O século XXI exige uma mudança de paradigma das relações sociais em geral, na direção da solidariedade, da busca da igualdade, da concretização da Justiça etc. E, no que respeita às relações jurídicas de consumo, um dos lemas mais importantes é o da harmonização, esta que foi expressamente prevista no Código de Defesa do Consumidor como princípio (conf. caput e inciso III do art. 4º).
A ideia de harmonização envolve alguns parâmetros. Por sua relevância, destaco, mais uma vez, o princípio da boa-fé objetiva.
A hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação; os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do "status quo"; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas.
Acontece que, independentemente da escola, existem algumas fórmulas gerais que sempre se repetem como "topói", isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto.1 Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário.
Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional.
Mas, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver o problema estudado, ele lança mão de fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução da questão. Dentre as várias alternativas, chamo atenção para certos "standarts", tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "ser humano comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom senso", "senso comum" etc.
É importante notar que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma inconsciente - intuitiva - um foro de legitimidade, eis que produzidos na realidade como um fato inexorável. E a boa-fé objetiva é um "topos" fundamental que, como disse, no Brasil, acabou por ser erigida a princípio no Código de Defesa do Consumidor.
Anoto que, quando se fala em boa-fé objetiva tem-se que afastar o conteúdo da conhecida boa-fé subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Lembro os exemplos encontrados no direito civil pátrio, tais como o do art. 1.561, que cuida dos efeitos do casamento putativo, dos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, do art. 879, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido etc.
Sendo assim, a boa-fé subjetiva admite sua oposta: a má-fé subjetiva. Vale dizer, é possível verificar-se determinadas situações em que a pessoa age de modo subjetivamente mau intencionada, exatamente visando iludir a outra parte que, com ela, se relaciona. Fala-se, assim, em má-fé no sentido subjetivo ou o dolo de violar o direito da outra pessoa envolvida.
Mas com a boa-fé objetiva é diferente: ela independe de constatação ou apuração do aspecto subjetivo (ignorância ou intenção), vez que erigida à verdadeira fórmula de conduta é capaz de, por si só, apontar o caminho para solução da pendência. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva dos contratantes.
Em decorrência disso, pode-se, grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade.
Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes envolvidas a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado na transação, realizando o interesse das partes.
Em matéria de relações de consumo, o CDC estabeleceu expressamente a harmonia como um princípio (no caput do art. 4º e no seu inciso III). A pretendida harmonia das relações de consumo nasce dos princípios constitucionais da isonomia, da solidariedade e dos princípios gerais da atividade econômica e no contexto do CDC ela é amparada pelos princípios da boa-fé e equilíbrio (mesmo inciso III do art. 4º).2
Então, a lei pretende que haja entre fornecedor e consumidor um tipo de relação que seja justa na contrapartida existente entre ambos. Lembro que, a boa-fé objetiva é parâmetro também para o comportamento do consumidor, que deve agir sob a égide do mesmo modelo. E, tenho de admitir que, neste século XXI, muitas empresas têm se esforçado para manter o equilíbrio, buscando a harmonização, respeitando seus clientes e agindo na direção da boa-fé. Naturalmente, essa mudança de postura reflete a maior consciência do consumidor a respeito de seus direitos e também a ampliação do leque de oportunidades para reclamações que surgiram pelas redes sociais e sites de internet, além da força da concorrência (quando ela existe). Isso é verdade. Mas, há mais: aos poucos, começa a surgir uma consciência empresarial que percebe que vale a pena respeitar a lei; que isso é a favor, não contra. E que buscar a harmonização é fundamental para os negócios.
A boa-fé objetiva é, pois, um paradigma de conduta fundamental para o atingimento da harmonização das relações de consumo. Por isso, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o Magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso (por qualquer das partes), deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado como adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standard, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas.
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1 Ver a respeito da Tópica, Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, Brasília, UNB, 1980, "passim".
2 E o Código Civil incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta aos contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 422 [ii] e no art. 113, que cuida da interpretação dos negócios jurídicos[ii].
Além disso, é importante apontar que a boa-fé objetiva é também fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e deve ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. Este equilíbrio - tipicamente caracterizado com um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto -, é verdade, não se apresenta como uma espécie de tipo ideal ou posição abstrata, mas, ao contrário, deve ser concretamente verificável em cada relação jurídica.