COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Hoje continuo a cuidar de mais alguns aspectos históricos para uma boa compreensão do Código de Defesa do Consumidor (CDC). No artigo anterior, mostrei que partir do período pós-Revolução Industrial, com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais, para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para um maior número de pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização da produção. Pois bem. Este é o modo de produção, de oferta de produtos e serviços de massa do século XX. Só que, no caso brasileiro, nós aplicamos até 10 de março de 1991, o Código Civil às relações jurídicas de consumo, e isto gerou problemas sérios para a compreensão da própria sociedade. Passamos a interpretar as relações jurídicas de consumo e os contratos com base na lei civil, inadequada para tanto e, como isso se deu durante quase todo o século XX, tivemos dificuldade para entender e aplicar o CDC em todos os seus aspectos por muito tempo. Dou um exemplo: na questão contratual, nossa memória privatista pressupunha que, quando vemos o contrato, assistimos ao aforismo que diz pacta sunt servanda, posto que no direito civil essa é uma das características contratuais, com fundamento na autonomia da vontade. Ora, nas relações contratuais no direito civil, no direito privado, durante todo o século XX havia o pressuposto de que aqueles que querem contratar, sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento subjetivo volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo: proposições que, organizadas em forma de cláusulas impressas num pedaço de papel, faziam surgir o contrato escrito. Era a tentativa de delineamento objetivo de uma vontade, portanto elemento subjetivo. Era a escrita - o tipo de contrato - que o direito civil tradicional pretendia controlar1. Então, quando nos referíamos às relações contratuais privatistas, o que se fazia era uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que deveriam representar a vontade subjetiva das partes que estavam lá, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, os pactos devem ser respeitados. Acontece que isto não servia para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é completamente equivocado, porque o consumidor não se senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados em contratos de adesão, verbais ou escritos, elaborados unilateralmente pelos fornecedores. Tais elementos, o CDC pretendeu controlar, e de forma inteligente. O problema foi que, a aplicação da lei civil, assim como a memória dos operadores do direito, geraram uma série de equívocos. Até a oferta, para ilustrarmos com mais um exemplo, é diferente nos dois regimes: no direito privado é um convite à oferta; no direito do consumidor, é uma oferta que vincula o ofertante. Enfim, essa foi uma situação que, por um bom tempo, acabou afetando o entendimento da lei. __________ 1 Claro que não estamos esquecendo o contrato verbal, pois ele tem a mesma característica de tentativa de objetividade; só não foi escrito.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), como sabemos, foi editado em 11 de setembro de 1990; é, portanto, uma lei muito atrasada de proteção ao consumidor. Por exemplo, passamos quase o século XX inteiro aplicando às relações de consumo o Código Civil, lei que entrou em vigor em 1917, fundada na tradição do direito civil europeu do século anterior. Pensemos num ponto de realce importante: em relação ao direito civil, pressupõe-se uma série de condições para contratar, que não vigem para relações de consumo. No entanto, durante todo aquele tempo, no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para resolver os problemas que surgiram e, por isso, o fizemos de forma equivocada. Esses equívocos remanesceram na nossa formação jurídica, ficaram na nossa memória influindo na maneira como enxergávamos as relações de consumo, e, demoramos bastante para fazer uma limpeza dessa influência. E,  em algumas situações, ainda temos dificuldades para interpretar e compreender um texto que é bastante enxuto, curto, que diz respeito a um novo corte feito no sistema jurídico, e que regula especificamente as relações que envolvem os consumidores e os fornecedores. No entanto, apesar de atrasado no tempo, o CDC acabou tendo resultados altamente positivos, porque o legislador, isto é, aqueles que pensaram na sua elaboração - os professores que geraram o texto do anteprojeto que acabou virando a Lei n. 8.078 (a partir do projeto apresentado pelo, na época, Deputado Geraldo Alckmin) -, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. O resultado foi tão positivo que a lei brasileira já inspirou a lei de proteção ao consumidor na Argentina, reformas no Paraguai e no Uruguai e projetos em países da Europa. Olhemos, então, um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E essa sociedade tem uma origem bastante remota que precisamos pontuar, especialmente naquilo que nos interessa, para entendermos a chamada sociedade de massa, com sua produção em série, na sociedade capitalista contemporânea. Vamos partir do período pós-Revolução Industrial. Com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais, para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para um maior número de pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização da produção. Essa produção homogeneizada, "standartizada", em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção é um modelo que deu certo; veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial houve um incremento na produção, que se solidificou e cresceu em níveis extraordiná­rios a partir da Segunda Guerra Mundial com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações etc. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passa a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos do século passado se pudesse implementar a ideia de globalização. Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo destaca-se uma que interessa: nele a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar um único produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e a partir desta reproduzem-se milhares, milhões de vezes em série. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta uma quantia X de dinheiro na criação de um único modelo e, depois, o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas. Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Quem planeja a oferta de um serviço ou um produto qualquer, por exemplo, financeiro, bancário, para ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o imprime e distribui milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela lei 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor: no seu art. 54 está regulado o contrato de adesão. E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor, e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. __________ Continuarei na próxima semana.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC - lei 8078/90), em termos conceituais, estabeleceu uma confusão ao pretender, como fez, utilizar dois termos distintos: "defeito" e "vício". Os defeitos vêm sendo tratados nos arts. 12 a 14 e os vícios nos arts. 18 a 20. Para entender "defeito", é necessário antes - por motivos que adiante se saberá - conhecer o sentido de "vício". Além disso, várias passagens são mal escritas, dando margem a dúvidas e dificuldades de interpretação. Comecemos, então, fazendo a distinção - que é do CDC - entre vício e defeito.  O termo "vício" lembra vício redibitório, instituto do direito civil que tem com ele alguma semelhança na condição de vício oculto, mas com ele não se confunde. Até porque é regra própria do sistema do CDC. São consideradas vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os produtos ou serviços impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam e, também, que lhes diminuam o valor. Da mesma forma são considerados vícios os decorrentes da disparidade havida em relação às indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem, oferta ou mensagem publicitária. Os vícios, portanto, são os problemas que, por exemplo: a) fazem com que o produto não funcione adequadamente, como um liquidificador que não gira; b) fazem com que o produto funcione mal, como a televisão sem som, o automóvel que "morre" toda hora etc.; c) diminuam o valor do produto, como riscos na lataria do automóvel, mancha no terno etc.; d) não estejam de acordo com informações, como o vidro de mel de 500 ml que só tem 400 ml; o saco de 5 kg de açúcar que só tem 4,8 kg; o caderno de 200 páginas que só tem 180 etc.; e) façam os serviços apresentarem características com funcionamento insuficiente ou inadequado, como o serviço de desentupimento que no dia seguinte faz com que o banheiro alague; o carpete que descola rapidamente; a parede mal pintada; o extravio de bagagem no transporte aéreo etc. Os vícios podem ser aparentes ou ocultos. Os aparentes ou de fácil constatação, como o próprio nome diz, são aqueles que aparecem no singelo uso e consumo do produto (ou serviço). Ocultos são aqueles que só aparecem algum ou muito tempo após o uso e/ou que, por estarem inacessíveis ao consumidor, não podem ser detectados na utilização ordinária. O defeito, por sua vez, pressupõe o vício. Há vício sem defeito, mas não há defeito sem vício. O vício é uma característica inerente, intrínseca do produto ou serviço em si. O defeito é o vício acrescido de um problema extra, alguma coisa extrínseca ao produto ou serviço, que causa um dano maior que simplesmente o mau funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago - já que o produto ou serviço não cumpriram o fim ao qual se destinavam. O defeito causa, além desse dano do vício, outro ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral e/ou estético e/ou à imagem do consumidor. Logo, o defeito tem ligação com o vício, mas, em termos de dano causado ao consumidor, é mais devastador. Temos, então, que o vício pertence ao próprio produto ou serviço, jamais atingindo a pessoa do consumidor ou outros bens seus. O defeito vai além do produto ou do serviço para atingir o consumidor em seu patrimônio jurídico mais amplo (seja moral, material, estético ou da imagem). Por isso, somente se fala propriamente em acidente, e, no caso, acidente de consumo, na hipótese de defeito, pois é aí que o consumidor é atingido1. Mostro, agora, dois exemplos que elucidam a diferença entre vício e defeito. 1.Dois consumidores vão à concessionária receber seu automóvel zero-quilômetro. Ambos saem dirigindo seu veículo alegremente. Os consumidores não sabem, mas o sistema de freios veio com problema de fábrica. Aquele que sai na frente passa a primeira esquina e segue viagem. No meio do quarteirão seguinte, pisa no breque e este não funciona. Vai, então, reduzindo as marchas e com sorte consegue parar o carro encostando-o numa guia. O segundo, com menos sorte, ao atingir a primeira esquina, depara com o semáforo no vermelho. Pisa no breque, mas este não funciona. O carro passa e se choca com outro veículo, causando danos em ambos os carros. O primeiro caso, como o problema está só no freio do veículo, é de vício. No segundo, como foi além do freio do veículo, causando danos não só em outras áreas do próprio automóvel como no veículo de terceiros, trata-se de defeito. 2.Um consumidor compra uma caixinha longa-vida de creme de leite. Ao chegar em casa, abre-a e vê que o produto está embolorado. É vício, pura e simplesmente. Outro compra o mesmo creme de leite. Abre a caixa em casa, mas o faz com um corte lateral. Prepara um delicioso strogonoff e serve para a família. Todos têm de ser hospitalizados, com infecção estomacal. É caso de defeito. É, portanto, pelo efeito e pelo resultado extrínseco causado pelo problema que se poderá detectar o defeito. O chamado acidente de consumo está relacionado com o defeito. __________ 1 Seria mais adequado dizer "mais atingido", porque, quando há vício, o consumidor já é afetado de alguma maneira, ainda que apenas no aspecto patrimonial do preço pago pelo produto ou serviço viciado
O Código de Defesa do Consumidor (CDC-lei 8078/90) já é uma lei bastante conhecida, mas ainda assim, de vez em quando, surgem dúvidas na intepretação de suas normas, princípios e conceitos. Para facilitar o entendimento das hipóteses envolvendo o CDC é importante levar em consideração uma questão preliminar, que deve nortear o trabalho de todos aqueles que pretendem compreendê-lo: é preciso que se estabeleça claramente o fato de que ele tem vida própria, tendo sido criado como subsistema autônomo e vigente dentro do sistema constitucional brasileiro. E os vários princípios constitucionais que o embasam são elementos vitais ao entendimento de seus ditames. Não será possível interpretar adequadamente a legislação consumerista se não se tiver em mente esse fato de que ela comporta um subsistema no ordenamento jurídico, que prevalece sobre as  demais - exceto, claro, o próprio sistema da Constituição Federal  -, sendo aplicável às outras normas de forma supletiva e complementar. Além disso, a edição do CDC inaugurou um novo modelo jurídico dentro do Sistema Constitucional Brasileiro. Em primeiro lugar, a lei 8.078/90 é Código por determinação constitucional (conforme art. 48 do ADCT/CF), o que mostra, desde logo, o primeiro elemento de ligação entre ele e a Carta Magna. Ademais, o CDC é uma lei principiológica, modelo até então inexistente no Sistema Jurídico Nacional. Como lei principiológica entende-se aquela que ingressa no sistema jurídico, fazendo, digamos assim, um corte horizontal, indo, no caso do CDC, atingir toda e qualquer relação jurídica que possa ser caracterizada como de consumo e que esteja também regrada por outra norma jurídica infraconstitucional. Assim, por exemplo, um contrato de seguro de automóvel continua regulado pelo Código Civil e pelas demais normas editadas pelos órgãos governamentais que regulamentem o setor (Susep, Instituto de Resseguros etc.), porém estão tangenciados por todos os princípios e regras da lei 8.078/90, de tal modo que, naquilo que com eles colidirem, perdem eficácia por tornarem-se nulos de pleno direito. E mais e principalmente: o caráter principiológico específico do CDC é apenas e tão somente um momento de concretização dos princípios e garantias constitucionais vigentes desde 5 de outubro de 1988 como cláusulas pétreas, não podendo, pois, ser alterados. Com efeito, o que a lei consumerista faz é tornar explícitos, para as relações de consumo, os comandos constitucionais. Dentre estes destacam-se os Princípios Fundamentais da República, que norteiam todo o regime constitucional e os direitos e garantias fundamentais. Assim, à frente de todos está o superprincípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), como especial luz a imantar todos os demais princípios e normas constitucionais e apresentando-se a estes como limite intransponível e, claro, a toda e qualquer norma de hierarquia inferior. A seguir, no texto constitucional estão os demais princípios e garantias fundamentais que são reconhecidos no CDC e que aqui relembramos: o princípio da igualdade (CF, art. 5º, caput e inciso I); a garantia da imagem, da honra, da privacidade, da intimidade, da propriedade e da indenização por violação a tais direitos de modo material e também por dano moral (CF, art. 5º, V, c/c, os incisos X e XXII); ligado à dignidade e demais garantias está o piso vital mínimo insculpido como o direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à maternidade etc. (CF, art. 6º); e unidos a todos esses direitos está o da prestação de serviços públicos essenciais com eficiência, publicidade, impessoalidade e moralidade (CF, art. 37, caput). Não se pode olvidar que é também cláusula pétrea como dever absoluto para o Estado a defesa do consumidor (CF, art. 5º, XXXII). Resta ainda lembrar que a Constituição Federal estabelece que o regime econômico brasileiro é capitalista, mas limitado (CF, art. 1º, IV, c/c arts. 170 e s.): são fundamentos da república os valores sociais do trabalho e os valores sociais da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV), e a defesa do consumidor é princípio fundamental da ordem econômica (CF, art. 170, V). Ora, o CDC nada mais fez do que concretizar numa norma infraconstitucional esses princípios e garantias constitucionais. Assim está previsto expressamente no seu art. 1º. O respeito à dignidade, à saúde, à segurança, à proteção dos interesses econômicos, e à melhoria de qualidade de vida está também expressamente previsto no seu art. 4º, caput. A característica de vulnerabilidade do consumidor prevista no inciso I do art. 4º decorre diretamente da aplicação do princípio da igualdade do texto magno. O CDC é categórico no que respeita à prevenção e reparação dos danos patrimoniais e morais (art. 6º, VI), e o acesso à justiça e aos órgãos administrativos com vistas à prevenção e reparação de danos é também outra regra manifesta (art. 6º, VII). A adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral é, da mesma forma, norma clara na lei (art. 6º, X) etc. Logo, fica patente o caráter principiológico da lei 8.078/90.
quinta-feira, 21 de setembro de 2023

A qualidade dos alimentos: dá para confiar?

Se já não bastassem os problemas com carboidratos, proteínas, gorduras, calorias etc. que atingem crianças, jovens, adolescentes, adultos, idosas e idosos, enfim, todos os consumidores e consumidoras,  a cada dia fica mais claro que, na sociedade capitalista contemporânea, que só conhece o lucro e só pensa nele, muitos produtos vendidos são falsificados, adulterados e deteriorados. E, infelizmente, não se trata apenas de "vender gato por lebre". Há muitos produtos autênticos que fazem mal por suas próprias substâncias, por falta de informação ou por informação imprecisa etc. N'outro dia,  meu amigo Outrem Ego me perguntou: "Como é que a gente pode identificar se os produtos que ingerimos são, de fato, de boa qualidade?". Realmente, é difícil fazer essa identificação. Em boa parte das vezes, o consumidor e a consumidora se servem dos olhos e do nariz: aparência e cheiro são boas alternativas para se aferir qualidade, mas nem sempre dá certo. E depois, quando experimenta, o sabor também é referência. Claro que se pode lançar mão das cautelas tradicionais como, por exemplo, quando for adquirir carnes vermelhas, verificar se elas apresentam zonas (ou manchas) escurecidas ou zonas ou pontos secos, sinais de deterioração. Ou, então, nunca comprar carne moída que já estava triturada quando se chegou no açougue ou balcão de carnes do supermercado (Deve-se sempre escolher a carne inteira e pedir para moer à vista). Também não se deve comprar carne de porco que apresente pequenas bolinhas brancas (conhecidas como "canjica"). Bem, como comecei, deixe-me lembrar das cautelas para compras de aves: a sua carne estará boa quando tiver consistência firme, cor amarelo-pálida, brilhante e com odor (cheiro) suave, e estará deteriorada quando: apresentar cor esverdeada; sua consistência não estiver firme; e/ou apresentar cheiro forte. E, quanto aos peixes, o consumidor ou a consumidora só deve adquirir os que tiverem o corpo rijo (duro), escamas firmes e os olhos salientes e brilhantes. Já os peixes secos, como o bacalhau, estarão deteriorados se apresentarem manchas úmidas ou avermelhadas. Assim, quer o consumidor e a consumidora compre os próprios alimentos para preparar quer os compre prontos, deve lembrar que o mercado está repleto de fraudes de todo tipo e também de produtos deteriorados,  que transmitem doenças nem sempre de forma rápida a se poder perceber o que causou o mal (O que gera um grande problema de prova e investigação - pessoal ou pelas autoridades). Realmente, esse mundo capitalista, às vezes, é de arrepiar e de tirar o apetite! Não é à toa que alguns bons restaurantes, desde há muito tempo, passaram a abrir suas cozinhas para que os clientes possam ver como a comida está sendo preparada ou, pelo menos, permitem que eles façam uma visita nas instalações. Porém, nem sempre isso é suficiente - lembremos das carnes preparadas, dos embutidos etc. Por isso, inclusive, os consumeristas dizem que um bom modo de conhecer a higiene do restaurante é ir, antes de mais nada, ao banheiro local. Se ele estiver asseado, é um bom começo. Mas, se nem o banheiro, que é escancarado ao olhar dos clientes, está limpo, o que se dirá do resto? Claro que, como diz meu amigo, Outrem Ego, "Dá para 'maquiar' o banheiro. Este pode estar tinindo, lindo, cheiroso e ainda assim a comida não estar no mesmo padrão. Não é fácil mesmo a vida dos consumidores e consumidoras, especialmente se estiver com fome". Essa situação de fragilidade dos consumidores e consumidoras em relação aos serviços e produtos oferecidos e adquiridos, já disse mais de uma vez aqui nesta coluna, é uma característica universal e que a nossa lei de proteção expressamente reconhece: sua vulnerabilidade, porque não só não têm acesso aos meios de produção e distribuição como é obrigado a acreditar (confiar) nas informações que se lhes dirigem. Há, é verdade, bons produtos e bons fornecedores, mas nenhuma área está isenta de fraudes e/ou problemas de qualidade. Podem ser produtos "in natura" ou industrializados.
Continuo a tratar a responsabilidade civil objetiva no CDC, análise que iniciei no artigo anterior. Já vimos que um fato é inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com defeito. Tendo em vista esse fato, o CDC (a lei 8.078/90)  resolveu controlar - e o fez de forma adequada -- o resultado da produção viciada/defeituosa, cuidando de garantir ao consumidor o ressarcimento pelos prejuízos sofridos. Note-se que a questão do vício/defeito envolve o produto e o serviço em si, independentemente da figura do produtor (bem como de sua vontade ou atuação). O produto e o serviço são os causadores diretos do dano ao consumidor. O fornecedor só é considerado na medida em que é o responsável pelo ressarcimento dos prejuízos. Nesse ponto tenho, então, de colocar outro aspecto relevante, justificador da responsabilidade do fornecedor, no que respeita ao dever de indenizar: o da origem do fundo capaz de pagar os prejuízos. É a receita e o patrimônio do fabricante, produtor, prestador de serviço etc. que respondem pela indenização relativa ao prejuízo sofrido pelo consumidor. O motivo, aliás, é simples: a receita e o patrimônio abarcam "todos" os produtos e serviços oferecidos. "Todos", isto é, tanto os produtos e serviços sem vício/defeito quanto aqueles que ingressaram no mercado com vício/defeito. O resultado das vendas, repita-se, advém do pagamento do preço pelo consumidor dos produtos e serviços bons e, também, dos viciados/defeituosos. Usando o mesmo cálculo que fiz e apresentei no artigo anterior: vamos supor uma produção de 100.000 liquidificadores/mês e um vício/defeito no final do ciclo de produção de apenas 0,1%. O  mercado receberá 100.000 liquidificadores e o produtor aferirá uma receita advinda de sua totalidade. Acontece que apenas 99.900 consumidores adquirirão efetivamente liquidificadores em perfeito estado de funcionamento. Os outros 100 arcarão com o ônus de ter comprado os liquidificadores com vício/defeito. Nesse ponto, é preciso inserir outro princípio legal justificador do tratamento protecionista dos consumidores que adquiriram os produtos viciados/defeituosos. É o princípio constitucional da igualdade. Não teria, nem tem cabimento, que os 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito e que pagaram por eles o mesmo preço dos demais 99.900 consumidores, não tivessem os mesmos direitos e garantias assegurados a estes últimos. Para igualá-los, é preciso que: a) recebam outro produto em condições perfeitas de funcionamento; b) aceitem o valor do preço de volta; c) ou, ainda, sejam ressarcidos de eventuais outros prejuízos sofridos. É dessa forma que se justifica a estipulação de uma responsabilidade objetiva do fornecedor. E há mais elementos que explicam por que o sistema normativo do CDC adotou a responsabilização objetiva. É o relacionado não só à dificuldade da demonstração da culpa do fornecedor, assim como ao fato de que, efetivamente, muitas vezes, ele não tem mesmo culpa de o produto ou serviço terem sido oferecidos com vício/defeito. Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria fatalmente lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como era no regime anterior). Aqueles 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito, muito provavelmente, não conseguiriam demonstrar a culpa do fabricante. Explicando melhor: no regime de produção em série o fabricante, produtor, prestador de serviços etc. não podem ser considerados, à priori, negligentes, imprudentes ou imperitos. É que o produtor contemporâneo, em especial aquele que produz em série, como regra não age com culpa. Ao contrário, numa verificação de seu processo de fabricação, perceber-se-á que no ciclo de produção trabalham profissionais que avaliam a qualidade dos insumos adquiridos, técnicos que controlam cada detalhe dos componentes utilizados, engenheiros de qualidade que testam os produtos fabricados, enfim, no ciclo de produção como um todo não há, de fato, omissão (negligência), ação imprudente ou imperita. No entanto, pelas razões já expostas, haverá produtos e serviços viciados/defeituosos. Vê-se, só por isso, que, se o consumidor tivesse de demonstrar a culpa do produtor, não conseguiria. Ademais, ainda que culpa houvesse, sua prova como ônus para o consumidor levaria ao insucesso, pois o consumidor não tinha e não tem acesso ao sistema de produção e, também, a prova técnica posterior ao evento danoso teria pouca possibilidade de demonstrar a culpa. Registro, por fim, que o CDC intitula a seção que cuida do tema como "Da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço", porque a norma, dentro do regramento da responsabilidade objetiva, é dirigida mesmo ao fato do produto ou serviço em si. É o "fato" do produto e do serviço causadores do dano o que importa. Costuma-se também falar em "acidente de consumo" para referir ao fato do produto ou do serviço. Algumas observações são necessárias a respeito disso. A expressão "acidente de consumo", muito embora largamente utilizada, pode confundir, porque haverá casos de defeito em que a palavra "acidente" não fica muito adequada. Assim, por exemplo, fazer lançamento equivocado no cadastro de devedores do Serviço de Proteção ao Crédito é defeito do serviço, gerando responsabilidade pelo pagamento de indenização por danos materiais, morais e à imagem. Porém, não se assemelha em nada a um "acidente". De outro lado, a lei fala em "fato" do produto. A palavra fato permite uma conexão com a ideia de acontecimento, o que implica, portanto, qualquer acontecimento. Lembro, de todo modo, que se tem usado tanto "fato" do produto e do serviço quanto "acidente de consumo" para definir o defeito. Porém, o mais adequado é guardar a expressão "acidente de consumo" para as hipóteses em que tenha ocorrido mesmo um acidente: queda de avião, batida do veículo por falha do freio, quebra da roda-gigante no parque de diversões etc., e deixar fato ou defeito para as demais ocorrências danosas. Em qualquer hipótese, aplica-se a lei. O estabelecimento da responsabilidade de indenizar nasce, portanto, do nexo de causalidade existente entre o consumidor (lesado), o produto e/ou serviço e o dano efetivamente ocorrente. Fica, assim, demonstrada, a teoria - e a realidade - fundante da responsabilidade civil objetiva estatuída no CDC, assim como as amplas garantias indenizatórias em favor do consumidor que sofreu o dano - ou seus familiares ou, ainda, o equiparado e seus familiares.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade civil objetiva dos fornecedores pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços (arts. 12, 13 e 14) e ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade) tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Pela importância do tema, eu a ele retorno. E para que se possa compreender o porquê dessa ampla responsabilização, é preciso conhecer a teoria do risco do negócio ou da atividade, que é sua base e que eu examino na sequência. A Constituição Federal garante a livre iniciativa para a exploração da atividade econômica, em harmonia com uma série de princípios (CF, art. 170), iniciativa esta que é, de fato, de uma forma ou de outra, característica da sociedade capitalista contemporânea. E uma das características principais da atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa, a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades por parte do empresário é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. De todo modo,  o risco é dele. É claro que são muitas as variáveis em jogo e que têm que ser avaliadas, tanto mais se existir uma autêntica competitividade no setor escolhido. Os insumos básicos para a produção, os meios de distribuição, a expectativa do consumidor em relação ao produto ou ao serviço a serem produzidos e oferecidos, a qualidade destes, o preço, os tributos etc. são preocupações constantes. Some-se  o desenvolvimento de todos os aspectos que envolvem o marketing e  em especial a possibilidade - e, praticamente, a necessidade - da exploração da publicidade, arma conhecida para o desenvolvimento dos negócios. O empreendedor, então,  leva (deve levar) sempre em consideração todos os elementos envolvidos. Aqui o que interessa é o aspecto do risco, que se incrementa na intrínseca relação com o custo. Esse binômio risco/custo (ao qual acrescentarei um outro: o do custo/benefício) é determinante na análise da viabilidade do negócio. A redução da margem de risco a baixos níveis (isto é, a aplicação máxima no estudo de todas as variáveis) eleva o custo a valores astronômicos, inviabilizando o projeto econômico. Em outras palavras, o custo, para ser suportável, tem de ser definido na relação com o benefício. Esse outro binômio custo/benefício tem de ser considerado. Descobrir o ponto de equilíbrio de quanto risco vale a pena correr a um menor custo possível, para aferir a maximização do benefício, é uma das chaves do negócio. Dentro dessa estratégia geral dos negócios, como fruto da teoria do risco, um item específico é o que está intimamente ligado à sistemática normativa adotada pelo CDC. É aquele voltado à avaliação da qualidade do produto e do serviço, especialmente a adequação, a finalidade, a proteção à saúde, a segurança e a durabilidade. Tudo referendado e complementado pela informação. Em realidade, a palavra "qualidade" do produto ou do serviço pode ser o aspecto determinante, na medida em que não se pode compreender qualidade sem o respeito aos direitos básicos do consumidor. E nesse ponto da busca da qualidade surge, então, nova e particularmente, o problema do risco/custo/benefício, acrescido agora de outro aspecto considerado tanto na teoria do risco quanto pelo CDC: a produção em série1. Com a explosão da revolução industrial, a aglomeração de pessoas nos grandes centros urbanos e o inexorável aumento da complexidade social, exigia-se um modelo de produção que desse conta da sociedade que começava a surgir. A necessidade de oferecer cada vez mais produtos e serviços para um número sempre maior de pessoas, fez com que a indústria passasse a produzir em grande quantidade. Mas o maior entrave para o crescimento da produção era o custo. A solução foi a produção em larga escala e em série, que, a partir de modelos previamente concebidos, permitia a diminuição dos custos. Com isso,  era possível fabricar mais bens para atingir um maior número de pessoas. O século XX inicia-se sob a égide desse modelo de produção: fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, com um custo de produção menor de cada um dos produtos, possibilitando que fossem vendidos a menor preço individual, com o que maiores parcelas de consumidores passaram a ser beneficiadas. A partir da Segunda Guerra Mundial,  esse projeto de produção capitalista passou a crescer numa velocidade jamais imaginada, fruto do incremento dos sistemas de automação, do surgimento da robótica, da telefonia por satélites, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação etc. Muito bem.  Em produções massificadas, seriadas,  é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número enorme de consumidores. Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem que correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. Aliado a isso está o indelével fato de que produções desse tipo envolvem dezenas, centenas ou milhares de componentes físicos e eletrônicos que se relacionam, operados por outra quantidade enorme de mãos que os manuseiam direta ou indiretamente. A falha é inexorável: por mais que o fornecedor queira, não consegue evitar que seus produtos ou serviços cheguem ao mercado sem vício/defeito. Mesmo nos setores mais desenvolvidos, em que as estatísticas apontam para vícios/defeitos de fabricação próximos de zero, o resultado final para o mercado será a distribuição de um número bastante elevado de produtos e serviços comprometidos. E isso se explica matematicamente: supondo um índice percentual de vício/defeito no final do ciclo de fabricação de apenas 0,1% (percentual raro, eis que, de fato, eles são mais elevados) aplicado sobre alta quantidade de produção, digamos, 100.000 unidades, ter-se-ia 100 produtos entregues ao mercado com vício/defeito. Logo, temos de lidar com esse fato inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito. __________ 1 Por causa disso, a responsabilidade objetiva tal como regulada remanesce como um grande problema, praticamente insolúvel, para aqueles que não produzem em série, especialmente  pequenos produtores, micro produtores e fabricantes pessoas físicas de produtos manufaturados e pequenos prestadores de serviços (pessoas físicas e jurídicas). A lei consumerista não abre exceção para tais fornecedores, que acabam tendo que arcar com o peso da responsabilidade objetiva, como se grandes fornecedores de produtos e serviços em série fossem.
quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Verdade e mentira nas comunicações

Um dos temas mais debatidos nos últimos tempos tem sido o da verdade ou mentira das informações, falas, imagens, promoções, publicidade etc. E o termo fake news já foi incorporado a nosso vocabulário, com naturalidade. Mas, pergunto: essa questão da verdade ou mentira nas comunicações sociais em geral ou mesmo entre particulares é realmente nova? Ou sempre existiu? Este é um assunto recorrente para mim. Não só nas questões que envolvem consumidor e capitalismo, mas em muitas outras como análises econômicas, pesquisas científicas, discursos políticos, promessas de candidatos etc. A enganação aparece nas mensagens bem articuladas e até, muitas vezes, surge como mentira que, apesar de evidente,  algumas pessoas nela acreditam.  Para piorar o quadro, como se sabe, estamos na época da pós-verdade, o que significa que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Isso facilita muito as coisas que envolvem falácias e mentiras, enganações explícitas e outras nem tanto. Vejamos um fato histórico: o que envolve a expressão "para inglês ver". Como já tive oportunidade de mostrar anteriormente, existem várias versões para o significado dessa expressão e que remontam  à sua origem. Uma delas diz que em 1815, os portugueses e os britânicos firmaram um compromisso, no qual Portugal se comprometeu a não mais traficar escravos. Todavia, como Portugal não vinha cumprindo o compromisso, o parlamento britânico acabou aprovando uma lei que criminalizava a escravatura e concedia, unilateralmente, à frota real britânica poderes para abordar e inspecionar os navios portugueses. Como estratégia para enganar os ingleses, os portugueses carregavam a embarcação que ia à frente da frota com uma carga inofensiva para ser inspecionada, levando, depois, os escravos em outros navios, que se safavam da inspeção. Outra versão, liga ao mesmo tema, diz que, em 1831, o governo português promulgou uma lei proibindo o tráfico negreiro, mas como o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, começou a circular a expressão de que a lei fora feita apenas "para inglês ver". E ainda outra versão diz que, após a partida da família real portuguesa para o Brasil, Portugal passou a ser uma espécie de protetorado da Inglaterra, que assumiu o comando da máquina militar portuguesa na luta conjunta contra a França. Mas os metódicos ingleses que queriam tudo organizado e por escrito, tinham problemas com os práticos portugueses. Assim, a cada imposição organizacional inglesa, os portugueses botavam tudo por escrito, para mostrar que estava tudo em ordem. Porém,  era só no papel. Servia apenas para agradar os ingleses e dizer que estava tudo arrumado, isto é, era só para os ingleses lerem (ou verem). Na prática, as coisas eram bem diferentes.  Acontecia a mesma coisa nas visitas dos generais ingleses a certos locais, que eram preparados (maquiados, como hoje diríamos) para dar uma aparência diversa do real. Se os ingleses exigiam a construção de uma estrada, os portugueses deixavam pás, pedras e material para a construção no local da visita. Assim, diziam que já a estavam construindo. Era o que os ingleses viam. Ficou a expressão e o aprendizado. Mas, naquela época, consta que, de fato, os ingleses eram enganados. Muito bem. Ao que tudo indica, mentiras e enganações estão presentes no meio social há muito tempo. E, certamente, continuarão, ainda que de forma mais tecnológica.
Com o término efetivo da pandemia da COVID, houve um forte retorno das viagens aéreas nacionais e internacionais e, naturalmente, alguns problemas acabam se repetindo. Por exemplo, o do atraso de voos. Volto, pois, ao tema, lembrando que esse setor do transporte aéreo de passageiros é um daqueles em que o consumidor está numa situação de extrema vulnerabilidade: ele fica literalmente nas mãos do transportador que decide como será sua viagem, se adequada ou inadequada, livre de problemas ou cheia de transtornos. Qualquer pessoa que viaje entende muito bem do que eu falo: nunca se sabe se dará tudo certo. Quer seja uma viagem de negócios ou de lazer, sempre se está numa expectativa incerta. Atrasos e falta de informações são muito comuns. Ao consumidor e à consumidora só resta torcer para que tudo dê certo.  Cuido dos atrasos. Há, é verdade, atrasos honestos, tais como aqueles que envolvem eventos climáticos, acidentes ou problemas mecânicos com aeronaves ou, ainda, eventuais entraves com o tráfego aéreo envolvendo outras aeronaves. Mas não esqueçamos de que podem acontecer os atrasos programados: os que envolvem voos em que as aeronaves estão com pouca ocupação. Nesta hipótese,  um voo é cancelado para que um outro, posterior, saia lotado e para o qual os passageiros foram realocados. É verdade, que no atual período em que há grande procura pelos voos, essa prática deixa de existir. De todo modo, na questão do atraso, anoto que, independentemente do motivo, sempre que ele for superior a 4 horas, o consumidor pode pleitear indenização por danos morais. A assunto do atraso dos voos está regulamentado pela resolução nº 400 de 13-1-2016 da ANAC, que garante assistência material ao passageiro ou passageira do seguinte modo: "Art. 27. A assistência material consiste em satisfazer as necessidades do passageiro e deverá ser oferecida gratuitamente pelo transportador, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, nos seguintes termos: I - superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação; II - superior a 2 (duas) horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; e III - superior a 4 (quatro) horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta. § 1º O transportador poderá deixar de oferecer serviço de hospedagem para o passageiro que residir na localidade do aeroporto de origem, garantido o traslado de ida e volta. § 2º No caso de Passageiro com Necessidade de Assistência Especial - PNAE e de seus acompanhantes, nos termos da resolução nº 280, de 2013, a assistência prevista no inciso III do caput deste artigo deverá ser fornecida independentemente da exigência de pernoite, salvo se puder ser substituída por acomodação em local que atenda suas necessidades e com concordância do passageiro ou acompanhante. § 3º O transportador poderá deixar de oferecer assistência material quando o passageiro optar pela reacomodação em voo próprio do transportador a ser realizado em data e horário de conveniência do passageiro ou pelo reembolso integral da passagem aérea." Em relação ao dano moral, o que interessa são os atrasos superiores a 4 horas. Neste caso, é possível pleitear indenização. Importante consignar que, nas decisões judiciais, o atraso em período menor do que 4 horas é considerado mero aborrecimento. Logo não cabe o pleito. Mas acima das 4 horas o pedido é viável. Lembro, também, que a responsabilidade das companhias aéreas é objetiva, como decorrência da incidência do Código de Defesa do Consumidor, especificamente o artigo 14 da lei. Alegações de que o atraso superior a 4 horas deu-se por problemas climáticos ou por ausência de piloto,  do copiloto ou de membros da equipe de bordo, ou, ainda, problemas mecânicos ou de segurança  da aeronave etc. não excluem a responsabilidade, pois são hipóteses de fortuito interno (previsíveis dentro da análise do risco da atividade). As exceções são as relacionadas aos fortuitos externos (e não previsíveis), tais como um terremoto ou a eclosão de um vulcão. Desse modo, na medida em que o atraso se dê por período superior a 4 horas, existe nexo de causalidade,  que pode gerar, então, a condenação ao pagamento de indenização por danos morais. Não existe, claro,  um valor definido,  mas a pesquisa jurisprudencial mostra que as indenizações variam, dependendo daquilo que o consumidor demonstrar em juízo e que envolve o dano efetivamente sofrido, o real tempo de atraso de espera após as 4 horas e as condições de atendimento oferecido pela cia aérea (as informações, a alimentação, a hospedagem, o transporte etc.). Por fim, anoto que é relevante, para o aumento do valor da indenização, e tem sido levado em conta nas decisões judiciais, a demonstração da perda de compromissos  profissionais ou familiares.
Que o prazo de validade dos produtos é algo importante, ninguém duvida. E a data de vencimento deve sempre estar claramente colocada para que o consumidor facilmente a encontre. Aliás, a data da validade deve ser observada não só no estabelecimento em que se compra o produto, mas também depois, quando ele for ser consumido. E nesse tema, há um comportamento comum de alguns fornecedores, especialmente em supermercados: são feitas promoções para venda de produtos abaixo do preço regular em função do prazo de vencimento para consumo estar se aproximando ou mesmo ser exatamente o daquele dia em que a promoção esteja anunciada. Não é algo proibido, desde que a informação quanto ao prazo esteja clara e ostensivamente colocada à vista do interessado na compra. Aliás, por isso, é sempre bom lembrar um conselho: quem for comprar esse tipo de produto não deve se empolgar com o preço e adquirir grandes quantidades que não possam ser consumidas dentro do curto prazo de validade existente.  O Código de Defesa do Consumidor (CDC) regula expressamente esse tipo de oferta no art. 31, verbis: "Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores." Agora pergunto: e quanto aos medicamentos? Como fica a questão do prazo de validade na relação com a quantidade que será ou deverá ser consumida? Vale a mesma regulação do CDC com um acréscimo de força normativa em regra fixada pela ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Na realidade, a farmácia somente pode vender medicamentos que estão próximos do vencimento do prazo de validade se o consumidor puder concluir o tratamento antes dessa data. Ela não pode vender o medicamento se o prazo de validade estiver próximo do vencimento e nesse período o consumidor não conseguir concluir o tratamento que lhe foi indicado.  Além da estipulação do CDC, há, como disse, uma norma específica da ANVISA. É a do artigo 51 da RDC Nº 44, DE 17 DE AGOSTO DE 2009, especialmente a do §2º. Leia-se: "Art. 51. A política da empresa em relação aos produtos com o prazo de validade próximo ao vencimento deve estar clara a todos os funcionários e descrita no Procedimento Operacional Padrão (POP) e prevista no Manual de Boas Práticas Farmacêuticas do estabelecimento. §1º O usuário deve ser alertado quando for dispensado produto com prazo de validade próximo ao seu vencimento. §2º É vedado dispensar medicamentos cuja posologia para o tratamento não possa ser concluída no prazo de validade."  Desse modo, fica aqui também outro alerta, agora na questão do medicamento: o usuário deve, naturalmente, observar o prazo de validade na relação com a necessidade e a possibilidade do consumo; e a farmácia fornecedora está proibida de vende-lo se a posologia para o tratamento não puder ser concluída dentro do prazo de validade.
quinta-feira, 3 de agosto de 2023

O exercício de propriedade do aparelho celular

Eu e muitos consumeristas brasileiros pensamos e estudamos o Direito do Consumidor há mais de 30 anos, antes mesmo da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (CDC - lei 8.078/90). Vimos muitos abusos serem praticados e foram muitas as vitórias a favor do consumidor, a começar exatamente com a edição do CDC. Muitas empresas foram obrigadas a mudar seus procedimentos para respeitar seus clientes, o que só fez bem para o mercado capitalista. Muito bem. As normas que protegem o consumidor estão em vigor e muito bem desenhadas. No entanto, às vezes aparecem coisas estranhas. No artigo de hoje, cuido de um caso em que, como penso, alguns intérpretes estão fazendo uma enorme confusão na aplicação da lei aos fatos e, com isso, acabaram violando o consumidor que muito precisa de auxílio. Vou ilustrar o que quero dizer, com uma narrativa de uma situação comum no Brasil. É só um exemplo fictício, que pode ser modificado em alguns pontos diversas vezes e que ocorre de fato, de forma similar, em vários lugares do país. Vamos lá. José da Silva, casado com dois filhos adolescentes, ficou desempregado. O salário que sua esposa ganha no emprego dela não é suficiente para cobrir todas as despesas mensais. Ele está negativado no Serviço de Proteção ao Crédito por não ter conseguido pagar as prestações do empréstimo que havia feito em seu banco. Está precisando muito de dinheiro para dar conta das despesas de produtos e serviços essenciais. Seu filho mais velho está doente e os gastos com medicamentos são altos. José da Silva não tem bens de valor para o mercado. Na verdade, ele apenas possui um aparelho celular dos mais simples. Ele precisa de dinheiro para pagar a conta de energia elétrica e da água, que estão atrasadas. Se não conseguir pagá-las, ficará sem água e sem energia elétrica em casa. Além disso, também não tem dinheiro para pagar a conta da linha telefônica. Ficará, portanto, sem poder usar seu aparelho celular. E, cara leitora, caro leitor, eu não me enganei: se José da Silva não puder pagar as contas dos serviços essenciais de água, energia elétrica e linha telefônica, terá esses fornecimentos cortados. E tudo de acordo com a lei e  com as regulações. Mas, seria diferente se ele pudesse usar o próprio aparelho celular para pedir um empréstimo. No entanto, por causa de uma Ação Civil Pública proposta em Brasília e em nome de uma suposta proteção, uma empresa que oferecia esse tipo de empréstimo está proibida de fazê-lo. O argumento é que, como o aparelho celular é bem essencial, ele não pode ser oferecido em garantia. Conclusão: José da Silva, como foi decidido judicialmente numa Ação Coletiva, tem uma proteção contra o bloqueio de seu aparelho celular. Porém, como ele não tem dinheiro para pagar a conta da linha telefônica, não vai poder utilizá-lo. Aliás, ele e seus familiares ficarão sem água para as necessidades básicas e sem energia elétrica para manter a geladeira e as luzes acesas. Ficarão na escuridão. Eu não entendi o que pretenderam fazer. Depois de tanta luta pelos direitos do consumidor, surge este caso que se diz de proteção, mas que deixa o consumidor à margem do sistema capitalista. Como é que esse consumidor, que necessita de dinheiro emprestado, vai obtê-lo? Ele está impossibilitado de utilizar um produto que lhe pertence para obter um empréstimo, o que é direito seu. Trata-se de violação ao seu direito de propriedade garantido constitucionalmente:  o direito de poder dispor de bem que lhe pertence. Simples exercício do direito de propriedade. E ele também está sendo violado em sua dignidade por não poder exercer um direito básico do sistema capitalista de solicitar em empréstimo para poder suprir suas necessidades humanas. O argumento de que o aparelho celular não pode ser entregue em garantia porque é essencial é equivocado. Se assim o fosse, então, outros produtos e serviços também não poderiam ser oferecidos em garantia. A título de comparação, cito a seguir outras hipóteses. O bem de família, por exemplo. Como se sabe, o imóvel residencial, chamado bem de família, é impenhorável por força do disposto na lei 8009/90. Trata-se de bem essencial e impenhorável. No entanto, esse imóvel pode ser oferecido em hipoteca para garantir empréstimo/dívida. E uma vez oferecido em hipoteca, ele pode ser penhorado (inciso V do art. 3º da lei 8009/90). Outro exemplo: o empréstimo consignado. A Lei nº 10.820/2003 permite que o trabalhador ofereça parte de seu sagrado salário como garantia de empréstimos, financiamentos etc., conforme definido em seu art. 1º: "Art. 1o  Os empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo decreto-lei 5.452, de 1º de maio de 1943, poderão autorizar, de forma irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento ou na sua remuneração disponível dos valores referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil, quando previsto nos respectivos contratos." Apenas com esses dois exemplos, percebe-se que o sistema legal não só permite como estimula que bens essenciais e fundamentais como moradia e salário possam ser oferecidos em garantia. E lembro: na hipoteca do bem de família, em caso de inadimplemento, o imóvel será levado a leilão público para venda e pagamento da dívida. Não há dúvida a esse respeito, inclusive com clara posição do Supremo Tribunal Federal1. No caso do consignado, todo mês o empregado tem já descontado de seu salário o valor da prestação, independentemente de qualquer medida administrativa ou judicial. E há mais: os serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás são bens absolutamente essenciais. No caso de inadimplência do consumidor, o fornecimento é interrompido. E o aparelho celular funciona com linha telefônica oferecida pelas empresas existentes no mercado, tais como a Claro, a Vivo e a Tim. E ainda que o aparelho seja usado pelo modo WiFi, também depende do oferecimento do sinal dessas companhias. Muito bem. O aparelho celular é um produto essencial, como do mesmo modo o sinal para seu uso o é.  No entanto, ninguém duvida que o atraso do pagamento da conta relativa ao sinal gere cancelamento do serviço. Se o consumidor não pagar uma conta mensal de alguma dessas companhias, terá o serviço suspenso após simples aviso, depois de certo prazo. (Nesse sentido, vide Resolução da ANATEL nº 632, artigos 90 e segs2).  Eis a enorme ironia: o serviço de fornecimento de linha telefônica pode ser cortado se a conta não for paga. Nesse caso, o consumidor possui um aparelho celular, mas não poderá usá-lo por falta de acesso à linha ou ao WiFi. Se pudesse pedir um empréstimo para pagar as contas atrasadas oferecendo seu aparelho celular como garantia, poderia utilizá-lo. Mas, o consumidor está sendo impedido de fazê-lo. Repito: pelo que penso, trata-se de violação ao seu direito de propriedade. No exercício do direito de propriedade, o consumidor pode doar seu celular para quem bem entender; pode vendê-lo pela metade de seu preço de mercado; pode simplesmente descartá-lo; enfim, o consumidor tem essas prerrogativas como proprietário. Mas, não pode oferecê-lo em garantia? Não vejo sentido. __________ 1 (STF - RE: 1307334 SP 2061577-47.2020.8.26.0000, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 09/03/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 26/05/2022). 2 Disponível aqui.
Uma das características marcantes da sociedade de consumo em todos os tempos é a de que os consumidores em geral não tem capacidade financeira para adquirir a  maior parte dos produtos e serviços oferecidos. A partir de um certo momento na história, especialmente após o período da revolução industrial, cada vez mais os fabricantes passaram a produzir bens em grandes quantidades. O intuito, como sempre, era o lucro. Com o aumento da tecnologia de produção, passou-se a poder produzir em série, de tal modo que o produto final foi ficando cada vez mais barato. O produtor passou a ter um menor lucro por cada produto vendido, mas como vende em muito maior quantidade, fatura mais e ganha mais. A criação de novos produtos e serviços fez a quantidade de variedade crescer ao infinito. Isso me faz recordar Sócrates que, quatro séculos antes de Cristo, foi ao mercado em Atenas e disse: "Como são numerosas as coisas de que eu não preciso".  Hoje, frequentando qualquer  shopping center e observando a incrível e enorme quantidade da oferta, o famoso filósofo talvez perdesse sua natural simplicidade e sua imbatível lucidez. A verdade é que o sistema capitalista que vingou, de produção em massa de produtos necessários mas também supérfluos, inúteis, só cresceu com o passar do tempo. Mas, havia um problema: os consumidores continuavam sem dinheiro para adquirir os bens oferecidos. Isso no século XX foi resolvido com a criação do sistema de oferta de créditos em massa, dos  empréstimos pré-aprovados, dos financiamentos a longo prazo e, claro, dos cartões de crédito, a porta de entrada no paraíso das compras, que permite aquisição de produtos e serviços para o consumidor que não tem dinheiro algum. A oferta de crédito, todavia, tem seu próprio limite na capacidade de pagamento do consumidor-tomador. Não adianta oferecer crédito fácil se, do outro lado da oferta, há limites restritos de devolução. Ou, dizendo de outro modo, é preciso que o fornecedor controle a capacidade de pagamento de seus clientes (daí, em parte, a justificativa para a existência dos cadastros negativos e positivos de crédito). Na verdade, o mercado criou um modelo de financiamento para quase tudo que existe à venda.  Mas, esse é um sistema que, bem ou mal, funciona - porque os consumidores, de baixa renda, conseguem a longo prazo adquirir produtos que não conseguiriam à vista, pelo menos não frequentemente. No entanto, essa mesma fórmula aplicada à certo produtos nem sempre funciona bem. Por exemplo, no setor de veículos automotores - especialmente, automóveis - e, também, no de imóveis. Quando o consumidor adquire um automóvel pelo fato de que a prestação "cabe" na sua renda - no seu salário - e apenas por conta disso, acaba cometendo um erro, pois se esquece de considerar os demais custos ordinários e extraordinários ligados ao produto. Um automóvel gera gastos imediatos e rotineiros com manutenção (revisões, trocas de peças, óleos etc.), impostos, taxas, seguros obrigatórios e voluntários, além do consumo regular. De cara, sem recursos, o consumidor acaba não fazendo o seguro voluntário para se garantir contra acidentes e roubos. Se sofrer um, já perde tudo. E, essas circunstâncias, a longo prazo, proporcionalmente, só pioram, porque o custo da manutenção aumenta e os demais permanecem. Chega uma hora em que a prestação cabia no salário, mas todos os demais custos não. Fatalmente, o consumidor tornar-se inadimplente, sendo que os veículos retornarão aos financiadores (A inadimplência no setor de veículos financiados é enorme, como se pode ver no acúmulo desses produtos nos pátios de leilões, que estão abarrotados). Pode-se dizer o mesmo em relação à venda de imóveis, principalmente, aqueles oferecidos também aos consumidores de baixa renda, eis que não basta que a prestação caiba no salário, uma vez que, como se sabe, imóveis não só exigem manutenção como o pagamento de tributos e taxas. E essa questão do superendividamento dos consumidores - especialmente, no âmbito familiar - é, atualmente, um dos temas centrais das preocupações dos consumeristas e, também, do Estado, tanto que no âmbito Federal está sendo implantado o "desenrola Brasil", sistema que permite que o consumidor inadimplente negocie e pague suas dívidas. De fato, é preciso olhar para os milhões de consumidores que se encontram endividados e que, por causa disso, estão fora do mercado de consumo. Muitos desses consumidores estão em dificuldades para adquirir bens básicos. Eles precisam de proteção, mas também de alternativas para que não fiquem sem os produtos e serviços essenciais que garantam sua subsistência e dignidade.
quinta-feira, 6 de julho de 2023

O mercado de medicamentos não tem base moral?

Albert Sabin, cientista que dispensa apresentações,  descobriu a vacina que leva seu nome e que foi aprovada pelo Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos em 1961. Seu produto, preparado com o vírus atenuado da pólio, poderia ser tomado oralmente e prevenia a contração da moléstia. Sabin renunciou aos direitos de patente da vacina que criou, facilitando sua difusão e permitindo que crianças de todo o mundo fossem imunizadas contra a poliomielite. Sua descoberta efetivamente eliminou a pólio em quase todo o mundo Não se fazem mais cientistas como Sabin. Atualmente, a corrida por registros e  patentes é uma forte marca da "inventividade humana", aliás, na maior parte dos casos, produzidas por cientistas-empregados das grandes corporações de medicina, biologia e medicamentos. Onde foi parar a humanidade da ciência? Quando um produto afeta a vida ou a saúde das pessoas, o preço justo deveria prevalecer por suas implicações morais. Mas, o mercado engole tudo. E, na medida em que os conservadores liberais passaram a dominar o chamado livre mercado e a defender que a economia deve ser deixada a si mesma, sendo que a ciência econômica deve ser neutra, isto é, não pode emitir juízos de valor, mas apenas descrever os fatos, parece que algo do humano se perdeu. E, de fato, um ser humano absolutamente "neutro", sem uma base moral, não é "bem" um ser humano, pois falta algo nele. Falta um mínimo de senso de solidariedade, de bom senso, de conduta justa etc., enfim, de "humanidade".  Lembro aqui o caso bastante conhecido de um casal de historiadores que descobriu que seu filho Lorenzo de 8 anos de idade era portador de uma doença rara e degenerativa diagnosticada como adrenoleucodistrofia (ALD), que provoca uma incurável degeneração do cérebro, levando o paciente a morte em pouco tempo. A história de Lorenzo e seus pais ficou mundialmente conhecida em função da realização do excelente filme "O óleo de Lorenzo"1. O filme é uma lição de vida e a vida de Augusto e Michaela Odone - os pais de Lorenzo --  uma lição de humanidade. Haveria muito o que falar sobre o filme (e a quem não assistiu, indico), mas vou centrar num dos aspectos: o do mercado (ou da falta dele, no caso). Mas, é necessário um pequeno resumo: O drama começa quando o casal descobre que o filho Lorenzo é portador da ALD. De acordo com os médicos, o garoto não viveria mais do que três anos. O desespero toma conta dos pais e afeta fortemente  Michaela, pois Lorenzo, além de ser seu único filho, herdara a patogenidade dela, eis que a ALD transmite-se exclusivamente de mãe para filho (somente do sexo masculino) devido a uma disfunção genética relacionada com o cromossomo sexual X. Apenas as mulheres são portadoras, havendo 50% de chances de transmitirem a doença  para o filho. Augusto e Michaela acabam por se envolver com os membros de uma ONG de pais com filhos portadores de ALD, porém constatam que esses pais se preocupavam principalmente em aceitar a doença, buscando somente a conformidade e não a cura. Inconformado com essa situação, Augusto, o pai, resolve dedicar sua vida para descobrir os fatores determinantes da doença. E, numa verdadeira epopeia, ele e Michaela acabam por descobrir um problema com a dieta dos doentes: utilizando um  óleo especial de oliva, Lorenzo conseguiu, apesar de não ter voltado  ao estado normal de saúde, barrar a doença, com melhoras significativas (Lorenzo Odone morreu aos 30 anos, em 30 de maio de 2008, um dia depois de fazer trinta anos, por causa de uma pneumonia. Ele viveu 20 anos a mais do que os médicos previram). Augusto Odone teve o reconhecimento dos seus estudos pela comunidade médica e acadêmica americanas: o título de Doutor honoris causa por sua imensa contribuição à ciência e à medicina. Eis a atuação do mercado: Os Odone haviam resolvido organizar um simpósio para ouvir cientistas e, juntando esforços, buscar uma saída para o problema. Daí, surgiram as questões mercadológicas. O médico pesquisador que tinha desenvolvido um  modelo de dieta (que não estava dando certo) disse que os custos para um evento daquele porte eram altíssimos  e que eles não conseguiriam angariar fundos para tanto. Mas, o principal: não havia interesse naquela doença, pois ela não tinha uma grande prevalência no mundo. O número de doentes era insuficiente para motivar e sustentar investimentos para a pesquisa. (Os Odone não desistiram e conseguiram realizar o Simpósio, gastando o dinheiro que tinham e recebendo doações de amigos e colegas de trabalho). A história dos Odone mostra como age o mercado de pesquisa: é a quantidade de doentes que importa. Se uma doença atingir apenas alguns poucos (ainda que milhares, na correlação com os gastos necessários para a pesquisa), certamente estarão fadados a permanecerem doentes e abandonados à própria sorte pelo mercado. Isso indica que a base do mercado não é mesmo ética. É por essas e outras que cada, vez mais, os Governos têm intervindo no mercado de medicamentos, quebrando patentes. Já que o mercado não tem base moral, a política, que deve se sustentar nela e, também, nos sistemas legais justos e protetores da dignidade da pessoa humana, deve bloquear os abusos. ______________ 1 Direção: George Miller. Produção: 1992, com Nick Nolte, Susan Sarandon, Peter Ustinov e outros. Universal Pictures Internacional.
A discussão que envolve meio ambiente, desenvolvimento sustentável, regime capitalista e consumo está sempre na ordem do dia. Na realidade, o sistema de consumo da sociedade capitalista, para existir, utiliza-se de um modelo de exploração não só das reservas naturais do planeta, como de muitas das conquistas sociais existentes nos vários países que compõem o mundo, tais como garantia de emprego, limite de horas de trabalho, direito à aposentadoria com salário justo, direito à saúde gratuita, direito ao lazer etc. Para melhorar o modelo de desgaste dos recursos naturais e, também, da influência do modelo de produção e consumo na realidade social, um caminho talvez fosse uma mudança nos hábitos de consumo. Claro que, outro caminho, seria a mudança do regime de produção e distribuição. Vejam esses dados (que variam um pouco de acordo com a fonte, mas de todo modo indicam o problema): a produção e o consumo dos Estados Unidos da América, com um número de consumidores que correspondem a aproximadamente 5% da população do planeta, contribuem com 36% das emissões de gases de efeito estufa e consomem 25% da energia mundial. No que se refere aos chamados países desenvolvidos, estes congregam um quinto da população mundial. Esta minoria, porém, consome 80% de todos os recursos naturais existentes. Logo, o padrão de consumo, do modo como está, jamais será estendido   para todas as nações. O planeta não comporta. Como quero apenas fazer algumas colocações para a nossa reflexão, eu termino por aqui, deixando,  na sequência,  uma série de máximas do comediante americano George Carlin e também algumas que eu mesmo fiz, que dizem respeito ao modo de vida da sociedade em que vivemos. De George Carlin: Se um homem sorri o tempo todo, ele provavelmente está vendendo algo que não funciona. Nós bebemos demais, gastamos sem critérios. Dirigimos rápido demais, ficamos acordados até muito tarde, acordamos muito cansados, lemos muito pouco... Multiplicamos nossos bens, mas reduzimos nossos valores. Aprendemos a sobreviver, mas não a viver; adicionamos anos à nossa vida e não vida aos nossos anos. Fizemos muitas coisas maiores, mas pouquíssimas melhores. Aprendemos a nos apressar e não, a esperar. Construímos mais computadores para armazenar mais informações, produzir mais cópias do que nunca, mas nos comunicamos cada vez menos. Essa é a era das viagens rápidas, fraldas e moral descartáveis... Um momento de muita coisa na vitrine e muito pouco na dispensa. Acrescento: Estamos na era das fusões de empresas e dos desempregados em profusões. Do acúmulo de cartões de crédito fácil e abundante e das dívidas impagáveis. Das dezenas de pares de sapatos nos armários de casa e das crianças andando descalças nas ruas. Nunca tivemos tanto acesso à informação, mas nosso conhecimento é paupérrimo. Muitos consumidores têm noção dos preços das cervejas, mas desconhecem o valor da solidariedade. Tira-se foto de tudo,  mas, realmente, não se aprecia quase nada.
Foi anunciada, nos últimos dias, a abertura de novas vagas no Programa Mais Médicos, que seleciona profissionais formados no Brasil e no exterior. Aproveito, então, o tema para, mais uma vez cuidar dos direitos e obrigações que envolvem o atendimento médico e hospitalar: os aplicáveis à relação médica/médico-paciente no consultório e no hospital, assim como à relação paciente-hospital/clínica. Naturalmente, o respeito ao Código de Defesa do Consumidor e demais normas aplicáveis vale para os médicos brasileiros, médicas brasileiras e para os estrangeiros e estrangeiras que aqui estiverem trabalhando. Daí que, de fato, o problema da comunicação entre profissional e paciente é algo que deve ser realçado e deve ser um dos primeiros entraves a serem superados. Às vezes, até o/a profissional brasileiro não se faz entender por que, ao invés de utilizar uma linguagem direta e inteligível, adota jargões científicos que o/a cliente/paciente não compreende, gerando, só por causa disso, falha no serviço e até sérios danos. Vejamos, então, um panorama geral. Tanto no consultório como no hospital, o médico ou a médica tem obrigação de prestar um atendimento adequado e dentro dos parâmetros legais. Ele ou ela   prestam serviço e, como tal, deve fazê-lo de forma técnica compatível com sua especialidade, sem ações precipitadas ou omissões injustificadas. E, sem pressa. Ele  ou ela deve gastar o tempo que for necessário para concluir o atendimento. Evidentemente, qualquer comunicação feita ao/a paciente e/ou familiar, responsável ou acompanhante há de ser feita em português, em linguagem comum de forma clara e compreensível. Repito: não importa a nacionalidade do médico ou da médica; a comunicação deve sempre ser feita nos termos da lei. É também por isso que tem o consumidor o direito de receber receitas escritas de forma legível. Nada daquilo que era comum no passado: "caligrafia de médico é assim mesmo". Não é nem um pouco engraçado ficar decifrando os "quase-hieróglifos" da receita para descobrir qual medicamento comprar e como tomá-lo. Além de sem graça, é ilegal, posto que é uma falha na informação. Esta deve ser clara, precisa, detalhada. Ademais, é evidente que a compra do remédio errado, bem como sua equivocada utilização, pode causar sérios danos ao consumidor. Nesse assunto, por sorte, cada vez mais as receitas são digitadas e entregues impressas em papel ou via e-mail/WhatsApp, o que evita o problema. A consulta é confidencial e, resguardados os casos de doenças de notificação compulsória (epidemias, por exemplo) ou risco real para terceiros, o médico ou médica deve proteger as informações que recebe de seus clientes. Na violação desse sigilo, o consumidor pode pleitear indenização. O/a profissional deve tratar o consumidor com educação e respeito a sua dignidade como ser humano, jamais podendo usar expressões preconceituosas. Esse direito se estende ao acompanhante, aos familiares e, caso ocorra, ao falecido ou falecida. Nos hospitais, os profissionais devem se apresentar devidamente identificados com crachá, no qual conste nome completo, profissão e cargo (médico, médica, anestesista etc.). Quanto ao prontuário, é direito do consumidor receber uma cópia, quer seja no consultório, quer seja no hospital ou clínica. Quando não estiver consciente, a cópia do prontuário tem que ser entregue a seu responsável legal (geralmente um familiar próximo: cônjuge, filha, filho, mãe, pai etc.). É direito do consumidor receber por escrito (também de forma legível, de preferência datilografado ou impresso via microcomputador) o relato do diagnóstico feito, bem como quais serão as condutas médicas a serem adotadas, com a descrição das etapas da doença pelas quais o/a paciente irá passar, os tratamentos que serão empreendidos, os riscos envolvidos etc., pois o/a paciente pode recusar os diagnósticos e tratamentos. Seu consentimento deve vir depois de ter recebido claras e totais informações sobre o caso em linguagem simples. Ademais, o/a paciente pode dar o consentimento e depois, se quiser, pode revogá-lo. Quando se tratar de doença grave e/ou desconhecida, é direito do/da paciente saber da expectativa que se tem sobre o resultado do tratamento, além de ser esclarecido/a a respeito do diagnóstico e do tratamento, quando se tratar de pesquisa ou procedimento experimental, assim como, também, conhecer os riscos na relação com os benefícios. É obrigação de todos:  médico/médica/hospital/clínica fazer testes antialérgicos para uso de medicamentos que apresentem riscos quando ministrados (por exemplo, penicilina), bem como teste para verificação de diabetes, quando o procedimento ou o uso do medicamento trouxer riscos em função dessa doença. É também obrigação de todos a utilização de material esterilizado ou descartável, tudo dentro das mais estritas regras de segurança e higiene. Se for necessária a utilização de sangue, o/a paciente tem direito de conhecer a procedência do sangue que irá receber. Nas consultas e intervenções o/a paciente pode ter presente um/uma acompanhante e isso é válido para o parto: o pai, querendo, pode assistir. O/a paciente tem direito de receber um orçamento prévio do serviço que será prestado e dele devem constar: o valor dos honorários; o preço dos materiais a serem empregados; as condições de pagamento (ou seja: se é à vista, parcelado, com ou sem entrada etc.); as datas de início e término do serviço ou a previsão da necessidade de sua continuidade; e o prazo de validade do orçamento. Se o orçamento não falar do prazo de validade, ele valerá por dez dias. Após a sua aprovação, não pode ser alterado. Em casos de internação de urgência, realço que a Lei 12.653, de 28-5-2012 tipificou o crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial1 para coibir os abusos praticados pelos hospitais. Por fim, lembro que todos os direitos do consumidor aqui narrados são extensivos aos familiares do/da paciente. __________ 1 A Lei acrescentou o art. 135-A ao Código Penal: Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial  Art. 135-A.  Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial:   Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Parágrafo único.  A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte.
Uma das coisas bem estruturadas e entregues ao consumidor no mercado de consumo para que ele use e que, de fato, não possa ficar sem, é o cartão de crédito. Sua implementação é um dos maiores sucessos do mercado de consumo. Meu amigo Outrem Ego trabalhou num grande banco estrangeiro, que tem agências no mundo todo. Há muitos anos, na década de oitenta, ele fez um curso sobre concessão de crédito de massa e sua cobrança (isto é, cobrança de créditos do varejo e no qual se incluem as dívidas dos cartões de crédito). Foi um excelente aprendizado, como ele diz, e cujo modelo acabou sendo implantado em todo o planeta. Veja o que ele contou sobre cartões de crédito: "O professor", disse ele, "perguntou a nós, alunas e alunos, quais eram as prioridades do consumidor no que dizia respeito ao pagamento de suas dívidas: 'Quando ele recebe seu salário no fim do mês, o que ele escolhe pagar em primeiro lugar?'. Nós respondemos que, logicamente,  pela ordem de importância: medicamentos, alimentação, serviços públicos essenciais como energia elétrica, água e gás, escola do filhos, aluguel da casa etc." Meu amigo prosseguiu: "O professor, então disse: 'É isso mesmo! O consumidor estabelece uma escala de prioridades. Ele, consciente ou inconscientemente, constrói uma pirâmide de prioridades. No topo estão os itens de primeira necessidade e na medida em que se desce a montanha vão aparecendo os débitos menos necessários ou menos urgentes. É natural, portanto, que os débitos com os bancos estejam na base da pirâmide. Ele paga todo mundo apenas se tiver dinheiro para tanto'" Outrem Ego disse que, na sequência, o professor apresentou o pulo do gato: "Nós, que trabalhamos nos bancos, temos que dar um jeito de inverter a pirâmide. Temos que colocar no topo nossos créditos. E dá para fazer: basta conseguir colocar o cartão de crédito em todas as operações existentes. No comércio, na indústria, na prestação de serviços, o que inclui médicos e hospitais, e até nas escolas, nos serviços públicos etc. Como o cartão será o instrumento mais importante do poder de compra do consumidor, a primeira coisa que ele deverá fazer quando receber seu salário será pagar sua fatura.  Estaremos no topo da pirâmide". E deu certo! Já faz bastante tempo que se pode pagar quase tudo com cartão de crédito. Existe uma verdadeira invasão de cartões, uma superexposição ao cartão de crédito; inclusive, os grandes estabelecimentos comerciais se utilizam de seu próprio cartão. Quem ainda não cansou de ouvir o caixa dizer: "Você tem cartão de crédito X?". Aliás, não é incomum, o consumidor possuir 3, 4, 5 ou mais cartões. E, na atualidade o cartão pode ser real ou virtual. De fato, tendo em vista sua praticidade, o cartão de crédito talvez seja o exemplo mais representativo da evolução das formas de pagamento na sociedade de consumo. O pagamento em moeda corrente e mesmo através do cheque foi sendo substituído pelo chamado "dinheiro de plástico". E isso por uma série de facilidades que ele oferece, além daquelas apresentadas pelo professor americano. O cartão poupa o consumidor das complicadas tarefas de assinar contratos para obtenção do crédito; idas e vindas aos bancos ou acessos via online; permite compra sem gasto, enquanto o dinheiro está em alguma aplicação financeira ou ainda não chegou; colabora com o controle do orçamento doméstico, uma vez que o extrato aponta todas as compras feitas; além de uma série de outros benefícios e serviços oferecidos pelos administradores (seguros automáticos, saque de moeda corrente etc.). Tudo isso, é claro, aliado à enorme facilidade que é ter no aparelho celular uma imagem ou no bolso apenas um pequeno documento de plástico, substituindo papel moeda, talão de cheques etc. Como no Brasil os juros cobrados pelos administradores dos cartões ainda são elevados, nem todas essas vantagens estão implementadas. O consumidor acaba fugindo do financiamento - aliás, deve fazê-lo para não correr o risco de se endividar1 --, e o cartão de crédito acaba funcionando mais como um cartão de compra. E, ademais, por isso mesmo, o cartão tem também sido muito usado na função de débito, firmando-se cada vez mais como um instrumento de compra, além do financiamento. Mas, sem dúvida, não dá para viver sem eles. __________ 1 O lado negativo do uso excessivo do cartão de crédito é exatamente este: o consumidor acaba se perdendo nas aquisições a prazo, se descontrola e se endivida ou, pior, se superendivida.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade objetiva dos fornecedores (artigos 12, 13 e 14) pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços. E ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade) tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Os vícios dos produtos e serviços seguem o mesmo modelo e rigor (artigos 18, 19 e 20). Essa responsabilidade tem como base a escolha do fornecedor para o exercício de sua atividade. Na verdade, o risco da atividade está na raiz dessa escolha. Com efeito, a Constituição Federal garante a livre iniciativa para a exploração da atividade econômica, em harmonia com uma série de princípios (CF, art. 170), iniciativa esta que é a escolha do empreendedor na sociedade capitalista contemporânea. E uma das características principais da escolha na atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa, a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. Por isso, a boa avaliação dessas possibilidades é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. Mas o risco é de quem decide escolher. É claro que são muitas as variáveis em jogo, e que devem ser avaliadas, tanto mais se existir uma autêntica competitividade no setor escolhido. Os insumos básicos para a produção, os meios de distribuição, a expectativa do consumidor em relação ao produto ou serviço a serem  produzidos, a qualidade destes, o preço, os tributos etc. são preocupações constantes. Some-se  o desenvolvimento de todos os aspectos que envolvem o marketing e  em especial a possibilidade - e, praticamente, a necessidade - da exploração da publicidade, arma conhecida para o desenvolvimento dos negócios. O empreendedor, claro,  deve levar  sempre em consideração todos os elementos envolvidos. Aqui o que interessa é o aspecto do risco, que se incrementa na intrínseca relação com o custo. Esse binômio risco/custo (ao qual acrescentarei um outro: o do custo/benefício) é determinante na análise da viabilidade do negócio. A redução da margem de risco a baixos níveis (isto é, a aplicação máxima no estudo de todas as variáveis) eleva o custo a valores astronômicos, inviabilizando o projeto econômico. Em outras palavras, o custo, para ser suportável, tem de ser definido na relação com o benefício. Esse outro binômio custo/benefício tem de ser considerado. Descobrir o ponto de equilíbrio de quanto risco vale a pena correr a um menor custo possível, para aferir a maximização do benefício, é uma das chaves do negócio. Dentro dessa estratégia geral dos negócios, como fruto da teoria do risco, um item específico é o que está intimamente ligado à sistemática normativa adotada pelo CDC. É aquele voltado à avaliação da qualidade do produto e do serviço, especialmente a adequação, finalidade, proteção à saúde, segurança e durabilidade. Tudo referendado e complementado pela informação. Em realidade, a palavra "qualidade" do produto ou do serviço pode ser o aspecto determinante, na medida em que não se pode compreender qualidade sem o respeito aos direitos básicos do consumidor. E nesse ponto da busca da qualidade surge, então, nova e particularmente, o problema do risco/custo/benefício, acrescido agora de outro aspecto considerado tanto na teoria do risco quanto pelo CDC: a produção em série1. Com a explosão da revolução industrial, a aglomeração de pessoas nos grandes centros urbanos e o inexorável aumento da complexidade social, exigia-se um modelo de produção que desse conta da sociedade que começava a surgir. A necessidade de oferecer cada vez mais produtos e serviços para um número sempre maior de pessoas fez com que a indústria passasse a produzir em grande quantidade. Mas o maior entrave para o crescimento da produção era o custo. A solução foi a produção em larga escala e em série, que, a partir de modelos previamente concebidos, permitia a diminuição dos custos. Com isso,  era possível fabricar mais bens para atingir um maior número de pessoas. O século XX inicia-se sob a égide desse modelo de produção: fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, com um custo de produção menor de cada um dos produtos, possibilitando que fossem vendidos a menor preço individual, com o que maiores parcelas de consumidores passaram a ser beneficiadas. A partir da Segunda Guerra Mundial,  esse projeto de produção capitalista passou a crescer numa velocidade jamais imaginada, fruto do incremento dos sistemas de automação, do surgimento da robótica, da telefonia por satélites, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação etc. Muito bem. O risco da atividade é decidido pelo fornecedor dentro de sua área de atuação e, no caso de danos por vícios ou defeitos, ele responde de forma objetiva. Pode ser o fabricante de veículo ou de bebidas, o prestador de serviço se água ou energia elétrica, o construtor, o banco ou a financeira etc. A escolha e o risco são do fornecedor. Se o fabricante de automóveis quiser produzir veículos com custos mais baratos, correndo o risco de aumentar os vícios de sua utilização, é decisão dele. Se um banco quiser oferecer crédito para pessoas de baixa renda, que estejam desempregadas ou com problemas de negativação, o risco é dele. No primeiro caso, o fabricante pode ter que recolher os veículos e consertá-los ou pagar indenizações e no segundo, o banco pode não receber o valor emprestado. O risco é deles. E, no caso de vícios ou defeitos, a responsabilidade civil objetiva também. __________ 1 Por causa disso, a responsabilidade objetiva tal como regulada  remanesce como um grande problema, praticamente insolúvel, para aqueles que não produzem em série especialmente  pequenos produtores, microprodutores e fabricantes pessoas físicas de produtos manufaturados e pequenos prestadores de serviços (pessoas físicas e jurídicas). A lei consumerista não abre exceção para tais fornecedores, que acabam tendo de arcar com o peso da responsabilidade objetiva, como se grandes fornecedores de produtos e serviços em série fossem.
Um dos grandes problemas do consumidor na sociedade capitalista é o de sua dificuldade em se defender publicamente contra tudo o que lhe fazem de mal. Se ele é enganado, sofre um dano etc. tem de recorrer aos órgãos de proteção ao consumidor ou contratar um advogado. É verdade que, com as redes sociais da internet e do surgimento de sites de reclamações, aos poucos, ele vai encontrando um caminho para expressar sua insatisfação com os produtos e serviços adquiridos e, também, contra toda forma de malandragem existente. Mas, ainda é pouco diante do poder de fogo de certos fornecedores que se utilizam de todas as maneiras de comunicação existentes no mercado,  tais como publicidade massiva nas redes sociais, tevês, rádios, nos jornais e revistas ainda existentes etc., e que fazem promoções milionárias constantemente, que se servem de mídias integradas, se utilizam de artistas e esportistas famosos para divulgar seus produtos (em confessionais ou por meio de merchandising e participação em anúncios), enfim, é mesmo uma luta desproporcional. Muito bem. A liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos. Mas, esse direito, entre nós, não só não é absoluto, como sua garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que para os gregos na antiguidade era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação. Todavia, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos ou oferecer produtos e serviços no mercado,  há um limite que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade. Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim. Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos. Em nosso sistema jurídico temos leis que controlam, em alguns setores, a liberdade de expressão na sua realidade objetiva. Veja-se, por exemplo, a imposição para que a testemunha ao depor em Juízo, fale a verdade.  Do mesmo modo, os advogados e as partes têm o dever de lealdade processual, proibindo-se que intencionalmente a verdade dos fatos seja alterada, adulterada, diminuída, aumentada etc. Esse dever de lealdade ___ em todas as esferas: administrativa, civil e criminal ___ é a ética fundamental da verdade imposta a todos. O mesmo se dá no regime de produção capitalista. Com base nos princípios éticos e normativos da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) regulou expressamente a informação e a publicidade enganosa, proibindo-a e tipificando-a como crime. No que diz respeito, pois, às relações jurídicas de consumo, a informação e a apresentação dos produtos e serviços, assim como os anúncios publicitários não podem faltar com a verdade daquilo que oferecem ou anunciam, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para de maneira confusa ou ambígua iludir o destinatário do anúncio: o consumidor. A lei quer a verdade objetiva e comprovada e por isso, determina que o fornecedor mantenha comprovação dos dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação  à mensagem. Aproveito esse ponto para eliminar uma confusão corrente quando se trata de criação e verdade em matéria de relações de consumo: Não existe uma ampla garantia para a liberdade de criação e expressão em matéria de publicidade. O artista goza de uma garantia constitucional de criação para sua obra de arte, mas o publicitário não. Um anúncio publicitário é, em si, um produto realizado pelo publicitário ou coletivamente pelos trabalhadores da agência. Sua razão de existir se funda em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender. Dessa maneira, se vê que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção. Ora, como a produção primária de produtos e serviços tem limites precisos na lei, por mais força de razão o anúncio que dela fala. Repito: a liberdade de criação e expressão da publicidade está limitada ao regramento legal. Por isso, não só não pode oferecer uma opinião (elemento subjetivo) como deve sempre falar e apresentar a verdade objetiva do produto e do serviço e suas maneiras de uso, consumo, suas limitações, seus riscos para o consumidor etc. Evidentemente, todas as frases, imagens, sons etc. do anúncio publicitário sofrem a mesma limitação.   Além disso, é de considerar algo evidente: o anúncio será enganoso se o que foi afirmado não se concretizar. Se o fornecedor diz que o produto dura seis meses e em dois ele está estragado, a publicidade é enganosa. Se apresenta o serviço com alta eficiência, mas o consumidor só recebe um mínimo de eficácia, o anúncio é, também, enganoso etc. Enfim, será enganoso sempre que afirmar algo que não corresponda à realidade do produto ou serviço de acordo com todas as suas características. As táticas e técnicas variam muito e todo dia surgem novas, engendradas em caros escritórios modernos onde se pensa frequentemente em como impingir produtos e serviços iludindo o consumidor.
Como se sabe, no direito do consumidor, é decadencial o prazo para a apresentação de reclamação por vícios, conforme disciplinado no art. 26 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), verbis: "Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços. § 2° Obstam a decadência: I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca; II - (Vetado). III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento. § 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito".            À primeira vista, a leitura do inciso I do § 2º do art. 26 traz fácil entendimento, uma vez que, realmente, a interpretação gramatical aponta um dos sentidos do texto: obsta a decadência a reclamação feita pelo consumidor ao fornecedor. Todavia, é de se perguntar: a) A reclamação pode ser verbal? b) Tem que ser feita pessoalmente ou pode ser pelo telefone e pela internet? c) Tem que ser feita pelo próprio consumidor ou por alguma entidade de defesa do consumidor em seu nome? d) A que pessoa real no fornecedor a reclamação tem que chegar? É evidente que uma norma protecionista que tenha conferido prazos curtos (30 e 90 dias) para o consumidor agir e não decair de seu direito tenha que ser interpretada da maneira mais ampla e abrangente possível em relação à forma de constituição dessa garantia. Além do fato de que a regra básica é de proteção ao consumidor (art. 1º), reconhecido como vulnerável (inciso I do art. 4º), cuja interpretação necessariamente deve buscar igualdade real (art. 5º, caput e inciso I, da CF), para gerar equilíbrio no caso concreto (art. 4º, III) etc. Essas características devem ser levadas em conta para o sentido de tudo o que está estabelecido no § 2º. Assim, a lei exige que o consumidor comprove que fez a reclamação, mas nada impede que esta seja verbal, pessoalmente, por telefone ou via internet. A prova dessa reclamação, se necessária, será feita no processo judicial, por todos os meios admitidos. É claro que, para o consumidor se garantir plenamente e não correr o risco de perder seu direito, o ideal será que faça a reclamação por escrito e a entregue ao fornecedor: por intermédio de Cartório de Títulos e Documentos; mediante o serviço de correios com aviso de recebimento; ou protocolando cópia diretamente no estabelecimento do fornecedor etc. Acontece que não se deve olvidar da realidade do mercado e da dinâmica do atendimento existente. São centenas de empresas que têm colocado à disposição do cliente os Serviços de Atendimento ao Consumidor, conhecidos como SACs, exatamente para receber, via telefone ou pela internet, as reclamações relativas a vícios dos produtos e dos serviços. Supor que o consumidor, em vez de se servir desse atendimento oferecido, vá burocratizar a relação, preparando um documento escrito e remetendo-o pelo Cartório, é ir contra o andamento natural das relações de consumo. Além do que, quando há SAC oferecido pelo fornecedor e posto à disposição do consumidor, esse serviço integra a oferta e assim vincula o ofertante (arts. 30 e segs. do CDC).
A partir da edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), ficou claro que a pessoa jurídica é, além de fornecedora -- fabricante, importadora, produtora, prestadora de serviços etc. - consumidora por expressa designação legal (Art. 2º, CDC). Assim, tanto na posição de fornecedora quanto na de consumidor, ela goza de direitos.  Mas, subindo um degrau na hierarquia legal, no que diz respeito à imagem, pergunta-se: em relação às garantias estabelecidas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal (CF), a pessoa jurídica está abrangida? Lembremos, primeiramente, o texto normativo da CF: "Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". A doutrina e a jurisprudência são consensuais na resposta: sim, no quadro de proteção da norma constitucional em análise, a pessoa jurídica está incluída. Contudo, há algumas limitações de ordem prática: a) A pessoa jurídica não sofre dano estético, pois este diz respeito ao aspecto físico, mecânico e fisionômico do corpo humano; b) Não pode ser violada em sua honra, eis que esta somente pode ser atribuída ao indivíduo. Anoto que, quando se fala em honra de uma instituição, tal conceito aparece em sentido meramente figurativo: estar-se-á referindo tecnicamente à imagem. É, na verdade, reputação, garantida constitucionalmente pela imagem-atributo (que tratarei adiante); c) Não sofre, também, propriamente, dano moral, uma vez que sentir dor e sofrimento é uma exclusividade humana. É verdade que parte da doutrina fala em dano moral da pessoa jurídica e muitas decisões judiciais fazem o mesmo. No entanto, cuida-se de uma impropriedade do uso do termo. Sempre que se fala em dano moral da pessoa jurídica ou de indenização pelo dano moral causado à pessoa jurídica, está-se abordando a violação à sua imagem. Não devemos esquecer que há consenso no Brasil de que dano moral implica em dor, constrangimento excessivo, angústia, sofrimentos de vários tipos etc., sentimentos que somente a pessoa natural pode experimentar; d) A pessoa jurídica não goza das garantias relativas à intimidade, essa esfera mais concêntrica dentro da órbita privada. Apenas para a pessoa humana é que se pode falar em vida íntima e intimidade. Por outro lado, porém, a pessoa jurídica goza de privacidade. Privacidade, que, oposta à publicidade, garante-lhe o direito a segredos comerciais, fórmulas e métodos que lhe pertencem reservadamente (além de decisões internas, reuniões de diretoria etc.). Esses são os elementos que compõem sua esfera privada. De resto, a característica básica de atuação da pessoa jurídica é sempre pública, independentemente de sua natureza jurídica (pública, privada, sociedade civil, comercial etc.). Isto porque a ação da pessoa jurídica no que tange aos consumidores, às demais pessoas jurídicas,  às autoridades e aos órgãos governamentais etc. se dá no meio social: no mercado ou na ação política governamental. Ela é, por isso, essencialmente pública. A pessoa jurídica tem, também, imagem. Apesar da discussão que já se fez a respeito, atualmente não resta dúvida de que a imagem da pessoa jurídica é protegida constitucionalmente. Para se compreender em que consiste essa imagem, eu recorro à mesma classificação que adoto para pessoa física1. Ela tem imagem-retrato, representada por seu nome, sua marca, seu logotipo, seus produtos, seus serviços, enfim, por tipos, sinais, letras e símbolos que a representem. Obviamente, coloco aqui a pessoa jurídica como possuidora de uma imagem-retrato de forma figurativa, por analogia ao conceito de imagem-retrato da pessoa física2. Todavia, o tipo "imagem-retrato" encaixa-se como uma luva, quando se quer entender o que está ocorrendo no uso sem autorização de uma marca ou na violação de um logotipo ou mesmo de um produto ou serviço. Percebe-se que no caso do produto há várias circunstâncias que envolvem não só o nome do produto, mas também sua embalagem, seu conteúdo, a ligação de tudo isso ao nome do fabricante e sua respectiva imagem etc. Além disso, a pessoa jurídica possui imagem-atributo3. E é aqui que reside certa confusão, no caso, não só para admitir a outra, a imagem-retrato, como para entender a distinção entre os dois tipos. Com efeito, a imagem-atributo é construída pelo meio social. Ela é, pode-se dizer, mais o que os outros reconhecem na pessoa jurídica do que sua própria designação ou construção. É uma espécie de "reputação" da pessoa jurídica. Por isso,  embora a imagem-retrato guarde em alguns casos relação com a imagem-atributo, com ela não se confunde: é que a imagem-retrato é criada pela própria pessoa jurídica tão logo ela passe a existir. Por exemplo, o nome. Mas a imagem--atributo depende da atuação dessa pessoa jurídica - desse nome - no meio social. Quando se disser que esse nome ou essa marca tem alta credibilidade, estar-se-á diante da imagem-atributo. E o texto constitucional protege a ambas: a) a imagem-retrato de uma simples e inócua empresa de contabilidade, conhecida apenas por seu único cliente ou que ainda não tenha nenhum. Ninguém pode usar aquele nome sem autorização; b) a imagem-atributo daquela mesma empresa, que formou a maior auditoria do País, com notável reputação ou credibilidade. Ninguém poderá usar seu nome sem autorização, nem poderá denegrir sua imagem e reputação. Por fim, anoto que a Constituição Federal não faz distinção de pessoa jurídica: esta pode ser nacional ou estrangeira, pública ou privada, sociedade comercial ou civil, fundação, associação sem fins lucrativos, enfim, qualquer figura reconhecida como pessoa jurídica. Por extensão, garante-se a imagem do ente despersonalizado, como a "massa falida". __________ 1 Acompanho neste ponto o Professor Luiz Alberto David Araújo, A proteção constitucional da própria imagem: pessoa física, pessoa jurídica e produto. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. 2 Diz o professor Luiz Alberto David Araújo que o direito à imagem possui duas vertentes: a primeira delas é a relativa à reprodução gráfica, como o retrato (fotografia),o desenho, a filmagem. Esta tem o nome de "imagem-retrato" (ob. cit., p. 27-30). 3 Continuando a exposição da nota anterior do Prof. Luiz Alberto, anoto, então, que a segunda vertente é a que revela as características do conjunto de atributos cultivados pelo indivíduo e que são reconhecidos pelo corpo social. Esta tem o nome de "imagem-atributo" (ob. cit., p.31-32).
quinta-feira, 4 de maio de 2023

Os contratos nas relações de consumo

Quando se pensa no contrato que envolve relações de consumo, é preciso lembrar que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece uma série de princípios e regras que precisam ser respeitados, como exponho a seguir. Começo tratando do dever de informar, que é princípio e norma no CDC, por disposição do art. 6º, III, e art. 31. De fato, na sistemática da legislação consumerista  o fornecedor está obrigado a prestar todas as informações acerca do produto e do serviço, suas características, qualidades, riscos, preço etc., de maneira clara e precisa, não se admitindo falhas ou omissões.        Trata-se de um dever exigido mesmo antes de se iniciar qualquer relação. Impõe-se ao fornecedor o dever de informar, na fase pré-contratual, isto é, na oferta, na apresentação e na publicidade. E essa informação obrigatória vai integrar o contrato. Concomitantemente ao dever de informar, aparece no CDC o princípio da transparência, traduzido na obrigação de o fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de conhecer o conteúdo do contrato previamente, ou seja, antes de assumir qualquer obrigação. Tal princípio está estabelecido no caput do art. 4º e surge como norma no art. 46, de modo que, em sendo descumprido tal dever, o consumidor não estará obrigado a cumprir o contrato.          O CDC reconhece um fato: o de que o consumidor é vulnerável na medida em que não só não tem acesso ao sistema produtivo como não tem condições de conhecer seu funcionamento (não tem informações técnicas), nem de ter informações sobre o resultado, que são os produtos e serviços oferecidos.           Esse reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida na Constituição Federal. Significa que o consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico.           O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção não se está referindo apenas aos aspectos técnicos e administrativos para a fabricação de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas também ao elemento fundamental da decisão: é o fornecedor que escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido.         O segundo aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, via de regra, o fornecedor tem em relação ao consumidor. É fato que haverá consumidores individuais com boa capacidade econômica e às vezes até superior à de pequenos fornecedores. Mas essa é a exceção da regra geral.         Claro que essa vulnerabilidade se reflete em hipossuficiência no sentido original do termo - incapacidade ou fraqueza econômica. Mas o relevante na vulnerabilidade é exatamente essa ausência de informações a respeito dos produtos e serviços que se adquire.          Por isso que, na interpretação dos contratos, tem-se de levar em conta a vulnerabilidade e a hipossuficiência do consumidor. Com base na proibição de qualquer forma de abuso do direito, expressamente estabelecida nos arts. 39 a 41 do CDC, que regula as práticas abusivas, firmou-se o entendimento de nenhuma forma de abuso está permitida. A questão está fortemente enraizada e surge de vez e definitivamente como princípio basilar nas relações de consumo, obrigando o intérprete a considerá-la sempre como fonte para entendimento do contrato. Na realidade, é preciso lembrar que o princípio do protecionismo é o que inaugura o sistema da lei consumerista. Decorre diretamente do texto constitucional, que estabelece a defesa do consumidor como um dos princípios gerais da atividade econômica (inciso V do art. 170) e impõe ao Estado o dever de promover a defesa do consumidor (inciso XXXII do art. 5º). Por isso, no que tange às questões contratuais, não se pode olvidar o protecionismo que, superadas as demais alternativas para interpretação, tem de ser levado em conta para o deslinde do caso concreto. Assim, vige o princípio da interpretatio contra stipulatorem. Com base nele, nos contratos de adesão, havendo cláusulas ambíguas, vagas ou contraditórias, a interpretação faz-se contra o estipulante. Contudo, na lei consumerista, esse princípio veio estampado de maneira mais ampla no art. 47, que estabeleceu que "as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor". Isto é, toda e qualquer cláusula, ambígua ou não, tem que ser interpretada de modo mais favorável ao consumidor. Por fim, lembro que o princípio da boa-fé objetiva acabou formando um "chapéu" em torno dos direitos subjetivos das partes, de modo que nenhuma forma de abuso do exercício do direito pode ser tolerada. Isto é, a boa-fé limita o exercício do direito subjetivo para evitar qualquer tipo de abuso, o mínimo que seja. E, neste caso, o princípio aplica-se tanto ao fornecedor como ao consumidor. Como subproduto do princípio da boa-fé está o dever de cooperação e o dever de cuidado, que examino na sequência. O verbo "cooperar" tem o sentido de operar simultaneamente, trabalhar em comum, colaborar. Em termos contratuais, então, o dever de cooperação nada mais é do que sempre colaborar para que o contrato atinja o fim para o qual foi firmado. Será contrária ao dever de cooperação a ação do contraente que inviabilize a atuação da outra parte quando esta tentar cumprir sua obrigação. Por exemplo, a ação do fornecedor impondo certas dificuldades para que o consumidor efetue o pagamento: limitação de horas, especificação de locais especiais etc. O dever de cuidado, por sua vez, diz respeito ao resguardo da segurança dos contraentes. Em poucas palavras, pode ser traduzido no dever de um contraente para com o patrimônio e a integridade física ou moral do outro contraente. É a obrigação de segurança que a parte deverá ter para não causar danos morais ou materiais à outra.
O mercado oferece a felicidade abertamente. Nos anúncios publicitários, por exemplo:"Pão de açúcar, lugar de gente feliz". Nos nomes de produtos e nas promoções como a dos brindes no Mc Lanche Feliz ou do Mc Dia Feliz do Mc Donald's. O mercado oferece também a paixão, que, claro, leva à felicidade: "Grandes paixões a gente nunca explica. Apenas sente. Seja sócio Premiere FC e viva a emoção de ver as conquistas do melhor time do Brasil: o seu!" etc. Examinando-se os anúncios publicitários, como regra, o que se vê são pessoas bem-sucedidas, sempre sorridentes, alegres, cantando, se abraçando, passeando, dançando, enfim, felizes. E não é para isso que os produtos e serviços são oferecidos? Para que as pessoas se sintam bem, se satisfaçam, atinjam seus sonhos, cheguem ao patamar desejado, isto é, se sintam felizes? Para a insatisfação com o corpo, partes postiças; para as rugas, cremes miraculosos; para as gordurinhas indesejadas cintas e roupas adequadas ou academias repletas de promessas ou, ainda, dietas que adornam a esperança; tudo, naturalmente, para que, no final das contas, nós consumidores atinjamos um excelente patamar de vida. Férias? É o momento de suprema felicidade. Pacotes de viagem, hotéis, lugares paradisíacos ou simplesmente indispensáveis (Paris, por exemplo, ou Nova York). Desfrutar os momentos de lazer, passeando à beça e conhecendo muitos lugares ou simplesmente não fazendo nada etc.; mais uma vez, para quê? Ora, sermos felizes. Quer emoção? Paixão? Não perca as finais do campeonato de futebol e sinta-se sublime. O modelo de produção muito bem engendrado foi capaz de, aos poucos, encontrar e preencher certos espaços vazios encontrados na alma humana. As pessoas foram muito bem estudadas em seus anseios, suas dificuldades, seus desejos, suas necessidades, seus comportamentos etc. Além disso, a vida social foi esmiuçada e acabou por ser penetrada pelo modelo de produção capitalista. Desse modo, aos poucos, o mercado foi avançando no meio social e penetrando no coração das pessoas. Os espaços encontrados foram sendo preenchidos pelos produtos e serviços oferecidos no mercado. Atualmente, o poder do mercado é tamanho que praticamente nada se lhe escapa. Pergunto: será que o que se esconde por detrás dessa enorme profusão de produtos e serviços é uma promessa de encontro da felicidade? Ou, dito de outro modo, será que o sucesso do mercado de consumo no atual modelo capitalista ocorre porque, no fundo, o que se está oferecendo, ainda que não declaradamente, é a felicidade? Do ponto de vista do consumismo, isto é, das compras exageradas de produtos e serviços, muitas delas desnecessárias, isso talvez explique um círculo vicioso contínuo e interminável: o consumidor vai ao mercado procurar a felicidade e compra, para tanto, sapatos, relógios, roupas, viagens etc. Mas, como nem sempre consegue ser feliz por esse meio, ele continua comprando, incessantemente, sai ano entra ano, na esperança de encontrá-la.
Continuo abordando o tema do sucesso ou fracasso do modelo de capitalismo vigente, a partir do final do Século XX. No artigo anterior deixei em aberto as seguintes questões: o modelo deu certo? É isso? O planeta está indo bem? A humanidade conseguiu atingir seu objetivo de viver em paz, harmonia, bem-estar? Ou, estamos num dos piores períodos da história da humanidade? Os números, como todos sabem, podem ser manipulados a bel prazer de quem redige os textos científicos ou não. É possível, por exemplo, apontar o desenvolvimento da medicina como algo positivo, o aumento da produção agrícola e as melhoras das condições de higiene ou mostrar os casos de confortos como o uso de telefones celulares, de ar condicionado e chuveiro com água quente, o uso de lentes de contato etc.. No entanto, infelizmente, os dados reais estão longe das ilusões vendidas pelos controladores do sistema. Indico um dado inexorável: o planeta Terra está sendo destruído pelo modo de produção e consumo existentes. As catástrofes climáticas estão à  mostra de todos. Secas de um lado e enchentes de outro, ar venenoso circulando livremente, frio no verão e calor no inverno, o aquecimento global em números nunca vistos, novos tipos de ciclones e tufões etc., o esgotamento de reservas naturais importantes etc.. Ironicamente, não só os povos dos países pobres e emergentes sofrem, mas também os dos países desenvolvidos. Gaia não escolhe pessoas por sua capacidade de riqueza, nem por suas roupas de grife ou dinheiro depositado no banco (declarados e não declarados). Gaia apenas devolve o que lhe tiraram,  para voltar ao seu equilibrado ecossistema. Como se sabe, Gaia, na mitologia grega, é o nome da deusa da Terra, companheira de Urano (Céu) e mãe dos Titãs (gigantes). Gaia é a personificação do planeta Terra, representada como uma mulher gigantesca e poderosa. O cientista britânico James Lovelock, em sua homenagem à deusa grega, criou a Hipótese de Gaia, na qual descreve o planeta Terra como um organismo vivo, que apresenta algumas características como a atmosfera com química e a capacidade para manter e alterar suas condições ambientais. Lovelock acredita que o planeta recuperará seu equilíbrio sozinho, mesmo que demore milhões de anos. Todavia, prevê, que a civilização humana pode acabar ou restar poucas pessoas. "É bem possível considerar seriamente as mudanças climáticas como uma resposta do sistema que tem como objetivo se livrar de uma espécie irritante: nós, os seres humanos... Ou pelo menos fazer com que diminua de tamanho."1 Bem, se isso é já um imbróglio criado em larga medida pelo modelo de produção e consumo, há ainda o lado humano e civilizatório. A população mundial está em explosão demográfica desde a época da Revolução industrial a partir de meados do século XVIII. Para se ter uma ideia, demorou 126 anos para que a população do planeta passasse de 1 bilhão de habitantes para 2 bilhões (de 1802 a 1928). Para atingir 3 bilhões, apenas 33 anos (em 1961) e para chegar aos 4 mais 13 anos (em 1974). E assim, numa média de 12 a 15 anos, chegou  a 7 bilhões em 2011. Atualmente, somamos mais de 8 bilhões de habitantes.2 A Terra nunca foi habitada por um tão grande contingente de seres humanos. Aliás, basta olhar o quadro acima da evolução do número de habitantes para ver que isso tornou-se um problema (em termos de ocupação do espaço existente) e uma oportunidade de aumento de vendas e receitas (para os produtores e prestadores de serviços). Contudo, com o modelo de produção e consumo implantado, o planeta está sofrendo. Infelizmente, ao chegarmos ao século XXI, vê-se que não atingimos um estágio civilizatório de que possamos nos orgulhar. Há coisas boas, mas muitas ruins como a miséria nas sociedades, a violência, o desemprego, o desamparo, os crimes de todos os tipos, as doenças comuns, os problemas de saneamento e atendimento médico,  as guerras etc.. __________ 1 Entrevista concedida à Revista Rolling Stone. Tradução de Ana Ban. 2 Disponível aqui.
É lugar comum dizer que o capitalismo é o regime vitorioso sobre todos os demais; é aquele que deu certo. E para defender essa afirmação, os neoliberais de plantão sempre têm na manga dados e números que o demostrariam. A pergunta que faço é: do que  trata essa vitória? Quem são os vitoriosos? Quais foram os louros colhidos? Se essa vitória está ligada ao marco civilizatório, este foi atingido? A humanidade, de fato, tornou-se melhor, mais feliz? E o planeta Terra como está? Abordarei uma parte dos temas capazes de responder a algumas dessas perguntas e tentar descobrir se os benefícios são maiores que os prejuízos ou vice-versa. Com efeito, os historiadores costumam apontar a origem do modelo de capitalismo que vingou ao final do feudalismo vigente na idade média. Mas, para não entediar o leitor, passando pelos vários momentos históricos, vou direto ao século XVIII. Neste, as características que conhecemos do regime capitalista já estão quase todas determinadas: a exploração da mão de obra assalariada e do meio ambiente, a moeda como base de pagamento e compra de produtos, as relações financeiras e bancárias, o aumento dos lucros, o acúmulo de riquezas, o fortalecimento da burguesia etc.   Com a revolução industrial no século XVIII, o sistema capitalista se fortalece e se expande não só na Europa como em outras regiões do planeta. Surgem as fábricas, começam as produções massificadas e em série, diminuem os preços dos produtos que podem ser oferecidos a um maior número de consumidores e aumentam as receitas e os lucros dos fabricantes. Esse modelo homogeneizador se expande aos serviços, que por sua vez vão se massificando também. Quando chegam ao crédito, o cerco sobre os consumidores está fechado: mesmo quem não tem dinheiro pode comprar; surge o endividamento - que se torna interminável e, atualmente, o superendividamento.   Muito bem. Olhando assim, parece que a expansão do modo de produção era algo favorável às pessoas, pois lhes possibilitaria adquirir cada vez mais produtos e serviços para seu conforto e bem estar, de tal maneira que, talvez, ao chegarmos ao século XXI teríamos sociedades e, consequentemente,  um planeta com pessoas mais felizes. Com a queda dos regimes socialistas e comunistas na maior parte das nações, a esperança aumentou, pois o capitalismo tornou-se o regime majoritário no século XX e, praticamente absoluto no século XXI. Some-se a isso o incremento da tecnologia - que permitiu enormes avanços na medicina e área de medicamentos -, as telecomunicações, os transportes modernos etc. e estávamos chegando num admirável mundo novo (Aldous Huxley que nos diga...). De fato, havia alguma esperança. Veja-se que o  modelo existente até início dos  anos oitenta do século XX oferecia elementos para que pudéssemos acreditar. Havia, por exemplo, concorrência entre as empresas. Era pela concorrência que se acreditava que as empresas poderiam, de um lado, oferecer melhores produtos e serviços a menores preços e, de outro, multiplicarem-se. Quanto mais empresas, mais postos de trabalho, menos concentração de renda (e de poder), mais distribuição de riquezas, mais benefícios para um maior número de pessoas, enfim, mais justiça distributiva e social. Acontece que, muito antes, ainda no Século XX, e fortemente incrementado após a segunda grande guerra, as corporações financeiras e os executivos com formação em finanças, passaram a exercer enorme influência não só na forma de produção, como na distribuição e no controle das vendas aos consumidores. Com o passar do tempo, os empregos, ou melhor, os empregados passaram a ser enxergados como custos e as oportunidades do mercado alvo (leia-se uma vaga/uma chance de venda  = um certo preço) como commodities. A relação entre as empresas e seus empregados tornou-se impessoal (um empregado = um número na planilha de custos). O mesmo ocorreu com o consumidor (um consumidor = uma oportunidade de receita na planilha de vendas). As pessoas reais, isto é,  trabalhadores e consumidores, passaram a não ter mais tanta importância:  são números que ajudam ou atrapalham. A melhora dos sistemas de distribuição e transporte permitiu que a produção se "globalizasse". As grandes empresas passaram a fabricar seus produtos (e, também, a explorar seus serviços) fora das sedes dos países desenvolvidos. Instalaram-se em outros locais, onde a mão de obra era mais barata e os trabalhadores podiam ser mais fortemente explorados, com a ajuda ou não dos governos locais. Estava, pois, tudo pronto para as fusões e incorporações. Antes concorrentes, agora as empresas passaram a se associar e trabalhar juntas. Antes disputavam o mesmo consumidor, oferecendo melhores produtos e serviços a menores preços, agora, em conjunto, nos gabinetes, os executivos das corporações,  planejam como explorar cada vez mais o mesmo consumidor, que lhes pertence. Além disso, com as fusões, milhões de seres humanos (os números para os executivos) ficaram desempregados. Diminuindo o número de empresas, a concorrência foi se esvaindo, e a receita e o lucro das corporações tornam-se monstruosos. A concentração de renda transformou-se em algo jamais visto na história da humanidade. Esse é, em resumo, o quadro atual. Pergunto: deu certo? É isso? O planeta está indo bem? A humanidade conseguiu atingir seu objetivo de viver em paz, harmonia, bem-estar? Ou, estamos num período ruim da história da humanidade? ***  É o que tentarei responder na próxima semana.
quarta-feira, 15 de março de 2023

O Dia Mundial do Consumidor

Hoje, dia 15 de março, é comemorado o dia mundial do consumidor. Famoso porque foi nesse dia, há mais de 60 anos (em 1962), que o então presidente norte-americano John Kennedy enviou ao Congresso uma mensagem na qual defendia os direitos dos consumidores, tais como o direito à segurança, à informação e à escolha e o direito de ser ouvido. E no fim de semana passado (11 de março) o nosso Código de Defesa do Consumidor (CDC) fez 32 anos de sua entrada em vigor (o que se deu em 11/3/1991). Aproveito, pois, essas datas para lembrar algumas virtudes de nossa famosa lei consumerista. Os autores do anteprojeto apresentado pelo então deputado Geraldo Alckmin, que  fez nascer o CDC,  pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Trata-se de uma lei tão importante que fez com que nós, conhecidos importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu, e ainda serve, de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, nele inspiradas. Não resta dúvida de que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como seu texto foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e, também, em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea, o exercício da cidadania confunde-se com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nos esportes em geral, nas diversões públicas,  em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como cursos, livros, filmes etc.; as compras via web/internet; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; as matrículas e os cursos realizados em escolas particulares de todos os níveis de ensino;  a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos; a aquisição de imóveis e da tão sonhada casa própria e um interminável etc. Tudo  regulado pela lei 8078/90. Por isso, digo  que o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a Constituição Federal de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Realço algo importante: o CDC não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege a parte vulnerável que é a pessoa consumidora, aliás, como é em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido. Ademais, leis que protegem o consumidor são a favor do mercado e não contra. Basta olhar para a sociedade da América do Norte e verificar que a proteção lá existente há mais tempo ajudou em muito o crescimento do mercado. E, como também já disse aqui, o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, uma data sempre lembrada. Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. De todo modo, apesar da longeva vigência e forte proteção, ainda há abusos em várias situações. Mas, repito, dá orgulho saber que o CDC é uma lei que impactou positivamente as relações jurídicas de consumo e colocou o Brasil na linha de frente do que existe de mais moderno em termos de leis de proteção aos consumidores.
Empresas mentem para seus clientes? O Código de Defesa do Consumidor (CDC) tipificou o crime de informação ou afirmação enganosa em relação aos produtos e serviços, mesmo por omissão1. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa regra é bastante didática. Isto é, apesar de pretender punir os enganadores, para os fornecedores que souberem aprender com ela (e, também, com várias outras normas contidas no CDC), certamente se beneficiarão no trato com seus clientes e no incremento da clientela. Lembro que a harmonização é um princípio fundamental do CDC, que sempre pretendeu que as relações jurídicas de consumo fossem equilibradas e pudessem beneficiar a todos os envolvidos. Infelizmente, uma boa parte do empresariado não tem como base o comportamento ético esperado pela lei (embora, eu reconheça que haja avanços pela atitude de alguns empresários mais inteligentes e menos gananciosos). Trato, pois, da "empresa mentirosa" para lembrar que, tecnicamente, a pessoa jurídica não mente nem pode mentir, pois é uma mera ficção (como, do mesmo modo, não pode sofrer dano moral, embora possa sofrer dano à imagem). Quando se fala que uma empresa mentiu, enganou, ludibriou um consumidor, evidentemente, está se querendo dizer que alguém nela o fez: foi o presidente e/ou os diretores e/ou os gerentes e/ou os demais empregados subalternos. Nos cargos de direção da alta cúpula, normalmente, existe uma espécie de amálgama entre as pessoas físicas que ocupam essa posição e a pessoa jurídica; uma fusão, uma espécie de mistura que gera uma imagem de que a pessoa humana falando como a própria pessoa jurídica, fala em nome dela, como se ela existisse realmente (embora, claro, os altos salários pagos sempre sejam depositados na conta da pessoa física!). Descendo do nível da alta direção para baixo na pirâmide burocrática, os empregados são intitulados de "colaboradores" e deles se espera que "vistam a camisa" da empresa. Nenhum problema quanto a isso, desde que as ações implementadas sejam legais. De fato, a mentira e a enganação são sempre perpetradas por dirigentes e colaboradores. Eis a ironia: todos eles são consumidores e nenhum deles - nem mesmo os dirigentes do primeiro nível hierárquico - estão livres de ser, por sua vez, enganados no mercado por outras empresas. É o fenômeno tipicamente capitalista de controle e implantação antiética de modelos de prestação de serviços que impõe que um trabalhador ou colaborador engane outro ou, dito de outro modo, é o procedimento amplamente implementado (embora não conscientizado) de batalha de um consumidor contra outro. Insisto num ponto: não há motivo algum para que as empresas não sejam transparentes na oferta e venda de seus produtos e serviços. Elas não deixarão de faturar, de auferir altas receitas e obter lucros por causa disso. Bem ao contrário: uma empresa moderna e que cumpre sua função social, respeitando a lei, seus clientes e seus empregados só tem a ganhar com isso. Não são conhecidos casos de empresas que não deram certo simplesmente porque agiram corretamente na relação com seus consumidores. __________ 1 "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços:         Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.         § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta.         § 2º Se o crime é culposo;         Pena Detenção de um a seis meses ou multa".
Após os terríveis desastres naturais causados pelas chuvas no litoral norte do Estado de São Paulo, surgiram denúncias de que alguns produtos essenciais haviam sofrido aumento abusivo de preços. Infelizmente, esse tipo de conduta é recorrente em casos de catástrofes não só no Brasil como em outros lugares do mundo. São exemplos da ganância, a sede de ganho sem limites. Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população  da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1. No livro citado, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente"2. Como eu disse acima, esse tipo de conduta não é novo nem surpreendente e já se verificou no Brasil algumas vezes. São práticas abusivas proibidas pela legislação protecionista do consumidor e, evidentemente, odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos fornecedores. Ademais, colocam à mostra defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza3; trata-se de um vício humano, sempre combatido. Lembro que, na concepção cristã, a avareza é um dos sete pecados capitais porque o avarento (e na hipótese, o ganancioso) prefere os bens materiais ao convívio com Deus. Mas, no capitalismo que vivemos, tudo parece possível.  E o Código de Defesa do Consumidor proíbe expressamente esse tipo de conduta. Com efeito, dispõe o artigo 39, V e X do CDC: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...)    V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; (...)                     X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços;" O que se espera é que os órgãos de defesa do consumidor investiguem esses casos e punam os infratores. __________ 1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11. 2 Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores. 3 Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade).
Infelizmente, todo início de ano é a mesma coisa: as chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileiras. E parte disso é previsível. Volto, pois, ao tema da responsabilidade do Estado no caso das catástrofes climáticas. Os acontecimentos envolvendo o drama das pessoas nos alagamentos, deslizamentos de terras, quedas de barreiras, destruição de imóveis etc. em vários pontos do país são o retrato de uma política de omissão que, ao que tudo indica,  repetir-se-á no ano que vem, assim como já aconteceu no ano  passado e nos anteriores. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos.  A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer,  passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio.  De nada adianta ficar acusando as vítimas depois das ocorrências, como se vê em alguns casos, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada  e, também, nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Lembro, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme  § 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra  considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização.  Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro.  Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente, o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e, também, pela vítima.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), como se sabe, regula uma série de direitos subjetivos individuais dos consumidores. E, além disso, tem uma preocupação especial com a proteção coletiva dos direitos estabelecidos. Se observarmos o título III da lei 8078/90, "Defesa do Consumidor em Juízo", perceberemos como isso é significativo. Muito embora a proteção individual não esteja excluída - o que, aliás, era mesmo de se esperar -, a natureza do regramento é claramente coletiva. Tanto que, como se sabe, o CDC é o responsável, no Sistema Jurídico Nacional, por fixar o sentido de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos. A lei consumerista permite a proteção dos consumidores em larga escala mediante Ações Civis Públicas (ACP). É por elas que o consumidor pode ser protegido por iniciativa de associações privadas e do Ministério Público (MP) em todas as esferas. Naturalmente, existe uma luta intensa no Judiciário contra esse direito fundamental por parte de algumas empresas de grande porte, por causa do impacto que decisões nesse tipo de ação judicial pode causar. E, olhando bem de perto o CDC, o que se percebe é que ele, digamos assim, "gostaria" que existissem muitas ações coletivas, pois um de seus alicerces fundamentais na questão processual é exatamente este de controlar como um todo os atos dos fornecedores. Além disso, é importante lembrar que as ações coletivas são, talvez, as únicas capazes de fazer cessar aquilo que os consumeristas chamam de "abusos de varejo": uma tática empresarial dolosa de impingir pequenas perdas a centenas ou milhares de consumidores simultaneamente. Veja-se um exemplo disso, que eu transcrevo a seguir. Trata-se de uma antiga mala-direta enviada por um grande Banco: "Prezado(a) Cliente, Temos uma novidade que vai aumentar ainda mais a sua tranquilidade. O Serviço de Proteção do seu Cartão de Crédito (...) foi ampliado e, a partir do vencimento de sua próxima fatura, você contará com o novo Seguro Cartão (...). Agora, além da proteção contra perda e roubo de seu cartão de crédito, você terá a mesma proteção para saques feitos sob coação em sua conta corrente. E mais: com o Seguro Cartão (...) você contará com um conjunto de coberturas e serviços, como renda por hospitalização e cobertura por Morte Acidental e Invalidez Permanente em consequência de crime, além de serviços de táxi, despachante, transferência inter-hospitalar e transmissão de mensagens. Por apenas R$3,50 mensais, somente R$1,00 a mais do que você paga atualmente, você terá acesso a todos esses benefícios. Esta é uma segurança da qual você não deve abrir mão. Porém, caso você queira manter apenas a cobertura atual, basta que nos próximos 30 dias você entre em contato com o (...) por Telefone. Cordialmente," Perceba o abuso: o Banco já lançou o valor de R$1,00 na fatura do consumidor. Se este não tiver interesse no novo produto/serviço enviado/lançado, terá que tomar a iniciativa de telefonar para o banco para cancelar o que nunca pediu. Agora, como se trata de apenas R$1,00 ao mês, muito provavelmente os consumidores nada farão, nem reclamarão. Individualmente não compensa. Mas, o banco terá enorme vantagem com seus milhares de clientes. Lembre-se, também, de um outro exemplo vergonhoso: o da maquiagem de pesos e medidas feita diversas vezes pelas grandes indústrias de alimentos, na qual os produtos tiveram seu peso líquido diminuído sem que os consumidores soubessem. Manteve-se o preço e diminuiu-se o peso ou a medida dos produtos em pequenas quantidades e metragens, de modo que não só os prejuízos foram individualmente pequenos, como por isso mesmo, quase não são notados. Esse tipo de manobra sempre existiu e ainda existe no mercado de consumo. A tática de abusar em pequenos volumes e valores para ganhar na quantidade está presente em ofertas e publicidade de vários tipos. É a Ação Coletiva que tem eficácia para impedir e/ou eliminar esse tipo de abuso.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O problema da doença das compras compulsivas

Volto ao tema do vício, que é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. Há vícios de todo tipo e um específico ligado às compras, contemporâneo e fruto da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e, também, é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles.   Mas, veja leitor, que interessante: a pessoa compradora compulsiva não é aquela que se satisfaz  com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode adquirir qualquer coisa que lhes surja pela frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra gerará satisfação. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, essa pessoa é uma  consumidora  típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares que as demais. Daí, ela acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ela mesma quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas joias etc. e com isso, às vezes, nem ela, nem as demais pessoas que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de colecionadora. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. Vivemos numa  sociedade de consumidores e, infelizmente, as pessoas são vistas, avaliadas e medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem adquirir. E, no século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e  de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica. Além disso, o sistema capitalista criou muitas facilidades para o pagamento das aquisições. Durante muitos anos, o comprador pagava em papel moeda, depois simplesmente passava um cheque, que representava o dinheiro e que, sintomaticamente, ele nem possuía concretamente, pois estava no banco. Quer dizer, estava num número numa conta. Nem no cofre da agência bancária estava. O sistema financeiro foi ampliando esse modelo. Num certo momento, então, como disse, o consumidor passava um cheque, que representava o dinheiro que ele possuía. Mas, depois, por conta do sistema de créditos, ele passava o cheque sem nem mesmo ter o dinheiro. Com o cheque especial, o crédito que estava à disposição funcionava como uma tentação dizendo "me usa que eu te satisfaço". Isso é tão verdadeiro, que, com a "evolução" do sistema capitalista e seus modos de estímulo para as compras e controle dos consumidores, o cheque especial, que no início tinha de ser solicitado, passou a ser colocado na conta corrente -- acoplado a ela --, sem que o cliente pedisse. Fica lá, virtualmente, como uma possibilidade. Na realidade, uma provocação ao consumo. Mudou mais ainda. O cheque está desaparecendo. O sistema de cartão de crédito é hoje um outro fortíssimo estímulo às compras. Ele é, digamos, assim, mágico. Um pedaço de plástico que dá acesso aos bens materiais existentes no mercado. Com ele se pode, quase que literalmente, adquirir tudo o que existe. Aliás, o usuário do cartão nem precisa ter dinheiro. Na atualidade, com o espetacular incremento da web/internet e dos aplicativos, não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line, os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele.  Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Muitos consumidores  não se dão conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas. Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença.  Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. É claro que, se a oneomania for de uma pessoa de posses, com liberdade para gastar, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize e sem se endividar.                                   Encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em várias cidades brasileiras os grupos de autoajuda intitulados "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", e que muito ajudam os doentes. Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas boas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.