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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Passados os efeitos da pandemia da Covid 19, os aeroportos já estão lotados pelo mundo afora. Os consumidores estão deixando milhões de reais, dólares, euros ou o que o valha nos cofres das companhias aéreas. Conclusão: as empresas estão faturando alto. Novamente mais dinheiro em caixa, mais lucro, mais dividendos para serem distribuídos aos acionistas, maiores bônus entregues aos executivos do alto escalão. No entanto, velhas táticas de violação aos direitos dos consumidores continuam em vigor.  Em recente viagem aérea à Europa, meu amigo Outrem Ego ouviu de um atendente de uma cia aérea que o avião estava lotado e alguns passageiros não poderiam embarcar por causa do overbooking. Sim, o atendente admitiu abertamente a prática ilegal.  O overbooking é uma tática absurda e uma clara demonstração do modelo capitalista, que despreza o consumidor e que só pensa no ganho financeiro. Esses administradores não estão preocupados com seus clientes o que é especialmente reforçado nos setores de baixa competividade e naqueles em que o consumidor não tem escolha (ou seja, em muitos setores). A qualidade cai, mas gera economia financeira que na escala, representa maior faturamento, apesar do desprezo ao consumidor.  Mas, ainda temos leis e estas precisam ser cumpridas. O overbooking, por exemplo, é quase um estelionato, pois é a venda do mesmo assento para mais de uma pessoa (Tente fazer o mesmo, vendendo seu automóvel ou seu imóvel para duas pessoas diferentes ao mesmo tempo...). Ademais, em alguns casos as cias aéreas descobriram uma fórmula para continuar a burlar: quando acontece o problema, elas saem distribuindo alguns trocados para receberem de volta o assento vendido. São verdadeiras migalhas (sem ofensa, claro, a este poderoso rotativo!) em troca de direitos. O overbooking é uma prática ilegal e grosseira que precisa ser punida e que tem que ser banida.
quinta-feira, 6 de outubro de 2022

A democracia, o voto e a liberdade

O domingo que se passou foi dia de eleições obrigatórias. Por isso, trago esta reflexão. Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, de fato, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos, inicialmente, um dos aspectos de nossa democracia, a do fato do voto ser obrigatório entre nós. No mundo há 193 países reconhecidos internacionalmente. Destes, apenas 25 ainda adotam esse modelo1, isto é, somente 12,95%. E dentre os 10 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever (na França o voto obrigatório é apenas para o Senado)2. Os que são contra o voto obrigatório argumentam que ele transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa legítima democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão, pois a liberdade é sua base. Isso porque, como dizem, a obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. Todos os anos muitos brasileiros vão às urnas para se livrar da obrigação de votar e para não perder os vários direitos retirados de quem não vota e, também, porque é mais fácil e prático votar do que justificar a ausência. Esse argumento, de outro lado, apresenta o voto facultativo como algo positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que, de fato, possa representar seus pensamentos, suas opiniões, assim como a do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. (Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso - sem partido -  etc. Mas, o fim do voto obrigatório, como dizem os que o defendem, seria um bom começo). Assim, as pessoas que quisessem exercer sua liberdade, participariam das eleições por escolha feita. Com isso, teriam mais interesse em tudo o que ocorre direta ou indiretamente nas próprias eleições e no que é feito depois pelos candidatos eleitos.  Parece certo que, de um modo ou de outro, é preciso mesmo aprimorar o sistema político, que está inserido numa sociedade capitalista que o tempo todo busca a modernização, especialmente para que a representação seja efetiva e a liberdade individual seja respeitada.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Brasil volta ao top 10 no ranking de maiores economias do mundo...
Continuo, no artigo de hoje,  a tratar da boa-fé objetiva, como elemento de harmonização das relações de consumo, que comecei a examinar na semana passada. Como adiantei, é importante que se conheça bem o funcionamento da boa-fé objetiva, eis que ela pode ser a indicação e a base para solução de uma série de conflitos envolvendo as relações jurídicas de consumo. Anoto que, quando se fala em boa-fé objetiva tem-se que afastar o conteúdo da conhecida boa-fé subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Lembro os exemplos encontrados no direito civil pátrio, tais como o do art. 1.561, que cuida dos efeitos do casamento putativo, dos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, do art. 879, que  se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido etc. Sendo assim, a boa-fé subjetiva admite sua oposta: a má-fé subjetiva. Vale dizer, é possível verificar-se determinadas situações em que a pessoa age de modo subjetivamente mal intencionada, exatamente visando iludir a outra parte que, com ela, se relaciona. Fala-se, assim, em má-fé no sentido subjetivo ou o dolo de violar o direito da outra pessoa envolvida. Mas com a boa-fé objetiva é diferente: ela independe de constatação ou apuração do aspecto subjetivo (ignorância ou intenção), vez que erigida à verdadeira fórmula de conduta é capaz de, por si só, apontar o caminho para solução da pendência.   A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva dos contratantes.  Em decorrência disso, pode-se, grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes envolvidas a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado na transação, realizando o interesse das partes. Em matéria de relações de consumo, o CDC estabeleceu expressamente a harmonia como um princípio (no caput do art. 4º e no seu inciso III). A pretendida harmonia das relações de consumo nasce dos princípios constitucionais da isonomia, da solidariedade e dos princípios gerais da atividade econômica e no contexto do CDC ela é amparada pelos princípios da boa-fé e equilíbrio (mesmo inciso III do art. 4º).1 Então, a lei pretende que haja entre fornecedor e consumidor um tipo de relação que seja justa na contrapartida existente entre ambos. Lembro que, a boa-fé objetiva é parâmetro também para o comportamento do consumidor, que deve agir sob a égide do mesmo modelo. E, tenho de admitir que, neste século XXI,  muitas empresas têm se esforçado para manter o equilíbrio, buscando a harmonização, respeitando seus clientes e agindo na direção da boa-fé. Naturalmente, essa mudança de postura  reflete a maior consciência do consumidor a respeito de seus direitos e também a ampliação do leque de oportunidades para reclamações que surgiram pelas redes sociais e sites de internet, além da força da concorrência (quando ela existe). Isso é verdade. Mas, há mais: aos poucos, começa a surgir uma consciência empresarial que percebe que vale a pena respeitar a lei; que isso é a favor, não contra. E que buscar a harmonização é fundamental para os negócios. A boa-fé objetiva é, pois,  um paradigma de conduta fundamental para o atingimento da harmonização das relações de consumo. Por isso, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o Magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso (por qualquer das partes), deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado como adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standard, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas. __________ 1 E o Código Civil   incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta aos contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 422 e no art. 113, que cuida da interpretação dos negócios jurídicos. Além disso, é importante apontar que a boa-fé objetiva é também fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e deve ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. Este equilíbrio - tipicamente caracterizado com um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto -, é verdade, não se apresenta como uma espécie de tipo ideal ou posição abstrata, mas, ao contrário, deve ser concretamente verificável em  cada relação jurídica.
O presente momento histórico que vivemos exige uma mudança de paradigma das relações sociais em geral, na direção da solidariedade, da busca da igualdade, da concretização da Justiça etc. E, no que respeita às relações jurídicas de consumo, um dos lemas da atualidade é o da harmonização, esta que foi expressamente prevista no Código de Defesa do Consumidor como princípio (conf.  caput e inciso III do art. 4º). A ideia de harmonização envolve alguns parâmetros, dentre os quais se encontra  o da boa-fé objetiva. A hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise  da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação;  os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do "status quo"; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas bases gerais que sempre se repetem como alicerce das relações, isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem  utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto. Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário. Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional. Mas, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver o problema estudado, ele lança mão de fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução da questão. Dentre as várias alternativas, chamo atenção para certos "standarts", tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "ser humano comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom senso", "senso comum" etc. Anoto que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma inconsciente - intuitiva - um foro de legitimidade, eis que produzidos na realidade como um fato inexorável.  E a boa-fé objetiva é uma fórmula fundamental desse tipo que, como disse, no Brasil, acabou por ser erigida a princípio no Código de Defesa do Consumidor. É importante, portanto, que se conheça bem o funcionamento da boa-fé objetiva, eis que ela pode ser a indicação e a base para solução de uma série de conflitos envolvendo as relações jurídica de consumo. No artigo da próxima semana, cuidarei especificamente dela.
Conta-se a seguinte piada de um menino conversando com sua mãe: - Manhêêêê! - grita o menino. - O que foi, meu filho? - Lá na escola, os meus coleguinhas estão dizendo que eu sou um grande mentiroso! -  Larga de bobagem, meu amor. Você ainda nem está na escola! * * * Nem toda mentira tem assim perna tão curta. Mas, nessa área, há episódios pitorescos produzidos no mercado, tanto do mundo real como do virtual. Na atualidade, a entrega da informação e sua força viral em memes de web/ internet e redes sociais se propagam a tal velocidade e geram uma quantidade tão grande de reproduções que, muitas vezes, essa quantidade acaba sendo vista como medida da verdade. Há de tudo, desde coisas sem importância e bobagens engraçadas até boatos causadores de danos, verdades idem e falsidades planejadas. E em matéria de direito do consumidor, o dever de informar é princípio fundamental no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Com efeito, na sistemática implantada pelo CDC, o fornecedor está obrigado a prestar todas as informações acerca do produto e do serviço, suas características, qualidades, riscos, preços etc., de maneira clara e precisa, não se admitindo falhas ou omissões. E, naturalmente, oferecendo informações verdadeiras. Trata-se de um dever exigido mesmo antes do início de qualquer relação. A informação passou a ser componente necessária do produto e do serviço, que não podem ser oferecidos no mercado sem ela. Ademais, o CDC tem também estabelecido o princípio da transparência, que se traduz na obrigação de o fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do contrato que está sendo apresentado. Assim, da soma desses princípios, compostos de dois deveres - o da transparência e o da informação -, fica estabelecida a obrigação de o fornecedor dar cabal informação sobre seus produtos e serviços oferecidos e colocados no mercado, bem como das cláusulas contratuais por ele estipuladas. Sabe-se que a web - mas não só - é um campo fértil para que sejam produzidas toda sorte de enganações, ao lado de tudo o que há de bom por lá. A pergunta que faço é a seguinte: dá para acreditar em tudo o que é publicado, divulgado, mostrado, enfim, naquilo que se nos surge diariamente para os produtos e serviços apresentados nos anúncios de tevê, na web, nas redes sociais, nos programas de rádio etc.? Por exemplo, algumas técnicas tradicionais de enganações em ofertas que envolvem o consumidor, continuam existindo abertamente. Muitos preços tem grandes descontos para quem comprar em alguns minutos ou para os primeiros X compradores que ligarem imediatamente etc. Promoções e promessas mirabolantes aparecem a toda hora. Por que é que os consumidores acreditam nesse tipo oferta, que utiliza um dos motes mais antigos e fajutos da oferta e da publicidade? Sei que, às vezes, a comunicação é bem feita e nos engana. É preciso prestar muita atenção e tentar descobrir quais interesses estão envolvidos para poder identificar os embustes. É Isso! Se antes já era difícil saber como lidar com as informações em geral, conhecendo-se a fonte ou não, atualmente a dificuldade é maior. Pequenos e grandes anunciantes e mesmo os desconhecidos produzem muito material que pode enganar. E se a fonte gera confiança, fica mais difícil desconfiar.  Aliás, como toquei no assunto da confiança e apenas para terminar, lembro que o maior problema de uma fofoca está exatamente no fato de a pessoa que a recebe conhecer a fonte e, muitas vezes, é por isso que acredita!    
quinta-feira, 8 de setembro de 2022

A questão dos vícios nos produtos usados

Na semana passada, cuidei dos aspectos da garantia legal que envolve os produtos usados, prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Hoje, em continuidade, trato dos vícios nesses produtos e como o consumidor pode exercer os direitos fixados na lei. Com efeito, o exercício desses direitos está previsto nas hipóteses do artigo 18 do CDC, que  envolvem os vícios de qualidade ou quantidade que tornem os produtos usados impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor. Dispõe o "caput" do artigo 18 "caput" do CDC e, também, o § 1º, o seguinte: "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. § 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço." Muito bem. Essa regra do citado §1º do artigo 18 vale para todos os tipos de produtos, inclusive, os usados. Logo, o fornecedor tem a obrigação de sanar o vício no prazo máximo de 30 dias. Caso ele não consiga sanar o vício nesse tempo, então, o consumidor tem a seu dispor as hipóteses dos incisos I, II e III. E, como diz a norma, por escolha sua. Todavia, surgem algumas dúvidas em relação à hipótese do inciso I no caso do produto ser usado. Como o consumidor poderia exigir a substituição do produto usado por outro da mesma espécie em perfeitas condições de uso? Um bom exemplo para estudarmos a questão é a do veículo usado (que envolvem milhares de transações todos os meses). Para que o consumidor pudesse exigir a troca teria que apontar um veículo que fosse igual ao adquirido, o que seria muito difícil, pois como se sabe, as características de  cada um deles varia muito: ano, cor, tempo de uso, quilometragem, gastos de pneus, amortecedores, molas etc. Assim, penso que a previsão do inciso I seja, de fato, na realidade das transações, esvaziada, com muita dificuldade de ser exercida. As duas outras hipóteses (dos incisos II e III), no entanto, são plenamente aplicáveis ao caso de vício encontrado no produto usado. De todo modo, ainda que não seja possível a utilização da regra do inciso I do §1º do art.18 pelo comprador do produto usado de forma direta, existe uma outra alternativa prevista no §4º do mesmo artigo que afeta o previsto naquele §1º . Vejamos: "§ 4° Tendo o consumidor optado pela alternativa do inciso I do § 1° deste artigo, e não sendo possível a substituição do bem, poderá haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos, mediante complementação ou restituição de eventual diferença de preço, sem prejuízo do disposto nos incisos II e III do § 1° deste artigo." Primeiramente, anoto que essa escolha prevista no §4º é opcional do consumidor, que não precisa justificá-la. Trata-se de mero expressar objetivo de sua vontade. Assim, ele poderá aceitar em troca: a) outro produto de espécie, marca ou modelo diferentes, que tenha preço mais barato do que foi pago pelo produto viciado; b) outro produto de espécie, marca ou modelo diferentes, que tenha preço superior àquele que foi pago pelo produto viciado. No primeiro caso, o consumidor terá direito a receber a diferença do preço a seu favor, no ato da troca. No segundo, terá que pagar o complemento da diferença do preço pago a menor.
quinta-feira, 1 de setembro de 2022

A questão da garantia dos produtos usados

Pergunto: o produto usado goza da garantia legal do Código de Defesa do Consumidor (CDC)? A resposta é sim, desde que se trate, de fato, de relação jurídica de consumo. Como se sabe, existem relações jurídicas de compra e venda de produtos que não estão submetidas à égide da Lei n. 8.078/90 (CDC). E, como não poderia deixar de ser, uma parte dessas transações é feita tendo por objeto produtos usados. É o que ocorre quando uma pessoa vende seu automóvel para outra pessoa. Nessa hipótese a relação jurídica negocial está submetida ao Código Civil. Contudo, quando o fornecedor típico vende para um consumidor um produto usado dentro de sua atividade, a relação jurídica é de consumo e está protegida pelo CDC. Em relação a esse assunto é relevante que se coloque inicialmente que o CDC não faz distinção entre produto novo ou usado. E, como ele não distingue, ambos estão incluídos no rol dos produtos cuja relação de venda e compra é por ele regulada. Assim, os prazos para reclamar previstos na lei, de 30 dias para produtos não duráveis e 90 dias para os duráveis, valem também para os casos dos produtos usados. Dessa maneira, por exemplo, quando uma concessionária ou um comerciante de veículos vende um automóvel usado, esse produto tem a garantia legal, e o consumidor tem 90 dias de prazo para reclamar. Mas daí surge um problema: se o veículo é usado, não é sinal de que já está desgastado? Então, como é que se pode falar em garantia? Realmente, o produto usado não tem as mesmas propriedades, nem funciona como um novo. Então, como é que se vai definir a garantia? Bem, há dois fatos: a) o produto usado tem a garantia legal; b) o produto usado não serve ao uso e consumo com a mesma eficiência do produto novo (nem tem o mesmo valor). A garantia legal terá de ser, então, considerada segundo as reais especificidades do produto que estiver sendo comprado, bem como com as condições de oferta do fornecedor que o estiver vendendo. Se o consumidor compra um automóvel usado, não pode esperar o desempenho de um novo, que os pneus não estejam desgastados, da mesma maneira que todos os demais componentes etc. Mas isso não implica que 15 dias após a compra o motor possa fundir. Cada caso será um caso. Mas, naturalmente, quem adquire um automóvel usado pretende utilizá-lo em sua própria qualidade (de usado). As variáveis reais no caso do produto usado são em número incontável e, como disse, variarão em cada caso. De todo modo, faço a colocação apenas para moldar o tema no sistema legal consumerista. Por isso, destaco que a responsabilidade é objetiva do fornecedor e a ele cabe especificar na oferta e/ou no contrato de compra e venda (ou na nota fiscal, no termo de venda e entrega etc.) as condições reais em que o produto está sendo vendido. Não basta colocar no documento "no estado". Essa expressão pode ter validade no direito privado, mas nas relações jurídicas de consumo tem eficácia contra o vendedor (fornecedor). Em caso de problema, caberá a ele demonstrar qual era o estado do produto e que este não apresentava as condições em que agora se encontra. E, para produto usado, o desgaste, como se viu, é sua condição. Logo, é mais prudente e mais adequado para atender à norma explicitar as condições do produto. Por fim, afirme-se que na questão do produto usado aplica-se, também, a hipótese do vício oculto. E, como oculto, o vício pode manifestar-se semanas ou meses após o uso. É possível, por exemplo, ocorrer de um veículo sair de fábrica com vício oculto, que só se manifeste em mãos de terceiro consumidor que o adquiriu na condição de usado. Nesse caso, a responsabilidade pelo vício retroagirá pela sucessão de vendedores, podendo atingir a montadora. Uma outra questão diz respeito ao exercício do direito garantido nas hipóteses do artigo 18 do CDC, envolvendo vícios de qualidade ou quantidade que tornem os produtos usados impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor. Tema que desenvolverei no próximo artigo.
O chamado recall está previsto no § 1º do art. 10 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), nesses termos: "Art. 10. (...) § 1° O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários." Foi após a edição do CDC (lei8.078/90) que o recall começou a funcionar bem efetivamente no Brasil. Por meio desse instrumento, a norma protecionista pretende que o fornecedor impeça ou procure impedir, ainda que tardiamente, que o consumidor sofra algum dano ou perda em função de vício que o produto ou o serviço tenha apresentado após sua comercialização. Essa regra legal tem um alvo evidente. Trata-se das produções em série. Após gerar determinado produto, por exemplo, um automóvel, o fabricante constata que um componente apresenta vício capaz de comprometer a segurança do veículo. Esse componente, digamos, um amortecedor, que é o mesmo modelo instalado em toda uma série de 1.000 automóveis que saiu da montadora, apresentou problema de funcionamento, e, por ter origem no mesmo lote advindo do seu fabricante (isto é, do fabricante do amortecedor), tem grande probabilidade de repetir o problema nos automóveis já colocados no mercado. Então, esses veículos vendidos devem ser "chamados de volta" (recall) para ser consertados. Para efetivar o recall, o fornecedor deve utilizar-se de todos os meios de comunicação disponíveis e, claro, com despesas correndo por sua conta. É o que dispõe o § 2º do mesmo art. 10: "§ 2° Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço."     Está correto. Mas, penso que não basta. É preciso fazer uma interpretação extensiva do texto para cumprir seu objetivo. Assim, utilizando-se o mesmo exemplo acima, dos amortecedores, se os veículos são zero quilômetro, as concessionárias que os venderam têm registro, nas notas fiscais, dos endereços dos compradores. Nada mais natural, portanto, que as montadoras chamem os consumidores por correspondência, telegrama, telefonema, e-mail, mensageiros etc. Além disso, o recall deve ser anunciado via rede social e ser inserido no site do fornecedor. Então, deve-se entender que o sentido desejado no § 2º é o de amplamente obrigar o fornecedor a encontrar o consumidor que adquiriu seu produto ou serviço criado para que o vício seja sanado. A questão que se coloca é a seguinte. Se a função do recall é permitir que o vício do produto ou do serviço seja sanado, e, para tanto, o consumidor é chamado, pergunta-se: o fornecedor continua responsável por eventuais acidentes de consumo causados pelo vício não sanado, pelo fato de o consumidor não ter atendido ao chamado? Respondo. Como a responsabilidade do fornecedor é objetiva, não se tem que arguir de sua atitude correta ou não em fazer o recall (embora, como dito acima, ele esteja sempre obrigado a fazê-lo). Havendo dano, o fornecedor responde pela incidência das regras instituídas nos artigos 12 a 14 do CDC. E, como está lá estabelecido, não há, no caso, excludente da responsabilização. A saída mais favorável ao fornecedor que fez o recall é a da demonstração da culpa exclusiva do consumidor (artigos 12, § 3º, III, e 14, § 3º, II). Todavia, como é o fornecedor que assume riscos e não o consumidor, havendo dano, o caso é de culpa concorrente do consumidor.
Tenho visto a utilização dos termos "vício" e "defeito" para tratar de questões que envolvem direito do consumidor, mas nem sempre de forma apropriada. Por isso, trato hoje de diferenciar os dois conceitos que estão estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor (CDC-Lei 8.078/90).  Com efeito, em termos conceituais, o CDC estabeleceu uma alguma confusão ao pretender, como fez, utilizar dois termos distintos: "defeito" e "vício". Os defeitos são tratados nos arts. 12 a 14 e os vícios nos arts. 18 a 20. E para entender "defeito" no CDC é necessário antes conhecer o sentido de "vício".  O termo "vício" lembra vício redibitório, instituto do direito civil que tem com ele alguma semelhança na condição de vício oculto, mas com ele não se confunde. Até porque é regra própria do sistema do CDC.  São considerados vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os produtos ou serviços impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam e, também, que lhes diminuam o valor. Da mesma forma são considerados vícios os decorrentes da disparidade havida em relação às indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem, oferta ou mensagem publicitária.  Os vícios, portanto, são os problemas que, por exemplo: a) fazem com que o produto não funcione adequadamente, como um liquidificador que não gira; b) fazem com que o produto funcione mal, como a televisão sem som, o automóvel que "morre" toda hora etc.; c) diminuam o valor do produto, como riscos na lataria do automóvel, mancha num vestido ou num terno etc.; d) não estejam de acordo com informações, como o vidro de mel de 500 ml que só tem 400 ml; o saco de 5 kg de açúcar que só tem 4,8 kg; o caderno de 200 páginas que só tem 180 etc.; e) façam os serviços apresentarem características com funcionamento insuficiente ou inadequado, como o serviço de desentupimento que no dia seguinte faz com que o banheiro alague; o carpete que descola rapidamente; a parede mal pintada; o extravio de bagagem no transporte aéreo etc.  Os vícios podem ser aparentes ou ocultos. Os aparentes ou de fácil constatação, como o próprio nome diz, são aqueles que aparecem no singelo uso e consumo do produto (ou serviço). Ocultos são aqueles que só aparecem algum ou muito tempo após o uso e/ou que, por estarem inacessíveis ao consumidor, não podem ser detectados na utilização ordinária.  O defeito, por sua vez, pressupõe o vício. Há vício sem defeito, mas não há defeito sem vício. O vício é uma característica inerente, intrínseca do produto ou serviço em si.  O defeito é o vício acrescido de um problema extra, alguma coisa extrínseca ao produto ou serviço, que causa um dano maior que simplesmente o mau funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago - já que o produto ou serviço não cumpriram o fim ao qual se destinavam. O defeito causa, além desse dano do vício, outro ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral e/ou estético e/ou à imagem do consumidor.  Logo, o defeito tem ligação com o vício, mas, em termos de dano causado ao consumidor, é mais devastador.  Temos, então, que o vício pertence ao próprio produto ou serviço, jamais atingindo a pessoa do consumidor ou outros bens seus. O defeito vai além do produto ou do serviço para atingir o consumidor em seu patrimônio jurídico mais amplo (seja moral, material, estético ou da imagem). Por isso, somente se fala propriamente em acidente, e, no caso, acidente de consumo, na hipótese de defeito, pois é aí que o consumidor é atingido1.  Vejamos agora dois exemplos que elucidam a diferença entre vício e defeito. Exemplo 1 Dois consumidores vão à concessionária receber seu automóvel zero--quilômetro. Ambos saem dirigindo seu veículo alegremente. Os consumidores não sabem, mas o sistema de freios está com problema de fábrica.  Aquele que sai na frente passa a primeira esquina e segue viagem. No meio do quarteirão seguinte, pisa no breque e este não funciona. Vai, então, reduzindo as marchas e com sorte consegue parar o carro encostando-o numa guia.  O segundo, com menos sorte, ao atingir a primeira esquina, depara com o semáforo no vermelho. Pisa no breque, mas este não funciona. O carro passa e se choca com outro veículo, causando danos em ambos os carros.  O primeiro caso, como o problema está só no freio do veículo, é de vício. No segundo, como foi além do freio do veículo, causando danos não só em outras áreas do próprio automóvel como no veículo de terceiros, trata-se de defeito.  Exemplo 2 Um consumidor compra uma caixinha longa-vida de creme de leite. Ao chegar em casa, abre-a e vê que o produto está embolorado. É vício, pura e simplesmente.  Outro compra o mesmo creme de leite. Abre a caixa em casa, mas o faz com um corte lateral. Prepara um delicioso strogonoff e serve para a família. Todos têm de ser hospitalizados, com infecção estomacal. É caso de defeito.  É, portanto, pelo efeito e pelo resultado extrínseco causado pelo problema que se poderá detectar o defeito.  Conclusão  Por fim, lembro que o CDC trata vício de maneira muito diferente de defeito, inclusive no que respeita ao agente que pode ser responsabilizado, aos prazos etc.  E o chamado acidente de consumo, naturalmente, está relacionado com o defeito, sendo mais devastador e podendo atingir terceiros que não participavam da relação de consumo como no caso relatado no exemplo nº 1 acima ou, num  outro exemplo, como ocorre numa queda de um avião sobre casas ao redor do aeroporto etc. _________ 1 Seria mais adequado dizer "mais atingido", porque, quando há vício, o consumidor já é afetado de alguma maneira, ainda que apenas no aspecto patrimonial do preço pago pelo produto ou serviço viciado.
Vivemos numa sociedade capitalista muito acelerada, na qual parece que é preciso consumir o tempo todo sem parar e com o sentido de urgência. Muitos consumidores compram demais e adquirem o que nem precisam, mas a maioria está sempre em busca do que ainda não tem e que desejam ou, pior, que precisam. É fato conhecido que muitos consumidores jamais poderão adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo. Por mais que o sistema financeiro consiga, cada vez mais, oferecer crédito para uma ampla camada da população (o que aumenta significativamente a inadimplência), muitos objetos do desejo dos consumidores continuam e continuarão inacessíveis. E o mercado sabe mexer com as expectativas e desejos do consumidor e, também, com suas frustrações. De fato, os bens de difícil aquisição, alimentam a frustração do consumidor, que sonha mas não adquire o bem desejado ou tem muita dificuldade em conseguir fazê-lo. Aliás, há aqueles que entendem que a frustração é boa para o mercado, pois, como o consumidor não consegue preencher seu "espaço interior" adquirindo mercadorias, nunca para de comprar, na tentativa  de apaziguar sua alma. Além disso, como é direito do consumidor sonhar, ele vive a ilusão da possibilidade de um dia realizar seu sonho - qualquer que seja ele: alguns mais difíceis como, por exemplo, da aquisição da casa própria perfeita; outros nem tanto, como comprar certos automóveis ou empreender lindas viagens. Mas o fato é que,  de frustração em frustração,  o consumidor vai preenchendo o vazio de sua esperança; se olhar para trás, verá o quanto não conseguiu obter. E como a esperança é forte e a ilusão também, ele acredita na sorte e participa de todo tipo de jogos para ganhar prêmios (estes ironicamente chamados de "jogos de azar"): loterias,  cassinos (quando e onde há), entra em concursos de todo tipo, adora promoções, sorteios etc.. Isto é, o consumidor é presa fácil das ofertas que prometem uma vida melhor e, de preferência,  obtida rápida e facilmente. Visto desse modo, é possível afirmar que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem nos vários tipos de produtos e serviços oferecidos: a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita;  ou a de  fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos e muitos outros, conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; a esperança de garantir o próprio futuro e, também, o da família pagando prêmios de seguros; e a de chegar nesse futuro, se aposentar e ter tempo ainda de gozar a vida, poupando de forma adequada; etc. etc. Realmente, o mercado oferece o futuro de uma vida melhor. Mas, como disse acima,  o consumidor tem pressa. E nunca teve tanta como nos dias que correm. E foi o mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não há tempo para nada; nem se pode perder tempo algum. Recebe-se à vista e paga-se a crédito, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o dia das mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem  de entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para  qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que já nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel - criadas e continua pagando as prestações de seu financiamento. Como é que diz mesmo a propaganda?: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável. Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o  empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. Claro que nem tudo é responsabilidade do fornecedor. Afinal, o consumidor compra por que quer e exercendo sua liberdade para tanto. Pergunto:  Será que o consumidor precisa adquirir muitos bens para ser feliz? E a que preço? O capitalismo não esconde suas intenções: produz e quer vender. O consumidor, cada vez mais, está sintonizado com o sistema, vivendo a esperança de um futuro  de bem-estar que decorre da aquisição de produtos e serviços. Pergunto: será que não chegou a hora do consumidor ter menos pressa e pesquisar para descobrir melhores alternativas para uma vida mais tranquila e feliz, sem ter que ficar comprando produtos e serviços sem parar?
Muito tem se falado em liberdade de expressão e seus limites,  fake news e temas ligados à comunicação. Por isso, resolvi tratar do tema da liberdade de expressão no âmbito do Direito do Consumidor, especialmente no que diz respeito à publicidade. Pergunto: a comunicação feita na publicidade comercial goza dos mesmos parâmetros da liberdade de expressão? Respondo. A liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos. Mas, esse direito, entre nós, não só não é absoluto, como sua garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que para os gregos na antiguidade era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação. Mas, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos ou oferecer produtos e serviços no mercado,  há um limite ético que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade. Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim. Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos. Em nosso sistema jurídico temos leis que controlam, em alguns setores, a liberdade de expressão na sua realidade objetiva. Veja-se, por exemplo, a imposição para que a testemunha ao depor em Juízo  fale a verdade.  Do mesmo modo, os advogados e as partes têm o dever de lealdade processual, proibindo-se que intencionalmente a verdade dos fatos seja alterada, adulterada, diminuída, aumentada etc. Esse dever de lealdade ___ em todas as esferas: administrativa, civil e criminal ___ é a ética fundamental da verdade imposta a todos. O mesmo se dá no regime de produção capitalista. Com base nos princípios éticos e normativos da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) regulou expressamente a informação e a publicidade enganosa, proibindo-a e tipificando-a como crime. No que diz respeito, pois, às relações jurídicas de consumo, a informação e a apresentação dos produtos e serviços, assim como os anúncios publicitários não podem faltar com a verdade daquilo que oferecem ou anunciam, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para, de maneira confusa ou ambígua, iludir o destinatário do anúncio: o consumidor. A lei quer a verdade objetiva e comprovada e, por isso, determina que o fornecedor mantenha comprovação dos dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação  à mensagem. Aproveito esse ponto para eliminar uma confusão corrente quando se trata de criação e verdade em matéria de relações de consumo: não existe uma ampla garantia para a liberdade de criação e expressão em matéria de publicidade. O artista goza de uma garantia constitucional de criação para sua obra de arte, mas o publicitário não. Um anúncio publicitário é, em si, um produto realizado pelo publicitário ou coletivamente pelos criadores da agência. Sua razão de existir se funda em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender. Dessa maneira, se vê que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção. Ora, como a produção primária de produtos e serviços tem limites precisos na lei, por mais força de razão o anúncio que dela fala. Repito: a liberdade de criação e expressão da publicidade está limitada à ética que dá sustentação à lei. Por isso, deve sempre falar e apresentar a verdade objetiva do produto e do serviço e suas maneiras de uso, consumo, suas limitações, seus riscos para o consumidor etc. Evidentemente, todas as frases, imagens, sons etc. do anúncio publicitário sofrem a mesma limitação. 
quinta-feira, 30 de junho de 2022

O controle dos consumidores pela linguagem

Um dos modos conhecidos de controle imposto pela chamada globalização é o da imposição linguística. Antigamente, esse método chamava-se imperialismo, ditado pelos países ricos; os demais países, hoje intitulados de emergentes, eram qualificados como subdesenvolvidos.  Trata-se de uma forma de manipulação com várias peculiaridades e que foram sendo impostas com o passar do tempo por esses  países  dominantes. Os países ricos continuaram assim e os subdesenvolvidos foram "promovidos" a emergentes. Uma vitória simbólica. Vitória dos poderosos e não dos dominados, pois como diz o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a base da violência simbólica está  presente nos símbolos e signos culturais, especialmente no reconhecimento tácito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas, como por exemplo, a mídia, a religião, a publicidade etc. Por isso, a violência simbólica propriamente dita nem é percebida como violência, mas sim como uma espécie de indicação, uma permissão ou uma proibição  desenvolvida com base em um respeito ao que "naturalmente" se faz; ela se apresenta como um modelo de conduta a ser seguida1. A produção cultural e tecnológica dos países dominantes é desenvolvida e entregue aos demais países. Assim, na atual globalização, a invasão não se faz em termos de territórios, mas de mercados. Toma-se conta do polo de consumo e, na medida em que os consumidores aderem aos produtos e serviços inventados e produzidos pela indústria e comércio dominantes, passam a se comportar como esses detentores do poder global querem que eles se comportem. Quanto aos produtos e serviços, vale de tudo, desde um refrigerante até os chamados "produtos culturais", tais como filmes de cinema, enlatados de tevê e demais redes,  séries, programas etc. E um dos modos mais eficientes de dominação, como acima antecipei,  é o do uso da linguagem. Para ficarmos com a posição de Bourdieu, o uso de palavras e expressões pelos dominadores (os que vêm de fora ou que estão mesmo dentro da comunidade) é um dos modos mais eficientes de controle. Meu  amigo Outrem Ego gosta muito de brincar com esse poder que a língua  estrangeira tem, especialmente, o anglicismo (que no mais das vezes aparece  escondido no termo "estrangeirismo") e que tem uma origem e direção: a língua inglesa. Numa conversa sobre o tema, ele me disse: "Minha filha me contou que seu boyfriend foi até o shopping center de bike. Ela estava lá, esperando por ele, na pista de skate, que fica em frente a um outdoor. Quando ele chegou, foi que ela reparou que ele tinha um piercing na barriga, pois estava quase sem camisa por causa do vento. Parecia até que queira fazer strip tease. Brincando, ela perguntou se ele não queria fazer de vez um topless e aproveitar para arrancar o apetrecho do umbigo e colocar um band-aid no lugar. Ele riu e disse que estava tudo bem com ele, pois tinha feito um checkup recentemente. Daí eles encontraram outro casal e entraram correndo para comer numa lanchonete fast food. Ela comeu um hamburger, no qual passou ketchup e bebeu uma coca-cola light. Ele deglutiu um cheeseburger bacon e tomou um milk-shake de chocolate. De sobremesa, ela comeu um cupcake de blueberry e ele um sundae de creme. Os outros dois amigos, que sentaram na mesma mesa da praça de alimentação, haviam ido a lugares diferentes: ela foi a um restaurante self-service e de lá levou uma caesar salad e um smoothie de morango. Ele variou: pegou um tuna wrap num lugar, uma porção de onion rings em outro e bebeu um suco detox. De sobremesa, ela tomou frozen yogurt e ele um cookie de chocolate". Ele concluiu sua fala: "Isso não é fake news". Como se sabe, a linguagem é um sistema aberto e, naturalmente, cada língua, de um jeito ou de outro, recebe influência externa. Não há necessariamente um mal nisso até porque é inevitável. Muitas vezes, inclusive, a língua pátria acaba por fazer uma adaptação. No caso brasileiro, são muitas as palavras aportuguesadas (ou abrasileiradas), tais como abajur, futebol, purê, batom, chofer, baguete, ateliê, bife, boate, sutiã etc. Mas, de fato, chama a atenção a enorme quantidade de termos em inglês que passou a fazer parte do dia a dia do mercado de consumo brasileiro, com muita naturalidade, a indicar, como acima referi, de um lado o poder de controle dos americanos e ingleses e, de outro, uma aceitação passiva do modelo. Uma simples passada d'olhos no mercado brasileiro mostra uma interminável sucessão de termos ingleses. Nem preciso ficar na tecnologia, com iphones, smarthphones, blue-rays etc. ou nos computadores e seus inputs, outputs, backups,  mouse, scanner, software, hardware, etc. ou, ainda, na internet e redes sociais com o skype, facebook, o twitter, as hashtags etc. Na área dos automóveis e demais veículos é incrível: os automóveis possuem transmissão automática H-matic com shiftronix, freios ABS, ar condicionado com AQS (Air quality control system), tração 4X4 full time, air-bags, pneus radiais com banda larga all season passenger, blue tooth, bluemediatv, bancos de couro premium,  e muitos outros adereços, em inglês, claro. O novo Honda Fit permite uma acomodação dos bancos da seguinte forma: modo utility, modo tall, modo long e modo refresh.  Capisce? __________ 1 O Poder simbólico. Lisboa: Edições 70, passim.
O Estado arrecada impostos para poder cuidar da população. Para oferecer segurança, atendimento médico e hospitalar, saneamento básico, educação etc. E, naturalmente, o que se espera é que os serviços oferecidos sejam claros, honestos, eficientes e universais. Muito bem. Hoje proponho que façamos uma reflexão sobre o serviço público que envolve ruas, avenidas, veículos, controle do tráfego etc. Há serviços em todas as esferas de poder: municipal, estadual e federal. E há maus e bons serviços. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o serviço de  coleta de lixo é bom. Aliás, quer o munícipe pague a taxa de lixo ou não, o serviço continua sendo prestado, como tem que ser. Já o asfaltamento de ruas é inacreditavelmente ruim. Não sei se a capital paulista seria a cidade com o maior número de buracos do mundo. E penso que ninguém fez essa conta. Mas, tendo em vista a extensão da cidade, provavelmente, seja. Deveria estar no Guinness! São milhões, talvez bilhões de buracos. E o valor das taxas e impostos coletados são altíssimos. Mas, não revertem em pavimentos adequados. O consumidor tem seus veículos estragados todos os dias: pneus furados, rodas quebradas, amortecedores arruinados etc. Responsabilidade civil objetiva da prefeitura e sem o devido ressarcimento. E os radares instalados, escondidos ou não. São centenas. Sim, servem para prevenir acidentes, mas, como se sabe, alguns também funcionam bem na arrecadação. Esses aparelhos são frutos da alta tecnologia. A propósito, pergunto: por que não se usa a tecnologia em benefício da população? Seria muito bem-vinda nesse setor. Nas noites, os cruzamentos das ruas e avenidas tem semáforos funcionando sem que haja veículos atravessando. Não só é perda de tempo absoluta, como é perigosíssimo parar em vias desertas, por causa dos assaltos.  Antigamente, o condutor olhava a via transversal e como estava tudo deserto, ultrapassava o sinal vermelho com o devido cuidado. Na atualidade, não pode fazer isso, pois não sabe se há algum radar oculto ali, esperando a passagem. Ora, porque não se instalam "semáforos inteligentes": se não há veículo se aproximando, ele permanece no vermelho. Só muda para o verde, quando aparecer algum. Evitaria perda de tempo e risco de assalto com todas as consequências daí decorrentes. Custaria caro?  Talvez, mas os benefícios são evidentes. Os radares também custam e estão bem instalados.
quinta-feira, 9 de junho de 2022

As características dos contratos de consumo

Como, de vez em quando, ainda surgem disputas a respeito da validade ou não de cláusulas contratuais em matéria de consumo, volto a tratar do assunto para lembrar dos fundamentos que sustentam os contratos que envolvem relações jurídicas de consumo. Olhemos, então, um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E essa sociedade tem uma origem bastante remota que precisamos pontuar, especialmente naquilo que nos interessa para entender a chamada sociedade de massa, com sua produção em série, na sociedade capitalista contemporânea. Parto do período pós-Revolução Industrial. Com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para mais pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização de produtos e serviços. Essa produção homogeneizada, "standartizada", em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção é um modelo que deu certo; veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial teve um incremento, e na Segunda Guerra Mundial se solidificou. A partir da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações, a melhoria dos transportes etc., o modelo se fortaleceu ainda mais e cresceu em níveis extraordinários. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passou a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos se pudesse considerar a noção de globalização. Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo, destaca-se uma que interessa ao presente artigo: a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e se a reproduz milhares, milhões de vezes. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta certa quantia em dinheiro na criação de um único modelo, e depois o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas. Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade, quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Quem planeja a oferta de um serviço ou de um produto qualquer, por exemplo, financeiro, bancário, securitário a ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o imprime e distribui milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele  que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela Lei n. 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor: no seu art. 54 está regulado o contrato de adesão. E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços, o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. Numa relação típica de direito privado, o pressuposto é o de que as partes negociam as condições do negócio, sendo que as cláusulas contratuais devem refletir o que foi combinado previamente entre as partes. Então, quando nos referimos às relações contratuais privatistas, estamos fazendo uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que devem representar a vontade das partes que lá estavam, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E, uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, o pacto deve ser respeitado. Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é completamente equivocado, porque o consumidor não se senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC passou a controlar, e de forma inteligente. Logo, em contrato de consumo deve-se esquecer o brocardo pacta sunt servanda.
quinta-feira, 2 de junho de 2022

Será que a LGPD pode salvar o consumidor?

Será que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais salva o consumidor ou está tudo perdido? Já tratei do tema aqui, antes da edição da LGPD. Foi a respeito das informações públicas e privadas. Volto, pois, ao assunto com o texto fictício e humorístico, mas que mostra onde poderíamos chegar. Segue o diálogo para nossa reflexão. O telefone toca: - Alô! De onde falam? -  É do Google's Pizza. -  Ah, desculpe, foi engano. Aí não era a Pizzaria Mais Sabor? -  É aqui mesmo. O Google comprou. E as pizzas estão mais saborosas ainda... - Então tá! Anote meu pedido, por favor. - O senhor vai querer a de sempre? - Sim... Bem, você tem marcado aí o que eu costumo pedir? - Um momento. A planilha ligada a seu número de telefone aponta que nas últimas 8 chamadas, o senhor pediu uma grande, meia calabresa meia margherita, massa grossa. - É isso mesmo que eu quero... - Mas, um momento. Vejo que o senhor também pede por uma outra linha, a de final 8932. E por ali, nos últimos 4 pedidos, o senhor pediu uma grande de muzzarela. - É da casa da minha mãe, e ela não gosta de calabresa. Mas, eu gosto. Pode mandar meia calabresa, meia margherita. - Bem, posso sugerir, desta vez, uma mais leve? Tipo, meia ricota, meia rúcula com tomate seco, massa fina? - Irgh! Cruz credo! Nem parece pizza! - Não queremos ser estraga prazer... Mas, é que... Seu colesterol está elevado... - Como você sabe? - No cruzamento de sua linha com seu CPF e os cadastros de exames aos quais temos acesso, vejo aqui na sua planilha de saúde, que o senhor precisa se cuidar... Aliás, foi o que o cardiologista deve ter dito na consulta que o senhor fez no mês passado... - Ok, mas eu quero minha pizza! Estou tomando os remédios direitinho. - Desculpe-me, mas vejo que o senhor não tem tomado remédio regularmente. Pelo nosso banco de dados comerciais, faz 2 meses que o senhor adquiriu uma caixa com 30 comprimidos para colesterol com desconto na Rede Drogasil, onde é cadastrado. A receita médica mandava tomar 1 comprimido por dia. Logo, o senhor não está tomando seus medicamentos... - Posso ter comprado em outra farmácia! - Até pode, mas o senhor faz todos seus pagamentos com seu Cartão Mastercard Black, final 4804, e vejo que a última compra de medicamento foi mesmo há 2 meses. - Agora eu te peguei. Posso ter pago em dinheiro! -  Dinheiro? Só se pediu emprestado para alguém, pois o senhor não está acostumado a fazer retiradas no banco... - Ah, agora você falhou. Eu retiro todo mês R$1.200,00! - Sim, mas é para pagar sua ajudante doméstica. E, sem querer ser chato... o Senhor poderia aumentá-la um pouco. Faz tanto tempo que ela trabalha na sua casa... - Como você sabe? - Ora, os dados do e-social demonstram isso. - Eu vou desligar. Não quero mais pizza! - Calma, senhor. Nós utilizamos essas informações apenas com a intenção de ajudá-lo. - Bem, mas não tá ajudando... - Desculpe. Acho que deveria ter ido mais devagar com o senhor. Veja como nós nos preocupamos. Na última vez que o senhor passou no pedágio, a câmara lá instalada  deixou transparecer uma certa saliência em sua barriga... - Como? - E agora... Espere um pouco... Sim, pela câmara da padaria que o senhor frequenta, posso confirmar que sua barriga cresceu muito no último ano. Ah... Chegou a resposta: o senhor parou de ir à academia, porque agora tem que ir mais cedo ao seu trabalho... - Chega. - Espere mais um pouco. Eu tenho uma oferta pro senhor. A Google's Academia tem várias instalações e uma é bem pertinho de sua casa. O senhor pode começar a fazer esteira amanhã mesmo à noite. Nós oferecemos um bom desconto na primeira mensalidade. O senhor pode voltar a fazer esteira 3 vezes por semana, como fazia antes... - Chega! Estou cheio de vocês. De Google, de Facebook,  de Twitter, de WhatsApp, dessa falta de privacidade. Vou fugir para uma ilha deserta no meio do pacífico, onde não haja nada disso! - Entendo senhor... Mas tem uma última coisa. - O quê??? - Seu passaporte está vencido!
quinta-feira, 26 de maio de 2022

A preponderância dos cartões de crédito

Uma das características da sociedade capitalista atual é a dos pagamentos das compras feitas com cartão de crédito, algo muito bem engendrado e implantado no sistema. Há muitos anos, no início da década de oitenta, tive a oportunidade de participar de um curso oferecido por um banco internacional sobre concessão de crédito de massa  e sua cobrança (isto é, cobrança de créditos do varejo; também de massa, portanto, e no qual se incluem dívidas de cartões de crédito). Das várias exposições expostas, uma sobre cartões de crédito é bastante interessante: o professor perguntou aos presentes quais eram as prioridades do consumidor no que dizia respeito ao pagamento de suas dívidas: "Quando ele recebe seu salário no fim do mês, o que ele escolhe pagar em primeiro lugar?". Nós respondemos que, logicamente,  pela ordem de importância: medicamentos, alimentação, serviços públicos essenciais como energia elétrica, água e gás, escola do filhos, aluguel da casa etc. O professor, então disse: "É isso mesmo! O consumidor estabelece uma escala de prioridades. Ele, consciente ou inconscientemente, constrói uma pirâmide de prioridades. No topo estão os itens de primeira necessidade e na medida em que se desce a montanha vão aparecendo os débitos menos necessários ou menos urgentes. É natural, portanto, que os débitos com os bancos estejam na base da pirâmide. Ele paga todo mundo apenas se tiver dinheiro para tanto". Na sequência, o professor, que era Diretor de um grande banco, apresentou o pulo do gato: "Nós, que trabalhamos nos bancos, temos de dar um jeito de inverter a pirâmide. Temos de colocar no topo nossos créditos. E dá para fazer: basta conseguir colocar o cartão de crédito em todas as operações existentes. No comércio, na indústria, na prestação de serviços, o que inclui médicos e hospitais, e até nas escolas, nos serviços públicos etc. Como o cartão será o instrumento mais importante do poder de compra do consumidor, a primeira coisa que ele deverá fazer quando receber seu salário será pagar sua fatura.  Estaremos no topo da pirâmide". É isso! Atualmente, já se pode pagar quase tudo com cartão de crédito. Existe uma verdadeira invasão de cartões, uma superexposição ao cartão de crédito; inclusive, os grandes estabelecimentos comerciais se utilizam de seu próprio cartão. Quem ainda não cansou de ouvir o caixa dizer: "Você tem cartão de crédito X?". Aliás, não é incomum, o consumidor possuir mais 4, 5, 6 ou mais cartões. De fato, tendo em vista sua praticidade, o cartão de crédito talvez seja o exemplo mais representativo da evolução das formas de pagamento na sociedade de consumo. O pagamento em moeda corrente e mesmo através do cheque foi sendo substituído pelo chamado "dinheiro de plástico". E isso por uma série de facilidades que ele oferece, além daquelas apresentadas pelo expositor. O cartão poupa o consumidor das complicadas tarefas de assinar contratos para obtenção do crédito; idas e vindas aos bancos; permite compra sem dinheiro, enquanto este está em alguma aplicação financeira ou ainda não chegou; colabora com o controle do orçamento doméstico, uma vez que o extrato aponta todas as compras feitas; além de uma série de outros benefícios e serviços oferecidos pelos administradores (seguros automáticos, saque de dinheiro etc.). Tudo isso, é claro, aliado à enorme facilidade que é ter no bolso apenas um pequeno documento de plástico, substituindo papel moeda, talão de cheques etc. Como no Brasil os juros cobrados pelos administradores dos cartões ainda são elevados, nem todas essas vantagens estão implementadas. O consumidor acaba fugindo do financiamento - aliás, deve fazê-lo para não correr o risco de se endividar1 --, e o cartão de crédito acaba funcionando mais como um cartão de compra. E, ademais, por isso mesmo, o cartão tem também sido usado na função de débito, firmando-se cada vez mais como um instrumento de compra e não de financiamento. Mas, sem dúvida, não dá para viver sem eles. __________ 1 O lado negativo do uso excessivo do cartão de crédito é exatamente este: o consumidor acaba se perdendo nas aquisições à prazo, se descontrola e se endivida ou, pior, se superendivida.
Recentemente, surgiu um debate nas redes sociais, acerca da possível revogação de parte da lei 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais- LGPD) e que envolve o legitimo interesse, por força da Emenda Constitucional  115/22 (EC 115/22), que alterou a Constituição Federal (CF) para incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais e para fixar a competência privativa da União para legislar sobre proteção e tratamento de dados pessoais. Perguntamos: o conceito de legítimo interesse da LGPD foi atingido pela EC 115/22? Pensamos que não, conforme a seguir exposto.  Lembremos a alteração trazida pela EC: incluiu no artigo 5º o inciso LXXIX: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LXXIX - é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais." No artigo  21, o inciso XXVI: "Art. 21. Compete à União: (...) XXVI - organizar e fiscalizar a proteção e o tratamento de dados pessoais, nos termos da lei." E no artigo 22 foi acrescido o inciso XXX: "Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XXX - proteção e tratamento de dados pessoais."   Como se sabe, a LGPD surgiu para regulamentar a forma de tratamento de dados pessoais, trazendo licitude e segurança às pessoas. Um dos requisitos legais previstos na lei e que legitima o tratamento dos dados pessoais é o legitimo interesse, previsto no artigo 7º, IX. Além dele, a LGPD ainda traz mais nove requisitos para tratamento de dados pessoais e outros oito para o tratamento de dados pessoais sensíveis. Assim, o legitimo interesse é uma das bases legais prevista na LGPD que permite ao controlador tratar dados pessoais sem o consentimento do titular. É uma garantia de extremo valor e, às vezes, a única base que pode ser efetivamente usada. Diz o texto legal: "Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: (...) IX - quando necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiro, exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais;"  Não há, pois, impedimento para a utilização do legitimo interesse, desde que não haja infração aos direitos dos titulares. Mas, também não é uma carta branca para o agente de tratamento fazer uso dos dados de forma indeterminada. O uso está limitado pelo princípio da responsabilização e da prestação de contas. É o que determina o artigo 10 da lei, ao estabelecer o uso exato do legitimo interesse, nos seguintes termos: "Art. 10. O legítimo interesse do controlador somente poderá fundamentar tratamento de dados pessoais para finalidades legítimas, consideradas a partir de situações concretas, que incluem, mas não se limitam a: I - apoio e promoção de atividades do controlador; e II - proteção, em relação ao titular, do exercício regular de seus direitos ou prestação de serviços que o beneficiem, respeitadas as legítimas expectativas dele e os direitos e liberdades fundamentais, nos termos desta Lei. (grifamos)" Note-se que a intenção do legislador foi trazer um conceito aberto de legitimo interesse, de tal forma que o controlador consiga amoldar essa base legal às diversas situações que possam existir na prática, desde que a finalidade para o tratamento de dados seja legítima. O que, de fato, essa base legal exige, é que o controlador avalie os seus interesses em relação aos direitos e liberdades fundamentais do titular por meio da chamada "avaliação do legítimo interesse". Ou seja, o controlador precisa avaliar se seus interesses suplantam ou não os direitos e liberdades fundamentais do titular. Ora, o fato da proteção de dados ser uma garantia fundamental não quer dizer que esse direito seja superior a qualquer outro. É necessária uma ponderação de valores em relação aos direitos envolvidos. A discussão que veio à baila baseia-se no argumento de que teria havido uma revogação do legítimo interesse, pelo simples fato de que foi reconhecida a proteção de dados pessoais como direito fundamental, por força da EC 115. Ou seja, por se tratar de uma proteção constitucional, o controlador estaria proibido de tratar os dados pessoais com base em seu próprio legítimo interesse. No entanto, basta uma leitura do texto constitucional para ver que isso não ocorreu. Em momento algum existe um choque entre o que foi introduzido na CF e o que está estabelecido na LGPD. Ademais, as alterações deixam patente que a proteção dos dados pessoais é estabelecida "nos termos da lei". Lei esta que já existe: é a LGPD. Apenas uma alteração na LGPD ou com a edição de uma nova lei que cuide do assunto o quadro pode ser alterado. Portanto, está claro que a proteção de dados é uma garantia fundamental. E o legítimo interesse pode ser usado, exceto, como diz a lei, no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais. Se ao fazer o balanceamento dos direitos, não houver violação, o legítimo interesse será válido.
quinta-feira, 5 de maio de 2022

E agora? Sanduíche fake?

E agora? Sanduíche fake?  Se já não bastassem os problemas com carboidratos, proteínas, gorduras, calorias etc. que atingem os consumidores crianças, jovens, adolescentes, adultos, idosos, enfim, todos os consumidores,  a cada dia fica mais claro que, na sociedade capitalista contemporânea, que só conhece o lucro e só pensa nele, muitos produtos vendidos são falsificados, adulterados e deteriorados. E, quem diria, duas enormes redes mundiais de fast food foram pegas no flagra oferecendo o que não entregam: após denúncia do Procon, o McDonald's retirou de seu cardápio em todo o Brasil os dois sanduíches da linha que seria de picanha. O corte da carne estava apenas no nome. "Pedimos desculpas se o nome escolhido gerou dúvidas e informamos que estamos avaliando os próximos passos", declarou o McDonald's. E o Burger King foi intimado pelo Procon para retirar de seu cardápio o sanduíche Whopper Costela, que não contém o ingrediente "costela". A decisão do órgão de defesa do consumidor foi baseada na publicidade fornecida pela própria página da rede, segundo a qual o lanche é feito de "carne de porco com aquele aroma inconfundível de costelinha". Incrível, não é? Em pleno século XXI, com 31 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor que proíbe publicidade enganosa e a tipifica como crime (arts. 37 e 67, respectivamente), ainda assistimos esse tipo de violação feita abertamente. No caso do McDonald's há confissão de que oferecia o que não entregava, o que parece ser a mesma situação do Burger King. Agora, eu pergunto: e os demais sanduíches, será que contém mesmo aquilo que oferecem. Será que há frango ou galinha no sanduíche de frango dessas duas redes? Ou nos nuggets? Como podemos acreditar? E os sanduíches veggies são mesmo vegetarianos? Só fazendo perícia.  Não se trata apenas de se "vender gato por lebre". Nos casos citados, sim, estavam vendendo algo que não entregavam, mas como sempre lembro, há muitos produtos autênticos que fazem mal por suas próprias substâncias, por falta de informação ou por informação imprecisa etc.  Aliás, como identificar se o produto alimentício é bom? Realmente, é difícil. Em boa parte das vezes, o consumidor se serve dos olhos e do nariz: aparência e cheiro são boas alternativas para se aferir qualidade, mas nem sempre dá certo. E acaba restando a apresentação, a oferta e a publicidade...
quinta-feira, 28 de abril de 2022

A sempre atual questão do meio ambiente

O tema nunca sai da pauta. Fala-se em aquecimento global, poluição dos rios e dos mares, destruição da fauna e das florestas etc. Muitos dirigentes estrangeiros apontam a tal da internacionalização de nossa Floresta Amazônica. Muito bem. Obviamente, todos devem ser contra a destruição da Floresta Amazônica ou de qualquer outra floresta. Mas, na questão da internacionalização, temos que pensar para descobrir do que se trata. Afinal, em época de fake news, no que devemos acreditar? Já comentei aqui neste espaço o assunto e retorno a ele por sua atualidade. Citarei um trecho de um antigo Programa de tevê, "Provocações", apresentado por Antônio Abujamra: é a narrativa da fala do professor Cristovão Buarque numa Universidade americana em 2001. Num simpósio nos Estados Unidos foi feita uma pergunta sobre o que ele pensava da internacionalização da Amazônia. Quem perguntou disse que aguardava a resposta de um humanista e não de um brasileiro. Eis trechos da resposta: "Como brasileiro, eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que os nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso." "Como  humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, eu posso imaginar a sua internacionalização, como também de tudo mais que tenha importância para a humanidade." "Se sob uma ética humanista, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço." "Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Isso. Internacionalizar o capital financeiro dos países ricos. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono ou de um país." "Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais, Nós não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação." "Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar que esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural amazônico, seja manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país." "Neste momento, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns Presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos da fronteira dos Estados Unidos. Por isso, eu acho que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada; pelo menos Manhattan deveria pertencer a toda humanidade, assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife; cada cidade com sua beleza específica, sua história do mundo deveria pertencer ao mundo inteiro." "Se os Estados Unidos querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixa-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos Estados Unidos, até porque eles já demostraram que são capazes de usar essas armas provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil." "Nos seus debates, os candidatos à Presidência dos Estados Unidos têm defendido a ideia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do mundo tenha a possibilidade de comer e de ir à escola." "Internacionalizemos as crianças, tratando todas elas como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro, ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como patrimônio da humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar ou que morram quando deveriam viver." "Como humanista, eu aceito defender a internacionalização  do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, eu lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa."
quinta-feira, 14 de abril de 2022

O desprezo pelo cliente e o dano moral

Num artigo recente, eu cuidei dos problemas do pós-venda que os consumidores enfrentam. Logo em seguida, recebi de um amigo um relato envolvendo exatamente esse ponto da relação fornecedor/consumidor. Apresento, na sequência, o acontecimento e as implicações jurídicas. Em fevereiro deste ano, meu amigo adquiriu uma nova geladeira que, como não poderia deixar de ser, foi produzida por um grande fabricante. Recebeu-a em casa dentro do prazo prometido, mas depois de um mês ela parou de funcionar. Depois de muito custo, ele conseguiu falar com um atendente do SAC da fabricante. Foi prometido um retorno, o que somente ocorreu 3 dias depois. E foi enviado um técnico para examinar o produto 4 dias após o retorno. Na visita, o técnico detectou um problema no compressor que teria que ser trocado. Daí informou que demoraria pelo menos 8 dias. Os 8 dias já se passaram e até este momento em que eu escrevo, a geladeira não foi consertada. Meu amigo tem filha pequena e sua esposa está doente. Ela toma medicamentos que necessitam ser guardados em baixa temperatura, o que não pode ser feito pela falta da geladeira. De todo modo, lembro que a geladeira é e sempre foi um produto essencial. Por isso, pela Lei, seu conserto ou troca não está nem pode estar sujeito à prazos (Código de Defesa do Consumidor, art. 18, §3º). A saída para o consumidor lesado numa questão como essa é a propositura de ação de indenização por danos morais, na medida em que o sofrimento enfrentado por ele é evidente. Some-se a isso a angústia vivida por não saber quando poderia contar com o produto essencial adquirido. Infelizmente, a jurisprudência em casos como esse mostra que os valores de indenização fixados são muito baixos. Estão entre R$2.000,00 e R$5.000,00. E, como eu sempre digo, fixar indenização por danos morais contra grandes fornecedores, em valores módicos, pode ser um estímulo para que o comportamento inadequado jamais se modifique. É preciso lembrar que na fixação da indenização por danos morais, o aspecto punitivo, o porte do infrator e a possibilidade de que ele venha a causar o  mesmo dano são fundamentais para que sirva de freio. Não importa que o valor elevado possa gerar bons benefícios ao consumidor violado. O que vale mesmo é punir o infrator para que ele corrija seu comportamento e não volte mais a gerar o mesmo dano aos demais consumidores. Só assim esses grandes e poderosos fabricantes mudarão o comportamento.
quinta-feira, 7 de abril de 2022

A oneomania ou doença das compras sem fim

O vício é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. E existe um vício contemporâneo, que é fruto da sociedade de consumo em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e também é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como viciada. A pessoa compradora compulsiva é aquela que se satisfaz não com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode literalmente adquirir qualquer coisa que lhe surja na frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra a satisfará. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, esse tipo de pessoa é uma  consumidora típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares que as demais. Daí, ela acaba comprando imoderadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ela mesmo quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, artigos de luxo etc. e com isso, às vezes, nem ela nem as demais que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de colecionadora. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. A partir da segunda metade do século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação para as compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica. Na atualidade, com a espetacular utilização da web/internet (com ou sem o período de pandemia, que só ajudou a fortalecer o meio), não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de dentro do lar, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line (ted e pix), os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele. Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, pode-se dizer que o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer pessoa mais ou menos avisada, já que as armadilhas estão muito bem engendradas. Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância. É importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento das demais, para tentar detectar a doença. Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo ou a compradora compulsiva adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele ou ela não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. Essa pessoa gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. É claro que, se o comprador ou a compradora com oneomania for uma pessoa de posses e puder gastar muito dinheiro, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize. Assim, um outro modo  de  identificação da doença está em verificar o excesso da compra de bens, que jamais são usados. Como já fiz antes neste espaço, encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em algumas cidades brasileiras os grupos de autoajuda intitulado "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", que acolhem os doentes pessoalmente ou virtualmente (on line). Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.
Imagine que o consumidor chegue em uma loja, compre uma calça, pague e, na hora de recebê-la, o vendedor diz que ela já foi localizada e em alguns dias ele poderá ir buscá-la. Ou imagine qualquer compra em que se prometa a entrega para certo dia e ela nunca chegue. Não nos esqueçamos de que em qualquer compra - entregando-se ou não na hora - o consumidor tem sempre de pagar primeiro - ou firmar um financiamento primeiro; o consumidor sempre paga antes de receber o produto que adquiriu. Há muita pressão para que uma venda seja feita. Todavia, alguns fornecedores comportam-se como se após a entrega do produto ou do serviço, a relação com o consumidor estaria terminada: agem como se não tivessem mais nada com o comprador. Mas, não é assim que funciona.  Nas relações de consumo de compra e venda de produtos e, também,  de serviços,  pode-se dividir a operação em três fases: a pré-venda, a venda em si e o pós-venda. Essas três fases variam de acordo com o tipo de serviço ou de produto: na aquisição de um automóvel zero quilômetro é de um jeito e na prestação de um serviço médico e hospitalar é de outro totalmente diferente etc. Aliás, por falar em serviços médicos e hospitalares, lembro que muitas vezes o pós-venda (no caso, pós-prestação do serviço) é tão ou mais importante que a venda ou a prestação do serviço em si: o acompanhamento de um paciente operado no pós-operatório é essencial. Enfim, as três fases estão interligadas e a importância de cada uma está relacionada ao tipo de negócio envolvido. Infelizmente, muitas empresas não se preparam para o pós-venda. Pensam apenas em faturar e nem se organizam para resolver de forma rápida e inteligente os problemas que surgem. É mesmo pura incompetência e falta de investimento correto e, pelo que se pode ver, desprezo pelas leis e pelos consumidores. Talvez uma aposta na falta de controle e punição. E assusta perceber que grandes indústrias atendem muito mal o consumidor que teve algum tipo de problema. Por exemplo, na linha branca: o consumidor adquire uma geladeira, que apenas alguns dias após a entrega deixa de funcionar. Esse produto é essencial. O vício tem que ser resolvido de pronto. No pós-venda se exige velocidade na resolução dos problemas com equipes específicas para com eles lidar. Em caso de vício de um produto essencial, a empresa tem que estar organizada para fazer a troca imediatamente. Além disso, os fornecedores devem criar um sistema de benefícios para indenizar o consumidor que teve algum tipo de dano, sofreu o atraso na entrega ou teve a compra cancelada pela falta do produto etc. Esses benefícios devem ser tais que realmente possam gerar conforto e satisfação ao consumidor lesado. E, naturalmente, a ação que resolva o problema tem que ser acompanhada de um pedido formal de desculpas.
Um dos temas mais debatidos nos últimos tempos é o da verdade em termos de comunicação social. Fala-se em fake news o tempo todo. E há uma disputa sobre o que é verdade e o que é mentira. Esse imbróglio parece ser algo moderno, atual, ligado à web/internet e redes sociais. Mas, vem de longe. Escrevo este artigo - cujo tema já aqui abordei - para mostrar que a questão da manipulação da verdade e dos fatos e do controle sobre as pessoas (e, naturalmente, consumidores) é bem antiga. Para tanto, vou me utilizar do livro de Michael Moore, "Adoro Problemas"1. O autor, com bom humor, conta que, quando nasceu, na década de 1950, estando na maternidade, descobriu que ao invés dos seios de sua mãe, impingiram-lhe e também a seus colegas bebês mamilos falsos de borracha:. "Na década de 1950, os hospitais se consideravam como a vanguarda da sociedade moderna do pós-guerra. E convenciam as mulheres hospitalizadas de que ser 'moderna' significava não dar de mamar ao seu bebê, que amamentar era antiquado e inútil. As mulheres modernas usavam mamadeira!2 "Convenceram nossas mães de que se um alimento vinha numa garrafa - ou numa lata, caixa ou saco de celofane -, então ele era de alguma forma melhor para você do que quando vinha grátis via mãe natureza."3 Depois, espantado, o cineasta americano pergunta: "Era, de fato, assim tão fácil enganar nossos pais? Se eles podiam ser enganados de modo tão fácil a esse respeito, o que mais eles podiam ser convencidos a testar? Creme de milho em lata? Grama artificial?"4 E, de fato, como é possível que isso tenha ocorrido? Ao que consta, é sabido por todos, com muita tranquilidade, da importância do aleitamento materno, mas pude constatar que, realmente, naquele período dos anos cinquenta, era "moda" usar mamadeira, desprezando-se o leite que a mãe podia oferecer. Pensei, então, que a análise do caso narrado por Michael Moore poderia permitir a elucidação do modus operandi de alguns setores do mercado capitalista no processo de enganação, controle e alienação dos consumidores, a partir da análise das técnicas implementadas pela indústria de leite como substituto do leite natural. Meu caro leitor, veja o que existe sobre o tema. Maria Lúcia Magalhães Bosi e Márcia Tavares Machado, no artigo intitulado "Amamentação: um resgate histórico"5, apresentam um panorama que permite uma análise. Inicialmente, transcrevo o que se sabe, realçado pelas pesquisadoras: "O leite materno é o alimento adequado para as crianças nos primeiros meses de vida, tanto do ponto de vista nutritivo e imunológico quanto no plano psicológico, além de favorecer o vínculo mãe-filho quando o ato de amamentar é bem vivenciado pelas mães."[6] No início do Século XX, já estavam em pleno desenvolvimento as pesquisas e a produção de alimentos que pudessem substituir o leite materno durante o período de desmame. Várias alternativas de leite de vaca, com adição de açúcar, água, cremes etc, que permitiam uma melhor digestão, foram oferecidas. "Os médicos passam a aderir às novas alternativas, prescrevendo-as como benéficas para a alimentação infantil. Essas práticas associam-se a um forte marketing focalizado nos pediatras, que passariam a desempenhar um papel decisivo como influenciadores de um novo movimento na sociedade: a 'cultura da mamadeira'."7 As autoras relatam que as indústrias de alimentos realizavam campanhas publicitárias em jornais médicos e paramédicos, visando - e conseguindo - influenciar os médicos que prescreviam as fórmulas para as mães. Assim, aos poucos e incessantemente, os produtos foram se tornando confiáveis: "No final dos anos 40, iniciando os anos 50, os produtos são apresentados como uma opção para facilitar a tarefa dos médicos que passam a prescrevê-los indiscriminadamente às mães, como a forma mais prática e viável para seus filhos."8 Nos anos seguintes, o leite em pó passou a ser recomendado e utilizado tão logo o bebê nascia. Como apontam as autoras, as estratégias para criar essa cultura da mamadeira envolviam o fornecimento de produtos lácteos aos profissionais de saúde (médicos e nutricionistas), o patrocínio de reuniões científicas, cursos de atualização e congressos, a contribuição para manutenção de revistas científicas, nas quais eram publicados anúncios constantemente etc. É de se prestar bastante atenção no esquema, que não só vingou como é utilizado abertamente pelas  grandes corporações até os dias atuais. Alguns produtos para serem aceitos pelos consumidores passam por um largo processo de "convencimento". Talvez, de início, os consumidores não se interessem, como se deu no caso narrado. "Leite em pó, com água e outros componentes numa mamadeira?", devem ter dito as mães num primeiro momento. "Não quero, prefiro que meu filho tome o que eu tenho para dar e que já está pronto". Pelo jeito, daí é que, então,  a indústria desenvolveu seu plano estratégico. Era preciso dar autenticidade ao produto; havia que se mostrar suas qualidades. Quem melhor que os cientistas para fazê-lo? Ou, na hipótese, os médicos e nutricionistas. Como os pais poderiam deles duvidar? Para convencer esses cientistas, que tal patrocinar reuniões, cursos, congressos? Subsidiam-se esses eventos, pagando-se muito bem para que os palestristas convençam o público presente da qualidade dos produtos. Esse público que, claro, já está grato por estar participando do evento de forma gratuita e que envolve passeios, jantares etc. Para edulcorar o novo conhecimento que está surgindo, que tal manter revistas científicas, pagando caros anúncios em suas páginas?  E, ao mesmo tempo, fazer publicidade em muitos outros veículos? Com esse assédio vindo de todos os lados, reforçados por frases que têm um forte apelo de verdade porque saem da boca de técnicos, cientistas, médicos e nutricionistas, ladeadas por belos anúncios publicitários que apresentam as vantagens do aleitamento artificial e com o apoio da sempre necessidade do consumidor de não estar "por fora", de andar "na moda", de estar "na onda", acaba dando certo. E esse caso é, de fato, exemplar porque mostra o poder de convencimento dos fornecedores. Se eles conseguiram convencer pais e mães que leite em pó, cheio de produtos artificias, servidos numa garrafa plástica ou de vidro era melhor que o peito da mãe, que tinha pronta-entrega do leite ideal produzido por ela mesma, podem mesmo convencer as pessoas a consumirem quase tudo. É um poder incrível. Claro que não foi tarefa fácil convencer pais e mães de que era possível abandonar a mãe-natureza no que ela tinha de próprio para os bebês e preferir o alimento artificial. Mas, funcionou, especialmente porque a tática conseguiu atrelar um produto industrial à ciência, criando uma imagem positiva e dando credibilidade às prescrições e ofertas. Eis aí, pois, mais um exemplo que tem de tudo quanto os fornecedores aprenderam e usam no esquema de oferta e venda de seus produtos e serviços. Vê-se que não se trata apenas de publicidade, mas de um largo projeto de marketing que envolve a ciência e seus profissionais, as escolas, os meios de comunicação em geral, os depoimentos de autoridades e pessoas com prestígio social - os confessionais - etc., num longo e árduo trabalho de convencimento que, quando funciona atordoa o consumidor final, de modo que ele acaba não percebendo que foi enganado. Para concluir, anoto que, no Brasil, somente a partir dos anos oitenta do século XX, ressurgiu a lógica e o caráter verdadeiramente científico do discurso que mostra as vantagens do aleitamento materno. ____________ 1 São Paulo: Lua de Papel, 2011. 2 Ibidem, p. 40. 3 Idem, p. 41. 4 Idem, mesma pág. 5 Cadernos ESP - Escola de Direito Público do Ceará, V. 1, Nº 1, Julho-Dezembro - 2005. 6 Ibidem, fl. 1. 7 Ibidem, fl. 5. 8 Ibidem, fl. 6.
Novamente, os meios de comunicação estão repletos de informações equivocadas sobre o sistema que envolve a política de preços da Petrobrás. É impressionante como não se consegue tratar de forma correta - e de acordo com a lei - essa questão. Sou, pois, obrigado a retornar ao assunto, visando demonstrar vários dos aspectos que envolvem nossa estatal. Inicialmente, anoto: a Petrobrás não é uma empresa privada, que está no mercado para agir livremente obtendo o maior lucro possível a qualquer custo e independentemente das consequências de seus atos e estratégias. Não! Ela é uma empresa pública: uma sociedade de economia mista. E como tal, tem outros deveres, outras funções muito diversas, das que têm as empresas privadas. A sociedade de economia mista (SEM), como se sabe, integra a Administração Pública Indireta. Apesar disso, é, por força de lei, pessoa jurídica do direito privado sob a forma de Sociedade Anônima, regulada e estabelecida, pois, pela Lei das S.A. A SEM pode tanto explorar atividade econômica tipicamente privada de produção ou comercialização de produtos, como pode prestar serviços públicos. Mas isso não quer dizer que uma SEM -- a Petrobrás, por exemplo -- deva atuar no mercado como uma mera empresa privada, visando exclusivamente ao lucro, utilizando de métodos capitalistas tradicionais (e, muitas vezes, altamente reprováveis) apenas e tão somente por estar estabelecida como S.A. Seus limites estão estabelecidos no próprio texto constitucional. Com efeito, o caput do artigo 173 estabelece o imperativo de segurança nacional e de interesse coletivo: "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei." O § 1º do mesmo artigo, por sua vez, permite, como acima referi, a exploração da atividade privada e a da prestação de serviços públicos: "§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:..." Também como afirmei, a SEM tem características de pessoa jurídica de direito privado, o que está firmado no inciso II desse mesmo § 1º: "II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;" Todavia, a SEM mantém características próprias das pessoas jurídicas de direito público, tais como a fiscalização pelo Estado e pela sociedade, além da exigência de licitação para contratação de obras, serviços, compras e alienações de bens,  conforme fixado nos incisos I e III do mesmo §: "I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;                          III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; " Além disso,  ela deve se valer de concursos públicos para contratação de seus empregados (art. 37, incisos I e II da CF). Muito bem. É preciso admitir que algo tão importante como o preço dos combustíveis deve ser estabelecido não apenas com os problemas enfrentados no momento presente, mas também levando-se em consideração as consequências futuras. Não parece um equilíbrio fácil de se obter, mas que deve ser buscado de algum modo. Obviamente, não estou dizendo que a SEM pode ser usada para fins diversos daqueles para os quais foi criada. Ao contrário, quando isso ocorre, trata-se de abuso de direito. Esse abuso é caracterizado, por exemplo,  quando o acionista controlador, valendo-se de sua posição privilegiada, busca atingir objetivo estranho ao do objetivo legal estabelecido na empresa. Nesse caso, há desvio de finalidade. Há também abuso no exercício do poder, quando são ultrapassados os limites impostos por seu fim econômico ou social ou mesmo quando há violação ao princípio da boa-fé objetiva e até aos bons costumes. Mas, realço. Se, de um lado, há desvio ilegal quando o acionista controlador esquece que a SEM é uma empresa privada com fins econômicos específicos e somente age em função do bem comum ou social, de outro, a busca apenas do lucro como se fosse uma empresa privada comum é também um desvio ilegal. É do equilíbrio entre essas duas situações, legalmente estabelecidas,  que se pode identificar uma boa e correta administração de uma SEM. Esse deve ser o objetivo da administração de uma Sociedade de Economia Mista: estabelecer de forma clara e equilibrada a relação entre o interesse público e o privado. Aliás, se é para agir como se a SEM fosse uma empresa privada comum, ter-se-ia que, antes, alterar o texto constitucional. Quem diz que uma empresa como a Petrobrás pode agir sem esse freio legal, desconhece ou desconsidera as normas existentes. Sei, claro, que não é fácil obter esse equilíbrio entre o interesse público e o privado, mas pergunto, como já fiz antes aqui neste espaço: não é por isso que os dirigentes dessas empresas ganham vultosos salários? Para fazer jus aos polpudos vencimentos, não devem, eles, cumprir os comandos legais?  
Amanhã, 11 de março de 2022, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) faz 31 anos de sua entrada em vigor (o que se deu em 11/3/1991). Como sempre tenho dito, a boa notícia é que o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, sempre lembrado no mês de março quando entrou em vigor; o mesmo  mês  em que também se comemora o dia mundial dos direitos dos consumidores. Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes a existência dessa lei tão importante para o exercício da cidadania no Brasil.                    E, claro, com 31 anos de idade seria de se esperar que a lei fosse cumprida por todos o tempo todo. Mas, infelizmente, não é bem assim. Com um início de vigência que, lembro-me bem, assustou empresários em geral, muitos publicitários e os grandes conglomerados em especial, aos poucos o CDC foi se firmando e deixando de ser o bicho-papão de que o acusavam  injustamente. Ao que me consta, ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como também da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento melhor qualificado, enfim, a norma fez o mercado amadurecer. Para ficarmos apenas com um exemplo: antes do CDC, a maior parte dos produtos não trazia estampada nas embalagens seu prazo de validade. Lembro-me bem que eu fiquei espantado com o prazo de validade de alguns produtos. Até água em garrafa ou em copo plástico tem curto prazo de validade! Antes da Lei 8078/90, nós consumidores, muito provavelmente, ingerimos toneladas de produtos vencidos e sorvemos milhares de litros de bebidas ultrapassadas. (Ocorre-me um fato tão terrível quanto peculiar: sou da época dos refrigerantes em garrafa -- apenas em garrafa -- e agora me vem a memória de quantas vezes, quando garoto, retirei a tampinha e com a mão limpei as marcas de ferrugem que estavam na boca da garrafa, antes de beber o refrigerante... Sabe-se lá, das vezes que adoeci, quantas não estavam relacionadas com produtos e bebidas deteriorados) Pois bem, o susto dos empresários passou. A lei teve, como tem, muito boa eficácia - ou, como se costuma dizer no Brasil, é "uma lei que pegou". Porém, ao mesmo tempo em que os consumidores passaram a ficar mais escolados em matéria de consumo, alguns maus empresários também encontraram novas fórmulas para driblar as regras estabelecidas. Não posso deixar de consignar o equívoco desses fornecedores em empreender seus negócios de forma enganosa, normalmente respaldados em programas de marketing estruturados para obter receita e lucro em detrimento do cumprimento das leis vigentes e fora do modelo instituído da boa fé objetiva (atualmente, o alicerce de todo o ordenamento jurídico). O bom fornecedor é ainda e sempre será aquele que desenvolve seu projeto de negócio, claro, visando o lucro, mas respeitando seus clientes.
quinta-feira, 3 de março de 2022

A guerra, novamente

Um dos direitos fundamentais do consumidor é o de receber e consumir informações verdadeiras. O Código de Defesa do Consumidor é expresso nesse sentido. Nos tempos atuais isso tem sido um grande problema. Está cada dia mais difícil saber quais são os fatos verdadeiros, os dados verdadeiros, as informações verdadeiras. E o mundo parece estar de cabeça pra baixo. Neste artigo pós-carnaval que não foi carnaval, falo do que está na ordem do dia. Não quero entrar na discussão sobre a alta lucratividade da indústria bélica, mas, li que os fabricantes de armamentos, bombas, mísseis, tanques, aviões de caça etc. não parecem estar interessados na paz. A guerra, portanto, tem um fortíssimo apelo comercial, eis que produz lucros fabulosos. Há, naturalmente, o risco de fuga do controle e que possa gerar um enfrentamento nuclear. Mas, isso implicaria em chance de extinção da  espécie humana e dos negócios... É mesmo difícil saber qual é a realidade. De fato, muitas vezes, a vida humana na Terra é assustadora. Estamos em pleno século XXI de promessas, que não foram cumpridas. O avanço tecnológico não impede que mosquitos conhecidos matem as pessoas ou que vírus desconhecidos produzam pandemias. E neste momento surge uma guerra novamente. Não é mesmo fácil interpretar o nosso planeta e como vivemos por aqui. Como este é um tema que nos afeta, indico abaixo alguns pensamentos envolvendo essa tormentosa situação da guerra. Começo lembrando que "na guerra, a primeira vítima é a verdade." Seguem os demais: "A humanidade tem de acabar com a guerra antes que a guerra acabe com a humanidade." John Kennedy "Em época de paz, os filhos enterram os pais, enquanto em época de guerra são os pais que enterram os filhos." Heródoto "Se matamos uma pessoa somos assassinos. Se matamos milhões de homens, celebram-nos como heróis." Charles Chaplin "Decididamente não compreendo por que é mais glorioso bombardear de projéteis uma cidade do que assassinar alguém a machadadas." Dostoiévski "A suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem lutar." Sun Tzu "É mais fácil mobilizar os homens para a guerra que para a paz." Gandhi "Nunca houve uma guerra boa nem uma paz ruim." Benjamin Franklin "Se todas as batalhas dos homens se dessem apenas nos campos de futebol, quão belas seriam as guerras." Augusto Branco "Não sei com que armas a III Guerra Mundial será travada, mas a IV Guerra Mundial será lutada com paus e pedras." Autor desconhecido
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Crônica de várias mortes anunciadas

O herói grego é trágico porque pretende lutar contra as forças do destino e como, por mais que faça, não consegue vencê-lo, ao final dá-se a tragédia. Mas, será possível vencer o destino? Nós costumamos descrever certos acontecimentos como uma fatalidade, como algo inevitável, que havia mesmo de ocorrer, fizesse o que se fizesse. Gabriel Garcia Marques, com a maestria de sempre, escreveu "Crônica de uma morte anunciada" mostrando essa faceta da inevitabilidade. O assassinato de Santiago Nasar pelos irmãos Vicario - para vingar a honra da irmã Angela - é conhecido de antemão pelos habitantes do local, mas ninguém faz nada para evitá-lo. O crime ocorre como uma fatalidade. Nós, aqui por nossas terras tupiniquins, temos assistido a uma série de situações parecidas e repetidas: todo início de ano as chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileiras; grande parte dessas catástrofes são previsíveis. No meu primeiro artigo deste ano aqui publicado (em 3/2/22) eu já abordei o tema,  pois os acontecimentos envolvendo o drama das pessoas nos alagamentos, deslizamentos de terras, quedas de barreiras, destruição de imóveis etc. em vários lugares do Brasil são o retrato de mais uma crônica de tragédia anunciada que, ao que tudo indica, infelizmente, repetir-se-á no ano que vem, assim como já aconteceu no ano  passado, no anterior, no anterior etc. Um longo etecetera de catástrofes, que poderiam ter sido evitadas. O atual caso da cidade de Petrópolis/RJ é, infelizmente, um exemplo concreto desse terrível destino. No artigo de 3/2/22 abordei a questão da responsabilidade civil objetiva do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos. Hoje abordo o tema das indenizações por danos materiais e morais relacionadas ao caso. Pensão Os familiares que são dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Do mesmo modo, a vítima sobrevivente pode pleitear pensão pelo período em que, convalescente, tenha ficado impossibilitada de trabalhar. Outros danos materiais Além da pensão, no cômputo dos danos materiais inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como, no caso de desmoronamento da habitação, seu preço ou o custo para a construção de uma outra igual e todas as demais perdas efetivamente sofridas relacionadas ao evento. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estadia e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Danos morais Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos,  que no caso dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo. De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às famílias das vítimas, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto. Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé, intenção de causar o dano, ou regularmente repete os mesmos erros. Realço, pois essa última situação, a da constatação de repetição dos mesmos erros que continuam a causar danos.
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A pessoa jurídica como consumidora - Parte II

Continuo desenvolvendo o artigo que iniciei na semana passada sobre a questão da pessoa jurídica como consumidora. Como coloquei, o CDC regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o código, independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros. Conforme também demonstrei, a situação é clara: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo, não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a prestação de seu serviço. Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis. Por causa disse, aliás, conclui o artigo na semana passada dizendo que o despachante que adquiriu o laptop para seu uso profissional está protegido pelo CDC. Aliás, complemento os exemplos para lembrar que estão na mesma condição o dinheiro e o crédito obtido no sistema financeiro. Assim, quando uma pessoa jurídica faz um empréstimo num banco a relação é típica de consumo, pois ainda que ela utilize o dinheiro como bem de produção, como este é tanto produto de consumo como de produção, a situação é igual à do exemplo do laptop. Muito bem. Há ainda uma outra norma no CDC que justifica minha teoria para explicar a definição de consumidor na relação de consumo. É a do inciso I do art. 51, especificamente a segunda parte da proposição. Mas, antes de analisá-la, desde já acrescento uma constatação: o caput do art. 2º coloca a pessoa jurídica como consumidora. Ora, afinal o que é que uma pessoa jurídica pode consumir? Pessoa jurídica não come, não bebe, não dorme, não viaja, não lê, não vai ao cinema, não assiste a aulas, não vai a shows, não assiste a filmes, não vê publicidade etc. Logo, para ser consumidora, ela somente poderia consumir produtos e serviços que fossem tecnicamente possíveis e lhe servissem como bens de produção e que fossem, simultaneamente, bens de consumo. Com a análise do inciso I do art. 51 o ciclo de minha explanação se encerra. Vejamos. A disposição normativa da segunda parte do inciso I do art. 51 foi feita exatamente pensando no consumidor pessoa jurídica, que adquire produto ou serviço de consumo para fins de produção. Trata-se de previsão legal a permitir que o fornecedor em circunstâncias especiais justificáveis possa estabelecer cláusula contratual limitando seu dever de indenizar. Leia-se: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis".(grifei) Pergunto: por que é que a lei resolveu excetuar do amplo e expresso sistema de responsabilidade civil objetiva, no qual o fornecedor não pode, de maneira alguma, desonerar-se de seu dever de indenizar, exatamente um caso especial de aquisição de produto ou serviço quando o consumidor é pessoa jurídica? Justamente porque sabe que é possível adquirir produto e serviço de consumo para fins de produção. Explico. A regra geral é a do dever de o fornecedor indenizar por vícios e defeitos (arts. 12 a 14 e 18 a 20). Não pode ele, mediante cláusula contratual exonerar-se dessa obrigação, mesmo que seja em parte, por expressa disposição do caput do art. 25, que dispõe, verbis: "Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas Seções anteriores." Logo, essa é a regra geral para todas as relações jurídicas de consumo regulares. Mas a lei resolveu abrir uma exceção (a do citado inciso I do art. 51).  E não foi para os casos comuns, mas apenas os que envolvam o consumidor pessoa jurídica em "situações justificáveis". Quais seriam elas? A exceção legal de permissão para fixação de cláusula contratual limitadora do dever de indenizar pressupõe duas hipóteses para o atingimento de sua finalidade: a) que o tipo de operação de venda e compra de produto ou serviço seja especial, fora do padrão regular de consumo; b) que a qualidade de consumidor-pessoa jurídica, por sua vez, também justifique uma negociação prévia de cláusula contratual limitadora. Para o fornecedor exercer a prerrogativa de negociar a inserção de cláusula contratual limitadora de seu dever de indenizar é necessário que estejam presentes as duas situações previstas nas letras "a" e "b", simultaneamente. Examine-se a letra "a": Não basta que a compra seja fora do padrão para que ele possa incluir a cláusula. Por exemplo, se um consumidor-pessoa física quiser adquirir vinte microcomputadores para distribuir a seus amigos e parentes1, isso não é suficiente para a negociação e inclusão da cláusula. A compra está fora do padrão, mas não está presente o outro requisito. E, quanto à letra "b", o mesmo ocorre com duas alternativas: b.1) Não é suficiente que o consumidor seja pessoa jurídica fazendo uma aquisição regular. Por exemplo, a pessoa jurídica que adquire um microcomputador numa loja de departamentos ou diretamente do fabricante. Essa é uma aquisição comum, que recebe as garantias gerais do sistema de responsabilidade civil instituído no CDC. Não pode o fornecedor limitar sua responsabilidade. b.2) Não é suficiente que a compra seja fora do padrão. É necessário que a pessoa jurídica consumidora receba aconselhamento jurídico para que a cláusula limitadora possa ser negociada e inserida no contrato. Evidente que cada caso terá suas particularidades, na medida em que a norma está utilizando de termos indeterminados, que remetem a situações concretas variáveis. Mas é possível desde já dizer que pessoa jurídica "de porte", para os fins instituídos no inciso I do art. 51, é aquela que tem corpo jurídico próprio ou pode pagar consultor jurídico, que negocie em nome dela a cláusula contratual limitadora. Sem isso, isto é, sem que se estabeleça um equilíbrio prévio para a negociação da cláusula, esta não poderá ser inserida no contrato. Vê-se, pois, que o CDC abraça minha tese no sentido de que há bens de consumo (produtos e serviços) que são adquiridos com o fim de produção, sem que a relação jurídica estabelecida deixe de ser de consumo, tanto que recebe ela o tratamento diferencial da norma do inciso I do art. 51 comentado. Resumindo e concluindo: a) o CDC regula situações em que haja "destinatário final" que adquire produto ou serviço para uso próprio sem finalidade de produção de outros produtos ou serviços; b) regula também situações em que haja "destinatário final" que adquire produto ou serviço com finalidade de produção de outros produtos ou serviços, desde que estes, uma vez adquiridos, sejam oferecidos regularmente no mercado de consumo, independentemente do uso e destino que o adquirente lhes vai dar; c) o CDC não regula situações nas quais, apesar de se poder identificar um "destinatário final", o produto ou serviço é entregue com a finalidade específica de servir de "bem de produção" para outro produto ou serviço e via de regra não está colocado no mercado de consumo como bem de consumo, mas como de produção; o consumidor comum não o adquire. Por via de exceção, contudo, haverá caso em que a aquisição do produto ou serviço típico de produção será feita pelo consumidor, e nessa relação incidirão as regras do CDC. _____ 1 Ou qualquer outro motivo, que é de sua exclusiva esfera privada.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

A pessoa jurídica como consumidora - Parte I

Como tenho visto algumas decisões judiciais e, também, posições doutrinárias que afirmam que pessoa jurídica não pode ser consumidora a não ser em situações muito especiais, resolvi voltar ao tema, visando deixar claro aquilo que está estabelecido na Lei, isto é, no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Para facilitar a leitura neste nosso querido espaço e tentar apresentar um panorama completo da questão, escrevo este artigo dividindo-o em  duas partes: uma nesta semana e o complemento na próxima. Farei um resumo do que escrevi em meus livros1. Começo abordando o previsto no caput do art. 2º do CDC: "Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". A Lei não deixa dúvida de que a pessoa jurídica é consumidora. Acontece que a mera interpretação gramatical dos termos da cabeça do artigo não é capaz de resolver os problemas que surgem. Todavia, devemos lançar mão dela, porquanto permitirá a explicitação da maior parte das questões. Diga-se, de início, o que decorre da obviedade da leitura. Consumidor é a pessoa física, a pessoa natural e, também, a pessoa jurídica. Quanto a esta última, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação, fundação etc. A lei emprega o verbo "adquirir", que tem de ser interpretado em seu sentido mais lato, de obter, seja a título oneroso ou gratuito. E não se trata apenas de adquirir, mas também de utilizar o produto ou o serviço, ainda quando quem o utiliza não o tenha adquirido. Isto é, a norma define como consumidor tanto quem efetivamente adquire o produto ou o serviço (ou seja, paga o preço) como aquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o consome. Assim, por exemplo, se uma pessoa compra cerveja para oferecer aos amigos numa festa, todos aqueles que a tomarem serão considerados consumidores. A norma fala também em "destinatário final". O uso desse termo facilitará, de um lado, a identificação da figura do consumidor, mas, por outro, trará um problema que tentarei resolver. Evidentemente, se alguém adquire produto não como destinatário final, mas como intermediário do ciclo de produção, não será considerado consumidor. Assim, por exemplo, se uma pessoa - física ou jurídica - adquire roupas para revendê-las, a relação jurídica dessa transação não estará sob a égide da lei 8.078/90. O problema do uso do termo "destinatário final" está relacionado a um caso específico: o daquela pessoa que adquire produto ou serviço como destinatária final, mas que usará tal bem como típico de produção. Por exemplo, o usineiro que compra uma usina para a produção de álcool. Não resta dúvida de que ele será destinatário final do produto (a usina); contudo, pode ser considerado consumidor? E um despachante que adquire num grande supermercado um laptop para desenvolver suas atividades, é considerado consumidor? Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinarei, detalhadamente, cada situação. Não se duvida do fato de que, quando uma pessoa adquire um automóvel numa concessionária, estabelece-se uma típica relação regulada pelo CDC. De um lado, o consumidor; de outro, o fornecedor. Em contrapartida, é evidente que não há relação protegida pelo Código quando a concessionária adquire o automóvel da montadora como intermediária para posterior venda ao consumidor. Nas duas hipóteses acima as situações jurídicas são simples e fáceis de ser entendidas. Numa ponta da relação está o consumidor (relação de consumo). Na outra estão fornecedores (relação de intermediação/distribuição/ comercialização/produção). O CDC regula o primeiro caso; o direito comum, o outro. Mas o que acontece se a concessionária se utiliza do veículo como "destinatária final", por exemplo, entregando-o para seu diretor usar? A resposta a essa questão é fácil: para aquele veículo a concessionária não aparece como fornecedora, mas como consumidora, e a relação está tipicamente protegida pela Lei protecionista (o que será confirmado pela exposição que se segue). Todavia, existem outras situações mais complexas. Quando, por exemplo, a montadora adquire peças para montar o veí­culo, trata-se de situação na qual as regras aplicadas são as do direito comum. São típicas relações entre fornecedores partícipes do ciclo de produção, desde a obtenção dos insumos até a comercialização do produto final no mercado para o consumidor: A visualização da hipótese é simples. Estamos diante de situações cí­clicas da produção, em que no polo final do ciclo aparece alguém adquirindo o produto como "destinatário final". Porém, vou recolocar o exemplo da usina: um fazendeiro resolve transformar-se em usineiro e, para tanto, encomenda uma usina para produção de álcool. Seria esse usineiro "destinatário final" da usina? Denotaria essa relação uma típica situação protegida pelo CDC? A situação parece diversa da anterior, porque, diferentemente da montadora, que envia as peças com o automóvel para o consumidor, na produção do álcool, este vai para o consumidor, mas a usina fica. Contudo, há coisas na montadora que também não vão para o consumidor. Por exemplo, o prédio utilizado para a montagem do veículo. Nesse caso, a montadora é "destinatária final" do prédio e, portanto, consumidora? Mas não são simplesmente a usina e o prédio "bens de produção", e, assim, não se pode querer aplicar ali a lei consumerista? O problema está em que o CDC não fala em bens de produção ou de consumo. Limitou-se a dizer "consumidor" como "destinatário final" e a definir o fornecedor (no seu art. 3º). Há meios, porém, de solucionar a pendência. Antes de tentar responder, analisemos um outro exemplo, o de uma pessoa que pretende constituir-se como despachante. Para isso vai a uma loja e compra um laptop, que utilizará para o exercício de seu trabalho. É o despachante "destinatário final" do aparelho e, portanto, consumidor? Passo, agora, às respostas, segundo meu ponto de vista. Poderíamos responder, no caso do álcool,  que o usineiro é "destinatário final" da usina e, assim, aquela relação estaria protegida pelo Código. Da mesma maneira, a montadora seria "consumidora" do prédio utilizado para montagem de veículos. E, assim, resolvido estaria o caso do despachante, que é "destinatário final" do laptop. Contudo, todos esses bens são típicos "bens de produção"? O laptop pode ser e pode não ser. Os outros dois são. Seria adequado dizer, então, que o Código regula aquelas três situações? Sem dúvida que não. Em casos nos quais se negociam e adquirem bens tí­picos de produção, o CDC não pode ser aplicado por dois motivos óbvios: primeiro, porque não está dentro de seus princípios ou finalidades; segundo, porque, dado o alto grau de protecionismo e restrições para contratar e garantir, o CDC seria um entrave nas relações comerciais desse tipo, e que muitas vezes são de grande porte. A resposta para o caso da usina e da montadora é, portanto, a aplicação do direito comum: Acontece que essa resposta não resolve o problema do despachante. Quer dizer, então, que o laptop é um bem de produção, e quando ele tiver vício o despachante não poderá utilizar-se da lei 8.078/90? Ora, que diferença existe entre o despachante como pessoa jurídica, que utiliza o laptop para preencher guias, e o despachante enquanto pessoa física, que leva o aparelho para casa e escreve uma carta de amor? A solução não pode ser a mesma que a da usina e a da montadora. Tem de ser outra. O Código ajuda em parte, pois o despachante é "destinatário final", mas o bem é de produção. Para encontrarmos uma solução, precisamos utilizar certos princípios do Código e transferi-los para a noção de bens. Com efeito, o CDC regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira. Aí está o caminho indicativo para a solução. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o Código, independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros. A situação é clara: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo, não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a prestação de seu serviço de despachante. Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis. Assim, posso responder que, como o despachante adquiriu o laptop produzido e entregue ao mercado como um típico bem de consumo, a relação está protegida pelo CDC. *** Continua na próxima semana. __________ 1 Por exemplo, no Curso de Direito do Consumidor (14ª. ed., 2022. São Paulo: Saraiva).
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Os desastres naturais e a responsabilidade do Estado

Este é meu primeiro artigo do ano e, infelizmente, sou obrigado a voltar ao tema  da responsabilidade do Estado nas catástrofes climáticas. Aliás, todo início de ano as chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileiras; e uma parte dessas catástrofes  são previsíveis. Os acontecimentos envolvendo o drama das pessoas nos alagamentos, deslizamentos de terras, quedas de barreiras, destruição de imóveis etc. em vários pontos do país são o retrato de uma política de omissão que, ao que tudo indica,  repetir-se-á no ano que vem, assim como já aconteceu no ano  passado e nos anteriores. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos.  A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer,  passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio.  De nada adianta ficar acusando as vítimas depois das ocorrências, como se vê em alguns casos, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada  e, também, nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Lembro, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme  § 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra  considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização.  Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro.  Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente, o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e, também, pela vítima. ***  Torço para que, no próximo ano, eu possa começar a escrever meus artigos com algo mais ameno.