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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Por conta de uma entrevista que dei recentemente1, acabei descobrindo algo que me deixou estarrecido: só na cidade de São Paulo, dezenas de condomínios estão cortando a água de condôminos que atrasam o pagamento das despesas condominiais. E o fazem com a desculpa de que o tema foi decidido em "assembleia de condôminos". Muito embora o assunto não envolva Direito do Consumidor, vou aqui abordá-lo porque indiretamente tem com ele relação. Vejamos os pontos. Como é sabido, não há relação de consumo entre o condômino e o condomínio no que respeita a cobrança e pagamento das despesas de condomínio, de modo que as regras do CDC não incidem na relação jurídica existente. No entanto, também como é de conhecimento geral dos operadores do Direito, quando o intérprete descobre a existência de lacunas no ordenamento jurídico no que diz respeito a certo caso examinado, ele pode e até deve preencher a ausência encontrada pelo método da integração. Isso pode ser feito lançando-se mão da analogia e dos princípios gerais do Direito2. Ora, na hipótese que envolve os métodos de cobrança utilizados pelos condomínios e seus administradores, há uma lacuna - isto é, não há lei que a regule. Logo, deve-se procurar no sistema jurídico uma norma que se aplique a fato ou comportamento semelhante. Para a hipótese, sem nenhuma dificuldade, colmata-se a lacuna utilizando-se a analogia pela norma mais próxima e adequada do sistema que é a do "caput" do art. 42 do CDC. E esta é clara na proibição dos abusos. Leia-se: "Art. 42.. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça". É importante que não percamos de vista, para o exame do presente assunto, o elemento histórico e que serve de modelo educacional no envolver de cobrança de dívidas. Quando a lei 8.078/90 foi editada, isso significou um marco histórico civilizacional no Brasil em muitos dos fatos que ali foram regulados, certas práticas abolidas e proibidas, etc. Uma das novidades incrementadas foi exatamente a do impedimento dos abusos nas cobranças. Com o advento do CDC, o devedor voltou a receber o respeito que merecia e merece como cidadão, que tem logo no início da Carta Magna a garantia de que sua dignidade não pode ser ultrajada. A sociedade passou a perceber que o devedor é aquele que, por uma série de motivos, não consegue pagar sua dívida. E que não pagar sua dívida civil ou comercial não é crime: a lei quis expungir da sociedade o estigma de mau pagador gravado, injustamente, em muitas pessoas (Eu sei, claro - como todos sabem - que há maus pagadores e que deixam de pagar suas dívidas de má-fé. Mas, é certamente a minoria; a lei quis proteger a maioria). Num regime capitalista consumista ao extremo como o nosso, em que o sistema de marketing, de forma incessante, induz o consumidor a adquirir produtos e serviços o tempo todo e com uma larga oferta de crédito e formas de pagamento, ninguém está livre de mais cedo ou mais tarde ficar em dificuldades para pagar suas contas. E, ser devedor, aliás, não coloca o consumidor à margem do sistema, pois os instrumentos de cobrança são vários, legítimos e bem regulados: a cobrança há de ser feita de acordo com as regras estabelecidas na lei, mas sem abusos. Mas, veja só: mesmo cobrado sem abusos, a situação do devedor é de alta desvantagem: ele pode ser protestado, pode ter seu nome lançado nos serviços de proteção ao crédito (ou seja, negativado), o que já o limita nas ações sociais - ele, nessa condição, fica reduzido em suas possibilidades de compras; ademais, ele pode ser cobrado judicialmente e ter seus bens penhorados; pode perdê-los em hasta pública. Isso tudo já não basta? Para a Lei sim. O credor pode exercer plenamente seu direito de cobrar, mas não pode constranger, humilhar, maltratar o devedor. Se o dono da padaria tem um cheque que voltou sem fundos, pode protestá-lo e executar o emitente, mas não pode estampar o cheque na boca do caixa, como era usual antigamente. A boa notícia: deu certo! Após e entrada em vigor do CDC, os credores melhoraram seus sistemas de cobrança, deixando de humilhar e constranger seus clientes-devedores e, nem por isso, ficaram sem receber aquilo a que tinham direito. Naturalmente, os que continuaram e ainda continuam com a prática das cobranças abusivas têm sido punidos pelo Poder Judiciário, condenados a pagar indenizações por danos morais. Infelizmente, como disse no início desse texto, aquilo que havia sido banido das práticas comerciais pela porta de frente, voltou de forma sórdida e sorrateira pelas portas dos fundos da assembleia condominial. Como disse meu amigo Outrem Ego sobre o tema: "Não sei de quem foi a ideia, mas é incrível como alguém sempre tem uma que possa causar danos e violar a dignidade da pessoa humana e é de admirar que encontre seguidores". Como eu mesmo disse na entrevista a que me referi: "Cortar a água de alguém é absolutamente constrangedor. Viola a dignidade dessa pessoa. O condomínio pode ir à Justiça para cobrar, penhorar os bens dele para pagar a dívida, mas ele tem que ser respeitado. Daqui a pouco vão impedir o condômino de subir de elevador, vão impedir que ele entre no prédio... O porteiro não vai abrir a porta? É uma coisa absurda. A gente vê por aí como é abusivo mesmo. Viver em sociedade é isso. Os outros condôminos podem entender o drama de alguém que não tem condições de pagar". Agora acrescento. Proibir uma pessoa de tomar banho, de fazer suas necessidades, de lavar o alimento que irá ingerir, de lavar seus pratos, etc. é medonho: uma violação ao sistema jurídico democrático estabelecido no Brasil. Um ataque à dignidade da pessoa humana, que tem consequências morais, psicológicas e também materiais. A pessoa ficará doente e, não só sua saúde será atingida, mas também sua imagem, sua alma. Quem assistiu ao Programa da Rede Globo viu o exemplo da matéria levada ao ar: desempregado, um cabeleireiro, pai de duas crianças, atrasou o condomínio e ficou mais de três meses sem água em casa. Mal falado pelos vizinhos, mergulhou em uma crise pessoal e quase se separou da mulher. Veja o absurdo: um casal e duas crianças ficaram três meses sem água em casa. Um escárnio com essas pessoas. Abertamente praticado. E mais: um ato que pode ser enquadrado no tipo penal do art. 345 do Código Penal 3 (exercício arbitrário das próprias razões), eis que a ameaça de corte ou o corte efetuado tem como finalidade suprimir a instância judicial de cobrança. (Não cito o art. 71 do CDC4, que tipifica o crime de cobrança abusiva, porque, como se sabe, não se pode fazer analogia para aplicar norma penal in mallam partem). Mais ainda: no Estado de São Paulo (não sei quanto aos demais) com base na lei Estadual 13.160 de 21/7/2008 o condomínio pode protestar o devedor - que só por essa via já será negativado no serviço de proteção ao crédito. E, mesmo antes do protesto ou depois dele, pode ingressar com ação judicial de cobrança, nunca se esquecendo que o devedor não pode alegar impenhorabilidade de bem de família (conforme art. 3º, IV da lei 8.009/90 e pacífico entendimento da jurisprudência nesse sentido). Repito, para concluir, que o caso mostra um retrocesso histórico enorme, um retorno a uma espécie de barbárie que havia sido extirpada das práticas nacionais. Ela é ilegal e serve para deseducar, fazendo as pessoas acreditarem que violar o outro é exercício de direito, quando está longe de sê-lo. Evidentemente, nem precisaria dizê-lo, o fato só de o ato ser autorizado por muitos (a assembleia) não muda em nada sua natureza abusiva; apenas demonstra desconhecimento e despreparo de quem vota. __________ 1Fantástico, rede Globo, domingo, dia 12/2/2012 2O costume jurídico, embora referido no art. 4º da lei de introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942, antes denominada Lei de Introdução ao Código Civil) como norma utilizável para o preenchimento da lacuna, na verdade é norma típica e, portanto, ou é própria e aplicável ao caso ou é elemento analógico. Para mais dados sobre esse tema, consultar meu Manual de Introdução ao Estudo do Direito, 11ª. edição, 2012, São Paulo: Saraiva, págs. Cap. 6, subitem 6.7.3. 3Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa. 4Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer: Pena Detenção de três meses a um ano e multa.
O herói grego é trágico porque pretende lutar contra as forças do destino e como, por mais que faça, não consegue vencê-lo, ao final dá-se a tragédia. Mas, será possível vencer o destino? Nós costumamos descrever certos acontecimentos como uma fatalidade, como algo inevitável, que havia mesmo de ocorrer, fizesse o que se fizesse. Gabriel Garcia Marques, com a maestria de sempre, escreveu "Crônica de uma morte anunciada" mostrando essa faceta da inevitabilidade. O assassinato de Santiago Nasar pelos irmãos Vicario - para vingar a honra da irmã Angela - é conhecido de antemão pelos habitantes do local, mas ninguém faz nada para evita-lo. O crime ocorre como uma fatalidade. Nós, aqui por nossas terras tupiniquins, temos assistido a uma série de situações parecidas e repetidas: todo início de ano as chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileiras; grande parte dessas catástrofes são previsíveis. Volto, portanto, ao tema que já abordei antes, pois os acontecimentos envolvendo o drama das pessoas nos alagamentos, deslizamentos de terras, quedas de barreiras, destruição de imóveis etc nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e outros são o retrato de mais uma crônica de tragédia anunciada que, ao que tudo indica, infelizmente, repetir-se-á no ano que vem, assim como já aconteceu no ano passado, no anterior, no anterior etc. Um longo etecetera de catástrofes, que poderiam ter sido evitadas. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado. O brasileiro não precisa ser um herói que não suplante seu trágico destino nem uma vítima de um Estado inoperante que conhece o futuro, mas se omite nas providências que devia tomar para modificá-lo. A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando centenas de mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer, passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio. De nada adianta ficar simplesmente acusando as vítimas depois das ocorrências, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada e também nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Faço, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local, etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos, etc. causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização. Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e também pela vítima. Pensão Os familiares que são dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Do mesmo modo, a vítima sobrevivente pode pleitear pensão pelo período em que, convalescente, tenha ficado impossibilitado de trabalhar. Outros danos materiais Além da pensão, no cômputo dos danos materiais inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como, no caso de desmoronamento da habitação, seu preço ou o custo para a construção de uma outra igual e todas as demais perdas efetivamente sofridas relacionadas ao evento. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estadia e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral, etc. Danos morais Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que no caso dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo. De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às famílias das vítimas, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto. Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé, intenção de causar o dano, ou regularmente repete os mesmos erros. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Engana-me que eu gosto

Existem várias versões para o significado da expressão "para inglês ver" e que remontam à sua origem. Uma delas diz que em 1815, os portugueses e os britânicos firmaram um compromisso, no qual Portugal se comprometeu a não mais traficar escravos. Todavia, como Portugal não vinha cumprindo o compromisso, o Parlamento Britânico acabou aprovando uma lei que criminalizava a escravatura e concedia, unilateralmente, à frota real britânica poderes para abordar e inspecionar os navios portugueses. Como estratégia para enganar os ingleses, os portugueses carregavam a embarcação que ia à frente da frota com uma carga inofensiva para ser inspecionada, levando os escravos nos navios posteriores, que se safavam da inspeção. Outra versão diz que, em 1831, o Governo português promulgou uma lei proibindo o tráfico negreiro, mas como o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, começou a circular a expressão de que a lei fora feita apenas "para inglês ver". E, ainda, outra versão diz que, após a partida da família real portuguesa para o Brasil, Portugal passou a ser uma espécie de protetorado da Inglaterra, que assumiu o comando da máquina militar lusitana na luta conjunta contra a França. Mas, os metódicos ingleses que queriam tudo organizado e por escrito tinham problemas com os práticos portugueses. Assim, a cada imposição organizacional inglesa, os portugueses botavam tudo por escrito, para mostrar que estava tudo em ordem. Mas, era só no papel. Servia apenas para agradar os ingleses e dizer que estava tudo arrumado, isto é, era só para os ingleses lerem (ou verem). Na prática, as coisas eram bem diferentes. O mesmo se dava nas visitas dos generais ingleses a certos locais, que eram preparados (maquiados, como hoje diríamos) para dar uma aparência diversa do real. Se os ingleses exigiam a construção de uma estrada, os portugueses deixavam pás, pedras e outros materiais no local da visita para simular a construção da mesma. Assim, diziam que já a estavam construindo. Era o que os ingleses viam. Ficou a expressão e o aprendizado. Mas, naquela época, consta que, de fato, os ingleses eram enganados. Neste meu primeiro artigo do ano, abordo um assunto que, infelizmente, é básico quando se trata de relações de consumo: o das mentiras e toda sorte de enganações perpetradas por muitos fornecedores. Lembrarei também uma atitude de uma grande parcela de consumidores diante das mentiras - às vezes insultuosas -: a da aquiescência pueril; aceitam o falso sem senso crítico, apenas porque ele tornou-se banal ou é bem produzido, bem comunicado ou apresentado por alguém que detém autoridade. Muitas delas, apenas para inglês ver. A propósito, atualizando a expressão e usando uma outra um pouco modificada, refiro-me a um filme tipicamente hollywoodiano, que no Brasil ganhou o título de "Esposa de mentirinha", mas que em Portugal é intitulado "Engana-me que eu gosto". Trata-se de uma simpática comédia estrelada por Adam Sandler e Jennifer Aniston. Ele, depois de uma decepção amorosa, que impediu seu casamento, continua a usar uma aliança no dedo, dizendo-se casado e, com isso, conquista muitas garotas. Diz ele no filme: "Descobri o poder da aliança". Uma brincadeira, mas que, de todo modo, ilustra um fato importante: se de um lado a mentira pode ser conscientemente utilizada, de outro, muitas vezes, a pessoa enganada, estava mesmo interessada em sê-lo. Aceita a mentira porque lhe soa cômoda ou está de acordo com seu próprio interesse ou, ainda, porque não desenvolveu senso crítico capaz de percebê-la. De há muito tempo que os consumeristas descobriram que um dos fundamentos da sociedade capitalista de consumo é a mentira. Largos setores empresariais são desonestos na relação com seus clientes, como, aliás, tenho mostrado em vários de meus artigos. Não há, claro, nenhuma novidade nisso. Quem conhece um pouco da história do comércio, da indústria, da economia, etc sabe muito bem que os segredos, as artimanhas, os conchavos, os acertos escusos, etc são a base da produção e distribuição de produtos e serviços. Transparência não é um termo conhecido ou utilizado e não é porque alguém não queira ser transparente, mas simplesmente porque é da essência do modelo capitalista. Como diria Sócrates, a quem aqui já me referi, "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". Parafraseando-o, posso dizer que no processo de produção capitalista faz-se muita coisa mas se mostra outra diferente. Vejamos a ladainha das sacolas plásticas nos supermercados da cidade de São Paulo. Evidentemente, todos estão a favor de eliminar do mercado os produtos que causem danos ao meio ambiente. Quem pode estar contra? A questão não é essa. Como disse meu amigo Outrem Ego, "Porque esse pessoal dos supermercados não veio a público e contou a verdade? Porque, simplesmente, não disseram: 'A partir de agora, os consumidores terão de pagar pelas sacolas para poderem levar suas compras". "Será que precisava de tanto esforço? Fizeram lobby junto aos vereadores; aprovaram uma lei que dizia que seria para proteger o meio ambiente; sofreram derrota na Justiça e ao final fizeram o que queriam desde o início: impingiram o custo das sacolas aos consumidores". "O interessante", disse ele, "É que sempre passa o filme 'Engana-me que eu gosto'. Tem consumidor que acredita na versão, especialmente se ela vem travestida de boas intenções como, no caso, de proteção ao meio ambiente. Boa!". E meu amigo completou "Estão dizendo para o consumidor ir ao supermercado com o carrinho de feira. Ora, se é para ir com carrinho de feira, melhor ir à feira". Algumas mentiras tornam-se lugares comuns e de tantos serem utilizadas, a população passa a nelas acreditar, inclusive algumas expressões utilizadas regularmente. Por exemplo, é costume referir-se à indústria de veículos como a "indústria nacional de veículos". Ora, nós não temos indústria nacional de veículos. São todas estrangeiras, aqui estabelecidas, muitas delas com enormes incentivos e que, todos os anos, enviam para o exterior os gordos lucros obtidos. Talvez devêssemos mesmo é lamentar que não tenhamos um veículo nacional como têm os americanos, os franceses, os italianos, os japoneses, os alemães, os coreanos, os chineses e não ficarmos nos "orgulhando" de uma indústria que não é brasileira. E, por falar nelas e no tema da verdade, lembro que os jornais dos últimos dias noticiaram que o setor remeteu às matrizes no exterior nada mais nada menos que cinco bilhões, quinhentos e oitenta milhões de dólares. Vou até repetir: US$5,58 bilhões! (Em 2010 não ficou muito longe. Foram US$4,10 bilhões). Para se poder ter uma ideia da dimensão desse quantum, veja-se que dá US$465.000 milhões por mês ou R$790.500.000,00/mês (usado o dólar a R$1,70). É mesmo muito dinheiro e que sai do suado trabalho e do salário dos brasileiros. Vamos aos fatos: esse setor industrial "nacional" produz veículos cuja qualidade em termos de tecnologia de ponta está atrasada em relação a outros lugares do mundo e os vende a preços altíssimos. O que os empresários do setor falam? Vivem reclamando dos impostos cobrados, querem por que querem incentivos fiscais (e, aliás, conseguem), cobram financiamentos públicos baratos (e também conseguem), reclamam da falta de competitividade, etc. Ora, ora, pois como diria meu amigo acima: senhores, sejam honestos. Vocês estão vendendo a altos preços produtos de tecnologia e conforto inferiores aos produzidos no exterior e obtendo lucros sensacionais. A questão é que, essas versões surradas são enfiadas pela goela das pessoas e repetidas tantas vezes que soam como verdades. As pesquisas mostram que as pessoas se acostumam com as coisas rotineiras, comuns, banais e acabam aceitando-as como válidas e verdadeiras. Ou, então, aceitam os fatos como se eles não pudessem ser diferentes. Para usar mais um exemplo de meu amigo. Disse-me ele que só percebeu que a cidade de São Paulo era tão esburacada quando viajou pela primeira vez ao exterior. Já há muitos anos ele dirigiu mais de 1.000 quilômetros por ruas e estradas americanas e canadenses sem ter passado por nenhum buraco. Mas, foi só quando retornou à São Paulo que ele percebeu como nossas ruas são incrivelmente esburacadas, onduladas, e estragadas. Vale dizer, que sem alternativa ou jogados à própria sorte, as pessoas acabam aceitando as normas, o jeito do local que habitam, enfim o mundo em que vivem como se as coisas não pudessem ser de outro modo. Quanto aos consumidores, estes estão tão absorvidos pelo mundo do marketing, da publicidade, das compras, que não conseguem se dar conta dos direitos que poderiam ter. Os consumidores vão sendo amaciados e tornam-se passivos na avaliação do real, acatando regras, contratos, imagens, textos como os ingleses do período acima citado ou pior, diante de uma realidade que, melhor avaliada, levaria à descoberta da verdade, acabam aceitando-a porque foram acostumados ao cômodo e inexorável andar das circunstâncias que não lhes pertence. Às vezes, claro, dela usufruindo, pois como diria a garota enganada pelo falso marido, "engana-me que eu gosto".
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

As perspectivas do Direito do Consumidor para 2012

No próximo ano serão comemorados os 21 anos da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (CDC - lei 8.078 de 11/9/1990, cuja vigência iniciou-se em 11/2/1991). Uma lei que pegou, conforme se costuma dizer. Um verdadeiro estatuto do cidadão-consumidor, característica esta típica das pessoas que vivem na sociedade capitalista contemporânea a partir de meados do século XX. Infelizmente, grande parte dos fornecedores, isto é, dos empresários que exploram a atividade econômica em todas as suas vertentes, ainda não percebeu os benefícios do cumprimento da lei e do respeito aos seus clientes consumidores em parte porque não precisam (os que atuam em monopólios, oligopólios e outras formas de associação), em parte porque não chegaram a ser punidos exemplarmente e também em parte por puro desconhecimento das vantagens competitivas que seriam geradas pelo respeito às normas de proteção ao consumidor. Repito o que já disse mais de uma vez : o CDC não é contra nenhum empresário; ele apenas protege o polo fraco da relação como não poderia deixar de ser. O respeito às suas determinações é favorável à produção e ao desenvolvimento. Às vezes, quando ouvimos alguns empresários falando ou assistimos a seus anúncios publicitários e campanhas comerciais, somos levados a acreditar que os consumidores estão sendo por eles beneficiados. Todavia, muitas vezes trata-se de um engodo, pois não são muitos os casos de preocupação com os direitos dos consumidores. Lembro que, certa vez, li uma entrevista dada pelo presidente de uma grande corporação internacional do ramo de alimentos, uma das líderes do setor no Brasil. Dentre vários aspectos de auto-enaltecimento da empresa que dirige, o empresário ressaltava o orgulho que tinha ao afirmar que ela funcionava com rígidos controles de qualidade no que dizia respeito à preservação da natureza, em especial no cuidado com a água e que sua empresa desenvolvia vários projetos sociais de que tanto o Brasil precisa. Fiquei feliz, afinal, tratava-se de uma empresa estrangeira explorando o mercado brasileiro e preservando nossa natureza, nossas águas e, ainda por cima, colaborando com a população brasileira em projetos sociais. No entanto, para minha decepção, no mesmo dia, lendo uma notícia de que o Ministério da Justiça havia autuado várias empresas pela prática de "maquiagem" de produtos, vi que uma delas era exatamente aquela presidida pelo entrevistado. (Como se sabe, a chamada maquiagem de produtos é uma prática abusiva que consiste na modificação da quantidade do produto em embalagens conhecidas, sem o prévio, amplo e ostensivo aviso aos consumidores. Na oportunidade foram autuadas empresas que modificaram embalagens de biscoito de 240 para 180 gramas, de "wafer" recheado de 160 para 140 gramas, de rosquinhas de 500 para 400 gramas, etc). Esse modo de atuação no mercado é base de um tipo de marketing muito praticado: uma estratégia para dar uma aparência de respeito ao direito e às pessoas, quando, na verdade, as práticas continuam sendo as mesmas de obter lucro a qualquer preço e enganando os clientes. É por isso que os consumeristas têm defendido que o mercado de consumo precisa ser mais diretamente controlado pelo Estado, posto que, se deixado à própria sorte, os abusos contra os consumidores existirão sempre em grandes quantidades. Aliás, a crise financeira internacional de 2008 (da qual o mundo ainda não se recuperou) demonstrou como é perigoso para toda a sociedade (mundial!) deixar que os próprios operadores criem as regras de trabalho. O capitalismo contemporâneo exige vigilância sobre os procedimentos e observância estrita do cumprimento das normas já existentes. Não é possível mais acreditar que o mercado de consumo resolve suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" natural que fosse capaz de corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: o empresário moderno e as grandes corporações que ele dirige quer, cada vez mais e sempre, faturar mais alto, nem que para isso ele tenha que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios e piorar a qualidade de seus produtos e serviços ou, como no caso da "maquiagem", manter a qualidade, mas alterar a embalagem para, iludindo o consumidor, aumentar sua receita. Além disso, com o fenômeno da chamada globalização, o quadro piorou. Por conta da abertura do mercado de vários países, do incremento da tecnologia e das comunicações, da melhora das condições de distribuição etc, as grandes corporações acabaram por mudar seus pólos de produção para locais que ainda não tinham - nem têm - tradição de produção de qualidade. Essas empresas foram buscar maiores lucros, pagando menores salários e produzindo bens de consumo de pior qualidade. Para lucrar mais, o empresário acaba correndo maior risco de oferecer piores produtos e serviços ao consumidor. E, com as fusões de empresas da área financeira, de seguros, comercial, industrial, etc o panorama é ainda mais desanimador, uma vez que as fusões eliminam não só postos de trabalho, gerando desempregado em larga escala (eliminando consumidores - talvez um tiro no próprio pé). As fusões põem fim à possibilidade de existência da concorrência, criando oligopólios poderosos e gananciosos com a drástica diminuição da diversidade da oferta: o consumidor vai aos poucos tendo reduzida sua possibilidade de trocar de fornecedor, o que sempre foi um eficaz elemento de proteção. Os consumidores certamente não estão satisfeitos. Não deve existir ninguém neste país que não tenha sido ludibriado, que não tenha perdido dinheiro com produtos e serviços viciados e defeituosos. São pessoas ávidas por serem bem atendidas e por receberem produtos e serviços de qualidade e que, mesmo se apresentarem defeitos, que os mesmos sejam corrigidos rapidamente. É um enorme mercado a ser explorado. Está mais do que na hora de se aprender a obter lucro tratando bem e respeitando o consumidor (ressalvo, evidentemente, o caso de alguns empresários que já fazem isso).
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Cartões de crédito: não dá para viver sem eles

O irmão de meu amigo W. Ego e que também é meu amigo, Outrem Ego, trabalhou num grande banco estrangeiro, que tem agências no mundo todo. Há muitos anos, no início da década de oitenta, ele fez um curso sobre concessão de crédito de massa e sua cobrança (isto é, cobrança de créditos do varejo; também de massa, portanto, e no qual se incluem débitos de cartões de crédito). Foi um excelente aprendizado, como ele diz, e cujo modelo acabou sendo implantado em todo o planeta. Das várias coisas que ele contou, uma sobre cartões de crédito é bastante interessante. "O professor", disse ele, "perguntou a nós, alunos, quais eram as prioridades do consumidor no que dizia respeito ao pagamento de suas dívidas: 'Quando ele recebe seu salário no fim do mês, o que ele escolhe pagar em primeiro lugar?'. Nós respondemos que, logicamente, pela ordem de importância: medicamentos, alimentação, serviços públicos essenciais como energia elétrica, água e gás, escola do filhos, aluguel da casa, etc. O professor, então disse: 'É isso mesmo! O consumidor estabelece uma escala de prioridades. Ele, consciente ou inconscientemente, constrói uma pirâmide de prioridades. No topo estão os itens de primeira necessidade e na medida em que se desce a montanha vão aparecendo os débitos menos necessários ou menos urgentes. É natural, portanto, que os débitos com os bancos estejam na base da pirâmide. Ele paga todo mundo apenas se tiver dinheiro para tanto". Outrem Ego disse que, na sequência, o professor apresentou o pulo do gato: "Nós, que trabalhamos nos bancos, temos de dar um jeito de inverter a pirâmide. Temos de colocar no topo nossos créditos. E dá para fazer: basta conseguir colocar o cartão de crédito em todas as operações existentes. No comércio, na indústria, na prestação de serviços, o que inclui médicos e hospitais, e até nas escolas, nos serviços públicos, etc. Como o cartão será o instrumento mais importante do poder de compra do consumidor, a primeira coisa que ele deverá fazer quando receber seu salário será pagar sua fatura. Estaremos no topo da pirâmide".É isso! Atualmente, já se pode pagar quase tudo com cartão de crédito (nesta semana foi anunciado que será permitido até pagar impostos com cartão de crédito e débito). Aliás, atualmente existe uma verdadeira invasão de cartões, uma superexposição ao cartão de crédito; inclusive, os grandes estabelecimentos comerciais já se utilizam de seu próprio cartão. Quem ainda não cansou de ouvir o caixa dizer "Tem cartão de crédito X? CPF na nota?". Não é incomum, o consumidor possuir mais de 10 cartões. Dito isso, aproveito o tema e apresento mais este artigo sazonal, que escrevo para lembrar o leitor-consumidor de cautelas que ele pode tomar na utilização do cartão de crédito. Indico também o que fazer em caso de roubo ou furto do cartão, lançamento indevido na fatura, etc. Veja. Tendência De fato, tendo em vista sua praticidade, o cartão de crédito talvez seja o exemplo mais representativo da evolução das formas de pagamento na sociedade de consumo. O pagamento em moeda corrente e mesmo através do cheque (que no Brasil é ainda muitíssimo utilizado) está sendo cada vez mais substituído pelo chamado "dinheiro de plástico". E isso por uma série de facilidades que ele oferece, além daquelas apresentadas pelo professor americano. Praticidade O cartão poupa o consumidor das complicadas tarefas de assinar contratos para obtenção do crédito; idas e vindas aos bancos; permite compra sem dinheiro, enquanto este está em alguma aplicação financeira ou ainda não chegou; colabora com o controle do orçamento doméstico, uma vez que o extrato aponta todas as compras feitas; além de uma série de outros benefícios e serviços oferecidos pelos administradores (seguros automáticos, saque de dinheiro, etc.). Tudo isso, é claro, aliado à enorme facilidade que é ter no bolso apenas um pequeno documento de plástico, substituindo papel moeda, talão de cheques, etc. Juros elevados Como no Brasil os juros cobrados pelos administradores dos cartões são muito elevados, nem todas essas vantagens estão implementadas. O consumidor acaba fugindo do financiamento - aliás, deve fazê-lo -, e o cartão de crédito acaba funcionando mais como um cartão de compra. E, atualmente, o cartão tem também sido usado na função de débito, firmando-se cada vez mais como um instrumento de compra e não de financiamento. Aliás, é por isso que deixo já aqui um primeiro conselho: é preciso prestar muita atenção ao financiamento das compras com o cartão de crédito; as taxas de juros são elevadíssimas. Assim, antes de optar por fazer o financiamento, vale a pena fazer pesquisas nos bancos, pois certamente serão encontradas taxas mais baratas para empréstimos. É melhor tomar dinheiro emprestado e liquidar a fatura do cartão do que fazer o financiamento direto nele. Além disso, é também possível obter boa economia nas compras em parcelas fixas mediante o uso dos cheques pré-datados. A fatura É importante agendar a data do vencimento da fatura. Como esta é entregue pelo correio, se ela não chegar até um dia antes do vencimento, é preciso entrar em contato com o serviço de atendimento do administrador, avisar do não recebimento e perguntar como fazer para pagar (geralmente com documento avulso no banco ou via internet). Vale a pena também pedir o envio de uma segunda via para arquivo e controle. Recebendo a fatura, há de ser feita imediatamente a conferência dos valores cobrados. Não é incomum lançamentos errôneos, além de casos com fraudes. Em caso de lançamento indevido, lembro que o administrador deve ser comunicado e tem de autorizar o pagamento apenas do valor correto, averiguando na sequência o ocorrido. Se ele não fizer isso, é de boa cautela agir rapidamente, procurando um serviço de proteção ao consumidor (Procon ou Juizado Especial) ou um advogado especializado. É sempre bom, também, remeter uma carta com aviso de recebimento (A.R.) tratando do assunto. E, para total garantia, anoto que mesmo com autorização para pagar o valor correto, após fazê-lo, vale mandar uma carta pelo correio com A.R. para o administrador apontando o erro e dizendo que, seguindo orientação dele próprio, foi feito o pagamento apenas do valor devido. Lembro que o decreto presidencial 6.523, que regula os SACs - Serviço de Atendimento ao Consumidor via telefone, dispõe que, quando a reclamação versar sobre serviço não solicitado ou cobrança indevida, deverá o fornecedor suspender a cobrança imediatamente, a não ser que indique o instrumento por meio do qual o serviço foi contratado e comprove que o valor é efetivamente devido. Cuidado com a guarda do cartão Se o cartão se extraviar, for furtado ou roubado, deve ser feita a comunicação imediata ao administrador, anotando as informações e/ou a senha que o atendente repassar. Naturalmente, nesse caso, também por cautela, é importante mandar uma carta pelo correio com A.R. confirmando o extravio, furto ou roubo, anotando que se está confirmando aquilo que já foi transmitido pelo telefone e indicando a data. No caso de roubo ou furto, vale a pena também fazer um boletim de ocorrência na delegacia do bairro, guardando a cópia do B.O. Bom hábito Há um bom hábito, que se deve adquirir, que é o de olhar regularmente a carteira, a bolsa, o bolso, a gaveta, etc., para ver se o cartão de crédito ainda está lá, especialmente quando não se o usa muito. Não é raro que a pessoa perca o cartão ou mesmo seja furtada sem se dar conta, só descobrindo quando resolve usá-lo ou quando chega a fatura com lançamento de compras que não fez. Esse aviso vale mais fortemente se a pessoa possuir mais de um cartão de crédito. Não se pode emprestar cartão Como se sabe, não é possível, juridicamente falando, emprestar o cartão de crédito. Mesmo assim, vale o lembrete para não se fazer esse tipo de empréstimo. Para isso, existem os cartões adicionais. E como atualmente a maior parte dos cartões já se utiliza do sistema de senha, o empréstimo gera riscos maiores por causa da revelação da mesma. Aliás, o correto é guardar a senha de cabeça e, obviamente, jamais se deve deixá-la anotada junto do cartão.
Este é mais um artigo sazonal, que escrevo para lembrar o leitor-consumidor de cautelas que ele pode tomar para fazer algum tipo de compra, projeto de compra, planejamento, etc. Hoje cuido de questões envolvendo as compras de presentes para as crianças para o Natal que se avizinha. Na correria natural de fim de ano, é comum esquecer-se de alguma coisa. Ademais a compra é compulsória e emocional. Por isso, penso que vale a pena relembrar algumas dicas que podem envolver as dificuldades para a escolha, a necessidade de testar brinquedos, os problemas das trocas, etc. Pesquisando preços Em primeiro lugar e como sempre, lembro que não se deve comprar um produto sem antes fazer uma pesquisa de preços. Nem se deve deixar levar pela aparência inicial ou pela boa conversa do vendedor. Vale pesquisar e não comprar por impulso. Os preços variam muito de loja para loja e as diferenças de preços entre os estabelecimentos podem ser muito grandes. Mas, não se deve pesquisar preços num só local. Por exemplo, numa rua ou num único shopping center. É que os lojistas também fazem pesquisas. E assim, pode acontecer que numa mesma rua, principalmente em lojas próximas, os preços não sejam tão diferentes. Vale a pena andar um pouco mais e, naturalmente, pesquisar os preços na internet e pelo telefone. E, pechinchar pode ser um bom negócio. Vale aproveitar a chance e exercer esse direito básico do consumidor, que é pechinchar, pedir desconto, negociar com o vendedor. As condições para troca Felizmente, as trocas dos presentes repetidos ou dos que não serviram, como, por exemplo, peças de vestuário, podem ser feitas na maioria dos estabelecimentos comerciais. Algumas lojas, porém, impõem algumas condições inconvenientes para efetuar as trocas, como, por exemplo, não efetuar as trocas aos sábados. Anoto que fazer troca em função de tamanho, cor ou porque o presente é repetido não é obrigação do comerciante. Contudo, se ele propõe a troca, tem que cumprir o prometido, pois cria um direito para o consumidor. É uma simples relação contratual. Daí decorre que não fazer trocas aos sábados é ilegal, porque é exigência abusiva. O comerciante não pode impor dia para a troca. Há ainda alguns outros problemas. Por exemplo, a exigência de nota fiscal para a troca. Nem sempre quem dá o presente gosta de entregar a nota fiscal ao presenteado, pois lá consta o preço. Sem alternativa, a saída é guardar a nota fiscal e, se necessário, fazer a troca. Algumas lojas se modernizaram e entregam senhas, documentos separados, etiquetas especiais etc., o que deveria ser o procedimento adotado por todas as lojas. Outro aspecto que deve ser levado em conta diz respeito às etiquetas. Há estabelecimentos que se negam a trocar o produto se a etiqueta foi removida. Para evitar aborrecimentos, aconselha-se que a etiqueta não seja retirada até que o presente seja experimentado e aprovado. De todo modo, com ou sem etiqueta, o comprador não perde o direito à troca, pois a exigência é abusiva. Cabe reclamar num órgão de defesa do consumidor e, no futuro, trocar de loja, não comprando mais lá. Vícios nos brinquedos Não se pode esquecer de perguntar se a loja faz troca do brinquedo e em quais condições. Alguns comerciantes negam-se a fazer troca de brinquedos que apresentem problemas de funcionamento (vícios), limitando-se a mandar o consumidor para a assistência técnica. Assim, para evitar transtornos, vale perguntar antes de comprar se o estabelecimento faz troca em caso de vícios (o que, aliás, é sua obrigação legal) e decidir se vale a pena comprar lá. Testando o brinquedo É importante testar o brinquedo na loja, inclusive os eletrônicos. Não se pode esquecer que, apesar de se poder trocar ou consertar posteriormente o brinquedo com defeito, a criança que ganhou o presente - às vezes tão esperado - já se frustrou. É verdade, que nessa época do ano, com as lojas cheias é mais difícil fazer os testes, mas vale a pena insistir assim mesmo. Se não der por algum motivo justo, então a saída é testar o brinquedo logo que chegar em casa. Idade adequada É preciso atenção com a questão da adequação do brinquedo à idade das crianças. Brinquedos muito sofisticados e caros nem sempre satisfazem. Alguns são complicados; outros fazem tudo sozinhos e a criança só fica olhando. Além de ser bom que a criança participe ativamente do uso do brinquedo, é necessário que ele possibilite a utilização do raciocínio e da imaginação. No caso de jogos, há que se checar a idade para a qual os fabricantes os indicam. Segurança é fundamental É necessário um cuidado especial com certos produtos, o que vale para todas as crianças e especialmente para os bebês : não se deve adquirir objetos pontiagudos ou cortantes, nem os que tenham cordões que o bebê possa enrolar no pescoço; da mesma forma não se deve adquirir pequenos objetos que as crianças possam engolir; e o mesmo cuidado deve-se ter com sacos plásticos, por causa de sufocamento. Os materiais devem ser laváveis e as tintas e demais componentes devem ser atóxicas e não descascarem. É bom lembrar : apesar da responsabilidade dos fabricantes, são os pais que devem, em primeiro lugar, estar atentos para o que adquirem. Os pais são diretamente responsáveis por checar os brinquedos que estão na posse de seus filhos. É fundamental examinar mesmo depois da compra, direta e detalhadamente o brinquedo, verificar se não há peças que podem se soltar, pedaços pequenos que as crianças podem colocar na boca, se não há partes pontiagudas, etc. É importante, também, checar os brinquedos que as crianças ganham de presente, inclusive, aqueles distribuídos nas festas dos amigos das escolas (conselho que vale para todas as festas das quais as crianças participam). Não é incomum que nessas festas sejam dados brindes de má qualidade que podem causar danos. Além disso, os pais devem fiscalizar a qualidade dos brinquedos mesmo depois de usados pelas crianças. Os brinquedos, com o desgaste, podem acabar gerando os mesmo problemas que produtos novos mal feitos. Esse tipo de vigilância constante deve sempre ser exercido pelos pais. Propaganda enganosa É preciso cuidado com propagandas enganosas. Contudo, não se deve esquecer que muitas propagandas de brinquedos são dirigidas às crianças e não ao adulto. Por isso, para avaliar esse tipo de publicidade é preciso levar também em consideração a visão que a própria criança tem - ou teria - ao ver o anúncio. De qualquer forma, há que se avaliar com calma e comparar o produto real com o oferecido no anúncio publicitário. Em relação às embalagens, é bom saber que, às vezes, a enganosidade pode estar nas fotos e informações nelas contidas. Nem sempre a apresentação corresponde ao produto real. Certificado de garantia e manuais Se o produto tiver garantia do fabricante, o certificado deve estar junto do mesmo. E, os brinquedos, jogos e outros produtos que devem ser instalados e usados mediante instruções devem ter manuais claros, escritos em português. Não se deve instalar ou utilizar o produto antes de ler, entender e seguir à risca as disposições trazidas pelo fabricante. Roupas Não se pode esquecer que as crianças crescem rapidamente, bem como mudam de hábitos, desejos e necessidades com a mesma velocidade. Assim, vale a pena levar em conta tais fatos para adquirir, por exemplo, roupas, comprando-as sempre um pouco folgadas e nunca em quantidades exageradas. Livros Uma dica importante : dar livros é fundamental, também levando em consideração a idade da criança. O mercado está repleto de excelentes livros para todas as idades e alguns são bem baratos. É um presente de total utilidade. Pode-se, claro, dar outros presentes, mas um livro junto deles nunca deve faltar.
Abrahan Lincoln disse que não se pode mentir o tempo todo, enganando todo mundo. Já Adolf Hitler dizia que qualquer mentira acaba entrando pela goela da multidão hipnotizada, por mais absurda que seja. Podemos acrescentar que, se alguma coisa for feita diuturna e rotineiramente com ares de normalidade, acaba sendo aceita por todos ou ao menos pela maioria como algo natural e, consequentemente, aceito como norma válida. Os meios de comunicação batem tanto na tecla da chamada lei seca com suas numerosas blitze que, aos poucos, as pessoas vão aceitando o fato como válido. Mas, a verdade é que, do ponto de vista jurídico, isso está longe de ser correto. Volto a um assunto que tratei em outros lugares mais de uma vez e que, penso, precisa ser compreendido adequadamente pela sociedade. Lembro que não existe uma estratégia bem elaborada para resolver o problema do consumo do álcool no país, conforme mostrei em meu artigo "As bebidas alcoólicas e o consumidor" publicado em 11/8/2011 (clique aqui) neste poderoso rotativo Migalhas1. Aliás, é de se desconfiar da existência de um real interesse em resolver o problema. Muito bem. Meu amigo Walter Ego diz: "Uma das claras diferenças entre uma democracia e uma ditadura é a de que nesta toda pessoa da sociedade civil é suspeita (de algo...); naquela, todo cidadão é inocente até prova (contundente) em contrário. Numa democracia, ninguém é suspeito até agir como tal". E ele complementa perguntando: "Dirigir um veículo é uma atitude suspeita?". Quando era estudante da graduação em Direito na PUC/SP, nos idos dos anos setenta, sonhava - todos nós sonhávamos - um dia ver a democracia real instituída no Brasil. A ditadura acabou, vieram as eleições livres e diretas e ficamos esperando. Quando surgiu a CF/88 (clique aqui), nossa esperança aumentou: afinal, era o melhor, mais democrático, mais livre e mais claro e extenso texto de garantias ao cidadão jamais estabelecido antes por aqui. Uma luz verdadeira se acendia dentro do túnel. O tempo passou e se percebe que ainda é difícil estabelecer-se um real Estado Democrático de Direito. Como estudante de Direito já há 36 anos fico triste e até, diria, um pouco descorçoado. É incrível como o poder, em todas as esferas, viola com seus procedimentos as garantias constitucionais. Foi-se a ditadura, mas permaneceu, de vários modos, a mentalidade profundamente enraizada do autoritarismo. As ações policiais, por exemplo, dirigidas por altos escalões, muitas vezes parecem ter como técnica de controle e investigação apenas e tão somente o espalhafatoso instrumento das blitze, que normalmente produzem muito pouco resultado além do espetáculo e de atrapalhar a vida dos cidadãos, que já têm muita dificuldade de se locomover pelas ruas das cidades. Veja-se o caso da atual e chamada lei seca e das ações praticadas contra a pessoa de bem. Esta é parada na via pública pela polícia, apenas e tão somente porque está dirigindo seu veículo. Pergunto: qual o elemento objetivo e legal que permite esse tipo de abordagem? Nenhum. Não há suspeita, não há comportamento perigoso, não há desvio de conduta nem manobra capaz de causar dano a outrem. A pessoa apenas está ao volante! Há, apenas, o fato de estar dirigindo um veículo após ter saído de um estabelecimento comercial ou nem isso: apenas por estar passando naquele local naquele momento. Um mero acaso. Isto é, trata-se de uma circunstância corriqueira de exercício da cidadania. Nessas condições a abordagem é ilegal. É abertamente ilegal. De onde o Estado extrai o direito de evitar a locomoção de um pai de família que sai para jantar com sua esposa ou filhos? Ou com amigos, depois de um árduo dia de trabalho? Claro que uma abordagem desse tipo seria legítima se, por exemplo, a pessoa entrasse cambaleando num veículo para dirigi-lo. Esse seria um dado objetivo válido, que geraria suspeita suficiente para a ação. Nesse caso, o policial é testemunha ocular e tem o dever de agir. Ou, então, se o veículo faz ziguezague na rua, é preciso pará-lo. Na verdade, se é para fazer blitz, então é muito mais simples manter policiais em cada porta de bar, danceteria, boate, discoteca, rave ou o que seja e impedir que o ébrio entre no veículo. Mas, se a pessoa está na rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente, não pode ser abordada e nem se lhe podem impingir conduta que ele não se disponha a fazer, sem base objetiva para tanto, como por exemplo, exigir o teste do bafômetro. Estar dirigindo um veículo automotor não é, repito, fato jurídico de per si capaz de gerar o direito da autoridade policial exigir um teste - qualquer que seja ele - de que o motorista está embriagado ou ao menos ter ingerido álcool. Daí que, pedir que um motorista que não apresenta nenhum traço, nenhum comportamento suspeito de estar alcoolizado, que faça o teste do bafômetro é abuso de direito e, no caso, abuso de autoridade. Não importa quem seja o motorista. E, antes de analisar as normas jurídicas envolvidas, gostaria de lembrar um fato irretorquível: o da ineficácia da lei e das ações policiais. Os acidentes com veículos automotores continuam acontecendo em índices alarmantes, com ou sem lei, como têm mostrado os meios de comunicação. (O problema envolve outros pontos: falta de educação, respeito ao próximo, disciplina para vida em sociedade, mudança dos padrões de consumo, limitação da publicidade e dos pontos de venda, como mostrei em meu artigo citado, o aumento da potência dos veículos, etc.). E pior: as blitze não só violam os condutores que não ingeriram álcool e que sem veem obrigados a praticar ato contra sua vontade sem base legal (soprar no bafômetro) como não conseguem alcançar o condutor que esteja embriagado, porque este simplesmente se nega a fazer o teste. Simples assim. Relembremos, então, a questão jurídica. Em primeiro lugar, leiamos a nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro: "Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". Muito bem. Trata-se de um crime de perigo, mas perigo concreto real, ao contrário do que as autoridades policiais estão adotando. O professor Luiz Flávio Gomes, em artigo publicado também no site Migalhas, deixou clara qual deve ser a interpretação do referido dispositivo. Diz ele que não basta ter ingerido certa quantidade de álcool. É preciso também estar sob influência dele. Isso porque, conforme ensina o professor, a segunda parte da regra legal ("sob influência de qualquer outra substância...") deve valer também para a primeira parte que trata do álcool. E ele está certo, pois a disjuntiva "ou" remete o conteúdo da segundo parte do texto à primeira parte. Dou também outra razão: A própria lei 11.705 que alterou o CTB assim o diz. O seu art. 7º alterou a lei 9.294/96 modificando a redação do art. 4º-A dessa lei, que passou a ter a seguinte dicção: "Art. 4º- A Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção". (grifei) Pergunto: o que significa "estar sob influência"? O professor Luiz Flávio Gomes responde: estar sob influência exige a exteriorização de um fato, de um plus que vai além da existência do álcool no corpo. No caso em discussão, esse fato seria a direção anormal. No exemplo que dei acima, a direção em ziguezague. Caso contrário, como diz o citado jurista, estar-se-ia violando o princípio constitucional implícito da ofensividade, pois a mera ingestão de álcool sem significar perigo concreto, ainda que indeterminado, geraria tipo penal de um crime abstrato, algo inadmitido no direito. E, em reforço, lembro, citando mais uma vez o professor, que para a caracterização da infração administrativa, o art. 165 do CTB, também alterado, dispõe: "dirigir sob influência do álcool". Logo, se para a mera infração administrativa (que é o menos) há que se constatar influência, para o crime (que é o mais) com muito maior razão. Digo mais. Guardados os limites de cada caso de abordagem, pode ocorrer um outro crime: o de abuso de autoridade. A lei 4.898 define os crimes de abuso de autoridade (ironicamente é uma Lei do período autoritário: 09-12-1965). Dentre eles, destaco o atentado à liberdade de locomoção e o atentado à incolumidade física do indivíduo (art. 3º, "a" e "i"). É um crime doloso, que demanda ânimo de praticá-lo e pode se dar também por omissão, como demonstram as várias decisões judiciais condenando administradores públicos em geral elencadas pelos Profs. Gilberto e Vladimir Passos de Freitas no livro "Abuso de Autoridade" (publicado pela RT - Editora Revista dos Tribunais, 9ª, ed, SP:2001). Assim, se o indivíduo não está praticando nenhum delito, a autoridade fiscal ou policial não pode levá-lo preso. O crime pode estar sendo cometido tanto pela autoridade que lhe prende, como pela que não lhe solta. É possível, pois, processar a autoridade pelo crime de abuso. No assunto atual das blitze de lei seca, pode surgir uma dúvida em relação a quem está praticando o abuso, pois o policial civil ou militar está cumprindo ordens superiores. Nesse caso, se a ordem não é manifestamente ilegal, quem comete o crime é o comandante da operação ou seus superiores, que pode chegar até mesmo ao Secretário de Estado responsável, pois desses se espera o cumprimento estrito do sistema constitucional em vigor. De todo modo, deixo anotado que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, disse com todas as letras que "sendo exigível dos agentes da lei o conhecimento da garantia constitucional de que ninguém, salvo o flagrante, pode ser detido e preso a não ser por ordem da autoridade judiciária competente; seu descumprimento configura abuso de autoridade manifesto, que não exime de responsabilidade o superior e seus subordinados" (Decisão publicada na revista RJTJRS 170/138 e citada na obra dos irmãos Passos de Freitas). O trágico nessa história é que, enquanto cidadãos de bem são abordados por policiais armados em alguns pontos das cidades, em outros pontos cidadãos de bem estão sendo assaltados por bandidos armados, dirigindo motos, automóveis ou à pé mesmo. Em comum a violência e o abandono. Não posso, como professor de Direito, depois de mais de 36 anos de magistério, ficar tranquilo com o que vejo. Aliás, nem eu nem ninguém que estude Direito, porque ao invés de ver surgir o tão almejado Estado de Direito Democrático, ao que assisto todo dia e cada vez mais é o uso de um modelo de ação estatal que não tem na lei maior, infelizmente, sua base. Finalizo com uma ironia lembrada por meu amigo Walter Ego: "Enquanto cidadãos de bem são violados dirigindo seus automóveis, ladrões roubam e matam andando sobre bicicletas, como acontece, por exemplo, rotineiramente na cidade do Guarujá".
Este é mais um artigo sazonal, que escrevo para lembrar o leitor-consumidor de cautelas que ele pode tomar para fazer algum tipo de compra, projeto de compra, planejamento etc. Hoje cuido de questões envolvendo o período de férias que se aproxima. Organizar férias nem sempre é fácil por uma série de motivos tais como a falta de tempo, a inexperiência dos iniciantes nesse tipo de empreitada, o prazo de duração da viagem, o local ou locais escolhidos, as características de cada passeio, se será por conta própria ou numa excursão etc. Às vezes, as férias são parte de um planejamento financeiro que envolve longo tempo de economias e guarda do dinheiro necessário para se fazer a tão sonhada viagem. É muito frustrante quando ela não dá certo. Em muitos casos, o aspecto emocional entra em jogo: como o consumidor está com muita vontade de ir, está ansioso para adquirir logo os bilhetes, fazer as reservas, arrumar as malas etc e pode , por isso, acabar sendo alvo de enganações. Os fornecedores conhecem o consumidor e sabem de suas expectativas e nem sempre estão muito preocupados com as dificuldades que ele pode enfrentar. É preciso, portanto, muita cautela para que dê tudo certo. Assim, para ajudar aquele que estiver planejando viajar nas férias de janeiro próximo, lembro algumas dicas básicas. Cuidado com ofertas muito vantajosas Em primeiro lugar, é preciso cuidado com o chamariz de algumas propagandas veiculadas nos canais de tevê, estações de rádios e também em revistas, jornais, folhetos e malas diretas e que oferecem preços com enormes vantagens. Muitas vezes, o anúncio apresenta o custo de apenas parte do roteiro escolhi­do. Por exemplo, mostra o preço da passagem aérea e não coloca o valor dos hotéis ou, então, apresenta o preço individual dos hotéis em quarto para três ou quatro pessoas, sem a advertência de que poderia sair mais barato em cômodos para uma ou duas etc. Outras vezes, o anúncio fala em oito dias de estada e, de fato, o roteiro só oferece seis, pois o primeiro e o último são gastos dentro do avião e nos traslados. Por isso, é importante pedir por escrito o preço do total da viagem, incluindo passagem aérea, transporte terrestre, hotéis, traslados, refeições e todos os demais itens oferecidos. Tudo discriminado. Obtido o custo total, vale a pena pesquisar preços comparando os oferecidos pelas agências. A pesquisa pode ser feita pelo telefone, via internet, pessoalmente nas agências ou mediante os anúncios dos jornais e revistas. Com os dados na mão, é possível pechinchar e obter bons descontos. Preços em moeda estrangeira Em viagens internacionais, como regra geral, os preços são apresentados em moeda estrangeira, geralmente dólar americano ou euro. É importante fazer a conversão para saber quanto realmente custará em moeda nacional. É verdade que, como o real ainda continua valorizado e com certa estabilidade em relação as demais moedas, já há ofertas em reais. De todo modo, não se pode esquecer de fazer o cálculo na nossa moeda de tudo o que será gasto. E, claro, é bom não esquecer de que, uma vez estando no exterior, tudo será cobrado e calculado na moeda estrangeira local, ainda que o pagamento esteja sendo feito com cartão de crédito. Checando escalas de voos Um item que, às vezes, passa despercebido no transporte aéreo: as escalas que o vôo fará. É possível desdobrar a passagem para visitar outra localidade, caso se deseje e sem custo ou com pequeno custo adicional. Categoria do hotel e refeições É bom checar a categoria do hotel, assim como certificar-se se no preço da diária está incluído ou não o café da manhã (No Brasil, sempre incluso, mas em alguns lugares não. Por exemplo, na Europa, é comum os hotéis cobrarem o café da manhã separado). Não esquecer também de verificar se há meia pensão (uma refeição por dia) ou pensão completa (duas refeições por dia). Fotos enganosas Fotos sempre iludiram e atualmente com os recursos do photoshop as chances de transformarem um lugar realmente muito simples num paraíso ideal aumentaram muito. Evidentemente, ainda que o fornecedor seja honesto, ele escolherá as fotos que realçarão os aspectos positivos do lugar ou das acomodações, publicará as que tiverem melhor luz, melhor ângulo etc. É preciso atenção, portanto, com as fotos dos locais a serem visitados. Deve-se olhá-las de forma bastante crítica. É verdade que nem sempre se conseguirá o intento, pois há casos extremos em que as fotos nem são do local. Quando o consumidor chega lá, vê outra coisa! Por isso tudo, a saída é checar as condições por outros métodos, pesquisando na internet e conversando com amigos que já estiveram no lugar. "Pacote" turístico Comprando um "pacote turístico", como regra, deve-se pedir por escrito o roteiro detalhado, item por item, dos dias e horários e daquilo que será feito a cada momento. E, deve-se atentar também para atrações e eventos especiais que estão programados para o decurso da viagem. O preço, às vezes, não está incluído no pacote e, estando no local, o consumidor acaba tendo de pagar em separado para participar do evento. Pagar à vista ou à prazo? O Brasil vive um momento especial com o real valorizado em relação ao dólar e demais moedas e, desse modo, ao menos nas viagens internacionais, talvez valha a pena pagar à vista. Mas, tirando essa situação atual e para os casos de preços fixados em reais, a verdade é que é sempre bom não pagar tudo à vista, pois, em caso de problemas, é possível iniciar uma discussão judicial suspendendo ou depositando em juízo os pagamen­tos que ainda irão vencer. Isso ajuda a pressionar o vendedor, facilitando a realização de um bom acordo. É também verdade que, às vezes, o parcelamento implica custos finan­ceiros muito elevados, que o inviabiliza, mas há muitas ofertas de parcelamentos sem qualquer acréscimo: vale aproveitar e pagar dividido pelo mesmo preço à vista. Guarda de documentos Nem precisaria repetir, mas não se deve esquecer de pedir recibo discriminado dos pagamentos efetuados e guardá-los junto dos demais comprovantes da viagem. O lema é, pois, agir com cautela. Em caso de problemas, é possível pleitear ressarci­mento dos danos na volta da viagem, mas, como se sabe, a documentação comprobatória de tudo é fundamental. Infelizmente, os serviços hoteleiros, dos aeroportos, de transporte etc, tanto aqui como no exterior, pioraram muito, o que tem gerado um aumento no número de violações aos direitos dos consumidores e também das demandas judiciais. Não se esqueça de produzir e guarde as provas Alguns exemplos de problemas: o hotel não corresponde ao pro­metido; chegando ao hotel, o consumidor verifica que a reserva não estava feita; descobre que não tinha banheiro no quarto; que está obrigado a pagar pelo passeio que estava incluso no pacote; que faltaram os traslados prometidos etc. Por isso, não custa anotar que é importante produzir as provas para garantir o direito de ressar­cimento dos danos na volta, por exemplo, anotando nome, telefone e endereço de pessoas que poderão servir de testemu­nhas; pedindo declaração por escrito das ocorrências nos hotéis, aeroportos etc.; tirando fotos, fazendo filmagens etc. Boas férias É isso. Sair de férias exige cuidado e paciência no preparo da viagem, pois, infelizmente, as armadilhas para o consumidor são muitas e a qualidade dos serviços, como disse, tem deixado a desejar.
Meu amigo Walter Ego conta que certa vez foi convidado para ir com outro amigo dele a um jantar na casa de um empresário. "Modo de dizer", disse ele. "É que o empresário era investidor de empresas falidas... Sei lá. Mas tinha muito dinheiro, pelo menos pelo que pude ver de sua casa e demais coisas e também do que ele falava". Pois bem. Conta meu amigo que lá chegando, foram convidados para irem ao andar debaixo, numa espécie de subsolo, para conhecer a adega de vinhos. Suntuosa, muito bem equipada e com um estoque de centenas de garrafas, muitas delas raras adquiridas em leilões internacionais e, claro, caríssimas. Todas devidamente catalogadas pelo próprio proprietário que, com muito orgulho, as mostrou dando ênfase em vários rótulos. W. Ego se animou. Pensou: "Me dei bem. Hoje tomarei um vinho que jamais poderia tomar". Mas, que nada. Feita a visita à adega, o anfitrião os levou para o andar térreo até outras três adegas dessas compradas em lojas de eletrodomésticos (embora das maiores e mais sofisticadas) e, abrindo uma das portas, escolheu duas garrafas de vinho e dali dirigiram-se à mesa para o jantar. Eram bons vinhos, mas nada que pudesse fazer frente aos raros e espetaculares da adega e que chegaram a passear nos sonhos de meu amigo. Depois, quando deu, W. Ego perguntou ao outro amigo: "Ele não bebe os vinhos lá debaixo?". "Não", respondeu o amigo, "é só para ver. Não para beber". Walter Ego retrucou: "Ele nunca beberá? Nem em ocasiões especiais? Ou com pessoas especiais?". "Acho que não. Até porque, pela idade dele e com tantas garrafas armazenadas, para toma-las todas ele já deveria ter começado a fazê-lo há muito tempo. E essas que ele bebe, ele compra a toda hora". Quando W. Ego me contou essa história, disse: "O sujeito compra um monte de vinhos só para olhar para os rótulos e garrafas? Ele as admira como se fossem troféus! Se ainda guardasse como investimento, se deixasse os vinhos envelhecerem e depois os vendesse... Ou, então, podia guardar as garrafas vazias junto das avaliações feitas após ter bebido o conteúdo!". Essa história de meu amigo fez-me lembrar de um artigo que eu li há muitos anos numa revista de avião e que teve forte impacto em mim. Era um pequeno texto desses que pedem que nós reflitamos sobre algo em nossas vidas e que, talvez, por falta de tempo nós acabamos não dando tanta importância ou mesmo porque aceitamos sem querer as coisas como elas são, como elas se apresentam ou como são impostas, determinadas pelas circunstâncias sociais, etc. O texto dizia mais ou menos o seguinte. O escritor contava a estória de um homem, casado, que entrara no quarto do casal e abrira a gaveta da cômoda onde sua mulher guardava a lingerie. Ele remexeu nas peças, olhou no meio e por baixo e acabou encontrando uma caixinha, que estava embrulhada com papel de presente. Intrigado, a examinou franziu a testa, forçou os olhos, pensou e após lembrar de algo disse para si mesmo: "Ah! É aquele bracelete de ouro que eu dei para ela há três anos. Ela gostou tanto que guardou dentro da caixinha, embrulhada com o mesmo papel que a moça da joalheria usou. Ela gostou tanto e com tanto cuidando que nunca usou". Depois, desembrulhou o presente, abriu a caixa, pegou o bracelete e disse: "Hoje ela irá usar!". Daí, dirigiu-se à sala onde estavam outras pessoas, foi até o caixão onde jazia o corpo de sua mulher morta e colocou o bracelete em seu pulso. Depois disso, o autor do artigo perguntava ao leitor se ele tinha em casa alguma coisa comprada e nunca usada. Ele dizia que as coisas que nós possuímos, independentemente de preço ou valor, só faziam algum sentido se nós as usássemos, se déssemos a ela uma finalidade, uma utilidade. Ele perguntava se o leitor tinha em casa um faqueiro nunca usado, guardado dentro da própria caixa feita pelo fabricante, se tinha peças de porcelana mantidas num armário para um dia serem usadas num jantar nunca oferecido, se tinha roupas dentro do armário que não mais usava nem iria usar ou que nunca usara, etc. Lembro-me bem da sensação que tive ao ler o artigo. Caiu-me uma ficha e eu lembrei que havia adquirido um faqueiro há muito tempo e que ele estava guardado dentro da caixa. Tomei a decisão na mesma hora. Assim que cheguei em casa, separei todos os talheres que eu tinha em uso, mas que já eram antigos (foi por isso que eu comprara o faqueiro). Dei de presente a quem precisava e coloquei em uso o faqueiro novinho, retirado de dentro da caixa. Esse artigo me tocou e eu depois fui, criticamente, me vigiando para deixar de ter em casa produtos nunca usados, o que eu faço até hoje, mas que, claro, não interessa referir. O que eu pretendo contando essas histórias é colocar a questão como reflexão nesta nossa sociedade capitalista, na qual muitos nada tem e também muitos esbanjam sobras ou colecionam objetos que não serão utilizados. Já houve quem chamasse a nossa sociedade de sociedade de colecionadores. Há, é verdade uma tradição na coleção de objetos. Coleciona-se selos, moedas, joias, etc. e que remontam a tempos antigos, como comprovam as exposições de museus. Mas, com o avanço da produção e reprodução cada vez mais precisa e mais barata, os modos de colecionar acabaram crescendo. Naturalmente, coleciona-se figurinhas até hoje, mas até isso é diferente de nosso romântico tempo de criança. Com a facilidade das compras e quantidade de ofertas, muitas pessoas passaram a colecionar uma série de objetos. Coleciona-se canetas, bolsas, sapatos, gravatas, ternos, vestidos, automóveis (!), etc. Claro que isso é problema de cada um. Quem pode acaba fazendo se lhe aprouver, mas que é estranho manter certas coleções é. Quero dizer, se for mesmo para estabelecer uma coleção autêntica, com catálogo e demonstração como num museu (não importando nem local nem tamanho) talvez se justifique. O problema, ao que parece, está mais relacionado ao que o autor disse no artigo. Muitas vezes, a pessoa guarda coisas, repetidas ou não, para nunca usar e daí ela perde a finalidade. Já se disse que a sociedade capitalista é da abundância, mas, claro, isso não corresponde à realidade. Abundam produtos e serviços, mas faltam condições básicas de sobrevivência para milhões de pessoas. Aliás, toda vez que uma empresa coloca no mercado algo novo, não é a abundância sua característica, mas sua falta para a maior parte dos que não podem comprar. Então, nessa terra de escassez, manter produtos guardados sem finalidade pode ficar sem sentido. Evidentemente que há muitas coisas que se pode ter em casa para um dia usar de verdade. Se a pessoa mantém guardados livros, dvds, cds ela certamente poderá utilizá-los. Aliás, esse é o exemplo típico de coleção que vale a pena ter. Livros, filmes, músicas. Mesmo que nós compremos um livro para apenas um dia no futuro lê-lo. Quem sabe, num dia de chuva (como este em que eu escrevo este artigo) a pessoa olhe para o livro na estante e, finalmente, resolva lê-lo. Vale mesmo a pena tê-lo ali por perto. Lembro-me de uma entrevista que li com Umberto Eco. Não sei exatamente os números que o entrevistador usou. Mas, ele dizia que uma pesquisa apontava que milhões de leitores do famoso escritor italiano haviam comprado o último livro que ele publicara, mas que apenas metade (não sei o percentual exato, repito) o havia lido e perguntava o que ele achava disso. Sua resposta foi a de que tudo indicava que as pessoas queriam ler o livro, mas estavam esperando a oportunidade para fazê-lo. Tê-lo comprado era algo importante porque quando surgisse a oportunidade, elas iriam lê-lo. Penso que, realmente, vale a pena comprar livros e guardá-los ainda que a leitura somente ocorra no futuro; o mesmo com filmes, com música e coisas semelhantes. Mas, valerá guardar gravatas? Um homem precisa mesmo ter em seu armário vinte ou trinta gravatas (Ou mais)? Uma mulher trinta bolsas ou trinta sapatos (ou mais) ? Aliás, como o design desses produtos varia com o tempo (quero dizer, com a moda imposta ao comportamento social, que muda com o passar do tempo), muitos deles ficarão sem utilidade e muitos sequer serão usados. É isso. Apenas uma apresentação de uma questão que talvez permita uma reflexão sobre os nossos modos de consumo.
quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Será que todo consumidor quer mesmo ser protegido ?

Prezado leitor, às vezes eu me pergunto: será que todo consumidor quer mesmo ser protegido? Veja o que aconteceu com meu amigo Walter Ego há algum tempo. Ele morava num condomínio de casas numa cidade próxima da capital de São Paulo. Certo dia, viu numa revista um anúncio de uma liquidação que estava sendo feita por uma loja da qual ele era cliente há muitos anos. Era um estabelecimento no bairro de Moema, que vendia - e, aliás ainda vende - sapatos, bolsas, cintos, etc. W. Ego falou com a esposa e no sábado, ele foi para São Paulo fazer compras, indo diretamente àquela loja. Foram ele, a esposa e, também, a sogra e a cunhada, que por acaso faziam-lhes uma visita e, ainda, sua filha à época de colo, com pouco mais de um ano. "Eu e quatro mulheres", disse ele. Na viagem, eles gastaram quase duas horas. Lá chegando, ele, com a filha no colo, dirigiu-se ao andar superior, onde se encontravam os produtos masculinos e as demais mulheres ficaram na andar térreo examinando as ofertas de produtos femininos. Ele demorou a encontrar sapatos que servissem e, quando desceu, viu que a esposa e as demais já aguardavam do lado de fora à porta - a loja estava cheia demais e elas haviam resolvido ir a outro lugar; só esperavam por ele. Muito bem. Ele foi para a fila à frente dos caixas: era uma fila única em zigue-zague. Na entrada da fila, havia um rapaz que fazia a triagem das compras. W. Ego entregou sua sacola com um par de sapatos e um cinto. O funcionário passou sobre a etiqueta um leitor ótico e perguntou; "O Senhor vai pagar com cheque ou cartão maestro?". Meu amigo respondeu: "Nenhum dos dois. Pagarei com meu cartão mastercard". O rapaz, então, disse "Bom, o senhor não pode comprar porque só aceitamos cartão maestro ou cheque após consulta". Sabe, querido leitor, meu amigo Walter Ego é daqueles que o tempo todo luta por seus direitos (Não deveria ser assim com todo mundo?). E ele diz: "Para exercer direitos é sempre muito importante não ficar nervoso, não levantar a voz, manter a calma... Não é bom gritar, pois fica parecendo que a gente não tem razão". Assim, depois da negativa do funcionário da loja, ele calmamente disse: "Olha, eu demorei duas horas para chegar aqui e, saiba você, que eu levarei este sapato e este cinto. Por favor, chame o gerente". O rapaz quis resistir e dizer não, mas a voz de meu amigo era tão calma e seu olhar tão penetrante que ele sequer ousou. Passados três ou quatro minutos, chegou uma senhora, se apresentando como gerente, bradando algo em tom de pouca amizade. W. Ego se apresentou e disse: "Minha senhora, recebi em minha casa, no interior, uma propaganda deste estabelecimento anunciando a liquidação. Decidi, então, vir até aqui com minha família para fazer compras. Esta aqui é minha filha!...". A mulher, por enquanto, apenas olhava e ouvia. Ele continuou: "Olha, não havia no anúncio qualquer referência a que as compras somente poderiam ser pagas com cartão maestro ou cheque. Aliás, nem aqui na loja vejo isso anunciado. Mas, eu irei levar estas compras...". Ele foi bruscamente interrompido pela gerente: "Olha aqui, não quero saber de seus problemas. Aqui só recebemos cartão maestro ou cheque. Também posso aceitar dinheiro. Se o senhor tem um deles tudo bem, senão pode ir embora!". A mulher já havia perdido as estribeiras, mas W. Ego não se abalou. Ele, com uma fala mansa, simplesmente disse: "Minha senhora, esta loja está violando o Código de Defesa do Consumidor por falta de informação, mas eu tenho a solução. Basta a senhora anotar meus dados, emitir uma duplicata em meu nome com vencimento à vista ou para segunda-feira, emitir um boleto ou me passar os dados da conta corrente da empresa, que na própria segunda-feira eu pagarei". A mulher ouviu e em seguida deu uma gargalhada histérica e falou: "De jeito nenhum. Pode ir andando...". Meu amigo, inabalável, disse: "Olha, o caso é de crime tipificado no artigo 66 da lei 8078/90. Eu chamarei a polícia e a senhora irá presa em flagrante..." e pegou o celular. Caro leitor, sabe o que aconteceu naquele exato momento? Com a discussão, Walter Ego bloqueara a entrada dos caixas. Atrás dele formara-se uma extensa fila e as pessoas que estavam lá esperando começaram a protestar. Mas, adivinhem: começaram a protestar contra ele! Começaram a reclamar e alguns até o xingaram. Ele ainda tentou retrucar dizendo, agora já abalado, "Eu estou lutando pelo direito de vocês!", mas não adiantou. Estava todo mundo contra ele, que desanimado jogou a toalha. A essa altura, sua esposa já havia entrado na loja e entregou para ele dinheiro suficiente para pagar as compras. Ele, bastante contrariado, pagou em dinheiro e foi embora. Não é incrível? Foram os próprios consumidores que impediram que o consumidor Walter Ego exercesse seus direitos. E, claro, ele não só tinha razão como estava mesmo defendendo o direito de todos os consumidores, porque o abuso da loja, evidentemente, não era contra meu amigo, mas contra todos! Esse fenômeno, no Brasil, infelizmente, não é novo; é muito enraizado num individualismo que desconsidera o outro - um igual em direitos -, que é desprezado, com base no slogan "não é comigo". Um erro, naturalmente, mas bem profundo. Esse tipo de atitude é parente da má educação em geral, do descumprimento aberto das normas mais básicas de civilidade, que vai desde o não dar "bom dia" ou "até logo" dentro do elevador às pessoas que moram no mesmo prédio até o desrespeito abertamente praticado às faixas de pedestres por parte dos motoristas e também a travessia fora da faixa em qualquer lugar e a qualquer momento por parte dos pedestres, ou o excesso de ruído com músicas tocadas em alto volume e até altas horas incomodando os vizinhos sem nenhuma preocupação, etc. Aliás, essa falta de civilidade, solidariedade e respeito ao próximo por parte de muitas pessoas, impede que a sociedade se organize na defesa de prerrogativas e garantias na luta contra os poderosos (de todos os tipos), o que facilita a dominação por parte destes. Na doutrina consumerista - o que também aparece muitas vezes nas peças processuais dos fornecedores -, muito se discutiu sobre a proteção que a lei dá ao consumidor; se seria ou não excessiva. Eu sou daqueles que acreditam que a lei 8.078/90 buscou, com a proteção efetuada, reequilibrar as forças muito desiguais do mercado de consumo, mas admito, por exemplo, que pequenos fornecedores também precisariam de alguma proteção e muito esclarecimento (critica que faço à responsabilidade objetiva estabelecida de forma ampla indiscriminadamente para as grandes corporações e ao mesmo tempo para os microempresários). Admito também que pode sim o consumidor lesar o fornecedor, não só em atitudes francamente fraudulentas, como violando o princípio da boa-fé objetiva estabelecido no sistema legal. E, acima disso, penso que uma proteção exacerbada não só não resolve como impede o amadurecimento e a autonomia. (Em matéria de educação infantil, por exemplo, isso é fundamental. Não basta proteger, é preciso dar autonomia para as decisões; é necessário que, aos poucos, a criança aprenda a resolver alguns dos problemas que aparecem, para que, quando adulto, saiba fazer o mesmo). Vejam a chamada lei do couvert, em vigor no Estado de São Paulo desde setembro p.p. O consumidor precisava dela? Será que não podia o consumidor, ele mesmo, sem ajuda de ninguém, quando o garçom trouxesse o couvert dizer "Não quero, obrigado". Precisava da ajuda do Estado para exercer um direito tão banal como dizer não? Talvez alguns precisem, pois são consumidores, digamos assim, muito incapazes de lutar por seus direitos, mantidos que estão na infância de sua cidadania. Por isso, é que se compreende que em cada estabelecimento - também como manda a lei - haja um exemplar do CDC: algo irônico, porque certamente a maior parte dos consumidores e dos lojistas terá dificuldade de encontrar na lei qual a norma incidente numa eventual discussão (já que o texto cuida de princípios, é especifico para poucas situações concretas, etc). Aliás, a propósito, Walter Ego foi jantar no seu restaurante japonês predileto. Sentou-se à mesa com sua esposa e pediu sushis e sashimis. Passado um tempo, notou que o couvert (que eles adoram) não chegava e reclamou. O garçom disse que não o trouxe porque eles não pediram, conforme estava escrito no cardápio, mas W. Ego nem olhou o cardápio, pois já sabia o que queria. Daí, perguntou: "Porque você não ofereceu o couvert". A resposta? "A lei proíbe". Eu, curioso, fui ler a lei e, de fato, uma interpretação estritamente gramatical leva à conclusão da proibição de oferecimento. É que o art. 2º "caput" dispõe: "Fica vedado aos estabelecimentos descritos no artigo 1° o fornecimento do serviço de 'couvert' ao consumidor sem solicitação prévia, salvo se oferecido gratuitamente". E o dono do restaurante fez a interpretação desse modo. Os garçons estavam proibidos de oferecerem os petiscos. Só serviam se fosse pedido, conforme constava do cardápio. O que, convenhamos, é um exagero. Antes, o couvert era empurrado, agora é esquecido. E dá-lhe excesso de proteção. (Walter Ego, disse ao garçom que a interpretação teleológica do texto normativo permitiria ao menos oferecer o couvert dizendo que era cobrado. Ele não falou, é verdade, nesses termos; não usou a expressão "interpretação teleológica"; disse apenas que se tratava de bom senso). Espera-se bom senso em qualquer dos lados das relações de consumo, assim como na aplicação do Direito. Mas, como ainda em alguns estabelecimentos os garçons simplesmente colocam o couvert à frente do cliente sem nada dizerem, isto é, sem o pedido e sem informarem que ele tem um preço que será cobrado, basta ao consumidor, quando vier a conta, pedir para retirar o valor da fatura. A lei Estadual é clara nesse sentido. Mas, como perguntaria Walter Ego, "já não era assim antes, mesmo sem essa lei? Podia o restaurante cobrar pelo couvert sem ter ao menos dito o preço ou sem o pedido do consumidor ou ainda sem anunciar o preço no cardápio?". Não, não podia. Na verdade, o que é preciso mudar é a atitude de alguns consumidores no exercício de seus direitos.
No dia 20 de setembro p.p., o editor deste poderoso e querido rotativo Migalhas, sob a epígrafe "Junto e misturado", disse o seguinte: "Se já era difícil explicar para o povo como se dá o processo legislativo, o que dirá agora, a partir da lei 12.290/11? Com efeito, a novel lei dispõe sobre a política e a fiscalização das atividades relativas ao abastecimento nacional de combustíveis e, 'em passant' reestrutura os Correios. O que uma coisa tem a ver com outra, vá, amigo leitor, tentar compreender" Pois bem. O espanto justificado de nosso amado editor tem razão de ser e, pior, deveria ser alvo de preocupação dos cidadãos, dos políticos e, em matéria de consumo, das entidades de defesa do consumidor. É que esse modo de produzir leis com um objetivo expresso e declarado e, aproveitando a oportunidade, colocar em vigor normas cuidando de assunto diverso (e muito diverso!) está se tornando comum. Em matéria de Direito do Consumidor, já foi adotado mais de uma vez e tem causado graves danos. De todo modo, com atenção ou não da sociedade, a verdade é que a doutrina e também algumas decisões judiciais têm deixado claro que a prática é inconstitucional por violação à lei complementar 95 de 26/2/1998. Vejamos os elementos em jogo e os argumentos lançados, a partir de exemplos envolvendo o Direito do Consumidor. Deixarei de lado a discussão sobre a existência ou não de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, eis que não interessa especificamente para a solução do problema nem a modifica. Ficarei apenas com uma das posições possíveis que é a de que, a partir de 5 de outubro de 1988, quando entrou em vigor a nova Carta Constitucional, não há mais que se falar em hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, isto é, a lei complementar não determina as condições de validade da lei ordinária. No entanto, como disse e também conforme demonstrarei, apesar de não ser condicionante em função do conteúdo, ao menos uma lei complementar, a citada LC 95, exerce controle no modo de produção das demais leis, por se tratar de norma geral dirigida ao próprio legislador. Veremos. Mesmo deixando de lado essa questão da hierarquia, constata-se que o legislador constitucional deu mais, posso dizer, "peso" normativo à lei complementar, reservando para ela temas legislativos de relevo. As leis complementares têm como função tratar de certas matérias que a CF entende devam ser reguladas por normas, cuja aprovação exija controle mais rígido dos parlamentares. Por isso, o quorum legislativo exigido para sua aprovação é especial; é o da maioria absoluta (CF, art. 69: "As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta"). E as matérias para as quais é feita essa exigência de votação aparecem taxativamente no texto constitucional. Por exemplo, o art. 93, que trata do Estatuto da Magistratura; o art. 131, que disciplina a Advocacia Geral da União; o art. 192, que cuida do sistema financeiro nacional, etc. Portanto, o que diferencia a lei complementar da ordinária é a matéria específica e o quorum qualificado de aprovação para as leis complementares e não exatamente uma posição hierárquica. Remanesce, também, uma dúvida, às vezes apontada pela doutrina, em relação ao tema da hierarquia, por conta da existência de uma específica Lei Complementar, a suso apontada de nº 95, que dispõe sobre a elaboração e consolidação das leis. E, em função do conteúdo dessa norma, argumenta-se que ela teria que ser hierarquicamente superior às leis ordinárias, para que estas a pudessem obedecer. Penso que esse argumento é inconsistente. Em primeiro lugar, se isso fosse verdade, ao menos um tipo de norma não precisaria obedecê-la: exatamente as demais leis complementares, que estão no mesmo patamar, mas não é isso que se espera, conforme veremos. Em segundo lugar, não é o conteúdo da norma que define sua hierarquia, mas sua posição jurídico-política aceita historicamente pelos operadores do direito e em geral por toda a sociedade. A citada Lei Complementar 95 é norma de organização. Diz como o próprio legislador deve produzir um texto de lei, separando-o por capítulos, artigos, parágrafos etc. De fato, haverá conflitos - como já há - entre essa norma complementar e outras normas do sistema, na medida em que o legislador não a siga à risca. No entanto, a solução do conflito, se puder ser dada, não se fará pela via da hierarquia, mas sim pela da solução interpretativa sistêmica. O intérprete terá de verificar se o sistema, dando qualificação especial de conteúdo à lei complementar, traz solução capaz de adequar os dois tipos de norma. Não se trata, portanto, de um problema de hierarquia, mas de diálogo. É caso do já conhecido diálogo das fontes, tema bastante atual e necessário ao exame dos novos modelos jurídicos vigentes no mundo contemporâneo, como ensina com muita precisão em suas obras a Profª. Cláudia Lima Marques. Cuido, então, de vez, do problema surgido com a edição da Lei Complementar 95. Ela é verdadeira lei geral de elaboração e consolidação das leis. Examine-se seu texto, no que aqui interessa. Dispõe seu art. 1º e parágrafo único: "Art. 1º A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta Lei Complementar. Parágrafo único. As disposições desta Lei Complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo". Uma das importantes funções e, talvez, a principal é aquela estabelecida no art. 7º. Extrai-se da teleologia desse artigo o claro intuito de impedir uma prática escusa que consiste em aprovar uma lei, cuidando de determinado assunto e, "escondido" entre seus artigos, colocar outro tema totalmente desconectado do objeto da norma editada. Leiamos, pois, o contido no citado art. 7º, que é muito preciso nesse sentido: "Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa". Antes de prosseguir, chamo a atenção para o fato de que, como acima pode ser lido, de acordo com o art. 7º da Lei Complementar 95, é o art. 1º de qualquer lei que indica seu objeto e seu âmbito de aplicação. É importante atentar para esse ponto. A violação a esses comandos tem sido levada ao Poder Judiciário, que atento a essas determinações, tem feito valer as normas da Lei Complementar. Veja-se, por exemplo, o caso da MP 1.963-17, de 30 de março de 2000, sucessivamente reeditada até a Mp 2.170-36 de 23 de agosto de 2001. Ela, de forma mascarada, acabou por permitir a capitalização de juros, o que, como se sabe, no Brasil, com o alto índice percentual praticado, é um descalabro e um evidente abuso contra todos aqueles que tomam dinheiro emprestado. Vejam o que diz o art. 1º dessa MP: "Art. 1º. Os recursos financeiros de todas as fontes de receitas da União e de suas autarquias e fundações públicas, inclusive fundos por elas administrados, serão depositados e movimentados exclusivamente por intermédio dos mecanismos da conta única do Tesouro Nacional, na forma regulamentada pelo Poder Executivo". Mas, eis que, de repente, no art. 5º "caput" constou: "Art. 5o Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano". Ou, como perguntaria nosso querido editor: "o que uma coisa tem a ver com a outra?". Nada. A não ser um modo de criação, visando, se não enganar os destinatários, ao menos ocultar da população e, no caso, dos consumidores, questões de relevo, editando uma norma contrária a seus interesses sem passar pelo legítimo e autêntico debate no âmbito do Poder Legislativo. Na verdade, esse tipo de produção legislativa põe à mostra o poder de pressão dos grupos de interesse que atuam nos bastidores do sistema. Deu-se o mesmo com a Medida Provisória n. 1.925/99, que foi convertida na lei 10.931/2004. Esta institui o "regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação" (art. 1º). Essa lei, com esse objeto, também de forma sub-reptícia, nos arts. 26 e s., criou a Cédula de Crédito Bancário, um título de crédito a ser utilizado por instituições financeiras em operações de crédito, ou seja, um novo objeto diferente daquele instituído por ela. A violação às normas gerais da Lei Complementar n. 95 era, como é, pois, flagrante. Desse modo, vê-se que os artigos da medida provisória e da lei ordinária referidas são inconstitucionais não porque haveria violação de uma estrutura hierárquica, mas porque, no diálogo necessário e sistêmico estabelecido a partir da determinação da norma complementar que regula a forma e a substância das demais leis no país, com ela ficou em desconformidade. É verdade que o art. 18 da LC 95 diz que "eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento". Mas, claro, essa não é a hipótese das normas apresentadas. Entende-se por inexatidão formal mero erro que seja incapaz de desnaturar a norma, como, por exemplo, um parágrafo estar numerado erradamente ou artigos com números repetidos, etc. O Judiciário, como disse, tem debatido esse tema e já declarou, incidentalmente, nas ações decididas, inconstitucionais os artigos das leis e medidas provisórias que violam a LC 95. Temos também assim decidido em nossa Câmara. Vejam exemplos: "CONTRATO BANCÁRIO - CRÉDITO EM CONTA CORRENTE - Cobrança mensal de juros capitalizados - Inadmissibilidade - Prática vedada - Medida Provisória 2170-36, todavia, que apresenta grave vício de origem, pela não observância obrigatória dos requisitos determinados na LC 95/98 (artigo 7º) - Hipótese em que a capitalização de juros é matéria estranha ao objeto e ao âmbito de aplicação da MP, estabelecido no seu artigo 1º - Capitalização mensal afastada, permitida sua cobrança anual - Regra de incidência do artigo 591 do atual Código Civil - Parcial procedência da ação mantida - Apelo desprovido" (Apelação 7.073.259-3, j. 20-8-2008, v.u., 23ª. Câmara de Direito Privado do TJSP). "EXTINÇÃO DO PROCESSO - Execução de título extrajudicial - Cédula de crédito bancário - Previsão na Lei n. 10.931/2004 de que a mesma constitui título executivo extrajudicial - Lei que não observou as disposições da Lei Complementar n. 95/98, quando de sua elaboração - Lei n. 10.931/2004 que dispõe sobre regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias - Objeto desta que, portanto, não guarda relação com a cédula de crédito bancário - Invalidade da referida Lei nessa parte verificada, e, por consequência, da tipificação da cédula em causa como título executivo - Extinção do processo ab initio decretada - Recurso provido" (Apelação n. 7.142.052-3, 23ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, rel. Des. Oseas Davi Viana, j. 20-6-2007, v.u., DJ, 24-9-2007). "EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL - Cédula de crédito bancário - Ausência de título executivo - Ilegalidade da lei que prevê tal título (Lei n. 10.931/2004) - Inobservância do princípio da hierarquia das leis - Não cumprimento do estipulado no art. 7º, caput, e seus incisos, da Lei Complementar n. 95/98 - Determinação ex officio para que seja anulado o processo de execução ab initio - Análise prejudicada" (Agravo de Instrumento n. 7.200.746-2, 23ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, rel. Des. Franco de Godoi, j. 16-4-2008, v.u., DJ, 9-6-2008). A doutrina caminha na mesma direção: "Criando e regulando cédula de crédito bancário, a LPAII desrespeitou flagrantemente o artigo 7º da lei complementar - LC 95/98 - que regula a elaboração e redação de leis no País, ofendendo-se a garantia do due process of law, maculando-se de inconstitucionalidade, no tópico que cria e regula a cédula de crédito bancário. Essa inconstitucionalidade, por ofensa às regras do processo legislativo, é, a um só tempo, formal e substancial. São inconstitucionais, portanto, os arts. 26 a 46 da LPAII" (Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, 10. ed., São Paulo:RT, 2007, p. 988). E no mesmo sentido a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao afirmar que "...a lei ordinária, o decreto-lei e a lei delegada estão sujeitos à lei complementar, em conseqüência disso não prevalecem contra elas, sendo inválidas as normas que a contradisserem". (Do processo legislativo. 5ª ed., São Paulo:Saraiva, 2002, p. 247). Eis, pois, mais um motivo de preocupação para todos. Já não bastava o alerta de Otto Von Bismarck que dizia que "Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis", ainda mais essa de normas feitas de contrabando. O paradoxo está no fato de que a Lei Complementar 95 foi editada pelo próprio Poder Legislativo num momento de alta sabedoria. Vai entender!
Trato deste assunto pela importância que ele tem não por sua existência no Brasil, mas porque demonstra os modos de controle que o mercado exerce sobre os consumidores em geral, bem como a dificuldade que existe para a tomada de consciência da possibilidade de libertação das amarras tão bem engendradas pelo capitalismo contemporâneo. Pois bem. Vem aí mais um dia das bruxas. Ao que parece, já é parte do calendário comercial e, o pior de tudo, é que muitas escolas aderiram! Halloween no Brasil? São as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma gorda receita, vendendo bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. É verdade que, algumas escolas, não conseguindo fugir do evento, estão começando a fazer atividades didáticas e lúdicas, sem o emporcalhamento de doces e guloseimas oferecidos em grandes quantidades e sem nenhuma função de educação ou saúde. Mas, é pouco, pois, infelizmente, tudo indica que o tal dia das bruxas, famoso nos Estados Unidos, instalou-se entre nós, alegre (ou macabro) e impunemente. Tive oportunidade de mostrar que Ignacio Ramonet, no livro Guerras do Século XXI (Petrópolis: Vozes, 2003), diz que o novo sistema de controle dos grandes países poderosos não é mais o de territórios, mas o de mercados. Aliás, são as grandes corporações que controlam as forças internas desses países desenvolvidos pela via do mercado, de modo que elas e esses países visam por esse meio (o do mercado) ao controle dos mercados (e das sociedades) do mundo inteiro. Essa forma de domínio, no final do século XX e início do XXI, passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração. Pensemos a questão do Halloween no Brasil. O que, afinal de contas, as crianças brasileiras têm a ver com essa festa pagã? Nada. Trata-se de uma importação sem qualquer fundamento ou justificativa local. É agora apenas algo que o mercado deseja. Para se ter uma ideia do que está em jogo, nos Estados Unidos, a festa do terror, das bruxas e dos fantasmas já se tornou o segundo maior momento de faturamento do mercado, perdendo apenas para o Natal. Lembro da reclamação de meu amigo Walter Ego: há três anos no fim de outubro, ele estava na casa de parentes num condomínio fechado do interior de São Paulo, quando bateram à porta crianças fantasiadas de bruxas, caveiras, duendes e o que o valha. A porta foi aberta e eles disseram: "travessuras ou gostosuras". E lá foram os parentes de meu amigo entregar saquinhos que tinham previamente preparado com doces, balas e chocolates. E depois daquelas crianças vieram muitas outras. "Uma grande bobagem", reclamou W. Ego. Na época, depois dele me contar o episódio, eu, brincando, objetei que já tínhamos a Páscoa e mais ainda o Natal, este que, por muitos anos - e ainda até hoje - faz, por exemplo, com que comamos, em pleno calor tropical, comidas gordas, doces, frutos secos, nozes, etc, alimentos típicos de lugares frios, de onde a festa foi importada. "É verdade", disse ele. "Mas, isso se deu em outros tempos. Eu pensava que atualmente nós pudéssemos lutar contra esse tipo de imposição; que poderíamos resistir". Sim, talvez pudéssemos. Há mesmo um início de tomada de consciência a respeito do controle exercido pelo mercado, algo que vem se esboçando desde fins do século XX. O consumidor, considerado como tal - algo que ficou bem estabelecido a partir da mensagem enviada ao Congresso Americano em 15/3/1962 pelo então Presidente John Kennedy - pôde começar a se perceber como alvo dos fornecedores em geral e até do próprio Estado produtor. E, assim, aos poucos, passou a reclamar e reivindicar direitos. Passou a poder resistir às tentações e determinações unilaterais. Mas, ainda não consegue fazê-lo em larga escala. Aliás, essa questão do Halloween no Brasil oferece uma boa oportunidade para o exame de como as coisas são feitas. É que estamos ainda no nascedouro de uma imposição mercadológica. No meu tempo de criança ou adolescente (há quarenta anos) seria impensável um dia das bruxas no Brasil. Não sei quando começou. Mas, possivelmente há cerca de dez ou quinze anos, alguma escola de inglês deve ter feito a programação para seguir o ritual norte-americano. Depois, no ano seguinte mais uma escola e mais outra, etc. Com a importação via tevê à cabo e também tevê aberta de cada vez mais enlatados americanos que reproduzem a festa (basta ficar com o exemplo famoso do grande filme de Steven Spielberg, E.T., no qual o evento é retratado), aos poucos, os brasileiros foram se acostumando com a festa, como se a mesma também fizesse parte de nossa realidade. Daí, mais um ano, e a festa foi feita em escolas; depois em baladas de adultos e, enfim, chegou o momento em que parece que ela tem a ver conosco. Atualmente, nas tevês à cabo, nos canais de programas infantis, são apresentados programas específicos somente sobre a festa. Evidentemente, o mercado, sempre de olho nas oportunidades, deu sua contribuição e eis que temos entre nós crescendo vigorosamente uma festa importada, sem qualquer fundamento cultural e mesmo sem sentido ritualístico. Dá para resistir? No Estado de São Paulo e também na capital, há leis oficializando o dia 31 de outubro como o Dia do Saci, como uma tentativa de se opor ao Dia das Bruxas, já que o Saci é tipicamente Nacional, pertencendo a nosso folclore e tradições. Há também na Câmara Federal projeto de lei para instituir o Dia Nacional do Saci e existe até uma associação intitulada SOSACI - Sociedade dos observadores de Saci (clique aqui). São, penso, tentativas válidas. Mas, é pouco. A resistência real e que poderia funcionar deve vir do próprio consumidor, especialmente os pais, que podem explicar aos menores o que é a festa e porque não participar dos eventos. As escolas devem fazer o mesmo e, claro, os pais poderiam pressioná-las a não produzirem esse tipo de comemoração. Repito o que disse acima: se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas, nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e a obesidade infantil. O que conseguimos observar, é que cada vez mais nossa cultura (e a sociedade brasileira) vai cedendo espaço àquilo que não nos pertence. Aos poucos e continuamente, vamos preenchendo nossos espaços com tradições de outros povos - como já fizemos e muito - e que, nesse caso, sequer é algo relevante, pois se trata de uma evidente imposição do mercado oportunista que, como já disse, só pensa em faturar. O processo é lento, mas constante. Aqueles que atuam no mercado são espertos o suficiente para entender um pouco a alma do consumidor e acabam descobrindo a necessidade de preencher os espaços existentes no lar, no convívio doméstico, na relação entre pais e filhos. Daí, na presente hipótese, oferecem, com essa estranha comemoração, mais uma boa desculpa de ocupação desse tempo, que fica, como quase sempre, intermediado pelo dinheiro gasto. É o consumismo enlatado e alienante, esteja ou não de acordo com nossas tradições e nossas leis.
Neste período de outubro e novembro são feitas as matrículas escolares nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. É o momento em que os pais estão procurando escolas particulares para colocarem seus filhos que iniciam os estudos ou, então, uma nova escola para efetuar uma troca, etc. Por isso, hoje traço um panorama das principais questões envolvendo o tema. Vulnerabilidade exacerbada Lembro, inicialmente, que no mercado de consumo, o consumidor é sempre vulnerável, aliás, como reconhece o CDC (art. 4º, I) e questões que envolvem os filhos colocam os pais-consumidores numa situação de vulnerabilidade especial e agravada, exigindo, por isso, muita cautela e atenção. Cautela na escolha da escola Vários são os elementos que devem ser levados em consideração para matricular um filho numa escola particular tanto no ensino fundamental como no médio. A cautela se estende, também, para os casos de transferência de uma escola para outra. Uma primeira atitude a tomar é perguntar para os amigos e seus respectivos filhos a respeito da qualidade de ensino na escola escolhida e que eles já frequentem. Mas, com ou sem a investigação junto aos amigos, uma visita à instituição de ensino para verificação local é necessária para um exame das condições físicas. É aconselhável verificar o número de alunos nas salas de aula e demais acomodações, laboratórios, área para educação física, etc. Método de ensino e avaliação Além disso, é também preciso avaliar não só junto dos amigos, mas também conversando com o diretor ou coordenador pedagógico da escola, o método de ensino, as formas de avaliação e aprovação, etc. Às vezes, a escola apresenta material escrito detalhando o projeto pedagógico. É importante ler tudo com atenção, questionando e tirando dúvidas. No próprio contrato ou em folha separada, a escola tem que informar claramente qual é o critério de avaliação e aprovação adotados: provas, testes, exercício, notas; se são bimestrais, trimestrais, semestrais; fundamentos para a aprovação, regras para exame, para recuperação, etc. E, na medida do possível, é necessário ainda descobrir o nível de qualificação dos professores da escola, se eles têm cursos de especialização e aperfeiçoamento, etc. Horário das aulas O horário das aulas tem que ser visto antecipadamente para um bom planejamento doméstico, assim como deve ser checado o número de dias letivos, cuja carga mínima anual exigida é de 800 horas, distribuídas por um mínimo de 200 dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames finais, quando houver (LDB - lei 9.394/96, art. 24, I). Algumas escolas programam atividades aos sábados para cumprirem essa carga mínima. O contrato Quanto ao contrato fornecido pela escola, ele, naturalmente, tem que ser lido e entendido completamente antes de ser assinado. De qualquer forma, como às vezes os pais são pressionados para assinarem o contrato e o fazem com medo de perder a vaga, existe sempre a possibilidade de questionar, depois, na Justiça (ou mesmo no Procon) as cláusulas que sejam abusivas. (Algumas escolas realmente tem problemas de vagas; outras apenas dizem que tem o problema para conseguir a matrícula). Transporte escolar Em relação ao transporte escolar, é importante checar se ele é oferecido pela própria escola ou por terceiros, e, de qualquer maneira, é preciso que seja elaborado contrato específico contendo: qualificação completa das partes: nome, endereço, CPF, RG; preço e periodicidade do pagamento (mensal, quinzenal, etc.); forma e local do pagamento; horário da saída da escola e previsão da chegada em casa e vice-versa; itinerário rotineiro completo. Esse é um assunto que envolve a segurança das crianças e dos adolescentes. Por isso, o ideal é aumentar as medidas preventivas. Vale e pena checar a habilitação do motorista e também as condições do veículo e sua licença. Além disso, é importante saber se o veículo tem sistema de comunicação de urgência: celular, pager, etc., o que é necessário nesse tipo de serviço. Valor das mensalidades e reajuste O valor das mensalidades escolares no ensino fundamental e médio deve ser fixado no contrato no ato da matrícula ou da sua renovação. O reajuste somente pode ser feito após um ano. Inadimplemento Como se sabe, são proibidas a suspensão de provas escolares, a retenção de documentos escolares ou a aplicação de quaisquer outras penalidades pedagógicas por motivo de inadimplemento. Alunos inadimplentes somente podem ser desligados da escola ao final do ano letivo e se estiverem em atraso há, pelo menos, noventa dias (lei 9.870/99, art. 6º). Transferência A escola é obrigada a expedir documento de transferência a qualquer momento, independentemente do fato de o aluno estar inadimplente, assegurada, claro, à escola a cobrança judicial ou extrajudicial das mensalidades em atraso. Matrícula O preço da matrícula é um componente do custo das aulas que serão ministradas. Se o aluno desiste, não assistindo às aulas, tem o direito de receber o dinheiro pago de volta, podendo a escola reter ou cobrar apenas uma multa pela desistência, que servirá para cobrir os custos de administração. Uniforme obrigatório Algumas escolas exigem o uso de uniforme e contratam fornecedores para a sua confecção. Por vezes, esses fornecedores são exclusivos. Só que essa contratação de fornecedores deveria sempre reverter em benefício para os pais: como o fornecedor produz em larga escala e não tem risco, porque com certeza vai vender os produtos, o preço teria que ser inferior ou ao menos igual aos praticados no mercado. Contudo, por vezes ocorre exatamente o oposto: os fornecedores aproveitam-se da situação e os pais acabam pagando pelos uniformes preços abusivos, muito superiores aos praticados pelo mercado. Não é um controle fácil de ser executado, mas nada impede que os pais façam uma cotação de preços no mercado, mediante pesquisa em estabelecimentos que fabriquem ou comercializem produtos similares. Depois, os preços podem ser comparados. Se os do fornecedor exclusivo da escola estiver compatível, a questão está resolvida. Basta comprar dele. Se, todavia, os preços forem excessivos, os pais podem tentar convencer o fornecedor a baixá-los. Se ele se negar, a compra pode ser encomendada e feita no mercado, com outro fornecedor e o fato comunicado à escola. Mas, lembro que, às vezes, a própria escola está envolvida, pois ganha comissão, o que é uma prática abusiva. Material escolar Ocorre o mesmo com o material escolar. Se a escola põe à disposição dos pais cadernos, livros e demais materiais para a venda no próprio estabelecimento, seus preços devem ser menores ou ao menos iguais aos praticados no comércio.
Nos anos vinte do século passado, o deputado Federal Galdino do Valle Filho teve a ideia de homenagear as crianças, criando um dia para elas. A ideia vingou e, por intermédio do decreto 4867, de 5/11/1924, o presidente Arthur Bernardes oficializou o dia 12 de outubro como o Dia das Crianças. Todavia, a data ficou esquecida por muitos anos. Mas, veja, meu caro leitor, que significativo: em 1960 a fábrica de brinquedos Estrela fez uma promoção conjunta com a Johnson & Johnson para lançar a "Semana do Bebê Robusto" e, com isso, aumentar suas vendas. A estratégia de marketing deu certo. Logo depois, outras empresas lançaram-se no mesmo projeto divulgando a semana da criança para aumentar suas vendas e, no ano seguinte, os fabricantes fizeram renascer a data do antigo decreto e o dia 12 de outubro passou a ser comemorado com o Dia das Crianças, isto é, o dia em que as crianças ganham presentes... E, claro, a semana em que o mercado de produtos para crianças e também adolescentes (!) fatura alto. Vai-se, portanto, comemorando o Dia das Crianças dando a elas produtos. Certamente, neste ano não foi diferente com vendas de tudo quanto é brinquedo e muita bugiganga. Espero que coisas úteis também tenham sido oferecidas, mas não pretendo explorar esse ponto dos produtos e das vendas como manda o calendário comercial-capitalista. Quero aproveitar a data para propor uma reflexão sobre o tema de um Dia para a Criança. Na verdade, a ONU reconhece o dia 20 de novembro como o Dia Universal (ou Mundial) das Crianças, pois foi nesse dia do ano de 1959 que foi publicada a Declaração Universal dos Direitos das Crianças. E, embora essa data seja também sempre lembrada entre nós, é o dia 12 de outubro que conta, pelo menos em termos de compras. Pensemos nisso. Dia 12 de outubro é feriado nacional desde 1980, dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira oficial do Brasil. E, como no dia 15 de outubro se comemora o Dia do Professor (este abandonado brasileiro), acabou-se juntando uma data n'outra e nesta nossa terra de Macunaíma criou-se a Semana do Saco Cheio: foram os estudantes universitários que por volta dos anos oitenta do século passado inventaram mais uma semana para enforcar aulas. E, não é que pegou? Atualmente, essa semana fica sem aulas em muitos colégios e universidades. Já faz parte do calendário escolar. Mais um filão para o mercado: dia de presentes, precedido de semana de compras; feriado, semana sem aulas, pacotes de viagens, hotéis, turismo, enfim. O capitalismo agradece. Mas, retorno às crianças. Se o consumidor adulto é, como de fato é, vulnerável e hipossuficiente no mercado de consumo (como diz o CDC), a criança-consumidora é especialmente vulnerável. E, se a consumidor adulto é, geralmente, vítima do fornecedor, a criança-consumidora é não só vítima do fornecedor como também muitas vezes dos pais e demais pessoas próximas. Os pais (e também os avós e demais parentes) poderiam - ou, melhor, deveriam - aproveitar essas ocasiões artificiais - como a do Dia das Crianças - em que o elemento externo impõe que eles façam compras e deem presentes aos filhos para refletirem sobre como querem que essas crianças não só recebam esses presentes como que valor devam dar a eles. Claro que uma vez que se está decidido a dar o presente, o primeiro caminho é descobrir o que dar. Tem-se, portanto, que refletir sobre a qualidade do presente. Haverá coisas úteis e porcarias. Coisas indispensáveis e outras desnecessárias. O mercado, como sempre digo, saberá oferecer de tudo. O marketing sedutor e enganador, aliado ao sistema de crédito e parcelamento consegue convencer até quem não pode comprar, a adquirir produtos e se endividar (ou aumentar ainda mais seu endividamento). Como já afirmei antes, cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte dos produtos existentes. Veja-se esse exemplo: atualmente, algumas lojas vendem sapatos com salto alto para meninas de seis, cinco anos ou menos. Algo que devia literalmente ser proibido, não só porque faz mal para o corpo (como toda mulher adulta sabe) como porque cria uma imagem adulta na criança, algo ridículo de se ver. Mas, quem compra o tal sapato? É um adulto. Aliás, existe toda uma enorme gama de produtos para meninas muito pequenas em idade, para que elas reproduzam a imagem das mulheres (suas mães ou outras mulheres) o que lhes rouba a já tão curta infância. Bem, isso em relação à qualidade. Agora, lembro da quantidade. Quantos presentes uma criança deve ganhar de uma só vez? Como se trata de uma data específica para a criança e essa às vezes tem muitas pessoas à volta para presenteá-la, é comum que ela acabe ganhando muitas coisas. Acontece que, é também comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem da maior parte deles. A criança que ganha muita coisa numa só ocasião tende a desvalorizar tudo ou escolhe um e abandona o restante. A data é boa para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. A criança precisa aprender a valorizar o que ganha (como o adulto aprende às duras penas). Isso, da quantidade excessiva, repete-se no Natal e é mais comum ainda na data do aniversário. No Brasil, existe um enorme mercado dos buffets infantis. Os pais gastam uma fortuna (muitos se endividam fortemente!) para montar a festa de aniversário oferecida para muitos "amiguinhos": geralmente, os colegas de classe, mais alguns outros amigos e parentes. No dia da festa a criança aniversariante ganha trinta, quarenta presentes (literalmente). Faz algum sentido? Se, apesar de tudo, os pais querem mesmo oferecer uma festa num buffet para muitas pessoas, existe uma boa opção, que aos poucos começa a fazer eco e tem sido implementando por alguns pais. Meu amigo Walter Ego é um dos que aderiu. Ele, por exemplo, nos três últimos aniversários de 4 a 7 anos de seu filho adotou esse modelo. Ele escolhe alguma instituição de caridade. Descobre o que eles estão precisando e junto do convite envia o pedido de presente. Diz: "Ao invés de presente, o Waltinho (filho mais novo de meu amigo) quer receber doações que depois irá entregar na...(e coloca o nome da Instituição). Ele ficará feliz com um quilo de arroz, feijão ou açúcar...". Pois, caro leitor, meu amigo tem ficado muito feliz com o resultado. Os pais dos amiguinhos do Waltinho, sempre doaram muito mais do que ele pediu, pois certamente perceberam que vale a pena que seu filho faça a doação. Depois o W. Ego e o Waltinho levam pessoalmente todos os produtos arrecadados ao local, o que vale como uma muito boa lição (aliás, para todos os envolvidos). Penso que W. Ego está agindo muito bem. Seu filho recebe de presente de aniversário a lição e também um ou dois presentes, o que é mais que suficiente. (Mas, W. Ego já disse que a partir do aniversário de 8 anos, a comemoração não será feita mais em buffet e sim em casa para a família e amiguinhos de verdade - isto é, cinco ou seis). P.S.: Como envolve crianças, eu colo abaixo um vídeo que recebi via email. Chama-se "Chicken-a-la-carte". É um documentário exibido num festival na Alemanha, que mostra uma realidade vivida neste nosso mundo globalizado capitalista, desorganizado, injusto e em que as riquezas são sempre muito mal distribuídas. Assista: é bem curtinho (clique aqui). E, já que apresentei esse documentário, não posso deixar de indicar também o filme do cineasta brasileiro Jorge Furtado, "Ilha das Flores", um dos melhores filmes brasileiros e que nos faz pensar na condição humana neste mundo incrivelmente desumano. É filme para ver, divulgar e pensar.
Prezado leitor, acordei com uma sensação estranha ...Será que perdi alguma coisa? O país não é mais soberano? Será possível que alguma empresa estrangeira ou organização internacional possa pedir que modifiquemos nossas leis para seus interesses particulares? Estamos ou não numa República Democrática? Na noite anterior, eu havia recebido um telefonema de meu amigo Walter Ego, que pedia que eu lesse urgentemente as notícias sobre a FIFA e o CDC. Ele sabe o que eu penso da FIFA - esse grande conglomerado empresarial que manda em governos e causa milhões em prejuízos às populações que explora. Disse-me ele: "Eu fico muito preocupado como torcedor, mas como você já acertou antes, veja se isso é possível". Ele se referia ao episódio recente, no qual o ministro do Esporte, Orlando Silva, informou que a FIFA teria pedido para que o governo brasileiro suspendesse (SIC!?) o CDC, o Estatuto do Idoso e o Estatuto do Torcedor e também que permitisse a venda de bebidas alcóolicas nos estádios! Ele também se referia a dois artigos que eu publiquei no site do Terra sobre o tema: um em 17/5/2010, antes da Copa do Mundo de Futebol, e outro em 5/7/2010, durante a Copa. Neles eu analisava o futebol como negócio e dizia por que é que eu acreditava que o Brasil não ganharia aquela disputa e também porque seriamos campeões em 2014. (veja trechos dos textos ao final). E, depois, W. Ego acrescentou: "Será que virão mais exigências? Será que os cartolas da FIFA pedirão imunidade fiscal? Será que pedirão para cancelar o CP, talvez para poderem cometer crimes à vontade? E o CC ainda estará em vigor na época da Copa? Será que pedirão para aumentar a velocidade nas estradas para que as pessoas possam chegar a tempo aos estádios? Talvez possam aumentar o limite para 200 km/hora, já que tem muito carrão por aí... E, como querem liberar a bebida alcóolica nos estádios será a copa dos bêbados e das batidas e de tantas outras violações numa terra sem lei". Walter Ego estava atônito. Mas, não era para menos. Poucas vezes vi algo tão absurdo e ridículo como esse anúncio de que a FIFA quer que se suspendam leis para que ela possa aqui entrar e violar os direitos estabelecidos dos consumidores brasileiros e estrangeiros. Permitir a venda de bebidas alcóolicas nos estádios? É tudo inacreditável. Parece piada, mas não é! E, aliás, foi anunciado como uma espécie de pedido normal e possível. Desde que a FIFA tornou-se de fato uma grande empresa internacional, os abusos não pararam. O problema está, em parte, no modelo. Infelizmente, meu caro leitor, quase tudo que se apropria do modo de produção capitalista contemporâneo e seus modelos de controle, invasão, corrupção, enganação, apodrece. A maior parte dos empresários desses tempos globalizados é gananciosa e só visa o lucro, custe o que custar. Como já referi várias vezes, sua grande arma de ataque para a tomada do mercado - esse bem que não lhe pertence - é o marketing, cuja ponta de lança é a publicidade. E, esse império materialista do mercado, com sua grande mão invisível e também visível, absorveu praticamente todo o corpo social, acabando por imiscuir-se em setores antes imunes. Veja o exemplo dos esportes ditos amadores: A Olimpíada é, atualmente, um enorme negócio. E, claro, do futebol nem preciso referir, porque faz muito tempo que a organização, local ou internacional, tem como meta o faturamento. Aliás, e a propósito, a FIFA, hoje funciona como uma grande empresa franqueadora e licenciadora de produtos e serviços. Como também já referi e foi dito por Octávio Paz, "o mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores". É fatal: neste capitalismo deve haver resultado financeiro, não importando se o produto é bom, se funciona adequadamente, se as promessas da publicidade serão cumpridas. O que vale é a meta. E, nesse sentido, a FIFA tem um poder só comparado às grande corporações do planeta. Ela consegue impor a governos e nações seus interesses, seus modelos, seus estádios. Ela consegue determinar quanto de gasto os países farão em prol dela, isto é, em prol de seu faturamento crescente. E isso, mesmo que as populações locais estivessem precisando de outros bens. Claro que, tudo isso é feito com muito marketing e moderna publicidade, mexendo com a paixão dos torcedores, fazendo com que eles acreditem que o resultado de um jogo ou de um campeonato resolverá muitos problemas e que trará orgulho e benefícios à nação. Aliás, muitas vezes, a publicidade é claramente abusiva: que exemplo dão esportistas que fazem publicidade de cerveja? Uma cervejaria sendo patrocinadora oficial de um evento esportivo: um irresponsável estímulo à ingestão de bebidas alcoólicas. Só o cinismo e o dinheiro poderiam explicar. Tudo muito moderno, com tecnologia de ponta e seus atualizados sistemas de vendas. Tudo muito moderno, menos o próprio jogo de futebol. Neste, continua-se negando a possibilidade de uso da tecnologia. E sobre este assunto, o Walter Ego lembrou-me uma teoria sobre o porquê desse atraso ou dizendo de outro modo: Por que o jogo de futebol não se moderniza? Por que não se usa tecnologia para fazer as regras serem cumpridas? A bola entra e o juiz não dá o gol. Isso continuará até quando? Essa outra teoria diz que a não modernização no jogo de futebol nada tem a ver com seu movimento e o espetáculo, mas sim com a perda do poder de manipulação. Afinal, se não se puder mais dar gols impedidos, anular gols legítimos, expulsar jogadores indesejados, etc., se perderá uma boa maneira de interferir nos resultados. De minha parte, espero que haja algum dia alguma pressão da opinião pública para que o futebol passe a ser um jogo mais real, honesto e verdadeiro. A tecnologia ajudaria, sem tirar a graça do espetáculo. Mas, volto à questão da violação à tentativa de modificação das leis democraticamente estabelecidas no Brasil. O pleito seria patético se não desse medo. Medo de que possa vingar, de que possa ser concedido de algum modo para nossa extrema vergonha. Fazendo isso estaremos atrasando o atingimento de nossa maturidade democrática e estaremos perdendo soberania. Indignemo-nos, pois! PS.: Transcrevo a seguir trechos de meus artigos referidos 15/5/2010 Há uma outra teoria que pretende explicar um eventual fracasso da seleção brasileira na Copa: O futebol, na atualidade, é um dos maiores negócios do mundo. Adotando os modelos das grandes corporações da sociedade capitalista contemporânea, os cartolas conseguiram criar um modelo de oferta de entretenimento altamente rentável. Não me alongarei aqui, mas veja, nesse exemplo, a inteligência dos formatos dos vários tipos de competições existentes. A disputa entre os times é mais ou menos sem fim. Todos concorrem a alguma vaga, ou no grupo dos 4 ou dos 8 de cima ou dos 4 ou dos 8 de baixo e, mesmo não vencendo, conseguem se classificar para outras competições ou, pelo menos, não são rebaixados. E, até nas competições de baixo, a disputa segue o mesmo padrão, etc. Tudo a fazer com que os consumidores, isto é, os torcedores, fiquem praticamente o tempo todo do ano ligado nos jogos de seu time, num espetáculo sem fim, cujo objetivo maior é faturar. A Copa do Mundo de Futebol, além de um grande espetáculo, é, de fato, um enorme negócio que envolve bilhões de dólares. Está em jogo um grande lucro dos empresários envolvidos no negócio financiados pelos patrocinadores, afetando os meios de comunicação televisivos, os fabricantes de roupas e calçados, os editores, etc. Não fica bem, dizem, que o Brasil possa ser campeão muito mais vezes que os outros países, pois, certamente, isto traria desânimo aos torcedores, o que pode significar prejuízos aos patrocinadores e demais agentes empresariais globais envolvidos. É preciso que haja maior equilíbrio de forças entre as seleções. Não é bom para os negócios que o Brasil fique muito à frente. Por isso, pode vir bem a calhar a formação de uma seleção que não contemple os melhores jogadores. Quem sabe o Brasil perca para o bem do campeonato e dos bilhões envolvidos. Nós continuaremos a ser o maior celeiro produtivo de craques que existe, mas isso foi assimilado e transformado em dólares e, portanto, aceito. Mas, vencer de novo, ah!... Isso já é demais, fora o prejuízo. E a teoria lembra que a próxima Copa do Mundo será no Brasil. Nós vamos ganhar essa e perder a próxima, confirmando o fiasco de 1950? Ou vamos ganhar esta e a próxima? Tudo isso? Parece demais mesmo. É bom nos contentarmos em perder essa para podermos ganhar a próxima aqui no Brasil. Se quisermos, podemos torcer contra a teoria. Evidente que, se o Brasil ganhar esta Copa do Mundo - que é o que todos nós esperamos - essa teoria não vela nada. Mas que faz pensar, faz. 5/7/2011 Terminou o jogo do Brasil versus Holanda e os locutores passaram a dizer que, afinal, se tratava apenas de um jogo de futebol. Apenas um jogo de futebol. Ora bolas (perdão pelo trocadilho), não é assim que a publicidade vende o campeonato mundial. Ao menos aos torcedores-consumidores brasileiros, é vendido muito mais que um jogo, é vendida esperança de dias melhores, de uma sociedade mais humana, de melhores condições de vida, de uma nação mais sadia, vitoriosa no plano internacional. É vendida uma alegria de viver. E, funciona: as pessoas realmente acreditam; ficam mais simpáticas; cumprimentam-se mais; a bandeira do Brasil sai do armário (em nenhum momento ela é mais exibida que durante a Copa); as pessoas se enchem de esperança de dias melhores; ficam ansiosas para chegar o dia da vitória, quase como se estivéssemos numa guerra. Tudo muda: as escolas fecham antes da hora, os serviços param, a produção cessa em muitos setores, a cidade de São Paulo com seu caótico e dos piores trânsitos do mundo, fica com suas ruas desertas. É uma catarse, não um jogo de futebol. Acontece que, é exatamente isso o que desejam os patrocinadores e os dirigentes esportivos. Eles querem que os torcedores-consumidores acreditem e comprem seus produtos, suas camisas, seus calçados, suas bolas, os produtos dos patrocinadores. Os consumidores guiados por eles cumprem a determinação buscando preencher o espaço da promessa. (Não é de agora que o capitalismo vende esperança junto de seus produtos). O que realmente importa é a receita e o lucro. Empresários, cartolas, técnicos, jogadores, todos faturam alto às custas desses produtos bem vendidos e administrados. Hoje, até os jogadores são produtos, criados desde pequenos para poderem valer algo no futuro do mercado futebolístico. Do ponto de vista psicológico, se o time do Brasil ganhasse já seria frustrante, porque, evidentemente, as condições de vida das pessoas de nenhuma sociedade melhoram apenas porque seu time venceu um campeonato de futebol. Perdendo, frustra mais rapidamente e também entristece, deprime de certo modo. Mas, querido leitor, não perca a esperança, pois o campeonato de 2014 já está sendo anunciado, quem sabe com novo técnico, novos jogadores - talvez até os melhores sejam dessa vez convocados (na teoria da coluna de 17/5 disse que em 2014 o Brasil há de vencer e dei os motivos. Tomara!). Só espero que a reforma e a construção dos estádios impostos pelos empresários da FIFA não impeçam a construção de novos leitos hospitalares, nem reajustes e aumentos salariais para quem tiver direito, nem que se deixe de investir em segurança pública, etc. (um longo etc).
Neste mês de setembro que está se encerrando, a lei 8.078 de 11/9/1990, isto é, o Código de Defesa do Consumidor, completou 21 anos de existência. Como sempre tenho dito, a boa notícia é que o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, sempre lembrada tanto em setembro como em março (mês em que entrou em vigor; mês em que também se comemora o dia mundial dos direitos dos consumidores). Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes a existência dessa lei tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. E, claro, com 21 anos de idade seria de se esperar que a lei fosse cumprida por todos o tempo todo. Mas, infelizmente, não é bem assim. Com um início de vigência que, lembro-me bem, assustou empresários em geral, muitos publicitários e os grandes conglomerados em especial, aos poucos o CDC foi se firmando e deixando de ser o bicho papão de que o acusavam injustamente. Ao que me consta, ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como também da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento melhor qualificado, enfim, a norma fez o mercado amadurecer. Para ficarmos apenas com um exemplo: antes do CDC, a maior parte dos produtos não trazia estampada nas embalagens seu prazo de validade. Lembro-me bem que eu fiquei espantado com o curto prazo de validade de alguns produtos. Até água em garrafa ou em copo plástico tem curto prazo de validade! Antes da lei 8.078/90, nós consumidores, muito provavelmente, ingerimos toneladas de produtos vencidos e sorvemos milhares de litros de bebidas ultrapassadas. (Ocorre-me um fato tão terrível quanto peculiar: sou da época dos refrigerantes em garrafa - apenas em garrafa - e agora me vem a memória de quantas vezes, quando garoto, retirei a tampinha e com a mão limpei as marcas de ferrugem que estavam na boca da garrafa, antes de beber o refrigerante... Sabe-se lá, das vezes que adoeci, quantas não estavam relacionadas com produtos e bebidas deteriorados) Pois bem, o susto dos empresários passou. A lei teve, como tem, muito boa eficácia - ou, como se costuma dizer no Brasil, é "uma lei que pegou". Porém, ao mesmo tempo em que os consumidores passaram a ficar mais escolados em matéria de consumo, os empresários também. A partir do conhecimento obtido, especialmente por alguns maus empresários, do resultado da aplicação das sanções regradas na lei, acabou-se implantando no país, nesses últimos anos, uma série enorme de medidas e ações prejudiciais aos direitos dos consumidores. E, está sendo difícil brecar essas novas táticas fundadas em velhos hábitos. Apontarei, na sequência, alguns casos, mas não posso deixar de consignar o equívoco desses fornecedores em empreender seus negócios de forma enganosa, normalmente respaldados em programas de marketing estruturados para obter receita e lucro em detrimento do cumprimento das leis vigentes e fora do modelo instituído da boa-fé objetiva (atualmente, o alicerce de todo o ordenamento jurídico). O bom fornecedor é ainda e sempre será aquele que desenvolve seu projeto de negócio, claro, visando o lucro, mas respeitando seus clientes. Lembro aqui a história do vendedor de amendoins na praia: ele passa gritando e dando uma amostra de seu produto para os banhistas; caminha alguns metros repetindo esse gesto para depois voltar. Enquanto ele vai, os veranistas comem o amendoim recebido - e de graça! - e quando ele volta, quem gostou tem a oportunidade de comprar um pacotinho, momento em que o negócio é concretizado. Desse simples modo de oferecer e vender o amendoim, pode-se extrair um dos melhores exemplos de como o empresário deve tratar o consumidor: em primeiro lugar o vendedor faz uma propaganda honesta, oferecendo de graça seu produto para que o consumidor experimente; depois ele somente vende para o consumidor que de fato quer comprar, uma vez que o produto foi previamente examinado, testado e aprovado. Quanto ao consumidor que experimentou mas não comprou, ainda assim o negócio foi bem feito. O custo do amendoim oferecido gratuitamente faz parte do custo total do negócio, porém funciona sempre como investimento, pois, até para aquele que não comprou fica a lembrança da boa imagem que o vendedor construiu, respeitando inclusive seu desinteresse em adquirir o produto. Por conta disso, esse consumidor torna-se um cliente em potencial, podendo adquirir o produto em outra oportunidade. Lamentavelmente, nem todo empresário pauta sua conduta por modelos como o acima narrado. E, o pior é que são os maiores, os que podem causar danos em larga escala, os que mais têm violado os consumidores. Veja esses exemplos. Alguns bancos lançam pequenos valores relativos a prêmio mensais de seguros que garantiriam os usuários contra, por exemplo, perda e roubo do cartão de crédito e dão como opção apenas que, se o cliente não quiser, deve ligar para cancelar o indevido lançamento, o que viola o direito do consumidor. Um banco com 1.000.000 de usuários cobrando apenas R$ 2,50 consegue faturar R$2.500.000,00 por mês! Fazem o mesmo lançando pequenos valores em siglas incompreensíveis que representam taxas sem o respectivo serviço prestado. As grandes indústrias (quem diria?) têm se utilizado de um artifício malicioso, conhecido como maquiagem. Seus clientes consomem seus produtos há muitos anos e de repente, sem que eles percebam estão levando menos pelo mesmo preço. São os casos de embalagens de biscoitos que tinham 200g e passaram a ser vendidos com 180g; sabões em pó de embalagens de 1kg mudadas para 900g; sabonetes de 90g reduzidos para 85g e mais um longo, etc. A tática é essa: abusos com pequenos valores individuais multiplicados pelo número de clientes. O resultado da conta é fabuloso: os consumidores são lesados sem nem mesmo perceberem e a indústria aumenta sua receita em milhões de reais. (Desculpem-me os parênteses, mas eu não resisto. Toda vez que penso nesse assunto, me vem à mente o slogan de uma associação de empresários que diz "Ético! É assim que todos devem ser", ao que eu acrescento "A começar por muitos empresários"). Esse processo, que sempre existiu e que, após a edição do CDC, pensou-se que tenderia a diminuir, tem crescido vigorosamente. E pior: com as fórmulas sedutoras do marketing, muitas vezes os consumidores não descobrem que foram enganados e não percebem que foram lesados. Eis, pois, uma amostra do desafio que, após os 21 anos da promulgação do CDC, se impõe: vencer a ganância dos fornecedores que não respeitam seus clientes. Uma saída seria o incremento do número de ações coletivas. Este é o principal instrumento de proteção ao consumidor. Não se deve esquecer que o CDC, em larga medida, foi elaborado para proteger mais os direitos coletivos e difusos que os individuais. Tem-se dado ênfase às ações individuais (o que se compreende pela tradição privatista do Direito brasileiro), mas isso precisa mudar. A ação coletiva pode pôr fim aos abusos praticados pelas grandes corporações, pois num único processo são resolvidos centenas ou milhares de casos iguais. Esse é um importante caminho para termos, nos próximos anos de vigência da lei, um direito do consumidor mais sólido, respeitado e um mercado de consumo mais forte. E, para concluir, lembro que a ação coletiva não retira mercado de trabalho dos advogados, pois termina em execuções individuais, facilitadas pela resolução da questão central debatida no âmbito coletivo.
quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Miscelânea consumerista

Uma das definições para o substantivo "miscelânea" no Aurélio é "mistura de coisas diversas". Consumerista, palavra que ainda não consta de alguns dicionários, é adjetivo que qualifica a pessoa especializada em Direito do Consumidor ou defensora do consumerismo, que por sua vez tem origem no substantivo inglês consumerism, que é o movimento que reúne pessoas e associações que defendem os direitos e interesses dos consumidores. Por extensão, podemos dizer que uma miscelânea consumerista é aquela que reúne vários episódios envolvendo o consumidor, seus direitos e interesses. Muito bem. Os últimos dias no país foram ricos em ocorrências envolvendo os direitos dos consumidores. Sei, claro, que não passa uma semana em que não haja algo relevante no setor, mas quero comentar os últimos incidentes que foram relevantes. Começarei pela greve dos correios, depois falarei do acidente na estrada Imigrantes, que liga São Paulo a Santos e terminarei com questões menores como promoções de refrigerantes e uso de blusas. Primeiramente, a greve dos correios, que no momento em que escrevo este artigo é anunciada no site oficial da empresa como entrando em declínio para seu fim. Tenho referido os correios no Brasil como exemplo de serviço de alta qualidade e eficiência. Ou, como digo, um dos caminhos mais rápidos entre dois pontos é o correio. Realmente, é induvidoso que esse é um dos melhores serviços públicos do país e que cumpre a missão estatal que se espera obter de todo serviço essencial (público, privado ou privatizado). Mas, por conta da paralisação, muitas pessoas podem já ter sofrido danos ou ainda podem vir a sofrer até a completa regularização do sistema. Responsabilidade objetiva da ECT Evidentemente, todo dano causado aos usuários é de responsabilidade primeira da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor. É que ela responde pelos vícios ou defeitos de seus serviços, o que inclui, naturalmente, a ausência dos mesmos. Para que a ECT seja responsabilizada, não há necessidade de que seja apurada sua culpa, eis que a sua responsabilidade é objetiva e decorre da exploração da atividade empresarial desenvolvida e seu risco. O empreendedor público, privado ou de atividade privatizada explora o mercado de consumo e a própria exploração da atividade gera risco social, independentemente de sua vontade. É lógico que, por exemplo, quando uma correspondência entregue pelo consumidor aos serviços do correio não chega a seu destino no prazo ou simplesmente se extravia, essa falha não se dá por interesse da empresa. Ela não decorre da vontade dos administradores da ECT, mas da atividade em si, eis que falhas sempre existirão no sistema de leitura ótica, na incorreta observação do pessoal que faz seleção dos envelopes e pacotes, no transporte, etc. Portanto, o dano existirá, apesar da vontade em sentido contrário dos administradores e funcionários. Danos sofridos A lei sabe disso. Ela sabe que, apesar do esforço do prestador do serviço, em algum momento, por evento imprevisto, o serviço falhará, causando danos ao consumidor. Naturalmente, a responsabilidade é a mesma na ausência do serviço, como a que ocorre no período de greve e que persistirá mesmo após seu fim por mais algum tempo até que o mesmo se normalize. Por isso tudo, a lei estabeleceu a responsabilidade objetiva. Basta a constatação do serviço contratado e seu defeito para que possa ser pedida indenização. O problema das contas que vencem nesse período A ausência de um serviço como o dos correios sempre gera danos em larga escala, atingindo fornecedores e consumidores. Nos serviços massificados, como os de telefonia, tevês a cabo, cartões de crédito, empréstimos bancários, etc., o serviço dos correios é fundamental para seu funcionamento. Isto porque, é através dele que a maior parte dos milhões de faturas é entregue mensalmente para pagamento. Consumidor responsável Entretanto, o não recebimento de uma fatura não retira a responsabilidade do consumidor em pagá-la no prazo se o credor manda as faturas pelo correio mas, simultaneamente, coloca à disposição do consumidor outro modo de quitar o débito. Cabe ao fornecedor entregar as faturas antes da data do vencimento. Todavia, com a paralisação dos serviços do correio, a entrega fica prejudicada. O fornecedor, então, tem de oferecer uma alternativa de pagamento ao consumidor. As segundas vias devem ser oferecidas via fax, e-mail, acesso ao site, por ligação telefônica, etc. Se essas segundas opções são oferecidas, cabe ao consumidor utilizá-las para o pagamento da dívida. Aliás, é bom lembrar que quando os serviços dos correios não estão paralisados, isso não impede que alguma correspondência não seja entregue. Logo, mesmo fora desse período crítico, pode acontecer do consumidor não receber fatura para pagamento dentro do prazo ou simplesmente não recebê-la. Engavetamento Como é sabido, no caso de muita neblina e baixa visibilidade, a Ecovias, concessionária responsável pela administração do sistema Anchieta-Imigrantes aciona a operação "comboio", reunindo um grupo de veículos (segundo informações divulgadas, no número de 500) que faz a viagem em bloco, acompanhados por carros da Polícia Militar Rodoviária. Fiquei surpreso em saber que a operação não é acionada nas pistas de sentido litoral-capital, mesmo com muita neblina; o acionamento se dá apenas no sentido inverso. E a existência por si só de uma operação desse tipo demonstra que o administrador da rodovia pode - e deve - intervir para controlar o tráfego em momentos de risco (como se espera, por exemplo, que o controlador do tráfego aéreo faça quando há risco para pousos e decolagens de aeronaves). Claro que, com operação comboio ou não, não se pode excluir a responsabilidade dos motoristas, que em caso de pouca visibilidade deve dirigir em baixa velocidade, com cautela e atenção redobradas. Acontece que o Código de Defesa do Consumidor, incidente na hipótese, diz que, em caso de acidente de consumo, o fornecedor é o responsável se não comprovar a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros. Faltando o serviço ou em sendo este falho ou ineficaz e ao mesmo tempo o consumidor concorrendo para o evento, o caso é de culpa concorrente que não livra o fornecedor da responsabilidade de indenizar (art. 14, "caput" e especialmente os §§ 1º e 3º). Questões mais amenas Meu amigo Walter Ego me ligou dizendo que seu sobrinho tentou participar de uma promoção e não conseguiu. Seria para comprar um refrigerante e receber outro igual de graça. Ao que consta a promoção era para durar dois dias e, segundo a empresa, em apenas um foi esgotado o estoque de trinta dias. O Procon/SP, inclusive, notificou a empresa porque a promoção pareceu enganosa. Eu respondi ao W. Ego que a situação parecia-me irônica e paradoxal, pois certamente os consumidores que não conseguiram adquirir os produtos é que foram beneficiados. Falei: "quem disse que vale a pena ingerir refrigerantes repletos de açucares e outros produtos químicos em dobro?". Pior ficou a situação da Lacoste: ela está tentando evitar que o psicopata norueguês Anders Breivik que matou 77 pessoas, use em público suas roupas, nas quais se pode ver o crocodilo estampado. Meu amigo perguntou: "quer dizer que agora as 'empresas de marca' podem escolher quem serão os consumidores que compram e usam suas roupas?". É. Precisamos tomar cuidado, pois talvez chegue um dia em que o fornecedor escolha quem é que pode usar seus produtos. W. Ego disse que já chegou: ela é feita pelos preços, pelo modo de entrega, pelas imposições de comportamentos, etc. Aliás, o Brasil já importou há muito tempo, dos Estados Unidos, o modo abusivo e preconceituoso de impedir que certos consumidores ingressem em boates com as escancaradas escolhas de quem pode entrar feitas nas portas. Pura discriminação!
Meu amigo Walter Ego, persistente frequentador desta coluna, adquiriu uma linha de rádio, mas muito atrapalhado que é, nunca conseguiu se adaptar, pois levava o aparelho à orelha quando devia usar a boca e vice-versa; ficava desesperado quando a pessoa do outro lado da linha falava sem parar e ele queira interromper mas não conseguia - uma vez me disse: "É preciso muita habilidade para encontrar uma brecha na fala do outro e conseguir entrar com sua própria fala..." -, enfim, por questões pessoais resolveu cancelar o serviço. No serviço de atendimento ao consumidor (SAC) da empresa, ele foi passado para um setor específico, onde um atendente treinado queria porque queria que ele explicasse os motivos da desistência. A situação era constrangedora, porque meu amigo simplesmente não desejava mais o serviço e pronto, mas dizer isso ao atendente não resolvia. Então, ele teve uma ideia: disse que estava se mudando de país - um pouco preocupado com que o atendente lhe oferecesse o mesmo serviço no exterior... Foi o único jeito que ele encontrou de burlar a parede treinada que não aceitava que ele apenas não quisesse mais o serviço. Muito bem, queridos leitores, aproveito essa história do W. Ego para cuidar dos SACs, que deveriam existir para facilitar a vida dos consumidores e garantir seus direitos, mas os fatos mostram que eles não funcionam exatamente assim. São numerosos os casos em que o consumidor é mal atendido por alguém do outro lado da linha dos serviços de atendimento ao consumidor - os conhecidos SACs - e, ainda que em alguns setores o serviço tenha melhorado, os problemas continuam. Lembro que, desde o dia 1º de dezembro de 2008, está em vigor o decreto 6.523 do presidente da República que regulamenta os SACs via atendimento telefônico das prestadoras de serviços regulados, tais como empresas de telefonia, de internet, de tevê a cabo, de planos de saúde, de aviação, de energia elétrica, financeiras, de seguros e de cartões de crédito, mas ainda assim não se conseguiu atingir um alto grau de excelência. Pergunto: será que precisávamos de um decreto para que o consumidor pudesse ser melhor atendido nos SACs? A resposta é positiva, sem dúvida. Mas, faço outra pergunta a vocês leitores: depois da regulamentação, isto é, nos últimos 33 meses, vocês foram sempre bem atendidos nos SACs? Eu não fui. Aliás, nem eu, nem meus amigos, nem certamente centenas de pessoas. Com ou sem regulamentação, os SACs continuam sendo de má qualidade, quando não verdadeiros centros de desinformação e violação aos direitos dos consumidores. Se o consumidor quer adquirir algo via telefone ou internet, é logo atendido, mas se pretende fazer um cancelamento ou uma desistência, passa por verdadeira via sacra. A primeira barreira é a quantidade de satisfações que é obrigado a dar ao atendente: não basta afirmar que se está exercendo o simples direito de desistir do negócio e pronto. Depois, é preciso cuidado em qualquer tipo de cancelamento, porque, às vezes, o atendente, para não tender ao consumidor, oferece algo em troca; por exemplo, algum serviço grátis ou algo similar e, após certo período de tempo, o consumidor que queria cair fora da relação estará pagando algo novo e terá de tentar outra vez fazer o cancelamento. É mesmo uma batalha. E, como há algo sempre acontecendo com meu amigo Walter Ego ou sua família, lembro que a esposa dele, depois de ser enganada pelo televendas de seu canal de tevê a cabo, indignada, cancelou o serviço e migrou para uma concorrente. Na dúvida sobre os serviços que a nova rede lhe oferecia, ligou ao SAC e recebeu a informação de que adquirira certos canais. Dias depois, alguns canais foram bloqueados. Era só "degustação" por alguns dias, disseram. Mas, não haviam deixado isso claro. Ela acabou engolindo a indigestão, que lhe foi oferecida enganosamente. Apesar de todo o dinheiro ganho pelas grandes corporações e também da incrível tecnologia de ponta dos tempos atuais, o consumidor continua tendo má acolhida nesses serviços de atendimento via telefone. Lembro que o decreto regula não só questões de atendimento envolvendo informação, dúvida e reclamação do consumidor, como também de suspensão e cancelamento dos serviços contratados. Esses dois últimos aspectos são fundamentais porque, como parte dos telefonemas dos consumidores é para cancelar o contrato, então, como disse acima, o fornecedor faz de tudo para impedir que a solicitação se concretize, o que viola abertamente o direito instituído. É mais uma prova de que a mentalidade de muitos empresários que atuam no país ainda está dezenas de anos atrasada. Então, como a modernidade capitalista de respeito ao consumidor não chega ao Brasil, uma das saídas é legislar, criando regras para que o fornecedor se atualize forçosamente. A boa notícia é que nem todo abuso tem ficado impune. O Poder Judiciário tem sido acionado por causa de falhas nesse tipo de serviço e tem dado sua contribuição para dar um "empurrão" no setor. São várias as condenações judiciais mandando pagar indenizações por danos morais causados ao consumidor. Vejam algumas. O E. Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, condenou uma companhia telefônica a pagar R$25.000,00 de indenização por danos morais causados pela falha do atendimento desse serviço telefônico. O consumidor cancelara a assinatura, pondo fim à relação estabelecida com a operadora. No entanto, apesar disso, continuou recebendo faturas com cobrança nos meses seguintes. O consumidor voltou a ligar, desta vez reclamando, mas não adiantou. A cobrança ilegal prosseguiu. Ele, então, desistiu do SAC e mandou uma carta, mas não adiantou. A emissão das faturas e as cobranças continuavam. O consumidor, sem alternativa, entrou com ação judicial requerendo que o juiz determinasse que a empresa telefônica parasse com a cobrança. O Juiz marcou audiência e nesta, o advogado da empresa se comprometeu a mandar cessar a cobrança abusiva. Mas, por incrível que pareça, a cobrança ainda prosseguiu por mais quatro meses. Num outro caso, o mesmo E. Tribunal mandou a companhia telefônica devolver ao consumidor o valor que ele havia pago por ligações feitas de seu aparelho celular que fora roubado no exterior. Logo depois desse incidente, o consumidor tentou, em diversas oportunidades, contatar a empresa pelo SAC para avisar do roubo e pedir o bloqueio do aparelho. Não conseguiu. O aviso só foi dado três dias depois, mas ainda assim a operadora cobrou indevidamente o valor lançado na fatura das ligações feitas pelo ladrão. E num outro processo, também envolvendo operadora de telefonia, o E. TJ/SP condenou a empresa a pagar R$25.000,00 por danos morais causados por cobrança abusiva e ilegal. O drama do consumidor nesse caso teve início já na aquisição das linhas. Ele adquiriu duas, uma para si e outra para a namorada. Mas, uma das linhas não foi cadastrada na promoção oferecida pela operadora. Conclusão: começou a sina de cobranças abusivas e ligações sem fim ao SAC. No início, o consumidor coagido e com medo de ser negativado nos serviços de proteção ao crédito, pagou as faturas, apesar do valor indevidamente cobrado. E, em seguida, tentou receber de volta a quantia paga, via SAC. Não obtendo sucesso e cansado, num certo mês, não pagou e teve a linha cortada. Foi obrigado a recorrer ao Judiciário para ver sanado o abuso. Por fim, numa outra ação judicial ainda o mesmo E. Tribunal de Justiça condenou a empresa a pagar R$15.000,00 por danos morais causados a uma consumidora, estudante universitária. Ela, sem dinheiro, atrasou o pagamento de duas contas telefônicas. A linha foi cortada. Depois disso, ela pagou as faturas com todos os acréscimos exigidos, mas o pessoal do SAC disse que para a religação ela teria de pagar uma outra conta que ainda iria vencer. Ela insistiu e mostrou o absurdo de exigirem o pagamento antecipado da conta e disse que precisava da linha para pode usar a internet, pois tinha de entregar um trabalho escolar, mas não lhe foi dada nenhuma atenção. Ela ficou sem a linha até chegar o dia do vencimento da conta futura e só depois desse outro pagamento é que a mesma foi reconectada. São muitos os casos parecidos e certamente há dezenas, centenas de consumidores lesados que não foram ao Judiciário. O que chama atenção, é que não era para ser assim. Das duas uma: há má-fé das empresas que preferem continuar abusando, porque talvez isso traga alguma vantagem financeira (o lucro compensa a perda) ou a competência administrativa demonstrada na oferta (com marketing e publicidade de primeira, tecnologia de ponta, etc.) não chega ao setor de suporte e atendimento.
Prezados leitores, ontem, dia 7 de setembro, foi o dia da independência comemorado em todo o Brasil e, claro, devemos lembrar que nos encontramos numa República Federativa e democrática. Na semana imediatamente anterior, o que chamou a atenção de todos os brasileiros foi um evento que envolve nossa democrática República: o da deputada Jaqueline Roriz, que segundo consta, somente foi absolvida porque a votação foi secreta. Aliás, a indignação nacional foi enorme por causa do resultado e do modo de votação. Por isso, resolvi desviar um pouco minha atenção da questão do consumidor para tratar do tema do voto secreto que, penso, fica numa espécie de degrau acima dos assuntos consumeristas, eis que cuida dos direitos dos cidadãos; de uma forma de exercício da cidadania, afetando, portanto, a base de nosso regime capitalista democrático. Saio, pois, do plano específico do consumo para pensar com vocês esse importante tema de exercício da cidadania, o ser do voto - secreto ou não. 1. Voto Secreto Princípios e Regras 1.1 Direito-Interesse e Direito-Função Dispõe o art. 14, incisos e parágrafo 1º da Constituição Federal, "in verbis": "Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. § 1º - O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II - facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos." Fixemo-nos, para nossa avaliação, apenas no inciso I do § 1º: é obrigatório o voto para os maiores de dezoito anos. Como a Constituição prescreveu a obrigação de votar, o voto é, no Brasil, um direito do cidadão, mas também um dever. É a junção do chamado direito-interesse e do direito-função numa só possibilidade de exercício. O direito garantido tem característica de direito-interesse quando seu titular o exerce em benefício próprio. Por isso, é também conhecido como direito-poder ou direito-prerrogativa, exercido a partir da ação do titular, lastreada no seu juízo e na sua vontade. O direito-função é aquele exercido por alguém em benefício de um terceiro. Por exemplo, o pátrio-poder é exercido pelos pais em função dos filhos. O titular do direito-base é o filho, mas quem tem capacidade para exercê-lo são os pais. O voto, de forma híbrida, é um direito misto interesse e função, pois ele é um direito do cidadão, exercido também em função do Estado. Tornando-o obrigatório, o Estado quer se assegurar do aspecto "função", que "lhe pertence". Porém, o aspecto interesse também permanece e surge aquilo que importa: a Constituição Federal assegura amplo exercício desse direito do cidadão ao garantir o voto secreto. É importante um parêntese aqui para apontar dois pontos: a) apesar de ser secreto e assim garantido, não há impedimento ao cidadão de que ele declare seu voto publicamente. O voto secreto é garantia e, portanto, prerrogativa que o cidadão, se quiser, abandona, podendo declarar abertamente o voto que deu ou dará; b) seria mais lógico, como se defende, tornar o voto apenas um direito, pois sendo um dever e garantindo-se a liberdade de votar em quem quiser, muitos votos - especialmente brancos e nulos - são apenas perda de tempo e dinheiro do cidadão e do Estado. 1.2 A garantia da liberdade Por que se assegura o voto secreto? Fundamentalmente para garantir que o mesmo seja "livre". O termo "livre" no caso significa o seguinte: a) que o cidadão tem resguardado um espaço público inviolável (a urna indevassável) para exercer o direito-dever de votar; b) que o cidadão tem resguardado um espaço "íntimo" (a consciência: juízo e vontade) para decidir o que fazer com seu voto; c) que se pretende garantir ausência de oposição e/ou impedir tentativa de pressão por parte de terceiros junto ao cidadão, capaz de influenciar seu voto. Em função dessas características, podemos afirmar que o cidadão tem no voto secreto a garantia de que só deve satisfações sobre o voto a si mesmo; à sua consciência. É essa a função do ser secreto do voto: garantir que o cidadão tenha seu juízo e vontade resguardados. 2. Voto Aberto 2.1 Prerrogativa do titular Conforme já disse, a obrigatoriedade do voto tem relação com sua função: o cidadão deve exercer o voto para satisfazer o direito do Estado. Vimos, também, contudo, que esse dever é apenas de forma e não de conteúdo, isto é, a obrigação atinge o ato de votar, porém não atinge o conteúdo do voto. Este é livre, podendo o titular fazer com o conteúdo o que bem entender: a) escolher o candidato; b) votar em branco; c) anular o voto. Conclui-se, então, que a garantia da liberdade do conteúdo é assegurada pelo fato do voto ser secreto. Esse fato, portanto, é direito-interesse do titular. Mas, veja-se bem: não há qualquer relação no fato do voto ser secreto com a característica de direito-função. O voto secreto é direito apenas e tão somente do titular. Como ele é um direito-interesse, está claro que é uma prerrogativa sua. É, também, por isso, um direito subjetivo seu. Dessa maneira, sendo um direito-interesse, direito-subjetivo ou prerrogativa, pode o titular, se quiser, abrir mão desse direito e declarar o voto abertamente. Ou, em outras palavras, pode o titular colocar publicamente o conteúdo de seu voto, porque esse conteúdo pertence apenas a ele. Sua declaração pública é uma mera decorrência do direito estritamente pessoal que lhe assiste. 2.2 O conteúdo do voto e a questão da verdade Faço uma pergunta: como saber que o voto declarado publicamente corresponde ao conteúdo do voto secreto, isto é, como saber se a declaração de voto é verdadeira? Pensemos uma hipótese: João de Deus escolhe na urna eletrônica (ou na falta dela, preenche na cédula eleitoral) o nome do candidato José da Silva. O ato de votar transcorre normalmente: secreto e livre. João de Deus resolve declarar publicamente seu voto. Como poderemos dizer que a declaração pública do voto do João de Deus é verdadeira? Sem querer aprofundar o estudo sobre a questão da verdade, posto que isso aqui é desnecessário, ninguém duvida que ela só aparecerá se João de Deus declarar que votou em José da Silva. Sua declaração somente será verdadeira, portanto, se sua declaração pública de voto for a mesma do conteúdo do voto inserido na urna. Se João de Deus declarar publicamente que votou em Frederico de Souza, estar-se-á diante de uma mentira. Mas, como saber se a declaração de voto é verdadeira ou falsa? Não há como saber. Como se está diante de duas prerrogativas: a) a de votar em quem quer que seja livremente, e mesmo anular o voto ao deixá-lo em branco; b) a de declarar publicamente o voto; não existe forma de um terceiro saber se a declaração é verdadeira ou não. A própria condição de verdade converte-se em prerrogativa do titular, e assim, somente ele e mais ninguém saberá o que fez. Não há como impedir, portanto, que alguém vote em José da Silva e declare que votou em outro candidato. 3. O voto por representação 3.1 O que ocorre num mandato O mandato é o ato jurídico através do qual alguém recebe de outrem - que lhe outorga - poderes para em seu nome agir. É uma representação ou delegação convencional - ou legal - na qual o outorgado pratica atos em nome do outorgante, e que terão repercussão concreta no mundo jurídico. Os atos que podem ser praticados pelo mandatário são aqueles geralmente estabelecidos no momento da outorga, sendo que esta pode ser escrita ou verbal. Dentre as características do mandato, a doutrina jurídica coloca a do "intuito personae", isto é, aquela que diz respeito à idoneidade técnica e moral do mandatário, isto é, sua condição pessoal. Ou, em outras palavras, é característica do mandato haver confiança entre os contraentes, especialmente do mandante ao mandatário: presume-se que, em função da outorga, o mandante confia na capacidade pessoal do mandatário para exercer o mister para o qual foi nomeado. É por isso que se apresenta como exemplo de revogação do mandato a falta de confiança entre os contraentes. Uma outra característica jurídica, tratada pela doutrina e também pela jurisprudência, é a de que o mandato tem relação com representatividade. O mandatário é o representante do mandante e, quando age diante de terceiras pessoas, age em seu nome; representa-o. Por isso, a jurisprudência tem dito que os atos do representante só vincularão o representado se praticados em seu nome, dentro dos limites do instrumento, ou seja, dentro dos poderes conferidos no ato da outorga1. Aliás, a propósito, o caráter de representação é típico nas entidades associativas e de classe, assim como das Assembléias Legislativas, Câmara dos Deputados, Senado Federal etc. 3.2 O voto secreto como ato decorrente de mandato ou representação O voto como o exercício decorrente de um direito pode ser delegado se a lei não o proibir: o cidadão está impedido de nomear procurador para exercer o direito de votar nas eleições para os cargos públicos, como por exemplo, os de vereador, deputado e senador; esse é um direito que ele não tem. Como dito, se houver permissivo legal ou convencional - estatutário -, ou não houver proibição, o próprio voto, ele mesmo, pode ser objeto de delegação por mandato. Neste ponto é de se colocar uma pergunta relacionada ao conteúdo do voto: está o mandante obrigado a definir o que fazer ou em quem o mandatário deve votar? A resposta é não. Como a própria delegação do voto é uma prerrogativa, seu conteúdo também o é. Logo, o mandante pode deixar a cargo do mandatário definir o que fazer com o voto, a critério dele. Visto isso, a próxima indagação está relacionada ao ser secreto do voto: já que o mandante tem a prerrogativa de transferir o poder decisório do voto para o mandatário, pode ele outorgar poder para que o voto seja secreto? Ou, em outras palavras, pode ele abrir mão de conferir o resultado real, prático e visível do exercício do mandato? Sim, mas naturalmente, essa situação vale quando se está tratando de direito individual, no qual a renúncia implica um ato de liberdade decorrente da prerrogativa pessoal do mandante. Porém, a questão muda de figura quando o direito que está em jogo é coletivo, como no caso do mandato exercido pelo parlamentar. Mesmo que quisesse, o cidadão não poderia abrir mão desse direito de checar a execução do mandato. Com efeito, o mandatário do voto popular representa não só aqueles que nele votaram mas também toda a coletividade. O mandato, quer seja de vereador, deputado ou senador é exercido em prol da comunidade. Poder-se-ia dizer que, nesse sentido, o voto proferido pelo parlamentar não lhe pertence, ainda que uma pessoa física exerça o mister. É que, tratando-se de um papel social público de representação, como é o do membro do legislativo, a pessoa nele investida quando por ele atua age em nome da população. Ora, todo e qualquer cidadão tem o direito que decorre do exercício da cidadania, de não só saber como atua seu representante como cobrar dele as ações que entende adequadas. Afinal ele é eleito para exercer o "munus" público essencial do cargo. Se no exercício desse cargo público ele agir secretamente, via voto secreto, suprime-se o sagrado direito da população de controlar seus atos. É verdade que se tem objetado que o voto secreto protege o parlamentar porque ele assim fica imune a pressões. Todavia, é preciso colocar que, em primeiro lugar, exercer cargo público tão relevante implica necessariamente a assunção do risco de se expor publicamente: é ônus do próprio cargo. E, depois, o que é mais importante: o mandatário da coletividade tem que estar sujeito à influência das pessoas, posto que isso é inerente ao pleno exercício de uma democracia. De pouco adianta nomear um representante se não se pode saber o que ele está fazendo com o mandato outorgado. Do ponto de vista lógico da plenitude da democracia e mesmo da justiça essa parece ser a melhor posição. É impossível para a coletividade controlar os atos de seu representante se ele os pratica às escondidas. O elemento garantidor de liberdade que existe quando se trata do exercício de voto do cidadão nas eleições públicas inverte-se, passando a ser exatamente o contrário no caso do eleito: uma garantia de voto secreto possibilita acordos escusos em detrimento do representado. E este, não tendo como controlar o resultado do exercício do mandato conferido, fica apenas com a palavra do mandatário, que, como vimos no item 2.2 retro, pode não ser expressão da verdade.
A obesidade é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o acúmulo excessivo de gordura no corpo que pode acarretar problemas graves de saúde como doenças cardiovasculares, hipertensão e diabetes. Segundo a OMS, a obesidade é considerada a mais importante desordem nutricional e é uma epidemia mundial. A incidência da doença é alta, tanto em países desenvolvidos, quanto nos emergentes e subdesenvolvidos. Nenhuma faixa etária está livre do problema. E, pior, nos últimos anos tem aumentando a incidência da doença nas primeiras faixas etárias, em crianças e adolescentes. Conforme explica a médica nutróloga Jussara Fialho Ferreira, há alguns anos se dizia que a obesidade decorria da gula, da falta de força de vontade, de uma fraqueza de caráter ou, ainda, de algum distúrbio psicológico. Atualmente, a ciência reconhece que a obesidade tem múltiplas causas fisiológicas e psicológicas. Diz ela: "Sabe-se que existem pessoas que possuem genes predispostos ou não a prática de esportes ou que tem predisposição para comer muitos doces, por exemplo. Mas não é só isso que determina se uma pessoa será ou não obesa. Outro agravante é a hereditariedade. Se um dos pais for obeso, a chance de desenvolver o distúrbio é de 50%. Agora se ambos forem obesos a chance é de 80%". Além desses fatores genéticos, existe o fator ambiental. Este é caracterizado pelo desequilíbrio entre a ingestão de alimentos com alta densidade calórica e a queima insuficiente destas calorias. A psicóloga Angela Tamashiro diz que "as pessoas não são obesas porque querem ou desejam. Várias são as causas que geram a obesidade. Em 90% dos casos, a causa da obesidade está na utilização descontrolada da gordura..." Estela Renner, que já produziu o excelente documentário intitulado "Criança, a alma do negócio", está agora produzindo um novo filme voltado ao problema da obesidade infantil. O foco é exatamente esse da questão ambiental: obesidade causada pela ingestão imoderada de produtos calóricos, repletos de açúcares e conservantes e outros ingredientes que fazem mal à saúde. Um dos principais aspectos abordados é o da ausência de informação ou má informação a respeito dos produtos ditos alimentícios que são fabricados e vendidos em todos os cantos do país e também a maneira como os mesmos são oferecidos pela publicidade massiva. A partir da edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 11-03-1991, os fabricantes foram obrigados a fornecer informações sobre o conteúdo de seus produtos alimentícios, mas, passados mais de 20 anos da vigência da lei, o que se percebe - como já aqui me referi mais de uma vez - é que a grande indústria descobriu meios de distribuir seus produtos não saudáveis por intermédio das conhecidas fórmulas de sedução veiculadas pela publicidade e, também, algumas vezes fornecendo informações insuficientes ou não claras. O documentário mostrará isso. Ligado ao assunto exposto nos filmes, foi realizado um seminário na semana passada, no qual tive oportunidade de participar, promovido pela Escola Paulista da Magistratura em conjunto com a Apamagis, o Instituto Alana, o Procon de São Paulo e o Idec. Nele, várias questões a respeito da publicidade voltada ao público infantil foram abordadas, sendo que as relacionadas ao problema da nutrição, quero dividir com vocês no presente artigo para uma reflexão. Ficou claro para quem assistiu ao evento que, na sociedade capitalista contemporânea, cada vez mais há uma necessidade de esclarecimento e divulgação dos direitos dos consumidores em geral porque, apesar do CDC ser uma lei que, como se diz, pegou, a desproporção entre o que falam os fornecedores e o que podem os consumidores é monstruosa. E não só o que falam, mas o que apresentam, o que prometem, as imagens maravilhosas que mostram e todos os modos que eles têm de buscar seduzir. São milhões, ou melhor e literalmente, bilhões de reais gastos em publicidade todo ano para cooptar os consumidores. Estes têm muito pouco a seu lado para lutar por seus direitos, combater os maus fornecedores, denunciar o mau atendimento, buscar ressarcimento por suas perdas etc., apesar do excelente trabalho desenvolvido pelos Procons e algumas associações de defesa dos consumidores como o Idec, a Alana, a Proteste e a atuação do Ministério Público especializado. E, se os consumidores adultos têm essa dificuldade, certamente ela aumenta quando se trata de crianças e adolescentes. Quando se fala em informação e publicidade, sempre surge a questão ligada à liberdade de expressão. Não repetirei aqui algo que já disse antes em relação a este tema; lembro apenas que o sistema legal brasileiro permite o controle e até a proibição da publicidade em algumas situações específicas. Aliás, no momento do debate num dos dois dias de seminário, foi levantada uma questão a respeito de um certo receio da existência de intervenção "demais" do Estado, através de leis que regulassem o campo da informação e da publicidade. Lembrei que uma das virtudes da sociedade capitalista contemporânea é o desenvolvimento da ciência. E, evidentemente, a sociedade tem de se aproveitar das verdades científicas - quando elas são incontestáveis - em seu benefício. Eis o exemplo que elucida a questão: em grande parte do século XX fumar era sinal de bom gosto e distinção. Nos filmes de Hollywood dos anos 40, 50, 60 e até 70 os personagens quase sempre estavam portando um cigarro, especialmente em situações sociais. Cigarro e glamour andavam juntos. E, não só em Hollywood, mas também no cinema europeu, etc. Fumar era algo natural de se fazer. Muito bem. Na medida em que a ciência avançou, foi-se descobrindo os malefícios do tabaco e começou-se a catalogar as diversas doenças causadas por seu consumo, assim como um número enorme de mortes. O Estado, por sua vez, passou a fazer a contabilidade dos prejuízos ocasionados com as doenças e as mortes. Conclusão: muitos países passaram a proibir a publicidade de produtos fumígenos, os impostos sobre esses produtos foram aumentados, passou-se a proibir seu uso em locais fechados e públicos etc., tudo visando fazer cair seu consumo. E, apesar da grita de alguns fumantes e, claro, dos fabricantes, as limitações e proibições vingaram muito bem. Ora, a obesidade é uma doença e focada na questão ambiental, a ciência já começa a mostrar que ela está ligada em boa parte ao consumo de produtos de baixa qualidade nutritiva e alta concentração de açúcares, sais, gorduras, conservantes, etc. Assim, com o apoio da ciência, vê-se que pode o Estado atuar no mercado para exigir, por exemplo, que os produtos alimentícios estampem informações mais precisas e mais claras. As embalagens poderiam também dizer dos malefícios que podem ocorrer pela ingestão excessiva. A publicidade poderia ser restringida. Nas escolas de ensino fundamental e médio, poder-se-ia proibir que as cantinas vendessem porcarias, como ocorre atualmente. Enfim, está na hora de a obesidade ligada à alimentação ser tratada com o cuidado que exige. Quanto à publicidade, a existente atualmente é escandalosamente bem produzida para encantar pais e filhos levando-os a mundos maravilhosos e oferecendo porcarias e bugigangas. Assistam: as propagandas são belíssimas, com produção de dar inveja a filmes hollywoodianos, mas nunca dizem a quantidade de gorduras, açúcares, sais, etc. E, tomando o barco da moda da defesa do meio ambiente, muitas propagandas se utilizam da ideia, apresentando crianças que defendem o meio ambiente, mas que ingerem muita alimentação não saudável (evidentemente, todos são a favor da defesa do meio ambiente; por isso os produtores passaram a adotar esse "slogan" cativante para oferecer seus produtos criando essa nova modalidade de ocultação e fingimento). Evidentemente, não se deve esquecer a atuação do consumidor, que pode dizer não às ofertas, assim como pode mudar seus hábitos alimentares. Cabe também aos pais regularem o modo de alimentação de seus filhos, crianças e adolescentes. O problema, como apontei, é a desproporção entre, de um lado, a oferta e, de outro, a capacidade de crítica e obtenção de informações precisas pelos consumidores. Estes estão acuados, lutando pela vida no dia a dia do trabalho ou procurando empregos, estudando, cuidando dos filhos, etc.: sobra muito pouco tempo para refletirem sobre seus hábitos de consumo. Por isso, muitas vezes o consumidor acorda tarde demais. Uma ajuda viria a calhar. É por essas e outras que os consumeristas entendem que o Estado pode dar uma mãozinha. Sempre lembrando, digo eu, que nós já temos uma excelente lei de proteção ao consumidor (o CDC), que garante direitos e regula obrigações, funcionando como uma boa alternativa para a defesa dos interesses e direitos de forma individual e coletiva. Mas há uma verdade científica insofismável: a obesidade é uma doença e deve ser tratada como tal. Parte dessa doença está ligada aos produtos colocados em circulação. Chegará a hora em que as autoridades públicas farão as contas e perceberão o gasto excessivo que estão tendo por causa de mais essa doença; quem sabe, então, intervenham a favor do consumidor. De todo modo, é preciso que a informação dos produtos que os consumidores adultos e especialmente as crianças e adolescentes possam ingerir seja clara e ostensivamente oferecida e apresentada. Para terminar lembro a frase atribuída a Otto Von Bismark que diz: "Se o povo soubesse como são feitas as leis e as salsichas, não dormiria tranquilo". Penso que nesta sociedade em que vivemos, dominada pelo mercado, seria importante atualizar esse pensamento: "Se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas e demais embalados e enlatados, os biscoitos, os sucos artificiais, os refrigerantes e as várias bebidas de caixinhas, etc. não as comprariam".
quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Falta Estado no mercado de consumo

Brinquedos se quebram em parques de diversões e buffets infantis, matando e ferindo adultos e crianças; explosão de bueiro virou rotina na cidade do Rio de Janeiro; encontraram chumbo na tinta de milhares de brinquedos; milhões de litros de leite estavam contaminados com soda cáustica e outros produtos tóxicos; a grande indústria maquia produtos a toda hora; os aeroportos e a própria viação aérea não funcionam mais; anúncios enganosos e abusivos podem ser vistos aberta e impunemente etc. O que esses casos que aconteceram e, recorrentemente, acontecem no Brasil (e em outros lugares do mundo) têm em comum? A falta de fiscalização e controle do Estado e, também, em parte, a ainda precária qualidade das informações recebidas pelos consumidores, destinatários finais dos produtos e serviços. Dever do Estado Não só por determinação constitucional e legal o Estado é o responsável pela fiscalização de tudo o quanto ocorre no mercado de consumo, mas também por questão de ordem política e social. Quando me refiro a Estado quero dizer todos os entes da Federação nas suas esferas de competência: a União, os Estados-membros e os Municípios. Uma parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado tem uma certa autonomia em relação à fiscalização do Estado, tais como a indústria e comércio de vestuário, a produção e distribuição de livros, jornais e revistas, a oferta de curso livres, etc. No entanto, um amplo setor da economia está não só atrelado às determinações do Estado diretamente ou por intermédio de suas agências e autarquias, como são explorações autorizadas a funcionar apenas pelo Estado ou mediante concessão. Não é porque o Estado privatizou certos setores que não tem mais responsabilidade sobre eles. Ganância Não adianta acreditar que o mercado de consumo resolve suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" de mercado que fosse capaz de corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: os empresários modernos e as grandes corporações que eles dirigem querem, cada vez mais e sempre, faturar mais alto, nem que para isso eles tenham que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios e piorar a qualidade de seus produtos e serviços. Para lucrar mais, esses empresários acabam correndo mais risco de oferecer piores produtos e serviços ao consumidor. E, com o fenômeno da chamada globalização, o quadro piorou. Por conta da abertura do mercado de vários países, do incremento da tecnologia e das comunicações, da melhora das condições de distribuição etc., as grandes corporações acabaram por mudar seus polos de produção para locais que ainda não tinham tradição de produção de qualidade. Essas empresas foram buscar maiores lucros, pagando menores salários e produzindo bens de consumo de pior qualidade. As conhecidas marcas mundiais passaram a atuar cada vez mais no marketing de manutenção da grife e, em alguns casos, tais marcas foram produzidas já no ambiente globalizado iludindo os consumidores que acabam adquirindo a marca em detrimento do próprio produto. Dizendo em outros termos: o fato do produto ou serviço ser oferecido por marca conhecida mundialmente não garante sua qualidade. Pode até ser que outrora o produto feito na matriz em que foi criado fosse bom, mas não se pode mais garantir que continue sendo, na medida em que são produzidos em locais que não tem mão de obra qualificada e ambiente de trabalho solidificado na experiência. Brinquedos Veja-se o caso dos brinquedos: nos últimos anos foram acumuladas dezenas de recalls das grandes indústrias para a retirada de centenas de produtos de baixa qualidade e que colocaram - e ainda colocam - em risco a saúde e a vida das crianças. São brinquedos feitos em países que não tem como preocupação a qualidade e, na hipótese, o que é mais importante, a segurança de seu público alvo, as crianças. Mito no Brasil Eu aproveito o exemplo dos brinquedos para ingressar num dos assuntos que interessa em especial ao consumidor brasileiro e que, a meu ver, se for por ele internalizado ajuda em muito a garantia de seus direitos. É o do mito (ainda) de que produtos estrangeiros são melhores que os nacionais. Faz muito tempo que isso deixou de ser verdade. Na área dos brinquedos, por exemplo, o Brasil tem um dos melhores sistemas de controle de qualidade e segurança daquilo que é oferecido. Mas, não é só nessa área. Na de produção de automóveis, de móveis, de produtos da chamada linha branca, eletrodomésticos e eletroeletrônicos etc. Nossos produtos são iguais ou melhores que os produzidos em outros lugares do mundo. E os consumidores, quando adquirem nossos produtos, de quebra, ajudam na manutenção dos empregos dos brasileiros. Penso, pois, por isso, que cabe ao consumidor brasileiro, antes de comprar produtos importados, olhar o nacional (sei, claro, que atualmente há preços favoráveis nos produtos importados, por causa da valorização do real, mas ainda assim não se deve esquecer do ditado popular que diz que "o barato sai caro"). Fiscalização Ora, como a regra mercadológica é faturar ainda que piore a qualidade e segurança dos produtos e serviços, exige-se maior participação do Estado diretamente na economia. É um grave erro o Estado sair do mercado, deixando que este resolva os próprios problemas criados. Muitas vezes, é apenas o Estado que pode resolvê-los. Tome-se o exemplo da crise aérea. Aliás, interminável, com quebras de companhias de aviação (Varig, BRA, etc.), problemas de infraestrutura e administração nos aeroportos, esquemas escusos inventados e implantados pelas companhias aéreas contra os consumidores cujo maior expoente, mas não o único, é o overbooking, além do mau atendimento, atrasos regulares, cancelamentos inexplicáveis etc. Nesse setor a responsabilidade do Estado decorre diretamente de seu direito e dever de fiscalização. As companhias aéreas não podem atuar sem a autorização direta dos órgãos governamentais e não podem também fazer promessas e ofertas ao público consumidor que violem o sistema legal nem girem seu negócio com incompetência administrativa isenta de fiscalização. O mesmo se dá em vários outros setores: no de brinquedos, claro, no de alimentos (é preciso cuidar de criar cargos de agentes que fiscalizem os agentes para evitar fraudes criminosas como a do leite de Minas), no de medicamentos, no financeiro etc. (nem preciso referir o caso da crise financeira mundial de 2008, que nasceu, como se sabe, da desregulamentação do mercado). O mercado livre Enfim, a cada dia que passa, fica mais demonstrado que a chamada era do mercado de consumo livre de intervenção estatal exige sim uma ação direta do Estado, em todas as suas áreas de competência e atuação, para garantir o mínimo de qualidade e segurança dos produtos e serviços oferecidos no mercado. Lembro que no Brasil há leis claras sobre o assunto, dentre as quais destaco a Constituição Federal (arts. 173 e seguintes) e o Código de Defesa do Consumidor. E, quanto ao consumidor, é preciso muita atenção às ofertas enganosas. Não deve ele acreditar que dá para comprar passagem para a Europa pagando apenas o preço de ida impunemente, nem que brinquedos que concorrem com similar nacional podem ter a mesma qualidade, apesar de custarem a metade do preço ou menos. Não se deve esquecer que nada é de graça no mercado de consumo até porque, para usar outra expressão da qual gosto muito, de autoria de Octávio Paz, "o mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores".
O capitalismo barulhento e o sagrado direito ao sossego Meu amigo Walter Ego foi sábado passado ao cinema assistir ao último (e excelente) filme de Woody Allen, Meia noite em Paris. Como não poderia deixar de ser, algo aconteceu. E, dessa vez foi o barulho. Não o dos espectadores, mas do próprio exibidor. Ele me disse: "O que acontece com esse pessoal dos cinemas. Os trailers e demais besteiras que passaram antes do filme tinham uma altura para lá de dezenas de decibéis". E para comprovar que falava a verdade, completou: "E não era só eu a reclamar - embora só as pessoas que estavam perto pudessem ouvir. Duas senhoras sentadas à minha frente se queixavam e uma dizia já estar com dor de ouvido. Só melhorou durante a exibição do filme, quando o volume foi abaixado um pouco". Depois, perguntou: "Dá para processar o exibidor? E a vigilância sanitária não faz nada?" Eu respondi que, claro, se a pessoa sofrer algum distúrbio, por exemplo, tendo dores de ouvido, pode sim pedir indenização por danos materiais - caso haja tido algum gasto ou perda financeira e, dependendo do impacto, até mesmo indenização por danos morais. E que, obviamente, cabe à fiscalização municipal checar o nível de decibéis produzido nas salas de exibição e, em caso de exagero, determinar o uso adequado dos instrumentos sonoros. Como ultimamente os meios de comunicação têm abordado com certa regularidade a questão do barulho, que causa danos e nem sempre tem tratado as questões jurídicas como exige o caso, eu aproveito o episódio de meu amigo, para cuidar do assunto, lembrando, desde logo, que a violação do sossego no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais violado abertamente. O interessante nessa garantia legal, é que ela é uma espécie de ausência: implica um obstáculo à ação das outras pessoas. Nos tempos atuais das grandes cidades e metrópoles ela se dá num "vazio", numa falta, num espaço, digamos assim, intocado. Parece que nas sociedades industrializadas contemporâneas, nesta era capitalista do império globalizante em que vivemos, tudo faz barulho. Existe mesmo uma busca incessante em sua produção: são músicas em altos volumes nos automóveis, nas lojas e nos restaurantes, nos clubes, nas academias, nos intervalos dos espetáculos teatrais e nos cinemas, nos estádios de futebol, onde há também o barulho das torcidas que atinge toda a redondeza; nas festas de aniversário e de casamento; são shows ao vivo em estádios que vão muito além de suas arquibancadas; são bares, boates e danceterias que invadem o espaço dos vizinhos etc. De fato, todo o sistema é assim. Há excesso de ruído por todos os lados: dos veículos nas ruas, das máquinas nas fábricas, das construções, das oficinas etc. Trata-se de um enorme amontoado de ações barulhentas, algumas ensurdecedoras, nem sempre em nome do tão sonhado progresso. Não posso deixar de fora os sons "privados" dos aparelhos eletrônicos domésticos que saem pelas janelas de apartamentos e casas perturbando os vizinhos com seus exagerados volumes. Há também latidos incessantes de cachorros e até "imitações" dos papagaios (licenciados ou não pelo Ibama). Na sua crônica da revista Veja São Paulo, publicada há alguns meses, Walcyr Carrasco citou um caso de uma arara que perturbava os vizinhos de um prédio na cidade de São Paulo. Enfim, os barulhos, ruídos, sons em altos volumes entram em nossas casas e apartamentos a toda hora sem pedir licença, violando esse nosso direito sagrado ao silêncio e ao sossego. É verdade que algumas pessoas até se acostumaram com isso e outras dizem que "gostam", mas o fato é que barulho não solicitado fere o direito sagrado ao sossego e pode gerar danos à saúde. Não abordarei um aspecto importante dos sons não pedidos, como a imposição dos estabelecimentos comerciais de que seus frequentadores escutem as músicas por eles escolhidas (o que, por exemplo, em academias de ginástica e musculação pode ser altamente prejudicial não só pelo excesso de volume, como pela qualidade das músicas...). Tratarei do outro lado da questão: do direito ao silêncio, ao sossego e ao descanso, sagrados e que qualquer pessoa pode exigir. O direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito que envolve uma série de transtornos já avaliados e julgados pelo Poder Judiciário. Por exemplo, o Judiciário já considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente etc. Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente. Num caso em que se considerou excessivo o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação da planta pela Prefeitura e seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou que a quadra de esportes produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha aprovado sua construção. Aliás, lembro que os shows produzidos em estádios de futebol e que violam às escâncaras o direito ao sossego dos vizinhos são, como regra, autorizados pela Prefeitura local. Alguns shows, inclusive, varam a noite e a madrugada, numa incrível violação escancarada. Realço que, nesses casos, a própria Prefeitura é responsável pelos danos causados às pessoas. Dizia acima que a legislação pátria é rica no tema. Muito bem. A Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo Decreto-Lei 24.645/1934 que dispõe que "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o novo Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 2003, garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Nesse ponto, anoto que para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras. A questão, portanto, ao contrário do que tem sido noticiado, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais.
quinta-feira, 11 de agosto de 2011

As bebidas alcoólicas e o consumidor

Um assunto que foi bastante noticiado na semana passada foi o do projeto de lei do governo do Estado de São Paulo, que visa punir com multas de até R$ 87.000,00 estabelecimentos que vendam, ofereçam, entreguem ou permitam o consumo, em suas dependências, de bebida com qualquer teor alcóolico para menores de 18 anos em todo o Estado. A multa dobrará em caso de reincidência e pode levar à perda da inscrição estadual do comerciante. Antes de prosseguir, lembro que já é proibido vender, oferecer ou entregar bebida alcoólica a menores de 18 anos. A questão é outra: ela está ligada as medidas que tentam coibir o uso pernicioso desse tipo de bebida não só por menores como por adultos, mas que funcionam apenas como paliativo. Pergunto: não haveria outros modos mais eficazes de se combater esse vício? Pensemos no assunto. Ninguém dúvida do mal que as bebidas alcoólicas fazem e, particularmente, nós consumeristas, temos combatido fortemente os anúncios publicitários que incentivam o consumo desse tipo de droga. Os malefícios causados, especialmente aos jovens, são enormes. É evidente que não se pretende a proibição de fabricação das bebidas que contém álcool, mas está mais do que na hora de se utilizar entre nós os métodos modernos para restringir a aquisição de bebidas e que tem funcionado muito bem. É preciso, por exemplo, proibir a publicidade e limitar os pontos de venda. Em Estados americanos como Utah, os consumidores da Capital, Salt Lake City, somente podem comprar bebidas alcoólicas em lojas especializadas, nas quais só podem entrar maiores de 18 anos. Nos supermercados, por exemplo, só se vende cerveja sem álcool. O mesmo se dá no Canadá. Em Vancouver, cidade que tem uma das melhores qualidades de vida do mundo, só é possível comprar bebidas nas "liquor stores" e, claro, também, lá só entram maiores de idade. Pergunta-se: isso impede que as pessoas bebam? Claro que não, pois ainda se pode beber em casa depois de adquirir a bebida na loja especializada ou se pode beber num restaurante, numa boate, etc., mas é proibido portar garrafas ou latas de bebidas alcoólicas abertas nas ruas ou nos automóveis. A venda ampla e aberta feita por supermercados, mercearias, padarias e congêneres é um facilitador excessivo e implica um estímulo à compra e à ingestão. E, ao contrário, a venda circunscrita em locais específicos, especialmente autorizados e fiscalizados, dificulta em muito não só a compra como também a consequente ingestão de bebidas alcoólicas. Anoto que nesses locais o consumidor não compra por impulso. A aquisição da bebida alcoólica - qualquer que seja o tipo: vinhos, cervejas, destilados, etc. - exige do consumidor uma tomada de atitude, uma decisão de sair de casa para comprá-la. Ele tem de decidir antes. Já em supermercados, por exemplo, pode muito bem acontecer do consumidor ir comprar saladas e carnes e sair carregado de vinhos e cervejas. Afora o fato de que nesses estabelecimentos comerciais abertos ao público e encontrados em cada esquina, a possiblidade de que menores acabem adquirindo as bebidas seja enorme e mesmo que se obrigue o caixa a fazer um controle da idade do comprador, ainda assim um amigo maior de idade pode se passar por ele e fazer a compra. Enfim, a facilidade é evidente. No Brasil, infelizmente, se pode comprar bebidas alcoólicas em todo e qualquer lugar abertamente e até via delivery. A leviandade por aqui é tamanha que em festas de adolescentes há pais que servem cervejas e outras bebidas mais fortes à vontade. O mesmo ocorre às vezes em buffets e clubes. E, no que respeita ao comerciante, este, como se sabe, quer vender. Se é permitido, ele faz. Veja-se o que acontece em volta das faculdades brasileiras. Meu amigo Walter Ego diz: "Pode-se definir um prédio de escola superior como um local feito para desenvolvimento de altos estudos, cercado de bares por todos os lados". E anoto que até mesmo dentro de algumas escolas a bebida alcóolica é vendida! Temos, entre nós, a Lei 9.294/96 que, com fundamento no parágrafo 4º do art. 220 da Constituição Federal, proibiu a veiculação televisiva dos anúncios de produtos fumígenos, tais como cigarros, cigarrilhas, charutos, etc. Falta fazer o mesmo com as bebidas alcoólicas. Ademais, a publicidade de bebidas alcoólicas, de maneira geral, é sofrível e pode ser caracterizada como abusiva, conforme definição legal (art. 37, parágrafo 2º do Código de Defesa do Consumidor), na medida em que se utiliza de maneira bastante chula da imagem da mulher. As propagandas de cerveja são o melhor exemplo disso, aliás, parece mesmo que falta imaginação aos tão criativos publicitários brasileiros nesse setor: há anos eles só conseguem bater nessa mesma tecla surrada (que não deixa de ser vulgar e abusiva). É certo que ao final de cada anúncio sempre aparece o aviso: "Beba com moderação". Mas, será que resolve? Sem poder me estender no assunto neste curto espaço, devo dizer que os estudos científicos da semiótica moderna demonstram que da maneira como são produzidos os anúncios, o aviso ao final não tem qualquer eficácia. Explico. O anúncio em si se traduz numa comunicação analógica de imagens agradáveis, sempre com gente bonita, sorridente, cantando, feliz e...bebendo, bebendo, bebendo. Ao final, não com imagens mas, com palavras, isto é, numa comunicação digital, surge a frase do aviso. Acontece que, a comunicação analógica do anúncio é um código quente, forte de comunicação e atinge, em cheio, o público alvo. Ela encanta, seduz a plateia. O aviso em letras é um código frio, fraco. O mesmo público embevecido com o anúncio lê o aviso e não lhe dá a devida importância. Traduzindo: o aviso não funciona. Exatamente como ocorria com os anúncios de cigarro, onde ao final, após cenas de esporte ou luxo, surgia a frase: "O Ministério da Saúde adverte: fumar faz mal à saúde". Também não funcionava e, no caso, soava paradoxal: se o Ministério da Saúde sabe que faz mal, porque não toma providências mais eficazes? E tomou. Quero dizer, as autoridades tomaram. No caso do cigarro não só se proibiu os anúncios em rádio e tevê como se obrigou os fabricantes a mostrarem os danos que o cigarro causa em fotos (linguagem analógica) e não só em palavras. Pois bem. No caso das bebidas alcoólicas falta muito. Sabe-se que a proibição relativa ao cigarro teve fundo econômico: o governo percebeu que era mais barato combater o vício do fumo que ficar gastando milhões nos hospitais com os fumantes doentes. Em relação à bebida alcoólica, ter-se-ia que fazer o mesmo. Claro que há o lobby dos fabricantes de bebidas a ser enfrentado e também o interesse dos veículos de comunicação, que faturam alto com os anúncios. Mas, se foi feito com o fumo existe a esperança de que possa ser feito também com as drogas alcoólicas. É preciso, pois, coragem para a tomada de outras medidas como as sugeridas. Quanto ao aumento da restrição aos anúncios publicitários ou sua proibição, basta uma alteração na lei 9.294 nesse sentido. Lembro, como dito, que a Constituição Federal assim o determina. Não vejo também entrave a que se proíba a venda desse tipo de bebida em supermercados, mercearias, padarias e congêneres, limitando as vendas apenas a estabelecimentos autorizados e controlados e nos quais fique proibida a entrada de menores de dezoito anos. Se um dia chegarmos a isso, teremos certamente um consumo mais consciente e menos nocivo de bebidas alcoólicas.
Nunca se voou tanto. Nunca os consumidores deixaram tantos milhões de reais, dólares, euros ou o que o valha nos cofres das companhias aéreas. Conclusão: as empresas estão faturando alto. Mais dinheiro em caixa, mais lucro, mais dividendos distribuídos para os acionistas, maiores bônus entregues aos executivos do alto escalão e mais benefícios aos consumidores e melhor qualidade dos serviços prestados... Opa! É melhor parar por aqui porque na frase anterior nem tudo é verdadeiro, isto é, o último trecho é falso. Com tanto dinheiro ganho seria de esperar mais benefícios distribuídos aos consumidores e melhor qualidade dos serviços prestados. Infelizmente, por incrível que pareça, está acontecendo o oposto: quanto mais ganham as cias aéreas piores ficam os seus serviços. É o novo sistema do século XXI: o capitalismo de ponta cabeça. Pois vejam o que aconteceu recentemente com meu amigo Walter Ego. Ele foi convidado a visitar um núcleo de pesquisa sobre publicidade em Cambridge, Estados Unidos da América. Feliz da vida, ele me disse: "Rizzatto, vou quarta-feira e volto domingo. Poderemos almoçar já na segunda-feira e eu te conto as novidades. É pouco tempo, mas terei dois dias inteiros para aproveitar". "Big esforço", pensei, mas nada disse. E ele se foi - bem, quando se trata do W. Ego tudo pode acontecer. Na quarta-feira à noite, ele dirigiu-se ao balcão da United Airlines e, assim que chegou no primeiro atendimento, disseram-lhe que o avião previsto para decolar às 22:00 horas iria atrasar duas horas. Ele perguntou porque e lhe responderam não saber. A moça que o atendeu apenas completou que a aeronave que deveria ter partido da origem pela manhã, estava voando naquele momento para chegar ao aeroporto de Cumbica. Daí o atraso. "Se vocês sabiam disso desde hoje cedo, porque não avisaram aos passageiros para que todos viessem ao aeroporto mais tarde", perguntou indignado. Recebeu o silêncio como resposta. W. Ego não se deu por satisfeito e no segundo atendimento, insistiu com o outro atendente. Este disse que o atraso fora ocasionado por problemas mecânicos e, por isso, a aeronave só teria saído pela manhã e chegaria às 23:00 horas. Assim, a previsão de saída era 0:30 horas. Meu amigo recuou, pois deveria chegar em Washington a tempo de pegar sua conexão para Boston, seu destino final, mas com esse atraso já não daria. (Até porque ele sabia que se falaram 0:30 horas, seria ao menos meia hora a mais). Ele perguntou sobre a conexão e, depois de alguma pesquisa, foi-lhe garantido que ele seria colocado no voo seguinte, o das 12:28 horas saindo de Washington para Boston. "Lá se foi um terço de um dia dos dois que eu tinha. Mas, tudo bem. Ainda tenho um dia e dois terços", pensou meu azarado amigo. Antes de fazer o check-in ele ainda insistiu e perguntou se estaria mesmo no voo das 12:28 horas. Ele explicou que somente ficaria em Boston e Cambridge por praticamente dois dias. Se perdesse um, não valeria a pena ir. Garantiram-lhe que não havia com o que se preocupar. Ele topou e recebeu um novo ticket com a anotação do voo para Boston, às 12:28 horas. Mais tarde, na área de embarque, às 23:20 horas sentou a seu lado um rapaz que apontou para a aeronave estacionada ao lado da porta de embarque e disse que nele chegara vindo do Rio de Janeiro, umas três horas antes. "Aquele mesmo", perguntou, curioso, meu amigo. "É. Ele mesmo. Um sete sete sete". "Mas, ele não estava voando e somente chegaria às vinte e três horas?", perguntou para si mesmo e depois indagou o rapaz: "Tem certeza que é o mesmo avião". "Acho que sim, pois estou aqui há muito tempo e não o vi se mover do lugar". Mistério. E, nada se podia fazer. Os passageiros esperaram e o avião partiu para seu destino quase a uma hora da madrugada com muitos assentos vazios, o que chamou a atenção de W. Ego - sempre desconfiado. A essa altura, deveria estar com sono, mas não. Ficou aguardando receber alguns mimos dos comissários de bordo, mas à exceção do fone de ouvido nada lhe foi entregue. Esperou o sono chegar e lembrou-se dos velhos tempos, época em que mesmo estando na classe econômica, o passageiro recebia lenço umidificado, meias "postiças", escovinhas de dentes, etc. "Acabaram os mimos na exata proporção em que aumentaram os lucros", pensou e não conseguiu dormir. Quando retornou ao Brasil, ele me disse: "Quer saber mais? Veio a comida - uma porcaria, mas eu não esperava muito. Pedi um vinho tinto, pois me ajudaria a dormir. A comissária me entregou uma pequena garrafa de um vinho americano e falou 'Seu cartão' . Eu, na hora, não entendi, mas vi que ela estava parada esperando. Daí, ela repetiu 'Seu cartão'. Só nesse instante percebi que ela estava me cobrando. Tive de pagar sete dólares pelo vinho. É mole?". (E, durante uma pequena turbulência, acabou derrubando o vinho na sua camisa branca...). Depois, filosofou: "Será que um dia nos cobrarão para irmos ao banheiro do avião? Ouvi que já há companhias aéreas cobrando pela comida. Acho que é isso. É fatal. Um dia pagaremos pelo banheiro e para assistir aos vídeos. É. Vão colocar filmes à disposição, como fazem os hotéis. Nós passaremos o cartão de crédito no assento do banco e assistiremos ao filme escolhido. Além, de passarmos o cartão na porta do banheiro..." Eu intervi: "Não quero te desanimar, mas em alguns voos da Continental Airlines (que hoje é do mesmo grupo da American) para assistir aos filmes oferecidos é preciso pagar. Com cartão de crédito, claro. E, a Pluna (empresa uruguaia) já cobra pela comida oferecida e, embora escolhendo, nem sempre há a opção oferecida, porque as porções acabam". Ele disse, desanimado: "Bem, então, logo chegaremos à cobrança pelo uso do banheiro." *** Volto à viagem, porque há mais. Walter Ego chegou em Washington às 9:00 horas e ficou perambulando pelo limpo aeroporto até às 11:00, quando se dirigiu ao local de embarque. Mais uma surpresa: deu overbooking para ele e outros quatro passageiros. Pior que o rapaz do balcão nada dizia. Apenas falava para ele aguardar o chamado de seu nome. Ele e os demais passageiros confirmados não tinham lugar garantido no voo. Nervoso, ele só pensava em duas coisas: na mala despachada para Boston logo após a imigração e no tempo que iria lhe restar se ele perdesse esse outro voo. "Será que ficarei viajando dois dias de avião e voltarei para casa, alimentado por comidinhas com gosto de papelão e vinho ruim sem sequer ter colocado os pés em Boston?". Voltou ao balcão, mas ouviu do atendente, agora ríspido: "Eu disse para o senhor ficar aguardando que chamaremos seu nome". Ele deu um passo atrás, bem irritado, porque só queria ter alguma notícia, receber alguma esperança. Seu estômago doía, por tudo e pelo nervoso. Foi nesse momento que ele notou algo curioso. Num painel eletrônico ao alto, aparecia o nome das pessoas que estavam no overbooking. Acima dos nomes um pedido para que elas aguardassem a chamada. O nome dele aparecia em terceiro lugar. Tudo muito organizado, isto é, o overbooking era parte da rotina. Já havia um painel adredemente preparado para colocar o nome dos azarados consumidores que, certamente, todo dia, eram rejeitados no voo no qual, de direito, deveriam embarcar. Viu ele, desesperado, que fazia parte da rotina. Não era um incidente incomum ou inesperado. Fazia parte de um sistema tão impessoal como regular. Olhando no painel, ele percebeu que o mesmo intercalava o aviso com o nome dos consumidores que estavam sem assento no voo com um outro aviso que oferecia algumas benesses para quem quisesse desistir do mesmo, abrindo lugar para os que estavam em overbooking. (Como se sabe, essa tática é utilizada no mundo todo para conseguir abrir espaço para os que ficaram de fora ilegalmente. Normalmente, são oferecidos passagens, créditos em passagens e até pagamentos em dinheiro, além de hotel, alimentação, transporte. etc.). A novidade era o painel bem integrado ao sistema de atendimento. "Tudo muito limpinho. Uma violação e uma operação bem higiênicas", pensou meu amigo. O embarque continuou a ser feito e apenas uma pessoa, das que estavam a sua frente, havia sido chamada. Foi uma hora e quinze minutos de angústia e espera. Quase todos os passageiros já haviam embarcado, quando W. Ego foi chamado. Mas, ele acabou embarcando! Quando chegou ao aeroporto de Boston e as malas não chegaram e todos os passageiros se perguntavam onde estavam, ele nem se aborreceu, pois mesmo sem a bagagem, ele ainda tinha um dia e dois terços pela frente. (Momentos depois, um dos passageiros descobriu que a bagagem de todos estava num dos cantos do aeroporto e não havia indicação alguma sobre isso). *** Saiba você leitor, que, tirando uma ou duas passagens, o W. Ego me contou tudo de forma bem calma. Até riu algumas vezes. Ele estava se comportando como o fazem muitos consumidores, que se conformam com a violação sofrida se, afinal, deu tudo mais ou menos certo. Eles até ficam agradecidos e esquecem dos direitos violados e do sofrimento experimentado. Eu disse isso à ele, que apenas torceu o nariz e ficou quieto. Mas, insistiu comigo que eu tratasse do assunto, o que estou fazendo e agora prossigo. *** O sistema capitalista mundial (quero dizer, ocidental) até fins dos anos oitenta do século passado se orgulhava do primor com que tratava seus clientes. As companhias aéreas davam bons exemplos, assim como operadoras de cartões de crédito e bancos e várias outras grandes empresas dos setores massificados. Havia competição séria e luta severa por fatias do mercado consumidor. Por isso, parte do lucro - às vezes grande parte - era investido na busca da satisfação dos clientes não só para o atingimento da fidelização como para a conquista dos novos. Os consumidores eram bem tratados e até mesmo bajulados. Com o surgimento das junções de empresas, fusões, aquisições, etc. criou-se oligopólios e enormes grupos que atuam em conjunto dominando todo ou quase todo o mercado de sua área de atuação. Além disso, com a administração dessas gigantescas corporações cada vez mais "financeira" que produtiva, a preocupação com a qualidade se esvaiu. O capitalismo mudou: o consumidor se tornou apenas um número (ou um nome num painel, num banco de dados ou algo semelhante) que pode gerar um certa receita monetária, mas cujos direitos, interesses e necessidades não têm mais importância. Os consumidores são tratados como marionetes, que hipnotizados, devem obedecer ao comando do marketing e da publicidade. É feito de tudo para que eles acreditem nas fantasias veiculadas. Anúncios publicitários mentem, gerentes de bancos mentem, recepcionistas de empresas de planos de saúde mentem, atendentes em aeroportos mentem, etc. (uma longa lista). É verdade que as mentiras, às vezes, fazem parte do sistema engendrado pelos chefes e patrões, mas nem por isso deixam de ser mentiras e muita conversa pra boi dormir. Todo o episódio que narrei envolvendo o meu amigo W. Ego comprova isso e, claro, os que me leem conhecem muitos outros parecidos. O overbooking e todos os benefícios excluídos do atual serviço prestado pelas companhias aéreas são uma clara demonstração desse novo modelo capitalista, que despreza o consumidor e que só pensa no ganho financeiro. Os atuais administradores não estão preocupados com seus clientes, especialmente nos setores de baixa competividade e naqueles em que o consumidor não tem escolha (ou seja, em muitos setores). A qualidade cai, mas gera alguma economia financeira que na escala, representa maior faturamento e com isso surge o desprezo ao consumidor. Mas, ainda temos leis e estas precisam ser cumpridas. O overbooking, por exemplo, é quase um estelionato, pois é a venda do mesmo assento para mais de uma pessoa (tente fazer o mesmo, vendendo seu automóvel ou seu imóvel para duas pessoas diferentes ao mesmo tempo...). Ademais, as cias aéreas descobriram uma fórmula para continuar a burla: quando acontece o problema (basta ir aos aeroportos para verificar sua constância), elas saem distribuindo alguns trocados para receberem de volta o assento vendido. São verdadeiras migalhas (sem ofensa, claro, a este poderoso rotativo!) em troca de direitos. Eu não tenho dúvida em afirmar que o overkooking é uma prática ilegal e grosseira que precisa ser punida. P.S.: Eu já tinha escrito este artigo, quando vi a notícia de que o Ministério Público Federal em Guarulhos havia entrado com uma ação judicial para que as empresas aéreas sejam condenadas ao pagamento de multa pelo overbooking. Não conheço o teor da ação, mas pela matéria que li, penso que esse é mesmo o caminho. Aliás, aproveito a oportunidade para anexar acórdão de minha Câmara na qual uma companhia aérea foi condenada a pagar indenização por danos morais em função dessa prática. O julgamento ocorreu em junho deste ano (Apelação 0184323-88.2010.8.26.0100, 23ª. Câmara de Direito Privado do TJ/SP, j. 8-6-2011, m.v. Eu sou o relator. Confira o acórdão (clique aqui).
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade objetiva dos fornecedores (especificando cada qual em seus artigos 12, 13 e 14) pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços. E ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade) tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Para que possamos compreender o porquê dessa ampla responsabilização, precisamos conhecer a teoria do risco do negócio ou da atividade, que é sua base e que examino na sequência. 1.Os negócios implicam risco A Constituição Federal garante a livre iniciativa para a exploração da atividade econômica, em harmonia com uma série de princípios (CF, art. 170), iniciativa esta que é, de fato, de uma forma ou de outra, característica da sociedade capitalista contemporânea. A exploração da atividade econômica tem uma série de características, que não cabe aqui narrar. Mas, entre elas, algumas são relevantes e certos aspectos teóricos que embasam o lado prático da exploração nos interessam. Uma das características principais da atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa, a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades por parte do empresário é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. Mas o risco é dele. É claro que são muitas as variáveis em jogo, e que terão de ser avaliadas, tanto mais se existir uma autêntica competitividade no setor escolhido. Os insumos básicos para a produção, os meios de distribuição, a expectativa do consumidor em relação ao produto ou serviço a serem produzidos, a qualidade destes, o preço, os tributos, etc. são preocupações constantes. Some-se o desenvolvimento de todos os aspectos que envolvem o marketing e em especial a possibilidade - e, praticamente, a necessidade - da exploração da publicidade, arma conhecida para o desenvolvimento dos negócios. O empreendedor, claro, levará sempre em consideração todos os elementos envolvidos. 2. Risco/custo/benefício Aqui o que interessa é o aspecto do risco, que se incrementa na intrínseca relação com o custo. Esse binômio risco/custo (ao qual acrescentarei um outro: o do custo/benefício) é determinante na análise da viabilidade do negócio. A redução da margem de risco a baixos níveis (isto é, a aplicação máxima no estudo de todas as variáveis) eleva o custo a valores astronômicos, inviabilizando o projeto econômico. Em outras palavras, o custo, para ser suportável, tem de ser definido na relação com o benefício. Esse outro binômio custo/benefício tem de ser considerado. Descobrir o ponto de equilíbrio de quanto risco vale a pena correr a um menor custo possível, para aferir a maximização do benefício, é uma das chaves do negócio. Dentro dessa estratégia geral dos negócios, como fruto da teoria do risco, um item específico é o que está intimamente ligado à sistemática normativa adotada pelo CDC. É aquele voltado à avaliação da qualidade do produto e do serviço, especialmente a adequação, finalidade, proteção à saúde, segurança e durabilidade. Tudo referendado e complementado pela informação. Em realidade, a palavra "qualidade" do produto ou do serviço pode ser o aspecto determinante, na medida em que não se pode compreender qualidade sem o respeito aos direitos básicos do consumidor. E nesse ponto da busca da qualidade surge, então, nova e particularmente, o problema do risco/custo/benefício, acrescido agora de outro aspecto considerado tanto na teoria do risco quanto pelo CDC: a produção em série1. 3. Produção em série Com a explosão da revolução industrial, a aglomeração de pessoas nos grandes centros urbanos e o inexorável aumento da complexidade social, exigia-se um modelo de produção que desse conta da sociedade que começava a surgir. A necessidade de oferecer cada vez mais produtos e serviços para um número sempre maior de pessoas fez com que a indústria passasse a produzir em grande quantidade. Mas o maior entrave para o crescimento da produção era o custo. A solução foi a produção em larga escala e em série, que, a partir de modelos previamente concebidos, permitia a diminuição dos custos. Com isso, era possível fabricar mais bens para atingir um maior número de pessoas. O século XX inicia-se sob a égide desse modelo de produção: fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, com um custo de produção menor de cada um dos produtos, possibilitando que fossem vendidos a menor preço individual, com o que maiores parcelas de consumidores passaram a ser beneficiadas. A partir da Segunda Guerra Mundial, esse projeto de produção capitalista passou a crescer numa velocidade jamais imaginada, fruto do incremento dos sistemas de automação, do surgimento da robótica, da telefonia por satélites, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação. etc. 4. Característica da produção em série: vício e defeito Muito bem. Em produções massificadas, seriadas, é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número enorme de consumidores. Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem de correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. Aliado a isso está o indelével fato de que produções desse tipo envolvem dezenas, centenas ou milhares de componentes físicos que se relacionam, operados por outra quantidade enorme de mãos que os manuseiam direta ou indiretamente. A falha é inexorável: por mais que o fornecedor queira, não consegue evitar que seus produtos ou serviços cheguem ao mercado sem vício/defeito. Mesmo nos setores mais desenvolvidos, em que as estatísticas apontam para vícios/defeitos de fabricação próximos de zero, o resultado final para o mercado será a distribuição de um número bastante elevado de produtos e serviços comprometidos. E isso se explica matematicamente: supondo um índice percentual de vício/defeito no final do ciclo de fabricação de apenas 0,1% (percentual raro, eis que, de fato, ele é mais elevado) aplicado sobre alta quantidade de produção, digamos, 100.000 unidades, ter-se-ia 100 produtos entregues ao mercado com vício/defeito. Logo, temos de lidar com esse fato inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito. 5. O CDC controla o resultado da produção Dessa maneira, nada mais adequado do que controlar, como fez o CDC, o resultado da produção viciada/defeituosa, cuidando de garantir ao consumidor o ressarcimento pelos prejuízos sofridos. Note-se que a questão do vício/defeito envolve o produto e o serviço em si, independentemente da figura do produtor (bem como de sua vontade ou atuação). São - como se verá - o produto e o serviço - e não o fornecedor - que causam diretamente o dano ao consumidor. Este só é considerado na medida em que é o responsável pelo ressarcimento dos prejuízos. Nesse ponto tenho, então, de colocar outro aspecto relevante, justificador da responsabilidade do fornecedor, no que respeita ao dever de indenizar: é o da origem do fundo capaz de pagar os prejuízos. 6. A receita e o patrimônio devem arcar com os prejuízos É a receita e o patrimônio do fabricante, produtor, prestador de serviço, etc. que respondem pelo ônus da indenização relativa ao prejuízo sofrido pelo consumidor. O motivo, aliás, é simples: a receita e o patrimônio abarcam "todos" os produtos e serviços oferecidos. "Todos", isto é, tanto os produtos e serviços sem vício/defeito quanto aqueles que ingressaram no mercado com vício/defeito. O resultado das vendas, repita-se, advém do pagamento do preço pelo consumidor dos produtos e serviços bons e, também, dos viciados/defeituosos. Usando o mesmo cálculo que fiz acima. Vamos supor uma produção de 100.000 liquidificadores/mês e um vício/defeito no final do ciclo de produção de apenas 0,1%. O mercado receberá 100.000 liquidificadores e o produtor aferirá uma receita advinda de sua totalidade. Acontece que apenas 99.900 consumidores adquirirão efetivamente liquidificadores em perfeito estado de funcionamento. Os outros 100 arcarão com o ônus de ter comprado os liquidificadores com vício/defeito. Nesse ponto, é preciso inserir outro princípio legal justificador do tratamento protecionista dos consumidores que adquiriram os produtos com vício/defeito. É o princípio constitucional da igualdade. Não teria, nem tem cabimento, que os 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito e que pagaram por eles o mesmo preço dos demais 99.900 consumidores não tivessem os mesmos direitos e garantias assegurados a estes últimos. Para igualá-los, é preciso que: a) recebam outro produto em condições perfeitas de funcionamento; b) aceitem o valor do preço de volta; c) ou, ainda, sejam ressarcidos de eventuais outros prejuízos sofridos. É dessa forma que se justifica a estipulação de uma responsabilidade objetiva do fornecedor. 7. Ausência de culpa Mas ainda existe um outro reforço dessa justificativa e que formatará por completo o quadro qualificador e que obrigou a que o sistema normativo adotasse a responsabilização objetiva. É o relacionado não só à dificuldade da demonstração da culpa do fornecedor, assim como ao fato de que, efetivamente, muitas vezes, ele não tem mesmo culpa de o produto ou serviço terem sido oferecidos com vício/defeito. Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria fatalmente lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como era no regime anterior). Aqueles 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito, muito provavelmente, não conseguiriam demonstrar a culpa do fabricante. Explicando melhor: no regime de produção em série o fabricante, produtor, prestador de serviços, etc. não podem ser considerados, como regra, negligentes, imprudentes ou imperitos. É que, o produtor contemporâneo, em especial aquele que produz em série, não é negligente, imprudente ou imperito. Ao contrário, numa verificação de seu processo de fabricação, perceber-se-á que no ciclo de produção trabalham profissionais que avaliam a qualidade dos insumos adquiridos, técnicos que controlam cada detalhe dos componentes utilizados, engenheiros de qualidade que testam os produtos fabricados, enfim, no ciclo de produção como um todo não há, de fato, omissão (negligência), ação imprudente ou imperita. No entanto, pelas razões já expostas, haverá produtos e serviços viciados/defeituosos. Vê-se, só por isso, que, se o consumidor tivesse de demonstrar a culpa do produtor, não conseguiria. E, na sistemática anterior do Código Civil (art. 159), o consumidor tinha poucas chances de ressarcir-se dos prejuízos causados pelo produto ou pelo serviço. Além disso, ainda que culpa houvesse, sua prova como ônus para o consumidor levava ao insucesso, pois o consumidor não tinha e não tem acesso ao sistema de produção e, também, a prova técnica posterior ao evento danoso tinha pouca possibilidade de demonstrar culpa. Poder-se-ia dizer que antes - por incrível que possa parecer - o risco do negócio era do consumidor. Era ele quem corria o risco de adquirir um produto ou um serviço, pagar seu preço (e, assim, ficar sem seu dinheiro) e não poder dele usufruir adequadamente ou, pior, sofrer algum dano. É extraordinário, mas esse sistema teve vigência até 10 de março de 1991, em flagrante injustiça e inversão lógica e natural das coisas. 8. O fato do produto e do serviço e o acidente de consumo Registro, por fim, e apenas corroborando tudo o que foi dito, que o CDC intitula a seção que cuida do tema como "Da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço", porque a norma, dentro do regramento da responsabilidade objetiva, é dirigida mesmo ao fato do produto ou serviço em si. É o "fato" do produto e do serviço causadores do dano o que importa. Costuma-se também falar em "acidente de consumo" para referir ao fato do produto ou do serviço. Algumas observações são necessárias a respeito disso. A expressão "acidente de consumo", muito embora largamente utilizada, pode confundir, porque haverá casos de defeito em que a palavra "acidente" não fica muito adequada. Assim, por exemplo, fazer lançamento equivocado no cadastro de devedores do Serviço de Proteção ao Crédito é defeito do serviço, gerando responsabilidade pelo pagamento de indenização por danos materiais, morais e à imagem. Porém, não se assemelha em nada a um "acidente"; comer algum alimento e depois sofrer intoxicação por bactéria que lá estava gera, da mesma maneira, dano, mas ainda assim não se assemelha propriamente a acidente. De outro lado, a lei fala em "fato" do produto. A palavra fato permite uma conexão com a ideia de acontecimento, o que implica, portanto, qualquer acontecimento. Lembro, de todo modo, que se tem usado tanto "fato" do produto e do serviço quanto "acidente de consumo" para definir o defeito. Porém, o mais adequado é guardar a expressão "acidente de consumo" para as hipóteses em que tenha ocorrido mesmo um acidente: queda de avião, batida do veículo por falha do freio, quebra da roda-gigante no parque de diversões, etc., e deixar fato ou defeito para as demais ocorrências danosas. Em qualquer hipótese, aplica-se a lei. O estabelecimento da responsabilidade de indenizar nasce, portanto, do nexo de causalidade existente entre o consumidor (lesado), o produto e/ou serviço e o dano efetivamente ocorrente. Fica, assim, demonstrada, a teoria - e a realidade - fundante da responsabilidade civil objetiva estatuída no CDC, assim como as amplas garantias indenizatórias em favor do consumidor que sofreu o dano - ou seus familiares ou, ainda, o equiparado e seus familiares.
Um dos temas que chamaram a atenção na semana passada foi a da tragédia que vitimou pessoas envolvidas em acidentes automobilísticos na cidade de São Paulo, ocasionados por excesso de velocidade. Excesso de velocidade é maneira de dizer, pois os automóveis que causaram os acidentes rodavam a velocidades só verificadas em corridas de automóveis: 150 km por hora ou mais. Irei abordar o assunto pela via do Direito do Consumidor, a partir de um paradoxo e também de um problema de lógica do sistema legal, levando em consideração o fato de que um automóvel não passa de um produto controlado e regulado pela legislação. Colocarei o tema para reflexão e análise dos leitores deste poderoso e querido rotativo Migalhas. Muito bem. Dizem os artigos 8º "caput" e 10 "caput" do Código de Defesa do Consumidor: "Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito". "Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança". Por uma série de normas e procedimentos, as autoridades responsáveis nos respectivos setores regulam a produção dos bens de consumo, visando não só assegurar sua qualidade, adequação, durabilidade, etc. como os vários aspectos que envolvem a segurança para evitar que os consumidores possam sofrer danos com seu uso. A questão que coloco, então, envolve conforme antecipei um dos paradoxos da sociedade capitalista, assim como aponta para um problema de implementação efetiva dos elementos lógicos que deveriam dar base ao sistema jurídico. Explico: Se a velocidade máxima permitida para trâfego por rodovias no Brasil - não só no Brasil, mas é o que nos interessa - é de 120 km por hora, como é que se pode permitir que a indústria automobilística produza e venda veículos que alcancem velocidades muito superiores a isso? (grifei o muito porque, efetivamente, na atualidade qualquer automóvel consegue atingir velocidades de 150, 180, 200 km por hora e mais). São essas, portanto, as perguntas: se a velocidade máxima permitida é de 120 km/hora, a lei não deveria simplesmente proibir a produção de veículos que pudessem atingir velocidades superiores? E mais, ainda que sem norma específica, ao vender tais veículos, a indústria não estaria infringindo as normas de segurança fixadas no CDC, conforme se pode ler nos artigos 8º e 10 que acima transcrevi? (Faço um parêntese para lembrar algo conhecido de todos, mas que não posso abordar para não fugir do assunto. Os veículos estão, como apontei, preparados para infringirem a lei e, além disso, algumas montadoras fazem anúncios publicitários oferecendo seus produtos realçando exatamente essa "qualidade", mostrando automóveis com muita potência e capazes de atingir altas velocidades e até mesmo em tempo recorde! E isso para seduzir seus potenciais compradores!). Deixo, assim, postas essas questões para reflexão dos leitores, lembrando, como gosto sempre de fazer, que para nós da área jurídica o que importa é o rigor do argumento, a lógica que lhe dá sustentação, assim como seu uso harmônico e coerente em relação ao sistema jurídico e sua teleológica razoabilidade. No entanto, prosseguindo no mesmo tema, trago ainda outro ponto que envolve o mesmo aspecto e que também está regulado no CDC. Enquanto não se proíbe a fabricação desses verdadeiros carros de corrida, resta perguntar e responder uma questão relativa a responsabilidade pelos acidentes ocasionados pelos verdadeiros bólidos dirigidos em velocidades acima do máximo permitido. Com efeito, dispõe o art. 12 do CDC: "Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos". É regra que trata da responsabilidade civil objetiva em caso de acidente de consumo. O CDC é bastante restrito quanto às excludentes de responsabilidade (na verdade, excludentes do nexo de causalidade) capazes de isentarem os fornecedores indicados. Para nossa análise, o que interessa é o previsto no inciso II do parágrafo 1º e o inciso III do parágrafo 3º do mesmo artigo. Leiamos os dois parágrafos: "§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em circulação." "§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro." O problema é excesso de velocidade. Esta pode se dar de duas formas: a) a norma de trânsito proíbe transitar acima de 60 km/hora ou 70km/hora, etc. e o motorista supera essas velocidades, por exemplo, transitando há 100km/hora e causa acidente; b) independentemente do limite estabelecido ou que seja o máximo de 120 km/hora, o motorista trafega há 150 km/hora, 180 km/hora ou mais. Pergunto: se o fabricante somente não responde quando comprove a culpa exclusiva do consumidor e, se este, assumindo os riscos e agindo com culpa, desenvolve velocidade muito acima do permitido e causa o acidente, não estar-se-ia diante de um caso de não exclusão da responsabilidade porque a culpa não seria exclusiva, mas concorrente, uma vez que o produto em si é a causa primária que permite a infração e o acidente correspondente? Veja-se que o legislador utilizou-se do advérbio "só" no "caput" do art. 12 do CDC para deixar claro que a excludente somente se verifica naquelas hipóteses e, por isso, quando se refere a ato do consumidor, exige a prova de sua culpa exclusiva. Assim, quando o consumidor trafega acima do permitido, mas dentro do possível admitido pelo sistema legal (por exemplo, há 100 km/hora), se causar acidente sua culpa é exclusiva, pois infringiu sozinho a lei. Ademais, nesse caso, a hipótese do inciso II do § 1º também socorre o fabricante, eis que o veículo está sendo usado dentro dos riscos que razoavelmente dele se esperam. O problema se dá quando o consumidor ultrapassa o máximo permitido de 120 km/hora. Sua culpa, nesse caso, é exclusiva ou concorrente? O embaraço surge aqui, pois se a indústria vende veículos que são capazes de superar - e em muito - o máximo da velocidade permitida (e, de certo modo, alguns anúncios publicitários e matérias especializadas de tevê, jornais e revistas até estimulam o movimento em alta velocidade) quando o consumidor (culpado evidentemente) trafega há mais de 120 km/hora a culpa não seria concorrente? E, nesse caso, o fabricante seria também responsável pelos danos? Quando fiz esse tipo de questionamento em sala de aula, surgiram comparações com armas tais como facas e revólveres. Disseram: se o consumidor usa a faca para matar ao invés de utilizá-la na cozinha ou o revolver também para matar ao invés de para se proteger, então age com culpa exclusiva. O fabricante não tem nenhuma relação com a ocorrência. Verdade. Mas, a diferença é que a faca é feita para cortar e o revólver para atirar. Com esses objetos o defeito se dá se eles não cumprirem o fim ao qual se destinam (cortar e atirar). Com o automóvel é diferente: ele nasce infrator, pois está apto a ir além do permitido legalmente. Poder-se-ia querer lançar toda culpa no consumidor em função da possiblidade real do meio. Entrega-se a ele um veículo que facilmente atinge velocidades excessivas, mas ao mesmo tempo se erige um comando legal (e moral) que deve agir em sua consciência para impedir que ele acelere mais quando atinja o limite máximo. Tubo bem. Mas, quando ele passa do limite o faz porque o meio permite e quem o fabricou é que, nesse ponto passa a agir com ele. Daí a concorrência de culpas. São essas minhas considerações e, pois, minha contribuição para um debate sobre essa questão do excesso de velocidade, desta feita pela via do Direito do Consumidor.
De tanto julgar processos e ver que ainda se examinam contratos de consumo como se privados fossem, normalmente verbalizando-se a noção no brocardo latino pacta sunt servanda, sou obrigado a tratar do assunto para ajudar, na medida do possível, a extirpar esse grande equívoco no que respeita aos contratos que envolvem relações jurídicas de consumo. E, já que falei de processos, sou obrigado a contar um caso. Certa vez, na Câmara a qual pertenço, julgamos um feito em que o consumidor reclamava de abusos praticados por um prestador de serviço. Examinando o contrato firmado, encontramos uma cláusula contratual, que era uma verdadeira pérola jurídica. Estava escrito: "Aplica-se ao presente contrato o Código de Defesa do Consumidor (lei 8078/90). Parágrafo único. No eventual conflito entre o Código de Defesa do Consumidor e as cláusulas aqui estabelecidas, prevalecem as cláusulas". Pode? Bem, infelizmente, cláusulas abusivas desse tipo são encontradas em todos os setores do mercado de consumo. Claro que a maior parte delas não é tão escancarada, mas são comuns e em grande quantidade. E sua ocorrência regular está ligada exatamente ao fato de que o consumidor não negocia nem consegue impor sua vontade representada em cláusulas porque, em matéria de consumo, não vige o sistema privatista do conhecido brocardo. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) está em vigor há mais de 20 anos! Não é pouca coisa, mesmo levando-se em consideração nossa cultura da "lei que pega e que não pega". Até porque, na hipótese, trata-se de lei que pegou. 20 anos. Mas, alguns aspectos da lei protecionista permanecem desconhecidos de muitos. Tenho dito que um dos problemas está atrelado àquilo que chamo de força da memória: grande parte dos operadores do Direito que militam atualmente foram formados na tradição privatista larga e profundamente estudada a partir do Código Civil de 1916 e também das demais normas, penais e processuais. Quando se dirigem ao contrato para fazer um exame de suas cláusulas os elementos mnemônicos se impõem e os fazem lê-las como se fossem um texto escrito e firmado aos moldes do regime privatista. E, pior: o que é uma virtude no CDC, sua generalidade e seu modo normativo principiológico, acaba sendo um entrave para o operador jurídico formado no antigo modelo privado. A simples leitura do texto da lei consumerista não é suficiente para sua compreensão. Uma retrospectiva histórica permite que se entendam as modificações operadas nos contratos, que acabaram desembocando naqueles típicos de consumo. Vejamos. Inicio colocando um ponto: o CDC, como sabemos, foi editado em 11 de setembro de 1990; é, portanto, uma lei que chegou muito atrasada para a proteção do consumidor. O vetusto Código Civil entrou em vigor em 1917, fundado na tradição do Direito Civil europeu do século anterior. Pensemos num ponto de realce importante: em relação ao Direito Civil, pressupõe-se uma série de condições para contratar, que não vigem para relações de consumo. No entanto, durante praticamente todo o século XX no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para resolver os problemas que iam surgindo e, por isso, o fizemos de forma equivocada. Esses equívocos remanesceram na nossa formação jurídica, ficaram na nossa memória influindo na maneira como nós enxergamos as relações de consumo, e, atualmente, temos toda sorte de dificuldade para interpretar e compreender um texto que é bastante enxuto, curto, que diz respeito a um novo corte feito no sistema jurídico, e que regula especificamente as relações que envolvem os consumidores e os fornecedores. Muito bem. O CDC, apesar de atrasado no tempo, acabou tendo resultados altamente positivos, porque o legislador, isto é, aqueles que pensaram na sua elaboração - os professores que geraram o texto do anteprojeto que acabou virando a lei n. 8.078 (a partir do projeto apresentado pelo, na época, deputado Geraldo Alckmin) - pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Olhemos, então, um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E essa sociedade tem uma origem bastante remota que precisamos pontuar, especialmente naquilo que nos interessa para entender a chamada sociedade de massa, com sua produção em série, na sociedade capitalista contemporânea. Parto do período pós-Revolução Industrial. Com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para mais pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização de produtos e serviços. Essa produção homogeneizada, "standartizada", em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção é um modelo que deu certo; veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial teve um incremento, e na Segunda Guerra Mundial se solidificou. A partir da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações, a melhoria dos transportes etc., o modelo se fortaleceu ainda mais e cresceu em níveis extraordinários. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passou a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos se pudesse considerar a noção de globalização. Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo, destaca-se uma que interessa ao presente artigo: a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e reproduz-se milhares, milhões de vezes. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta certa quantia em dinheiro na criação de um único modelo, e depois o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas. Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço, etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Quem planeja a oferta de um serviço ou de um produto qualquer, por exemplo, financeiro, bancário, securitário a ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o imprime e distribui milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela lei n. 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor: no seu art. 54 está regulado o contrato de adesão. E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços, o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. Este é o modo de produção de produtos e serviços de massa do século XX. Só que nós aplicamos, no caso brasileiro, até 10 de março de 1991, o Código Civil às relações jurídicas de consumo, e isto gerou problemas sérios para a compreensão da própria sociedade. Passamos a interpretar as relações jurídicas de consumo e os contratos com base na lei civil, inadequada para tanto, e como isso se deu até a penúltima década do século XX, ainda temos dificuldades em entender o CDC em todos os seus aspectos. E, nessa questão contratual, nossa memória privatista impõe que, ao lermos o contrato, pensemos pacta sunt servanda, posto que no Direito Civil essa é uma das características contratuais, com fundamento na autonomia da vontade. Sabe-se que nas relações contratuais no Direito Civil, pressupõe-se que aqueles que querem contratar sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo num pedaço de papel. São proposições organizadas em forma de cláusulas que, impressas num pedaço de papel, fazem surgir o contrato escrito. É a tentativa de delineamento objetivo de uma vontade, portanto, elemento subjetivo. É a escrita posta no contrato, o que o Direito Civil tradicional pretende controlar. Então, quando nos referimos às relações contratuais privatistas, estamos fazendo uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que devem representar a vontade das partes que lá estavam, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E, uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, o pacto deve ser respeitado. Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é completamente equivocado, porque o consumidor não senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC passou a controlar, e de forma inteligente. O problema é que a aplicação da lei civil, assim como a memória dos operadores do Direito, atrapalha a interpretação. Então esta era, foi e ainda é uma situação que acabou afetando o entendimento da lei. Se não atentarmos para esses pontos históricos do fundamento da sociedade contemporânea, ainda teremos muita dificuldade de interpretar aquilo que o CDC regrou especificamente. Repito para finalizar e lutando contra nossa equivocada memória: em contrato de consumo deve-se esquecer o brocardo pacta sunt servanda.
Uma questão jurídica que tem gerado polêmica no tema da responsabilidade civil do transportador é a da definição do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão. Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo - que, diga-se, não lhe pertence - e nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração (não abordarei os casos de monopólio e até oligopólios, nos quais o risco de perda são muito pequenos, o que, claro, não elimina a responsabilidade de mesma base). O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz por que quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado podem ocasionar. O outro lado do risco da atividade é o do risco social engendrado pela exploração do mercado. A simples colocação de produtos e serviços gera esse risco. Inexoravelmente, a existência em si do empreendimento traz potencialmente risco de danos às pessoas. Decorre disso que, quem se estabelece deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar não só para buscar evitá-los, mas também para calcular suas perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador de pessoas deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente irão ocorrer. O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente a responsabilidade". Pergunto: existe incoerência ou contradição entre esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está claramente se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando os mesmos digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantém o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador nem por ele evitado. Todavia, não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. O risco da atividade implica na obrigação imposta ao empresário para que ele faça um cálculo, da melhor forma possível das várias possibilidades de ocorrências que possam afetar seu negócio. Certos fatos, necessariamente implicam agravamento do risco em função de sua latente possibilidade de ocorrência e, por isso, uma vez ocorrendo, não excluem o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o caso das ocorrências da natureza, tais como tempestades e nevoeiros, no caso do transportador aéreo. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno - que, aliás, ocorre constantemente - é integrante típico do risco daquele negócio. Quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento, caso fortuito ou força maior, que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. E, é aqui que eu coloco o caso do vulcão. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode, de modo algum, ser previsto. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas geradas pelas cinzas do vulcão e que impedem a navegação. Resguardados, claro, os direitos dos passageiros de remarcação de passagens e cancelamento da reserva com recebimento imediato dos valores pagos. Já que estou tratando desse assunto, não posso deixar de abordar uma questão bastante discutida, relativamente ao evento de terceiro nessa questão da responsabilidade objetiva. Para excluir o nexo de causalidade, há necessidade do fato do terceiro ser de tal modo que não pudesse ser previsto como possibilidade dentro da estrutura do risco em cada espécie de negócio. Serve de exemplo o caso de ataques feitos por vândalos às composições ferroviárias, atirando pedras nos passageiros. Penso que a doutrina mais abalizada é aquela que entende que se trata de risco da atividade previsto no modo de oferta do serviço, de tal maneira que o usuário atingido deve ser indenizado pelo transportador. E, por causa desse exemplo, vale que se dê uma explicação, pois o risco da atividade muda com o passar do tempo. Há cerca de vinte ou trinta anos, quando esses eventos não se davam com regularidade, poder-se-ia dizer que eram fatos típicos de terceiros a excluir o dever de indenizar porque não faziam parte do cálculo do risco. Mas, na medida em que foram se tornando mais frequentes, não puderam deixar de ser considerados. E, lamentavelmente, esse tipo de vandalismo se multiplicou. Desse modo, acabaram sendo incorporados no cálculo do risco, pois não podiam mais ser ignorados. Eles passaram a existir como possibilidade de existência no âmbito daquele negócio. O evento, apesar de inevitável, é atualmente previsível. O evento produzido por terceiro capaz de evitar a responsabilidade tem de ser aquele, não só inevitável, como aquele que não faça parte do risco da atividade, isto é, que não tenha qualquer relação com a atividade do fornecedor. Cito um exemplo: suponha-se que uma pessoa queira se vingar de um inimigo e resolva matá-lo. Determinado, ele segue o desafeto até o cinema e lá dentro causa-lhe a morte. Trata-se de um evento que incidentalmente ocorreu no local onde se prestava um serviço, mas que com ele não tem nenhuma relação e nenhuma conexão. É fato típico de terceiro a excluir a responsabilidade do prestador do serviço. E, para terminar, tenho de falar dos passageiros que foram obrigados a mudar seus planos de viagens por causa do vulcão. Os cancelamentos envolveram e envolvem as estadias nos hotéis, flats, pousadas e demais ofertas de hospedagem, o transporte aéreo, e também o terrestre e marítimo a eles ligados, os traslados terrestres, os passeios previamente contratados, etc.. A pergunta que se faz é: pode o fornecedor cobrar multa do consumidor que faz o cancelamento ou reter a entrada já paga? Ou, pior, pode se negar a aceitar o cancelamento? A resposta é evidentemente não. Normalmente, nesse tipo de atividade, quando o consumidor desiste de empreender a viagem, é permitido que se cobre uma multa pela desistência, desde que esta não seja abusiva. O percentual dessa multa varia de acordo com as circunstâncias de cada negócio empreendido e somente pode ser avaliado em cada caso concreto. Por exemplo, a cobrança de 10% do valor da diária ou do passeio é considerado legal. Mas, no caso tratado, como disse, nada pode ser cobrado. Isto pelo mesmo motivo analisado neste artigo. Quando o empresário do setor hoteleiro se estabelece e passa a oferecer seus produtos, evidentemente, assume o risco de sofrer certas perdas advindas de cancelamentos legítimos e também de não efetuar vendas. Esse risco é inerente à própria atividade e deve fazer parte, como mostrei, do cálculo do risco/custo/benefício efetuado. Lembro ademais que, como risco típico da atividade, o mesmo não pode ser repassado ao consumidor (anoto um dos direitos básicos do sistema capitalista: o consumidor não assume riscos. Apenas adquire os produtos e serviços oferecidos e deles desiste dentro das regras jurídicas estabelecidas). Repito: no caso, o risco típico do não preenchimento das vagas oferecidas, da não entrega do produto ou do serviço prometido é do fornecedor. Some-se a isso, com mais força de razão, o fundamento legal e legítimo da desistência operada pelo consumidor, que se viu obrigado a fazê-la por razões alheias à sua vontade.
quinta-feira, 9 de junho de 2011

Afinal, dinheiro manchado vale ou não?

Tenho de confessar algo a vocês. Muitas histórias reais que narro aqui e que servem de base para meus artigos são sugeridas por meu amigo Walter Ego. Ele, aliás, reclamou que eu nunca o citei. Pronto. Está citado. E o artigo de hoje tem por base algo que aconteceu com ele. (Sabem, se alguém é um consumidor típico, é o W. Ego, como eu o chamo. Ele compra de tudo, experimenta de tudo e, como uma maldição rogada diretamente por Murphy, se alguma coisa tiver de dar errado é com ele que dá). Na semana passada ele me veio com esta: "Sabe Rizzatto, se não bastassem todas as agruras que eu enfrento em fila de banco - ele reclama, mas adora uma fila - veja o que me aconteceu. Fui sacar dinheiro no caixa eletrônico e duas notas estavam manchadas com tinta rosa. Dirigi-me ao caixa para pedir a troca, mas ele reteve as duas e disse que ia mandar para o Banco Central. Eles iam examiná-las e se ficasse comprovado que a mancha fora ocasionada acidentalmente, eu seria reembolsado. Protestei, mas não adiantou. Então, eles ficaram com minha grana... Eu precisava do dinheiro. Como é que fica?" Bem, eu prometi responder aqui na coluna, até porque a questão pode envolver dezenas de consumidores, como aliás já alertou o Procon de São Paulo (clique aqui). Começo lembrando que as relações entre consumidor e banco são típicas de consumo por expressa disposição da lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), em vigor desde 11/3/91, confirmada pela súmula de n° 297, do STJ, e pela decisão da ADIN nº 2591-1, do STF. Dentre os vários produtos e serviços oferecidos pelos bancos está o de entregar ao consumidor moeda corrente, isto é dinheiro, papel-moeda. E dinheiro é produto material (CDC, art. 3º, §1º). A pergunta que se faz é: dinheiro manchado é produto impróprio ao uso e consumo? As pessoas estão acostumadas a receberem e a passarem cédulas novas e usadas com algumas imperfeições: riscos, pequenos rasgos, etc.. Mas, elas acabam circulando regularmente. O CDC diz que são impróprios ao uso e consumo, dentre outros tipos, os produtos deteriorados e avariados (§ 6º, II, art. 18) e também "os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam" (§ 6º, III, mesmo art.). Foi o Banco Central do Brasil (Bacen) que definiu que cédulas danificadas por dispositivos antifurtos (manchadas por tinta) são impróprias (ver abaixo). Logo, estão enquadradas na hipótese legal acima apontada. Vejamos mais de perto o que é uma cédula de dinheiro. Trata-se de papel-moeda, que representa um certo poder aquisitivo - ou seja, por intermédio dela efetua-se a compra de produtos e serviços, paga-se dívidas, etc.. Quando o consumidor vai retirá-la no banco, ela traduz os depósitos monetários que ele, consumidor, possui naquela instituição financeira ou - o que para nossa hipótese dá no mesmo - representa o crédito que o banco lhe outorgou - mediante cheque especial, empréstimos, desconto de títulos, etc.. Ou seja, esse produto material, dinheiro, representa o poder aquisitivo de seu possuidor e quando vai para as mãos dele em papel moeda significa o saque que ele fez de seu patrimônio - real, relativo ao depósito ativo e disponível ou virtual, advindo do crédito. Em ambos os casos, esse produto lhe pertence do mesmo modo que já lhe pertencia antes de possuí-lo fisicamente. Assim, evidentemente, quando o consumidor vai buscar papel moeda no banco, esse produto não pode estar deteriorado, avariado e impróprio ao uso e consumo. Se estiver, o CDC lhe garante o direito de troca. É o que dispõe o art. 18. Leiamos o que importa: "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas." A lei, é verdade, oferece um prazo de 30 dias para o fornecedor sanar o vício (§ 1º do art. 18). Todavia, esse prazo não existe quando se trata de produto essencial (§ 3º do mesmo artigo). Neste caso, o consumidor pode escolher qualquer das três alternativas estampadas no § 1º do art. 18, dentre as quais a de exigir "a substituição imediata do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso" (inciso I). E, claro, ninguém pode duvidar que dinheiro é produto essencial! Muito bem. Acontece que o Bacen, como adiantado, baixou resolução dizendo o seguinte: "Não serão objeto de reembolso ao portador as cédulas danificadas por dispositivos antifurto" (resolução nº 3.981/2011, art. 1º, § 2º). Sei que meu amigo W. Ego ao ler este trecho dirá: "Como? O dinheiro que é meu, que eu saquei, retirando do saldo de minha conta não vale nada? Até me lembra o dia em que fui assaltado na porta do banco...". Há mais. O próprio Bacen, por intermédio da circular 3538/2011 reconhece que o dispositivo antifurto pode ser acionado acidentalmente: "Art. 9º. - No caso de acionamento acidental do dispositivo antifurto ou de tentativa frustrada de furto ou roubo, as instituições financeiras ressarcirão o Banco Central do Brasil pelos serviços de análise e reposição das cédulas danificadas, observando os seguintes parâmetros (...)". E disciplina que, as cédulas retidas deverão ser encaminhadas para o Bacen (art. 4º), que após análise informará do resultado a instituição financeira (art. 10). O banco tem até 20 dias para encaminhar a cédula no caso de retenção ocorrida nas praças onde o Bacen possua representação e até 30 dias nas demais localidades O reembolso ao portador somente será feito se o Bacen, após exame, concluir que a cédula foi danificada acidentalmente (inciso I, parágrafo único, art. 11). Sem fixação de prazo, o que somado todo o trâmite pode significar bastante tempo. Não abordarei a questão da segurança pública e dos problemas que vêm atingindo os caixas eletrônicos. É questão que cabe aos bancos e às autoridades públicas resolverem. O que interessa é que o produto - papel moeda - armazenado no caixa pertence ao banco até o momento em que é entregue ao consumidor na hora do saque. Neste momento, o produto tem que estar próprio ao uso e consumo. Se o banco utiliza-se de dispositivo antifurto para se garantir contra larápios, isso é problema exclusivamente dele. É algo que decorre do simples exercício do risco de sua atividade. Ora, como se sabe, o risco da atividade não pode ser repassado ao consumidor de modo algum. Se o banco é vítima dos ladrões, isso não implica que ele possa repassar o prejuízo que sofreu ou possa vir a sofrer à seus clientes. Assim, se o consumidor retira cédulas do caixa eletrônico e elas estão manchadas, cabe ao banco trocá-las tão logo procurado pelo consumidor. Na boca do caixa, sem delongas. Claro que pode e deve o banco identificar o portador - aliás, como determina a referida circular 3.538 (art. 3º). Mas, uma vez feita a identificação, as cédulas devem ser trocadas por decorrência da incidência do § 3º do artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor c.c. inciso I do § 1º do mesmo artigo, conforme acima apontei. Concluo, portanto, dizendo que, segundo penso e conforme expus, a resolução do Bacen, assim como a circular, nos pontos aqui examinados, violam os direitos do consumidor estabelecidos no CDC.
quinta-feira, 2 de junho de 2011

O cheque pré-datado e o Direito do Consumidor

O cheque pré-datado e o Direito do Consumidor Cuido hoje de vários aspectos envolvendo os direitos do consumidor que passa cheque pré-datado, essa invenção nacional que é um verdadeiro sucesso. Seu uso está regrado no sistema legal, estabelecido em base contratual e a violação do pactuado gera danos indenizáveis. Vejamos: 1. Do cheque O cheque está regulamentado no Brasil pela lei Federal nº 7.357, de 2 de setembro de 1985, que normatiza uma série de disposições relativas ao mesmo, tais como sua emissão, sua transmissão, a garantia (o aval), a apresentação, o pagamento e a quitação, etc.. Essa norma, inclusive, incorporou num texto escrito algumas práticas comerciais relativas a seu uso, como v.g., a do cheque cruzado. 2. Do cheque pré-datado O "cheque pré", como é conhecido (alguns falam "pos-datado"), nada mais é, de fato, do que um financiamento direto do lojista (ou credor) ao consumidor. Mas com várias vantagens: não há qualquer burocracia, pois não se assinam contratos, títulos, etc.; não há acréscimo de impostos, vez que não é matéria regulada pela legislação fiscal ou tributária (ele está caracterizado apenas quanto à forma de quitação do preço e não como meio de financiamento); sua operacionalidade é excelente, visto que só precisa ser levado ao banco. Nenhum outro tipo de financiamento conhecido é tão prático e ágil (com exceção, claro, do cartão de crédito). 3. Da lei do cheque - Das disposições legais pertinentes e sua interpretação 3.1 A previsão legal Conforme já apontei, o cheque está regulamentado na lei nº 7.357. O art. 32 e parágrafo único dessa lei dispõem, "in verbis": "Art. 32. O cheque é pagável à vista. Considera-se não escrita qualquer menção em contrário. Parágrafo único. O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação". 3.2 A interpretação À primeira vista, lendo-se apenas o "caput" do artigo 32, pode-se pensar que um cheque pré será considerado um título que tenha uma condição não-escrita. Contudo, o parágrafo único do mesmo artigo não permite essa interpretação, como se verá. Mas, ainda que assim não fosse, e se tivesse que interpretar a data previamente fixada no cheque como não-escrita, tal fato não desnaturaria de forma alguma o título, que ainda poderia ser cobrado. Aliás, é o que expressamente diz a jurisprudência. Por exemplo, a 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial, cujo relator foi o Ministro Gueiros Leite, já decidiu: "a cláusula que torne à ordem, e não à vista é considerada não-escrita, de modo que pode desnaturar o cheque, mas não o título em si" (Boletim AASP nº 1.661, p. 253). Porém, é mais que isso, pois há uma outra forma de interpretar que me parece ser a mais adequada e que patenteia melhor ainda a possibilidade de emissão do cheque pré-datado. É que o parágrafo único do art. 32 prevê expressamente que o cheque possa ser emitido com outra data que não à vista. Leia-se: "o cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação". Ora, se a própria lei prevê que o cheque pode ser apresentado antes da data de emissão, significa logicamente que ela admite que o cheque foi emitido para data posterior. A questão é de lógica básica. Portanto, a interpretação do art. 32 com seu parágrafo único nos diz que não só o cheque pré-datado pode ser emitido, como se for apresentado ao banco antes, ele vale, só que nesse caso a data da apresentação passa a ser considerada como se a data da emissão fosse (o que, como se verá, viola o pacto firmado gerando danos ao emitente). Contudo, além desse aspecto, existe ainda outro que protege o emitente do cheque pré, determinando que este somente possa ser apresentado na data combinada. É o elemento contratual que envolve a transação, que é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, conforme ver-se-á a seguir. 4. A Transação é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) 4.1 Contrato verbal Inobstante o fato da legitimidade desse tipo de título como meio de pagamento saltar aos olhos, há ainda outro elemento importante: o pagamento com cheque pré normalmente é, do ponto de vista jurídico, um contrato verbal em que o comprador, ao adquirir um produto ou serviço, paga o preço com um ou mais títulos (cheques), sendo certo que o vendedor se compromete a somente resgatar o título (isto é, apresentar o cheque pré no banco) nas datas acertadas entre ele e o comprador. Tudo verbal, mas tudo rigorosamente legal. (Por vezes, acompanhado de recibo ou pedido discriminando os cheques e/ou nota-fiscal fazendo o mesmo). As garantias são recíprocas: o comprador promete que terá fundos por ocasião do saque; o vendedor promete que só apresentará o cheque na data acertada. Na verdade, se nessa transação houver alguma quebra, ela será de dois tipos: ou o comprador não terá fundos na data aprazada; ou o vendedor quebrará a promessa e apresentará o cheque antes. Em ambos os casos a quebra é contratual. 4.2 A oferta Além disso tudo, a partir de 11 de março de 1991, com a entrada em vigor do CDC (lei nº 8.078/90), a transação efetuada entre o vendedor e o comprador, firmando a forma de pagamento através do cheque pré-datado, passou a ter regulação expressa em lei, mediante a figura da oferta. Com efeito, estabelece o art. 30 da legislação protecionista das relações de consumo, in verbis: "Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado". Assim, verbal ou escrito, o contrato foi celebrado, e pelo menos a operação de compra e venda foi efetuada. Como a oferta é parte integrante do contrato por força de lei, isto é, pelo estabelecido no art. 30 do CDC, e como tanto o preço quanto a forma de pagamento são parte da oferta do vendedor, eles integram o negócio realizado. Daí conclui-se que, se o vendedor oferece ao comprador como forma de pagamento a entrega de cheque que ele (vendedor) só vai levar ao banco em determinado dia futuro, isso é verdadeira cláusula contratual, que não pode ser por ele (vendedor) quebrada, sem que seja responsabilizado pelo rompimento. 4.3 A quebra da promessa Abordo, então, agora, outro aspecto relevante. É o da quebra da promessa e dos danos dela proveniente. Se o cheque for apresentado pelo vendedor na data combinada e não tiver fundos, ele tem a seu dispor as alternativas legais para tentar receber seu crédito (civis e penais) e que são por demais conhecidas, não necessitando desenvolvimento aqui. Contudo, é importante abordar a questão dos danos relativos a quebra da promessa por parte do vendedor ou, em outras palavras, pergunta-se: o que acontece se o vendedor descumpre o pactuado e apresenta o cheque pré, antes do dia combinado? Claro que a resposta somente pode ser a da responsabilização do vendedor pelos eventuais danos que sua quebra de promessa venha a acarretar ao consumidor. A responsabilidade do vendedor é evidente, tanto que a questão foi sumulada no Superior Tribunal de Justiça: "Súmula nº 370. Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado". De todo modo, examinemos as consequências da apresentação antes da data aprazada. Duas coisas podem acontecer: a) o cheque ter fundos e ser pago; b) o cheque não ter fundos e ser devolvido pelo banco. Em ambos os casos o consumidor é prejudicado. No caso da hipótese "a" ele sofre: a.1. Um prejuízo material direto e imediato, pois passa a não dispor de dinheiro que lhe pertencia; a.2. Simultaneamente, ou logo após, o consumidor pode sofrer uma série de outros danos, tais como não ter mais a importância sacada indevidamente para arcar com outros compromissos, o que pode lhe gerar ainda mais danos; a.3. Outros cheques de sua emissão podem vir a ser devolvidos por falta de fundos, na medida em que eles podem já estar em circulação, e o estavam porque o consumidor sabia que tinha suficiente provisão de fundos na sua conta corrente; a.4. O consumidor pode, também, sofrer danos materiais e morais como decorrência dos fatos narrados em a.1, a.2. e a.3. No caso da hipótese "b" ele sofre o dano de pronto, já que terá cheque devolvido com todas as consequências negativas que isso acarreta: perda de credibilidade; anotações no prontuário bancário; fechamento da conta, se o cheque for devolvido de novo. Danos materiais (relativos a despesas cobradas pelo banco) e morais. Portanto, em todas essas hipóteses a responsabilidade do vendedor é objetiva e decorre do descumprimento da oferta. 5. Conclusão À vista do exposto, forçoso é concluir que não só há impedimento legal para a emissão do cheque pré-datado, isto é, emissão do cheque para apresentação ao banco em data futura diferente da do dia real (momento histórico-fatual da emissão), bem como a operação da compra e venda de produtos ou serviços, que tem por forma de pagamento do preço a entrega de cheque pré-datado, é transação lícita, legal e expressamente regulada pelo CDC. A quebra da promessa oriunda dessa transação dá-se por duas formas: ou o cheque pré na data da apresentação (correspondente ao dia em que o vendedor prometeu fazê-la) não tem fundos; ou o vendedor apresenta o cheque antes da data acordada, prejudicando o consumidor. Em ambos os casos, as formas de ressarcimento são garantidas legalmente. Na primeira hipótese o vendedor pode cobrar a dívida extra ou judicialmente ou, caso previsto e ele queira, pode desfazer o negócio; e no outro caso o consumidor pode pleitear indenização por perdas e danos materiais e morais (em matéria atualmente sumulada como se viu) e/ou, se possível e/ou ele queira, propor o desfazimento do negócio com devolução das importâncias eventualmente pagas anteriormente, em valores atualizados.