que souberem aprender com ela (e, ainda, com várias outras normas contidas no CDC), certamente se beneficiarão no trato com seus clientes e no incremento de clientela. Anoto que a harmonização é um princípio fundamental do CDC, que sempre pretendeu que as relações jurídicas de consumo fossem equilibradas e pudessem beneficiar a todos os envolvidos. Infelizmente, uma boa parte do empresariado não tem como base o comportamento ético esperado pela lei (embora, eu reconheça que haja avanços pela atitude de alguns empresários mais inteligentes e menos gananciosos). Trato, pois, da "empresa mentirosa", lembrando como disse acima que, tecnicamente, a pessoa jurídica não mente nem pode mentir, pois é uma mera ficção (como, do mesmo modo, não pode sofrer dano moral, embora possa sofrer dano à imagem). Quando se fala que uma empresa mentiu, enganou, ludibriou um consumidor, evidentemente, está se querendo dizer que alguém nela o fez: foi o presidente e/ou os diretores e/ou os gerentes e/ou os demais empregados subalternos. Nos cargos de direção da alta cúpula, normalmente, existe uma espécie de amálgama entre as pessoas físicas que ocupam essa posição e a pessoa jurídica; uma fusão, uma espécie de mistura que gera uma imagem de que a pessoa humana falando como a própria pessoa jurídica, fala em nome dela, como se ela existisse realmente (embora, claro, os altos salários pagos sempre sejam depositados na conta da pessoa física!). Descendo do nível da alta direção para baixo na pirâmide burocrática, os empregados são intitulados de "colaboradores" e deles se espera que "vistam a camisa" da empresa. Nenhum problema quanto a isso, desde que as ações implementadas sejam legais, o que não é a hipótese do caso em exame. A mentira e a enganação são sempre perpetradas por dirigentes e colaboradores. Eis a ironia: todos eles são consumidores e nenhum deles - nem mesmo os dirigentes do primeiro nível hierárquico - estão livres de ser, por sua vez, enganados no mercado por outras empresas. É o fenômeno tipicamente capitalista de controle e implantação antiética de modelos de prestação de serviços trabalhistas que impõe que um trabalhador engane outro ou, dito de outro modo, é o procedimento amplamente implementado (embora não conscientizado) de batalha de um consumidor contra outro. Mal sabem eles que são meros joguetes na mão de seus patrões gananciosos e que eles mesmos, quando vão às compras como simples consumidores que são, acabam sendo enganados por outros empregados que, iguais a eles, mentem, fingem, enganam para lesá-los. Tudo num círculo vicioso que de há muito deveria ter sido eliminado da sociedade capitalista. Insisto num ponto: não há motivo algum para que as empresas não sejam transparentes na oferta e venda de seus produtos e serviços. Elas não deixarão de faturar, de auferir altas receitas e obter lucros por causa disso. Bem ao contrário: uma empresa moderna e que cumpre sua função social, respeitando a lei, seus clientes e seus empregados, só tem a ganhar com isso. Não são conhecidos casos de empresas que não deram certo, simplesmente, porque agiram de forma correta na relação com seus consumidores. __________ 1 "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.   § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena Detenção de um a seis meses ou multa".
quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Black Friday: aspectos legais e dicas

Chegamos à mais uma edição da Black Friday. Como se sabe, o termo foi criado pelo varejo nos Estados Unidos para nomear a ação de vendas anual, que acontece sempre na última sexta-feira de novembro após o feriado de Ação de Graças. Por lá, todo ano, o volume de vendas é muito alto, pois os descontos são realmente verdadeiros e os empresários norte americanos querem se livrar do estoque antigo e, no lugar, colocar as novas mercadorias para as vendas do período natalino que se inicia.   Mas, como não poderia deixar de ser, por aqui, nem tudo é desconto verdadeiro. Todo ano, os veículos de comunicação apontam dezenas de denúncias contra as enganações perpetradas por muitos  comerciantes, que usam uma tática antiga: aumentar o preço na véspera ou alguns dias antes e depois aplicar um desconto para chegar no mesmo preço anterior (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais). Aumentar preço num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar no mesmo preço, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é, como se sabe, publicidade enganosa prevista no CDC: "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços." Além disso, o ato caracteriza o crime de publicidade enganosa: "Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena: Detenção de três meses a um ano e multa."  E ainda o crime de informação falsa ou enganosa, este tanto na forma dolosa como culposa: "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa. § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena: Detenção de um a seis meses ou multa." Naturalmente, descontos são bons... Se precisamos do produto ou do serviço! Apesar de tudo, é possível conseguir e encontrar produtos com bons descontos e preços baixos na Black Friday. Nos anos anteriores as vendas via web/internet/aplicativos cresceram enormemente e, neste ano, por conta da pandemia, certamente elas serão maiores ainda. E é preciso tomar muito cuidado. Cada vez mais os hackers e os sites falsos estarão presentes nesse tipo de transação. Por isso, listamos algumas cautelas que o consumidor deve tomar nessas compras, não só agora na Black Friday mas sempre que fizer aquisições via web/internet/aplicativos. Seguem itens obrigatórios fixados pelo Decreto Presidencial nº 7.962/2013 e, também, dicas usuais para esse tipo de compra. Com efeito, o consumidor deve:  a. Conhecer e investigar o site por intermédio do qual pretende comprar. Primeiramente, examinando o endereço na web. Do lado esquerdo deve haver um cadeado e o endereço deve iniciar com https://. Do site deve constar o nome empresarial, o CPF (se o vendedor for pessoa física) ou o CNPJ; o endereço físico completo, o endereço eletrônico e os dados para contato.  b. Verificar se o site está em alguma lista de restrições dos órgãos de defesa do consumidor, como, por exemplo o Procon-SP;  c. Checar via web os preços praticados anteriormente, para tentar descobrir se realmente está sendo oferecido desconto;  d. Comparar preços nos diversos sites de vendas para os mesmos produtos, levando em consideração os acréscimos por fretes e seguros e, também, formas de pagamento;  e. Evitar de fazer as compras por intermédio de em celulares ou computadores de terceiros e/ou desconhecidos;  f. Manter o sistema operacional do computador e/ou do smartphone atualizado;  g. Certificar-se de que os dispositivos tenham antivírus;  h. Ativar o serviço que o informa via SMS a respeito das transações financeiras efetuadas;  Outra boa dica é a de fazer pesquisa em sites de proteção ao consumidor como, por exemplo, o ReclameAqui para checar reclamações e respostas do fornecedor.  Lembramos, ainda, que as ofertas devem  apresentar: as características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; a discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; as condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta.  Por fim,  e como se sabe, para as compras feitas via web/internet/aplicativos, o consumidor tem o prazo de 7 dias para se arrepender, cancelar a compra e/ou devolver o produto e receber o que pagou de volta. O artigo 5º do Decreto Presidencial citado estabelece expressamente: "O fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor."
quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O capitalismo está emburrecendo?

Nos anos oitenta do século passado, eu fui advogado de um grande banco internacional, administrado com o que havia de melhor em técnicas de relações de consumo. Aprendi muito em termos de qualidade no atendimento aos clientes. Por exemplo, uma das técnicas de cobrança levava em consideração o histórico dos clientes. "Uma coisa", diziam os executivos do setor, "é um novo cliente que logo no primeiro empréstimo deixa de pagar alguma prestação; outra, bem diferente, é um cliente antigo que sempre pagou em dia e que, de repente, atrasa". E, nos tempos atuais tenho observado uma queda na qualidade do atendimento aos consumidores na questão das cobranças, bem antipáticas. Veja esse exemplo: um médico, um advogado, um odontólogo etc. tem um contador que lhe envia boleto mensal para pagamento dos serviços prestados. Não importa quanto tempo essa relação dure, pode ser o primeiro mês ou o décimo ano, a empresa de contabilidade manda o boleto com um aviso: "se o pagamento não for feito na data do vencimento, a cobrança irá ao Cartório de Protestos". Mandando, de fato, ou não, será que não percebem que é algo tolo? É assim que se deve tratar os clientes, especialmente os fieis? Certa feita, meu amigo Outrem Ego, bastante nervoso, disse-me o seguinte: "Sou cliente de uma operadora de tevê a cabo há mais de dez anos. Nunca atrasei uma só prestação. Nenhum mês. Há dias e semanas em que nem assisto nada. Muitas vezes, o sinal foi cortado sem motivo e jamais me deram um desconto. Pois bem, sabe-se lá por que a conta desse mês de agosto ficou enroscada em outras - tenho muitas contas pra pagar. Vencia dia 10 e eu só vi alguns dias depois. Paguei atrasado. Mas, não é que no mesmo dia recebi uma cobrança grosseira, dizendo que se eu não regularizasse meu débito o sinal seria cortado. Empresários grossos e mal educados. Será que não viram que foi um engano? Será que não distinguem bons clientes de maus clientes? Esses milhares de reais que eu entreguei para eles esses anos todos não valem nada? Diante do desrespeito, eu até pensei em trocar de operadora, mas deve ser tudo igual. Nós consumidores não temos saída. É assim que eu me sinto: ultrajado. Alguns administradores desse capitalismo moderno são estúpidos!" Infelizmente, sou obrigado a concordar com ele. O desprezo ao consumidor grassa na sociedade capitalista atual. Meu caro leitor, pense comigo: digamos que você fosse cliente de um restaurante por muitos anos e frequentasse o local regularmente por esse período, talvez uma vez por mês. Quando lá chega todos te cumprimentam. Afinal, é bom cliente, é fiel, paga a conta com as gorjetas inclusas e, naturalmente, comparece por que a comida é boa e o atendimento também. Será que, depois de dez anos, se você tivesse esquecido a carteira, o dono do restaurante te faria lavar os pratos? Saber diferenciar clientes bons e maus pagadores é não só elegante, como inteligente e técnico mesmo: se um cliente nunca deu problema, a probabilidade de que ela venha a dar é menor que daquele que começou na contramão. Ademais, o cliente antigo já rendeu muitos benefícios ao fornecedor e, por isso, merece uma maior consideração. Sei que nas grandes operações de massa e em que há pouca competição ou monopólios e oligopólios o atendimento pode ser ruim, se todos tratarem do mesmo modo seus clientes, que são prisioneiros do sistema. Isto é, se o consumidor for mal  atendido num restaurante, não precisa mais voltar lá porque há outros para ir. Mas, como bem disse meu amigo, trocar de operadora de tevê a cabo, se desse para mudar, não alteraria o panorama do desrespeito porque o modelo de tratamento ao consumidor é parecido ou idêntico. Parece mesmo que os tempos mudaram para pior; há um emburrecimento generalizado: o bom pagador está em pé de igualdade com o que não é; e não se trata de uma questão jurídica, mas apenas de uma estratégia mal engendrada. Naturalmente, como nessas grandes operações são centenas, milhares de clientes, a cobrança segue um padrão automático. Porém, mesmo nesse automatismo, daria para criar modelos de cobrança para consumidores diferenciados: bastava programar o computador. Será que um dia melhora? Tomara.
quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Produto essencial: o desrespeito à lei

O que um fabricante gostaria que acontecesse com seu produto lançado no mercado? Sucesso ou esquecimento? A resposta é óbvia e, naturalmente, todo fabricante se esforça para que seu produto caia no gosto do consumidor. Ou melhor ainda: que se torne necessário e até imprescindível.  Isso: imprescindível. Esse é o sonho de todo fabricante: que seu produto se torne imprescindível, necessário, de compra obrigatória pelo consumidor. Quando isso acontece, basta fabricar novos modelos e vende-los facilmente.  Ora, esse produto tornou-se essencial. É caso típico de produto essencial. É aquele que o consumidor não pode viver sem, pois sua vida cotidiana, seu trabalho, seu estudo, seu lazer etc. depende desse produto.  Vitória do fabricante!  E o Código de Defesa do Consumidor (CDC) sabe disso. Por isso, regula de forma especial as garantias que os envolve.    Infelizmente, ainda falta muito para que o mercado de consumo brasileiro se alinhe com o que há de mais moderno em termos de respeito aos direitos dos consumidores. Nem mesmo as empresas estrangeiras, que vendem ou se apresentam como de alta qualidade no atendimento ao consumidor, conseguem fazê-lo quando chegam aqui. Por causa dos abusos praticados repetidamente, eu volto ao assunto.  Meu caro leitor, veja o que aconteceu com meu amigo Outrem Ego. Ele tem um smartphone de última geração. E, como acontece com milhões de consumidores, dele se utiliza para trabalhar, para cuidar de sua família e tudo o mais que esse produto propicia. Mas, eis que o aparelho simplesmente deixou de funcionar.  Meu amigo, então, levou o aparelho à assistência técnica do fabricante que lhe informou que aquele produto estava muito danificado, o que, naquele modelo, já havia ocorrido com outros clientes. Se não conseguissem consertar em uma semana, então, lhe dariam um novo que, aliás, viria do exterior. Ele protestou: disse que não podia ficar sem o produto, pois era essencial para seu trabalho e que o fornecedor devia, ao menos, emprestar um, funcionando adequadamente até que o dele ficasse pronto.  Bem, o atendente citou a lei e disse que eles tinham 30 dias para fazer o conserto.  Será?  Claro que não!  Vejamos o que diz a lei.  Com efeito, dispôs o art. 18 do Código de Defesa do Consumidor:  "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas." É verdade que a lei fala em 30 dias. Veja: "§ 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 (trinta) dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço." Porém, o parágrafo 3º do mesmo artigo diz:  "§ 3º O consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do § 1º deste artigo, sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir-lhe o valor ou se tratar de produto essencial". Ou seja, o consumidor, sempre que tiver produto enquadrado nas hipóteses do § 3º, poderá fazer uso imediato - isto é, sem conceder qualquer prazo ao fornecedor - das alternativas previstas no § 1º, quais sejam: a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;  a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; o abatimento proporcional do preço. A escolha, naturalmente, é do consumidor. Das hipóteses previstas, a que nos interessa é a da relativa ao produto essencial, que, todavia, a lei não define. E o que seria?  Ora, como já mostrei no início deste artigo, produto essencial é aquele de que o consumidor necessita para a manutenção de sua vida pessoal com dignidade, para os cuidados com sua família e de sua vida privada e, também, ligado à saúde, segurança etc. E, claro, se o consumidor adquire o produto para fins profissionais, a essencialidade está ligada ao uso necessário e urgente para seu mister. Caro leitor: isso não é novidade alguma. No mundo todo é assim: smartphone é, evidentemente, um produto essencial!  No caso narrado por meu amigo, o aparelho havia de ser trocado na hora, sem mais delongas por outro igual em perfeitas condições de uso. Bastava fazer a troca e pronto. Aliás, como uma boa empresa deve fazer.
quinta-feira, 22 de outubro de 2020

O direito à saúde e o mercado de consumo

A obesidade é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o acúmulo excessivo de gordura no corpo e que pode acarretar problemas graves de saúde como doenças cardiovasculares, hipertensão e diabetes. Segundo a OMS, a obesidade é considerada a mais importante desordem nutricional e é uma epidemia mundial. A incidência da doença é alta, tanto em países desenvolvidos, quanto nos emergentes e subdesenvolvidos. Nenhuma faixa etária está livre do problema. E, pior, nos últimos anos tem aumentando a incidência da doença nas primeiras faixas etárias, em crianças e adolescentes. Uma pesquisa divulgada recentemente pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostra que 95,9 milhões de brasileiros acima de 18 anos estão com excesso de peso, sendo que 41,2 milhões são considerados obesos. Estes quase  96 milhões representam 60,3% dos brasileiros com mais de 18 anos, segundo os dados, que são da PNS (Pesquisa Nacional de Saúde 2019)1. O IBGE também estima que cerca de 1,8 milhão de adolescentes de 15 a 17 anos (19,4%) tenham excesso de peso. Outros 619 mil (6,7%) sofrem de obesidade. E lembra que jovens acima do peso podem desenvolver doenças que antes eram tidas como de idosos: hipertensão, diabetes tipo 2 e acúmulo de gordura no fígado Conforme explica a médica nutróloga Jussara Fialho Ferreira2, há alguns anos se dizia que  a obesidade decorria da gula, da falta de força de vontade, de uma fraqueza de caráter ou, ainda, de algum distúrbio psicológico. Atualmente, a ciência reconhece  que a obesidade tem múltiplas causas fisiológicas e psicológicas. Diz ela: "Sabe-se que existem pessoas que possuem genes predispostos ou não a prática de esportes ou que tem predisposição para comer muitos doces, por exemplo. Mas não é só isso que determina se uma pessoa será ou não obesa. Outro agravante é a hereditariedade. Se um dos pais for obeso, a chance de desenvolver o distúrbio é de 50%. Agora se ambos forem obesos a chance é de 80%"3. Além desses fatores genéticos, existe o fator ambiental. Este é caracterizado pelo desequilíbrio entre a ingestão de alimentos com alta densidade calórica e a queima insuficiente destas calorias. A psicóloga Angela Tamashiro diz que "As pessoas não são obesas porque querem ou desejam. Várias são as causas que geram a obesidade. Em 90% dos casos, a causa da obesidade está na utilização descontrolada da gordura..."4. Importante realçar essa questão ambiental, que é típica do modelo capitalista de consumo: obesidade causada pela ingestão imoderada de produtos calóricos, repletos de açucares e conservantes e outros ingredientes que fazem mal à saúde. Um dos principais problemas é o da ausência de informação ou má informação a respeito dos produtos ditos alimentícios que são fabricados e vendidos em todos os cantos do país e, também, a maneira como estes são oferecidos pela publicidade massiva. A partir da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, em 11/3/1991, os fabricantes foram obrigados a fornecer  informações sobre o conteúdo de seus produtos alimentícios, mas, passados quase 30 anos da vigência da lei, o que se percebe - como já aqui me referi mais de uma vez - é que a grande indústria descobriu meios de distribuir seus produtos não saudáveis por intermédio das conhecidas fórmulas de sedução veiculadas pela publicidade e, também, algumas vezes fornecendo informações insuficientes ou não claras.   E, se os consumidores adultos têm dificuldade de compreender as informações dirigidas a eles, certamente a dificuldade aumenta quando se trata de crianças e adolescentes.  Sei que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou, no último dia 7, mudanças nos rótulos de alimentos. Segundo o órgão, a medida melhora a clareza e a legibilidade das informações nutricionais presentes no rótulo dos alimentos e quer auxiliar o consumidor a realizar escolhas alimentares mais conscientes. "O objetivo dessa norma não é impor nenhuma escolha. É possibilitar a compreensão, respeitando a liberdade de escolha de todas as pessoas que vivem no nosso território"5, diz a diretora relatora Alessandra Bastos.  "Com a nova regra, os consumidores terão mais facilidade para comparar os alimentos e decidir o que consumir. Além disso, pretende-se reduzir situações que geram engano quanto à composição nutricional"6, afirma Thalita Lima, gerente geral de alimentos da Agência. A novidade estabelece mudanças na tabela de informação nutricional e nas alegações nutricionais, bem como inova ao adotar a rotulagem nutricional frontal. Penso que isso ajuda, claro. Mas, remanesce o problema de que, mesmo conhecendo a tabela nutricional e os elementos prejudiciais, o consumidor continua consumindo produtos que nem sempre fazem bem à saúde. E, também, no caso, a mudança apresentada pela Anvisa começará a vigorar em 24 meses e, em alguns casos, em 36 ou 48 meses7. De fato, é preciso melhorar a educação para o consumo de alimentos mais saudáveis. __________ 1 Disponível aqui. 2 Apud Elisa Cortes, "Obesidade: nova epidemia mundial", 29/9/2009. 3 Idem. 4 Apud mesmo artigo. 5 Disponível aqui. 6 Idem. 7 Idem.
quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A qualidade da alimentação

Se já não bastassem os problemas com carboidratos, proteínas, gorduras, calorias etc. que atingem os consumidores crianças, jovens, adolescentes, adultos, idosos, enfim, todos os consumidores, a cada dia fica mais claro que, na sociedade capitalista contemporânea, que só conhece o lucro e só pensa nele, muitos produtos vendidos são falsificados, adulterados e deteriorados. E não se trata apenas de se "vender gato por lebre". Há muitos produtos autênticos que fazem mal por suas próprias substâncias, por falta de informação ou por informação imprecisa etc. (Sei que a Anvisa acaba de modificar as regras para rotulagem para proteger os consumidores, mas como as regras somente entrarão em vigor somente daqui a dois anos, deixo, por ora, de cuidar do tema). Aliás, como identificar se o produto alimentício é de boa qualidade?  Realmente, nem sempre é fácil fazer essa identificação. Em boa parte das vezes, o consumidor se serve dos olhos e do nariz: aparência e cheiro são boas alternativas para se aferir qualidade, mas nem sempre dá certo. Claro que o comprador pode lançar mão das cautelas tradicionais como, por exemplo, se for adquirir carnes vermelhas, verificar se elas apresentam zonas (ou manchas) escurecidas ou zonas ou pontos secos, sinais de deterioração. Ou, então, nunca comprar carne moída que já estava triturada quando ele chegou no açougue (Deve-se sempre escolher a carne inteira e pedir para moer à vista). Também não deve comprar carne de porco que apresente pequenas bolinhas brancas (conhecidas como "canjica"). Bem, já que comecei deixe-me lembrar das cautelas para compras de aves: a sua carne estará boa quando tiver consistência firme, cor amarelo-pálida, brilhante e com odor (cheiro) suave, e estará deteriorada quando apresentar cor esverdeada; sua consistência não estiver firme; e/ou apresentar cheiro forte. E, quanto aos peixes, o consumidor só deve adquirir os que tiverem o corpo rijo (duro), escamas firmes e os olhos salientes e brilhantes. Já os peixes secos, como o bacalhau, estarão deteriorados se apresentarem manchas úmidas ou avermelhadas. Você, meu caro leitor, quer compre os próprios alimentos para preparar quer os compre prontos, sabe muito bem que o mercado está repleto de fraudes de todo tipo e também de produtos deteriorados,  que transmitem doenças que nem sempre aparecem em curto espaço de tempo (O que gera um grande problema de prova e investigação - pessoal ou pelas autoridades). Não é à toa que alguns bons restaurantes, desde há muito tempo, passaram a abrir suas cozinhas para que os clientes possam ver como a comida está sendo preparada ou, pelo menos, permitem que eles façam uma visita nas instalações. Porém, nem sempre isso é suficiente. Por isso, inclusive, os consumeristas dizem que um bom modo de conhecer a higiene do restaurante é ir, antes de mais nada, ao banheiro local. Se ele estiver asseado, é um bom começo. Mas, se nem o banheiro, que é escancarado ao olhar do consumidor, está limpo, o que se dirá do resto? Claro que, como diz meu amigo, Outrem Ego, "Dá para 'maquiar' o banheiro. Este pode estar tinindo, lindo, cheiroso e ainda assim a comida não estar no mesmo padrão. Não é fácil mesmo a vida de consumidor, especialmente se estiver com fome". Essa situação de fragilidade do consumidor em relação aos serviços e produtos oferecidos e adquiridos, já disse mais de uma vez aqui nesta coluna, é uma característica universal  e que a nossa lei de proteção expressamente reconhece: ele é vulnerável, porque não só não tem acesso aos meios de produção e distribuição como é obrigado a acreditar (confiar?) nas informações que se lhe dirigem. Ademais, em relação aos alimentos, ele pode se enganar com os olhos e com o olfato. A vulnerabilidade do consumidor nesse tema é marcante. Ilustro com um caso  hipotético. Digamos que, Zé Mineirinho seja o produtor do melhor queijo branco de Minas Gerais. Por exemplo, da região de Uberlândia. Ele sabe que seu queijo é o melhor do país, de alta qualidade e produzido com rígido controle de higiene e, aliás, ele é reconhecido no Brasil inteiro exatamente por isso. Um belo dia, os pais do Zé Mineirinho resolvem mudar-se da cidade. Decidem ir morar na capital de São Paulo. Mudam-se. Três meses depois, ele vai visitá-los. No domingo, Zé Mineirinho acorda e vai até a padaria comprar pãozinho para o café da manhã. Chegando lá, ele vê o queijo "Zé Mineirinho" de Uberlândia na vitrine do balcão refrigerado. Dá, um sorriso, estufa o peito e pergunta ao balconista: "Esse trem de queijo Zé Mineirinho é bom?". O atendente diz: "É o melhor do Brasil". Zé Mineirinho abre agora um sorriso largo que ilumina todo seu rosto e diz: "Vou levar. Me dá um". Ele chega na casa dos pais, todo feliz, mostra o queijo, sentam-se à mesa e se deliciam com os pãezinhos frescos, com o café, o leite e o queijo. Antes da hora do almoço, os três começam a sentir fortes pontadas na barriga e logo são internados num hospital, intoxicados que foram pelo queijo. Pode? Pode. Na condição de consumidor, Zé Mineirinho tornou-se frágil como qualquer consumidor. Ele, como produtor, sabia que o queijo era bem produzido, feito com insumos de primeira qualidade e em condições de higiene perfeitas. Mas, como comprador, não sabia como é que o queijo havia sido transportado, se na linha de distribuição algum dos comerciantes havia deixado o queijo sem  armazenamento adequado ou em contato com produtos indevidos ou mesmo se na padaria ele fora bem guardado e cuidado etc. Não tem jeito: A condição do consumidor é mesmo de vulnerabilidade. Daí que, a cada dia é mais difícil se alimentar bem e sem preocupações. Nenhuma área está isenta de fraudes e/ou problemas de qualidade. Podem ser produtos "in natura" ou industrializados. De fato, todo cuidado é pouco.
quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O capitalismo e o dia das crianças

Neste ano, por conta da pandemia, o Dia das Crianças, que se comemora na próxima semana, será diferente. Certamente, haverá menos compras de presentes o que, penso, ser bom, como já disse várias vezes. A data é apenas mais uma do calendário comercial-capitalista.  O fato é que grande parte dos adultos, em matéria de consumo, está imersa nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de ilusão e controle.  Sei que, atualmente, proclama-se a liberdade, mas em larga medida ela é usada adquirir produtos e serviços, cuja escolha é limitada àquilo que é decidido unilateralmente pelos fornecedores. E, no exercício dessa liberdade, milhares de consumidores se super endividam. Este é o mundo dos adultos.  Agora, pergunto: é esse o futuro que desejamos para nossas crianças? É esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indivíduos se medem pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e não por aquilo que são?  Claro que nem toda culpa é do mercado, mas com certeza o modelo que faz com que a pessoa se aliene nas compras e acredite na publicidade, a atordoa de tal modo que ela, jogada à própria individualidade, não sabe como agir. Vendo tevê ou navegando na web, por exemplo, assiste-se ao mundo perfeito dos anúncios publicitários: o de bancos mostrando seus gerentes sempre sorrindo  e oferecendo vantagens a seus clientes, enquanto na realidade os clientes são enganados a torto e a direito, assinando contratos com cláusulas abusivas, recebendo cobranças de taxas absurdas, sendo obrigados a aderir a operações casadas ilegais etc. Há, também, a propaganda de veículos maravilhosos, que nunca quebram; de smartphones mágicos; de alimentos exuberantes etc.; enfim, um longo desfile de produtos e serviços que nem sempre correspondem ao real. Há, pois, dois mundos: o da publicidade e o dos fatos.  É incumbência dos adultos conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para tentar desvendar as enganações e discernir sobre o que é válido e verdadeiro. Mas, refaço a pergunta: e nossas crianças, como estão posicionadas nesta sociedade capitalista? Como é que elas recebem o espetacular assédio do marketing e suas armas?  Certamente, recebem com mais influência que em relação aos adultos. Mas, há muitos pais absorvidos por todas as formas de consumo e, inclusive, utilizam-se do próprio mercado para controlar seus filhos, o que é uma pena. Não que seja fácil. Ainda que, por exemplo, os pais tenham o costume de limitar a exposição de seus filhos à tevê, basta um pouco de tempo para a percepção do ataque (uma verdadeira guerra de anúncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, se o filho tem seu tempo limitado de uso da internet, são suficientes também apenas alguns minutos para a explosão de ofertas.  E, se não bastasse isso, há toda a sedução do merchandising feito em programas de tevê, filmes de cinema, vídeo e até teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal  vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato é inevitável e não há mesmo nada de errado em passear nos shoppings, ir aos cinemas, teatros, viajar, assistir tevê etc. Não é mesmo fácil. Mas, é lição de casa que precisa ser feita.  Cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos. É comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem da maior parte deles. Pode ser um bom precedente para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. E, evidentemente, cabe aos pais dizer não. A criança pode até se frustrar, mas será por algo válido, uma boa experiência que ela levará consigo, pois na vida adulta ela perceberá que a frustração é um elemento comum no jogo social.  Os pais são, pois, os primeiros responsáveis por alertar seus filhos contra o assédio feito pelo marketing infantil hoje tão sofisticado e difundido. Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e serviços. Qual deve ser a função do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve comprá-los sem exagero.  As crianças, se pudessem, agradeceriam as lições.
quinta-feira, 1 de outubro de 2020

O mercado fake

Vi, há muito tempo, num seriado policial de tevê, um caso interessante (Infelizmente, não lembro o nome da série). Era a história de um empresário que queria que seu filho seguisse a mesma carreira que ele; que pudesse um dia tomar conta das empresas da família. Mas, o filho gostava de arte e desejava ser pintor. Assim, contra a vontade do pai, passou a se dedicar a pintura. O pai tinha muito dinheiro e uma casa maravilhosa projetada por um importante arquiteto e lindamente decorada. Tinha, inclusive, penduradas nas paredes, pinturas à óleo originais e valiosíssimas. O filme cuida do dia em que o pai descobre que o filho havia furtado e vendido os tais quadros, embolsando uma fortuna. Mas, a ironia era que o filho havia copiado as obras e as havia colocado no lugar das originais. O pai, durante meses, jamais se deu conta disso. Quando o filho foi preso, disse para o pai: "Que diferença faz para você? Há meses que você olha para os quadros nas paredes e não vê que são cópias. Pouco importa quem pintou, o que vale é que você pensa que foi o pintor original. Mas, você estava vendo meus quadros!". E ficou no ar essa pergunta: "Se você aprecia uma pintura e, de algum modo, ela faz bem a seu espírito, que diferença faz saber se ela é original ou cópia? Aliás, depois que você a admirou, se encantou com ela e se emocionou, que adianta alguém dizer que ela não era original?".  Agora, cito esta história envolvendo o famoso pintor espanhol Pablo Picasso. Dizem que, certa vez, ele, de regresso ao Castelo de Vauvenargues no sul da França, onde morava, encontrou o local sem mantimentos. Não havia comida, vinhos etc. Chamou o capataz e pediu-lhe que fizesse as compras, mas este disse que não havia dinheiro em casa e nem talão de cheques. Picasso, então disse: "Não tem problema". Desenhou uma pomba numa folha de papel. Assinou e disse: "Pague com isto!". Meu caro leitor, pergunto: Quanto vale uma assinatura?  E um original? Aliás, o que é mesmo um original? Por exemplo, os próprios pintores descobriram um bom filão com as reproduções de suas obras, numeradas ou não.   Como se sabe, o mercado capitalista é expert em dar preços às coisas e tem também a habilidade de supervalorizar algumas delas. Às vezes, a valorização tem relação com a demanda: muita demanda e pouca oferta gera preço alto, como acontece na bolsa de valores e nos preços das commodities em geral. Em outras vezes, o preço é ditado pela autoridade de quem produz o bem. O exemplo acima de Picasso ilustra bem esse aspecto. Trata-se de uma marca de valor. Essa autoridade (marca de valor) nasce do próprio mercado, que a reconhece numa espécie de círculo fechado: quem tem autoridade (e mais valor) em determinado assunto, produto, serviço etc. a detém porque é reconhecido pelo mercado e o mercado, por sua vez, dá mais valor a quem tem autoridade. Nas artes, nem sempre isso ocorre em vida, para azar de alguns artistas. Fiquemos apenas com o exemplo de Van Gogh, que se suicidou aos 37 anos (em 1890) e vendeu em vida um único quadro por apenas 400 francos. E que, a partir de uma exposição feita em Paris em 1901, começou a ficar famosíssimo. A pintura intitulada "Retrato do Doutor Gachet" (Gachet foi o médico que cuidou de Van Gogh nos últimos tempos de sua vida) foi vendida no século passado por oitenta e dois milhões e quinhentos mil dólares! Bem, estou citando obras originais, produtos originais. Porém, coloco a questão do original diante do falso: o original e sua cópia ou suas cópias. Pergunto:  por que o consumidor paga para ter algo copiado? Compra um produto fake, como se diz, consciente de que ele não é original. Meu amigo Outrem Ego, me disse que  tem gente que usa relógio rolex falso porque é mais fácil de entregar para o ladrão... Ele protesta: "Pergunto, se é para ser roubado, para que usá-lo? Por que não usar um relógio qualquer sem marca? Ou nenhum, como faço eu?".  O mercado combate ferozmente todo tipo de pirataria. Melhor dizendo, não é exatamente o "mercado" que combate, mas os proprietários das licenças e das marcas registradas. Mesmo assim, a pirataria resiste; de fato existe um "mercado pirata", um "mercado fake". Esse tipo de demanda é criada em parte pelo próprio dono do produto de grife, que o promove como algo raro e/ou caro a ser cobiçado. Como o preço fixado não é barato, acaba tendo de concorrer com os falsificadores que atuam na clandestinidade vendendo a preços mais acessíveis. Então, podemos dizer que grande parte desses consumidores que adquirem os produtos falsificados o fazem, em primeiro lugar, porque reconhecem uma autoridade (um valor) na marca e, em segundo lugar, porque o preço permite. Do que se pode concluir que, se o produto "de marca" não fosse caro, o consumidor compraria o original. De fato, o consumidor, quando adquire um produto de grife, o faz porque de algum modo ele lhe gera uma distinção social. Passa a ser olhado (nesta nossa sociedade de alta exposição ao olhar) pelos demais como possuidor de uma identidade (que ele valoriza). A grife também permite que ele frequente certos locais e grupos, que se apresentam do mesmo modo. Daí que, às vezes, acreditando nessa forma de distinção e não podendo adquirir o original, ele se contenta com a cópia. Mas, claro, a torcida é a de que a cópia seja conhecida apenas dele. O consumidor não irá pendurar um relógio rolex falso no braço e sair dizendo "é falso". Ele usará para mostrar e para que as demais pessoas o enxerguem como usando um verdadeiro. O mesmo se diga em relação a qualquer outro tipo de produto de marca: bolsas, sapatos, canetas, objetos de vestuário etc.  É o mercado, portanto, que cria e oferece tanto o produto original como o falso (embora o próprio consumidor consiga, evidentemente, em alguns casos, produzir a cópia para seu uso). Esse tema lembrou-me uma máxima dita ao final do bom e assustador filme baseado na obra de Patricia Higsmith, O Talentoso Ripley (refilmagem do filme francês "O sol por testemunha"), no qual o personagem central rouba a identidade de outra pessoa para viver em seu lugar. Diz ele: "Prefiro ser um falso alguém do que um ninguém verdadeiro".  Claro que não é preciso que o produto ou o serviço sejam falsos para que o elemento psicológico apareça: há consumidores que compram caros produtos originais para parecerem o que não são; muitos se endividando para tanto. É isso. O mercado é muito criativo; não cessa de fazer ofertas falsas ou verdadeiras de produtos e serviços originais ou copiados. Parece tudo uma questão de gosto, mas isso, como se diz, não se discute.
O consumidor está cada vez mais "empregado" do fornecedor. Volto, pois, ao tema. A ideia do consumidor ser transformado em empregado do fornecedor não é nova. É conhecida de todos nos serviços self service em restaurantes, passando pelos postos de combustíveis nos Estados Unidos da América do Norte e também na Europa, indo desembocar, no final do século XX, nos atendimentos self service feitos pelo consumidor via internet dos serviços bancários e se expandiu por toda a rede de vendas online. O modo de transferir atividade fim para o consumidor, que é quem paga para recebê-la, às vezes, de fato, traz vantagens: quando, por exemplo, ele faz transferências bancárias sem sair de casa ou quando escolhe aquilo que quer comer nos restaurantes olhando e examinando os pratos oferecidos. Mas, nem sempre significa bom serviço. Veja-se o caso dos postos de combustíveis self service, existentes no exterior. É exemplo de serviço de péssima qualidade com, inclusive, riscos para a saúde e a segurança do consumidor (Por sorte, no Brasil ainda não foi implantado). Essa "técnica" é, naturalmente, uma maneira que o fornecedor tem de diminuir custos, usando mão de obra terceirizada gratuita do próprio consumidor. E ela não para de se expandir,  piorando os serviços: já havia chegado nos check-ins dos aeroportos americanos e nessa área já desembarcou por aqui. Na pandemia, expandiu-se bastante, tanto pela via do telefone/iphone como pelos aplicativos. Os aplicativos e os "robôs" passaram a substituir os(as) atendentes reais, fazendo com que o serviço de atendimento piorasse muito. Há fornecedores que disponibilizam como forma de atendimento e/ou reclamação apenas o site, dificultando os esclarecimentos de que o consumidor necessita. Tudo é feito para diminuir os custos e, neste período crítico, esse elemento foi realçado. Infelizmente, economia por métodos de relacionamento nem sempre significa melhora da qualidade dos produtos e serviços, nem barateamento dos preços. O mesmo ocorre com a suposta redução de custos na implantação do sistema self service: o consumidor é transformado em empregado sem nada receber em troca, nem qualidade dos serviços, nem diminuição de preço. Aliás, ao contrário, muitas vezes ele paga para fazer o serviço do fornecedor, pois imprime os comprovantes em sua casa com seu papel e sua tinta ou paga um preço maior por ter feito o pedido online como acontece, por exemplo, às vezes, com os ingressos para o cinema. Mas, como já mostrei antes em outros artigos, o mercado é mesmo muito bom em "criar modas" e ditar comportamentos e o consumidor, embalado por elas vai se adaptando e se acostumando. Ele se vira sozinho mexendo nas araras das lojas de roupas para encontrar o traje que tem interesse; depois se arranja para experimentar o que encontrou sozinho, em frente ao espelho; quebra a cabeça para decifrar as informações dos sites das companhias aéreas para conseguir emitir um ticket de viagem ou se atormenta tentando obter uma passagem via milhagem etc. Em algumas lanchonetes e praças  de alimentação podem ser lidos avisos do tipo "Limpe a mesa para o próximo cliente". Muitos consumidores, por cortesia e educação, fazem a limpeza. Mas, nem sempre há local para se colocar os recipientes, o que impede que se faça a arrumação. Em outras ocasiões, como nem sempre o consumidor cumpre a determinação, não é incomum encontrar-se mesas sujas, repletas de pratos, talheres, copos e restos de comida pela falta de empregados em número suficiente para manter o lugar limpo. O fornecedor esquece que não basta dar uma ordem ao consumidor; é necessário ter pessoal próprio para efetuar a limpeza caso o consumidor não o faça. Tiro no pé, pois. Gosto sempre de lembrar que todo empregado é consumidor e que, muitas vezes, o empregado, após violar um cliente a mando do patrão, acaba sendo violado como consumidor, enganado pelo empregado de outro patrão. Trata-se, afinal, da sociedade capitalista como a conhecemos. Nesse modelo do self service, talvez pudessem os empregados se preocupar com seus empregos, porque quando o sistema dá certo, certamente, há enxugamento de postos de trabalho. Sei que nesse assunto não há saída, pois o sistema self service veio para ficar, dando mais lucros via redução de custos e tirando emprego dos trabalhadores, mas em alguns setores,  como postos de combustíveis e aeroportos,  eles bem que poderiam não existir.
quinta-feira, 17 de setembro de 2020

É permitido o aumento abusivo de preços?

Um dos temas desta semana foi o suposto aumento abusivo de preços praticado pelo comércio, em especial do arroz e do óleo, mas também de outros produtos. Foi estabelecida uma fiscalização pelos órgãos de defesa do consumidor e alguns jornalistas/opinadores disseram que estaríamos de volta ao período Sarney de controle de preços ou das práticas de tabelar preços pela extinta Sunab, algo ilegal, pois agora os preços são livres. Sim, vivemos um período de liberdade na fixação dos preços. Todavia, em períodos de exceção, como é, evidentemente, este da pandemia, impõe-se comportamentos especiais. E mais: a legislação brasileira é rica em normas para que se possa combater a ganância. Ganância. É dela que trato aqui mais uma vez: a sede de ganho sem limites. Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população  da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1. No livro citado, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente"2. Esse tipo de conduta não é novo nem surpreendente e já se verificou no Brasil inúmeras vezes. Lembro que, mais de uma vez, alguns donos de postos de combustíveis, aproveitando-se da escassez provocada pela greve dos caminhoneiros, aumentaram (e muito) o preço da gasolina e do álcool nas bombas. Há também um caso bem conhecido: em janeiro de 2011, alguns comerciantes da região serrana do Estado do Rio de Janeiro aumentaram abusivamente os preços dos gêneros de primeira necessidade, logo após os deslizamentos de terra nas cidades de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis e outras e que deixaram centenas de mortos e milhares de desabrigados.  São práticas abusivas proibidas pela legislação protecionista do consumidor e, evidentemente, odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos empresários e colocam à mostra defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, na concepção cristã, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza3; trata-se de um vício humano, sempre combatido. Anoto que a avareza é um dos sete pecados capitais porque o avarento (e na hipótese, o ganancioso) prefere os bens materiais ao convívio com Deus. Mas, no capitalismo selvagem atual, faz sentido,  na medida em que o mercado funciona como um "deus".  E é nesse aspecto, inclusive, que tem se usado a expressão "fundamentalismo de livre-mercado". Os estudiosos da sociedade capitalista têm dito e, também, demonstrado que o capitalismo da segunda metade do século XX para cá é eminentemente fundamentalista. É o chamado fundamentalismo de livre-mercado (do inglês free-market fundamentalism), expressão usada criticamente e que denota a injustificada e exagerada crença de que os mercados livres são capazes de propiciar a maior prosperidade possível e que qualquer interferência nos processos de mercado reduz o bem estar social. Ou seja, os livre-mercados seriam capazes de resolver, de per si, todos os problemas que afetam uma sociedade, o que não corresponde à verdade. E, claro, diga-se que, sim, no Brasil há leis que impedem esse tipo de abuso, lembrando que estamos num período excepcional. O CDC dispõe de normas que permitem a intervenção dos organismos estatais de proteção ao consumidor e a Lei que estrutura o sistema brasileiro de defesa da concorrência e que reprime às infrações contra a ordem econômica (Lei nº 12.529, de 30-11-2011) tem norma expressa contra esse tipo de abuso. Vejamos. Código de Defesa do Consumidor: "Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:                  (...)        II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: (...) c) pela presença do Estado no mercado de consumo;" "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:             (...) V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;" Este inciso V do art. 39 remete ao § 1º do art. 51. E, embora aplique-se os demais incisos, destaco apenas o III: "§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso"4. Lei 12.529, de 30-11-2011: Art. 36, inciso III: "Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: (...) III - aumentar arbitrariamente os lucros;" Vê-se, pois, que no panorama atual de crise provocada pela pandemia  do Covid-19 pode-se sim controlar preços para evitar os abusivamente fixados. __________ 1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11. 2 Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores. 3 Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade). 4 A compra e venda de um produto num supermercado ou outro tipo de comércio, ainda que a venda se faça pela via de simples emissão de uma nota fiscal, representa, como se sabe, um contrato de compra e venda. E assim, poder-se-ia falar também na incidência do inciso IV do art. 51: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade".
quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O Código de Defesa do Consumidor faz 30 anos

Amanhã, 11 de setembro de 2020, a lei 8.078/90, isto é, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), completa 30 anos de existência.  Como sempre tenho dito, a boa notícia é que o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, sempre lembrada tanto em setembro como em março (mês em que entrou em vigor; mês em que também se comemora o dia mundial dos direitos dos consumidores). Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil.                   E, claro, com 30 anos de idade seria de se esperar que a lei fosse cumprida por todos o tempo todo. Não é bem assim, mas certamente o CDC é uma lei que impactou positivamente as relações jurídicas de consumo e colocou o Brasil na linha de frente do que existe de mais moderno em termos de leis de proteção aos consumidores. Lembro de alguns fatos. No início de sua vigência, o texto assustou empresários em geral, muitos publicitários e os grandes conglomerados em especial. Eles pensavam que estavam perdendo sua liberdade de ação ou, simplesmente, queria continuar cometendo certos abusos (vários ainda cometem, infelizmente). Mas, aos poucos o CDC foi se firmando e deixando de ser o bicho-papão de que o acusavam  injustamente. Ao que me consta, ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como, também, da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento melhor qualificado, enfim, a norma ajudou o mercado a amadurecer. Vou dar um exemplo de algo que, talvez, poucos se lembrem: antes do CDC, a maior parte dos produtos não trazia estampada nas embalagens seu prazo de validade. Lembro-me bem que eu fiquei espantado com o curto prazo de validade de alguns produtos. Até água em garrafa ou em copo plástico tem curto prazo de vida sadia! Antes da lei 8.078/90, nós consumidores, provavelmente, tenhamos ingerido toneladas de produtos vencidos e sorvido milhares de litros de bebidas ultrapassadas. Como me contou meu amigo Outrem Ego: "Sou da época dos refrigerantes em garrafa, e me vem à memória quantas vezes, quando garoto, retirei a tampinha e com a mão limpei as marcas de ferrugem que estavam na boca da garrafa, antes de beber o refrigerante... Das vezes que adoeci, sabe-se lá quantas não estavam relacionadas com produtos e bebidas deteriorados". Pois bem, o susto dos empresários passou. A lei teve, como tem, muito boa eficácia - ou, como se costuma dizer no Brasil, é "uma lei que pegou". Não resta dúvida que as pessoas  passaram a descobrir que tinham muitos direitos garantidos pelo CDC e resolveram exigi-los,  não só por intermédio de ações judiciais quando foi preciso, mas também no dia a dia das compras fazendo exigências e reclamando aos próprios fornecedores ou aos órgãos de defesa do consumidor públicos e privados. Essa consciência que o consumidor adquiriu fortaleceu o mercado. Ao mesmo tempo em que os consumidores passaram a ficar mais escolados em matéria de consumo, os empresários também. Muitos destes, passaram a adotar a lei como elemento de marketing para atrair seus clientes, o que foi bem vindo e, de fato, dá resultados.  Essa é mais uma virtude da lei consumerista: deixou realçado que o  bom fornecedor é aquele que desenvolve seu projeto de negócio, claro, visando o lucro, mas respeitando seus clientes.                                                                        Citando meu amigo novamente, num exemplo que aqui já referi: "É quase tão simples como vender amendoim nas areias perto do mar". Explico: Na praia, o vendedor de amendoins passa gritando e dando uma amostra de seu produto para os banhistas; caminha alguns metros repetindo esse gesto para depois voltar. Enquanto ele vai, os veranistas comem o amendoim recebido - e de graça! - e quando ele volta, quem gostou tem a oportunidade de comprar um pacotinho, momento em que o negócio é concretizado. Desse singelo modo de oferecer e vender o amendoim, pode-se extrair um dos  melhores exemplos de como o fornecedor deve tratar o consumidor: em primeiro lugar o vendedor faz uma propaganda honesta, oferecendo de graça seu produto para que o consumidor experimente; depois ele somente vende para o consumidor que, de fato, quer comprar, uma vez que o produto foi previamente examinado, testado e aprovado. Quanto ao consumidor que experimentou mas não comprou, ainda assim o negócio foi bem feito. O custo do amendoim oferecido gratuitamente faz parte do custo total do negócio, porém funciona sempre como investimento, pois, até para aquele que não comprou fica a lembrança da boa imagem que o vendedor construiu, respeitando inclusive seu desinteresse em adquirir o produto. Por conta disso, esse consumidor torna-se um cliente em potencial, podendo tornar-se um comprador em outra oportunidade.
Acidentes causados por produtos e serviços acontecem constantemente. E, muitas vezes, feita e perícia técnica não se constata dolo ou culpa (negligência, imprudência ou imperícia)  do fornecedor. Por isso mesmo, é que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) regrou a responsabilidade civil objetiva do fornecedor. Teço alguns comentários a respeito. Uma das características principais da atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa a ação do empreendedor está aberta, simultaneamente, ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades  por parte do empresário, é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. Mas o risco é dele.  Muito bem. O CDC, compreendendo o funcionamento do binômio risco/custo (ao qual se deve acrescentar outro: custo/benefício) resolveu cuidar dos elementos ligados ao resultado da produção (no caso dos produtos) e ao resultado da prestação de serviços (que incorpora muitas vezes os produtos com os quais e através dos quais é prestado o serviço). Dito de outro modo: o CDC não se preocupou com os meios em que se produzem objetos ou se prestam os serviços, mas com a qualidade com que eles são entregues ao consumidor, controlando os vícios e defeitos e determinando trocas, devoluções de valores pagos e ressarcimento de prejuízos.  A responsabilidade civil objetiva do fornecedor prevista na lei tem, assim, foco na relação de causalidade que envolve o consumidor, o produto e/ou serviço e o dano. Há algo de bem inteligente nisso: o CDC sabe que, de um lado, com todo o incremento da tecnologia é bastante difícil provar culpa do fabricante, montador, produtor, prestador do serviço etc., assim como que, mesmo com todos os esforços, sincera e adequadamente empreendidos, por esses agentes econômicos, ainda assim haverá vícios e defeitos.   Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria muitas vezes lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como se dava no regime anterior ao CDC).  Cito um exemplo de um acidente ocorrido num parque de diversões, por falha em um dos brinquedos (algo que, infelizmente, ocorre). Temos que admitir que a falha do funcionamento do aparelho de diversões possa ter se dado sem que se verifique qualquer grau de culpa dos responsáveis.  É, num outro exemplo, algo corriqueiro no caso de vícios e defeitos ocorrentes nos veículos automotores (Aliás, é por ocorrências desse tipo, sem participação direta do fornecedor, que em larga medida o CDC prevê o recall, que tem sido largamente utilizado por esse setor).  Para deixar bem esmiuçado esse aspecto: como se sabe, de regra, o fabricante, produtor, prestador de serviços etc. não agem com negligência, imprudência ou imperícia exatamente por causa das consequências negativas para seu negócio. Como é notório, o negligente é aquele que causa dano por omissão (ex.:o motorista que não coloca óleo no freio do automóvel e, por causa disso, numa brecada, o freio falha, causando um acidente); o imprudente é quem causa dano por ação (ex.: o motorista que, dirigindo seu carro, passa o sinal vermelho de trânsito, atingindo outro veículo); e o imperito é o profissional que não age com a destreza que dele se espera (ex.: o médico que deixa um instrumento cirúrgico dentro do corpo do paciente operado).  Ora, pode muito bem acontecer - como, repito, ocorre regularmente na indústria automobilística - do fabricante de um aparelho de diversões públicas ou do prestador do serviço por ele responsável, agir dentro de todas as regras técnicas exigidas para a manutenção e funcionamento adequado do produto e ainda assim, este, em algum momento, apresentar falha de funcionamento. Ou seja, pode acontecer do aparelho gerar danos aos usuários a despeito de todos os esforços em sentido oposto feito pelo prestador do serviço; apesar de não se constatar nenhuma das características da culpa (nem dolo).  Do ponto de vista da lei, a situação é simples, posto que o prestador do serviço responde de forma objetiva, bastando ao consumidor demonstrar o nexo de causalidade entre os danos e o defeito do serviço.  Em termos técnicos e factuais, a questão é mesmo da inevitabilidade. Por mais que os sistemas de controle de qualidade se desenvolvam, o fornecedor não consegue impedir que, mais cedo ou mais tarde, seu produto ou serviço cause dano por vício ou defeito, sem explicação científica ou técnica, É algo que decorre da própria natureza das coisas.  Concluo com uma afirmação de meu amigo Outrem Ego: "Não há produto ou serviço sem vício ou defeito. Até foguete da Nasa apresenta falhas".
quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Os colecionadores de objetos

Num dia desses, li que um artista americano famoso e muito rico "coleciona" casas. Têm várias, em diferentes Estados americanos e todas muito grandes. A matéria dizia: "casas espetaculares". Ontem li que há jogadores de futebol endinheirados que "colecionam" automóveis. E veículos raros, que custam milhões de euros ou dólares. E nesta pandemia, todos eles estão bem escondidos em suas mansões... Pois, como sempre diz meu amigo Outrem Ego, "pessoa rica, cheia de dinheiro no banco, muitos bens no patrimônio, mas com um medo danado de mosquitos, vírus e outros perigos naturais" Já cuidei desse assunto aqui, mas como ele não sai de cena, volto ao tema, em plena pandemia. Muito bem, talvez quem tenha várias casas possa curti-las e quem tem muitos automóveis também. Pode ser. Mas, a questão das coleções na sociedade de consumo vai muito além. Aliás, por falar no meu amigo, lembro essa história que ele me contou: Certa vez, foi convidado para ir com outro amigo dele a um jantar na casa de um empresário. "Modo de dizer", disse ele. "É que o empresário era investidor de empresas falidas... Sei lá. Mas tinha muito dinheiro, pelo menos pelo que pude ver de sua casa e demais coisas e também do que ele falava". Pois bem. Conta meu amigo que lá chegando, foram convidados para irem ao andar debaixo, numa espécie de subsolo, para conhecer a adega de vinhos. Suntuosa, muito bem equipada e com um estoque de centenas de garrafas, muitas delas raras adquiridas em leilões internacionais e, claro, caríssimas. Todas devidamente catalogadas pelo próprio proprietário que, com muito orgulho, as mostrou dando ênfase em vários rótulos. Outrem Ego se animou. Pensou: "Me dei bem. Hoje tomarei um vinho que jamais poderia tomar". Mas, que nada. Feita a visita à adega, o anfitrião os levou para o andar térreo até outras três adegas dessas compradas em lojas de eletrodomésticos (embora das maiores e mais sofisticadas) e, abrindo uma das portas, escolheu duas garrafas de vinho e dali dirigiram-se à mesa para o jantar. Eram bons vinhos, mas nada que pudesse fazer frente aos raros e espetaculares da adega e que chegaram a passear nos sonhos de meu amigo. Depois, quando deu, perguntou ao outro amigo: "Ele não bebe os vinhos lá debaixo?". "Não", respondeu o amigo, "É só para ver. Não para beber". Outrem Ego retrucou: "Ele nunca beberá? Nem em ocasiões especiais? Ou com pessoas especiais?". "Acho que não.  Até porque, pela idade dele e com tantas garrafas armazenadas, para tomá-las todas ele já deveria ter começado a fazê-lo há muito tempo. E essas que ele bebe, ele compra a toda hora". Quando Outrem Ego me contou essa história, concluiu: "O sujeito compra um monte de vinhos só para olhar para os rótulos e garrafas? Ele as admira como se fossem troféus! Se ainda guardasse como investimento, se deixasse os vinhos envelhecerem e depois os vendesse... Ou, então, podia guardar as garrafas vazias junto das avaliações feitas após ter bebido o conteúdo!".  Há, é verdade, uma tradição na coleção de objetos. Coleciona-se selos, moedas, joias etc. e que remontam a tempos antigos, como comprovam as exposições de museus. Mas, com o avanço da produção e reprodução cada vez mais precisa e mais barata, os modos de colecionar acabaram crescendo. Naturalmente, coleciona-se figurinhas até hoje, mas até isso é diferente de nosso romântico tempo de criança. Com a facilidade das compras e quantidade de ofertas, muitas pessoas passaram a colecionar uma série de objetos. Coleciona-se canetas, bolsas, sapatos, gravatas, ternos, vestidos, automóveis (!) etc.  Claro que isso é problema de cada um. Quem pode, acaba fazendo se lhe aprouver, mas que é estranho manter certas coleções é. Quero dizer, se for mesmo para estabelecer uma coleção autêntica, com catálogo e demonstração como num museu (não importando nem local nem tamanho) talvez se justifique. O problema, ao que parece, está mais relacionado ao fato de, muitas vezes, a pessoa guarda coisas, repetidas ou não, para nunca usar e daí ela perde a finalidade. Já se disse que a sociedade capitalista é da abundância, mas, claro, isso não corresponde à realidade. Abundam produtos e serviços, mas faltam condições básicas de sobrevivência para milhões de pessoas. Aliás, toda vez que uma empresa coloca no mercado algo novo, não é a abundância sua característica, mas sua falta para a maior parte dos que não podem comprar. Então, nessa terra de escassez, manter produtos guardados sem finalidade pode ficar sem sentido. Evidentemente, que há muitas coisas que se pode ter em casa para um dia usar de verdade. Se a pessoa mantém guardados livros, ela certamente poderá utilizá-los. Aliás, esse é o exemplo típico de coleção que vale a pena ter. Mesmo que nós compremos um livro para apenas um dia no futuro lê-lo. Quem sabe, num dia de chuva, a pessoa olhe para o livro na estante e, finalmente, resolva lê-lo. Vale mesmo a pena tê-lo ali por perto (Eu ainda torço para que o livro impresso sobreviva!) Lembro-me de uma entrevista que li com Umberto Eco. Não sei exatamente os números que o entrevistador usou. Mas, ele dizia que uma pesquisa apontava que milhões de leitores do famoso escritor italiano haviam comprado o último livro que ele publicara, mas que apenas metade (não sei o percentual exato, repito) o havia lido e perguntava o que ele achava disso. Sua resposta foi a de que tudo indicava que as pessoas queriam ler o livro, mas estavam esperando a oportunidade para fazê-lo. Tê-lo comprado era algo importante porque quando surgisse a oportunidade, elas iriam lê-lo. Penso que, realmente, vale a pena comprar livros e guardá-los ainda que a leitura somente ocorra no futuro. Mas, valerá guardar gravatas? Um homem precisa mesmo ter em seu armário vinte ou trinta gravatas (ou mais)? Uma mulher vinte bolsas ou vinte sapatos (ou mais)? Aliás, como o design desses produtos varia com o tempo (quero dizer, com a moda imposta ao comportamento social, que muda com o passar do tempo), muitos deles ficarão sem utilidade e muitos sequer serão usados. É isso. Apenas uma apresentação de uma questão que talvez permita uma reflexão sobre os nossos modos de consumo, com ou sem pandemia.
Bem, em plena pandemia, temos uma greve de um serviço essencial. Não sei se ao sair publicado este artigo a greve dos funcionários dos correios ainda continua, mas, ainda que tenha acabado, penso valer a pena tratar do assunto, pois sempre demora algum tempo para o serviço retornar ao normal e até lá vários danos já terão sido causados. E, claro, não é a primeira vez que trato do tema nesta coluna, porém, como os fatos se repetem, me vejo obrigado a voltar a cuidar dos direitos dos consumidores e dos fornecedores nesse período de greve. Evidentemente, todo dano causado aos usuários é de responsabilidade primeira da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor: ela responde pelos vícios ou defeitos de seus serviços, o que inclui, naturalmente, a ausência destes. E não há necessidade de que seja apurada sua culpa, eis que a sua responsabilidade é objetiva e decorre da exploração da atividade empresarial desenvolvida e seu risco. O empreendedor público, privado ou de atividade privatizada explora o mercado de consumo e a própria exploração da atividade gera risco social, independentemente de sua vontade. É lógico que, por exemplo, quando uma correspondência entregue pelo consumidor aos serviços do correio não chega a seu destino no prazo ou simplesmente se extravia, essa falha não se dá por interesse da empresa. Ela não decorre da vontade dos administradores da ECT, mas da atividade em si, eis que falhas sempre existirão no sistema de leitura ótica, na incorreta observação do pessoal que faz seleção dos envelopes e pacotes, no transporte etc. Portanto, o dano existirá, apesar da vontade em sentido contrário dos administradores e funcionários. A lei sabe disso. Ela sabe que, apesar do esforço do prestador do serviço, em algum momento, por evento imprevisto, o serviço falhará, causando danos ao consumidor. Naturalmente, a responsabilidade é a mesma na sua ausência, como a que ocorre no período de greve e que persistirá mesmo após seu fim por mais algum tempo até que o serviço se normalize. Por isso tudo, a lei estabeleceu a responsabilidade objetiva. Basta a constatação do serviço contratado e seu defeito para que possa ser pedida indenização. De fato, a ausência de um serviço como o dos correios sempre gera danos em larga escala, atingindo fornecedores e consumidores. Para o funcionamento dos serviços em massificados, como os de telefonia, tevês a cabo, cartões de crédito, empréstimos bancários etc. e/ou todo tipo de serviço regular e, também, de venda de produtos é fundamental o serviço dos correios. Isto porque, é através dele que a maior parte das faturas é entregue mensalmente para pagamento embora, atualmente, muitas delas estejam sendo entregues via web/internet, aplicativos, e-mail etc. Entretanto, o não recebimento de uma fatura/boleto não retira a responsabilidade do consumidor em pagá-la no prazo se o credor manda as faturas pelo correio mas, simultaneamente, coloca à disposição do consumidor outro modo de quitar o débito. Cabe ao fornecedor entregar o documento antes da data do vencimento. Todavia, com a paralisação dos serviços do correio, a entrega fica prejudicada. O fornecedor, então, tem que oferecer uma alternativa de pagamento ao consumidor. As segundas vias devem ser oferecidas via e-mail, acesso ao site, por ligação telefônica etc. Se essas segundas opções são oferecidas, cabe ao consumidor utilizá-las para o pagamento da dívida. Aliás, é bom também lembrar que, mesmo quando os serviços dos correios não estão paralisados, isso não impede que alguma correspondência não seja entregue. Logo, até fora desse período crítico, pode acontecer de o consumidor não receber fatura para pagamento dentro do prazo ou simplesmente não a receber. Mas, de outro lado, se o consumidor não recebe a fatura para pagamento nem tem à sua disposição outro meio para fazê-lo, não se pode imputar a ele a responsabilidade pela quitação da dívida no prazo. Não tem sentido culpá-lo pelo que ele não fez. É risco do fornecedor entregar a fatura com tempo suficiente para pagamento, risco esse que não pode ser repassado ao consumidor. Todavia, o consumidor pode ter problemas nessa questão. É que, para, eventualmente, tentar não ser responsabilizado, o consumidor tem que provar que não recebeu a fatura, o que é muito difícil de fazer quando ela não é entregue. Dá para fazer a prova, por exemplo, se o consumidor avisou por escrito seu novo endereço para recebimento da fatura e ela foi enviada ao antigo ou quando o próprio correio coloca carimbo de entrega atrasada (Nesse caso, é a ECT que deve ser responsabilizada pelo atraso). No entanto, afora essas exceções, o consumidor acaba sendo responsabilizado pelo atraso. Por isso é que se aconselha que o consumidor mantenha uma agenda com datas dos vencimentos de suas faturas regulares. Se, até a véspera do vencimento, ainda não recebeu alguma, então, ele pode e deve entrar em contato com o credor, solicitando segunda via. Essa é uma regra geral para o dia-a-dia de todos os consumidores que, evidentemente, nesse período de greve, deve ser imediatamente seguida. (Anoto que, para aquele que não faz esse tipo de controle, a saída é pegar as contas do mês anterior, ver as datas dos vencimentos e checar o prazo que existe para pagá-las). Atualmente, todos os grandes fornecedores mantêm Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) e/ou sites, nos quais é possível obter uma segunda via da fatura. Se o credor não tiver esse tipo de serviço, como já disse acima, ele é obrigado a dar outra alternativa para pagamento, como, por exemplo, envio do boleto via e-mail ou apresentação de dados bancários para depósito em conta (nº de conta corrente, banco e agência, número do CNPJ - se for pessoa jurídica - ou CPF - se for pessoa física). Repito: se o credor não der alternativa, o consumidor não pode ser responsabilizado pelo atraso. Naturalmente, uma boa atitude dos fornecedores - que é o que se espera -- é a de não cobrar multas daqueles que, eventualmente, pagarem suas faturas fora do vencimento no período de greve, pois não se pode responsabilizar o consumidor que pretende pagar suas dívidas se ele tem dificuldade em fazê-lo.
quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Afinal, fila é boa ou ruim?

Agora, é tudo muito rápido. O sistema capitalista, cada vez mais veloz, se impõe como uma perspectiva necessária de consumo, numa espécie de círculo que aprisiona o consumidor: Este tem de consumir porque é isto que alimenta sua vida e como esta não pode ser preenchida satisfatoriamente com produtos e serviços, então a saída, é consumir mais. Tudo numa correria constante e cada vez maior. O mercado oferece economia de tempo, bem-vinda, permitindo que o consumidor ao invés de ir ao banco, faça as transações em casa; que, ao invés de ir até as lojas, adquira produtos pela internet e os receba em sua residência; que converse com seus amigos ou faça negócios via internet sem ter que atravessar o trânsito das cidades, ganhando, pois, tempo. Em tudo isso e em muito mais, há mesmo economia de tempo, mas esse tempo ganho é gasto com consumo sem fim e urgente. Os pacotes de viagem são um bom exemplo desse modelo: é oferecido que o consumidor "conheça" toda a Europa em apenas quinze dias! O consumidor chega na cidade, é levado para o hotel, hospeda-se, desfaz as malas, sai de ônibus, este para em alguns pontos, ele tira muitas fotos, volta para o hotel, toma banho, sai para jantar com o grupo em algum restaurante, dorme, refaz as malas, acorda cedo, é levado para o aeroporto, viaja para outra cidade; e começa tudo de novo. Enfim, ao cabo de quinze dias, muitos deles gastos em aeroportos, ônibus e fazendo e refazendo malas, o consumidor leva para casa centenas de fotos de algumas cidades, como se tivesse mesmo conhecido a Europa inteira. E esse tipo de pacote é um grande sucesso. E, como disse, nessa urgência, é importante não deixar o consumidor perceber o tempo passar. E nas filas, o que acontece? O que sente o consumidor? Sim, porque há filas reais e virtuais. Há filas boas e filas ruins. Num restaurante, por exemplo, a fila é sinal de qualidade. A busca por ingressos de shows e jogos de futebol muito aguardados sempre geram filas quilométricas e quando os ingressos são vendidos via web/internet ocorre até congestionamento na rede. A verdade é que há filas inevitáveis, como são esses dos exemplos acima de shows e eventos muito aguardados. E isso não só não é irregular, como raramente leva algum consumidor a reclamar (há, ao contrário, comemorações de alguns que conseguem os ingressos. Há, também, exatamente por causa disso, os conhecidos problemas com os cambistas que adquirem esses bilhetes para revendê-los, assunto que não interessa aqui. Aliás, há também técnicas de fura-filas, algumas oferecidas pelos próprios fornecedores, tema que já abordei nesta coluna). Os fornecedores podem, em algumas circunstâncias específicas trazer algum alívio para os consumidores que aguardam nas filas. Nos restaurantes, quando há espaço, são oferecidos aperitivos e petiscos para quem aguarda. E veja leitor esse caso que refiro a seguir. Trata-se de um case de um supermercado do Estado americano de Connecticut, que é elogiado por prestar um ótimo serviço ao consumidor e que usa a seguinte tática: Quando as filas nos caixas passam de três pessoas, seus funcionários começam a distribuir doces, balas, chocolates e outras guloseimas para quem espera e aproveitam para fazer pesquisa sobre os produtos. Desse modo, o tempo passa mais facilmente e pesquisas que interessam são feitas. A ideia é tornar agradável a espera inevitável. E a isolamento ocasionado pela pandemia, acabou gerando filas sem sempre desejáveis. Mas, era previsível. É que muitos serviços foram paralisados. E se nós levarmos em conta os serviços essenciais oferecidos a milhares e até milhões de consumidores, que ficaram suspensos por semanas, quando de seu retorno, as filas não podem ser evitadas. Além disso, pelos procedimentos de resguardo da saúde, o atendimento fica mais dificultado. Dou um exemplo, por todos: centenas de pessoas fizeram uma longa fila em frente à sede do Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt, no centro de São Paulo, na avenida Cásper Líbero, para tirarem a carteira de identidade (RG) na manhã dos dias 11 e 12 deste mês1. Esse serviço também era realizado no Poupatempo, cujas unidades foram fechadas em função da pandemia. Daí, sem alternativa, os interessados foram ao único local existente neste momento para esse tipo de serviço. Não tem jeito: no início do retorno ao atendimento dos serviços que estavam paralisados, filas se formarão por causa da demanda represada. Isso não significa que haja má prestação do serviço, mas pura e tão somente comparecimento simultâneo de muitas pessoas aos locais de atendimento. Até retornarmos à normalidade, esse tipo de fila pela volta dos serviços subtraídos pelo isolamento da pandemia continuará a existir sem que haja, repito, necessariamente, uma má prestação do serviço. ____________ 1 clique aqui.
quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O que é preço mesmo?

A pandemia acelerou uma forma de fixar o preço dos produtos e serviços oferecidos. Quase como um vírus, o método parece que afetou quase todos os anunciantes. Eu, mais de uma vez, perguntei: o que é preço? Respondo que é o valor que o fornecedor pretende receber pelo produto ou serviço oferecido. Naturalmente, o preço é sempre à vista. Isto é, o preço é sempre o de seu valor presente. O que pode variar é a forma de pagamento: à vista, a prazo, em parcelas, em dinheiro ou pelo cartão de crédito, via boleto etc. E as liquidações? Bem, elas eram aquele momento - às vezes, muito aguardado pelo consumidor - em que os produtos e os serviços eram vendidos com descontos (grandes ou pequenos). Ainda é assim na black Friday (embora, haja muita fraude por aí...) e em outras liquidações sazonais. Pois bem. A moda, agora, generalizada é fixar o preço com desconto. Isso! Parece que não existe mais preço certo e sim preço "com desconto". Sempre. Até em curso de em Faculdade, graduação, especialização, em várias modalidades, o que inclui, direito, o preço já aparece com desconto. "Aproveite: 30% off" "Compre agora: 50% de desconto" E por aí vai. Claro que o consumidor gosta de desconto. Mas, se o preço é fixado logo de início com desconto, então, se conclui que não há desconto. Simples assim. Isso porque quem fixa o preço é o fornecedor. Se ele ia fixar, por exemplo, em R$100,00, quando desse o desconto seria menor do que aquele preço inicial. Mas, não. Ele fixa em R$200,00 e dá 50% de desconto para chegar no valor querido no começo. Pegou! Sei que não é ilegal, pois é claramente apresentado. Mas, em alguns casos beira ao ridículo. Há, por exemplo, um anúncio que aparece insistentemente nos canais pagos que oferece uma "cinta para emagrecimento" (não vou entrar no mérito sobre ser enganosa ou não a publicidade, pois não é o escopo do presente artigo...). Muito bem. No referido anúncio o preço aparece com 80% de desconto. Isso! 80% de desconto! E não é nenhuma promoção, pois o anúncio está no ar há semanas. Há mais. O anúncio diz que se o consumidor compra uma cinta, ganha outra de presente! Ou seja, com 80% de desconto. O preço é de apenas 20%. Ganhando mais uma, são 2 por 20%. Logo, uma custa apenas 10%. Então, o preço do produto é de 10% do valor anunciado. É o pagamento é feito em 10 parcelas sem acréscimo. Assim, o consumidor compra o produto pagando por ele 1% ao mês (por 10 meses) para atingir os 10%. Será mesmo que o consumidor compra por causa disso? Meu caro leitor, com pandemia ou sem pandemia do coronavírus, o fato é que na sociedade capitalista existe uma outra pandemia eterna, que é essa de tentar vender a qualquer custo (com altos descontos...), mesmo sendo assim tão pueril.
quinta-feira, 30 de julho de 2020

O prazo de validade dos produtos alimentícios

Com ou sem pandemia, os produtos alimentícios colocados à venda devem ter prazos de validade claramente indicados. Vou cuidar de alguns aspectos que envolvem essa questão e que, nem sempre é bem compreendida. Anoto, inicialmente, que não existe proibição para que um produto, cujo prazo de validade esteja para vencer seja comercializado. Desde que, claro, a data fatal seja apresentada de forma evidente para o consumidor. Aliás, é exatamente por isso que alguns supermercados fazem promoções oferecendo produtos com descontos altíssimos (70, 80 ou 90%): estão vendendo produtos cujo prazo de validade expirará em curto espaço de tempo. Naturalmente, cabe ao consumidor decidir comprar ou não, mas se o fizer é ele que deve consumir o produto rapidamente, dentro do prazo da validade que ainda resta. Quanto aos produtos oferecidos fora do prazo, não resta dúvida de que a presunção é a de que eles não podem mais ser consumidos. E, se não podem ser consumidos, não podem ser vendidos. A questão jurídica relevante é a de que, o prazo de validade é fixado pelo produtor: é ele que detém o conhecimento adequado para definir quanto tempo dura seu produto. Se ele próprio fixa uma data, a partir desta o produto tem que ser descartado. Muitos consumidores fazem uma confusão nessa questão do prazo de validade porque, em sua casa, às vezes, eles ingerem um produto vencido há um, dois ou até mais dias e não sofrem nenhum problema de saúde. Se eles fazem isso, o problema é deles, obviamente. O que acontece, na prática, é que o produtor sempre deixa uma margem de tempo de sobra, pois sabe que o consumidor pode consumir no último dia ou até comprar no último dia do prazo de validade (como ocorre nas promoções) e precisa consumir sem sofrer mal algum. Então, sempre existe uma margem de tolerância para depois. Se assim não fosse, seria como num passe de mágica: o requeijão vence dia 10. No dia 11 ele apodrece? Não. E isso é que geram algumas discussões. Para o Código de Defesa do Consumidor (CDC), o prazo é um limite formal que deve ser respeitado. É presunção de que o produto está impróprio para o consumo. A norma é clara nesse sentido: "§ 6° São impróprios ao uso e consumo: I - os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos;" (Artigo 18 do CDC) Mas, do ponto de vista penal, surge uma discussão. Na hipótese, incide a Lei nº 8.137/90, cujo artigo 7º, inciso IX dispõe: Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo: (.) IX - vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo; Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa" Uma das condições impróprias é, como vimos, o produto estar com prazo de validade vencido. A discussão que se trava, então, diz respeito ao fato de que o crime seria formal e sua aplicação pura e simples implicaria num delito gerado por responsabilidade objetiva, algo inaceitável no campo penal. Daí, surgir a discussão sobre se deve ser feita perícia para constatar se o produto que estava fora de prazo, realmente estava impróprio para consumo ou se bastava constatar que estava fora do prazo, especialmente porque quem fixa esse é o produtor. Há decisões judiciais nos dois sentidos. Levado um desses casos ao Superior Tribunal de Justiça, ficou decidido que havia de se fazer prova de que o produto estava mesmo impróprio para o consumo. Cito um trecho do Acórdão: "A materialidade do crime descrito art. 7º, inciso IX, da Lei n. 8.137/1990 apenas se perfaz com a realização da perícia, não sendo possível iniciar a ação penal sem a constatação da materialidade delitiva. De fato, cuidando-se de crime que deixa vestígios, revela-se indispensável a perícia, conforme estabelece o art. 158 do Código de Processo Penal, a fim de aferir a efetiva impropriedade do alimento para o consumo humano" (Habeas Corpus nº 412.180 - SC, Relator Ministro Ribeiro Dantas, j. 12-12-2017, v.u.).
quinta-feira, 23 de julho de 2020

Os direitos dos consumidores idosos - parte 2

Continuo, hoje, apresentando alguns aspectos dos direitos garantidos aos consumidores idosos no Brasil, focando no Estatuto do Idoso (EI: Lei 10.741/03). Planos de saúde Com efeito, o EI regra alguns direitos que o idoso goza no que diz respeito à proteção à sua saúde. Ressalto, nesse ponto, um dos aspectos mais importantes, o de que ficou proibida a cobrança de valores diferenciados ao idoso pelos Planos de Saúde. A discriminação em função da idade ficou vedada (§ 3º do art. 15). Assim, com o estabelecimento dessa norma, ficou simplesmente proibido o aumento da contraprestação pecuniária dos usuários-idosos dos planos privados de assistência à saúde. Descontos em ingresso O consumidor-idoso tem direito a 50% (cinquenta por cento) de desconto nos ingressos para toda e qualquer atividade de diversões públicas, tais como eventos esportivos, culturais, artísticos e de lazer (art. 23, EI). Desse modo, cinemas, teatros, estádios de futebol etc. somente poderão cobrar metade do valor de face dos ingressos. A lei nada fala a respeito da qualidade dos assentos nos locais em que os serviços de diversões e culturais estão sendo oferecidos e todos sabem que muitos deles cobram preços diferentes em função da localização: arquibancada, geral, numerada nos estádios de futebol; galeria, plateia, balcão, camarote nos teatros, etc. A interpretação que se deve dar ao texto é, evidentemente, que cabe ao consumidor-idoso escolher o assento e pagar metade do preço, independentemente de sua localização. Para exigir o desconto, basta que o consumidor-idoso apresente qualquer documento que comprove sua idade. As normas do capítulo no qual está inserido esse direito nada dizem a respeito, mas por analogia com o § 1º do art. 39 (que cuida do transporte), entendo que é o máximo que o fornecedor pode exigir. Serviços de transporte No que respeita aos transportes públicos, o EI fixa uma série de direitos: a) aos consumidores-idosos usuários dos serviços de transporte coletivo urbano e semi-urbano é assegurada: a1) a gratuidade. Essa regra vale para os idosos com idade igual ou superior a 65(sessenta e cinco) anos e estão excluídos da garantia os serviços de transporte seletivos ou especiais prestados simultaneamente aos regulares; a2) as empresas de transporte coletivo deverão reservar 10% (dez porcento) dos assentos para os idosos, devidamente identificados; b) no transporte interestadual: b1) fica assegurada a reserva de 2 vagas gratuitas por veículo para os idosos com renda igual ou inferior a dois salários-mínimos; b2) sempre que o número de idosos interessados numa viagem específica exceder as duas vagas reservadas, os demais (que perceberem até dois salários-mínimos) terão direito ao desconto de 50% no preço da passagem. O artigo 41 garante aos idosos 5% de vagas "em estacionamentos públicos e privados", que deverão "ser posicionadas de forma a garantir comodidade" na sua utilização, mas remete a regulamentação à lei local, o que dificulta sua implementação. Já o art. 42 garante prioridade no embarque em todo o sistema de transporte coletivo, de modo que os prestadores de serviços em geral devem cumprir tal regra tanto nas rodoviárias, como nos portos e aeroportos. A propósito, anote-se que nos embarques feitos em aeroportos, as companhias aéreas têm de dar preferência aos idosos juntamente com pessoas com crianças de colo e portadores de deficiência. Aponto, e repito, que, para o idoso ter acesso a todos esses benefícios, basta que demonstre a idade mediante a apresentação de qualquer documento pessoal (§ 1º, art. 39, EI). Internação do idoso As entidades de atendimento do idoso, quer sejam governamentais ou privadas, estão sujeitas à inscrição de seus programas junto aos órgãos competentes existentes: Vigilância Sanitária e Conselho Municipal da Pessoa idosa e, na falta deste, no Conselho Estadual ou Nacional da pessoa idosa (Parágrafo único do art. 48). A oferta dos serviços feitas por essas entidades está regulada pelo CDC (art. 30 e seguintes), assim como o contrato a ser firmado deve obedecer ao comando da lei de proteção ao consumidor (arts. 46 e seguintes), mas o EI, no seu artigo 50, regrou especificamente o mínimo no que respeita a oferta e contratação. Obrigou a que seja feito contrato escrito; determinou a oferta de uma série de itens no que diz respeito à qualidade dos serviços oferecidos (incisos II a XVII), dentre os quais se destacam a necessidade de criar espaço para o recebimento de visitas (inciso VII), a obrigação de fornecer atividades educacionais, esportivas, culturais e de lazer (inciso IX), o dever de manter arquivo atualizado com todas as informações referentes a cada idoso individualmente, tais como data de ingresso na entidade, nome do idoso e de seu responsável, com endereço atualizado, relação de seus pertences - cujo recibo tem de ser oferecido na entrada, conforme inciso XIV --, valores cobrados a título de preço e contribuições, assim como suas alterações e todos os demais dados que envolvam o idoso (inciso XV). Conclusão Estão aí, pois, alguns direitos estabelecidos em lei a favor do consumidor-idoso. Resta a esperança de que algum dia, em nosso país, os idosos possam mesmo ser respeitados, o tempo todo, com ou sem lei!
quinta-feira, 16 de julho de 2020

Os direitos dos consumidores idosos - parte 1

Os idosos, por sua condição de idade mais avançada, receberam, nos últimos anos, em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, proteção advindas de leis especialmente desenhadas para tanto. Há normas que protegem os idosos com problemas de saúde e outras que simplesmente garantem direitos especiais a todos. Aliás, existe um movimento mundial de vários setores do mercado capitalista que oferecem produtos e serviços aos idosos para que eles possam bem viver, independentemente de ainda estarem trabalhando ou aposentados. E na atual crise de isolamento com a pandemia do Covid-19, os idosos tiveram que ser tratados de forma especial porque compõe um grupo de risco maior que as demais pessoas. E isso, independentemente de possuírem algum problema de saúde. Se tiverem, a situação se agrava. Cuido, então, de apresentar um panorama dos direitos garantidos aos idosos no Brasil. Começo pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90-CDC), que considera os idosos consumidores especialmente vulneráveis e, na sequência, comento algumas regras firmadas no Estatuto do Idoso (EI: Lei 10.741/03). Em primeiro lugar, lembro que, por força de expressa disposição legal, o consumidor é considerado vulnerável porque, no mercado de consumo, ele é apenas aquele que atua no polo final, sem ter condições de saber como os produtos e serviços são fabricados e oferecidos, quais são suas reais condições de operacionalidade, funcionamento, qualidade; se as informações fornecidas são verdadeiras ou não; se, inclusive, ele precisa mesmo adquirir determinado produto ou serviço etc. Enfim, o consumidor é aquele que age, digamos assim, passivamente no mercado de consumo, na medida em que ele não determina nem conhece os modos de produção, os meios de distribuição e sequer decide pela criação deste ou daquele produto ou serviço. Assim, independentemente de sua idade, o consumidor precisa mesmo de proteção legal. Além disso, o CDC deu especial proteção a certos tipos de consumidores, protegendo-os mais fortemente que os demais no capítulo das práticas comerciais. Lá, especificamente no artigo 39, estabeleceu que é "vedado ao fornecedor prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social" (inciso IV). De modo que, o idosos-consumidores já tinham proteção legal especial nas relações de consumo. É verdade que, com o EI, de pronto, estabeleceu-se novo marco de idade para a caracterização dos idosos, o que ampliou o leque de proteção. Idosa, por definição legal, é toda pessoa que tiver idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos (art. 1º, EI). O EI garante o direito à prioridade, buscando assegurar aos idosos atendimento preferencial numa série de serviços públicos e privados. Aliás, atender pessoas idosas discriminando-as positivamente sempre foi uma exigência da concreta aplicação do princípio da isonomia do texto constitucional. Para dar atendimento preferencial - qualquer que fosse, e indistintamente de ser público ou privado - bastava, em primeiro lugar, ser educado - como se faz oferecendo o lugar no ônibus -- ou exigindo os direitos garantidos na Constituição Federal. Esse tratamento diferenciado como obrigatório, claro, é um reforço àquilo que já existia. Mas, o que preocupa é o fato de que, mais uma vez se coloca na lei algo que o próprio Estado não respeita nem tenta aplicar concretamente. Veja-se, a título de exemplo, o que regularmente ocorre, infelizmente, com os milhares de aposentados (maiores de 60 anos!) que fazem filas diariamente em frente aos postos do INSS pelo Brasil afora; eles ficam várias horas por dia debaixo de sol e chuva, muitos passam mal, desmaiam, adoecem; centenas têm mais de setenta e até oitenta anos; outros fazem filas nos postos de saúde e hospitais públicos etc. Ora, como é que se aplicará a lei que dá proteção aos idoso se o Poder Público -- e suas autarquias -- é o primeiro a não cumpri-la? Faço questão de colocar aqui esse comentário, eis que para dar prioridade aos idosos, o Poder Público jamais precisou de lei ordinária: bastava cumprir o comando constitucional. ++++++++++ Continuo na próxima semana.
Com o isolamento social e com muitas pessoas trancadas em suas casas e apartamentos veio à tona novamente a questão do barulho, que causa danos de várias ordens. Volto, então, ao assunto lembrando, desde logo, que a violação do sossego no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais violado abertamente. Parece que nas sociedades industrializadas contemporâneas, nesta era capitalista do império globalizante em que vivemos, tudo faz barulho. Existe mesmo uma busca incessante em sua produção: são músicas em altos volumes nos automóveis, nas lojas e nos restaurantes, nos clubes, nas academias, nos intervalos dos espetáculos teatrais e nos cinemas, nos estádios de futebol, onde há também o barulho das torcidas que atinge toda a redondeza; nas festas de aniversário e de casamento; são shows ao vivo em estádios que vão muito além de suas arquibancadas; são bares, boates e danceterias que invadem o espaço dos vizinhos etc. De fato, todo o sistema é assim. Há excesso de ruído por todos os lados: dos veículos nas ruas, das máquinas nas fábricas, das construções, das oficinas etc. Trata-se de um enorme amontoado de ações barulhentas, algumas ensurdecedoras, nem sempre em nome do tão sonhado progresso. A pandemia eliminou muitos desses barulhos, em especial os ligados às atividades públicas que envolvem muitas pessoas em conjunto. No entanto, permaneceram os sons "privados" dos aparelhos eletrônicos domésticos que saem pelas janelas de apartamentos e casas perturbando os vizinhos com seus exagerados volumes. Há também latidos incessantes de cachorros. Enfim, os barulhos, ruídos, sons em altos volumes entram nas casas e apartamentos a toda hora sem pedir licença. É verdade que algumas pessoas até se acostumaram com isso e outras dizem que "gostam", mas o fato é que barulho não solicitado fere o direito sagrado ao sossego e pode gerar danos à saúde. O direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito que envolve uma série de transtornos já avaliados e julgados pelo Poder Judiciário. Vejamos. A Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo Decreto-Lei nº 24.645/1934, revogado, que dispunha: "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Os temas dessa antiga norma foram incorporados na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) estabelece, no seu art. 32, pena de detenção para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de reclusão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o Código Civil garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras.
Em tempos de quarentena, com um crescimento enorme de anúncios de produtos e serviços e vendas pela web/internet, vale a pena lembrar as regras vigentes do Código de defesa do Consumidor (CDC) para o setor e, também, as do decreto presidencial que regulamentou o comércio eletrônico. Com efeito, o decreto 7.962, de 15 de março de 2013, fixou uma série de regras para o comércio eletrônico. O art. 1º do Decreto deixa claro que são direitos dos consumidores na contratação de compras via Internet: a) O fornecimento de informações claras a respeito do produto, do serviço e do fornecedor; b) O atendimento facilitado ao consumidor; e c) O respeito ao direito de arrependimento. Na realidade, essas são determinações desnecessárias, eis que tudo isso e muito mais está estabelecido no CDC incontestavelmente. Mas, o art. 2º do Decreto elenca obrigações, que muitos sites não cumprem. Existem anunciantes de todos os portes que não respeitam a lei. Esse artigo diz que os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações: a) O nome empresarial e o número de inscrição do fornecedor no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda (CNPJ); b) O endereço físico e eletrônico e demais informações necessárias para sua localização e contato; c) As características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; d) A discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; e) As condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e f) Informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta. O decreto determina, ainda, que, para garantir o atendimento facilitado ao consumidor, o fornecedor deverá: a) apresentar um sumário do contrato antes da contratação, com as informações necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor, enfatizadas as cláusulas que limitem direitos; b) fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e correção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da contratação; c) confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta; d) disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua conservação e reprodução, imediatamente após a contratação; e) manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato; f) confirmar imediatamente o recebimento das demandas do consumidor pelo mesmo meio empregado por ele; g) utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para tratamento de dados do consumidor. Anoto que o fornecedor tem cinco dias para encaminhar resposta ao consumidor sobre as demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato, conforme previsto na norma. O CDC, no art. 49, estabeleceu o direito de desistência a favor do consumidor nas compras feitas via web. Visando dar eficácia ao contido nesta norma, o Decreto 7.962 referido trouxe para o sistema uma série de outras determinações específicas. Numa delas (art. 5º "caput"), reforça que o fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor. E n'outra (§ 1º do mesmo art. 5º) disciplina aquilo que já estava inserido como garantia no CDC: que o consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados. Uma boa novidade trazida pelo Decreto é a determinação de que o fornecedor envie ao consumidor a confirmação do recebimento da desistência imediatamente após a manifestação do arrependimento (§ 4º, art. 5º). (Anoto que, recentemente, foi aprovada a lei 14.010, de 10-6-2020, que dentre outras regras, modificou o CDC exatamente nesse ponto, conforme comentei no meu artigo aqui publicado em 18 de junho p.p.. O art. 8º dessa Lei dispôs: "Art. 8º - Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos".) Volto ao tema do decreto. Se consumidor desistir do negócio no prazo legal (de 7 dias) ou no prazo que o fornecedor conceder (se for maior), qualquer importância que eventualmente já tenha sido paga (entrada, adiantamento, desconto do cheque, pagamento com cartão etc.) deve ser devolvida em valores atualizados. Se, por exemplo, foi feita a autorização para débitos parcelados no cartão de crédito e apenas o primeiro (do ato da compra) tenha sido lançado, este tem que ser devolvido em dinheiro ou lançado como crédito no cartão e os demais têm que ser cancelados pela vendedora junto à administradora do cartão de crédito. Por fim, lembro que a norma diz que o exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor (§ 2º do art. 5º); e que o exercício desse direito deve ser comunicado imediatamente pelo fornecedor à administradora do cartão de crédito, banco ou instituição financeira, para que: a) a transação não seja lançada na fatura ou conta do consumidor; ou b) que seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura ou conta já tenha sido realizado (§ 3º e incisos I e II do mesmo art. 5º).