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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 17 de junho de 2021

Quem manda no mercado de consumo?

Há muitas teorias sobre o funcionamento e o exercício do poder. Poder real, efetivo, de fato e não apenas formal. Ou, em outros termos, poder de quem realmente manda e não de quem parece que manda.  E é comum usar-se a expressão "o poder do mercado"  para referir o mercado capitalista. Nesse caso, estar-se-ia falando do poder dos fornecedores sobre o consumidor e sobre  mercado em si. A história mostra que ele existe mesmo, sendo capaz de fazer coisas boas e más; coisas belas e sujas. Basta ficar com a crise financeira de 2008/2009 para  apontar um exemplo de coisa suja feita no mercado dominado por administradores inescrupulosos e jogadores de todo tipo. Pessoas que detinham o poder para fazê-lo. E o poder dessas pessoas e desses bancos e demais instituições financeiras era tamanho, que em outubro de 2008, o governo americano forneceu 700 bilhões de dólares para socorrê-las.1  Os administradores dessas instituições haviam criado uma situação tal que não permitia que eles falissem. O controle por eles exercido e a maneira como eles se envolveram em amplos aspectos da vida econômica e social impedia, como impediu, sua quebra, pois esta afetaria todo o sistema financeiro, econômico, produtivo e social. Eles conseguiram tornar-se "grandes demais para falir".2 Mas, esse comando exercido por esses administradores e banqueiros estava garantido de que modo? Era consubstanciado no quê, propriamente? Não faço a pergunta pensando nos aspectos econômicos, financeiros ou produtivos. Faço-a sob a perspectiva do poder. Como é que eles fizeram o que fizeram, escaparam ilesos (e muitos deles milionários)? Como esse enorme poder no mercado tornou-se  possível? Há, naturalmente, muitas explicações e que envolvem os produtos oferecidos, os aspectos da desregulamentação do sistema financeiro americano, os empréstimos de alto risco, a questão dos subprimes, o (super) endividamento dos consumidores etc. Mas, isso não me interessa aqui. Gostaria de abordar o aspecto menos visível, o do poder existente e como ele se tornou e se torna possível no mercado de consumo. (Estou usando o exemplo da crise financeira de 2008/2009 apenas para mostrar, desde logo, que os empresários exercem forte poder na sociedade). Dentre as várias possibilidades de análise existentes, ficarei com alguns aspectos teóricos que envolvem a estrutura do poder, para que possamos refletir a respeito. O poder quando é grande mesmo, não se utiliza da força, a não ser em situações especiais e não rotineiras. Ou, dizendo em outros termos, a força de quem detém um poder de verdade, forte, enorme, deve ser ocultada. Aquele que usa demais a força para conseguir obediência perde em legitimidade e, também, em poder. Pense-se no comando exercido por um pai ou uma mãe sobre o filho. Quanto menos força for usada mais poder e legitimidade haverá. Se um pai ou uma mãe apenas fala e o filho obedece, seu poder é enorme. Mas, se para obter obediência ele ou ela castiga o filho, tranca-o em casa, limitas suas ações, proíbe quase tudo, isto é, se exerce força física, então tem pouco poder. Se ela ou ele fala emitindo um comando e não consegue resposta (obediência), então terá sempre de recorrer à força física. Logo, vê-se a figura de um pai ou mãe fracos. No mesmo exemplo, mas com uma  variável:  se uma mãe ou um pai,  para obter aquiescência do filho tem de mandar, depois ameaçar, depois chantagear ou dar um prêmio para conseguir obediência, seu poder também se esvai. Aliás, se a mãe ou o pai só consegue obediência do filho dando alguma coisa em troca, então quem tem poder é o filho e não a mãe ou o pai. Dá para ver, por exemplo, o poder que teria um professor que pudesse entregar as provas para os alunos e dissesse: "Não colem. Vou ao banheiro e já volto". Depois saísse da sala e se, ao retornar, ninguém tivesse colado, realmente, teria muito poder. (Há muitas nuances nos casos que estou trazendo e que permitem mais ampla abordagem. Por exemplo, o professor pode ter mais ou menos poder, dependendo da instituição a que ele pertença,  pois esta pode já inspirar confiança nos alunos e daí comando e  obediência. Do mesmo modo, a relação pai, mãe e filho não tem apenas aqueles estritos limites; há muito mais; há amor, carinho e proteção, por exemplo. Extraí apenas certos pontos para fincar a análise em alguns aspectos relevantes para nossa reflexão neste limitado espaço do artigo). Dos fatos apresentados, outra ilação pode ser retirada: a relação de poder implica confiança. Quem tem poder de verdade manda e confia na obediência e quem obedece confia em quem manda. Aliás, é por isso que se diz que os filhos precisam de limites; necessitam que os pais imponham certos parâmetros de ação. Em certo sentido, os filhos pedem o comando, pois isto lhes dá segurança. Daí que, confiança e poder geram segurança dos dois lados. Quem tem poder é seguro da obediência que receberá. Uma mãe que confia no filho, não fica perguntando toda hora o que ele faz ou fez. Mas, sabe que,  se ele fizer algo importante ou considerado errado, chegará em casa e contará para ela. Destarte, os aspectos teóricos explicam que aquele que tem poder age com inteligência e conhecimento. Ele sabe muito bem quais são as possiblidades de ação do outro (daquele que vai obedecer ou não) e por ter essa sapiência sabe também quais são seus próprios limites: há coisas que ele nunca pode pedir nem mandar. No que respeita ao mercado, os administradores bem formados e bem informados já de há muito tempo desenvolveram alta tecnologia de arquivamento de dados que envolvem  não só os consumidores como seus concorrentes - quando estes existem. Esses dados, bem coletados e bem estudados, permitem a tomada de decisão para os caminhos que a empresa deve tomar visando conquistar sua fatia de mercado (market share)  inicialmente, para fazê-lo crescer ou para consolidá-lo. Isso se faz, certamente, conhecendo muito bem os consumidores,  os concorrentes e também a si mesmo: seus produtos, seus serviços e a comunicação a ser feita a partir desse saber. Note-se que as estratégias de marketing desenvolvem em larga medida a ideia de segurança (na marca, no produto, no serviço, na qualidade, no atendimento etc.), buscando firmar uma base de confiança (na empresa e em seus produtos e serviços). O poder de uma empresa no mercado, portanto, está em larga medida ligada a capacidade que ela tem de se conhecer a si mesma (seus produtos, seus serviços, seus métodos de comunicação, de administração etc.), de conhecer profundamente os consumidores de seu público alvo (seus hábitos, seus desejos, suas necessidades etc.)  e ao mercado como um todo. Tanto no passado, como no presente e projetando perspectivas para o futuro. Esse tipo de tecnologia do conhecimento e da informação é um caminho na direção do poder no mercado, do controle das ações dos consumidores, dos concorrentes e, também, dos demais atores políticos e sociais que existem na sociedade. __________ 1 Ver a respeito desse assunto, por exemplo, Michael J. Sandel, Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª. Ed., 2012, p. 21. 2 Idem, ibidem, mesma pág.
quinta-feira, 10 de junho de 2021

O consumidor nem sempre quer proteção

Todo ano a Caixa Econômica Federal (CEF) promove o Feirão da Casa Própria em várias cidades pelo Brasil, evento que atrai milhares de consumidores que vão atrás de, também, milhares  de imóveis novos e usados. Normalmente, são fechados dezenas de milhares de contratos, gerando movimento de bilhões de reais. Neste ano, o Feirão será virtual.1 Eu já tratei anteriormente desse assunto, que implica numa situação inusitada: a aquisição pelo consumidor do bem mais importante de sua vida, a casa própria, sem a investigação prévia que se espera para esse tipo de transação. Fica difícil tentar proteger o consumidor que não quer ser protegido. Aliás, esse é um bom exemplo de que excesso de proteção não ajuda em nada. Nossa legislação é protecionista; os órgãos de defesa do consumidor produzem proteção o tempo todo; o Poder Judiciário, na dúvida, como não poderia deixar de ser, decide a favor da parte vulnerável, isto é o consumidor; enfim, sobra proteção. Mas, não é que o consumidor age de maneira estranha e abre mão de todo esse aparato protecionista? Há motivos psicológicos, claro, e os fornecedores conhecem bem o perfil de seus clientes, mas alguns comportamentos dos consumidores são um pouco fora da curva. A participação nesses "feirões" parece-me um bom exemplo. Com efeito, o chamado "feirão da casa própria", promovido regularmente todos os anos, é um esquema de vendas que acabou vingando. A CEF promove, por intermédio de anúncios espalhados na mídia, um tipo de oferta que envolve o consumidor em seus temores, anseios e esperanças. Ademais, nessa questão, surge o problema da desinformação, pois o comprador está agindo contra as cautelas normais e necessárias que se exige nesse tipo de transação. E com a agravante de tirar mercado dos advogados. Comprar um imóvel sem o aconselhamento de um advogado é um erro grave! Uma casa ou um apartamento não deveriam jamais ser comprados numa exposição de fim de semana, como se a pessoa estivesse comprando frutas na feira livre ou numa liquidação tipo queima de estoque de roupas ou sapatos.  A casa própria é, para a grande maioria dos consumidores, repito, o mais importante (e mais caro) negócio da vida inteira. É a realização de um sonho e, por isso, deve ser tratado com a reflexão e o carinho que merece. Indo numa dessas "promoções" (reais ou virtuais), o consumidor corre o risco de comprar um imóvel por impulso, sem qualquer avaliação objetiva, pois, quando chega ao local, sofre todo tipo de pressão e influência dos vendedores, cujo maior interesse é vender, fechar um bom negócio com polpudas comissões. Para o comprador, fica, às vezes, a frustração (mais uma e essa praticamente definitiva) de morar onde não tinha exatamente planejado e, ainda por cima, endividado pelo compromisso assumido de longo prazo (10, 15, 20 anos ou mais). Ora, sabe-se que, antes de se comprar um imóvel, é preciso conhecê-lo, examinando-o para ver se ele atende às necessidades e expectativas. Deve-se vistoriá-lo não só de dia, no horário marcado pelo corretor ou vendedor, mas também em  outro período, procurando conhecer as condições da vizinhança à noite - barulhos, trânsito etc. É importante conhecer a região para ver se ela oferece aquilo que o comprador precisa, como escolas, farmácias, supermercados etc. Aliás, como disse, esse tipo de operação rouba mercado dos próprios advogados, que deveriam ser sempre consultados antes do fechamento desse negócio. Não só há necessidade da produção e exame de certidões forenses e do Cartório do Registro Imobiliário, como da avaliação de todas as peculiaridades daquela específica operação jurídica. Por exemplo, a compra de imóvel por empreitada ou preço de custo ou feita pelo Sistema Financeiro de Habitação etc. envolve aspectos bem diferenciados. Em alguns casos é preciso inclusive checar se não há projeto para desapropriação do local: se o imóvel está localizado numa rua importante ou perto de estrada ou área de manancial etc. É preciso saber, ainda, em alguns casos, se a área não é de proteção ambiental etc. Lembro, naturalmente, que cada situação comporta componentes próprios de avaliação que devem ser levados em consideração, além das preliminares e genéricas que apresentei. As questões concretas e particulares devem, por isso,  ser levadas a um advogado especialista. É uma pena. O capitalismo é muito selvagem, ganancioso e egoísta e o consumidor apresenta-se cada vez mais abertamente frágil  em seus comportamentos e ações.   __________ 1 Disponível aqui. Serão oferecidos 180.000 imóveis.
quinta-feira, 27 de maio de 2021

A imagem da pessoa jurídica

No Brasil, a partir da edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), não há qualquer dúvida de que a pessoa jurídica é, além de fornecedora -- fabricante, importadora, produtora, prestadora de serviços etc. - consumidora por expressa designação legal (Art. 2º, CDC). E, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma corporação multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação etc. Ela goza dos mesmos direitos e garantias atribuídos aos consumidores pessoa física. Mas, subindo um degrau na hierarquia legal, no que diz respeito à imagem, pergunto: em relação às garantias estabelecidas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal (CF), a pessoa jurídica está abrangida? Vejamos, primeiramente, o texto normativo da CF: "Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". A doutrina e a jurisprudência são consensuais na resposta: sim, no quadro de proteção da norma constitucional em análise, a pessoa jurídica está incluída. Contudo, há algumas limitações de ordem prática: a) A pessoa jurídica não sofre dano estético, pois este diz respeito ao aspecto físico, mecânico e fisionômico do corpo humano; b) Não pode ser violada em sua honra, eis que esta somente pode ser atribuída ao indivíduo. Anoto que, quando se fala em honra de uma instituição, tal conceito aparece em sentido meramente figurativo: estar-se-á referindo tecnicamente à imagem. É, na verdade, reputação, garantida constitucionalmente pela imagem-atributo (que tratarei adiante); c) Não sofre, também, propriamente, dano moral, uma vez que sentir dor é uma exclusividade humana. É verdade que parte da doutrina fala em dano moral da pessoa jurídica e muitas decisões judiciais fazem o mesmo. No entanto, cuida-se de uma impropriedade do uso do termo. Sempre que se fala em dano moral da pessoa jurídica ou de indenização pelo dano moral causado à pessoa jurídica, está-se abordando a violação à sua imagem. Não devemos esquecer que há consenso no Brasil de que dano moral implica dor, constrangimento excessivo, angústia, sofrimentos de vários tipos etc., sentimentos que somente a pessoa natural pode experimentar; d) A pessoa jurídica não goza das garantias relativas à intimidade, essa esfera mais concêntrica dentro da órbita privada. Apenas para a pessoa humana é que se pode falar em vida íntima e intimidade. Por outro lado, porém, a pessoa jurídica goza de privacidade. Privacidade, que, oposta à publicidade, garante-lhe o direito a segredos comerciais, fórmulas e métodos que lhe pertencem reservadamente (além de decisões internas, reuniões de diretoria etc.). Esses são os elementos que compõem sua esfera privada. De resto, a característica básica de atuação da pessoa jurídica é sempre pública, independentemente de sua natureza jurídica (pública, privada, sociedade civil, comercial etc.). Isto porque a ação da pessoa jurídica no que tange aos consumidores, demais pessoas jurídicas,  autoridades e órgãos governamentais etc. se dá no meio social: no mercado ou na ação política governamental. Ela é, por isso, essencialmente pública. A pessoa jurídica tem, também, imagem. Apesar da discussão que já se fez a respeito, atualmente não resta dúvida de que a imagem da pessoa jurídica é protegida constitucionalmente. Para se compreender em que consiste essa imagem, eu recorro à mesma classificação que adoto para pessoa física1. Ela tem imagem-retrato, representada por seu nome, sua marca, seu logotipo, seus produtos, seus serviços, enfim, por tipos, sinais, letras e símbolos que a representem. Obviamente, coloco aqui a pessoa jurídica como possuidora de uma imagem-retrato de forma figurativa, por analogia ao conceito de imagem-retrato da pessoa física2. Todavia, o tipo "imagem-retrato" encaixa-se como uma luva, quando se quer entender o que está ocorrendo no uso sem autorização de uma marca ou na violação de um logotipo ou mesmo de um produto ou serviço. Percebe-se que no caso do produto há várias circunstâncias que envolvem não só o nome do produto, mas também sua embalagem, seu conteúdo, a ligação de tudo isso ao nome do fabricante e sua respectiva imagem etc. Além disso, a pessoa jurídica possui imagem-atributo3. E é aqui que reside certa confusão, no caso, não só para admitir a outra, a imagem-retrato, como para entender a distinção entre os dois tipos. Com efeito, a imagem-atributo é construída pelo meio social. Ela é, pode-se dizer, mais o que os outros reconhecem na pessoa jurídica do que sua própria designação ou construção. É uma espécie de "reputação" da pessoa jurídica. Por isso,  embora a imagem-retrato guarde em alguns casos relação com a imagem-atributo, com ela não se confunde: é que a imagem-retrato é criada pela própria pessoa jurídica tão logo ela passe a existir. Por exemplo, o nome. Mas a imagem --atributo depende da atuação dessa pessoa jurídica - desse nome - no meio social. Quando se disser que esse nome ou essa marca tem alta credibilidade, estar-se-á diante da imagem-atributo. E o texto constitucional protege a ambas: a) a imagem-retrato de uma simples e inócua empresa de contabilidade, conhecida apenas por seu único cliente ou que ainda não tenha nenhum. Ninguém pode usar aquele nome sem autorização; b) a imagem-atributo daquela mesma empresa, que formou a maior auditoria do País, com notável reputação ou credibilidade. Ninguém poderá usar seu nome sem autorização, nem poderá denegrir sua imagem e reputação. Por fim, não posso esquecer-me de dizer, embora já o tenha adiantado no aspecto do CDC, que a Constituição Federal não faz distinção de pessoa jurídica: esta pode ser nacional ou estrangeira, pública ou privada, sociedade comercial ou civil, fundação, associação sem fins lucrativos, enfim, qualquer figura reconhecida como pessoa jurídica. Por extensão, garante-se a imagem do ente despersonalizado, como a "massa falida". __________ 1 Acompanho neste ponto o Professor Luiz Alberto David Araújo, A proteção constitucional da própria imagem: pessoa física, pessoa jurídica e produto. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. 2 Diz o professor Luiz Alberto David Araújo que o direito à imagem possui duas vertentes: a primeira delas é a relativa à reprodução gráfica, como o retrato (fotografia),o desenho, a filmagem. Esta tem o nome de "imagem-retrato" (ob. cit., p. 27-30). 3 Continuando a exposição da nota anterior do Prof. Luiz Alberto, anoto, então, que a segunda vertente é a que revela as características do conjunto de atributos cultivados pelo indivíduo e que são reconhecidos pelo corpo social. Esta tem o nome de "imagem-atributo" (ob. cit., p.31-32).
Vivemos tempos difíceis. Nem preciso referir o drama enfrentado por todos por causa da pandemia da Covid-19. Quero cuidar das comunicações ligadas à ciência. Há informações seguras e muita polêmica. Vacinas que funcionam, mas não totalmente. Tratamentos com medicamentos que uns adotam e outros não. Enfim, há, de fato, muita dificuldade em se conhecer a verdade científica e quais são os interesses mercadológicos (e, neste caso, também políticos) que afetam as informações oferecidas. Volto, pois, ao assunto do controle exercido sobre os consumidores no mercado. Usarei um exemplo antigo, que aqui já dei, para mostrar que ciência e mercado podem andar juntos para impingir certos comportamentos aos consumidores, mas, na esperança de que no caso desta pandemia o interesse seja autêntico na direção de cuidar da saúde de todos. No livro "Adoro Problemas" de Michael Moore1, dentre tantos casos narrados, há uma história intrigante. Eis o fato narrado com humor pelo autor: Disse ele que, quando nasceu, na década de 1950, estando na maternidade, descobriu que ao invés dos seios de sua mãe, impingiram-lhe e também a seus colegas bebês mamilos falsos de borracha: "Na década de 1950, os hospitais se consideravam como a vanguarda da sociedade moderna do pós-guerra. E convenciam as mulheres hospitalizadas de que ser 'moderna' significava não dar de mamar ao seu bebê, que amamentar era antiquado e inútil. As mulheres modernas usavam mamadeira!"2 "Convenceram nossas mães de que se um alimento vinha numa garrafa - ou numa lata, caixa ou saco de celofane -, então ele era de alguma forma melhor para você do que quando vinha grátis via mãe natureza." Depois, espantado, o cineasta americano pergunta: "Era, de fato, assim tão fácil enganar nossos pais? Se eles podiam ser enganados de modo tão fácil a esse respeito, o que mais eles podiam ser convencidos a testar? Creme de milho em lata? Grama artificial?3 E, de fato, como é possível que isso tenha ocorrido? Ao que consta, é sabido por todos, com muita tranquilidade, da importância do aleitamento materno, mas pude constatar que, realmente, naquele período dos anos cinquenta, era "moda" usar mamadeira, desprezando-se o leite que a mãe podia oferecer. Pensei, então, que a análise do caso narrado por Michael Moore poderia permitir a elucidação do modus operandi de alguns setores do mercado capitalista no processo de enganação, controle e alienação dos consumidores, a partir da análise das técnicas implementadas pela indústria de leite como substituto do leite natural. Meu caro leitor, veja o que encontrei. Maria Lúcia Magalhães Bosi e Márcia Tavares Machado, no artigo intitulado "Amamentação: um resgate histórico"4, apresentam um panorama que permite uma análise. Inicialmente, transcrevo o que se sabe, realçado pelas pesquisadoras: "O leite materno é o alimento adequado para as crianças nos primeiros meses de vida, tanto do ponto de vista nutritivo e imunológico quanto no plano psicológico, além de favorecer o vínculo mãe-filho quando o ato de amamentar é bem vivenciado pelas mães."5 No início do Século XX, já estavam em pleno desenvolvimento as pesquisas e a produção de alimentos que pudessem substituir o leite materno durante o período de desmame. Várias alternativas de leite de vaca, com adição de açúcar, água, cremes etc., que permitiam uma melhor digestão, foram oferecidas. "Os médicos passam a aderir às novas alternativas, prescrevendo-as como benéficas para a alimentação infantil. Essas práticas associam-se a um forte marketing focalizado nos pediatras, que passariam a desempenhar um papel decisivo como influenciadores de um novo movimento na sociedade: a 'cultura da mamadeira'."6 As autoras relatam que as indústrias de alimentos realizavam campanhas publicitárias em jornais médicos e paramédicos, visando - e conseguindo - influenciar os médicos que prescreviam as fórmulas para as mães. Assim, aos poucos e incessantemente, os produtos foram se tornando confiáveis: "No final dos anos 40, iniciando os anos 50, os produtos são apresentados como uma opção para facilitar a tarefa dos médicos que passam a prescrevê-los indiscriminadamente às mães, como a forma mais prática e viável para seus filhos."7 Nos anos seguintes, o leite em pó passou a ser recomendado e utilizado tão logo o bebê nascia. Como apontam as autoras, as estratégias para criar essa cultura da mamadeira envolviam o fornecimento de produtos lácteos aos profissionais de saúde (médicos e nutricionistas), o patrocínio de reuniões científicas, cursos de atualização e congressos, a contribuição para manutenção de revistas científicas, nas quais eram publicados anúncios constantemente etc. É de se prestar bastante atenção no esquema, que não só vingou como é utilizado abertamente pelas  grandes corporações até os dias atuais. Alguns produtos para serem aceitos pelos consumidores passam por um largo processo de "convencimento". Talvez num primeiro momento os consumidores não se interessem, como se deu no caso narrado. "Leite em pó, com água e outros componentes numa mamadeira?", devem ter dito as mães num primeiro momento. "Não quero, prefiro que meu filho tome o que eu tenho para dar e que já está pronto". Talvez. Daí é que, então,  a indústria desenvolveu seu plano estratégico. Era preciso dar autenticidade ao produto; havia que se mostrar suas qualidades. Quem melhor que os cientistas para fazê-lo? Ou, na hipótese, os médicos e nutricionistas. Como os pais poderiam deles duvidar? Para convencer esses cientistas, que tal patrocinar reuniões, cursos, congressos? Subsidiam-se esses eventos, pagando-se muito bem para que os palestristas convençam o público presente da qualidade dos produtos. Esse público que, claro, já está grato por estar participando do evento de forma gratuita e que envolve passeios, jantares etc. Para edulcorar o novo conhecimento que estava surgindo, que tal manter revistas científicas, pagando caros anúncios em suas páginas?  E, ao mesmo tempo, fazer publicidade em muitos outros veículos? Com esse assédio vindo de todos os lados, reforçados por frases que têm um forte apelo de verdade porque saem da boca de técnicos, cientistas, médicos e nutricionistas, ladeadas por belos anúncios publicitários que apresentam as vantagens do aleitamento artificial e com o apoio da sempre necessidade do consumidor de não estar "por fora", de andar "na moda", de estar "na onda", acaba dando certo. E esse caso é, de fato, exemplar porque mostra o poder de convencimento dos fornecedores. Se eles conseguiram convencer pais e mães que leite em pó, cheio de produtos artificias, servidos numa garrafa plástica ou de vidro era melhor que o peito da mãe, que tinha pronta-entrega do leite ideal produzido por ela mesma, podem mesmo convencer as pessoas a consumirem quase tudo. É um poder incrível.  Claro que não foi tarefa fácil convencer pais e mães de que era possível abandonar a mãe-natureza no que ela tinha de próprio para os bebês e preferir o alimento artificial. Mas, funcionou, especialmente porque a tática conseguiu atrelar um produto industrial à ciência, criando uma imagem positiva e dando credibilidade às prescrições e ofertas. Eis aí, pois, mais um exemplo que tem de tudo quanto os fornecedores aprenderam e usam no esquema de oferta e venda de seus produtos e serviços. Vê-se que não se trata apenas de publicidade, mas de um largo projeto de marketing que envolve a ciência e seus profissionais, as escolas, os meios de comunicação em geral, os depoimentos de autoridades e pessoas com prestígio social - os confessionais - etc., num longo e árduo trabalho de convencimento que, quando funciona atordoa o consumidor final, de modo que ele acaba não percebendo que foi enganado. Durou, mas mudou. Ainda bem: No Brasil, por exemplo, a partir dos anos oitenta do século XX, ressurgiu a lógica e o caráter verdadeiramente científico do discurso que mostra as vantagens do aleitamento materno. __________ 1 São Paulo: Lua de Papel, 2011. 2 Ibidem, p. 40. 3 Idem, p. 41 4 Cadernos ESP - Escola de Direito Público do Ceará, V. 1, Nº 1, Julho-Dezembro - 2005. 5 Ibidem, fl. 1. 6 Ibidem, fl. 5.   7 Ibidem, fl. 6.  
Com a liberação gradual do comércio, tudo indica que as pessoas poderão fazer compras para o Dia das Mães com mais tranquilidade. De todo modo, com aquisições via web ou pessoalmente nas lojas de rua e de Shopping Centers, é preciso cuidado com as armadilhas do mercado. Lembro, pois, de algumas cautelas necessárias para as boas compras, eis que a data é especial e, por isso mesmo, a compra é emocional e irresistível. Aliás, como sempre digo, qualquer que seja o dia a ser comemorado, seja o das mães, dos pais, das crianças, dos namorados, Natal, aniversário de alguma pessoa querida etc., em todos o consumidor está mais fragilizado, pois é um momento de compra compulsória. Até aí, tudo bem. Mas, os vendedores sabem disso. Por isso, os cuidados devem ser maiores e a escolha deve ser a mais racional possível. Em primeiro lugar e, como regra geral, não se deve comprar um produto sem antes fazer uma pesquisa de preços. Os preços variam muito de vendedor para vendedor. As diferenças entre os estabelecimentos às vezes são tão grandes que permitem a aquisição de dois presentes em vez de um. Nos dias atuais, com todas as facilidades oferecidas pela internet, naturalmente, é  por ela que a pesquisa de preços deve ter início. Há até sites de busca especializados em procurar e encontrar o menor  preço. Mas, claro, depois de obtê-lo, é ainda necessário checar estoque, qualidade e condições de entrega para ver se vale a pena mesmo, o que pode ser feito pela própria web, pelo telefone ou pessoalmente. No entanto, dependendo do tipo de produto que se deseja comprar, a pesquisa haverá de ser feita "in loco". Daí o jeito é bater perna (e sempre usando máscara!), mas, nunca se deve pesquisar preços num só local. Por exemplo, apenas numa mesma rua ou num único shopping center. Isso porque, da mesma forma que o consumidor pesquisa, os lojistas também o fazem. E assim, pode acontecer que numa mesma rua, principalmente em lojas próximas, os preços não sejam tão diferentes. E, com os preços em baixo do braço, é possível exercer um direito básico do consumidor: o de pechinchar. Vale a pena pedir descontos e negociar com o comerciante. Uma tática bastante atraente e enganosa é a da oferta de descontos. Há lojas virtuais e reais que estão sempre fazendo promoções, oferecendo vantagens. Algumas usam essa "técnica" de vendas o ano inteiro! Ora, se a promoção é permanente, então, na verdade, ela é falsa: é tática enganosa da loja para atrair o consumidor pelo desconto e não pelo preço. Por isso, não se deve confiar cegamente nesse tipo de oferta; a preocupação deve estar centrada no preço final do produto. O percentual de desconto não significa nada. Dez, vinte, trinta, cinquenta por cento são apenas atraentes aos olhos. O que vale é quanto custa o produto realmente após o abatimento, isto é, o que interessa mesmo é quanto o consumidor irá desembolsar. Há mais enganações. Por exemplo, existem anúncios que dizem: "Pague à vista com 20% de desconto ou em 3 x sem acréscimo". Ora, se à vista tem desconto, quando o preço é dividido em três prestações, o valor do desconto está incluído. Portanto, há acréscimo, sim: ele é o correspondente ao montante do desconto. Um outro exemplo é o chamariz: o das lojas que colocam na vitrine produtos com preços bem atrativos, mas, quando o consumidor se interessa e entra para comprar, o vendedor diz que o estoque acabou ou, em caso de roupas, que a numeração não existe. E, em seguida, o vendedor oferece produto similar bem mais caro. É um método grosseiro de atrair o consumidor e tentar vender o produto pelo constrangimento causado. Ademais, e por falar em relação pessoal, é bom tomar cuidado com  a conversa do vendedor que, claro, está preparado para falar coisas agradáveis e fechar o negócio. É preciso, pois, refrear o impulso da compra e refletir bem antes de se decidir por fazê-la. Comprar presentes é uma arte. É sempre difícil descobrir "aquilo" que o presenteado gostaria de ganhar. Tanto mais quando a pessoa é muito querida. Felizmente, as trocas dos presentes repetidos ou dos que não serviram, como, por exemplo, sapatos muito grandes, camisas pequenas, bolsas repetidas etc., podem ser feitas na maioria dos estabelecimentos comerciais. Todavia, é preciso prestar atenção aos produtos que não podem ser trocados. Algumas lojas, às vezes, não aceitam trocas porque o produto é de fim de linha, fim de estação, ponta de estoque etc. E, como a troca é um direito que nasce na oferta feita pelo vendedor, vale a pena perguntar antes de comprar se a troca pode ser feita e em quais condições. Há ainda um outro problema que às vezes ocorre: o da exigência de nota fiscal para a troca. Nem sempre quem dá o presente gosta de entregar a nota fiscal ao presenteado, pois lá consta o preço. Sem alternativa, é melhor guardar a nota fiscal para se for necessário, utilizá-la. A boa notícia é que, atualmente, a maior parte das lojas entregam senhas, documentos separados, etiquetas especiais etc., o que facilita a troca. Outro aspecto que se deve ter em conta diz respeito às etiquetas. Há estabelecimentos que se negam a trocar o produto se a etiqueta for removida. É uma exigência abusiva, mas para evitar aborrecimentos, aconselha-se que a etiqueta não seja removida até que o presente seja experimentado e aprovado. Para finalizar, lembro que, como sempre, em qualquer compra, é importante pedir e guardar a nota fiscal.
O século XXI exige uma mudança de paradigma das relações sociais em geral, na direção da solidariedade, da busca da igualdade, da concretização da Justiça etc. E, no que respeita às relações jurídicas de consumo, um dos lemas mais importantes é o da harmonização, esta que foi expressamente prevista no Código de Defesa do Consumidor como princípio (conf.  caput e inciso III do art. 4º). A ideia de harmonização envolve alguns parâmetros. Por sua relevância, destaco, mais uma vez,  o princípio da boa-fé objetiva. A hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise  da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação;  os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do "status quo"; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas fórmulas gerais que sempre se repetem como "topói", isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem  utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto.1 Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário. Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional. Mas, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver o problema estudado, ele lança mão de fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução da questão. Dentre as várias alternativas, chamo atenção para certos "standarts", tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "ser humano comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom senso", "senso comum" etc. É importante notar que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma inconsciente - intuitiva - um foro de legitimidade, eis que produzidos na realidade como um fato inexorável.  E a boa-fé objetiva é um "topos" fundamental que, como disse, no Brasil, acabou por ser erigida a princípio no Código de Defesa do Consumidor. Anoto que, quando se fala em boa-fé objetiva tem-se que afastar o conteúdo da conhecida boa-fé subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Lembro os exemplos encontrados no direito civil pátrio, tais como o do art. 1.561, que cuida dos efeitos do casamento putativo, dos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, do art. 879, que  se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido etc. Sendo assim, a boa-fé subjetiva admite sua oposta: a má-fé subjetiva. Vale dizer, é possível verificar-se determinadas situações em que a pessoa age de modo subjetivamente mau intencionada, exatamente visando iludir a outra parte que, com ela, se relaciona. Fala-se, assim, em má-fé no sentido subjetivo ou o dolo de violar o direito da outra pessoa envolvida. Mas com a boa-fé objetiva é diferente: ela independe de constatação ou apuração do aspecto subjetivo (ignorância ou intenção), vez que erigida à verdadeira fórmula de conduta é capaz de, por si só, apontar o caminho para solução da pendência. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva dos contratantes.  Em decorrência disso, pode-se, grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes envolvidas a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado na transação, realizando o interesse das partes. Em matéria de relações de consumo, o CDC estabeleceu expressamente a harmonia como um princípio (no caput do art. 4º e no seu inciso III). A pretendida harmonia das relações de consumo nasce dos princípios constitucionais da isonomia, da solidariedade e dos princípios gerais da atividade econômica e no contexto do CDC ela é amparada pelos princípios da boa-fé e equilíbrio (mesmo inciso III do art. 4º).2   Então, a lei pretende que haja entre fornecedor e consumidor um tipo de relação que seja justa na contrapartida existente entre ambos. Lembro que, a boa-fé objetiva é parâmetro também para o comportamento do consumidor, que deve agir sob a égide do mesmo modelo. E, tenho de admitir que, neste século XXI,  muitas empresas têm se esforçado para manter o equilíbrio, buscando a harmonização, respeitando seus clientes e agindo na direção da boa-fé. Naturalmente, essa mudança de postura  reflete a maior consciência do consumidor a respeito de seus direitos e também a ampliação do leque de oportunidades para reclamações que surgiram pelas redes sociais e sites de internet, além da força da concorrência (quando ela existe). Isso é verdade. Mas, há mais: aos poucos, começa a surgir uma consciência empresarial que percebe que vale a pena respeitar a lei; que isso é a favor, não contra. E que buscar a harmonização é fundamental para os negócios. A boa-fé objetiva é, pois,  um paradigma de conduta fundamental para o atingimento da harmonização das relações de consumo. Por isso, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o Magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso (por qualquer das partes), deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado como adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standard, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas. __________ 1 Ver a respeito da Tópica, Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, Brasília, UNB, 1980, "passim". 2 E o Código Civil   incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta aos contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 422 [ii] e no art. 113, que cuida da interpretação dos negócios jurídicos[ii]. Além disso, é importante apontar que a boa-fé objetiva é também fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e deve ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. Este equilíbrio - tipicamente caracterizado com um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto -, é verdade, não se apresenta como uma espécie de tipo ideal ou posição abstrata, mas, ao contrário, deve ser concretamente verificável em  cada relação jurídica.
quinta-feira, 15 de abril de 2021

O isolamento e a esperança do consumidor

Volto ao tema da esperança, neste momento de isolamento de milhares, milhões de pessoas. A esperança é uma componente importante de ordem psíquica para a venda de muitos produtos e serviços. Os marqueteiros sabem muito bem como utilizá-la em suas formulações e comunicações.   Caro leitor, veja esse ponto: muitos consumidores jamais poderão adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo. Por mais que o sistema financeiro consiga, cada vez mais, oferecer crédito para uma ampla camada da população, muitos objetos do desejo dos consumidores continuam e continuarão inacessíveis. Pensemos  no elemento psíquico. Os bens de difícil aquisição, alimentam, de fato, a frustração do consumidor que sonha, mas não adquire o bem desejado ou tem muita dificuldade em conseguir fazê-lo. Aliás, há aqueles que entendem que a frustração é boa para o mercado, pois, como o consumidor não consegue preencher seu "espaço interior" adquirindo mercadorias, nunca para de comprar, na tentativa  - vã - de apaziguar sua alma. Além disso, como esse consumidor - já frustrado ou que ainda se frustrará - é um ser humano, tem, dentro de si, uma coisa chamada esperança. Daí, vive a ilusão da possibilidade de um dia realizar seu sonho - qualquer que seja ele: alguns mais difíceis como, por exemplo, o da aquisição da casa própria perfeita; outros nem tanto, como comprar certos automóveis ou empreender lindas viagens. Mas o fato é que,  de frustração em frustração,  o consumidor vai preenchendo o vazio de sua esperança; se olhar para trás, verá o quanto não conseguiu obter. Acontece que, a esperança é forte e a ilusão também. Por isso, ele acredita na sorte e participa de todo tipo de jogos para ganhar prêmios (estes ironicamente chamados de "jogos de azar"): loterias,  cassinos (quando e onde há), entra em concursos de todo tipo, adora promoções, sorteios etc.. Isto é, o consumidor é presa fácil das ofertas que prometem uma vida melhor e, de preferência,  obtida rápida e facilmente. Por isso é que já disse aqui neste espaço: visto desse modo, é possível afirmar que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem nos vários tipos de produtos e serviços oferecidos: a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita;  ou a de  fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos e muitos outros, conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; a esperança de garantir o próprio futuro e, também, o da família pagando prêmios de seguros; e a de chegar nesse futuro, se aposentar e ter tempo ainda de gozar a vida, poupando de forma adequada; etc. etc. Realmente, o mercado oferece o futuro de uma vida melhor. Antes dessa pandemia, que já dura muitos meses e que, em alguns lugares, de fato, gerou um enorme isolamento das pessoas, o que se percebia era que, cada vez mais, o consumidor tinha pressa. A aceleração por aquisição de produtos e serviços veio crescendo fortemente desde os anos 80 do século XX e ingressou no século XXI em alta velocidade. E foi o mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não havia tempo para nada; nem se podia perder tempo algum. Apesar dessa questão do Covid, ainda é assim: recebe-se à vista e paga-se a crédito, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o dia das mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem  de entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para  qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que já nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel - criadas e continua pagando as prestações de seu financiamento. Ou, como diz a propaganda: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável. Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o  empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. E mesmo em tempos de pandemia, as táticas prosseguem. Além disso, nos dias que correm, o consumidor sonha com dias melhores, quero dizer, todos nós sonhamos! Claro que nem tudo é responsabilidade do fornecedor. Afinal, o consumidor compra por que quer e exercendo sua liberdade para tanto. Pergunto:  Será que o consumidor precisa adquirir muitos bens para ser feliz? E a que preço? O capitalismo não esconde suas intenções: produz e quer vender. O consumidor, cada vez mais, está sintonizado com o sistema, vivendo a esperança de um futuro de bem-estar que decorre da aquisição de produtos e serviços. Como diz meu amigo Outrem Ego: "Será que não chegou a hora do consumidor ter menos pressa e pesquisar para descobrir melhores alternativas para uma vida mais tranquila e feliz, sem ter que ficar comprando produtos e serviços sem parar? Quem sabe, no isolamento, o consumidor possa refletir sobre isso".
quinta-feira, 8 de abril de 2021

Os limites da coisa julgada na ação coletiva

A questão dos limites da coisa julgada na Ação Coletiva vem sendo discutida há muitos anos. No âmbito do Poder Judiciário, o entendimento era oscilante sobre o tema: ora aceitava a abrangência nacional, ora a restringia. A dúvida estabelecida a respeito da abrangência da coisa julgada na ação coletiva surgiu a partir da inusitada modificação do texto do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública (LACP - lei 7.347, de 24-7-85) que, a partir de setembro de 1997, passou a ter a seguinte redação: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova" Essa modificação legal, se aplicada, restringiria os efeitos da sentença coletiva aos limites territoriais do Tribunal que proferiu a sentença. Ou seja, uma decisão dada por um juiz no Estado de São Paulo, só valeria nesse estado.  Em novembro de 2016 foi publicada uma decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ),  que definiu que a sentença de uma ação civil pública (ACP) tinha abrangência nacional e não podia ser limitada ao Estado onde o processo foi julgado. Essa decisão atendeu a um recurso apresentado pelo Idec em uma ação sobre financiamento habitacional, que envolvia as principais instituições financeiras do país1. Atualmente, está em curso o julgamento do mesmo tema no Plenário do Supremo Tribunal Federal. Por enquanto, seis ministros votaram fixando o entendimento de que é inconstitucional artigo 16 da lei da ação civil pública, que limita a eficácia da sentença à competência territorial do órgão que a proferir. Já há maioria, portanto, nesse sentido.2  Pelo que penso, a decisão do STF está indo na correta direção. Como já tive oportunidade de referir, a questão da amplitude da coisa julgada na Ação Coletiva tem relação direta com a extensão do dano: se este é nacional, a amplitude também é. Não teria nenhum sentido que, por exemplo, consumidores paulistas não sejam violados, mas se permita que o mesmo ato abusivo atinja consumidores de outros Estados-membros.3 Os que pensam diferente argumentam que seria "inadmissível que sentença com trânsito em julgado de pequena comarca do interior desse imenso Brasil possa produzir efeitos sobre todo o território nacional". Mas, a meu ver, sem qualquer razão. Todos sabem que, por exemplo, mesmo a sentença de falência de uma empresa (grande ou pequena, não importa), proferida numa pequena cidade do interior do país, faz efeito em todo o território nacional. E mais: se uma indústria de medicamentos com sede numa pequena cidade comercializa remédio que gera a morte de pessoas, todos esperam que a sentença proferida pelo juiz naquela pequena localidade possa impedir a comercialização em todo o país. Não haveria base alguma - lógica nem jurídica - decidir-se por salvar a vida das pessoas numa cidade ou Estado e permitir-se conscientemente que pudesse ocorrer a  morte de outras nos demais lugares. Isso feriria o princípio da racionalidade e da razoabilidade do sistema jurídico constitucional e, no caso, o superprincípio da dignidade da pessoa humana. A verdade é que, como bem decidiu o STJ e agora o STF, o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública não tem como vingar no sistema jurídico constitucional brasileiro, uma vez que está em plena contradição com as normas e princípios do Código de Defesa do Consumidor. Aliás, ele contradiz a própria estrutura da LACP, enquanto o Código de Defesa do Consumidor é firme, claro e coerente ao dizer que os efeitos são erga omnes e, pois, estendem-se a todo o território nacional, gerando conteúdo formal adequado e condizente com os princípios e normas constitucionais e para além dos limites de competência territorial do órgão prolator da decisão. __________ 1 Para ver a decisão, clique aqui.  2 Ver aqui.  3 Ver, por exemplo, meu Comentários a Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 8ª.edição, 2015, pág. 987 e segs.
quinta-feira, 1 de abril de 2021

O dia da mentira em tempos de fake news

Em tempos de fake news em profusão, às vezes parece que o dia da mentira é todo dia! Ela está em todo lugar: nas táticas do capitalismo, nas redes sociais, nas comunicações em geral etc. Mas, vale lembrar que, "oficialmente" é na data de hoje que se comemora o dia da mentira, algo que sempre foi mais leve, pois gerava (e ainda gera) brincadeiras entre as pessoas com piadas e execução de "pegadinhas". Há algumas versões sobre seu surgimento neste dia 1º de abril. Uma delas é a de que a brincadeira surgiu na França por volta do século XVI. Nessa época, o Ano Novo era comemorado dia 25 de março, e as festas duravam uma semana e iam até dia 1º de abril. No ano de 1564, o Rei Carlos IX adotou oficialmente o calendário gregoriano, passando o Ano Novo para o dia 1º de janeiro, porém muitos franceses resistiram à mudança e continuaram seguindo o calendário antigo. Assim, algumas pessoas começaram a fazer brincadeiras e a ridicularizar aqueles que insistiam em continuar a considerar o dia 1º de abril como primeiro dia do ano novo. Eram considerados bobos, pois seguiam algo que não era verdadeiro. Entre nós, o Dia da Mentira começou a se popularizar em Minas Gerais, por conta da publicação do periódico "A Mentira", que tratava de assuntos efêmeros e sensacionalistas do começo do século XIX. Este periódico publicou no dia 1º de abril de 1848 uma matéria noticiando a morte do então imperador Dom Pedro II, o que era mentira e teve que ser desmentido. Muito bem. Mentira como brincadeira pode passar sem consequências negativas. O problema é seu uso para enganar, iludir, causar danos, fazer o mal. E, muitas vezes, a mentira é propagada por aqueles que acreditam que ela corresponda à verdade. Isso gera uma espécie de falsa sinceridade. Além disso, a desinformação e a ignorância geram disputas, lutas e tomadas de posições que podem causar muitos danos a indivíduos e a instituições. Não há novidade nisso, mas como vivemos tempos especialmente difíceis, consigno para terminar, duas observações de pensadores brilhantes. A primeira, de Albert Einstein que disse: "Apenas duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana, e não tenho certeza quanto à primeira". A segunda, de Abraham Lincoln, notável presidente norte-americano. Ele disse: "É melhor se calar e deixar que os outros pensem que você é um idiota do que falar e acabar com a dúvida". Por fim, lembro que temos o direito de pensar o que quisermos e atrelado a essa liberdade  de pensamento, está a liberdade de expressão, ambas fundamentais para as democracias e, no caso brasileiro, garantidas no texto constitucional. É um princípio que garante que a pessoa possa dizer o que pensa,  encantando com suas palavras. Ou mostrando sua ignorância, arrogância e desrespeito pelos outros explicitamente.
quinta-feira, 25 de março de 2021

A comunicação difusa em uma sociedade confusa

Em tempos de ofensas verbais, é preciso muito cuidado com o uso das palavras e das comunicações. Como disse há cerca de 2.500 anos o Filósofo Chinês Confúcio, "uma imagem vale mais que mil palavras". E há palavras que lançam no espaço imagens distorcidas... Eu já contei uma vez: há alguns anos, tornou-se pública a informação de que um religioso, líder de uma igreja, acreditando no poder da língua inglesa - isto é, vivendo neste ambiente em que o inglês, ao menos aparentemente domina --- fez uma pregação extraordinária para seus seguidores: ele proibiu que os fiéis de sua Igreja consumissem a maionese da marca Hellmann's. Disse o líder que, traduzindo o nome da maionese da língua inglesa  para a portuguesa, o resultado seria "homem do inferno", já que hell significa inferno e man, homem. Para reforçar seu ponto de vista, ele teria dito aos seguidores: "Você passaria o satanás no seu pão? Colocaria ele na sua salsicha ou comeria ele na sua salada com a sua família?". O problema era que, como se sabe, a colocação da apóstrofe após o nome e antes do ésse, significa que algo pertence ao nome vindo antes. E Helmmann é o nome do criador da maionese, Richard Helmann, um alemão que a inventou e começou a vendê-la em 19051. Além disso, como a palavra tem origem alemã, na pior das hipóteses poderia ser traduzida por homem da luz ou gente da luz (hell = claro, iluminado, luminoso e man = gente, alguém), muito ao contrário do que ele pregou. Depois foi demonstrado que a notícia era falsa: apenas uma brincadeira. Voltemos ao mercado: em termos de sociedade capitalista, sabe-se que há muito tempo os profissionais de marketing descobriram que,  para vender produtos e serviços,  a comunicação com seu público-alvo poderia ser feita de modo indireto, com subterfúgios, com imagens ao invés de palavras, com frases que não necessariamente falassem do produto nem do serviço a ser vendido etc.. Do ponto de vista da mudança na forma de comunicação, poderíamos dizer, grosso modo, que antigamente a oferta apontava para a coisa em si e, com o passar do tempo, foi buscando metáforas ou símbolos que pudessem agradar e atrair o consumidor para as compras. Por exemplo, antigamente um anúncio de tevê diria o seguinte a respeito de uma geladeira: "Nossa geladeira é linda, espaçosa, dura muito e mantém os produtos fresquinhos". Mais para a frente, o anúncio diria: "Se você tiver nossa geladeira em sua cozinha, irá brilhar e ser especial. Todo mundo admira quem tem uma geladeira como essa". A comunicação passou, digamos assim,  de uma fase de apresentação concreta do bem a ser vendido para uma fase psicológica, social e até política da inserção do consumidor na sociedade. Cada vez mais, o marqueteiro passou a investigar os anseios, desejos e interesses do consumidor. Não esqueceu, claro, das necessidades de seu público-alvo, mas passou a chamar atenção de seu coração, de sua imaginação e também de sua própria imagem construída no meio social. Em tempos de rede social, isso, de algum modo afetou e afeta a comunicação feita pelas pessoas entre si e em relação aos fornecedores, às instituições, ao grupo social a que pertencem etc., e até em relação às pessoas com quem se digladiam ou de quem discordam. Algumas palavras e frases têm indicações expressas e outras, são metafóricas, mas carregadas de sentido (por exemplo, "cdf", "rolezeiro",  "patricinha", "playboy", "mauricinho", "coxinha", "mortadela" etc.). Mas, em todos os casos, de forma direta ou indireta, há grande chance de confusão e incompreensão não só de quem recebe a comunicação como também por quem a faz e dependendo do ambiente pode significar "bullying", ofensa à honra etc. De todo modo, muitos termos, tomados ao pé da letra de forma descuidada, isto é, sem um estudo mais aprofundado, podem gerar equívocos importantes ou simplesmente engraçados. E em tempos de comunicação de massa via web/redes sociais, existe a possibilidade  de emissão de mensagens (e palavras) enganadoras ou postadas de forma deliberadamente falsas. A verdade é que usada de forma direta ou metafórica, as palavras, as frases e as imagens podem dizer muito sobre quem as pronuncia e também podem ser usadas para vender produtos e serviços ou, ainda, para enganar, manipular, agredir, injuriar, causar danos etc.. __________ 1 Retirei essa informação do site da Helmann's.
quinta-feira, 18 de março de 2021

Shows cancelados: o direito ao reembolso

Por causa da pandemia da Covid-19 algumas leis foram aprovadas visando manter um equilíbrio entre a oferta do produto ou do serviço e a aquisição pelo consumidor. Hoje abordo um ponto, com o seguinte acontecimento: o consumidor adquiriu o ingresso para assistir a um show de um específico artista estrangeiro. Por causa da pandemia, o show foi adiado. O fornecedor deu a ele, então, um crédito para que possa ir ao evento na próxima data a ser anunciada. Aliás, a lei 14.406, de 24/8/2020 garantiu esse direito. Acontece que, passadas algumas semanas, o artista informou que não fará mais o show no Brasil. Ele cancelou definitivamente sua apresentação. Pergunto: e agora? O consumidor é obrigado a ficar com o crédito para assistir um outro show? Respondo na sequência. Primeiramente, anoto que lei supra referida não é de todo fora de contexto. Na realidade ela apenas reconheceu o grave problema dos adiamentos de eventos por causa da pandemia. Já escrevi aqui mesmo nesta coluna que o evento da Covid-19 é algo extraordinário e assim deve ser encarado do ponto de vista jurídico. Sabemos que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não apresenta como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior. Mas, essas hipóteses são de fortuito interno e força maior interna.  Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, naturalmente, o mesmo se deu e se dá na eclosão de uma pandemia, como esta da Covid-19. Evento absolutamente fora de qualquer possibilidade de previsão e, infelizmente, inevitável. Reforço que todas as relações jurídicas foram afetadas. Falo de todas porque  ninguém escapou. A diferença para alguns é que o evento acabou trazendo benefícios, pois puderam produzir e vender mais, os estoques acabaram etc. Porém, em milhares, aliás, milhões de relações jurídicas (de consumo ou não) a situação, de fato, foi e é de prejuízo para os dois lados da relação (ou para os vários lados da relação). Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. E não resta dúvida alguma de que, se o evento, qualquer que seja ele, estava marcado para datas dentro do período de quarentena, ambos os lados da transação (consumidor e fornecedor) podem simplesmente rever o negócio, sem possibilidade de cobrança de multa ou de pagamento de indenizações. Muito bem. Seguindo essa linha, a lei 14.406, de 24/8/2020 regulou a questão dos adiamentos e cancelamentos de eventos, shows etc. Para o que nos interessa aqui, faço referência ao artigo 2º e seu parágrafo 6º. Com efeito, dispõe o caput do art. 2º: "Art. 2º  Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da Covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem: I - a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou II - a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas." (grifei) Os cinco primeiros parágrafos desse artigo regulam prazos e o parágrafo 6º estabelece o seguinte: "§ 6º  O prestador de serviço ou a sociedade empresária deverão restituir o valor recebido ao consumidor no prazo de 12 (doze) meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, somente na hipótese de ficarem impossibilitados de oferecer uma das duas alternativas referidas nos incisos I e II do caput deste artigo." (grifei) Vejamos então, o que está acontecendo: como na redação do §6º o legislador se utilizou de uma disjuntiva (ou), então, se o fornecedor oferecer qualquer das duas alternativas, cabe ao consumidor aceitá-las e pronto. No caso do referido show do artista estrangeiro, basta remarcar o evento ou, na sua impossibilidade, oferecer crédito para o consumidor utilizá-lo em outro evento. De fato, talvez isso resolva muitas hipóteses. Mas, retorno à minha pergunta: e se o artista cancelou, o consumidor é obrigado a assistir um show de outro artista? Ou, perguntando de outro modo: o consumidor comprou uma coisa e a lei o obriga a levar outra? Minha resposta é não! A lei é clara, mas o inciso II do art. 2º somente pode ser entendido como uma opção oferecida ao consumidor. Jamais uma obrigatoriedade, pois isso viola um princípio básico do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que é o da liberdade de escolha (art. 6º, inciso II do CDC). Não nos esqueçamos que o CDC é uma lei geral de ordem principiológica, que não pode ser simplesmente contrariada. Para tanto, seria necessário sua modificação ou uma ampla regulação do setor por normatização completa, o que, naturalmente, não é o caso da lei 14.406 acima citada. E mais: a situação regulada pela lei é estranha. Ela não pode obrigar o consumidor a adquirir algo que ele não queira. Seria o mesmo que obrigar um consumidor que encomendou uma roupa, que não será mais entregue e obrigá-lo a ficar com uma mala; ou que adquiriu um ingresso para assistir a uma palestra de um importante comunicador, que não mais virá, e obrigá-lo a receber, em seu lugar, um ingresso para um show musical etc. Os exemplos são inúmeros. O fato é este: não pode a lei obrigar o consumidor a comprar algo que ele não escolheu. Direito de escolha é uma garantia fundamental. Lembro que, mesmo nos casos de vícios dos produtos e serviços, o CDC garante ao consumidor seu direito de escolha. Ele pode aceitar a substituição do produto ou a restituição da quantia paga (art. 18, § 1º,  incisos I e II e art. 19, caput, incisos III e IV) e a reexecução do serviço ou a restituição da quanta paga (art. 20, caput, incisos I e II). Realço: quem escolhe é o consumidor. Essa é a regra e o princípio que valem.   Por fim, consigno que, claro,  concordo que a lei pode regular prazos. Mas, repito: no caso que citei do cancelamento pelo artista, se o consumidor não quiser trocar por outro evento, o valor que pagou deve ser devolvido.
Na data de hoje, 11 de março de 2021, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) faz 30 anos de sua entrada em vigor (o que se deu em 11/3/1991). Na próxima segunda-feira, dia 15 de março, é comemorado o Dia Mundial do Consumidor. Famoso porque foi nesse dia, há quase 60  anos (em 1962), que o então presidente americano John Kennedy enviou ao Congresso uma mensagem na qual defendia os direitos dos consumidores, dentre estes, o direito a segurança, informação e escolha e o direito de ser ouvido, tema que já abordei aqui mais de uma vez. Mas, aproveito o aniversário do CDC para lembrar algumas virtudes de nossa famosa lei consumerista.  Os autores do anteprojeto apresentado pelo então deputado Geraldo Alckmin, que  fez nascer o CDC,  pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Trata-se de uma lei tão importante que fez com que nós, importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu, e ainda serve, de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, nele inspiradas.  Não resta dúvida de que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto  houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como seu texto foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e, também, em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea, o exercício da cidadania confunde-se com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nos esportes em geral, nas diversões públicas em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como cursos, livros, filmes etc.;  os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; as matrículas e os cursos realizados em escolas particulares de todos os níveis de ensino;  a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos;  a aquisição de imóveis e da tão sonhada casa própria e um interminável etc. Tudo  regulado pela lei 8078/90. Por isso, digo  que, o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a Constituição Federal de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Realço algo importante: o CDC não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege o vulnerável que é  o consumidor, aliás, como ele é em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido. Ademais, leis que protegem o consumidor são a favor do mercado e não contra. Basta olhar para a sociedade da América do Norte e verificar que a proteção lá existente há mais tempo ajudou em muito o crescimento do mercado. E, como também já disse aqui, o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, uma data sempre lembrada. Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. De todo modo, apesar da longeva vigência, o consumidor ainda tem que lutar para fazer valer seus direitos em várias situações. Mas, repito, dá orgulho saber que o CDC é uma lei que impactou positivamente as relações jurídicas de consumo e colocou o Brasil na linha de frente do que existe de mais moderno em termos de leis de proteção aos consumidores.
quinta-feira, 4 de março de 2021

O direito às milhagens aéreas e a pandemia

Como se sabe, várias companhias aéreas oferecem programas de benefícios de fidelidade ao consumidor. Este acumula milhagens, que pode usar na compra de passagens aéreas, upgrade etc. Muito bem. Já mostrei aqui, mais de uma vez, que o fornecedor corre riscos no seu empreendimento. É o chamado risco da atividade: o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo - que, diga-se, não lhe pertence - e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso,  assume o risco do fracasso. Ou, em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro,  mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração. Decorre disso que, quem  se estabelece, deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar, não só para buscar evitá-los, mas também para se prevenir sobre suas eventuais perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas, deve saber  calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão. O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). E a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que, no que respeita ao transporte,  o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Isso vale para o serviço de transporte, para o serviço de  hospedagem, para os pacotes de viagem etc. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador ou pelo administrador do hotel, nem por eles evitado. Todavia, não elidem a responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, claro, o mesmo se dá na eclosão de uma pandemia, como esta da Covid-19. Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados por causa das medidas de segurança adotadas. Por outro lado, os consumidores que cancelam os voos marcados ou mudam a data da viagem também não podem ser responsabilizados, estando livres do pagamento de multas e, aliás, se não puderem mais viajar, podem simplesmente pedir o reembolso dos valores pagos.  Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. Se não se pode responsabilizar o companhia aérea pelo cancelamento do voo, também não se pode responsabilizar o consumidor. Agora, pergunto: e o que acontece com as milhagens que a cia aérea oferece de forma cumulativa? Explico. Algumas cias aéreas oferecem benefícios especiais aos consumidores fiéis que viajam com elas constantemente. Por exemplo, se viajam 10 mil milhas ganham um cartão prata, se viajam 20 mil milhas ganham um cartão ouro etc. Em cada uma dessas categorias os benefícios são diferenciados: atendimento Vip no aeroporto, com sala de espera especial, escolha de poltronas mais confortáveis, troca mais barata para classe executiva etc. Acontece que, com a pandemia, milhares de consumidores que gozavam desses benefícios não puderam viajar e algumas cias aéreas passaram a trocar o consumidor para uma categoria inferior por causa disso. Por exemplo, quem era ouro foi rebaixado para prata. Para se manter no padrão ouro, o consumidor deveria ter viajado uma certa quantidade  de milhas, o que não pôde ser feito. Isso está correto? Certamente, não! Do mesmo modo, que o fortuito externo afetou a relação jurídica nos cancelamentos de voos e de reservas (de lado a lado), sem que isso pudesse gerar responsabilidade por danos de uma parte à outra, não pode a cia aérea cancelar o benefício oferecido pela falta de voos no período da pandemia. Ela está obrigada a manter a categoria do consumidor até o fim das medidas excepcionais existentes em função da pandemia. Não se trata de uma responsabilidade por dano direto, mas da obrigação de garantia de um direito pré-estabelecido que, uma vez retirado, gera perdas ao consumidor.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

A incrível desinformação no caso Petrobras

É direito básico do consumidor (e, também, de todo cidadão) receber informações adequadas sobre produtos e serviços. E, naturalmente, quando os serviços são as próprias informações, estas devem seguir os padrões legais de objetividade, clareza, certeza, veracidade etc. Já disse aqui que, estamos na época da pós-verdade, o que significa que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Certo. Mas, isso não significa que analistas, cientistas, articulistas especializados, possam falar "qualquer" coisa a respeito dos fatos e das pessoas. Nesses últimos dias, eu ouvi e li várias colocações de articulistas (alguns se apresentando como especialistas) a respeito da troca de comando na Petrobras e, especialmente, envolvendo a questão do preço dos combustíveis. Foi um show de desinformação! Antes de prosseguir, quero consignar que, não vou cuidar da troca do comando da empresa, algo decidido pelo presidente da República, pois isso é irrelevante para o que eu vou demonstrar (novamente...). Escrevi sobre isso há apenas duas semanas. Lembro, então, que a Petrobras não é uma empresa privada, que está no mercado para agir livremente obtendo o maior lucro possível a qualquer custo e independentemente das consequências de seus atos e estratégias. Não! Ela é uma empresa pública: uma sociedade de economia mista (SEM). E como tal, tem outros deveres, outras funções muito diversas, das que têm as empresas privadas. Pelo que li e ouvi, o "mercado" não faz a mínima ideia do que seja uma SEM (Torço para que lá, no âmbito da Petrobras, os dirigentes saibam...). Ora, como se sabe, a SEM integra a Administração Pública Indireta. Apesar disso, é, por força de lei, pessoa jurídica do Direito Privado sob a forma de Sociedade Anônima, regulada e estabelecida, pois, pela Lei das S.A.       A SEM pode tanto explorar atividade econômica tipicamente privada de produção ou comercialização de produtos, como pode prestar serviços públicos. Mas isso não quer dizer que uma SEM -- a Petrobras, por exemplo -- deva atuar no mercado como uma mera empresa privada, visando exclusivamente ao lucro, utilizando de métodos capitalistas tradicionais (e, muitas vezes, altamente reprováveis) apenas e tão somente por estar estabelecida como S.A. Seus limites estão estabelecidos no próprio texto constitucional (art. 173, caput e parágrafos). Vou repetir o óbvio: não estou dizendo que a SEM pode ser usada para fins diversos daqueles para os quais foi criada. Ao contrário, quando isso ocorre, trata-se de abuso de direito. Esse abuso é caracterizado, por exemplo,  quando o acionista controlador, valendo-se de sua posição privilegiada, busca atingir objetivo estranho ao do objetivo legal estabelecido na empresa. Nesse caso, há desvio de finalidade. Há também abuso no exercício do poder, quando são ultrapassados os limites impostos por seu fim econômico ou social ou mesmo quando há violação ao princípio da boa-fé objetiva e até aos bons costumes. Mas, realço. Se, de um lado, há desvio ilegal quando o acionista controlador esquece que a SEM é uma empresa privada com fins econômicos específicos e somente age em função do bem comum ou social, de outro, a busca apenas do lucro como se fosse uma empresa privada comum é também um desvio ilegal. É do equilíbrio entre essas duas situações, legalmente estabelecidas,  que se pode identificar uma boa e correta administração de uma SEM. Esse deve ser o objetivo da administração de uma Sociedade de Economia Mista: estabelecer de forma clara e equilibrada a relação entre o interesse público e o privado. Aliás, se é para agir como se a SEM fosse uma empresa privada comum, ter-se-ia que, antes, alterar o texto constitucional. Quem diz que uma empresa como a Petrobras pode agir sem esse freio legal, desconhece ou desconsidera as normas existentes. Pelo que li e ouvi, os articulistas nada sabem sobre isso.
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A responsabilidade civil dos fabricantes de vacinas

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade civil objetiva dos fornecedores pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços (arts. 12, 13 e 14) e ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade) tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Para que se possa compreender o porquê dessa ampla responsabilização, é preciso conhecer a teoria do risco do negócio ou da atividade, que é sua base e que eu resumo na sequência. A Constituição Federal garante a livre iniciativa para a exploração da atividade econômica, em harmonia com uma série de princípios (CF, art. 170), iniciativa esta que é, de fato, de uma forma ou de outra, característica da sociedade capitalista contemporânea. E uma das características principais da atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa, a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades por parte do empresário é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. Mas o risco é dele. Dentro dessa estratégia geral dos negócios, como fruto da teoria do risco, um item específico é o que está intimamente ligado à sistemática normativa adotada pelo CDC. É aquele voltado à avaliação da qualidade do produto e do serviço, especialmente a adequação, a finalidade, a proteção à saúde, a segurança e a durabilidade. Tudo referendado e complementado pela informação. Em realidade, a palavra "qualidade" do produto ou do serviço pode ser o aspecto determinante, na medida em que não se pode compreender qualidade sem o respeito aos direitos básicos do consumidor. Nesse ponto da busca da qualidade surge, então, de novo e particularmente, o problema do risco/custo/benefício, acrescido agora de outro aspecto considerado tanto na teoria do risco quanto pelo CDC: a produção em série. Em produções massificadas, seriadas, de larga escala, é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número enorme de consumidores. Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem que correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. Aliado a isso está o indelével fato de que produções desse tipo envolvem dezenas, centenas ou milhares de componentes físicos e eletrônicos que se relacionam, operados por outra quantidade enorme de mãos que os manuseiam direta ou indiretamente. E, também, na área da saúde e de medicamentos, os componentes químicos, biológicos etc. A falha é inexorável: por mais que o fornecedor queira, não consegue evitar que seus produtos ou serviços cheguem ao mercado sem vício/defeito. Logo, temos de lidar com esse fato inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito. Ora, é a receita e o patrimônio do fabricante, produtor, prestador de serviço etc. que respondem pela indenização relativa ao prejuízo sofrido pelo consumidor. O motivo, aliás, é simples: a receita e o patrimônio abarcam "todos" os produtos e serviços oferecidos. "Todos", isto é, tanto os produtos e serviços sem vício/defeito quanto aqueles que ingressaram no mercado com vício/defeito geram o faturamento do produtor. Há, ainda, mais elementos que explicam porque o sistema normativo do CDC adotou a responsabilização objetiva. É o relacionado não só à dificuldade da demonstração da culpa do fornecedor, assim como ao fato de que, efetivamente, muitas vezes, ele não tem mesmo culpa de o produto ou serviço terem sido oferecidos com vício/defeito. Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria fatalmente lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos. Vê-se, só por isso, que, se o consumidor tivesse de demonstrar a culpa do produtor, não conseguiria. Ademais, ainda que culpa houvesse, a produção da prova, como um ônus seu, levaria ao insucesso, pois ele não teria acesso ao sistema de produção e, também, a prova técnica posterior ao evento danoso teria pouca possibilidade de demonstrar a culpa. O estabelecimento da responsabilidade de indenizar nasce, portanto, do nexo de causalidade existente entre o consumidor (lesado), o produto e/ou serviço e o dano efetivamente ocorrente. Fica, assim, demonstrada, a  teoria - e a realidade - fundante da responsabilidade civil objetiva estatuída no CDC, assim como as amplas garantias indenizatórias em favor do consumidor que sofreu o dano - ou seus familiares ou, ainda, o equiparado e seus familiares. Muito bem. Quando se trata do produto "vacina", este já nasce com uma perspectiva de causar dano a alguém. Ainda que haja um mínimo percentual de casos com efeitos colaterais, como são milhares ou milhões de doses, alguém sempre acaba sendo atingido. Portanto, não há qualquer dúvida de que os fabricantes de vacinas - que, aliás, faturam milhões com sua produção e venda - respondem civilmente e de forma objetiva com seu patrimônio pelos danos que a pessoa sofrer por conta dos efeitos colaterais.
Novamente está na ordem do dia a discussão sobre a política de preços da Petrobras e, naturalmente, apontando para aumento. Volto, assim, ao tema, eis que, ao que parece, não se tem levado em consideração vários aspectos que envolvem nossa querida estatal. Inicialmente, lembro: a Petrobras não é uma empresa privada, que está no mercado para agir livremente obtendo o maior lucro possível a qualquer custo e independentemente das consequências de seus atos e estratégias. Não! Ela é uma empresa pública: uma sociedade de economia mista. E como tal, tem outros deveres, outras funções muito diversas, das que têm as empresas privadas. A sociedade de economia mista (SEM), como se sabe, integra a Administração Pública Indireta. Apesar disso, é, por força de lei, pessoa jurídica do direito privado sob a forma de Sociedade Anônima, regulada e estabelecida, pois, pela Lei das S.A. A SEM pode tanto explorar atividade econômica tipicamente privada de produção ou comercialização de produtos, como pode prestar serviços públicos. Mas isso não quer dizer que uma SEM -- a Petrobras, por exemplo -- deva atuar no mercado como uma mera empresa privada, visando exclusivamente ao lucro, utilizando de métodos capitalistas tradicionais (e, muitas vezes, altamente reprováveis) apenas e tão somente por estar estabelecida como S.A. Seus limites estão estabelecidos no próprio texto constitucional. Com efeito, o caput do artigo 173 estabelece o imperativo de segurança nacional e de interesse coletivo: "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei." O § 1º do mesmo artigo, por sua vez, permite, como acima referi, a exploração da atividade privada e a da prestação de serviços públicos: "§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:..." Também como afirmei, a SEM tem características de pessoa jurídica de direito privado, o que está firmado no inciso II desse mesmo § 1º: "II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;" Todavia, a SEM mantém características próprias das pessoas jurídicas de direito público, tais como a fiscalização pelo Estado e pela sociedade, além da exigência de licitação para contratação de obras, serviços, compras e alienações de bens,  conforme fixado nos incisos I e III do mesmo §: "I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;                          II - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;"  Além disso,  ela deve se valer de concursos públicos para contratação de seus empregados (art. 37, incisos I e II da CF). Muito bem. É preciso admitir que algo tão importante como o preço dos combustíveis deve ser estabelecido não apenas com os problemas enfrentados no momento presente, mas também levando-se em consideração as consequências futuras. Não parece um equilíbrio fácil de se obter, mas que deve ser buscado de algum modo. Obviamente, não estou dizendo que a SEM pode ser usada para fins diversos daqueles para os quais foi criada. Ao contrário, quando isso ocorre, trata-se de abuso de direito. Esse abuso é caracterizado, por exemplo,  quando o acionista controlador, valendo-se de sua posição privilegiada, busca atingir objetivo estranho ao do objetivo legal estabelecido na empresa. Nesse caso, há desvio de finalidade. Há também abuso no exercício do poder, quando são ultrapassados os limites impostos por seu fim econômico ou social ou mesmo quando há violação ao princípio da boa-fé objetiva e até aos bons costumes. Mas, realço. Se, de um lado, há desvio ilegal quando o acionista controlador esquece que a SEM é uma empresa privada com fins econômicos específicos e somente age em função do bem comum ou social, de outro, a busca apenas do lucro como se fosse uma empresa privada comum é também um desvio ilegal. É do equilíbrio entre essas duas situações, legalmente estabelecidas,  que se pode identificar uma boa e correta administração de uma SEM. Esse deve ser o objetivo da administração de uma Sociedade de Economia Mista: estabelecer de forma clara e equilibrada a relação entre o interesse público e o privado. Aliás, se é para agir como se a SEM fosse uma empresa privada comum, ter-se-ia que, antes, alterar o texto constitucional. Quem diz que uma empresa como a Petrobras pode agir sem esse freio legal, desconhece ou desconsidera as normas existentes. Sei, claro, que não é fácil obter esse equilíbrio entre o interesse público e o privado, mas pergunto, como já fiz antes aqui neste espaço: não é por isso que os dirigentes dessas empresas ganham vultosos salários? Para fazer jus aos polpudos vencimentos, não devem, eles, cumprir os comandos legais?  
O Procon/SP, com razão, notificou à Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS requerendo que ela determine a suspensão dos aumentos autorizados para os planos de saúde coletivos e aplique apenas o reajuste implementado nos planos de saúde individuais (de 8,14%). Nos planos coletivos os aumentos foram muito acima desse percentual, com índices de 32%, 40%, 70% etc. Primeiramente, refiro o que é óbvio: depois que um contrato é firmado com o consumidor (qualquer que seja o contrato: de compra e venda de produto ou de prestação de serviço, para qualquer produto e para qualquer serviço) o preço não pode mais ser modificado. Poder-se-ia aceitar a mudança para a diminuição do preço, mas nunca para seu aumento. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), no seu artigo 51, inciso X, disciplinou a questão claramente: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...)  X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;" Quando comentei pela primeira vez a lei, há mais de 20 anos, observei que essa norma era mais uma daquelas que o legislador se viu obrigado a inserir, como corolário dos abusos sempre praticados contra o consumidor no país.      Veja-se a que ponto chegamos. É a lei que tem de dizer: "após o fechamento do negócio, no qual se fixou as prestações das partes, o objeto da obrigação e o preço, uma delas - o vendedor ou prestador do serviço - não pode mais, sem o consentimento da outra, mudar (aumentar) o preço". Isso devia ser pressuposto indiscutível, de tal forma embutido nas relações que ninguém se lembrasse de citá-lo. No entanto, o legislador foi obrigado a transformá-lo em norma! A regra, é verdade, dirige-se aos casos em que o negócio já foi firmado, uma vez que, no sistema de liberdade de preços atualmente vigente no País, o valor inicialmente é fixado de forma livre pelo fornecedor. O que ele não pode fazer é modificá-lo para aumentá-lo após ter efetuado a transação. Por preço há que se entender aquilo que é cobrado e pago pelo consumidor, de maneira que estão aí incluídos o preço do produto, do valor dos serviços prestados, o prêmio do seguro, o custo do financiamento - taxas, despesas etc. -, bem como a taxa de juros cobrada etc. A regra do inciso X foi inteligente ao referir-se à variação direta ou indireta do preço. É bastante comum a inserção de cláusula contratual - que sempre foi potestativa - que permite ao fornecedor escolher o índice de reajuste numa "cesta" de índices, da qual tomará o maior. Posteriormente, foi acrescido o inciso XIII no artigo 39 do CDC1, nesses termos: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...) XIII - aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido". Essa regra do inciso XIII do art. 39 lembra a do inciso X do art. 51, no que se relaciona com reajuste diverso do estipulado, bem como remete ao inciso IV do mesmo art. 512. Lá se trata de nulidade das cláusulas contratuais firmadas. Aqui, cuida-se da prática efetiva de reajuste exagerado por aplicação de fórmula ilegal ou que não esteja prevista no contrato. E a Lei que regula os planos e seguros privados de assistência à saúde (lei 9.656/98), por sua vez e na linha dos princípios estabelecidos no CDC, fixou no inciso XI de seu artigo 16 o seguinte: Art. 16.  Dos contratos, regulamentos ou condições gerais dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei devem constar dispositivos que indiquem com clareza:  (...) XI - os critérios de reajuste e revisão das contraprestações pecuniárias". Ora, lembremos uma distinção importante: o "reajuste" de um preço é aceitável. Por exemplo, aplicando-se um índice prefixado e oficial de correção monetária. Isso é diferente de "aumento" puro e simples do preço. Uma revisão, no caso, implicaria numa necessidade de comprovação efetiva e até individualizada,  a partir de critérios justos e objetivos conforme previsto na lei e, também, que estivessem em plena sintonia com o princípio da boa-fé objetiva (honestidade, lealdade, equilíbrio, dever de cooperação, dever de cuidado e equidade). Na presente situação, ainda que as operadoras de planos de saúde queiram modificar seus preços, arguindo que sofreram aumento de custos, tudo indica que, no período da pandemia, houve diminuição desses custos. Assim, se era para modificar algo, seria caso de diminuição. Pergunto: será que um dia assistiremos à redução do preço? __________ 1 Inciso incluído pela lei 9,870 de 23-11-1999.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Outro conto de Natal

Mais uma vez, no último artigo do ano, eu abandono o tema do consumidor e publico um texto para a época de Natal. Hoje, apresento um outro trecho do meu romance "A Visita". Trata-se de uma fala do personagem principal para seus amigos e amigas. Eis o trecho: "(...) Estava sereno, tranquilo e as palavras saíam naturalmente. Disse: Camila, as crianças e eu estamos muito felizes de recebê-los aqui nesta noite em que comemoramos dezoito anos de nosso casamento. Eu gostaria de dividir com vocês um pensamento e uma história... Ouçam. Esse é o pensamento: Deus nunca chega tarde... Agora, eu narro a história... Numa pequena cidade do interior deste nosso Estado, há uma associação cristã que atende a famílias carentes. Ela recebe doações de mantimentos de todo tipo, produtos de higiene pessoal, brinquedos, roupas etc. e, naturalmente, dinheiro. Todo mês, as famílias carentes cadastradas vão até a sede da associação para receber o que precisam... Dona Elvira, a presidente da associação, uma pessoa maravilhosa, a havia fundado com o dinheiro que recebeu de herança muitos anos antes. Lourdes, sua filha de quatorze anos, adora ajudá-la na recepção dos produtos doados e na distribuição às famílias carentes. Uma vez por mês, nos domingos pela manhã, Dona Elvira faz uma reunião para a qual são convidados os doadores. Ela estabeleceu uma tradição: as pessoas que comparecem assistem a uma palestra, tratando de temas filosóficos ou cristãos, proferida por algum convidado especial. Quando a exposição termina, abre-se um debate e, ao final, todos rezam. Mas não se trata de uma reza comum. Não. Eles rezam pelo bem de alguém que não está presente. Funciona assim: o convidado levanta-se e apresenta-se; depois, indica uma pessoa e diz o que ela fez de bom para si ou para outrem. Daí, todos oram por essa pessoa. Rezam para que ela seja feliz e receba proteção divina... Algo muito bacana, não acham? A pessoa que recebe a benção da oração não sabe que essas outras bondosas pessoas estão lá a rezar por ela. Na verdade, nem sabe que elas existem. A pessoa ganha esse presente porque merece! Dona Elvira deixa os convites para a reunião mensal em cima do balcão de entrada. Qualquer pessoa pode pegá-los, levá-los e distribuí-los... Muito bem. Vejam agora o que aconteceu... Num certo fim de semana anterior ao da reunião, Lourdes pegou alguns convites e perguntou para a mãe: 'Posso distribuir os convites nas casas da redondeza?'. Dona Elvira, a mãe, disse: 'Não há necessidade, querida. Muitos convites foram retirados e, por aqui na vizinhança, todos sabem da reunião'. 'Mas, mãe', objetou Lourdes, 'e se alguém nunca tiver recebido? E não souber das reuniões?'. 'Não tem problema. Nossas reuniões são um sucesso. Estão sempre cheias'. A jovem Lourdes insistiu: 'Ah, mãe, não sei... Pode ser que alguém precise e não saiba. Eu olhei para os convites e eles me chamaram. Estou com muita vontade de deixá-los pelas casas. Mal não vai fazer, não é? Posso entregar? Posso, posso?'. Diante da insistência da filha, Dona Elvira permitiu, mas alertou: ''Está bem. Pode ir. Mas não vá muito longe, ok?. E não demore. São três horas. Volte até as cinco'. Lourdes recolheu os folhetos e saiu saltitante. Andou bastante e entregou quase todos. Quando eram quase cinco horas, só lhe restava um folheto. De repente, viu, ao final de uma rua sem saída, uma casa isolada, após um terreno baldio. Olhou para o folheto, depois para a casa novamente e resolveu ir até lá para entregá-lo. Apressou o passo, pois estava quase na hora de voltar e ela não gostava de desobedecer a mãe... A casa estava toda fechada, portas e janelas. Lourdes tocou a campainha. Ninguém atendeu. Tocou novamente. Sem resposta. Tentou uma terceira vez e nada. Sentou-se ao pé da porta e pareceu-lhe que havia gente lá dentro. Então, encostou o ouvido na madeira da porta. Ouviu um ruído. Tocou novamente a campainha, mas sem tirar o dedo por quase um minuto. Uma luz, então, foi acesa no interior da casa. Logo depois, a porta se abriu e surgiu uma senhora de idade avançada. Não tinha cara de bons amigos e perguntou com uma voz amarga: 'O que você quer?'. Lourdes estendeu o braço, entregando o folheto e disse: 'Jesus te ama!'. Lágrimas desceram pelo rosto da senhora, que a abraçou e apenas disse: 'Obrigado!...'. "No fim de semana seguinte, ocorreu a reunião. Depois da palestra e dos debates, três pessoas pediram que todos rezassem pela alma e pela vida de outras que indicaram, contando o que de bom elas haviam feito. E, como sempre, foi um momento bonito e tocante... "A quarta e última a falar foi uma senhora que se sentara no fundo da sala. Ela levantou-se e falou: 'Eu venho pedir que rezemos por uma menina. Não sei o nome dela, mas tenho a imagem de seu rosto iluminado aqui comigo em meu coração. Ela deve ter quatorze, quinze anos, olhos e cabelos castanhos, uma franjinha caindo na testa - quando a vi, estava de rabo de cavalo -, tem duas maçãs do rosto bem salientes, um sorriso amplo, com dentes perfeitos... Vim pedir que rezemos por ela... Eu sou viúva há dez anos e vivo sozinha numa casa que fica no fim de uma rua perto daqui. Meu filho Jorge mora em outro Estado distante e está sempre muito ocupado com sua mulher e seus próprios filhos, de modo que pouco fala comigo. Faz tempo que nem me telefona. Minha filha, Marta, é um sucesso. Tornou-se médica e vive, literalmente, o dia inteiro dentro de um hospital na capital federal. Se envolveu tanto com o trabalho, que se esqueceu de que ainda tem mãe. Para piorar, minhas duas melhores amigas faleceram há três anos. Eu não aguentava mais minha solidão. Há cerca de seis meses, comecei a me sentir tão mal, tão abandonada que não via outra saída. Comecei, então, a me preparar para minha morte. Não foi uma decisão fácil e, também, é muito complicado escolher a forma. Poderia ser muito ruim, poderia... Em vez de morrer, eu ficaria muito doente. Mas eu havia encontrado o caminho: tomaria todos os meus medicamentos de uma só vez, esvaziando as embalagens. Seria certeiro. Estava tudo pronto. Eu iria executar o plano na semana passada, domingo à tarde...'. 'Então, domingo eu nem almocei. Comi apenas um pão pela manhã. Lá pelo fim da tarde, eu peguei uma garrafa de água, todos os remédios (que são muitos) e levei tudo para meu quarto. Olhei bastante para a foto de meu falecido marido, Gusmão. Disse para ele em voz alta: 'Desculpe, querido. Não aguento mais. Espero que você possa me amparar quando eu sair daqui'. Abri a garrafa e deixei-a ao lado do copo. Tirei os comprimidos das caixas e os coloquei em fila. Eram dezenas'. 'De repente, ouvi a campainha tocar. Fiquei paralisada e em silêncio, aguardando que a pessoa fosse embora. Passou um pouco e eu enchi o copo com água. A campainha tocou de novo. Continuei quieta. Depois, juntei os comprimidos em grupos de quatro ou cinco. Ouvi a campainha novamente. Aguardei mais um pouco e, como se fez silêncio, pensei que a pessoa tivesse desistido. Daí, comecei a execução: coloquei os primeiros comprimidos na minha mão esquerda e peguei o copo cheio de água com a mão direita. Quando ia colocar os comprimidos na boca, a campainha recomeçou a tocar e, dessa vez, sem parar, ininterruptamente. Larguei os comprimidos na cama, devolvi o copo de água para a cômoda e desci para a sala. Abri a porta e lá estava aquela menina, brilhando como o sol. Ela me entregou um folheto e disse: 'Jesus te ama!'. 'Naquele instante, meu coração se aqueceu de um modo que não se aquecia há muitos anos... O resto vocês já sabem, porque estou aqui em corpo e alma. Essa menina me salvou. Rezemos por ela'. Assim que a senhora sentou-se, Dona Elvira tomou a palavra e, dirigindo-se a ela, disse: 'Jesus te salvou' e, depois, dirigindo-se aos demais presentes, falou: 'Vamos rezar pela Lourdes. A menina é minha filha'".
quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A pandemia, o isolamento e o direito de sonhar

Esta situação inusitada trazida pela pandemia do Covid-19, com isolamentos por todo lado, fechamento do comércio, perda de empregos, aulas à distância, afastamento das pessoas entre si etc. me fez pensar, mais uma vez, no sonho de obtenção de um capitalismo mais honesto e uma sociedade mais justa.  Em matéria de capitalismo, lembro que o nosso Código de Defesa do Consumidor - que já tem 30 anos de existência - criou um novo patamar de respeito para as relações de consumo. Foi uma luta aprová-lo, mas ele acabou surgindo, tardiamente, mas veio. Nasceu no século XX, muitos anos atrasado.  Para ser ter um ideia do tempo, nos Estados Unidos da América do Norte --  o país que lidera o capitalismo contemporâneo --  a proteção ao consumidor havia começado em 1890 com a Lei Shermann, que é a lei antitruste americana. Isto é, exatamente um século antes do nosso CDC (a Lei nº 9078 de 1980) numa sociedade que se construía como sociedade capitalista de massa, surgia uma lei de proteção ao consumidor. É verdade que, mesmo por lá, a consciência social e cultural da defesa do consumidor ganhou fôlego maior a partir dos anos 1960, especialmente com o surgimento das associações dos consumidores com Ralf Nader. Ou seja, o verdadeiro movimento consumerista (como se costuma chamar) começou para valer na segunda metade do século XX. Mas é importante atentarmos para essa preocupação existente já no século XIX com a questão do mercado de consumo, no país mais poderoso do mundo. Por outro lado, como se sabe, nossa lei consumerista,  apesar de tardia - e em parte por causa disso - acabou incorporando várias normas modernas protecionistas e isso gerou resultados altamente positivos a favor dos consumidores e do próprio mercado produtor. O CDC foi um sonho que se realizou e que dá frutos diariamente. Ele gerou mais igualdade, trouxe harmonia às relações jurídicas, fez com que o resultado das transações fosse mais honesto, enfim, é um marco da evolução jurídica no país.  Naturalmente, falta mais, até porque uma única lei não poderia resolver todas as mazelas sociais perpetradas pelo capitalismo da última geração globalizada e dominada por empresários com enorme poder de fogo. Mas, os consumeristas sonham ainda mais e lutam para implementar os objetivos de conseguir obter uma sociedade mais humana e justa. E, como disse na abertura, pensando no tema, lembrei de um texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano (falecido em 2015) sobre o direito de sonhar, que ele intitula mais poeticamente de direito ao delírio. Trata-se de um lindo texto extraído de um de seus livros. Não fala só de capitalismo, mas como este, de algum modo, está no centro de quase tudo, eu o transcrevo abaixo para nosso deleite. Vale a pena lê-lo.  Eis: O direito ao delírio1 Por Eduardo Galeano Que tal se delirarmos por um tempinho? Que tal se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia,  para imaginar outro mundo possível?O ar estará limpo de todo veneno que não venha  dos medos humanos e das humanas paixões.Nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães. As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelos supermercados, nem serão, também, assistidas pelo televisor.O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas.Será incorporado aos códigos penais o delito de estupidez, que cometem os que vivem para ter ou para ganhar, em vez de viver por viver e só. Assim como canta o pássaro, sem saber que canta, e como brinca a criança, sem saber que brinca.Ninguém viverá para trabalhar, mas todos nós trabalharemos para viver. Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo;  nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas.Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos. Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas. A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude e ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo. A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e, nem por falecimento nem por fortuna, se converterá o canalha em um virtuoso cavalheiro. A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio.Porque a comida e a comunicação  são direitos humanos.Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.As crianças de rua não serão tratadas  como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.A educação não será o privilégio daqueles que possam pagá-la. A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, bem grudadinhas, costas contra costas.A Igreja proclamará outro mandamento que Deus havia esquecido: "Amarás a natureza da qual fazes parte". Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma. Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados,  porque eles são os que se desesperaram de muito, muito esperar e eles se perderam de muito, muito procurar. Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido quando tenham nascido e tenham vivido onde tenham vivido,  sem que importe nenhum pouquinho as fronteiras do mapa nem do tempo. Seremos imperfeitos porque  a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégio dos deuses. __________ 1 É trecho do livro "Patas Arriba": Buenos Aires, dezembro de 1998, ps. 222/224.  O trecho do livro traduzido para o português pode ser encontrado na web. Este, eu extraí de um vídeo do próprio autor.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

As lorotas e as enganações continuam firmes

Existem várias versões para o significado da expressão "para inglês ver" e que remontam  à sua origem. Uma delas diz que em 1815, os portugueses e os britânicos firmaram um compromisso, no qual Portugal se comprometeu a não mais traficar escravos. Todavia, como Portugal não vinha cumprindo o compromisso, o Parlamento Britânico acabou aprovando uma lei que criminalizava a escravatura e concedia, unilateralmente, à frota real britânica poderes para abordar e inspecionar os navios portugueses. Como estratégia para enganar os ingleses, os portugueses carregavam a embarcação que ia a frente da frota com uma carga inofensiva para ser inspecionada, levando os escravos nos navios depois e com isso se safavam da inspeção. Outra versão, ligada ao mesmo tema, diz que em 1831 a governo português promulgou uma lei proibindo o tráfico negreiro, mas como o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, começou a circular a expressão de que a lei fora feita apenas "para inglês ver". E ainda outra versão diz que, após a partida da família real portuguesa para o Brasil, Portugal passou a ser uma espécie de protetorado da Inglaterra, que assumiu o comando da máquina militar portuguesa na luta conjunta contra a França. Mas, os metódicos ingleses que queriam tudo organizado e por escrito tinham problemas com os práticos portugueses. Assim, a cada imposição organizacional inglesa, os portugueses botavam tudo por escrito, para mostrar que estava tudo em ordem. Mas, era só no papel. Servia apenas para agradar os ingleses e dizer que estava tudo arrumado, isto é, era só para os ingleses lerem (ou verem). Na prática, as coisas eram bem diferentes. O mesmo se dava nas visitas dos generais ingleses a certos locais, que eram preparados (maquiados, como hoje diríamos) para dar uma aparência diversa do real. Se os ingleses exigiam a construção de uma estrada, os portugueses deixavam pás, pedras e material para a construção da mesma no local da visita. Assim, diziam que já estavam construindo. Era o que os ingleses viam. Ficou a expressão e o aprendizado. Mas, naquela época, consta que, de fato, os ingleses eram enganados. Continuo cuidando de um tema básico quando se trata de relações de consumo: o das mentiras e toda sorte de enganações perpetradas por muitos fornecedores. E, anoto que, de outro lado, uma grande parcela de consumidores diante das enganações, não as percebem; aceitam o falso sem senso crítico, apenas porque ele tornou-se banal ou é bem produzido, bem comunicado ou apresentado por alguém que detém autoridade. Muitas delas, apenas para inglês ver.  De há muito tempo que os consumeristas  descobriram que um dos fundamentos da sociedade capitalista de consumo é a mentira. Alguns setores empresariais  são desonestos na relação com seus clientes. Não há, claro, nenhuma novidade nisso. Quem conhece um pouco de história do comércio, da indústria, da economia etc. sabe muito bem que os segredos, as artimanhas, os conchavos, os acertos escusos etc. estão na base da produção e distribuição de produtos e serviços. Transparência não é um termo muito conhecido ou utilizado e está na raiz do sistema de produção e venda. Como diria Sócrates que aqui já referi, "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". Parafraseando-o, posso dizer que no processo de produção capitalista se faz muita coisa, mas se mostra outra diferente. Algumas comunicações falaciosas tornam-se lugares comuns e de tantos serem utilizadas, a população passa a nelas acreditar, inclusive algumas expressões utilizadas regularmente. Por exemplo, é costume referir-se à indústria de veículos como a "indústria nacional de veículos". Mas nós não temos, propriamente, uma  indústria nacional de veículos. São todas estrangeiras, aqui estabelecidas, muitas delas com enormes incentivos e que, todos os anos, enviam para o exterior os gordos lucros obtidos. Talvez devêssemos lamentar que não tenhamos um veículo nacional como têm os americanos, os franceses, os italianos, os japoneses, os alemães, os coreanos e os chineses. O fato é que, as versões surradas dos fatos são enfiadas pela goela da população e repetidas tantas vezes que soam como verdades. As pessoas se acostumam com as coisas rotineiras, comuns, banais e acabam aceitando-as como válidas e verdadeiras. Ou, então, aceitam os fatos como se eles não pudessem ser diferentes. Neste ponto cito um exemplo dado por meu amigo Outrem Ego. Disse-me ele que só percebeu que a cidade de São Paulo era tão esburacada quando viajou pela primeira vez ao exterior. Há alguns anos ele dirigiu mais de 500 quilômetros por ruas e estradas americanas sem ter passado por nenhum buraco. Mas, foi só quando retornou à cidade de São Paulo que ele percebeu como nossas ruas são incrivelmente esburacadas, onduladas e estragadas. Vale dizer, que sem alternativa ou jogadas à própria sorte, as pessoas acatam as regras, as imagens recebidas, o local em que vivem como se as coisas não pudessem ser de outro modo. Quanto aos consumidores, uma boa parte está tão absorvida pelo mundo do marketing e da publicidade, que não consegue se dar conta exatamente do que acontece. Eles vão sendo amaciados pelas imagens, textos e, muitas vezes, têm dificuldade de entender exatamente o que está sendo oferecido, tal como os ingleses do período acima citado.
Em mês de Black Friday, que por aqui entre nós, como se diz, tem muito de fraude, focarei as mentiras apresentadas pelas empresas, mas no ponto específico de sua execução. Quero dizer, quando uma "empresa mente", como se trata de uma pessoa jurídica, a comunicação enganosa ao consumidor é feita por uma pessoa humana, que,  também, é consumidora. É o que eu intitulo de ato de "consumidor contra consumidor". O Código de Defesa do Consumidor (CDC) tipificou o crime de informação ou afirmação enganosa em relação aos produtos e serviços, mesmo por omissão1. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa regra é bastante didática. Isto é, apesar de pretender punir os enganadores, os fornecedores que souberem aprender com ela (e, ainda, com várias outras normas contidas no CDC), certamente se beneficiarão no trato com seus clientes e no incremento de clientela. Anoto que a harmonização é um princípio fundamental do CDC, que sempre pretendeu que as relações jurídicas de consumo fossem equilibradas e pudessem beneficiar a todos os envolvidos. Infelizmente, uma boa parte do empresariado não tem como base o comportamento ético esperado pela lei (embora, eu reconheça que haja avanços pela atitude de alguns empresários mais inteligentes e menos gananciosos). Trato, pois, da "empresa mentirosa", lembrando como disse acima que, tecnicamente, a pessoa jurídica não mente nem pode mentir, pois é uma mera ficção (como, do mesmo modo, não pode sofrer dano moral, embora possa sofrer dano à imagem). Quando se fala que uma empresa mentiu, enganou, ludibriou um consumidor, evidentemente, está se querendo dizer que alguém nela o fez: foi o presidente e/ou os diretores e/ou os gerentes e/ou os demais empregados subalternos. Nos cargos de direção da alta cúpula, normalmente, existe uma espécie de amálgama entre as pessoas físicas que ocupam essa posição e a pessoa jurídica; uma fusão, uma espécie de mistura que gera uma imagem de que a pessoa humana falando como a própria pessoa jurídica, fala em nome dela, como se ela existisse realmente (embora, claro, os altos salários pagos sempre sejam depositados na conta da pessoa física!). Descendo do nível da alta direção para baixo na pirâmide burocrática, os empregados são intitulados de "colaboradores" e deles se espera que "vistam a camisa" da empresa. Nenhum problema quanto a isso, desde que as ações implementadas sejam legais, o que não é a hipótese do caso em exame. A mentira e a enganação são sempre perpetradas por dirigentes e colaboradores. Eis a ironia: todos eles são consumidores e nenhum deles - nem mesmo os dirigentes do primeiro nível hierárquico - estão livres de ser, por sua vez, enganados no mercado por outras empresas. É o fenômeno tipicamente capitalista de controle e implantação antiética de modelos de prestação de serviços trabalhistas que impõe que um trabalhador engane outro ou, dito de outro modo, é o procedimento amplamente implementado (embora não conscientizado) de batalha de um consumidor contra outro. Mal sabem eles que são meros joguetes na mão de seus patrões gananciosos e que eles mesmos, quando vão às compras como simples consumidores que são, acabam sendo enganados por outros empregados que, iguais a eles, mentem, fingem, enganam para lesá-los. Tudo num círculo vicioso que de há muito deveria ter sido eliminado da sociedade capitalista. Insisto num ponto: não há motivo algum para que as empresas não sejam transparentes na oferta e venda de seus produtos e serviços. Elas não deixarão de faturar, de auferir altas receitas e obter lucros por causa disso. Bem ao contrário: uma empresa moderna e que cumpre sua função social, respeitando a lei, seus clientes e seus empregados, só tem a ganhar com isso. Não são conhecidos casos de empresas que não deram certo, simplesmente, porque agiram de forma correta na relação com seus consumidores. __________ 1 "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.   § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena Detenção de um a seis meses ou multa".
quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Black Friday: aspectos legais e dicas

Chegamos à mais uma edição da Black Friday. Como se sabe, o termo foi criado pelo varejo nos Estados Unidos para nomear a ação de vendas anual, que acontece sempre na última sexta-feira de novembro após o feriado de Ação de Graças. Por lá, todo ano, o volume de vendas é muito alto, pois os descontos são realmente verdadeiros e os empresários norte americanos querem se livrar do estoque antigo e, no lugar, colocar as novas mercadorias para as vendas do período natalino que se inicia.   Mas, como não poderia deixar de ser, por aqui, nem tudo é desconto verdadeiro. Todo ano, os veículos de comunicação apontam dezenas de denúncias contra as enganações perpetradas por muitos  comerciantes, que usam uma tática antiga: aumentar o preço na véspera ou alguns dias antes e depois aplicar um desconto para chegar no mesmo preço anterior (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais). Aumentar preço num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar no mesmo preço, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é, como se sabe, publicidade enganosa prevista no CDC: "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços." Além disso, o ato caracteriza o crime de publicidade enganosa: "Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena: Detenção de três meses a um ano e multa."  E ainda o crime de informação falsa ou enganosa, este tanto na forma dolosa como culposa: "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa. § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena: Detenção de um a seis meses ou multa." Naturalmente, descontos são bons... Se precisamos do produto ou do serviço! Apesar de tudo, é possível conseguir e encontrar produtos com bons descontos e preços baixos na Black Friday. Nos anos anteriores as vendas via web/internet/aplicativos cresceram enormemente e, neste ano, por conta da pandemia, certamente elas serão maiores ainda. E é preciso tomar muito cuidado. Cada vez mais os hackers e os sites falsos estarão presentes nesse tipo de transação. Por isso, listamos algumas cautelas que o consumidor deve tomar nessas compras, não só agora na Black Friday mas sempre que fizer aquisições via web/internet/aplicativos. Seguem itens obrigatórios fixados pelo Decreto Presidencial nº 7.962/2013 e, também, dicas usuais para esse tipo de compra. Com efeito, o consumidor deve:  a. Conhecer e investigar o site por intermédio do qual pretende comprar. Primeiramente, examinando o endereço na web. Do lado esquerdo deve haver um cadeado e o endereço deve iniciar com https://. Do site deve constar o nome empresarial, o CPF (se o vendedor for pessoa física) ou o CNPJ; o endereço físico completo, o endereço eletrônico e os dados para contato.  b. Verificar se o site está em alguma lista de restrições dos órgãos de defesa do consumidor, como, por exemplo o Procon-SP;  c. Checar via web os preços praticados anteriormente, para tentar descobrir se realmente está sendo oferecido desconto;  d. Comparar preços nos diversos sites de vendas para os mesmos produtos, levando em consideração os acréscimos por fretes e seguros e, também, formas de pagamento;  e. Evitar de fazer as compras por intermédio de em celulares ou computadores de terceiros e/ou desconhecidos;  f. Manter o sistema operacional do computador e/ou do smartphone atualizado;  g. Certificar-se de que os dispositivos tenham antivírus;  h. Ativar o serviço que o informa via SMS a respeito das transações financeiras efetuadas;  Outra boa dica é a de fazer pesquisa em sites de proteção ao consumidor como, por exemplo, o ReclameAqui para checar reclamações e respostas do fornecedor.  Lembramos, ainda, que as ofertas devem  apresentar: as características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; a discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; as condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta.  Por fim,  e como se sabe, para as compras feitas via web/internet/aplicativos, o consumidor tem o prazo de 7 dias para se arrepender, cancelar a compra e/ou devolver o produto e receber o que pagou de volta. O artigo 5º do Decreto Presidencial citado estabelece expressamente: "O fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor."
quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O capitalismo está emburrecendo?

Nos anos oitenta do século passado, eu fui advogado de um grande banco internacional, administrado com o que havia de melhor em técnicas de relações de consumo. Aprendi muito em termos de qualidade no atendimento aos clientes. Por exemplo, uma das técnicas de cobrança levava em consideração o histórico dos clientes. "Uma coisa", diziam os executivos do setor, "é um novo cliente que logo no primeiro empréstimo deixa de pagar alguma prestação; outra, bem diferente, é um cliente antigo que sempre pagou em dia e que, de repente, atrasa". E, nos tempos atuais tenho observado uma queda na qualidade do atendimento aos consumidores na questão das cobranças, bem antipáticas. Veja esse exemplo: um médico, um advogado, um odontólogo etc. tem um contador que lhe envia boleto mensal para pagamento dos serviços prestados. Não importa quanto tempo essa relação dure, pode ser o primeiro mês ou o décimo ano, a empresa de contabilidade manda o boleto com um aviso: "se o pagamento não for feito na data do vencimento, a cobrança irá ao Cartório de Protestos". Mandando, de fato, ou não, será que não percebem que é algo tolo? É assim que se deve tratar os clientes, especialmente os fieis? Certa feita, meu amigo Outrem Ego, bastante nervoso, disse-me o seguinte: "Sou cliente de uma operadora de tevê a cabo há mais de dez anos. Nunca atrasei uma só prestação. Nenhum mês. Há dias e semanas em que nem assisto nada. Muitas vezes, o sinal foi cortado sem motivo e jamais me deram um desconto. Pois bem, sabe-se lá por que a conta desse mês de agosto ficou enroscada em outras - tenho muitas contas pra pagar. Vencia dia 10 e eu só vi alguns dias depois. Paguei atrasado. Mas, não é que no mesmo dia recebi uma cobrança grosseira, dizendo que se eu não regularizasse meu débito o sinal seria cortado. Empresários grossos e mal educados. Será que não viram que foi um engano? Será que não distinguem bons clientes de maus clientes? Esses milhares de reais que eu entreguei para eles esses anos todos não valem nada? Diante do desrespeito, eu até pensei em trocar de operadora, mas deve ser tudo igual. Nós consumidores não temos saída. É assim que eu me sinto: ultrajado. Alguns administradores desse capitalismo moderno são estúpidos!" Infelizmente, sou obrigado a concordar com ele. O desprezo ao consumidor grassa na sociedade capitalista atual. Meu caro leitor, pense comigo: digamos que você fosse cliente de um restaurante por muitos anos e frequentasse o local regularmente por esse período, talvez uma vez por mês. Quando lá chega todos te cumprimentam. Afinal, é bom cliente, é fiel, paga a conta com as gorjetas inclusas e, naturalmente, comparece por que a comida é boa e o atendimento também. Será que, depois de dez anos, se você tivesse esquecido a carteira, o dono do restaurante te faria lavar os pratos? Saber diferenciar clientes bons e maus pagadores é não só elegante, como inteligente e técnico mesmo: se um cliente nunca deu problema, a probabilidade de que ela venha a dar é menor que daquele que começou na contramão. Ademais, o cliente antigo já rendeu muitos benefícios ao fornecedor e, por isso, merece uma maior consideração. Sei que nas grandes operações de massa e em que há pouca competição ou monopólios e oligopólios o atendimento pode ser ruim, se todos tratarem do mesmo modo seus clientes, que são prisioneiros do sistema. Isto é, se o consumidor for mal  atendido num restaurante, não precisa mais voltar lá porque há outros para ir. Mas, como bem disse meu amigo, trocar de operadora de tevê a cabo, se desse para mudar, não alteraria o panorama do desrespeito porque o modelo de tratamento ao consumidor é parecido ou idêntico. Parece mesmo que os tempos mudaram para pior; há um emburrecimento generalizado: o bom pagador está em pé de igualdade com o que não é; e não se trata de uma questão jurídica, mas apenas de uma estratégia mal engendrada. Naturalmente, como nessas grandes operações são centenas, milhares de clientes, a cobrança segue um padrão automático. Porém, mesmo nesse automatismo, daria para criar modelos de cobrança para consumidores diferenciados: bastava programar o computador. Será que um dia melhora? Tomara.
quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Produto essencial: o desrespeito à lei

O que um fabricante gostaria que acontecesse com seu produto lançado no mercado? Sucesso ou esquecimento? A resposta é óbvia e, naturalmente, todo fabricante se esforça para que seu produto caia no gosto do consumidor. Ou melhor ainda: que se torne necessário e até imprescindível.  Isso: imprescindível. Esse é o sonho de todo fabricante: que seu produto se torne imprescindível, necessário, de compra obrigatória pelo consumidor. Quando isso acontece, basta fabricar novos modelos e vende-los facilmente.  Ora, esse produto tornou-se essencial. É caso típico de produto essencial. É aquele que o consumidor não pode viver sem, pois sua vida cotidiana, seu trabalho, seu estudo, seu lazer etc. depende desse produto.  Vitória do fabricante!  E o Código de Defesa do Consumidor (CDC) sabe disso. Por isso, regula de forma especial as garantias que os envolve.    Infelizmente, ainda falta muito para que o mercado de consumo brasileiro se alinhe com o que há de mais moderno em termos de respeito aos direitos dos consumidores. Nem mesmo as empresas estrangeiras, que vendem ou se apresentam como de alta qualidade no atendimento ao consumidor, conseguem fazê-lo quando chegam aqui. Por causa dos abusos praticados repetidamente, eu volto ao assunto.  Meu caro leitor, veja o que aconteceu com meu amigo Outrem Ego. Ele tem um smartphone de última geração. E, como acontece com milhões de consumidores, dele se utiliza para trabalhar, para cuidar de sua família e tudo o mais que esse produto propicia. Mas, eis que o aparelho simplesmente deixou de funcionar.  Meu amigo, então, levou o aparelho à assistência técnica do fabricante que lhe informou que aquele produto estava muito danificado, o que, naquele modelo, já havia ocorrido com outros clientes. Se não conseguissem consertar em uma semana, então, lhe dariam um novo que, aliás, viria do exterior. Ele protestou: disse que não podia ficar sem o produto, pois era essencial para seu trabalho e que o fornecedor devia, ao menos, emprestar um, funcionando adequadamente até que o dele ficasse pronto.  Bem, o atendente citou a lei e disse que eles tinham 30 dias para fazer o conserto.  Será?  Claro que não!  Vejamos o que diz a lei.  Com efeito, dispôs o art. 18 do Código de Defesa do Consumidor:  "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas." É verdade que a lei fala em 30 dias. Veja: "§ 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 (trinta) dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço." Porém, o parágrafo 3º do mesmo artigo diz:  "§ 3º O consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do § 1º deste artigo, sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir-lhe o valor ou se tratar de produto essencial". Ou seja, o consumidor, sempre que tiver produto enquadrado nas hipóteses do § 3º, poderá fazer uso imediato - isto é, sem conceder qualquer prazo ao fornecedor - das alternativas previstas no § 1º, quais sejam: a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;  a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; o abatimento proporcional do preço. A escolha, naturalmente, é do consumidor. Das hipóteses previstas, a que nos interessa é a da relativa ao produto essencial, que, todavia, a lei não define. E o que seria?  Ora, como já mostrei no início deste artigo, produto essencial é aquele de que o consumidor necessita para a manutenção de sua vida pessoal com dignidade, para os cuidados com sua família e de sua vida privada e, também, ligado à saúde, segurança etc. E, claro, se o consumidor adquire o produto para fins profissionais, a essencialidade está ligada ao uso necessário e urgente para seu mister. Caro leitor: isso não é novidade alguma. No mundo todo é assim: smartphone é, evidentemente, um produto essencial!  No caso narrado por meu amigo, o aparelho havia de ser trocado na hora, sem mais delongas por outro igual em perfeitas condições de uso. Bastava fazer a troca e pronto. Aliás, como uma boa empresa deve fazer.
quinta-feira, 22 de outubro de 2020

O direito à saúde e o mercado de consumo

A obesidade é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o acúmulo excessivo de gordura no corpo e que pode acarretar problemas graves de saúde como doenças cardiovasculares, hipertensão e diabetes. Segundo a OMS, a obesidade é considerada a mais importante desordem nutricional e é uma epidemia mundial. A incidência da doença é alta, tanto em países desenvolvidos, quanto nos emergentes e subdesenvolvidos. Nenhuma faixa etária está livre do problema. E, pior, nos últimos anos tem aumentando a incidência da doença nas primeiras faixas etárias, em crianças e adolescentes. Uma pesquisa divulgada recentemente pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostra que 95,9 milhões de brasileiros acima de 18 anos estão com excesso de peso, sendo que 41,2 milhões são considerados obesos. Estes quase  96 milhões representam 60,3% dos brasileiros com mais de 18 anos, segundo os dados, que são da PNS (Pesquisa Nacional de Saúde 2019)1. O IBGE também estima que cerca de 1,8 milhão de adolescentes de 15 a 17 anos (19,4%) tenham excesso de peso. Outros 619 mil (6,7%) sofrem de obesidade. E lembra que jovens acima do peso podem desenvolver doenças que antes eram tidas como de idosos: hipertensão, diabetes tipo 2 e acúmulo de gordura no fígado Conforme explica a médica nutróloga Jussara Fialho Ferreira2, há alguns anos se dizia que  a obesidade decorria da gula, da falta de força de vontade, de uma fraqueza de caráter ou, ainda, de algum distúrbio psicológico. Atualmente, a ciência reconhece  que a obesidade tem múltiplas causas fisiológicas e psicológicas. Diz ela: "Sabe-se que existem pessoas que possuem genes predispostos ou não a prática de esportes ou que tem predisposição para comer muitos doces, por exemplo. Mas não é só isso que determina se uma pessoa será ou não obesa. Outro agravante é a hereditariedade. Se um dos pais for obeso, a chance de desenvolver o distúrbio é de 50%. Agora se ambos forem obesos a chance é de 80%"3. Além desses fatores genéticos, existe o fator ambiental. Este é caracterizado pelo desequilíbrio entre a ingestão de alimentos com alta densidade calórica e a queima insuficiente destas calorias. A psicóloga Angela Tamashiro diz que "As pessoas não são obesas porque querem ou desejam. Várias são as causas que geram a obesidade. Em 90% dos casos, a causa da obesidade está na utilização descontrolada da gordura..."4. Importante realçar essa questão ambiental, que é típica do modelo capitalista de consumo: obesidade causada pela ingestão imoderada de produtos calóricos, repletos de açucares e conservantes e outros ingredientes que fazem mal à saúde. Um dos principais problemas é o da ausência de informação ou má informação a respeito dos produtos ditos alimentícios que são fabricados e vendidos em todos os cantos do país e, também, a maneira como estes são oferecidos pela publicidade massiva. A partir da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, em 11/3/1991, os fabricantes foram obrigados a fornecer  informações sobre o conteúdo de seus produtos alimentícios, mas, passados quase 30 anos da vigência da lei, o que se percebe - como já aqui me referi mais de uma vez - é que a grande indústria descobriu meios de distribuir seus produtos não saudáveis por intermédio das conhecidas fórmulas de sedução veiculadas pela publicidade e, também, algumas vezes fornecendo informações insuficientes ou não claras.   E, se os consumidores adultos têm dificuldade de compreender as informações dirigidas a eles, certamente a dificuldade aumenta quando se trata de crianças e adolescentes.  Sei que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou, no último dia 7, mudanças nos rótulos de alimentos. Segundo o órgão, a medida melhora a clareza e a legibilidade das informações nutricionais presentes no rótulo dos alimentos e quer auxiliar o consumidor a realizar escolhas alimentares mais conscientes. "O objetivo dessa norma não é impor nenhuma escolha. É possibilitar a compreensão, respeitando a liberdade de escolha de todas as pessoas que vivem no nosso território"5, diz a diretora relatora Alessandra Bastos.  "Com a nova regra, os consumidores terão mais facilidade para comparar os alimentos e decidir o que consumir. Além disso, pretende-se reduzir situações que geram engano quanto à composição nutricional"6, afirma Thalita Lima, gerente geral de alimentos da Agência. A novidade estabelece mudanças na tabela de informação nutricional e nas alegações nutricionais, bem como inova ao adotar a rotulagem nutricional frontal. Penso que isso ajuda, claro. Mas, remanesce o problema de que, mesmo conhecendo a tabela nutricional e os elementos prejudiciais, o consumidor continua consumindo produtos que nem sempre fazem bem à saúde. E, também, no caso, a mudança apresentada pela Anvisa começará a vigorar em 24 meses e, em alguns casos, em 36 ou 48 meses7. De fato, é preciso melhorar a educação para o consumo de alimentos mais saudáveis. __________ 1 Disponível aqui. 2 Apud Elisa Cortes, "Obesidade: nova epidemia mundial", 29/9/2009. 3 Idem. 4 Apud mesmo artigo. 5 Disponível aqui. 6 Idem. 7 Idem.
quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A qualidade da alimentação

Se já não bastassem os problemas com carboidratos, proteínas, gorduras, calorias etc. que atingem os consumidores crianças, jovens, adolescentes, adultos, idosos, enfim, todos os consumidores, a cada dia fica mais claro que, na sociedade capitalista contemporânea, que só conhece o lucro e só pensa nele, muitos produtos vendidos são falsificados, adulterados e deteriorados. E não se trata apenas de se "vender gato por lebre". Há muitos produtos autênticos que fazem mal por suas próprias substâncias, por falta de informação ou por informação imprecisa etc. (Sei que a Anvisa acaba de modificar as regras para rotulagem para proteger os consumidores, mas como as regras somente entrarão em vigor somente daqui a dois anos, deixo, por ora, de cuidar do tema). Aliás, como identificar se o produto alimentício é de boa qualidade?  Realmente, nem sempre é fácil fazer essa identificação. Em boa parte das vezes, o consumidor se serve dos olhos e do nariz: aparência e cheiro são boas alternativas para se aferir qualidade, mas nem sempre dá certo. Claro que o comprador pode lançar mão das cautelas tradicionais como, por exemplo, se for adquirir carnes vermelhas, verificar se elas apresentam zonas (ou manchas) escurecidas ou zonas ou pontos secos, sinais de deterioração. Ou, então, nunca comprar carne moída que já estava triturada quando ele chegou no açougue (Deve-se sempre escolher a carne inteira e pedir para moer à vista). Também não deve comprar carne de porco que apresente pequenas bolinhas brancas (conhecidas como "canjica"). Bem, já que comecei deixe-me lembrar das cautelas para compras de aves: a sua carne estará boa quando tiver consistência firme, cor amarelo-pálida, brilhante e com odor (cheiro) suave, e estará deteriorada quando apresentar cor esverdeada; sua consistência não estiver firme; e/ou apresentar cheiro forte. E, quanto aos peixes, o consumidor só deve adquirir os que tiverem o corpo rijo (duro), escamas firmes e os olhos salientes e brilhantes. Já os peixes secos, como o bacalhau, estarão deteriorados se apresentarem manchas úmidas ou avermelhadas. Você, meu caro leitor, quer compre os próprios alimentos para preparar quer os compre prontos, sabe muito bem que o mercado está repleto de fraudes de todo tipo e também de produtos deteriorados,  que transmitem doenças que nem sempre aparecem em curto espaço de tempo (O que gera um grande problema de prova e investigação - pessoal ou pelas autoridades). Não é à toa que alguns bons restaurantes, desde há muito tempo, passaram a abrir suas cozinhas para que os clientes possam ver como a comida está sendo preparada ou, pelo menos, permitem que eles façam uma visita nas instalações. Porém, nem sempre isso é suficiente. Por isso, inclusive, os consumeristas dizem que um bom modo de conhecer a higiene do restaurante é ir, antes de mais nada, ao banheiro local. Se ele estiver asseado, é um bom começo. Mas, se nem o banheiro, que é escancarado ao olhar do consumidor, está limpo, o que se dirá do resto? Claro que, como diz meu amigo, Outrem Ego, "Dá para 'maquiar' o banheiro. Este pode estar tinindo, lindo, cheiroso e ainda assim a comida não estar no mesmo padrão. Não é fácil mesmo a vida de consumidor, especialmente se estiver com fome". Essa situação de fragilidade do consumidor em relação aos serviços e produtos oferecidos e adquiridos, já disse mais de uma vez aqui nesta coluna, é uma característica universal  e que a nossa lei de proteção expressamente reconhece: ele é vulnerável, porque não só não tem acesso aos meios de produção e distribuição como é obrigado a acreditar (confiar?) nas informações que se lhe dirigem. Ademais, em relação aos alimentos, ele pode se enganar com os olhos e com o olfato. A vulnerabilidade do consumidor nesse tema é marcante. Ilustro com um caso  hipotético. Digamos que, Zé Mineirinho seja o produtor do melhor queijo branco de Minas Gerais. Por exemplo, da região de Uberlândia. Ele sabe que seu queijo é o melhor do país, de alta qualidade e produzido com rígido controle de higiene e, aliás, ele é reconhecido no Brasil inteiro exatamente por isso. Um belo dia, os pais do Zé Mineirinho resolvem mudar-se da cidade. Decidem ir morar na capital de São Paulo. Mudam-se. Três meses depois, ele vai visitá-los. No domingo, Zé Mineirinho acorda e vai até a padaria comprar pãozinho para o café da manhã. Chegando lá, ele vê o queijo "Zé Mineirinho" de Uberlândia na vitrine do balcão refrigerado. Dá, um sorriso, estufa o peito e pergunta ao balconista: "Esse trem de queijo Zé Mineirinho é bom?". O atendente diz: "É o melhor do Brasil". Zé Mineirinho abre agora um sorriso largo que ilumina todo seu rosto e diz: "Vou levar. Me dá um". Ele chega na casa dos pais, todo feliz, mostra o queijo, sentam-se à mesa e se deliciam com os pãezinhos frescos, com o café, o leite e o queijo. Antes da hora do almoço, os três começam a sentir fortes pontadas na barriga e logo são internados num hospital, intoxicados que foram pelo queijo. Pode? Pode. Na condição de consumidor, Zé Mineirinho tornou-se frágil como qualquer consumidor. Ele, como produtor, sabia que o queijo era bem produzido, feito com insumos de primeira qualidade e em condições de higiene perfeitas. Mas, como comprador, não sabia como é que o queijo havia sido transportado, se na linha de distribuição algum dos comerciantes havia deixado o queijo sem  armazenamento adequado ou em contato com produtos indevidos ou mesmo se na padaria ele fora bem guardado e cuidado etc. Não tem jeito: A condição do consumidor é mesmo de vulnerabilidade. Daí que, a cada dia é mais difícil se alimentar bem e sem preocupações. Nenhuma área está isenta de fraudes e/ou problemas de qualidade. Podem ser produtos "in natura" ou industrializados. De fato, todo cuidado é pouco.
quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O capitalismo e o dia das crianças

Neste ano, por conta da pandemia, o Dia das Crianças, que se comemora na próxima semana, será diferente. Certamente, haverá menos compras de presentes o que, penso, ser bom, como já disse várias vezes. A data é apenas mais uma do calendário comercial-capitalista.  O fato é que grande parte dos adultos, em matéria de consumo, está imersa nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de ilusão e controle.  Sei que, atualmente, proclama-se a liberdade, mas em larga medida ela é usada adquirir produtos e serviços, cuja escolha é limitada àquilo que é decidido unilateralmente pelos fornecedores. E, no exercício dessa liberdade, milhares de consumidores se super endividam. Este é o mundo dos adultos.  Agora, pergunto: é esse o futuro que desejamos para nossas crianças? É esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indivíduos se medem pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e não por aquilo que são?  Claro que nem toda culpa é do mercado, mas com certeza o modelo que faz com que a pessoa se aliene nas compras e acredite na publicidade, a atordoa de tal modo que ela, jogada à própria individualidade, não sabe como agir. Vendo tevê ou navegando na web, por exemplo, assiste-se ao mundo perfeito dos anúncios publicitários: o de bancos mostrando seus gerentes sempre sorrindo  e oferecendo vantagens a seus clientes, enquanto na realidade os clientes são enganados a torto e a direito, assinando contratos com cláusulas abusivas, recebendo cobranças de taxas absurdas, sendo obrigados a aderir a operações casadas ilegais etc. Há, também, a propaganda de veículos maravilhosos, que nunca quebram; de smartphones mágicos; de alimentos exuberantes etc.; enfim, um longo desfile de produtos e serviços que nem sempre correspondem ao real. Há, pois, dois mundos: o da publicidade e o dos fatos.  É incumbência dos adultos conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para tentar desvendar as enganações e discernir sobre o que é válido e verdadeiro. Mas, refaço a pergunta: e nossas crianças, como estão posicionadas nesta sociedade capitalista? Como é que elas recebem o espetacular assédio do marketing e suas armas?  Certamente, recebem com mais influência que em relação aos adultos. Mas, há muitos pais absorvidos por todas as formas de consumo e, inclusive, utilizam-se do próprio mercado para controlar seus filhos, o que é uma pena. Não que seja fácil. Ainda que, por exemplo, os pais tenham o costume de limitar a exposição de seus filhos à tevê, basta um pouco de tempo para a percepção do ataque (uma verdadeira guerra de anúncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, se o filho tem seu tempo limitado de uso da internet, são suficientes também apenas alguns minutos para a explosão de ofertas.  E, se não bastasse isso, há toda a sedução do merchandising feito em programas de tevê, filmes de cinema, vídeo e até teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal  vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato é inevitável e não há mesmo nada de errado em passear nos shoppings, ir aos cinemas, teatros, viajar, assistir tevê etc. Não é mesmo fácil. Mas, é lição de casa que precisa ser feita.  Cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos. É comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem da maior parte deles. Pode ser um bom precedente para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. E, evidentemente, cabe aos pais dizer não. A criança pode até se frustrar, mas será por algo válido, uma boa experiência que ela levará consigo, pois na vida adulta ela perceberá que a frustração é um elemento comum no jogo social.  Os pais são, pois, os primeiros responsáveis por alertar seus filhos contra o assédio feito pelo marketing infantil hoje tão sofisticado e difundido. Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e serviços. Qual deve ser a função do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve comprá-los sem exagero.  As crianças, se pudessem, agradeceriam as lições.
quinta-feira, 1 de outubro de 2020

O mercado fake

Vi, há muito tempo, num seriado policial de tevê, um caso interessante (Infelizmente, não lembro o nome da série). Era a história de um empresário que queria que seu filho seguisse a mesma carreira que ele; que pudesse um dia tomar conta das empresas da família. Mas, o filho gostava de arte e desejava ser pintor. Assim, contra a vontade do pai, passou a se dedicar a pintura. O pai tinha muito dinheiro e uma casa maravilhosa projetada por um importante arquiteto e lindamente decorada. Tinha, inclusive, penduradas nas paredes, pinturas à óleo originais e valiosíssimas. O filme cuida do dia em que o pai descobre que o filho havia furtado e vendido os tais quadros, embolsando uma fortuna. Mas, a ironia era que o filho havia copiado as obras e as havia colocado no lugar das originais. O pai, durante meses, jamais se deu conta disso. Quando o filho foi preso, disse para o pai: "Que diferença faz para você? Há meses que você olha para os quadros nas paredes e não vê que são cópias. Pouco importa quem pintou, o que vale é que você pensa que foi o pintor original. Mas, você estava vendo meus quadros!". E ficou no ar essa pergunta: "Se você aprecia uma pintura e, de algum modo, ela faz bem a seu espírito, que diferença faz saber se ela é original ou cópia? Aliás, depois que você a admirou, se encantou com ela e se emocionou, que adianta alguém dizer que ela não era original?".  Agora, cito esta história envolvendo o famoso pintor espanhol Pablo Picasso. Dizem que, certa vez, ele, de regresso ao Castelo de Vauvenargues no sul da França, onde morava, encontrou o local sem mantimentos. Não havia comida, vinhos etc. Chamou o capataz e pediu-lhe que fizesse as compras, mas este disse que não havia dinheiro em casa e nem talão de cheques. Picasso, então disse: "Não tem problema". Desenhou uma pomba numa folha de papel. Assinou e disse: "Pague com isto!". Meu caro leitor, pergunto: Quanto vale uma assinatura?  E um original? Aliás, o que é mesmo um original? Por exemplo, os próprios pintores descobriram um bom filão com as reproduções de suas obras, numeradas ou não.   Como se sabe, o mercado capitalista é expert em dar preços às coisas e tem também a habilidade de supervalorizar algumas delas. Às vezes, a valorização tem relação com a demanda: muita demanda e pouca oferta gera preço alto, como acontece na bolsa de valores e nos preços das commodities em geral. Em outras vezes, o preço é ditado pela autoridade de quem produz o bem. O exemplo acima de Picasso ilustra bem esse aspecto. Trata-se de uma marca de valor. Essa autoridade (marca de valor) nasce do próprio mercado, que a reconhece numa espécie de círculo fechado: quem tem autoridade (e mais valor) em determinado assunto, produto, serviço etc. a detém porque é reconhecido pelo mercado e o mercado, por sua vez, dá mais valor a quem tem autoridade. Nas artes, nem sempre isso ocorre em vida, para azar de alguns artistas. Fiquemos apenas com o exemplo de Van Gogh, que se suicidou aos 37 anos (em 1890) e vendeu em vida um único quadro por apenas 400 francos. E que, a partir de uma exposição feita em Paris em 1901, começou a ficar famosíssimo. A pintura intitulada "Retrato do Doutor Gachet" (Gachet foi o médico que cuidou de Van Gogh nos últimos tempos de sua vida) foi vendida no século passado por oitenta e dois milhões e quinhentos mil dólares! Bem, estou citando obras originais, produtos originais. Porém, coloco a questão do original diante do falso: o original e sua cópia ou suas cópias. Pergunto:  por que o consumidor paga para ter algo copiado? Compra um produto fake, como se diz, consciente de que ele não é original. Meu amigo Outrem Ego, me disse que  tem gente que usa relógio rolex falso porque é mais fácil de entregar para o ladrão... Ele protesta: "Pergunto, se é para ser roubado, para que usá-lo? Por que não usar um relógio qualquer sem marca? Ou nenhum, como faço eu?".  O mercado combate ferozmente todo tipo de pirataria. Melhor dizendo, não é exatamente o "mercado" que combate, mas os proprietários das licenças e das marcas registradas. Mesmo assim, a pirataria resiste; de fato existe um "mercado pirata", um "mercado fake". Esse tipo de demanda é criada em parte pelo próprio dono do produto de grife, que o promove como algo raro e/ou caro a ser cobiçado. Como o preço fixado não é barato, acaba tendo de concorrer com os falsificadores que atuam na clandestinidade vendendo a preços mais acessíveis. Então, podemos dizer que grande parte desses consumidores que adquirem os produtos falsificados o fazem, em primeiro lugar, porque reconhecem uma autoridade (um valor) na marca e, em segundo lugar, porque o preço permite. Do que se pode concluir que, se o produto "de marca" não fosse caro, o consumidor compraria o original. De fato, o consumidor, quando adquire um produto de grife, o faz porque de algum modo ele lhe gera uma distinção social. Passa a ser olhado (nesta nossa sociedade de alta exposição ao olhar) pelos demais como possuidor de uma identidade (que ele valoriza). A grife também permite que ele frequente certos locais e grupos, que se apresentam do mesmo modo. Daí que, às vezes, acreditando nessa forma de distinção e não podendo adquirir o original, ele se contenta com a cópia. Mas, claro, a torcida é a de que a cópia seja conhecida apenas dele. O consumidor não irá pendurar um relógio rolex falso no braço e sair dizendo "é falso". Ele usará para mostrar e para que as demais pessoas o enxerguem como usando um verdadeiro. O mesmo se diga em relação a qualquer outro tipo de produto de marca: bolsas, sapatos, canetas, objetos de vestuário etc.  É o mercado, portanto, que cria e oferece tanto o produto original como o falso (embora o próprio consumidor consiga, evidentemente, em alguns casos, produzir a cópia para seu uso). Esse tema lembrou-me uma máxima dita ao final do bom e assustador filme baseado na obra de Patricia Higsmith, O Talentoso Ripley (refilmagem do filme francês "O sol por testemunha"), no qual o personagem central rouba a identidade de outra pessoa para viver em seu lugar. Diz ele: "Prefiro ser um falso alguém do que um ninguém verdadeiro".  Claro que não é preciso que o produto ou o serviço sejam falsos para que o elemento psicológico apareça: há consumidores que compram caros produtos originais para parecerem o que não são; muitos se endividando para tanto. É isso. O mercado é muito criativo; não cessa de fazer ofertas falsas ou verdadeiras de produtos e serviços originais ou copiados. Parece tudo uma questão de gosto, mas isso, como se diz, não se discute.
O consumidor está cada vez mais "empregado" do fornecedor. Volto, pois, ao tema. A ideia do consumidor ser transformado em empregado do fornecedor não é nova. É conhecida de todos nos serviços self service em restaurantes, passando pelos postos de combustíveis nos Estados Unidos da América do Norte e também na Europa, indo desembocar, no final do século XX, nos atendimentos self service feitos pelo consumidor via internet dos serviços bancários e se expandiu por toda a rede de vendas online. O modo de transferir atividade fim para o consumidor, que é quem paga para recebê-la, às vezes, de fato, traz vantagens: quando, por exemplo, ele faz transferências bancárias sem sair de casa ou quando escolhe aquilo que quer comer nos restaurantes olhando e examinando os pratos oferecidos. Mas, nem sempre significa bom serviço. Veja-se o caso dos postos de combustíveis self service, existentes no exterior. É exemplo de serviço de péssima qualidade com, inclusive, riscos para a saúde e a segurança do consumidor (Por sorte, no Brasil ainda não foi implantado). Essa "técnica" é, naturalmente, uma maneira que o fornecedor tem de diminuir custos, usando mão de obra terceirizada gratuita do próprio consumidor. E ela não para de se expandir,  piorando os serviços: já havia chegado nos check-ins dos aeroportos americanos e nessa área já desembarcou por aqui. Na pandemia, expandiu-se bastante, tanto pela via do telefone/iphone como pelos aplicativos. Os aplicativos e os "robôs" passaram a substituir os(as) atendentes reais, fazendo com que o serviço de atendimento piorasse muito. Há fornecedores que disponibilizam como forma de atendimento e/ou reclamação apenas o site, dificultando os esclarecimentos de que o consumidor necessita. Tudo é feito para diminuir os custos e, neste período crítico, esse elemento foi realçado. Infelizmente, economia por métodos de relacionamento nem sempre significa melhora da qualidade dos produtos e serviços, nem barateamento dos preços. O mesmo ocorre com a suposta redução de custos na implantação do sistema self service: o consumidor é transformado em empregado sem nada receber em troca, nem qualidade dos serviços, nem diminuição de preço. Aliás, ao contrário, muitas vezes ele paga para fazer o serviço do fornecedor, pois imprime os comprovantes em sua casa com seu papel e sua tinta ou paga um preço maior por ter feito o pedido online como acontece, por exemplo, às vezes, com os ingressos para o cinema. Mas, como já mostrei antes em outros artigos, o mercado é mesmo muito bom em "criar modas" e ditar comportamentos e o consumidor, embalado por elas vai se adaptando e se acostumando. Ele se vira sozinho mexendo nas araras das lojas de roupas para encontrar o traje que tem interesse; depois se arranja para experimentar o que encontrou sozinho, em frente ao espelho; quebra a cabeça para decifrar as informações dos sites das companhias aéreas para conseguir emitir um ticket de viagem ou se atormenta tentando obter uma passagem via milhagem etc. Em algumas lanchonetes e praças  de alimentação podem ser lidos avisos do tipo "Limpe a mesa para o próximo cliente". Muitos consumidores, por cortesia e educação, fazem a limpeza. Mas, nem sempre há local para se colocar os recipientes, o que impede que se faça a arrumação. Em outras ocasiões, como nem sempre o consumidor cumpre a determinação, não é incomum encontrar-se mesas sujas, repletas de pratos, talheres, copos e restos de comida pela falta de empregados em número suficiente para manter o lugar limpo. O fornecedor esquece que não basta dar uma ordem ao consumidor; é necessário ter pessoal próprio para efetuar a limpeza caso o consumidor não o faça. Tiro no pé, pois. Gosto sempre de lembrar que todo empregado é consumidor e que, muitas vezes, o empregado, após violar um cliente a mando do patrão, acaba sendo violado como consumidor, enganado pelo empregado de outro patrão. Trata-se, afinal, da sociedade capitalista como a conhecemos. Nesse modelo do self service, talvez pudessem os empregados se preocupar com seus empregos, porque quando o sistema dá certo, certamente, há enxugamento de postos de trabalho. Sei que nesse assunto não há saída, pois o sistema self service veio para ficar, dando mais lucros via redução de custos e tirando emprego dos trabalhadores, mas em alguns setores,  como postos de combustíveis e aeroportos,  eles bem que poderiam não existir.
quinta-feira, 17 de setembro de 2020

É permitido o aumento abusivo de preços?

Um dos temas desta semana foi o suposto aumento abusivo de preços praticado pelo comércio, em especial do arroz e do óleo, mas também de outros produtos. Foi estabelecida uma fiscalização pelos órgãos de defesa do consumidor e alguns jornalistas/opinadores disseram que estaríamos de volta ao período Sarney de controle de preços ou das práticas de tabelar preços pela extinta Sunab, algo ilegal, pois agora os preços são livres. Sim, vivemos um período de liberdade na fixação dos preços. Todavia, em períodos de exceção, como é, evidentemente, este da pandemia, impõe-se comportamentos especiais. E mais: a legislação brasileira é rica em normas para que se possa combater a ganância. Ganância. É dela que trato aqui mais uma vez: a sede de ganho sem limites. Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população  da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1. No livro citado, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente"2. Esse tipo de conduta não é novo nem surpreendente e já se verificou no Brasil inúmeras vezes. Lembro que, mais de uma vez, alguns donos de postos de combustíveis, aproveitando-se da escassez provocada pela greve dos caminhoneiros, aumentaram (e muito) o preço da gasolina e do álcool nas bombas. Há também um caso bem conhecido: em janeiro de 2011, alguns comerciantes da região serrana do Estado do Rio de Janeiro aumentaram abusivamente os preços dos gêneros de primeira necessidade, logo após os deslizamentos de terra nas cidades de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis e outras e que deixaram centenas de mortos e milhares de desabrigados.  São práticas abusivas proibidas pela legislação protecionista do consumidor e, evidentemente, odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos empresários e colocam à mostra defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, na concepção cristã, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza3; trata-se de um vício humano, sempre combatido. Anoto que a avareza é um dos sete pecados capitais porque o avarento (e na hipótese, o ganancioso) prefere os bens materiais ao convívio com Deus. Mas, no capitalismo selvagem atual, faz sentido,  na medida em que o mercado funciona como um "deus".  E é nesse aspecto, inclusive, que tem se usado a expressão "fundamentalismo de livre-mercado". Os estudiosos da sociedade capitalista têm dito e, também, demonstrado que o capitalismo da segunda metade do século XX para cá é eminentemente fundamentalista. É o chamado fundamentalismo de livre-mercado (do inglês free-market fundamentalism), expressão usada criticamente e que denota a injustificada e exagerada crença de que os mercados livres são capazes de propiciar a maior prosperidade possível e que qualquer interferência nos processos de mercado reduz o bem estar social. Ou seja, os livre-mercados seriam capazes de resolver, de per si, todos os problemas que afetam uma sociedade, o que não corresponde à verdade. E, claro, diga-se que, sim, no Brasil há leis que impedem esse tipo de abuso, lembrando que estamos num período excepcional. O CDC dispõe de normas que permitem a intervenção dos organismos estatais de proteção ao consumidor e a Lei que estrutura o sistema brasileiro de defesa da concorrência e que reprime às infrações contra a ordem econômica (Lei nº 12.529, de 30-11-2011) tem norma expressa contra esse tipo de abuso. Vejamos. Código de Defesa do Consumidor: "Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:                  (...)        II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: (...) c) pela presença do Estado no mercado de consumo;" "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:             (...) V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;" Este inciso V do art. 39 remete ao § 1º do art. 51. E, embora aplique-se os demais incisos, destaco apenas o III: "§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso"4. Lei 12.529, de 30-11-2011: Art. 36, inciso III: "Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: (...) III - aumentar arbitrariamente os lucros;" Vê-se, pois, que no panorama atual de crise provocada pela pandemia  do Covid-19 pode-se sim controlar preços para evitar os abusivamente fixados. __________ 1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11. 2 Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores. 3 Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade). 4 A compra e venda de um produto num supermercado ou outro tipo de comércio, ainda que a venda se faça pela via de simples emissão de uma nota fiscal, representa, como se sabe, um contrato de compra e venda. E assim, poder-se-ia falar também na incidência do inciso IV do art. 51: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade".