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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Prezados leitores, ontem, dia 7 de setembro, foi o dia da independência comemorado em todo o Brasil e, claro, devemos lembrar que nos encontramos numa República Federativa e democrática. Na semana imediatamente anterior, o que chamou a atenção de todos os brasileiros foi um evento que envolve nossa democrática República: o da deputada Jaqueline Roriz, que segundo consta, somente foi absolvida porque a votação foi secreta. Aliás, a indignação nacional foi enorme por causa do resultado e do modo de votação. Por isso, resolvi desviar um pouco minha atenção da questão do consumidor para tratar do tema do voto secreto que, penso, fica numa espécie de degrau acima dos assuntos consumeristas, eis que cuida dos direitos dos cidadãos; de uma forma de exercício da cidadania, afetando, portanto, a base de nosso regime capitalista democrático. Saio, pois, do plano específico do consumo para pensar com vocês esse importante tema de exercício da cidadania, o ser do voto - secreto ou não. 1. Voto Secreto Princípios e Regras 1.1 Direito-Interesse e Direito-Função Dispõe o art. 14, incisos e parágrafo 1º da Constituição Federal, "in verbis": "Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. § 1º - O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II - facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos." Fixemo-nos, para nossa avaliação, apenas no inciso I do § 1º: é obrigatório o voto para os maiores de dezoito anos. Como a Constituição prescreveu a obrigação de votar, o voto é, no Brasil, um direito do cidadão, mas também um dever. É a junção do chamado direito-interesse e do direito-função numa só possibilidade de exercício. O direito garantido tem característica de direito-interesse quando seu titular o exerce em benefício próprio. Por isso, é também conhecido como direito-poder ou direito-prerrogativa, exercido a partir da ação do titular, lastreada no seu juízo e na sua vontade. O direito-função é aquele exercido por alguém em benefício de um terceiro. Por exemplo, o pátrio-poder é exercido pelos pais em função dos filhos. O titular do direito-base é o filho, mas quem tem capacidade para exercê-lo são os pais. O voto, de forma híbrida, é um direito misto interesse e função, pois ele é um direito do cidadão, exercido também em função do Estado. Tornando-o obrigatório, o Estado quer se assegurar do aspecto "função", que "lhe pertence". Porém, o aspecto interesse também permanece e surge aquilo que importa: a Constituição Federal assegura amplo exercício desse direito do cidadão ao garantir o voto secreto. É importante um parêntese aqui para apontar dois pontos: a) apesar de ser secreto e assim garantido, não há impedimento ao cidadão de que ele declare seu voto publicamente. O voto secreto é garantia e, portanto, prerrogativa que o cidadão, se quiser, abandona, podendo declarar abertamente o voto que deu ou dará; b) seria mais lógico, como se defende, tornar o voto apenas um direito, pois sendo um dever e garantindo-se a liberdade de votar em quem quiser, muitos votos - especialmente brancos e nulos - são apenas perda de tempo e dinheiro do cidadão e do Estado. 1.2 A garantia da liberdade Por que se assegura o voto secreto? Fundamentalmente para garantir que o mesmo seja "livre". O termo "livre" no caso significa o seguinte: a) que o cidadão tem resguardado um espaço público inviolável (a urna indevassável) para exercer o direito-dever de votar; b) que o cidadão tem resguardado um espaço "íntimo" (a consciência: juízo e vontade) para decidir o que fazer com seu voto; c) que se pretende garantir ausência de oposição e/ou impedir tentativa de pressão por parte de terceiros junto ao cidadão, capaz de influenciar seu voto. Em função dessas características, podemos afirmar que o cidadão tem no voto secreto a garantia de que só deve satisfações sobre o voto a si mesmo; à sua consciência. É essa a função do ser secreto do voto: garantir que o cidadão tenha seu juízo e vontade resguardados. 2. Voto Aberto 2.1 Prerrogativa do titular Conforme já disse, a obrigatoriedade do voto tem relação com sua função: o cidadão deve exercer o voto para satisfazer o direito do Estado. Vimos, também, contudo, que esse dever é apenas de forma e não de conteúdo, isto é, a obrigação atinge o ato de votar, porém não atinge o conteúdo do voto. Este é livre, podendo o titular fazer com o conteúdo o que bem entender: a) escolher o candidato; b) votar em branco; c) anular o voto. Conclui-se, então, que a garantia da liberdade do conteúdo é assegurada pelo fato do voto ser secreto. Esse fato, portanto, é direito-interesse do titular. Mas, veja-se bem: não há qualquer relação no fato do voto ser secreto com a característica de direito-função. O voto secreto é direito apenas e tão somente do titular. Como ele é um direito-interesse, está claro que é uma prerrogativa sua. É, também, por isso, um direito subjetivo seu. Dessa maneira, sendo um direito-interesse, direito-subjetivo ou prerrogativa, pode o titular, se quiser, abrir mão desse direito e declarar o voto abertamente. Ou, em outras palavras, pode o titular colocar publicamente o conteúdo de seu voto, porque esse conteúdo pertence apenas a ele. Sua declaração pública é uma mera decorrência do direito estritamente pessoal que lhe assiste. 2.2 O conteúdo do voto e a questão da verdade Faço uma pergunta: como saber que o voto declarado publicamente corresponde ao conteúdo do voto secreto, isto é, como saber se a declaração de voto é verdadeira? Pensemos uma hipótese: João de Deus escolhe na urna eletrônica (ou na falta dela, preenche na cédula eleitoral) o nome do candidato José da Silva. O ato de votar transcorre normalmente: secreto e livre. João de Deus resolve declarar publicamente seu voto. Como poderemos dizer que a declaração pública do voto do João de Deus é verdadeira? Sem querer aprofundar o estudo sobre a questão da verdade, posto que isso aqui é desnecessário, ninguém duvida que ela só aparecerá se João de Deus declarar que votou em José da Silva. Sua declaração somente será verdadeira, portanto, se sua declaração pública de voto for a mesma do conteúdo do voto inserido na urna. Se João de Deus declarar publicamente que votou em Frederico de Souza, estar-se-á diante de uma mentira. Mas, como saber se a declaração de voto é verdadeira ou falsa? Não há como saber. Como se está diante de duas prerrogativas: a) a de votar em quem quer que seja livremente, e mesmo anular o voto ao deixá-lo em branco; b) a de declarar publicamente o voto; não existe forma de um terceiro saber se a declaração é verdadeira ou não. A própria condição de verdade converte-se em prerrogativa do titular, e assim, somente ele e mais ninguém saberá o que fez. Não há como impedir, portanto, que alguém vote em José da Silva e declare que votou em outro candidato. 3. O voto por representação 3.1 O que ocorre num mandato O mandato é o ato jurídico através do qual alguém recebe de outrem - que lhe outorga - poderes para em seu nome agir. É uma representação ou delegação convencional - ou legal - na qual o outorgado pratica atos em nome do outorgante, e que terão repercussão concreta no mundo jurídico. Os atos que podem ser praticados pelo mandatário são aqueles geralmente estabelecidos no momento da outorga, sendo que esta pode ser escrita ou verbal. Dentre as características do mandato, a doutrina jurídica coloca a do "intuito personae", isto é, aquela que diz respeito à idoneidade técnica e moral do mandatário, isto é, sua condição pessoal. Ou, em outras palavras, é característica do mandato haver confiança entre os contraentes, especialmente do mandante ao mandatário: presume-se que, em função da outorga, o mandante confia na capacidade pessoal do mandatário para exercer o mister para o qual foi nomeado. É por isso que se apresenta como exemplo de revogação do mandato a falta de confiança entre os contraentes. Uma outra característica jurídica, tratada pela doutrina e também pela jurisprudência, é a de que o mandato tem relação com representatividade. O mandatário é o representante do mandante e, quando age diante de terceiras pessoas, age em seu nome; representa-o. Por isso, a jurisprudência tem dito que os atos do representante só vincularão o representado se praticados em seu nome, dentro dos limites do instrumento, ou seja, dentro dos poderes conferidos no ato da outorga1. Aliás, a propósito, o caráter de representação é típico nas entidades associativas e de classe, assim como das Assembléias Legislativas, Câmara dos Deputados, Senado Federal etc. 3.2 O voto secreto como ato decorrente de mandato ou representação O voto como o exercício decorrente de um direito pode ser delegado se a lei não o proibir: o cidadão está impedido de nomear procurador para exercer o direito de votar nas eleições para os cargos públicos, como por exemplo, os de vereador, deputado e senador; esse é um direito que ele não tem. Como dito, se houver permissivo legal ou convencional - estatutário -, ou não houver proibição, o próprio voto, ele mesmo, pode ser objeto de delegação por mandato. Neste ponto é de se colocar uma pergunta relacionada ao conteúdo do voto: está o mandante obrigado a definir o que fazer ou em quem o mandatário deve votar? A resposta é não. Como a própria delegação do voto é uma prerrogativa, seu conteúdo também o é. Logo, o mandante pode deixar a cargo do mandatário definir o que fazer com o voto, a critério dele. Visto isso, a próxima indagação está relacionada ao ser secreto do voto: já que o mandante tem a prerrogativa de transferir o poder decisório do voto para o mandatário, pode ele outorgar poder para que o voto seja secreto? Ou, em outras palavras, pode ele abrir mão de conferir o resultado real, prático e visível do exercício do mandato? Sim, mas naturalmente, essa situação vale quando se está tratando de direito individual, no qual a renúncia implica um ato de liberdade decorrente da prerrogativa pessoal do mandante. Porém, a questão muda de figura quando o direito que está em jogo é coletivo, como no caso do mandato exercido pelo parlamentar. Mesmo que quisesse, o cidadão não poderia abrir mão desse direito de checar a execução do mandato. Com efeito, o mandatário do voto popular representa não só aqueles que nele votaram mas também toda a coletividade. O mandato, quer seja de vereador, deputado ou senador é exercido em prol da comunidade. Poder-se-ia dizer que, nesse sentido, o voto proferido pelo parlamentar não lhe pertence, ainda que uma pessoa física exerça o mister. É que, tratando-se de um papel social público de representação, como é o do membro do legislativo, a pessoa nele investida quando por ele atua age em nome da população. Ora, todo e qualquer cidadão tem o direito que decorre do exercício da cidadania, de não só saber como atua seu representante como cobrar dele as ações que entende adequadas. Afinal ele é eleito para exercer o "munus" público essencial do cargo. Se no exercício desse cargo público ele agir secretamente, via voto secreto, suprime-se o sagrado direito da população de controlar seus atos. É verdade que se tem objetado que o voto secreto protege o parlamentar porque ele assim fica imune a pressões. Todavia, é preciso colocar que, em primeiro lugar, exercer cargo público tão relevante implica necessariamente a assunção do risco de se expor publicamente: é ônus do próprio cargo. E, depois, o que é mais importante: o mandatário da coletividade tem que estar sujeito à influência das pessoas, posto que isso é inerente ao pleno exercício de uma democracia. De pouco adianta nomear um representante se não se pode saber o que ele está fazendo com o mandato outorgado. Do ponto de vista lógico da plenitude da democracia e mesmo da justiça essa parece ser a melhor posição. É impossível para a coletividade controlar os atos de seu representante se ele os pratica às escondidas. O elemento garantidor de liberdade que existe quando se trata do exercício de voto do cidadão nas eleições públicas inverte-se, passando a ser exatamente o contrário no caso do eleito: uma garantia de voto secreto possibilita acordos escusos em detrimento do representado. E este, não tendo como controlar o resultado do exercício do mandato conferido, fica apenas com a palavra do mandatário, que, como vimos no item 2.2 retro, pode não ser expressão da verdade.
A obesidade é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o acúmulo excessivo de gordura no corpo que pode acarretar problemas graves de saúde como doenças cardiovasculares, hipertensão e diabetes. Segundo a OMS, a obesidade é considerada a mais importante desordem nutricional e é uma epidemia mundial. A incidência da doença é alta, tanto em países desenvolvidos, quanto nos emergentes e subdesenvolvidos. Nenhuma faixa etária está livre do problema. E, pior, nos últimos anos tem aumentando a incidência da doença nas primeiras faixas etárias, em crianças e adolescentes. Conforme explica a médica nutróloga Jussara Fialho Ferreira, há alguns anos se dizia que a obesidade decorria da gula, da falta de força de vontade, de uma fraqueza de caráter ou, ainda, de algum distúrbio psicológico. Atualmente, a ciência reconhece que a obesidade tem múltiplas causas fisiológicas e psicológicas. Diz ela: "Sabe-se que existem pessoas que possuem genes predispostos ou não a prática de esportes ou que tem predisposição para comer muitos doces, por exemplo. Mas não é só isso que determina se uma pessoa será ou não obesa. Outro agravante é a hereditariedade. Se um dos pais for obeso, a chance de desenvolver o distúrbio é de 50%. Agora se ambos forem obesos a chance é de 80%". Além desses fatores genéticos, existe o fator ambiental. Este é caracterizado pelo desequilíbrio entre a ingestão de alimentos com alta densidade calórica e a queima insuficiente destas calorias. A psicóloga Angela Tamashiro diz que "as pessoas não são obesas porque querem ou desejam. Várias são as causas que geram a obesidade. Em 90% dos casos, a causa da obesidade está na utilização descontrolada da gordura..." Estela Renner, que já produziu o excelente documentário intitulado "Criança, a alma do negócio", está agora produzindo um novo filme voltado ao problema da obesidade infantil. O foco é exatamente esse da questão ambiental: obesidade causada pela ingestão imoderada de produtos calóricos, repletos de açúcares e conservantes e outros ingredientes que fazem mal à saúde. Um dos principais aspectos abordados é o da ausência de informação ou má informação a respeito dos produtos ditos alimentícios que são fabricados e vendidos em todos os cantos do país e também a maneira como os mesmos são oferecidos pela publicidade massiva. A partir da edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 11-03-1991, os fabricantes foram obrigados a fornecer informações sobre o conteúdo de seus produtos alimentícios, mas, passados mais de 20 anos da vigência da lei, o que se percebe - como já aqui me referi mais de uma vez - é que a grande indústria descobriu meios de distribuir seus produtos não saudáveis por intermédio das conhecidas fórmulas de sedução veiculadas pela publicidade e, também, algumas vezes fornecendo informações insuficientes ou não claras. O documentário mostrará isso. Ligado ao assunto exposto nos filmes, foi realizado um seminário na semana passada, no qual tive oportunidade de participar, promovido pela Escola Paulista da Magistratura em conjunto com a Apamagis, o Instituto Alana, o Procon de São Paulo e o Idec. Nele, várias questões a respeito da publicidade voltada ao público infantil foram abordadas, sendo que as relacionadas ao problema da nutrição, quero dividir com vocês no presente artigo para uma reflexão. Ficou claro para quem assistiu ao evento que, na sociedade capitalista contemporânea, cada vez mais há uma necessidade de esclarecimento e divulgação dos direitos dos consumidores em geral porque, apesar do CDC ser uma lei que, como se diz, pegou, a desproporção entre o que falam os fornecedores e o que podem os consumidores é monstruosa. E não só o que falam, mas o que apresentam, o que prometem, as imagens maravilhosas que mostram e todos os modos que eles têm de buscar seduzir. São milhões, ou melhor e literalmente, bilhões de reais gastos em publicidade todo ano para cooptar os consumidores. Estes têm muito pouco a seu lado para lutar por seus direitos, combater os maus fornecedores, denunciar o mau atendimento, buscar ressarcimento por suas perdas etc., apesar do excelente trabalho desenvolvido pelos Procons e algumas associações de defesa dos consumidores como o Idec, a Alana, a Proteste e a atuação do Ministério Público especializado. E, se os consumidores adultos têm essa dificuldade, certamente ela aumenta quando se trata de crianças e adolescentes. Quando se fala em informação e publicidade, sempre surge a questão ligada à liberdade de expressão. Não repetirei aqui algo que já disse antes em relação a este tema; lembro apenas que o sistema legal brasileiro permite o controle e até a proibição da publicidade em algumas situações específicas. Aliás, no momento do debate num dos dois dias de seminário, foi levantada uma questão a respeito de um certo receio da existência de intervenção "demais" do Estado, através de leis que regulassem o campo da informação e da publicidade. Lembrei que uma das virtudes da sociedade capitalista contemporânea é o desenvolvimento da ciência. E, evidentemente, a sociedade tem de se aproveitar das verdades científicas - quando elas são incontestáveis - em seu benefício. Eis o exemplo que elucida a questão: em grande parte do século XX fumar era sinal de bom gosto e distinção. Nos filmes de Hollywood dos anos 40, 50, 60 e até 70 os personagens quase sempre estavam portando um cigarro, especialmente em situações sociais. Cigarro e glamour andavam juntos. E, não só em Hollywood, mas também no cinema europeu, etc. Fumar era algo natural de se fazer. Muito bem. Na medida em que a ciência avançou, foi-se descobrindo os malefícios do tabaco e começou-se a catalogar as diversas doenças causadas por seu consumo, assim como um número enorme de mortes. O Estado, por sua vez, passou a fazer a contabilidade dos prejuízos ocasionados com as doenças e as mortes. Conclusão: muitos países passaram a proibir a publicidade de produtos fumígenos, os impostos sobre esses produtos foram aumentados, passou-se a proibir seu uso em locais fechados e públicos etc., tudo visando fazer cair seu consumo. E, apesar da grita de alguns fumantes e, claro, dos fabricantes, as limitações e proibições vingaram muito bem. Ora, a obesidade é uma doença e focada na questão ambiental, a ciência já começa a mostrar que ela está ligada em boa parte ao consumo de produtos de baixa qualidade nutritiva e alta concentração de açúcares, sais, gorduras, conservantes, etc. Assim, com o apoio da ciência, vê-se que pode o Estado atuar no mercado para exigir, por exemplo, que os produtos alimentícios estampem informações mais precisas e mais claras. As embalagens poderiam também dizer dos malefícios que podem ocorrer pela ingestão excessiva. A publicidade poderia ser restringida. Nas escolas de ensino fundamental e médio, poder-se-ia proibir que as cantinas vendessem porcarias, como ocorre atualmente. Enfim, está na hora de a obesidade ligada à alimentação ser tratada com o cuidado que exige. Quanto à publicidade, a existente atualmente é escandalosamente bem produzida para encantar pais e filhos levando-os a mundos maravilhosos e oferecendo porcarias e bugigangas. Assistam: as propagandas são belíssimas, com produção de dar inveja a filmes hollywoodianos, mas nunca dizem a quantidade de gorduras, açúcares, sais, etc. E, tomando o barco da moda da defesa do meio ambiente, muitas propagandas se utilizam da ideia, apresentando crianças que defendem o meio ambiente, mas que ingerem muita alimentação não saudável (evidentemente, todos são a favor da defesa do meio ambiente; por isso os produtores passaram a adotar esse "slogan" cativante para oferecer seus produtos criando essa nova modalidade de ocultação e fingimento). Evidentemente, não se deve esquecer a atuação do consumidor, que pode dizer não às ofertas, assim como pode mudar seus hábitos alimentares. Cabe também aos pais regularem o modo de alimentação de seus filhos, crianças e adolescentes. O problema, como apontei, é a desproporção entre, de um lado, a oferta e, de outro, a capacidade de crítica e obtenção de informações precisas pelos consumidores. Estes estão acuados, lutando pela vida no dia a dia do trabalho ou procurando empregos, estudando, cuidando dos filhos, etc.: sobra muito pouco tempo para refletirem sobre seus hábitos de consumo. Por isso, muitas vezes o consumidor acorda tarde demais. Uma ajuda viria a calhar. É por essas e outras que os consumeristas entendem que o Estado pode dar uma mãozinha. Sempre lembrando, digo eu, que nós já temos uma excelente lei de proteção ao consumidor (o CDC), que garante direitos e regula obrigações, funcionando como uma boa alternativa para a defesa dos interesses e direitos de forma individual e coletiva. Mas há uma verdade científica insofismável: a obesidade é uma doença e deve ser tratada como tal. Parte dessa doença está ligada aos produtos colocados em circulação. Chegará a hora em que as autoridades públicas farão as contas e perceberão o gasto excessivo que estão tendo por causa de mais essa doença; quem sabe, então, intervenham a favor do consumidor. De todo modo, é preciso que a informação dos produtos que os consumidores adultos e especialmente as crianças e adolescentes possam ingerir seja clara e ostensivamente oferecida e apresentada. Para terminar lembro a frase atribuída a Otto Von Bismark que diz: "Se o povo soubesse como são feitas as leis e as salsichas, não dormiria tranquilo". Penso que nesta sociedade em que vivemos, dominada pelo mercado, seria importante atualizar esse pensamento: "Se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas e demais embalados e enlatados, os biscoitos, os sucos artificiais, os refrigerantes e as várias bebidas de caixinhas, etc. não as comprariam".
quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Falta Estado no mercado de consumo

Brinquedos se quebram em parques de diversões e buffets infantis, matando e ferindo adultos e crianças; explosão de bueiro virou rotina na cidade do Rio de Janeiro; encontraram chumbo na tinta de milhares de brinquedos; milhões de litros de leite estavam contaminados com soda cáustica e outros produtos tóxicos; a grande indústria maquia produtos a toda hora; os aeroportos e a própria viação aérea não funcionam mais; anúncios enganosos e abusivos podem ser vistos aberta e impunemente etc. O que esses casos que aconteceram e, recorrentemente, acontecem no Brasil (e em outros lugares do mundo) têm em comum? A falta de fiscalização e controle do Estado e, também, em parte, a ainda precária qualidade das informações recebidas pelos consumidores, destinatários finais dos produtos e serviços. Dever do Estado Não só por determinação constitucional e legal o Estado é o responsável pela fiscalização de tudo o quanto ocorre no mercado de consumo, mas também por questão de ordem política e social. Quando me refiro a Estado quero dizer todos os entes da Federação nas suas esferas de competência: a União, os Estados-membros e os Municípios. Uma parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado tem uma certa autonomia em relação à fiscalização do Estado, tais como a indústria e comércio de vestuário, a produção e distribuição de livros, jornais e revistas, a oferta de curso livres, etc. No entanto, um amplo setor da economia está não só atrelado às determinações do Estado diretamente ou por intermédio de suas agências e autarquias, como são explorações autorizadas a funcionar apenas pelo Estado ou mediante concessão. Não é porque o Estado privatizou certos setores que não tem mais responsabilidade sobre eles. Ganância Não adianta acreditar que o mercado de consumo resolve suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" de mercado que fosse capaz de corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: os empresários modernos e as grandes corporações que eles dirigem querem, cada vez mais e sempre, faturar mais alto, nem que para isso eles tenham que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios e piorar a qualidade de seus produtos e serviços. Para lucrar mais, esses empresários acabam correndo mais risco de oferecer piores produtos e serviços ao consumidor. E, com o fenômeno da chamada globalização, o quadro piorou. Por conta da abertura do mercado de vários países, do incremento da tecnologia e das comunicações, da melhora das condições de distribuição etc., as grandes corporações acabaram por mudar seus polos de produção para locais que ainda não tinham tradição de produção de qualidade. Essas empresas foram buscar maiores lucros, pagando menores salários e produzindo bens de consumo de pior qualidade. As conhecidas marcas mundiais passaram a atuar cada vez mais no marketing de manutenção da grife e, em alguns casos, tais marcas foram produzidas já no ambiente globalizado iludindo os consumidores que acabam adquirindo a marca em detrimento do próprio produto. Dizendo em outros termos: o fato do produto ou serviço ser oferecido por marca conhecida mundialmente não garante sua qualidade. Pode até ser que outrora o produto feito na matriz em que foi criado fosse bom, mas não se pode mais garantir que continue sendo, na medida em que são produzidos em locais que não tem mão de obra qualificada e ambiente de trabalho solidificado na experiência. Brinquedos Veja-se o caso dos brinquedos: nos últimos anos foram acumuladas dezenas de recalls das grandes indústrias para a retirada de centenas de produtos de baixa qualidade e que colocaram - e ainda colocam - em risco a saúde e a vida das crianças. São brinquedos feitos em países que não tem como preocupação a qualidade e, na hipótese, o que é mais importante, a segurança de seu público alvo, as crianças. Mito no Brasil Eu aproveito o exemplo dos brinquedos para ingressar num dos assuntos que interessa em especial ao consumidor brasileiro e que, a meu ver, se for por ele internalizado ajuda em muito a garantia de seus direitos. É o do mito (ainda) de que produtos estrangeiros são melhores que os nacionais. Faz muito tempo que isso deixou de ser verdade. Na área dos brinquedos, por exemplo, o Brasil tem um dos melhores sistemas de controle de qualidade e segurança daquilo que é oferecido. Mas, não é só nessa área. Na de produção de automóveis, de móveis, de produtos da chamada linha branca, eletrodomésticos e eletroeletrônicos etc. Nossos produtos são iguais ou melhores que os produzidos em outros lugares do mundo. E os consumidores, quando adquirem nossos produtos, de quebra, ajudam na manutenção dos empregos dos brasileiros. Penso, pois, por isso, que cabe ao consumidor brasileiro, antes de comprar produtos importados, olhar o nacional (sei, claro, que atualmente há preços favoráveis nos produtos importados, por causa da valorização do real, mas ainda assim não se deve esquecer do ditado popular que diz que "o barato sai caro"). Fiscalização Ora, como a regra mercadológica é faturar ainda que piore a qualidade e segurança dos produtos e serviços, exige-se maior participação do Estado diretamente na economia. É um grave erro o Estado sair do mercado, deixando que este resolva os próprios problemas criados. Muitas vezes, é apenas o Estado que pode resolvê-los. Tome-se o exemplo da crise aérea. Aliás, interminável, com quebras de companhias de aviação (Varig, BRA, etc.), problemas de infraestrutura e administração nos aeroportos, esquemas escusos inventados e implantados pelas companhias aéreas contra os consumidores cujo maior expoente, mas não o único, é o overbooking, além do mau atendimento, atrasos regulares, cancelamentos inexplicáveis etc. Nesse setor a responsabilidade do Estado decorre diretamente de seu direito e dever de fiscalização. As companhias aéreas não podem atuar sem a autorização direta dos órgãos governamentais e não podem também fazer promessas e ofertas ao público consumidor que violem o sistema legal nem girem seu negócio com incompetência administrativa isenta de fiscalização. O mesmo se dá em vários outros setores: no de brinquedos, claro, no de alimentos (é preciso cuidar de criar cargos de agentes que fiscalizem os agentes para evitar fraudes criminosas como a do leite de Minas), no de medicamentos, no financeiro etc. (nem preciso referir o caso da crise financeira mundial de 2008, que nasceu, como se sabe, da desregulamentação do mercado). O mercado livre Enfim, a cada dia que passa, fica mais demonstrado que a chamada era do mercado de consumo livre de intervenção estatal exige sim uma ação direta do Estado, em todas as suas áreas de competência e atuação, para garantir o mínimo de qualidade e segurança dos produtos e serviços oferecidos no mercado. Lembro que no Brasil há leis claras sobre o assunto, dentre as quais destaco a Constituição Federal (arts. 173 e seguintes) e o Código de Defesa do Consumidor. E, quanto ao consumidor, é preciso muita atenção às ofertas enganosas. Não deve ele acreditar que dá para comprar passagem para a Europa pagando apenas o preço de ida impunemente, nem que brinquedos que concorrem com similar nacional podem ter a mesma qualidade, apesar de custarem a metade do preço ou menos. Não se deve esquecer que nada é de graça no mercado de consumo até porque, para usar outra expressão da qual gosto muito, de autoria de Octávio Paz, "o mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores".
O capitalismo barulhento e o sagrado direito ao sossego Meu amigo Walter Ego foi sábado passado ao cinema assistir ao último (e excelente) filme de Woody Allen, Meia noite em Paris. Como não poderia deixar de ser, algo aconteceu. E, dessa vez foi o barulho. Não o dos espectadores, mas do próprio exibidor. Ele me disse: "O que acontece com esse pessoal dos cinemas. Os trailers e demais besteiras que passaram antes do filme tinham uma altura para lá de dezenas de decibéis". E para comprovar que falava a verdade, completou: "E não era só eu a reclamar - embora só as pessoas que estavam perto pudessem ouvir. Duas senhoras sentadas à minha frente se queixavam e uma dizia já estar com dor de ouvido. Só melhorou durante a exibição do filme, quando o volume foi abaixado um pouco". Depois, perguntou: "Dá para processar o exibidor? E a vigilância sanitária não faz nada?" Eu respondi que, claro, se a pessoa sofrer algum distúrbio, por exemplo, tendo dores de ouvido, pode sim pedir indenização por danos materiais - caso haja tido algum gasto ou perda financeira e, dependendo do impacto, até mesmo indenização por danos morais. E que, obviamente, cabe à fiscalização municipal checar o nível de decibéis produzido nas salas de exibição e, em caso de exagero, determinar o uso adequado dos instrumentos sonoros. Como ultimamente os meios de comunicação têm abordado com certa regularidade a questão do barulho, que causa danos e nem sempre tem tratado as questões jurídicas como exige o caso, eu aproveito o episódio de meu amigo, para cuidar do assunto, lembrando, desde logo, que a violação do sossego no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais violado abertamente. O interessante nessa garantia legal, é que ela é uma espécie de ausência: implica um obstáculo à ação das outras pessoas. Nos tempos atuais das grandes cidades e metrópoles ela se dá num "vazio", numa falta, num espaço, digamos assim, intocado. Parece que nas sociedades industrializadas contemporâneas, nesta era capitalista do império globalizante em que vivemos, tudo faz barulho. Existe mesmo uma busca incessante em sua produção: são músicas em altos volumes nos automóveis, nas lojas e nos restaurantes, nos clubes, nas academias, nos intervalos dos espetáculos teatrais e nos cinemas, nos estádios de futebol, onde há também o barulho das torcidas que atinge toda a redondeza; nas festas de aniversário e de casamento; são shows ao vivo em estádios que vão muito além de suas arquibancadas; são bares, boates e danceterias que invadem o espaço dos vizinhos etc. De fato, todo o sistema é assim. Há excesso de ruído por todos os lados: dos veículos nas ruas, das máquinas nas fábricas, das construções, das oficinas etc. Trata-se de um enorme amontoado de ações barulhentas, algumas ensurdecedoras, nem sempre em nome do tão sonhado progresso. Não posso deixar de fora os sons "privados" dos aparelhos eletrônicos domésticos que saem pelas janelas de apartamentos e casas perturbando os vizinhos com seus exagerados volumes. Há também latidos incessantes de cachorros e até "imitações" dos papagaios (licenciados ou não pelo Ibama). Na sua crônica da revista Veja São Paulo, publicada há alguns meses, Walcyr Carrasco citou um caso de uma arara que perturbava os vizinhos de um prédio na cidade de São Paulo. Enfim, os barulhos, ruídos, sons em altos volumes entram em nossas casas e apartamentos a toda hora sem pedir licença, violando esse nosso direito sagrado ao silêncio e ao sossego. É verdade que algumas pessoas até se acostumaram com isso e outras dizem que "gostam", mas o fato é que barulho não solicitado fere o direito sagrado ao sossego e pode gerar danos à saúde. Não abordarei um aspecto importante dos sons não pedidos, como a imposição dos estabelecimentos comerciais de que seus frequentadores escutem as músicas por eles escolhidas (o que, por exemplo, em academias de ginástica e musculação pode ser altamente prejudicial não só pelo excesso de volume, como pela qualidade das músicas...). Tratarei do outro lado da questão: do direito ao silêncio, ao sossego e ao descanso, sagrados e que qualquer pessoa pode exigir. O direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito que envolve uma série de transtornos já avaliados e julgados pelo Poder Judiciário. Por exemplo, o Judiciário já considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente etc. Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente. Num caso em que se considerou excessivo o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação da planta pela Prefeitura e seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou que a quadra de esportes produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha aprovado sua construção. Aliás, lembro que os shows produzidos em estádios de futebol e que violam às escâncaras o direito ao sossego dos vizinhos são, como regra, autorizados pela Prefeitura local. Alguns shows, inclusive, varam a noite e a madrugada, numa incrível violação escancarada. Realço que, nesses casos, a própria Prefeitura é responsável pelos danos causados às pessoas. Dizia acima que a legislação pátria é rica no tema. Muito bem. A Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo Decreto-Lei 24.645/1934 que dispõe que "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o novo Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 2003, garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Nesse ponto, anoto que para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras. A questão, portanto, ao contrário do que tem sido noticiado, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais.
quinta-feira, 11 de agosto de 2011

As bebidas alcoólicas e o consumidor

Um assunto que foi bastante noticiado na semana passada foi o do projeto de lei do governo do Estado de São Paulo, que visa punir com multas de até R$ 87.000,00 estabelecimentos que vendam, ofereçam, entreguem ou permitam o consumo, em suas dependências, de bebida com qualquer teor alcóolico para menores de 18 anos em todo o Estado. A multa dobrará em caso de reincidência e pode levar à perda da inscrição estadual do comerciante. Antes de prosseguir, lembro que já é proibido vender, oferecer ou entregar bebida alcoólica a menores de 18 anos. A questão é outra: ela está ligada as medidas que tentam coibir o uso pernicioso desse tipo de bebida não só por menores como por adultos, mas que funcionam apenas como paliativo. Pergunto: não haveria outros modos mais eficazes de se combater esse vício? Pensemos no assunto. Ninguém dúvida do mal que as bebidas alcoólicas fazem e, particularmente, nós consumeristas, temos combatido fortemente os anúncios publicitários que incentivam o consumo desse tipo de droga. Os malefícios causados, especialmente aos jovens, são enormes. É evidente que não se pretende a proibição de fabricação das bebidas que contém álcool, mas está mais do que na hora de se utilizar entre nós os métodos modernos para restringir a aquisição de bebidas e que tem funcionado muito bem. É preciso, por exemplo, proibir a publicidade e limitar os pontos de venda. Em Estados americanos como Utah, os consumidores da Capital, Salt Lake City, somente podem comprar bebidas alcoólicas em lojas especializadas, nas quais só podem entrar maiores de 18 anos. Nos supermercados, por exemplo, só se vende cerveja sem álcool. O mesmo se dá no Canadá. Em Vancouver, cidade que tem uma das melhores qualidades de vida do mundo, só é possível comprar bebidas nas "liquor stores" e, claro, também, lá só entram maiores de idade. Pergunta-se: isso impede que as pessoas bebam? Claro que não, pois ainda se pode beber em casa depois de adquirir a bebida na loja especializada ou se pode beber num restaurante, numa boate, etc., mas é proibido portar garrafas ou latas de bebidas alcoólicas abertas nas ruas ou nos automóveis. A venda ampla e aberta feita por supermercados, mercearias, padarias e congêneres é um facilitador excessivo e implica um estímulo à compra e à ingestão. E, ao contrário, a venda circunscrita em locais específicos, especialmente autorizados e fiscalizados, dificulta em muito não só a compra como também a consequente ingestão de bebidas alcoólicas. Anoto que nesses locais o consumidor não compra por impulso. A aquisição da bebida alcoólica - qualquer que seja o tipo: vinhos, cervejas, destilados, etc. - exige do consumidor uma tomada de atitude, uma decisão de sair de casa para comprá-la. Ele tem de decidir antes. Já em supermercados, por exemplo, pode muito bem acontecer do consumidor ir comprar saladas e carnes e sair carregado de vinhos e cervejas. Afora o fato de que nesses estabelecimentos comerciais abertos ao público e encontrados em cada esquina, a possiblidade de que menores acabem adquirindo as bebidas seja enorme e mesmo que se obrigue o caixa a fazer um controle da idade do comprador, ainda assim um amigo maior de idade pode se passar por ele e fazer a compra. Enfim, a facilidade é evidente. No Brasil, infelizmente, se pode comprar bebidas alcoólicas em todo e qualquer lugar abertamente e até via delivery. A leviandade por aqui é tamanha que em festas de adolescentes há pais que servem cervejas e outras bebidas mais fortes à vontade. O mesmo ocorre às vezes em buffets e clubes. E, no que respeita ao comerciante, este, como se sabe, quer vender. Se é permitido, ele faz. Veja-se o que acontece em volta das faculdades brasileiras. Meu amigo Walter Ego diz: "Pode-se definir um prédio de escola superior como um local feito para desenvolvimento de altos estudos, cercado de bares por todos os lados". E anoto que até mesmo dentro de algumas escolas a bebida alcóolica é vendida! Temos, entre nós, a Lei 9.294/96 que, com fundamento no parágrafo 4º do art. 220 da Constituição Federal, proibiu a veiculação televisiva dos anúncios de produtos fumígenos, tais como cigarros, cigarrilhas, charutos, etc. Falta fazer o mesmo com as bebidas alcoólicas. Ademais, a publicidade de bebidas alcoólicas, de maneira geral, é sofrível e pode ser caracterizada como abusiva, conforme definição legal (art. 37, parágrafo 2º do Código de Defesa do Consumidor), na medida em que se utiliza de maneira bastante chula da imagem da mulher. As propagandas de cerveja são o melhor exemplo disso, aliás, parece mesmo que falta imaginação aos tão criativos publicitários brasileiros nesse setor: há anos eles só conseguem bater nessa mesma tecla surrada (que não deixa de ser vulgar e abusiva). É certo que ao final de cada anúncio sempre aparece o aviso: "Beba com moderação". Mas, será que resolve? Sem poder me estender no assunto neste curto espaço, devo dizer que os estudos científicos da semiótica moderna demonstram que da maneira como são produzidos os anúncios, o aviso ao final não tem qualquer eficácia. Explico. O anúncio em si se traduz numa comunicação analógica de imagens agradáveis, sempre com gente bonita, sorridente, cantando, feliz e...bebendo, bebendo, bebendo. Ao final, não com imagens mas, com palavras, isto é, numa comunicação digital, surge a frase do aviso. Acontece que, a comunicação analógica do anúncio é um código quente, forte de comunicação e atinge, em cheio, o público alvo. Ela encanta, seduz a plateia. O aviso em letras é um código frio, fraco. O mesmo público embevecido com o anúncio lê o aviso e não lhe dá a devida importância. Traduzindo: o aviso não funciona. Exatamente como ocorria com os anúncios de cigarro, onde ao final, após cenas de esporte ou luxo, surgia a frase: "O Ministério da Saúde adverte: fumar faz mal à saúde". Também não funcionava e, no caso, soava paradoxal: se o Ministério da Saúde sabe que faz mal, porque não toma providências mais eficazes? E tomou. Quero dizer, as autoridades tomaram. No caso do cigarro não só se proibiu os anúncios em rádio e tevê como se obrigou os fabricantes a mostrarem os danos que o cigarro causa em fotos (linguagem analógica) e não só em palavras. Pois bem. No caso das bebidas alcoólicas falta muito. Sabe-se que a proibição relativa ao cigarro teve fundo econômico: o governo percebeu que era mais barato combater o vício do fumo que ficar gastando milhões nos hospitais com os fumantes doentes. Em relação à bebida alcoólica, ter-se-ia que fazer o mesmo. Claro que há o lobby dos fabricantes de bebidas a ser enfrentado e também o interesse dos veículos de comunicação, que faturam alto com os anúncios. Mas, se foi feito com o fumo existe a esperança de que possa ser feito também com as drogas alcoólicas. É preciso, pois, coragem para a tomada de outras medidas como as sugeridas. Quanto ao aumento da restrição aos anúncios publicitários ou sua proibição, basta uma alteração na lei 9.294 nesse sentido. Lembro, como dito, que a Constituição Federal assim o determina. Não vejo também entrave a que se proíba a venda desse tipo de bebida em supermercados, mercearias, padarias e congêneres, limitando as vendas apenas a estabelecimentos autorizados e controlados e nos quais fique proibida a entrada de menores de dezoito anos. Se um dia chegarmos a isso, teremos certamente um consumo mais consciente e menos nocivo de bebidas alcoólicas.
Nunca se voou tanto. Nunca os consumidores deixaram tantos milhões de reais, dólares, euros ou o que o valha nos cofres das companhias aéreas. Conclusão: as empresas estão faturando alto. Mais dinheiro em caixa, mais lucro, mais dividendos distribuídos para os acionistas, maiores bônus entregues aos executivos do alto escalão e mais benefícios aos consumidores e melhor qualidade dos serviços prestados... Opa! É melhor parar por aqui porque na frase anterior nem tudo é verdadeiro, isto é, o último trecho é falso. Com tanto dinheiro ganho seria de esperar mais benefícios distribuídos aos consumidores e melhor qualidade dos serviços prestados. Infelizmente, por incrível que pareça, está acontecendo o oposto: quanto mais ganham as cias aéreas piores ficam os seus serviços. É o novo sistema do século XXI: o capitalismo de ponta cabeça. Pois vejam o que aconteceu recentemente com meu amigo Walter Ego. Ele foi convidado a visitar um núcleo de pesquisa sobre publicidade em Cambridge, Estados Unidos da América. Feliz da vida, ele me disse: "Rizzatto, vou quarta-feira e volto domingo. Poderemos almoçar já na segunda-feira e eu te conto as novidades. É pouco tempo, mas terei dois dias inteiros para aproveitar". "Big esforço", pensei, mas nada disse. E ele se foi - bem, quando se trata do W. Ego tudo pode acontecer. Na quarta-feira à noite, ele dirigiu-se ao balcão da United Airlines e, assim que chegou no primeiro atendimento, disseram-lhe que o avião previsto para decolar às 22:00 horas iria atrasar duas horas. Ele perguntou porque e lhe responderam não saber. A moça que o atendeu apenas completou que a aeronave que deveria ter partido da origem pela manhã, estava voando naquele momento para chegar ao aeroporto de Cumbica. Daí o atraso. "Se vocês sabiam disso desde hoje cedo, porque não avisaram aos passageiros para que todos viessem ao aeroporto mais tarde", perguntou indignado. Recebeu o silêncio como resposta. W. Ego não se deu por satisfeito e no segundo atendimento, insistiu com o outro atendente. Este disse que o atraso fora ocasionado por problemas mecânicos e, por isso, a aeronave só teria saído pela manhã e chegaria às 23:00 horas. Assim, a previsão de saída era 0:30 horas. Meu amigo recuou, pois deveria chegar em Washington a tempo de pegar sua conexão para Boston, seu destino final, mas com esse atraso já não daria. (Até porque ele sabia que se falaram 0:30 horas, seria ao menos meia hora a mais). Ele perguntou sobre a conexão e, depois de alguma pesquisa, foi-lhe garantido que ele seria colocado no voo seguinte, o das 12:28 horas saindo de Washington para Boston. "Lá se foi um terço de um dia dos dois que eu tinha. Mas, tudo bem. Ainda tenho um dia e dois terços", pensou meu azarado amigo. Antes de fazer o check-in ele ainda insistiu e perguntou se estaria mesmo no voo das 12:28 horas. Ele explicou que somente ficaria em Boston e Cambridge por praticamente dois dias. Se perdesse um, não valeria a pena ir. Garantiram-lhe que não havia com o que se preocupar. Ele topou e recebeu um novo ticket com a anotação do voo para Boston, às 12:28 horas. Mais tarde, na área de embarque, às 23:20 horas sentou a seu lado um rapaz que apontou para a aeronave estacionada ao lado da porta de embarque e disse que nele chegara vindo do Rio de Janeiro, umas três horas antes. "Aquele mesmo", perguntou, curioso, meu amigo. "É. Ele mesmo. Um sete sete sete". "Mas, ele não estava voando e somente chegaria às vinte e três horas?", perguntou para si mesmo e depois indagou o rapaz: "Tem certeza que é o mesmo avião". "Acho que sim, pois estou aqui há muito tempo e não o vi se mover do lugar". Mistério. E, nada se podia fazer. Os passageiros esperaram e o avião partiu para seu destino quase a uma hora da madrugada com muitos assentos vazios, o que chamou a atenção de W. Ego - sempre desconfiado. A essa altura, deveria estar com sono, mas não. Ficou aguardando receber alguns mimos dos comissários de bordo, mas à exceção do fone de ouvido nada lhe foi entregue. Esperou o sono chegar e lembrou-se dos velhos tempos, época em que mesmo estando na classe econômica, o passageiro recebia lenço umidificado, meias "postiças", escovinhas de dentes, etc. "Acabaram os mimos na exata proporção em que aumentaram os lucros", pensou e não conseguiu dormir. Quando retornou ao Brasil, ele me disse: "Quer saber mais? Veio a comida - uma porcaria, mas eu não esperava muito. Pedi um vinho tinto, pois me ajudaria a dormir. A comissária me entregou uma pequena garrafa de um vinho americano e falou 'Seu cartão' . Eu, na hora, não entendi, mas vi que ela estava parada esperando. Daí, ela repetiu 'Seu cartão'. Só nesse instante percebi que ela estava me cobrando. Tive de pagar sete dólares pelo vinho. É mole?". (E, durante uma pequena turbulência, acabou derrubando o vinho na sua camisa branca...). Depois, filosofou: "Será que um dia nos cobrarão para irmos ao banheiro do avião? Ouvi que já há companhias aéreas cobrando pela comida. Acho que é isso. É fatal. Um dia pagaremos pelo banheiro e para assistir aos vídeos. É. Vão colocar filmes à disposição, como fazem os hotéis. Nós passaremos o cartão de crédito no assento do banco e assistiremos ao filme escolhido. Além, de passarmos o cartão na porta do banheiro..." Eu intervi: "Não quero te desanimar, mas em alguns voos da Continental Airlines (que hoje é do mesmo grupo da American) para assistir aos filmes oferecidos é preciso pagar. Com cartão de crédito, claro. E, a Pluna (empresa uruguaia) já cobra pela comida oferecida e, embora escolhendo, nem sempre há a opção oferecida, porque as porções acabam". Ele disse, desanimado: "Bem, então, logo chegaremos à cobrança pelo uso do banheiro." *** Volto à viagem, porque há mais. Walter Ego chegou em Washington às 9:00 horas e ficou perambulando pelo limpo aeroporto até às 11:00, quando se dirigiu ao local de embarque. Mais uma surpresa: deu overbooking para ele e outros quatro passageiros. Pior que o rapaz do balcão nada dizia. Apenas falava para ele aguardar o chamado de seu nome. Ele e os demais passageiros confirmados não tinham lugar garantido no voo. Nervoso, ele só pensava em duas coisas: na mala despachada para Boston logo após a imigração e no tempo que iria lhe restar se ele perdesse esse outro voo. "Será que ficarei viajando dois dias de avião e voltarei para casa, alimentado por comidinhas com gosto de papelão e vinho ruim sem sequer ter colocado os pés em Boston?". Voltou ao balcão, mas ouviu do atendente, agora ríspido: "Eu disse para o senhor ficar aguardando que chamaremos seu nome". Ele deu um passo atrás, bem irritado, porque só queria ter alguma notícia, receber alguma esperança. Seu estômago doía, por tudo e pelo nervoso. Foi nesse momento que ele notou algo curioso. Num painel eletrônico ao alto, aparecia o nome das pessoas que estavam no overbooking. Acima dos nomes um pedido para que elas aguardassem a chamada. O nome dele aparecia em terceiro lugar. Tudo muito organizado, isto é, o overbooking era parte da rotina. Já havia um painel adredemente preparado para colocar o nome dos azarados consumidores que, certamente, todo dia, eram rejeitados no voo no qual, de direito, deveriam embarcar. Viu ele, desesperado, que fazia parte da rotina. Não era um incidente incomum ou inesperado. Fazia parte de um sistema tão impessoal como regular. Olhando no painel, ele percebeu que o mesmo intercalava o aviso com o nome dos consumidores que estavam sem assento no voo com um outro aviso que oferecia algumas benesses para quem quisesse desistir do mesmo, abrindo lugar para os que estavam em overbooking. (Como se sabe, essa tática é utilizada no mundo todo para conseguir abrir espaço para os que ficaram de fora ilegalmente. Normalmente, são oferecidos passagens, créditos em passagens e até pagamentos em dinheiro, além de hotel, alimentação, transporte. etc.). A novidade era o painel bem integrado ao sistema de atendimento. "Tudo muito limpinho. Uma violação e uma operação bem higiênicas", pensou meu amigo. O embarque continuou a ser feito e apenas uma pessoa, das que estavam a sua frente, havia sido chamada. Foi uma hora e quinze minutos de angústia e espera. Quase todos os passageiros já haviam embarcado, quando W. Ego foi chamado. Mas, ele acabou embarcando! Quando chegou ao aeroporto de Boston e as malas não chegaram e todos os passageiros se perguntavam onde estavam, ele nem se aborreceu, pois mesmo sem a bagagem, ele ainda tinha um dia e dois terços pela frente. (Momentos depois, um dos passageiros descobriu que a bagagem de todos estava num dos cantos do aeroporto e não havia indicação alguma sobre isso). *** Saiba você leitor, que, tirando uma ou duas passagens, o W. Ego me contou tudo de forma bem calma. Até riu algumas vezes. Ele estava se comportando como o fazem muitos consumidores, que se conformam com a violação sofrida se, afinal, deu tudo mais ou menos certo. Eles até ficam agradecidos e esquecem dos direitos violados e do sofrimento experimentado. Eu disse isso à ele, que apenas torceu o nariz e ficou quieto. Mas, insistiu comigo que eu tratasse do assunto, o que estou fazendo e agora prossigo. *** O sistema capitalista mundial (quero dizer, ocidental) até fins dos anos oitenta do século passado se orgulhava do primor com que tratava seus clientes. As companhias aéreas davam bons exemplos, assim como operadoras de cartões de crédito e bancos e várias outras grandes empresas dos setores massificados. Havia competição séria e luta severa por fatias do mercado consumidor. Por isso, parte do lucro - às vezes grande parte - era investido na busca da satisfação dos clientes não só para o atingimento da fidelização como para a conquista dos novos. Os consumidores eram bem tratados e até mesmo bajulados. Com o surgimento das junções de empresas, fusões, aquisições, etc. criou-se oligopólios e enormes grupos que atuam em conjunto dominando todo ou quase todo o mercado de sua área de atuação. Além disso, com a administração dessas gigantescas corporações cada vez mais "financeira" que produtiva, a preocupação com a qualidade se esvaiu. O capitalismo mudou: o consumidor se tornou apenas um número (ou um nome num painel, num banco de dados ou algo semelhante) que pode gerar um certa receita monetária, mas cujos direitos, interesses e necessidades não têm mais importância. Os consumidores são tratados como marionetes, que hipnotizados, devem obedecer ao comando do marketing e da publicidade. É feito de tudo para que eles acreditem nas fantasias veiculadas. Anúncios publicitários mentem, gerentes de bancos mentem, recepcionistas de empresas de planos de saúde mentem, atendentes em aeroportos mentem, etc. (uma longa lista). É verdade que as mentiras, às vezes, fazem parte do sistema engendrado pelos chefes e patrões, mas nem por isso deixam de ser mentiras e muita conversa pra boi dormir. Todo o episódio que narrei envolvendo o meu amigo W. Ego comprova isso e, claro, os que me leem conhecem muitos outros parecidos. O overbooking e todos os benefícios excluídos do atual serviço prestado pelas companhias aéreas são uma clara demonstração desse novo modelo capitalista, que despreza o consumidor e que só pensa no ganho financeiro. Os atuais administradores não estão preocupados com seus clientes, especialmente nos setores de baixa competividade e naqueles em que o consumidor não tem escolha (ou seja, em muitos setores). A qualidade cai, mas gera alguma economia financeira que na escala, representa maior faturamento e com isso surge o desprezo ao consumidor. Mas, ainda temos leis e estas precisam ser cumpridas. O overbooking, por exemplo, é quase um estelionato, pois é a venda do mesmo assento para mais de uma pessoa (tente fazer o mesmo, vendendo seu automóvel ou seu imóvel para duas pessoas diferentes ao mesmo tempo...). Ademais, as cias aéreas descobriram uma fórmula para continuar a burla: quando acontece o problema (basta ir aos aeroportos para verificar sua constância), elas saem distribuindo alguns trocados para receberem de volta o assento vendido. São verdadeiras migalhas (sem ofensa, claro, a este poderoso rotativo!) em troca de direitos. Eu não tenho dúvida em afirmar que o overkooking é uma prática ilegal e grosseira que precisa ser punida. P.S.: Eu já tinha escrito este artigo, quando vi a notícia de que o Ministério Público Federal em Guarulhos havia entrado com uma ação judicial para que as empresas aéreas sejam condenadas ao pagamento de multa pelo overbooking. Não conheço o teor da ação, mas pela matéria que li, penso que esse é mesmo o caminho. Aliás, aproveito a oportunidade para anexar acórdão de minha Câmara na qual uma companhia aérea foi condenada a pagar indenização por danos morais em função dessa prática. O julgamento ocorreu em junho deste ano (Apelação 0184323-88.2010.8.26.0100, 23ª. Câmara de Direito Privado do TJ/SP, j. 8-6-2011, m.v. Eu sou o relator. Confira o acórdão (clique aqui).
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade objetiva dos fornecedores (especificando cada qual em seus artigos 12, 13 e 14) pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços. E ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade) tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Para que possamos compreender o porquê dessa ampla responsabilização, precisamos conhecer a teoria do risco do negócio ou da atividade, que é sua base e que examino na sequência. 1.Os negócios implicam risco A Constituição Federal garante a livre iniciativa para a exploração da atividade econômica, em harmonia com uma série de princípios (CF, art. 170), iniciativa esta que é, de fato, de uma forma ou de outra, característica da sociedade capitalista contemporânea. A exploração da atividade econômica tem uma série de características, que não cabe aqui narrar. Mas, entre elas, algumas são relevantes e certos aspectos teóricos que embasam o lado prático da exploração nos interessam. Uma das características principais da atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa, a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades por parte do empresário é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. Mas o risco é dele. É claro que são muitas as variáveis em jogo, e que terão de ser avaliadas, tanto mais se existir uma autêntica competitividade no setor escolhido. Os insumos básicos para a produção, os meios de distribuição, a expectativa do consumidor em relação ao produto ou serviço a serem produzidos, a qualidade destes, o preço, os tributos, etc. são preocupações constantes. Some-se o desenvolvimento de todos os aspectos que envolvem o marketing e em especial a possibilidade - e, praticamente, a necessidade - da exploração da publicidade, arma conhecida para o desenvolvimento dos negócios. O empreendedor, claro, levará sempre em consideração todos os elementos envolvidos. 2. Risco/custo/benefício Aqui o que interessa é o aspecto do risco, que se incrementa na intrínseca relação com o custo. Esse binômio risco/custo (ao qual acrescentarei um outro: o do custo/benefício) é determinante na análise da viabilidade do negócio. A redução da margem de risco a baixos níveis (isto é, a aplicação máxima no estudo de todas as variáveis) eleva o custo a valores astronômicos, inviabilizando o projeto econômico. Em outras palavras, o custo, para ser suportável, tem de ser definido na relação com o benefício. Esse outro binômio custo/benefício tem de ser considerado. Descobrir o ponto de equilíbrio de quanto risco vale a pena correr a um menor custo possível, para aferir a maximização do benefício, é uma das chaves do negócio. Dentro dessa estratégia geral dos negócios, como fruto da teoria do risco, um item específico é o que está intimamente ligado à sistemática normativa adotada pelo CDC. É aquele voltado à avaliação da qualidade do produto e do serviço, especialmente a adequação, finalidade, proteção à saúde, segurança e durabilidade. Tudo referendado e complementado pela informação. Em realidade, a palavra "qualidade" do produto ou do serviço pode ser o aspecto determinante, na medida em que não se pode compreender qualidade sem o respeito aos direitos básicos do consumidor. E nesse ponto da busca da qualidade surge, então, nova e particularmente, o problema do risco/custo/benefício, acrescido agora de outro aspecto considerado tanto na teoria do risco quanto pelo CDC: a produção em série1. 3. Produção em série Com a explosão da revolução industrial, a aglomeração de pessoas nos grandes centros urbanos e o inexorável aumento da complexidade social, exigia-se um modelo de produção que desse conta da sociedade que começava a surgir. A necessidade de oferecer cada vez mais produtos e serviços para um número sempre maior de pessoas fez com que a indústria passasse a produzir em grande quantidade. Mas o maior entrave para o crescimento da produção era o custo. A solução foi a produção em larga escala e em série, que, a partir de modelos previamente concebidos, permitia a diminuição dos custos. Com isso, era possível fabricar mais bens para atingir um maior número de pessoas. O século XX inicia-se sob a égide desse modelo de produção: fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, com um custo de produção menor de cada um dos produtos, possibilitando que fossem vendidos a menor preço individual, com o que maiores parcelas de consumidores passaram a ser beneficiadas. A partir da Segunda Guerra Mundial, esse projeto de produção capitalista passou a crescer numa velocidade jamais imaginada, fruto do incremento dos sistemas de automação, do surgimento da robótica, da telefonia por satélites, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação. etc. 4. Característica da produção em série: vício e defeito Muito bem. Em produções massificadas, seriadas, é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número enorme de consumidores. Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem de correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. Aliado a isso está o indelével fato de que produções desse tipo envolvem dezenas, centenas ou milhares de componentes físicos que se relacionam, operados por outra quantidade enorme de mãos que os manuseiam direta ou indiretamente. A falha é inexorável: por mais que o fornecedor queira, não consegue evitar que seus produtos ou serviços cheguem ao mercado sem vício/defeito. Mesmo nos setores mais desenvolvidos, em que as estatísticas apontam para vícios/defeitos de fabricação próximos de zero, o resultado final para o mercado será a distribuição de um número bastante elevado de produtos e serviços comprometidos. E isso se explica matematicamente: supondo um índice percentual de vício/defeito no final do ciclo de fabricação de apenas 0,1% (percentual raro, eis que, de fato, ele é mais elevado) aplicado sobre alta quantidade de produção, digamos, 100.000 unidades, ter-se-ia 100 produtos entregues ao mercado com vício/defeito. Logo, temos de lidar com esse fato inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito. 5. O CDC controla o resultado da produção Dessa maneira, nada mais adequado do que controlar, como fez o CDC, o resultado da produção viciada/defeituosa, cuidando de garantir ao consumidor o ressarcimento pelos prejuízos sofridos. Note-se que a questão do vício/defeito envolve o produto e o serviço em si, independentemente da figura do produtor (bem como de sua vontade ou atuação). São - como se verá - o produto e o serviço - e não o fornecedor - que causam diretamente o dano ao consumidor. Este só é considerado na medida em que é o responsável pelo ressarcimento dos prejuízos. Nesse ponto tenho, então, de colocar outro aspecto relevante, justificador da responsabilidade do fornecedor, no que respeita ao dever de indenizar: é o da origem do fundo capaz de pagar os prejuízos. 6. A receita e o patrimônio devem arcar com os prejuízos É a receita e o patrimônio do fabricante, produtor, prestador de serviço, etc. que respondem pelo ônus da indenização relativa ao prejuízo sofrido pelo consumidor. O motivo, aliás, é simples: a receita e o patrimônio abarcam "todos" os produtos e serviços oferecidos. "Todos", isto é, tanto os produtos e serviços sem vício/defeito quanto aqueles que ingressaram no mercado com vício/defeito. O resultado das vendas, repita-se, advém do pagamento do preço pelo consumidor dos produtos e serviços bons e, também, dos viciados/defeituosos. Usando o mesmo cálculo que fiz acima. Vamos supor uma produção de 100.000 liquidificadores/mês e um vício/defeito no final do ciclo de produção de apenas 0,1%. O mercado receberá 100.000 liquidificadores e o produtor aferirá uma receita advinda de sua totalidade. Acontece que apenas 99.900 consumidores adquirirão efetivamente liquidificadores em perfeito estado de funcionamento. Os outros 100 arcarão com o ônus de ter comprado os liquidificadores com vício/defeito. Nesse ponto, é preciso inserir outro princípio legal justificador do tratamento protecionista dos consumidores que adquiriram os produtos com vício/defeito. É o princípio constitucional da igualdade. Não teria, nem tem cabimento, que os 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito e que pagaram por eles o mesmo preço dos demais 99.900 consumidores não tivessem os mesmos direitos e garantias assegurados a estes últimos. Para igualá-los, é preciso que: a) recebam outro produto em condições perfeitas de funcionamento; b) aceitem o valor do preço de volta; c) ou, ainda, sejam ressarcidos de eventuais outros prejuízos sofridos. É dessa forma que se justifica a estipulação de uma responsabilidade objetiva do fornecedor. 7. Ausência de culpa Mas ainda existe um outro reforço dessa justificativa e que formatará por completo o quadro qualificador e que obrigou a que o sistema normativo adotasse a responsabilização objetiva. É o relacionado não só à dificuldade da demonstração da culpa do fornecedor, assim como ao fato de que, efetivamente, muitas vezes, ele não tem mesmo culpa de o produto ou serviço terem sido oferecidos com vício/defeito. Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria fatalmente lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como era no regime anterior). Aqueles 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito, muito provavelmente, não conseguiriam demonstrar a culpa do fabricante. Explicando melhor: no regime de produção em série o fabricante, produtor, prestador de serviços, etc. não podem ser considerados, como regra, negligentes, imprudentes ou imperitos. É que, o produtor contemporâneo, em especial aquele que produz em série, não é negligente, imprudente ou imperito. Ao contrário, numa verificação de seu processo de fabricação, perceber-se-á que no ciclo de produção trabalham profissionais que avaliam a qualidade dos insumos adquiridos, técnicos que controlam cada detalhe dos componentes utilizados, engenheiros de qualidade que testam os produtos fabricados, enfim, no ciclo de produção como um todo não há, de fato, omissão (negligência), ação imprudente ou imperita. No entanto, pelas razões já expostas, haverá produtos e serviços viciados/defeituosos. Vê-se, só por isso, que, se o consumidor tivesse de demonstrar a culpa do produtor, não conseguiria. E, na sistemática anterior do Código Civil (art. 159), o consumidor tinha poucas chances de ressarcir-se dos prejuízos causados pelo produto ou pelo serviço. Além disso, ainda que culpa houvesse, sua prova como ônus para o consumidor levava ao insucesso, pois o consumidor não tinha e não tem acesso ao sistema de produção e, também, a prova técnica posterior ao evento danoso tinha pouca possibilidade de demonstrar culpa. Poder-se-ia dizer que antes - por incrível que possa parecer - o risco do negócio era do consumidor. Era ele quem corria o risco de adquirir um produto ou um serviço, pagar seu preço (e, assim, ficar sem seu dinheiro) e não poder dele usufruir adequadamente ou, pior, sofrer algum dano. É extraordinário, mas esse sistema teve vigência até 10 de março de 1991, em flagrante injustiça e inversão lógica e natural das coisas. 8. O fato do produto e do serviço e o acidente de consumo Registro, por fim, e apenas corroborando tudo o que foi dito, que o CDC intitula a seção que cuida do tema como "Da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço", porque a norma, dentro do regramento da responsabilidade objetiva, é dirigida mesmo ao fato do produto ou serviço em si. É o "fato" do produto e do serviço causadores do dano o que importa. Costuma-se também falar em "acidente de consumo" para referir ao fato do produto ou do serviço. Algumas observações são necessárias a respeito disso. A expressão "acidente de consumo", muito embora largamente utilizada, pode confundir, porque haverá casos de defeito em que a palavra "acidente" não fica muito adequada. Assim, por exemplo, fazer lançamento equivocado no cadastro de devedores do Serviço de Proteção ao Crédito é defeito do serviço, gerando responsabilidade pelo pagamento de indenização por danos materiais, morais e à imagem. Porém, não se assemelha em nada a um "acidente"; comer algum alimento e depois sofrer intoxicação por bactéria que lá estava gera, da mesma maneira, dano, mas ainda assim não se assemelha propriamente a acidente. De outro lado, a lei fala em "fato" do produto. A palavra fato permite uma conexão com a ideia de acontecimento, o que implica, portanto, qualquer acontecimento. Lembro, de todo modo, que se tem usado tanto "fato" do produto e do serviço quanto "acidente de consumo" para definir o defeito. Porém, o mais adequado é guardar a expressão "acidente de consumo" para as hipóteses em que tenha ocorrido mesmo um acidente: queda de avião, batida do veículo por falha do freio, quebra da roda-gigante no parque de diversões, etc., e deixar fato ou defeito para as demais ocorrências danosas. Em qualquer hipótese, aplica-se a lei. O estabelecimento da responsabilidade de indenizar nasce, portanto, do nexo de causalidade existente entre o consumidor (lesado), o produto e/ou serviço e o dano efetivamente ocorrente. Fica, assim, demonstrada, a teoria - e a realidade - fundante da responsabilidade civil objetiva estatuída no CDC, assim como as amplas garantias indenizatórias em favor do consumidor que sofreu o dano - ou seus familiares ou, ainda, o equiparado e seus familiares.
Um dos temas que chamaram a atenção na semana passada foi a da tragédia que vitimou pessoas envolvidas em acidentes automobilísticos na cidade de São Paulo, ocasionados por excesso de velocidade. Excesso de velocidade é maneira de dizer, pois os automóveis que causaram os acidentes rodavam a velocidades só verificadas em corridas de automóveis: 150 km por hora ou mais. Irei abordar o assunto pela via do Direito do Consumidor, a partir de um paradoxo e também de um problema de lógica do sistema legal, levando em consideração o fato de que um automóvel não passa de um produto controlado e regulado pela legislação. Colocarei o tema para reflexão e análise dos leitores deste poderoso e querido rotativo Migalhas. Muito bem. Dizem os artigos 8º "caput" e 10 "caput" do Código de Defesa do Consumidor: "Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito". "Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança". Por uma série de normas e procedimentos, as autoridades responsáveis nos respectivos setores regulam a produção dos bens de consumo, visando não só assegurar sua qualidade, adequação, durabilidade, etc. como os vários aspectos que envolvem a segurança para evitar que os consumidores possam sofrer danos com seu uso. A questão que coloco, então, envolve conforme antecipei um dos paradoxos da sociedade capitalista, assim como aponta para um problema de implementação efetiva dos elementos lógicos que deveriam dar base ao sistema jurídico. Explico: Se a velocidade máxima permitida para trâfego por rodovias no Brasil - não só no Brasil, mas é o que nos interessa - é de 120 km por hora, como é que se pode permitir que a indústria automobilística produza e venda veículos que alcancem velocidades muito superiores a isso? (grifei o muito porque, efetivamente, na atualidade qualquer automóvel consegue atingir velocidades de 150, 180, 200 km por hora e mais). São essas, portanto, as perguntas: se a velocidade máxima permitida é de 120 km/hora, a lei não deveria simplesmente proibir a produção de veículos que pudessem atingir velocidades superiores? E mais, ainda que sem norma específica, ao vender tais veículos, a indústria não estaria infringindo as normas de segurança fixadas no CDC, conforme se pode ler nos artigos 8º e 10 que acima transcrevi? (Faço um parêntese para lembrar algo conhecido de todos, mas que não posso abordar para não fugir do assunto. Os veículos estão, como apontei, preparados para infringirem a lei e, além disso, algumas montadoras fazem anúncios publicitários oferecendo seus produtos realçando exatamente essa "qualidade", mostrando automóveis com muita potência e capazes de atingir altas velocidades e até mesmo em tempo recorde! E isso para seduzir seus potenciais compradores!). Deixo, assim, postas essas questões para reflexão dos leitores, lembrando, como gosto sempre de fazer, que para nós da área jurídica o que importa é o rigor do argumento, a lógica que lhe dá sustentação, assim como seu uso harmônico e coerente em relação ao sistema jurídico e sua teleológica razoabilidade. No entanto, prosseguindo no mesmo tema, trago ainda outro ponto que envolve o mesmo aspecto e que também está regulado no CDC. Enquanto não se proíbe a fabricação desses verdadeiros carros de corrida, resta perguntar e responder uma questão relativa a responsabilidade pelos acidentes ocasionados pelos verdadeiros bólidos dirigidos em velocidades acima do máximo permitido. Com efeito, dispõe o art. 12 do CDC: "Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos". É regra que trata da responsabilidade civil objetiva em caso de acidente de consumo. O CDC é bastante restrito quanto às excludentes de responsabilidade (na verdade, excludentes do nexo de causalidade) capazes de isentarem os fornecedores indicados. Para nossa análise, o que interessa é o previsto no inciso II do parágrafo 1º e o inciso III do parágrafo 3º do mesmo artigo. Leiamos os dois parágrafos: "§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em circulação." "§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro." O problema é excesso de velocidade. Esta pode se dar de duas formas: a) a norma de trânsito proíbe transitar acima de 60 km/hora ou 70km/hora, etc. e o motorista supera essas velocidades, por exemplo, transitando há 100km/hora e causa acidente; b) independentemente do limite estabelecido ou que seja o máximo de 120 km/hora, o motorista trafega há 150 km/hora, 180 km/hora ou mais. Pergunto: se o fabricante somente não responde quando comprove a culpa exclusiva do consumidor e, se este, assumindo os riscos e agindo com culpa, desenvolve velocidade muito acima do permitido e causa o acidente, não estar-se-ia diante de um caso de não exclusão da responsabilidade porque a culpa não seria exclusiva, mas concorrente, uma vez que o produto em si é a causa primária que permite a infração e o acidente correspondente? Veja-se que o legislador utilizou-se do advérbio "só" no "caput" do art. 12 do CDC para deixar claro que a excludente somente se verifica naquelas hipóteses e, por isso, quando se refere a ato do consumidor, exige a prova de sua culpa exclusiva. Assim, quando o consumidor trafega acima do permitido, mas dentro do possível admitido pelo sistema legal (por exemplo, há 100 km/hora), se causar acidente sua culpa é exclusiva, pois infringiu sozinho a lei. Ademais, nesse caso, a hipótese do inciso II do § 1º também socorre o fabricante, eis que o veículo está sendo usado dentro dos riscos que razoavelmente dele se esperam. O problema se dá quando o consumidor ultrapassa o máximo permitido de 120 km/hora. Sua culpa, nesse caso, é exclusiva ou concorrente? O embaraço surge aqui, pois se a indústria vende veículos que são capazes de superar - e em muito - o máximo da velocidade permitida (e, de certo modo, alguns anúncios publicitários e matérias especializadas de tevê, jornais e revistas até estimulam o movimento em alta velocidade) quando o consumidor (culpado evidentemente) trafega há mais de 120 km/hora a culpa não seria concorrente? E, nesse caso, o fabricante seria também responsável pelos danos? Quando fiz esse tipo de questionamento em sala de aula, surgiram comparações com armas tais como facas e revólveres. Disseram: se o consumidor usa a faca para matar ao invés de utilizá-la na cozinha ou o revolver também para matar ao invés de para se proteger, então age com culpa exclusiva. O fabricante não tem nenhuma relação com a ocorrência. Verdade. Mas, a diferença é que a faca é feita para cortar e o revólver para atirar. Com esses objetos o defeito se dá se eles não cumprirem o fim ao qual se destinam (cortar e atirar). Com o automóvel é diferente: ele nasce infrator, pois está apto a ir além do permitido legalmente. Poder-se-ia querer lançar toda culpa no consumidor em função da possiblidade real do meio. Entrega-se a ele um veículo que facilmente atinge velocidades excessivas, mas ao mesmo tempo se erige um comando legal (e moral) que deve agir em sua consciência para impedir que ele acelere mais quando atinja o limite máximo. Tubo bem. Mas, quando ele passa do limite o faz porque o meio permite e quem o fabricou é que, nesse ponto passa a agir com ele. Daí a concorrência de culpas. São essas minhas considerações e, pois, minha contribuição para um debate sobre essa questão do excesso de velocidade, desta feita pela via do Direito do Consumidor.
De tanto julgar processos e ver que ainda se examinam contratos de consumo como se privados fossem, normalmente verbalizando-se a noção no brocardo latino pacta sunt servanda, sou obrigado a tratar do assunto para ajudar, na medida do possível, a extirpar esse grande equívoco no que respeita aos contratos que envolvem relações jurídicas de consumo. E, já que falei de processos, sou obrigado a contar um caso. Certa vez, na Câmara a qual pertenço, julgamos um feito em que o consumidor reclamava de abusos praticados por um prestador de serviço. Examinando o contrato firmado, encontramos uma cláusula contratual, que era uma verdadeira pérola jurídica. Estava escrito: "Aplica-se ao presente contrato o Código de Defesa do Consumidor (lei 8078/90). Parágrafo único. No eventual conflito entre o Código de Defesa do Consumidor e as cláusulas aqui estabelecidas, prevalecem as cláusulas". Pode? Bem, infelizmente, cláusulas abusivas desse tipo são encontradas em todos os setores do mercado de consumo. Claro que a maior parte delas não é tão escancarada, mas são comuns e em grande quantidade. E sua ocorrência regular está ligada exatamente ao fato de que o consumidor não negocia nem consegue impor sua vontade representada em cláusulas porque, em matéria de consumo, não vige o sistema privatista do conhecido brocardo. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) está em vigor há mais de 20 anos! Não é pouca coisa, mesmo levando-se em consideração nossa cultura da "lei que pega e que não pega". Até porque, na hipótese, trata-se de lei que pegou. 20 anos. Mas, alguns aspectos da lei protecionista permanecem desconhecidos de muitos. Tenho dito que um dos problemas está atrelado àquilo que chamo de força da memória: grande parte dos operadores do Direito que militam atualmente foram formados na tradição privatista larga e profundamente estudada a partir do Código Civil de 1916 e também das demais normas, penais e processuais. Quando se dirigem ao contrato para fazer um exame de suas cláusulas os elementos mnemônicos se impõem e os fazem lê-las como se fossem um texto escrito e firmado aos moldes do regime privatista. E, pior: o que é uma virtude no CDC, sua generalidade e seu modo normativo principiológico, acaba sendo um entrave para o operador jurídico formado no antigo modelo privado. A simples leitura do texto da lei consumerista não é suficiente para sua compreensão. Uma retrospectiva histórica permite que se entendam as modificações operadas nos contratos, que acabaram desembocando naqueles típicos de consumo. Vejamos. Inicio colocando um ponto: o CDC, como sabemos, foi editado em 11 de setembro de 1990; é, portanto, uma lei que chegou muito atrasada para a proteção do consumidor. O vetusto Código Civil entrou em vigor em 1917, fundado na tradição do Direito Civil europeu do século anterior. Pensemos num ponto de realce importante: em relação ao Direito Civil, pressupõe-se uma série de condições para contratar, que não vigem para relações de consumo. No entanto, durante praticamente todo o século XX no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para resolver os problemas que iam surgindo e, por isso, o fizemos de forma equivocada. Esses equívocos remanesceram na nossa formação jurídica, ficaram na nossa memória influindo na maneira como nós enxergamos as relações de consumo, e, atualmente, temos toda sorte de dificuldade para interpretar e compreender um texto que é bastante enxuto, curto, que diz respeito a um novo corte feito no sistema jurídico, e que regula especificamente as relações que envolvem os consumidores e os fornecedores. Muito bem. O CDC, apesar de atrasado no tempo, acabou tendo resultados altamente positivos, porque o legislador, isto é, aqueles que pensaram na sua elaboração - os professores que geraram o texto do anteprojeto que acabou virando a lei n. 8.078 (a partir do projeto apresentado pelo, na época, deputado Geraldo Alckmin) - pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Olhemos, então, um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E essa sociedade tem uma origem bastante remota que precisamos pontuar, especialmente naquilo que nos interessa para entender a chamada sociedade de massa, com sua produção em série, na sociedade capitalista contemporânea. Parto do período pós-Revolução Industrial. Com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para mais pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização de produtos e serviços. Essa produção homogeneizada, "standartizada", em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção é um modelo que deu certo; veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial teve um incremento, e na Segunda Guerra Mundial se solidificou. A partir da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações, a melhoria dos transportes etc., o modelo se fortaleceu ainda mais e cresceu em níveis extraordinários. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passou a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos se pudesse considerar a noção de globalização. Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo, destaca-se uma que interessa ao presente artigo: a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e reproduz-se milhares, milhões de vezes. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta certa quantia em dinheiro na criação de um único modelo, e depois o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas. Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço, etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Quem planeja a oferta de um serviço ou de um produto qualquer, por exemplo, financeiro, bancário, securitário a ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o imprime e distribui milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela lei n. 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor: no seu art. 54 está regulado o contrato de adesão. E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços, o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. Este é o modo de produção de produtos e serviços de massa do século XX. Só que nós aplicamos, no caso brasileiro, até 10 de março de 1991, o Código Civil às relações jurídicas de consumo, e isto gerou problemas sérios para a compreensão da própria sociedade. Passamos a interpretar as relações jurídicas de consumo e os contratos com base na lei civil, inadequada para tanto, e como isso se deu até a penúltima década do século XX, ainda temos dificuldades em entender o CDC em todos os seus aspectos. E, nessa questão contratual, nossa memória privatista impõe que, ao lermos o contrato, pensemos pacta sunt servanda, posto que no Direito Civil essa é uma das características contratuais, com fundamento na autonomia da vontade. Sabe-se que nas relações contratuais no Direito Civil, pressupõe-se que aqueles que querem contratar sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo num pedaço de papel. São proposições organizadas em forma de cláusulas que, impressas num pedaço de papel, fazem surgir o contrato escrito. É a tentativa de delineamento objetivo de uma vontade, portanto, elemento subjetivo. É a escrita posta no contrato, o que o Direito Civil tradicional pretende controlar. Então, quando nos referimos às relações contratuais privatistas, estamos fazendo uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que devem representar a vontade das partes que lá estavam, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E, uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, o pacto deve ser respeitado. Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é completamente equivocado, porque o consumidor não senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC passou a controlar, e de forma inteligente. O problema é que a aplicação da lei civil, assim como a memória dos operadores do Direito, atrapalha a interpretação. Então esta era, foi e ainda é uma situação que acabou afetando o entendimento da lei. Se não atentarmos para esses pontos históricos do fundamento da sociedade contemporânea, ainda teremos muita dificuldade de interpretar aquilo que o CDC regrou especificamente. Repito para finalizar e lutando contra nossa equivocada memória: em contrato de consumo deve-se esquecer o brocardo pacta sunt servanda.
Uma questão jurídica que tem gerado polêmica no tema da responsabilidade civil do transportador é a da definição do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão. Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo - que, diga-se, não lhe pertence - e nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração (não abordarei os casos de monopólio e até oligopólios, nos quais o risco de perda são muito pequenos, o que, claro, não elimina a responsabilidade de mesma base). O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz por que quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado podem ocasionar. O outro lado do risco da atividade é o do risco social engendrado pela exploração do mercado. A simples colocação de produtos e serviços gera esse risco. Inexoravelmente, a existência em si do empreendimento traz potencialmente risco de danos às pessoas. Decorre disso que, quem se estabelece deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar não só para buscar evitá-los, mas também para calcular suas perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador de pessoas deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente irão ocorrer. O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente a responsabilidade". Pergunto: existe incoerência ou contradição entre esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está claramente se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando os mesmos digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantém o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador nem por ele evitado. Todavia, não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. O risco da atividade implica na obrigação imposta ao empresário para que ele faça um cálculo, da melhor forma possível das várias possibilidades de ocorrências que possam afetar seu negócio. Certos fatos, necessariamente implicam agravamento do risco em função de sua latente possibilidade de ocorrência e, por isso, uma vez ocorrendo, não excluem o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o caso das ocorrências da natureza, tais como tempestades e nevoeiros, no caso do transportador aéreo. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno - que, aliás, ocorre constantemente - é integrante típico do risco daquele negócio. Quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento, caso fortuito ou força maior, que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. E, é aqui que eu coloco o caso do vulcão. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode, de modo algum, ser previsto. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas geradas pelas cinzas do vulcão e que impedem a navegação. Resguardados, claro, os direitos dos passageiros de remarcação de passagens e cancelamento da reserva com recebimento imediato dos valores pagos. Já que estou tratando desse assunto, não posso deixar de abordar uma questão bastante discutida, relativamente ao evento de terceiro nessa questão da responsabilidade objetiva. Para excluir o nexo de causalidade, há necessidade do fato do terceiro ser de tal modo que não pudesse ser previsto como possibilidade dentro da estrutura do risco em cada espécie de negócio. Serve de exemplo o caso de ataques feitos por vândalos às composições ferroviárias, atirando pedras nos passageiros. Penso que a doutrina mais abalizada é aquela que entende que se trata de risco da atividade previsto no modo de oferta do serviço, de tal maneira que o usuário atingido deve ser indenizado pelo transportador. E, por causa desse exemplo, vale que se dê uma explicação, pois o risco da atividade muda com o passar do tempo. Há cerca de vinte ou trinta anos, quando esses eventos não se davam com regularidade, poder-se-ia dizer que eram fatos típicos de terceiros a excluir o dever de indenizar porque não faziam parte do cálculo do risco. Mas, na medida em que foram se tornando mais frequentes, não puderam deixar de ser considerados. E, lamentavelmente, esse tipo de vandalismo se multiplicou. Desse modo, acabaram sendo incorporados no cálculo do risco, pois não podiam mais ser ignorados. Eles passaram a existir como possibilidade de existência no âmbito daquele negócio. O evento, apesar de inevitável, é atualmente previsível. O evento produzido por terceiro capaz de evitar a responsabilidade tem de ser aquele, não só inevitável, como aquele que não faça parte do risco da atividade, isto é, que não tenha qualquer relação com a atividade do fornecedor. Cito um exemplo: suponha-se que uma pessoa queira se vingar de um inimigo e resolva matá-lo. Determinado, ele segue o desafeto até o cinema e lá dentro causa-lhe a morte. Trata-se de um evento que incidentalmente ocorreu no local onde se prestava um serviço, mas que com ele não tem nenhuma relação e nenhuma conexão. É fato típico de terceiro a excluir a responsabilidade do prestador do serviço. E, para terminar, tenho de falar dos passageiros que foram obrigados a mudar seus planos de viagens por causa do vulcão. Os cancelamentos envolveram e envolvem as estadias nos hotéis, flats, pousadas e demais ofertas de hospedagem, o transporte aéreo, e também o terrestre e marítimo a eles ligados, os traslados terrestres, os passeios previamente contratados, etc.. A pergunta que se faz é: pode o fornecedor cobrar multa do consumidor que faz o cancelamento ou reter a entrada já paga? Ou, pior, pode se negar a aceitar o cancelamento? A resposta é evidentemente não. Normalmente, nesse tipo de atividade, quando o consumidor desiste de empreender a viagem, é permitido que se cobre uma multa pela desistência, desde que esta não seja abusiva. O percentual dessa multa varia de acordo com as circunstâncias de cada negócio empreendido e somente pode ser avaliado em cada caso concreto. Por exemplo, a cobrança de 10% do valor da diária ou do passeio é considerado legal. Mas, no caso tratado, como disse, nada pode ser cobrado. Isto pelo mesmo motivo analisado neste artigo. Quando o empresário do setor hoteleiro se estabelece e passa a oferecer seus produtos, evidentemente, assume o risco de sofrer certas perdas advindas de cancelamentos legítimos e também de não efetuar vendas. Esse risco é inerente à própria atividade e deve fazer parte, como mostrei, do cálculo do risco/custo/benefício efetuado. Lembro ademais que, como risco típico da atividade, o mesmo não pode ser repassado ao consumidor (anoto um dos direitos básicos do sistema capitalista: o consumidor não assume riscos. Apenas adquire os produtos e serviços oferecidos e deles desiste dentro das regras jurídicas estabelecidas). Repito: no caso, o risco típico do não preenchimento das vagas oferecidas, da não entrega do produto ou do serviço prometido é do fornecedor. Some-se a isso, com mais força de razão, o fundamento legal e legítimo da desistência operada pelo consumidor, que se viu obrigado a fazê-la por razões alheias à sua vontade.
quinta-feira, 9 de junho de 2011

Afinal, dinheiro manchado vale ou não?

Tenho de confessar algo a vocês. Muitas histórias reais que narro aqui e que servem de base para meus artigos são sugeridas por meu amigo Walter Ego. Ele, aliás, reclamou que eu nunca o citei. Pronto. Está citado. E o artigo de hoje tem por base algo que aconteceu com ele. (Sabem, se alguém é um consumidor típico, é o W. Ego, como eu o chamo. Ele compra de tudo, experimenta de tudo e, como uma maldição rogada diretamente por Murphy, se alguma coisa tiver de dar errado é com ele que dá). Na semana passada ele me veio com esta: "Sabe Rizzatto, se não bastassem todas as agruras que eu enfrento em fila de banco - ele reclama, mas adora uma fila - veja o que me aconteceu. Fui sacar dinheiro no caixa eletrônico e duas notas estavam manchadas com tinta rosa. Dirigi-me ao caixa para pedir a troca, mas ele reteve as duas e disse que ia mandar para o Banco Central. Eles iam examiná-las e se ficasse comprovado que a mancha fora ocasionada acidentalmente, eu seria reembolsado. Protestei, mas não adiantou. Então, eles ficaram com minha grana... Eu precisava do dinheiro. Como é que fica?" Bem, eu prometi responder aqui na coluna, até porque a questão pode envolver dezenas de consumidores, como aliás já alertou o Procon de São Paulo (clique aqui). Começo lembrando que as relações entre consumidor e banco são típicas de consumo por expressa disposição da lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), em vigor desde 11/3/91, confirmada pela súmula de n° 297, do STJ, e pela decisão da ADIN nº 2591-1, do STF. Dentre os vários produtos e serviços oferecidos pelos bancos está o de entregar ao consumidor moeda corrente, isto é dinheiro, papel-moeda. E dinheiro é produto material (CDC, art. 3º, §1º). A pergunta que se faz é: dinheiro manchado é produto impróprio ao uso e consumo? As pessoas estão acostumadas a receberem e a passarem cédulas novas e usadas com algumas imperfeições: riscos, pequenos rasgos, etc.. Mas, elas acabam circulando regularmente. O CDC diz que são impróprios ao uso e consumo, dentre outros tipos, os produtos deteriorados e avariados (§ 6º, II, art. 18) e também "os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam" (§ 6º, III, mesmo art.). Foi o Banco Central do Brasil (Bacen) que definiu que cédulas danificadas por dispositivos antifurtos (manchadas por tinta) são impróprias (ver abaixo). Logo, estão enquadradas na hipótese legal acima apontada. Vejamos mais de perto o que é uma cédula de dinheiro. Trata-se de papel-moeda, que representa um certo poder aquisitivo - ou seja, por intermédio dela efetua-se a compra de produtos e serviços, paga-se dívidas, etc.. Quando o consumidor vai retirá-la no banco, ela traduz os depósitos monetários que ele, consumidor, possui naquela instituição financeira ou - o que para nossa hipótese dá no mesmo - representa o crédito que o banco lhe outorgou - mediante cheque especial, empréstimos, desconto de títulos, etc.. Ou seja, esse produto material, dinheiro, representa o poder aquisitivo de seu possuidor e quando vai para as mãos dele em papel moeda significa o saque que ele fez de seu patrimônio - real, relativo ao depósito ativo e disponível ou virtual, advindo do crédito. Em ambos os casos, esse produto lhe pertence do mesmo modo que já lhe pertencia antes de possuí-lo fisicamente. Assim, evidentemente, quando o consumidor vai buscar papel moeda no banco, esse produto não pode estar deteriorado, avariado e impróprio ao uso e consumo. Se estiver, o CDC lhe garante o direito de troca. É o que dispõe o art. 18. Leiamos o que importa: "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas." A lei, é verdade, oferece um prazo de 30 dias para o fornecedor sanar o vício (§ 1º do art. 18). Todavia, esse prazo não existe quando se trata de produto essencial (§ 3º do mesmo artigo). Neste caso, o consumidor pode escolher qualquer das três alternativas estampadas no § 1º do art. 18, dentre as quais a de exigir "a substituição imediata do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso" (inciso I). E, claro, ninguém pode duvidar que dinheiro é produto essencial! Muito bem. Acontece que o Bacen, como adiantado, baixou resolução dizendo o seguinte: "Não serão objeto de reembolso ao portador as cédulas danificadas por dispositivos antifurto" (resolução nº 3.981/2011, art. 1º, § 2º). Sei que meu amigo W. Ego ao ler este trecho dirá: "Como? O dinheiro que é meu, que eu saquei, retirando do saldo de minha conta não vale nada? Até me lembra o dia em que fui assaltado na porta do banco...". Há mais. O próprio Bacen, por intermédio da circular 3538/2011 reconhece que o dispositivo antifurto pode ser acionado acidentalmente: "Art. 9º. - No caso de acionamento acidental do dispositivo antifurto ou de tentativa frustrada de furto ou roubo, as instituições financeiras ressarcirão o Banco Central do Brasil pelos serviços de análise e reposição das cédulas danificadas, observando os seguintes parâmetros (...)". E disciplina que, as cédulas retidas deverão ser encaminhadas para o Bacen (art. 4º), que após análise informará do resultado a instituição financeira (art. 10). O banco tem até 20 dias para encaminhar a cédula no caso de retenção ocorrida nas praças onde o Bacen possua representação e até 30 dias nas demais localidades O reembolso ao portador somente será feito se o Bacen, após exame, concluir que a cédula foi danificada acidentalmente (inciso I, parágrafo único, art. 11). Sem fixação de prazo, o que somado todo o trâmite pode significar bastante tempo. Não abordarei a questão da segurança pública e dos problemas que vêm atingindo os caixas eletrônicos. É questão que cabe aos bancos e às autoridades públicas resolverem. O que interessa é que o produto - papel moeda - armazenado no caixa pertence ao banco até o momento em que é entregue ao consumidor na hora do saque. Neste momento, o produto tem que estar próprio ao uso e consumo. Se o banco utiliza-se de dispositivo antifurto para se garantir contra larápios, isso é problema exclusivamente dele. É algo que decorre do simples exercício do risco de sua atividade. Ora, como se sabe, o risco da atividade não pode ser repassado ao consumidor de modo algum. Se o banco é vítima dos ladrões, isso não implica que ele possa repassar o prejuízo que sofreu ou possa vir a sofrer à seus clientes. Assim, se o consumidor retira cédulas do caixa eletrônico e elas estão manchadas, cabe ao banco trocá-las tão logo procurado pelo consumidor. Na boca do caixa, sem delongas. Claro que pode e deve o banco identificar o portador - aliás, como determina a referida circular 3.538 (art. 3º). Mas, uma vez feita a identificação, as cédulas devem ser trocadas por decorrência da incidência do § 3º do artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor c.c. inciso I do § 1º do mesmo artigo, conforme acima apontei. Concluo, portanto, dizendo que, segundo penso e conforme expus, a resolução do Bacen, assim como a circular, nos pontos aqui examinados, violam os direitos do consumidor estabelecidos no CDC.
quinta-feira, 2 de junho de 2011

O cheque pré-datado e o Direito do Consumidor

O cheque pré-datado e o Direito do Consumidor Cuido hoje de vários aspectos envolvendo os direitos do consumidor que passa cheque pré-datado, essa invenção nacional que é um verdadeiro sucesso. Seu uso está regrado no sistema legal, estabelecido em base contratual e a violação do pactuado gera danos indenizáveis. Vejamos: 1. Do cheque O cheque está regulamentado no Brasil pela lei Federal nº 7.357, de 2 de setembro de 1985, que normatiza uma série de disposições relativas ao mesmo, tais como sua emissão, sua transmissão, a garantia (o aval), a apresentação, o pagamento e a quitação, etc.. Essa norma, inclusive, incorporou num texto escrito algumas práticas comerciais relativas a seu uso, como v.g., a do cheque cruzado. 2. Do cheque pré-datado O "cheque pré", como é conhecido (alguns falam "pos-datado"), nada mais é, de fato, do que um financiamento direto do lojista (ou credor) ao consumidor. Mas com várias vantagens: não há qualquer burocracia, pois não se assinam contratos, títulos, etc.; não há acréscimo de impostos, vez que não é matéria regulada pela legislação fiscal ou tributária (ele está caracterizado apenas quanto à forma de quitação do preço e não como meio de financiamento); sua operacionalidade é excelente, visto que só precisa ser levado ao banco. Nenhum outro tipo de financiamento conhecido é tão prático e ágil (com exceção, claro, do cartão de crédito). 3. Da lei do cheque - Das disposições legais pertinentes e sua interpretação 3.1 A previsão legal Conforme já apontei, o cheque está regulamentado na lei nº 7.357. O art. 32 e parágrafo único dessa lei dispõem, "in verbis": "Art. 32. O cheque é pagável à vista. Considera-se não escrita qualquer menção em contrário. Parágrafo único. O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação". 3.2 A interpretação À primeira vista, lendo-se apenas o "caput" do artigo 32, pode-se pensar que um cheque pré será considerado um título que tenha uma condição não-escrita. Contudo, o parágrafo único do mesmo artigo não permite essa interpretação, como se verá. Mas, ainda que assim não fosse, e se tivesse que interpretar a data previamente fixada no cheque como não-escrita, tal fato não desnaturaria de forma alguma o título, que ainda poderia ser cobrado. Aliás, é o que expressamente diz a jurisprudência. Por exemplo, a 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial, cujo relator foi o Ministro Gueiros Leite, já decidiu: "a cláusula que torne à ordem, e não à vista é considerada não-escrita, de modo que pode desnaturar o cheque, mas não o título em si" (Boletim AASP nº 1.661, p. 253). Porém, é mais que isso, pois há uma outra forma de interpretar que me parece ser a mais adequada e que patenteia melhor ainda a possibilidade de emissão do cheque pré-datado. É que o parágrafo único do art. 32 prevê expressamente que o cheque possa ser emitido com outra data que não à vista. Leia-se: "o cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação". Ora, se a própria lei prevê que o cheque pode ser apresentado antes da data de emissão, significa logicamente que ela admite que o cheque foi emitido para data posterior. A questão é de lógica básica. Portanto, a interpretação do art. 32 com seu parágrafo único nos diz que não só o cheque pré-datado pode ser emitido, como se for apresentado ao banco antes, ele vale, só que nesse caso a data da apresentação passa a ser considerada como se a data da emissão fosse (o que, como se verá, viola o pacto firmado gerando danos ao emitente). Contudo, além desse aspecto, existe ainda outro que protege o emitente do cheque pré, determinando que este somente possa ser apresentado na data combinada. É o elemento contratual que envolve a transação, que é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, conforme ver-se-á a seguir. 4. A Transação é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) 4.1 Contrato verbal Inobstante o fato da legitimidade desse tipo de título como meio de pagamento saltar aos olhos, há ainda outro elemento importante: o pagamento com cheque pré normalmente é, do ponto de vista jurídico, um contrato verbal em que o comprador, ao adquirir um produto ou serviço, paga o preço com um ou mais títulos (cheques), sendo certo que o vendedor se compromete a somente resgatar o título (isto é, apresentar o cheque pré no banco) nas datas acertadas entre ele e o comprador. Tudo verbal, mas tudo rigorosamente legal. (Por vezes, acompanhado de recibo ou pedido discriminando os cheques e/ou nota-fiscal fazendo o mesmo). As garantias são recíprocas: o comprador promete que terá fundos por ocasião do saque; o vendedor promete que só apresentará o cheque na data acertada. Na verdade, se nessa transação houver alguma quebra, ela será de dois tipos: ou o comprador não terá fundos na data aprazada; ou o vendedor quebrará a promessa e apresentará o cheque antes. Em ambos os casos a quebra é contratual. 4.2 A oferta Além disso tudo, a partir de 11 de março de 1991, com a entrada em vigor do CDC (lei nº 8.078/90), a transação efetuada entre o vendedor e o comprador, firmando a forma de pagamento através do cheque pré-datado, passou a ter regulação expressa em lei, mediante a figura da oferta. Com efeito, estabelece o art. 30 da legislação protecionista das relações de consumo, in verbis: "Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado". Assim, verbal ou escrito, o contrato foi celebrado, e pelo menos a operação de compra e venda foi efetuada. Como a oferta é parte integrante do contrato por força de lei, isto é, pelo estabelecido no art. 30 do CDC, e como tanto o preço quanto a forma de pagamento são parte da oferta do vendedor, eles integram o negócio realizado. Daí conclui-se que, se o vendedor oferece ao comprador como forma de pagamento a entrega de cheque que ele (vendedor) só vai levar ao banco em determinado dia futuro, isso é verdadeira cláusula contratual, que não pode ser por ele (vendedor) quebrada, sem que seja responsabilizado pelo rompimento. 4.3 A quebra da promessa Abordo, então, agora, outro aspecto relevante. É o da quebra da promessa e dos danos dela proveniente. Se o cheque for apresentado pelo vendedor na data combinada e não tiver fundos, ele tem a seu dispor as alternativas legais para tentar receber seu crédito (civis e penais) e que são por demais conhecidas, não necessitando desenvolvimento aqui. Contudo, é importante abordar a questão dos danos relativos a quebra da promessa por parte do vendedor ou, em outras palavras, pergunta-se: o que acontece se o vendedor descumpre o pactuado e apresenta o cheque pré, antes do dia combinado? Claro que a resposta somente pode ser a da responsabilização do vendedor pelos eventuais danos que sua quebra de promessa venha a acarretar ao consumidor. A responsabilidade do vendedor é evidente, tanto que a questão foi sumulada no Superior Tribunal de Justiça: "Súmula nº 370. Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado". De todo modo, examinemos as consequências da apresentação antes da data aprazada. Duas coisas podem acontecer: a) o cheque ter fundos e ser pago; b) o cheque não ter fundos e ser devolvido pelo banco. Em ambos os casos o consumidor é prejudicado. No caso da hipótese "a" ele sofre: a.1. Um prejuízo material direto e imediato, pois passa a não dispor de dinheiro que lhe pertencia; a.2. Simultaneamente, ou logo após, o consumidor pode sofrer uma série de outros danos, tais como não ter mais a importância sacada indevidamente para arcar com outros compromissos, o que pode lhe gerar ainda mais danos; a.3. Outros cheques de sua emissão podem vir a ser devolvidos por falta de fundos, na medida em que eles podem já estar em circulação, e o estavam porque o consumidor sabia que tinha suficiente provisão de fundos na sua conta corrente; a.4. O consumidor pode, também, sofrer danos materiais e morais como decorrência dos fatos narrados em a.1, a.2. e a.3. No caso da hipótese "b" ele sofre o dano de pronto, já que terá cheque devolvido com todas as consequências negativas que isso acarreta: perda de credibilidade; anotações no prontuário bancário; fechamento da conta, se o cheque for devolvido de novo. Danos materiais (relativos a despesas cobradas pelo banco) e morais. Portanto, em todas essas hipóteses a responsabilidade do vendedor é objetiva e decorre do descumprimento da oferta. 5. Conclusão À vista do exposto, forçoso é concluir que não só há impedimento legal para a emissão do cheque pré-datado, isto é, emissão do cheque para apresentação ao banco em data futura diferente da do dia real (momento histórico-fatual da emissão), bem como a operação da compra e venda de produtos ou serviços, que tem por forma de pagamento do preço a entrega de cheque pré-datado, é transação lícita, legal e expressamente regulada pelo CDC. A quebra da promessa oriunda dessa transação dá-se por duas formas: ou o cheque pré na data da apresentação (correspondente ao dia em que o vendedor prometeu fazê-la) não tem fundos; ou o vendedor apresenta o cheque antes da data acordada, prejudicando o consumidor. Em ambos os casos, as formas de ressarcimento são garantidas legalmente. Na primeira hipótese o vendedor pode cobrar a dívida extra ou judicialmente ou, caso previsto e ele queira, pode desfazer o negócio; e no outro caso o consumidor pode pleitear indenização por perdas e danos materiais e morais (em matéria atualmente sumulada como se viu) e/ou, se possível e/ou ele queira, propor o desfazimento do negócio com devolução das importâncias eventualmente pagas anteriormente, em valores atualizados.
Nós, adultos, em matéria de consumo, estamos praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de ilusão e controle. Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo de terror que nos obriga a consumir, consumir e consumir é o da tomada de consciência do processo histórico, que se instituiu a partir das chamadas revoluções burguesa e industrial e que vem sendo oferecida como um projeto de liberdade. Falsa liberdade, na medida em que quase todo seu exercício resume-se a adquirir produtos e serviços cuja escolha é limitada àquilo que é decidido unilateralmente pelos fornecedores. Vamos, pois, alguns de nós adultos, lutando contra o poder opressivo do mercado e outros nem se dando conta desse aprisionamento. Muito bem. Pergunto: é esse o futuro que desejamos para nossas crianças? É esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indivíduos medem-se pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e não por aquilo que são? Claro que nem toda culpa é do mercado, mas com certeza o modelo que faz com que o cidadão aliene-se nas compras e acredite na publicidade, o atordoa de tal modo que ele, jogado à própria individualidade, não sabe como agir. Vendo tevê, por exemplo, assiste-se ao mundo perfeito dos anúncios publicitários: o de bancos mostrando seus gerentes sempre sorrindo e oferecendo vantagens a seus clientes, enquanto na realidade estes são enganados a torto e a direito, assinando contratos com cláusulas abusivas, recebendo cobranças de taxas absurdas, sendo obrigados a aderirem a operações casadas ilegais, etc.. Há, também, a propaganda de veículos maravilhosos, que nunca quebram; de telefones celulares mágicos; de serviços telefônicos excelentes. etc.; enfim, um longo desfile de produtos e serviços muito diferentes do real. Há, pois, dois mundos: o da publicidade e o dos fatos. É incumbência dos adultos conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para tentar desvendar as enganações e discernir sobre o que é válido e verdadeiro. Mas, refaço a pergunta: e nossas crianças, como estão posicionadas nesta sociedade capitalista? Como é que elas recebem o espetacular assédio do marketing e suas armas? Eu já tive oportunidade de comentar que tramita há muito tempo no Congresso Nacional projeto de lei que pretende proibir ou, ao menos, limitar a publicidade de produtos e serviços dirigida às crianças e que recebeu substitutivos proibindo a publicidade e outras formas de comunicação mercadológica (até 12 anos incompletos), controlando e limitando àquelas dirigidas aos adolescentes (de 12 até 18 anos) ou alterando em parte as normas relativas sobre o assunto que estão no Código de Defesa do Consumidor (art. 37). Certamente, a limitação ou o até mesmo o fim da publicidade de produtos e serviços dirigida às crianças e adolescentes seria recebido como uma dádiva pelos milhões de mães e pais que lutam duramente para a mantença de suas famílias e sofrem com o assédio dessas ofertas. Vejo que alguns parlamentares têm gasto um bom tempo com projetos polêmicos e duvidosos, com o argumento de que eles beneficiariam as crianças1. Não seria, então, o caso de nossos representantes debruçarem-se sobre projetos sérios como o que acabei de referir? Seria um belo trunfo político, não? Mas, enquanto isso não vem (se é que virá), cabe aos pais o dever de vigilância. É verdade que muitos desses pais já foram absorvidos por todas as formas de consumo e, inclusive, utilizam-se do próprio mercado para controlarem seus filhos, o que é uma pena. Não que seja simples. Ainda que, por exemplo, os pais tenham o costume de limitar a exposição de seus filhos à tevê, basta um pouco para a percepção do ataque (uma verdadeira guerra de anúncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, se o filho tem seu uso de internet limitado, é suficiente também apenas algum tempo de navegação para estar sujeito a uma explosão de ofertas. E, se não bastasse isso, há toda a sedução do merchandising feito em programas de tevê, filmes de cinema, vídeo e até teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal, vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato é inevitável e não há mesmo nada de errado em frequentar shoppings, cinemas, teatros, viajar, assistir tevê, etc.. Isso tudo, digamos assim, no campo das ofertas lícitas. Mas, existe também uma enormidade de campanhas e anúncios enganosos e abusivos dirigidos diretamente às crianças. Veja. No excelente documentário dirigido por Estela Renner intitulado "Criança, a alma do negócio", há vários flagrantes de enganosidade e abusividade. Num deles, acontece mais ou menos o seguinte: quatro meninas aparentando entre 5 e 8 anos vendem produtos indicando o que seria mais "descolado", mais "bacana". Elas usam a expressão "fashion". A primeira, mostrando uma sandália e depois dançando, diz: "Fashion é se produzir". Uma outra, mostrando uma bolsa, diz: "Fashion é ter muitos amigos" e depois pega um celular e finge conversar. Uma terceira ensina: "Fashion é ouvir aquele som que a gente gosta" e coloca um fone de ouvido e passa a dançar. Bem, aparentemente nada grave até aí. Porém, a quarta menina, a mais nova, diz "Fashion é brincar". Nesse instante as demais em tom de crítica olham para ela e gritam: "O quê!!??". Digo eu: o quê? Criança que quer brincar está errada? O problema da publicidade em geral dirigida às crianças e também da publicidade enganosa e abusiva é que elas criam um jogo sujo colocando as crianças (isto é, os filhos) contra os pais. Estes, inseridos nesta sociedade capitalista - e também eles, como acima referi, sujeitos aos estímulos, malandragens e manipulações do marketing - entram nesse jogo sem perceber e muitas vezes por se sentirem culpados. Alguns pais trabalham o dia inteiro e tem pouco tempo livre para dedicarem aos filhos; outros procuram propiciar aos filhos o que nunca tiveram - o que não é raro, porque a maior parte dos produtos e serviços existentes atualmente não existiam na infância dos pais e com a produção em massa muitos deles tornaram-se acessíveis e não eram outrora. Pressionados pelos filhos, os pais compram e dão os produtos (no documentário de Estela Renner, vê-se como muitos pais endividam-se para comprar simples produtos descartáveis e/ou que são descartados pelos filhos depois de pouco uso). Desse modo, as crianças vão sendo inseridas no mundo capitalista dos produtos desnecessários muito prematuramente e também vão perdendo a infância antes da hora. Como observa a educadora Claudia Calmon, com toda razão: a relação de pais e filhos passa a ser intermediada por objetos - produtos adquiridos com sacrifício ou não. Se for com sacrifício, acresce-se à intermediação feita pelo objeto o sentimento de culpa. As crianças, de seu lado, aprendem a se relacionar pedindo coisas e os dois lados trocam muitas vezes a atenção e o carinho por produtos. E, há mais (muito mais). Certa vez, um anúncio de tevê de um boneco o colocava voando em cena. Em baixo, em letras minúsculas e rapidamente, aparecia: "Meramente ilustrativo". Quer dizer, o boneco não voa de verdade. A criança vê o anúncio e com quatro, cinco anos, nada lê, evidentemente. O pai compra o brinquedo e a criança frustrada percebe que ele não voa. Daí culpa o pai. Diz que ele comprou o boneco errado. Ora, o que este pode fazer? Como é que ele explica as notas de rodapé do anúncio? Não consegue. E o conflito instaurado não tem solução. Repito: Não é mesmo fácil para os pais lutarem contra tudo isso. E, até que o legislador colabore, a difícil lição de casa precisa ser feita. Cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos. É comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem da maior parte deles. Pode ser um bom precedente para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. E, evidentemente, cabe aos pais dizer não. A criança pode até se frustrar, mas será por algo válido, uma boa experiência que ela levará consigo, pois na vida adulta ela perceberá que a frustração é um elemento comum no jogo social. Os pais são, pois, os primeiros responsáveis por alertar seus filhos contra o assédio feito pelo marketing infantil hoje tão sofisticado e difundido. Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e serviços. Qual deve ser a função do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve comprá-los sem exagero. As crianças, se pudessem, agradeceriam as lições. Para terminar, quero indicar para quem tiver interesse o site de uma associação que faz um ótimo trabalho na defesa dos direitos das crianças consumidoras. Chama-se Instituto Alana (clique aqui). Visite que vale a pena. _________ 1Falo da tentativa de aprovação da chamada lei da palmada, que pretende coibir que os pais recorram a recursos físicos mínimos na educação doméstica. Consigno, desde logo, que não há que se confundir contenção física a restrições disciplinares muitas vezes necessárias com surras e a violência física já regulada de há muito pela legislação penal pátria.
Na segunda-feira p.p., após consertar o texto deste artigo, li neste querido e potente órgão informativo, o Migalhas, uma nota sobre decisão do Colégio Recursal de Santos (do TJ/SP) que deu provimento ao recurso de uma empresa de varejo via internet, revertendo decisão que a condenava a entregar um fogão pelo preço irrisório de R$ 2,10, cancelando também a condenação no pagamento de indenização por danos morais. (clique aqui) Segundo consta, uma consumidora acessou o site administrado pela empresa e viu um anúncio de um fogão de marca conhecida vendido pelo preço de apenas R$ 2,10. Ela, então, aproveitou a situação e efetivou a compra do eletrodoméstico, via transação eletrônica, pagando R$ 2,10 mais o custo do frete de R$ 84,56. Alguns dias depois, recebeu um comunicado da empresa falando do erro inserto no anúncio: o preço do fogão era, na realidade, R$ 2.099,00. A empresa também informou que o pagamento seria ressarcido de imediato, com juros e correção monetária. No entanto, a compradora se recusou a receber o estorno e ajuizou ação de obrigação de fazer cumulada com danos morais, para obrigar a empresa a entregar o fogão pelo preço pago, mas afinal acabou perdendo a demanda, aliás, muito bem decidida pelo Colégio Recursal. Boa coincidência, eis que o caso é típico de violação ao princípio da boa-fé objetiva previsto no art. 4º, III do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e demonstra como a simples e direta aplicação desse princípio pode resolver alguns casos judiciais. A propósito, anoto que a violação ao princípio pode ser feita tanto por fornecedores (mais comum, fruto da mentalidade atrasada do enganar para ganhar) como por consumidores (como no caso do erro evidente do anúncio, a partir do qual a consumidora quis "levar vantagem", como se diz)1. No presente artigo demonstrarei o papel desempenhado pela boa-fé objetiva na construção do sistema jurídico e também na aplicação efetiva dos princípios e normas jurídicas na sociedade capitalista contemporânea. 1. O comportamento humano previsto na norma A hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação; os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do "status quo"; os que vêem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas. Realmente, são várias as teorias que pretendem dar conta do fenômeno produzido no seio social enquanto ação humana ou comportamento humano na sua correlação com as normas em geral e jurídica em particular. Pois bem. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas fórmulas gerais que sempre se repetem como "topói", isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto2. Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário3. 2. O modelo da boa-fé objetiva Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional. Acontece que, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver racionalmente o problema estudado, ele lança mão dessas fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução do problema. Dentre as várias alternativas, chamamos atenção aqui para "standarts", tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "homem comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom senso", "senso comum", etc. É importante notar que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas aqui como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma inconsciente - intuitiva - um foro de legitimidade, eis que produzidos na realidade como um fato inexorável. Falemos, pois, de um "topos" fundamental que, inserido no contexto linguístico dos operadores do Direito, estudiosos da sociedade capitalista contemporânea, acabou, no Brasil, por ser erigido a princípio na lei 8.078/90, foi adotado pelo Novo Código Civil e vem sendo reconhecido como elemento da base do próprio sistema jurídico constitucional. Referimo-nos ao, já agora, conhecido "standart" da boa-fé objetiva. É necessário deixar-se claro que, quando se fala em boa-fé objetiva tem-se que afastar o conteúdo da conhecida boa-fé subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Lembremos os exemplos encontrados no direito civil pátrio, tais como o do art. 1.5614, que cuida dos efeitos do casamento putativo, dos arts. 1.2015 e 1.2026, que regulam a posse de boa-fé, do art. 8797, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido, etc. Sendo assim, a boa-fé subjetiva admite sua oposta: a má-fé subjetiva. Vale dizer, é possível verificar-se determinadas situações em que a pessoa age de modo subjetivamente mal intencionada, exatamente visando iludir a outra parte que, com ela, se relaciona. Fala-se, assim, em má-fé no sentido subjetivo ou o dolo de violar o direito da outra pessoa envolvida. Destarte, pode-se, então, constatar que a boa-fé subjetiva e a má-fé subjetiva são elementos que compõem a conduta da pessoa e que podem ser verificadas, mas com toda sorte de dificuldade, posto que demanda uma apuração interna (subjetiva) da pessoa que pratica o ato (tanto a lesada como a causadora da lesão). Mas com a boa-fé objetiva é diferente: ela independe de constatação ou apuração do aspecto subjetivo (ignorância ou intenção), vez que erigida à verdadeira fórmula de conduta é capaz de, por si só, apontar o caminho para solução da pendência. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva dos contratantes. Em decorrência disso, pode-se, grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade. E quando se trata de relação jurídica de consumo, esses parâmetros de lealdade e honestidade visam também o estabelecimento do equilíbrio entre as partes, mas não o econômico, como pretendem alguns e sim o equilíbrio das posições contratuais, uma vez que dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, como regra, há um desiquilíbrio de forças. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando o interesse das partes. Lembro que o novo Código Civil também incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta aos contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 4228 e no art. 113, que cuida da interpretação dos negócios jurídicos9. Além disso, é importante apontar que a boa-fé objetiva é também fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e deve ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. Este equilíbrio - tipicamente caracterizado com um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto -, é verdade, não se apresenta como uma espécie de tipo ideal ou posição abstrata, mas, ao contrário, deve ser concretamente verificável em cada relação jurídica (contratos, atos, práticas, etc. e como demonstra o caso da compra do fogão narrado no início deste texto). 3. A operação feita pelo intérprete Examine-se, pois, o funcionamento da boa-fé objetiva: o intérprete lança dela mão, utilizando-a como um modelo, um "standart" (um "topos") a ser adotado na verificação do caso em si. Isto é, qualquer situação jurídica estabelecida para ser validamente legítima, de acordo com o sistema jurídico, deve poder ser submetida à verificação da boa-fé objetiva que lhe é subjacente, de maneira que todas as partes envolvidas (quer seja credora, devedora, interveniente, ofertante, adquirente, estipulante, etc.) devem-na respeitar. A boa-fé objetiva é, assim, uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal (justa), disposta como um tipo ao qual o caso concreto deve se amoldar. Ela aponta, pois, para um comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes, a fim de garantir o respeito ao direito da outra. Ela é um modelo principiológico que visa garantir a ação e/ou conduta sem qualquer abuso ou nenhum tipo de obstrução ou, ainda, lesão à outra parte ou partes envolvidas na relação, tudo de modo a gerar uma atitude cooperativa que seja capaz que realizar o intento da relação jurídica legitimamente estabelecida. Desse modo, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o mMagistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso, deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado para que aquele caso concreto pudesse estar adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse "standart", verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas. 4. Conclusão É por tudo isso que se afirma que a boa-fé objetiva é o atual paradigma da conduta na sociedade capitalista contemporânea. ___________ 1E, não é a primeira vez que ocorre. A hipótese de anúncio com preço impresso incorretamente com valor irrisório é típico de erro na oferta, conforme já tive, inclusive, oportunidade de relatar no meu Comentários ao CDC (São Paulo: Saraiva, 6ª. edição, 2011, págs. 456 e segs.). 2Ver a respeito da Tópica, Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, Brasília, UNB, 1980, "passim". 3Como diz Tércio Sampaio Ferraz Jr ao apresentar o funcionamento da tópica material: A tópica material, diz ele, proporciona as partes, "um repertório de 'pontos de vista' que elas podem assumir (ou criar), no intuito de persuadir(ou dissuadir) o receptor da sua ação lingüística. Os partícipes do discurso judicial, ao desejar influenciar o decurso do diálogo-contra(persuasivo), precisam produzir uma impressão convincente e confiante; as suas ações lingüísticas devem ser dignas de crédito" (Direito, retórica e comunicação, São Paulo: Saraiva, 1973, p. 87). 4"Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória. § 1 º Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão. § 2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão." 5"Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa. Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção." 6"Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente." 7"Art. 879. Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos. Parágrafo único. Se o imóvel foi alienado por título gratuito, ou se, alienado por título oneroso, o terceiro adquirente agiu de má-fé, cabe ao que pagou por erro o direito de reivindicação." 8"Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé". 9"Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".
Um dos grandes problemas do consumidor na sociedade capitalista é o de sua dificuldade em se defender publicamente contra tudo o que lhe fazem de mal. Se ele é enganado, sofre um dano, etc. tem de recorrer aos órgãos de proteção ao consumidor ou contratar um advogado. É verdade que, com as redes sociais da internet e do surgimento de sites de reclamações, aos poucos, ele vai encontrando um caminho para expressar sua insatisfação com os produtos e serviços adquiridos e também contra toda forma de malandragem perpetrada por muitos fornecedores. Mas, ainda é pouco diante do poder de fogo de empresários que se utilizam de todas as maneiras de comunicação existentes no mercado, tais como publicidade massiva nas tevês, rádios, jornais e revistas, que fazem promoções milionárias constantemente, que se servem de mídias integradas, se utilizam de artistas e esportistas famosos para divulgar seus produtos (em confessionais ou por meio de merchandising e participação em anúncios), enfim, é mesmo uma luta desproporcional. Alguns empresários não só dizem que seus produtos e serviços são maravilhosos - o que nem sempre se constata - como se apresentam como bonzinhos cumpridores de seus deveres e paladinos da justiça e da ética. Quem diria? E mais: Com o poder de seu dinheiro, alguns fornecedores se organizaram para combater "consumidores que não são éticos"! Há uma associação de empresários que divulga uma série de anúncios sobre o assunto, que são muito interessantes. Um deles diz: "Quantas vezes você já ouviu alguém dizer que o Brasil não tem jeito, que ética é uma dessas coisas que não vingam por aqui e que o país nunca vai mudar. Tem muita gente que vive repetindo isso. Mas, se você reparar bem, são as mesmas pessoas que compram produtos piratas, produtos sem nota, produtos de procedência duvidosa. Pois é, enquanto a gente não mudar, o Brasil são vai ter jeito mesmo. Ético. É assim que a gente deve ser". Éticos. É mesmo! Todos devem ser! Ética significa tomar a atitude correta, isto é, escolher a melhor ação a tomar ou conduta a seguir. Uma pessoa ética tem bom caráter, busca sempre fazer o bem a outrem. No sistema jurídico - necessariamente ético -, se pode identificar uma série de fundamentos ligados à ética, tais como o da realização da Justiça e a boa-fé objetiva (uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade. Um standart, um modelo a ser seguido1). Na sequência, mostro, então, um dos vários pontos em que os fornecedores estão muito longe de uma conduta ética. Falarei um pouco sobre a publicidade. (Há muito a dizer sobre a conduta empresarial, como, aliás, tenho demonstrado em meus artigos e como ainda o demonstrarei em outras oportunidades). Muito bem. A liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos. Mas, esse direito, entre nós, não só não é absoluto, como sua garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que para os gregos na antiguidade era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação. Mas, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos ou oferecer produtos e serviços no mercado, há um limite ético que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade. Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim. Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos. Em nosso sistema jurídico temos leis que controlam, em alguns setores, a liberdade de expressão na sua realidade objetiva. Veja-se, por exemplo, a imposição para que a testemunha ao depor em juízo fale a verdade. Do mesmo modo, os advogados e as partes têm o dever de lealdade processual, proibindo-se que intencionalmente a verdade dos fatos seja alterada, adulterada, diminuída, aumentada, etc.. Esse dever de lealdade - em todas as esferas: administrativa, civil e criminal - é a ética fundamental da verdade imposta a todos. O mesmo se dá no regime de produção capitalista. Com base nos princípios éticos e normativos da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor regulou expressamente a informação e a publicidade enganosa, proibindo-a e tipificando-a como crime. No que diz respeito, pois, às relações jurídicas de consumo, a informação e a apresentação dos produtos e serviços, assim como os anúncios publicitários não podem faltar com a verdade daquilo que oferecem ou anunciam, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para de maneira confusa ou ambígua iludir o destinatário do anúncio: o consumidor. A lei quer a verdade objetiva e comprovada e por isso, determina que o fornecedor mantenha comprovação dos dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem. Aproveito esse ponto para eliminar uma confusão corrente quando se trata de criação e verdade em matéria de relações de consumo: Não existe uma ampla garantia para a liberdade de criação e expressão em matéria de publicidade. O artista goza de uma garantia constitucional de criação para sua obra de arte, mas o publicitário não. Um anúncio publicitário é, em si, um produto realizado pelo publicitário ou coletivamente pelos empregados da agência. Sua razão de existir se funda em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender. Dessa maneira, se vê que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção. Ora, como a produção primária de produtos e serviços tem limites precisos na lei, por mais força de razão o anúncio que dela fala. Repito: a liberdade de criação e expressão da publicidade está limitada à ética que dá sustentação à lei. Por isso, não só não pode oferecer uma opinião (elemento subjetivo) como deve sempre falar e apresentar a verdade objetiva do produto e do serviço e suas maneiras de uso, consumo, suas limitações, seus riscos para o consumidor, etc.. Evidentemente, todas as frases, imagens, sons, etc. do anúncio publicitário sofrem a mesma limitação. Infelizmente, nada disso impede que haja anúncios publicitários que enganem o consumidor, com métodos bem antigos. Uma forma bastante usada é o "chamariz". Este é uma modalidade de enganação que não está necessariamente atrelada ao produto ou serviço em si. Por exemplo, ouve-se no rádio o seguinte anúncio: "Os primeiros dez ouvintes que ligarem terão desconto de 50% na compra de tal produto; ou farão o curso gratuitamente, etc.". Quando o consumidor liga, ainda que seja logo em seguida, recebe a resposta de que é o décimo primeiro a ligar. Depois recebe o "malho" de venda. Esse tipo de "chamariz" também é usado por meio de malas diretas, anúncios em jornais, na TV, etc.. Outro exemplo dessa "técnica" é o "chamariz" da liquidação. Anuncia-se a liquidação, com grandes descontos, e, quando o consumidor chega à loja, a liquidação é restrita a uma única prateleira ou estante. Esse método é usado em larga escala. Há lojistas, em véspera de época de liquidação, que aumentam o preço para depois, com o desconto, voltar ao preço anterior. E há lojas que estão em "liquidação" ou "promoção" o ano todo. Existem também produtos que são vendidos de modo que o consumidor nunca saiba qual é o preço, pois na oferta sempre consta algum tipo de desconto. É o que se chama "vender descontos". Mais outro caso: o consumidor vê na vitrina uma roupa bonita a preço baixíssimo. Entra na loja, pede a roupa, mas há um único exemplar, de tamanho fora do padrão. Ele, então, constrangido, recebe o "ataque" do vendedor, que oferece outros produtos. O "chamariz" é, portanto, uma maneira enganosa de atrair o consumidor, para que ele, uma vez estando no estabelecimento (ou telefonando), acabe comprando algo. Muitas vezes, bem constrangido. Além disso, é de considerar algo evidente: o anúncio será enganoso se o que foi afirmado não se concretizar. Se o fornecedor diz que o produto dura dois meses e em um ele está estragado, a publicidade é enganosa. Se apresentar o serviço com alta eficiência, mas o consumidor só recebe um mínimo de eficácia, o anúncio é, também, enganoso, etc.. Enfim, será enganoso sempre que afirmar algo que não corresponda à realidade do produto ou serviço de acordo com todas as suas características. As táticas e técnicas variam muito e todo dia surgem novas, engendradas em caros escritórios modernos onde se pensa frequentemente em como impingir produtos e serviços mesmo contra a real vontade do consumidor e também fazendo ofertas que nunca se realizam efetivamente na realidade. São os produtores da mentira dessa sociedade capitalista com pouca ética2. A propósito e para usar o jargão dos próprios empresários, um pouco adaptado: "Pois é, enquanto alguns fornecedores não mudarem, o Brasil não vai ter jeito mesmo. Ético. É assim que todos devem ser!". __________ 1Pretendo desenvolver o tema da boa-fé objetiva, detalhadamente, em artigo futuro. 2Em outro artigo darei mais exemplos.
Joana I era a rainha de Nápoles e considerada a protetora cultural de poetas e intelectuais por causa de sua beleza e inteligência. Ela viveu na Idade Média (entre 1326 e 1382). Joana se casou com seu primo Andrew, irmão de Luís I, rei da Hungria. Algum tempo depois, Andrew foi assassinado em uma conspiração, na qual ela foi acusada de ter participado. Daí, o irmão da vítima, enfurecido, resolveu invadir Nápoles em 1348 perseguindo Joana, que se viu obrigada a fugir para a cidade de Avignon, na França. Lá se instalou num palácio que já havia sido a moradia de sete papas e com sua habilidade passou a mandar na localidade. Tanto que, resolveu regulamentar os bordéis existentes. Uma das normas dizia: "O lugar terá uma porta por onde todos possam entrar." A partir disso, cada bordel ficou conhecido como "Paço da Mãe Joana". Joana foi assassinada em 1832 por seu próprio sobrinho e herdeiro, Carlos de Anjou. Transposta para Portugal, a expressão "paço-da-mãe-joana" virou sinônimo de prostíbulo. No Brasil, a palavra "paço" foi modificada para "casa", gerando a expressão como é conhecida até hoje: "Casa-da-mãe-joana". Os dicionaristas dizem que, por extensão, "casa-da-mãe-joana" indica o lugar ou situação em que cada um faz o que quer, onde imperam a desordem e a desorganização; um local onde vale tudo, onde predomina a confusão, a balburdia, etc. Às vezes, leitor, quando penso na cidade de São Paulo, lembro da expressão. Parece terra de ninguém, quer dizer de alguns que a utilizam como bem entendem. Veja, meu caro leitor, o episódio da Fórmula Indy (não comentarei a incapacidade administrativa dos operadores da atração, porque isso não interessa). Alguém em sã consciência acredita mesmo que as ruas da capital paulista podem servir de palco para corridas de automóveis? E qual o interesse público relevante que justifica ceder as vias públicas de transporte de uma das maiores metrópoles do mundo para que empresários as explorem? Enquanto alguns empresários faturam milhões em dinheiro, graças a eles, centenas de milhares de pessoas sofrem sérias rstrições ao seu direito de ir e vir. Perdem horas e até o dia de trabalho, são obrigados a modificar seus compromissos, deixam de cumprir suas obrigações, perdem aulas, adiam consultas médicas, adoecem, etc.. Na sexta-feira próxima passada, dia 6, São Paulo teve um congestionamento monstro causado pela interdição de parte das pistas da marginal do Tietê, por causa da corrida. Na segunda-feira - dia em que a prova finalmente se realizou - novamente o congestionamento foi insuportável. Ia do local da corrida até a cidade de Guarulhos, paralisando por horas as vias Dutra e Airton Senna, na chegada a São Paulo e também do lado oposto da marginal porque a via de acesso ao aeroporto de Cumbica ficou apinhada de motoristas desesperados, buscando uma alternativa para exercer seu simples direito de trafegar. Será que as pessoas que perderam seus negócios, perderam horas e dia de trabalho, perderam aulas, que sofreram algum tipo de prejuízo podem se ressarcir de algum modo? (respondo mais abaixo). Po ora, pergunto: para quê se impôs tal sacrifício à população? Para quê se gerou deliberadamente tanto prejuízo às pessoas que precisavam das vias públicas para cumprir suas obrigações? Respondo: para que meia dúzia de empresários ficassem mais endinheirados. Até quando nossa cidade parecerá mais a casa-da mãe-joana que um local adequado para se viver? Até quando a população paulista assistirá a esse absurdo passivamente? Lembro que as ruas e avenidas de uma cidade são bens públicos ou, para ficar com a melhor doutrina, são bens difusos, bens ambientais difusos pertencentes a toda a coletividade1. Bens difusos, como as ruas e avenidas são de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida2. Não pode a administração de uma cidade entregar suas vias de rodagem à exploração privada sem qualquer utilidade pública. Essa corrida de automóveis não trouxe, nem traz nenhum benefício para a cidade de São Paulo (E, claro, nem citarei aqui o sofisma dos administradores públicos que dizem que há benefícios. É tão risível que não merece comentário). Falo nessse ponto não como jurista, mas como cidadão paulistano que vê a cada dia mais esta nossa querida cidade ser vilipendiada, com crescimento desordenado que permite o adensamento irresponsável em seus bairros, que tem um crescimento vertical desproporcional aos serviços de estrutura implantados, gerando tráfego absurdo, inundações que nunca existiram, etc; que reconhece a cada rua, a cada avenida uma cidade das mais esburacadas do mundo; que vê o funcionamento eficaz da máquina estatal para aplicar multas, mas recebe um serviço de má qualidade em contrapartida; que ouve o tempo todo as reclamações das violações diuturnas do direito ao sossego, do qual deveria gozar; enfim de um cidadão paulistano cansado. Você que me lê e que é cidadão de alguma cidade, nascendo ou não nela, mas aí vivendo, sabe muito bem da importância que ela tem para o relacionamento pessoal e o crescimento individual. Como dizia o saudoso professor Franco Montoro, os políticos se esquecem que as pessoas que vivem no país em primeiro lugar e muito concretamente habitam as cidades, vivem nos bairros, trafegam por ruas e avenidas, andam nas calçadas (em São Paulo em algumas calçadas nem isso é possível...). Mas, acontece que toda a vida se desenvolve nas cidades e, infelizmente, como em Sampa as pessoas estão por demais ocupadas com seus afazeres, acabam não percebendo as violações que são contra elas praticadas e, talvez, por isso, não se movimentam, não reclamam, não se reúnam em grupos de protestos tanto quanto poderiam, exercendo a garantia constitucional de lutar por seus direitos. Mas, voltando ao assunto, pergunto novamente: E os prejuízos? Há como a pessoa prejudicada se ressarcir? Respondo, levantando uma hipótese que pode ser explorada. Em matéria de responsabilidade civil, diz o Código de Defesa do Consumidor (CDC) que "equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento" (art. 17 - clique aqui). Ora, a responsabilidade do prestador dos serviços de diversões públicos (como é o caso de uma corrida de automóveis que, de fato, divertiu uma pequena minoria e gerou sofrimento em milhares) é patente, definida no art. 14 do CDC. A responsabilidade dele é objetiva, independendo da apuração de culpa, pelos danos causados aos consumidores que participaram diretamente da atração (isto é, os que compraram ingressos). Além disso, a responsabilidade se estende a todo aquele que, não tendo dela participado, tenha sofrido prejuízos por causa dela, com base no definido art. 17 citado. Vê-se, pois, que todas as pessoas que sofreram danos por causa do evento esportivo, podem pleitear ressarcimento. Anoto, também, que o parágrafo único do artigo 7º do CDC coloca os parceiros das ofertas e efetiva prestação do serviço em pé de igualdade, ao dispor que eles respondem solidariamente pela reparação dos danos causados, o que inclui na hipótese a própria municipalidade de São Paulo, agente que autorizou a atração e dela participou ativamente. Aliás, como se trata além de direito individual, também de direito coletivo (individual homogêneo) pode ser proposta ação coletiva para apuração dos danos e, como há possibilidade de novos eventos futuros, cabe também a propositura da ação coletiva preventiva para buscar impedí-los, com o fito de evitar mais danos à população. _________ 1Conf. Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 8ª. edição, 2007, ps. 64 e segs. 2Idem, ibidem, pág. 67.
A cada dia que passa, vai se percebendo a real importância das ações coletivas na defesa dos direitos dos consumidores. Na verdade, é do espírito do Código de Defesa do Consumidor essa proteção coletiva. Ele foi muito mais escrito visando os direitos e interesses coletivos "lato sensu" (coletivos, difusos e individuais homogêneos) que os direitos dos consumidores considerados individualmente. Foi a tradição privatista, profundamente enraizada no pensamento jurídico nacional - forjada a partir do vetusto Código Civil de 1916 - que acabou fazendo prevalecer a posição individualista das ações judiciais que envolvem o consumidor ao invés do enfoque nas ações coletivas. Mas, como disse, aos poucos a relevância destas vai sendo notada e a cada dia mais ações coletivas são ajuizadas, o que gera enorme economia de recursos financeiros, administrativos, de uso da estrutura judicial etc., posto que numa única ação se pode atender ao reclamo de milhares de pessoas-consumidoras. É verdade que, a ação coletiva acaba desembocando em diversas ações individuais - liquidações individuais - atreladas à coisa julgada, mas ainda assim o sucesso da jurisdição fundada na ação coletiva supera em muito o resultado das centenas ou milhares de ações individuais. Além disso, tendo em vista as características da sociedade de massa em que vivemos, a produção em série e a abrangência territorial amplíssima do mercado, somente a ação coletiva pode gerar o efeito jurídico buscado pela lei consumerista. Muitas violações clamam pela ação coletiva: a publicidade enganosa ou abusiva, produzida num local e transmitida para todo o país; a produção e a distribuição de medicamentos com defeitos com origem numa cidade indo afetar a vida de milhares de pessoas por todos os lugares do Brasil; a compra e venda pela internet de um produto que possa causar danos, recebido em qualquer cidade brasileira, oferecido num único ponto, etc.. Pois bem. Com o crescimento do número de ações coletivas, nas quais liminares são concedidas com os mais variados objetivos e também com sentenças que chegam a seu termo gerando centenas ou milhares de liquidações individuais, têm-se percebido agudas divergências doutrinárias e também na jurisprudência a respeito da competência territorial e da extensão e alcance da coisa julgada. Neste artigo, dou minha opinião a respeito, visando contribuir para a elucidação dos principais pontos, tentando apresentar parâmetros que aumentem a eficácia da sentença na ação coletiva, como quer o CDC. Problemas com a Competência O CDC estabeleceu regras específicas de competência para o ajuizamento das ações individuais e coletivas em matéria de relações de consumo. Pretendeu, com isso, mais uma vez, proteger o consumidor. Mas cometeu alguns equívocos, como se verá, e que, talvez, possam ser solucionados por um esforço de interpretação sistemática. Ações coletivas para defesa dos Direitos Individuais Homogêneos, Difusos e Coletivos Seu capítulo II do título III contempla as normas que regulam as ações coletivas para a defesa dos direitos individuais homogêneos (são os arts. 91 a 100). As regras de competência desse capítulo estão estipuladas no art. 93, que buscarei destrinchar na sequência. Acontece que o legislador se esqueceu de apresentar regras de competência para as ações coletivas de defesa dos direitos difusos e coletivos, gerando, portanto, uma lacuna na lei. A situação não se afigura de nenhuma gravidade, porque não resta dúvida de que a lei nº 8.078/90 é um subsistema próprio que se autocoordena, de tal modo que se impõe uma interpretação extensiva para solucionar o problema do, digamos assim, "esquecimento". Uma vez que a lei pôs regra para a ação coletiva de proteção ao direito individual homogêneo, no claro intuito de proteger o consumidor, o intérprete deve estender o benefício à hipótese das ações coletivas de proteção ao direito difuso e coletivo. E nem poderia ser de outro modo, posto que não teria sentido proteger um menor grupo de consumidores - os que sofreram danos por acidente de consumo - e não proteger um eventual maior grupo atingido difusamente ou mesmo coletivamente. A Competência da Justiça Federal O caput do art. 93 ressalva, como não poderia deixar de ser, a competência da Justiça Federal. Naquilo que interessa ao direito do consumidor, vale transcrever as hipóteses previstas no inciso I do art. 109 da Constituição Federal, assim como as disposições dos §§ 1º ao 4º. Leiamos tais normas. "Art. 109. Aos juízes Federais compete processar e julgar: I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública Federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; (...) § 1º As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte. § 2º As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou ainda, no Distrito Federal. § 3º Serão processadas e julgadas na Justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo Federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela Justiça estadual. § 4º Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o TRF na área de jurisdição do juiz de primeiro grau." Competência no dano de âmbito local Dispõe o inciso I do art. 93 do CDC: "Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a Justiça local: I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local". O equívoco Não resta dúvida de que o intuito do legislador, ao designar como foro competente o do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano - se de âmbito local -, foi mesmo o de proteger o consumidor. Tanto que nos comentários à lei, os autores do anteprojeto elogiaram o dispositivo. Leia-se: "O legislador guiou-se abertamente pelo critério do local do resultado, que vai coincidir, em muitos casos, com o domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à Justiça e a produção da prova".1 No entanto, a meu ver, equivocaram-se o legislador e a doutrina citada. A regra legal somente protegerá o consumidor e as entidades se coincidirem o local do dano com seus domicílios. Mais uma vez a lei ficou no abstrato irreal. Não vejo como possa estar havendo proteção ao consumidor, por exemplo, num acidente de avião, que caindo no meio da floresta amazônica fere e mata dezenas de passageiros. Propor a ação coletiva no local do fato não beneficia nenhum consumidor que sobreviver, nenhum parente dos que faleceram e, aliás, nem a associação das vítimas ou o próprio fornecedor responsável. Não beneficia ninguém e não tem sentido algum. As questões de âmbito local somente beneficiam os consumidores que tenham domicílio no local do evento, o que parece óbvio. Logo, é necessário encontrar uma saída para o impasse criado pela lei e ela se dá por um esforço de interpretação sistemática, conforme se verá na sequência. A solução do problema: local do dano ou domicílio do autor O próprio CDC permite a solução para o problema acima apontado. Ela está na interpretação sistemática a ser feita com utilização do regramento previsto no inciso I do art. 101. Com efeito, o capítulo III do mesmo título III, que é composto dos arts. 101 e 102, cuida das ações de responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços. Logo, cuida do mesmo tipo de ação do capítulo II, posto que lá também se busca apurar e responsabilizar o fornecedor de produtos e serviços. Poder-se-ia perguntar, claro, porque, então, é que a lei abriu dois capítulos para a mesma ação de responsabilização. E a resposta é a de que na hipótese do capítulo II a regulação é de ações coletivas e no capítulo III está ligada a ações individuais. No entanto, ainda que assim o fosse, uma hipótese não eliminaria a outra, porque pertencem ao mesmo sistema e ao mesmo título e não se excluem expressamente. E, ao contrário, o caput do art. 101 do CDC reconhece expressamente a aplicação do capítulo II. Assim dispõe o art. 101: "Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas". Logo, o próprio caput do art. 101 não afasta as normas do capítulo II e, claro, o inverso é também verdadeiro: a regra do art. 101 vale naquelas do art. 93, I. Dessa forma, resta ler o inciso I do art. 101 que dispõe: "I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor". Assim, interpretando-se sistematicamente o modelo adotado na combinação do art. 93, I, com o art. 101, I, tem-se que a competência para o ajuizamento de qualquer ação para apurar a responsabilidade do fornecedor pelos danos causados na ação coletiva, quando o dano for de âmbito local, é: a) do foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano; ou b) no domicílio do autor. A escolha de "a" ou "b" é do autor, isto é, qualquer dos legitimados do art. 82. E, por evidente, se se tratar de ação individual, como a lei confere prerrogativa ao consumidor ("A ação pode ser proposta no domicílio do autor" - conf. inciso I do art. 101), nada impede que ele opte por propor a ação no domicílio do réu2 ou, no local do dano, o que é possível pelo mesmo critério de interpretação sistemática. Competência no Dano de Âmbito Nacional ou Regional Para os danos que advierem de ações ou produtos que atinjam consumidores em todo o país ou numa certa região, a competência para as ações coletivas está fixada no inciso II do art. 93 do CDC, que dispõe: "II - no foro da capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente". Como exemplo de dano de âmbito nacional, pode-se dar o de uma indústria de medicamentos, cujo remédio oferecido em todo mercado nacional intoxique os consumidores para os quais ele foi prescrito. E, do mesmo modo, o dano de âmbito regional seria o do exemplo de uma prestadora de serviços essenciais que entregue água contendo bactérias que infectem os consumidores. E, ainda, claro, o de uma instituição financeira que, atuando em mais de um Estado-membro ou em todo o território nacional pratique atos abusivos e contrários à lei. A redação do inciso II do art. 93 não é muito boa, de modo que parecem jogadas nos textos as proposições ligadas pela disjuntiva ou. Examinemos de perto. Capital do Estado ou Distrito Federal: como definir? Veja-se que a lei diz: "no foro de capital do Estado ou no do Distrito Federal" e liga tal proposição à seguinte: "para os danos de âmbito nacional ou regional". Essa redação acabou gerando duas posições na doutrina. De um lado estão aqueles que entendem que, quando se trata de dano de âmbito nacional, o foro deve ser o do Distrito Federal, e no de âmbito regional o da capital do Estado ou do Distrito Federal. É a posição de Ada Pellegrini Grinover: "O dispositivo tem que ser entendido no sentido de que, sendo de âmbito regional o dano, competente será o foro da capital do Estado ou do Distrito Federal. (...) Sendo o dano de âmbito nacional, entendemos que a competência deveria ser sempre do Distrito Federal: isso para facilitar o acesso à Justiça e o próprio exercício do direito de defesa por parte do réu, não tendo sentido que seja ele obrigado a litigar na capital de um Estado, longínquo talvez de sua sede, pela mera opção do autor coletivo. As regras de competência devem ser interpretadas de modo a não vulnerar a plenitude da defesa e o devido processo legal".3 De outro lado estão os que examinam a norma para encará-la como de dispositivo opcional do autor, entendendo que, em casos de danos de âmbito nacional, a ação pode ser proposta tanto na capital do Estado como no Distrito Federal, concomitantemente. Com essa posição estão, por exemplo, Arruda Alvim e Thereza Alvim.4 Contra a primeira posição está o fato de que a ação, sendo proposta no Distrito Federal, nem sempre é mais condizente com o devido processo legal. Ora, tal afirmativa só é verdadeira se o fornecedor-réu tiver domicílio no próprio Distrito Federal, não, por exemplo, se ele tiver sede em Porto Alegre. O argumento é, portanto, relativo, ficando na dependência do caso concreto. Penso que a segunda posição é mais consentânea com o espírito de proteção do consumidor da lei n. 8.078/90, assim como é o que se extrai da interpretação do texto legal. Com efeito, exigir que uma Associação de Proteção ao Consumidor, como o IDEC de São Paulo, por exemplo, tenha de ingressar com ação judicial em Brasília, toda vez que a demanda envolva ou possa envolver dano de âmbito nacional é, no mínimo, afastar a maior potência de ação de que dispõe o maior número de consumidores. Isso porque é exatamente o Estado de São Paulo que concentra a maior população e a mais ampla gama de produtos e serviços que, eventualmente, possa causar danos de âmbito nacional. O mesmo se dá se se for exigir que o Ministério Público do Estado de São Paulo ingresse com ação em Brasília. Mas, se esse argumento de fato não bastar, há o outro, de ordem legal: isso é o que está escrito no texto da lei. Vejamos. A princípio, a questão da concorrência. A norma fez referência à competência concorrente, exatamente porque sabe que as entidades legitimadas no art. 82 podem e devem trabalhar para a proteção dos consumidores. Na realidade sempre haverá casos em que uma entidade estará mais bem aparelhada que outra para a propositura da ação coletiva. Nada mais natural, portanto, que, se ela tem sede na capital do Estado e o dano seja de âmbito nacional, que ela ajuíze a ação na própria capital do Estado. Depois, examinemos as proposições do texto do inciso II do art. 93. São duas aparentes dicotomias ligadas entre si: "no foro da capital do Estado ou no do Distrito Federal" e "danos de âmbito nacional ou regional". Ora, independentemente da definição do que possa ser "âmbito regional" (ver próximo subitem), o fato é que se um produto ou serviço causou dano "apenas" na região Sul e Sudeste, compreendendo, por exemplo, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e São Paulo, o porte do dano já seria suficiente para se pensar numa, digamos, "decisão centralizada" em Brasília. No entanto, nesse aspecto a doutrina é unânime: nas questões de âmbito regional, a demanda é ajuizável na capital do Estado (no exemplo, qualquer delas). Ademais, não se deve olvidar que, quando a lei se refere ao Distrito Federal, não está falando de tribunais, mas dos juízes singulares de primeira instância. Por que se estaria privilegiando os juízos singulares do Distrito Federal? O que eles têm de melhor ou pior que os demais? Nada. São todos iguais em competência e capacidade. E o mais importante: o CDC mencionou "capital do Estado ou Distrito Federal", apenas e tão-somente, porque é assim que se deve referir quando se pretende falar de capitais. Não se pode esquecer do Distrito Federal. Tanto isto é verdade que a lei foi escrita sem qualquer preocupação de conexão entre os termos proposicionais. Veja-se que a ordem escrita é: primeiro "capital do Estado"; segundo: "Distrito Federal". Esta proposição está conectada à seguinte, que dispõe: primeiro "âmbito nacional"; segundo "regional". Logo, nem a relação lógica se estabeleceu, pois "capital do Estado" está conectada a "Âmbito Nacional" e "Distrito Federal" está conectado a "regional". Assim, fica claro que é indiferente para a norma o local do ajuizamento da ação coletiva, quando o dano for de âmbito nacional: pode ser qualquer capital de Estado ou Distrito Federal, definindo-se a dúvida pelas regras da competência concorrente estabelecidas no Código de Processo Civil.5 Leia-se decisão do E. Superior Tribunal de Justiça nesse sentido: "DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AO CONSUMIDOR EM ESCALA NACIONAL. FORO COMPETENTE. EXEGESE DO ART. 93, INCISO II, DO CDC. 1. O alegado dano ao consumidor que compra veículo automotor, com cláusula de garantia supostamente abusiva, é de âmbito nacional, porquanto a garantia que se cogita é a fornecida pela fábrica, não por concessionária específica, atingindo um número indeterminado de consumidores em todos os Estados da Federação. 2. No caso, inexiste competência exclusiva do Distrito Federal para julgamento de ações civis públicas cuja controvérsia gravite em torno de dano ao consumidor em escala nacional, podendo a demanda também ser proposta na capital dos Estados da Federação, cabendo ao autor a escolha do foro que melhor lhe convier. 3. Cumpre notar que, muito embora o inciso II do art. 93 do CDC tenha criado uma vedação específica, de natureza absoluta - não podendo o autor da ação civil pública ajuizá-la em uma comarca do interior, por exemplo -, a verdade é que, entre os foros absolutamente competentes, como entre o foro da capital do Estado e do Distrito Federal, há concorrência de competência, cuidando-se, portanto, de competência relativa. 4. Com efeito, tendo sido a ação distribuída a uma vara cível do Distrito Federal, obtendo inclusive sentença de mérito, não poderia o Tribunal a quo, de ofício, por ocasião do julgamento da apelação, declinar da competência para a comarca de Vitória/ES, porque, a um só tempo, o autor, a quem cabia a escolha do foro, conformou-se com a tramitação do processo no Distrito Federal, e porque entre Vitória/ES e o Distrito Federal há competência concorrente para o julgamento da ação, nos termos do art. 93, II, do CDC, não podendo haver tal providência sem a manifestação de exceção de incompetência. 5. Recurso especial provido"6 Resta agora definir o que vem a ser "regional". Vejamos na sequência. Como definir o chamado âmbito regional? Aqui há problemas quanto ao conceito de regional não definido pela lei e também no que diz respeito aos fatos. Com efeito, os danos ocorridos na cidade de São Paulo com dez milhões de habitantes e vários quilômetros quadrados de extensão, seriam de âmbito regional? Na hipótese, não há problema porque a cidade de São Paulo é também a capital. Mas, se uma companhia que prestar serviços de água, distribuir para duas cidades, isso torna o dano de âmbito regional? Duas cidades próximas, com poucos habitantes e pequena extensão, tornam a questão local ou regional? Se o dano se der em duas localidades muito próximas, mas que ficam distantes da capital, será melhor propor a ação no foro da capital? E para ser regional basta ser numa única cidade grande? E se fossem três pequenas, que somadas sejam menores que uma grande? Ou uma grande comarca que abarque mais de um município? E se forem duas cidades ligadas pelo território, mas que pertençam a Estados-membros diversos? Poder-se-ia, é verdade, buscar o sentido de regional em outro lugar. A Constituição Federal, no § 3º do art. 25, fala em "regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões" a serem instituídas mediante lei complementar7. As regiões metropolitanas de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém e Fortaleza foram constituídas pela lei complementar nº 14, de 14/8/1973, e a do Rio de janeiro, pela lei complementar nº 20, de 1/7/1974, regiões essas constituídas sob a égide da Carta Constitucional anterior, e compatível com a atual. O art. 43 da Constituição Federal, vigente sob a égide do título "Das regiões", mais pressupõe as regiões do que as definem, pois diz: "Art. 43. Para efeitos administrativos, a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais". E seu § 1º fala da composição dos "organismos regionais"8 e daí a referência se dá nos organismos que cuidam da região Amazônica9, do Nordeste10, etc.. Por essas indicações ficaríamos, então, com dois tipos de regiões: as metropolitanas, nas quais incluiríamos todas as capitais e sua região metropolitana, e a dos Estados, tais como Norte, Nordeste, Sul, Centro-Oeste, Sudeste, Noroeste. O grande problema está em que fica difícil imaginar um dano que atinja uma região inteira, ainda que geograficamente determinável, em vez de cidades que se liguem, cidades essas que podem ser de Estados diferentes desde que vizinhas. O legislador consumerista, quando fez referência à região, certamente estava preocupado com um dano que se alastrasse por várias cidades, e por não ser possível determinar um local, município ou comarca específica, preferiu que a demanda fosse ajuizada na Capital do Estado. As dúvidas surgirão, mas posso afirmar por tudo o que foi dito que, em se tratando de várias cidades de um mesmo Estado, o foro da capital deste será o competente. Se envolver cidades de mais de um Estado, qualquer dos foros das capitais será competente, concorrentemente. Se não se tratar propriamente de região composta de várias cidades, mas apenas duas, por exemplo, qualquer delas terá foro competente, concorrentemente. E atingindo a chamada região metropolitana, o foro competente será o da capital respectiva. Os efeitos da coisa julgada Cuido agora dos efeitos da coisa julgada previstos no art. 103 do CDC. O que interessa abordar e decidir é o conflito existente ente o previsto na lei consumerista e a regra estabelecida no art. 16 da lei de Ação Civil Pública (lei 7.347 de 24/7/1985 -LACP), cuja redação foi modificada pela lei 9.494 de 10/9/1997. Coisa Julgada nas Ações Coletivas de Proteção aos Direitos Difusos (art. 103, I, CDC)11 Efeito "erga omnes" O efeito da coisa julgada na ação coletiva de proteção a direito difuso será erga omnes, isto é, valerá para todas as pessoas se a ação for julgada procedente ou improcedente pela análise de mérito com provas adequadamente produzidas. Na primeira hipótese, isto é, de procedência, todos os consumidores se aproveitarão da sentença definitiva, inclusive para fazer pleitos individuais. Na outra, de improcedência, o que está impedida é a propositura de nova ação coletiva, mas não fica impedido o ajuizamento de ações individuais. Efeito da improcedência por insuficiência de provas Neste caso, a sentença não produz efeito erga omnes e poderá a ação coletiva ser novamente proposta por qualquer dos legitimados do art. 82. "Qualquer" dos legitimados, vale dizer, inclusive a própria entidade que promoveu a ação anterior. Coisa Julgada nas Ações Coletivas de Proteção aos Direitos Coletivos (art. 103, II, CDC) Efeito "ultra partes" O sentido de ultra partes é o de estender os efeitos da coisa julgada a todos os consumidores integrantes do grupo, categoria ou classe, quando a ação visar a proteção dos chamados direitos coletivos previstos no inciso II do parágrafo único do art. 82. Lembre-se, no direito coletivo lato sensu, o objeto é indivisível e os titulares estão ligados entre si por uma relação jurídica ou estão ligados ao sujeito passivo por uma relação jurídica. Daí que os efeitos da coisa julgada, em função dessa dupla característica da relação jurídica - que envolve titulares entre si ou com a parte contrária - e da indivisibilidade do objeto, beneficiam os consumidores que pertencem à associação, ao sindicato, à classe, ou ainda beneficiam todos os clientes de um mesmo banco, os usuários de um mesmo serviço essencial, etc.. Se a ação for julgada improcedente com avaliação das provas produzidas, da mesma maneira o efeito é ultra partes, e impede a propositura de nova ação coletiva, mas não fica impedido o ajuizamento de ações individuais. Coisa Julgada nas Ações Coletivas de Proteção aos Direitos Individuais Homogêneos (art. 103, III. CDC) Efeito "erga omnes" A disposição é clara: o efeito é erga omnes para beneficiar todas as vítimas e seus legítimos sucessores, isto é, o efeito se produz apenas no caso de procedência do pedido. Se a ação for julgada improcedente, não produzirá qualquer efeito em relação às vítimas e sucessores. Aqui, nos direitos individuais homogêneos, a lei não faz referência a improcedência por insuficiência de provas. Donde se deve concluir que está vedada a apresentação de nova demanda, ainda que o resultado da ação coletiva expressamente reconheça a insuficiência da prova produzida, restando apenas a via individual. O art. 16 da LACP O problema em relação à extensão e alcance da coisa julgada na ação coletiva passou a existir com a nova redação dada ao art. 16 da LACP, que, estabelecendo algo inusitado, passou a ser a seguinte: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".12 Acontece que, a questão da amplitude da coisa julgada na Ação Coletiva tem relação direta com a extensão do dano: se este é nacional, a amplitude há de ser nacional. Não teria nenhum sentido que, por exemplo, na hipótese de abuso praticado contra consumidores paulistas, uma decisão judicial impeça que os mesmos sejam violados, mas o sistema permita que o mesmo ato abusivo atinja consumidores de outros Estados-membros. Veja-se, por analogia e para que não tenhamos dúvida da defesa ora apresentada, o que acontece com a sentença de falência de uma empresa (grande ou pequena, não importa): proferida numa pequena cidade do interior do país, ela produz efeitos em todo o território nacional e ninguém jamais contestou tal fato (não dá para falir somente no Estado de São Paulo!). E, mais: se uma indústria de medicamentos com sede numa pequena cidade comercializa remédio que gera morte de pessoas, todos esperam - é quase um apelo! - que a sentença proferida pelo juiz naquela pequena localidade possa impedir a comercialização em todo o país. Não teria sentido algum salvar a vida das pessoas numa cidade ou Estado e permitir conscientemente a morte de outros em outros lugares. Isso feriria - como fere - o princípio da nacionalidade e da razoabilidade do sistema jurídico constitucional e, no caso, o super princípio da dignidade da pessoa humana. O E. STJ já decidiu no mesmo sentido: "Meditei detidamente quanto à possibilidade de admitir-se que uma decisão de juízo monocrático, da natureza da que se busca nas ações em tela, possa estender seus efeitos para além dos limites do território onde exerce ele sua jurisdição, não tendo encontrado nenhum princípio ou norma capaz de levar a uma conclusão negativa. A regionalização da Justiça Federal não me parece que constitua óbice àquele efeito, sendo certo que, igualmente, no plano da Justiça Estadual, nada impede que uma determinada decisão proferida por um juiz com jurisdição num Estado projete seus efeitos sobre pessoas domiciliadas em outro. Avulta, no presente caso, tratar-se de ações destinadas à tutela de interesses difusos..., não sendo razoável que, v.g., eventual proibição de emanações tóxicas seja forçosamente restrita a apenas uma região, quando todas as pessoas são livres para nela permanecer ou transitar, ainda que residam em outra parte" (CC 971/DF, primeira seção, julgado em 13/2/1990, DJ 23/04/1990, p. 3213). "os efeitos da sentença produzem-se erga omnes, para além dos limites da competência territorial do órgão julgador" (REsp 411.529/SP, Rel. Min. Nacy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/6/2008, DJU 5/8/2008). "O argumento de que a extensão de eficácia erga omnes somente é cabível nas hipóteses previstas originalmente na lei nº 7.347/85 cai por terra diante da autorização expressa para interação entre a lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor (art. 21 da lei nº 7.347/85, com a redação que lhe foi dada pelo art. 117 da lei nº 8.078/90). Assim, afasta-se a alegação de incompetência do juízo da 4ª vara Federal de Curitiba para a concessão de amplitude territorial à sentença, porquanto tal amplitude está prevista no ordenamento jurídico nos artigos 16 da lei nº 7.347/85 e 103 da lei nº 8.078/90, e é efeito da sentença em ação deste gênero" (REsp 294021/PR, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, julgado em 20/2/2001, DJ 2/4/2001, p. 263). "O efeito erga omnes da coisa julgada material na ação civil pública será de âmbito nacional, regional ou local conforme a extensão e a indivisibilidade do dano ou ameaça de dano, atuando no plano dos fatos e litígios concretos, por meio, principalmente, das tutelas condenatória, executiva e mandamental, que lhe asseguram eficácia prática, diferentemente da ação declaratória de inconstitucionalidade, que faz coisa julgada material erga omnes no âmbito da vigência espacial da lei ou ato normativo impugnado" (REsp 557646/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 13/4/2004, DJ. 30/6/2004, p. 314). Desse modo, pelo exposto acima, penso que o art. 16 da lei da Ação Civil Pública, realmente, não tem como vingar no sistema jurídico constitucional brasileiro e como ele está em plena contradição com as normas e princípios do Código de Defesa do Consumidor, não há como ser aplicado. Ele contradiz a própria estrutura da lei da Ação Civil Pública, enquanto o CDC é firme, claro e coerente ao dizer que os efeitos são erga omnes e, pois, estendem-se a todo o território nacional, gerando conteúdo formal adequado e condizente com os princípios e normas constitucionais e para além dos limites de competência territorial do órgão prolator. __________ 1Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto, p. 682. Parte comentada por Ada Pellegrini Grinover. 2É sempre possível propor a ação no domicílio do réu, porque este não teria como objetar logicamente. Se o autor pode propor a ação no seu próprio domicílio - pode o mais - pode, também, propô-la no do réu - pode o menos. 3Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Ante-projeto, Rio de Janeiro: Forense, 5ª ed., 1998, p. 683. 4"Código do Consumidor comentado", São Paulo: RT, 2ª Ed., 1991, p. 426. 5Conf. Art. 102 e segs. 6REsp 712.006/DF, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 5-8-2010, v.u.. 7"§ 3º Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de Municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum." 8"§ 1º Lei complementar disporá sobre: I - as condições para integração de regiões em desenvolvimento; II - a composição dos organismos regionais que executarão, na forma da lei, os planos regionais, integrantes dos planos nacionais de desenvolvimento econômico e social, aprovados juntamente com estes." 9Agência de Desenvolvimento da Amazônia - ADA 10Agência de Desenvolvimento do Nordeste - ADENE 11Para uma análise completa do art. 103 do CDC, indico o meu "Comentários ao Código de Defesa do Consumidor", 6ª. edição, São Paulo:Saraiva, 2011, p. 914 e segs. No presente artigo estou colocando apenas o necessário para o exame da controvérsia. 12Na redação anterior não constava a expressão "nos limites da competência do órgão prolator".
quinta-feira, 14 de abril de 2011

Os consumidores sequestrados

Conto três histórias envolvendo consumidores brasileiros. Primeira Antonio da Silva e sua mulher estavam para realizar seu sonho da casa própria. Juntaram dinheiro anos à fio na poupança e enfim chegou o dia: procuraram e encontraram um apartamento do jeito que sempre imaginaram. Eles possuíam dinheiro para quitar a parte que o vendedor pedia e tinham renda para financiar o restante. Eles iriam comprar um apartamento de um mutuário, que ainda devia oito anos de prestações. Tudo bem. Felizes, conversaram com o vendedor, acertaram o preço, assinaram o compromisso de compra e venda e foram ao agente financeiro para transferir a dívida para seus nomes. Lá chegando, a decepção. O banco exigia, para assinar o contrato e concordar com a transferência, que fosse refeito o financiamento e, também, que novas contas fossem utilizadas: aquela prestação que eles tinham pensando em pagar, iria, dobrar de preço. - "O dobro ?", perguntou Antonio ao gerente. - "É. O dobro, mas daí já fica tudo no nome de vocês", respondeu o gerente. - "Mas, responde pra mim: o que é que muda? Se nós não tivéssemos comprado o apartamento, o banco iria continuar recebendo as prestações originais naquele valor anterior por mais oito anos". - "É, eu sei sr. Antonio. Mas, são os procedimentos.", disse o gerente e depois, baixando a voz e se aproximando do sr. Antonio falou baixinho em seu ouvido : - "Sabe, eu também não concordo. Acho um absurdo. Mas, é coisa da direção. Eles aproveitam essas transações para ganharem mais dinheiro". - "E agora? Nós não podemos pagar uma prestação assim tão cara. E por mais oito anos". - "Então, sr. Antonio, eu não vou poder fazer nada. Seu contrato, como se diz, vai pra gaveta. É contrato de gaveta". Segunda Carlos da Silva recebe um telefonema. É uma cobrança de uma conta de telefone. Ele retruca: - "Outra vez? Eu já disse antes que eu não fiz ligação alguma para a França. Deve ser clonagem. Sei lá!". - "Meu senhor, aqui consta que a ligação saiu de sua linha. Então o senhor tem que pagar. O prazo é até amanhã", respondeu tranquilamente o rapaz do outro lado da linha. - "Mas, um mês atrás a moça que me ligou disse que ia apurar e eu fiquei tranqüilo. Já havia até esquecido. Pensei que tivessem resolvido". - "É, mas não está. O setor daqui que investigou disse que foi o senhor que ligou". - "Eu? Eu nem conheço ninguém na França". - "Não faz mal, eu só estou ligando pra avisar do prazo, depois vão cortar sua linha". - "Bom. Então eu vou mandar uma reclamação por escrito. Vou fazer uma notificação para garantir meus direitos" - disse Carlos, demonstrando segurança. "Por favor, me passa o endereço de vocês" . - "Endereço? Ah! Isso nós não damos não. Reclamação só por telefone.", respondeu o cobrador. - "E como é que eu vou garantir meus direitos?", devolveu, indignado, Carlos. - "Sinto muito. Eu não sei. Endereço nós não estamos autorizados a dar". - "Mas, eu não sei onde vocês estão. Parecem que estão escondidos. Onde fica o cativeiro de vocês?". - "Não podemos falar não, senhor. E estamos aguardando o pagamento". Terceira José da Silva, usuário do plano de saúde X, que firmou para si e sua família, chega ao Hospital Y, para internar sua esposa que teve um ataque cardíaco. A situação é grave e ela necessita atendimento médico urgente. Ele, tenso, vai ao balcão de atendimento da entrada de emergência do hospital e entrega a carteirinha do plano de saúde. A atendente, então, com muita calma, num contraste muito forte com a dor do sr. José, pede a guia de internação. José está tão nervoso que sequer entende o pedido: - "Guia? Que guia?". - "Para sua esposa dar entrada no hospital o senhor tem que me apresentar a guia de internação expedida pelo seu plano", responde a mocinha do balcão, com uma frieza de mármore e, claro, lendo um roteiro escrito à sua frente. Confuso, José gagueja e diz que não tem guia alguma. E, levantando a voz, assim, meio sem querer, aponta para sua mulher deitada na maca: - "Ela teve um ataque... São duas horas da madrugada! Ela teve um ataque...precisa de ajuda..." - "Eu sei meu senhor. Eu sei. Mas este é o procedimento.", devolveu a mármore que fala. José já ia responder, quando a treinada funcionária hospitalar interveio: - "Mas, não se preocupe. Nós temos a solução. O senhor assine, por favor, um cheque-caução e me entregue que está tudo resolvido". - "O que é isso?", perguntou, atônito, José. - "É o seguinte: o senhor deixa um cheque conosco; ele fica como garantia dos gastos aqui no hospital; se o plano de saúde não cobrir os valores que o hospital vai cobrar, então, nós depositamos o cheque". - "Mas, como? Se eu tenho plano de saúde é exatamente pra não ter que passar por isso. Veja minha mulher, ela está morrendo... Está morrendo!". - "Calma, calma. É rápido. Pegue seu talão que eu vou calcular quanto é o valor para o preenchimento..." - "Eu... Eu não tenho talão de cheque aqui comigo". - "Então me passa o relógio!" Conclusão das histórias O Código de Defesa do Consumidor já tem mais de 20 anos de vigência. Apesar de todos os avanços proporcionados, os abusos praticados contra os cidadãos-consumidores brasileiros ainda são muitos. Por isso, todos nós, consumidores que somos, precisamos estar muito atentos para não sermos enganados ou violados, pois, tirando a exigência do relógio, o resto acontece mesmo!
Não é a primeira vez que acontece - segundo a Folha de S. Paulo 6 pessoas morreram e 45 ficaram feridas em parques de diversões apenas nos últimos dois anos - e, infelizmente, deve continuar a ocorrer: as diversões públicas radicais implicam em risco aos usuários e exigem severo controle das autoridades. Pois bem, meu artigo desta semana está ligado ao acidente ocorrido no Playcenter, em São Paulo, no último domingo, dia 3. Não discutirei o tema da responsabilidade civil do fornecedor pelos danos causados, por que o mesmo é por demais conhecido (embora seja obrigado a fazer referência a alguns aspectos, como se verá). Pretendo ir além - talvez ao lado -: penso que algumas dessas ofertas arriscadas - modernas ou não - com aparelhos sofisticados e tecnologia de ponta devem simplesmente ser banidas com base no Código de Defesa do Consumidor. Acompanhe meu raciocínio. Depois do acidente a que me referi, vi um perito na televisão dizendo que suas causas somente podem ser uma dessas três: negligência, imprudência ou imperícia. Acrescento dolo (o que é raro) e digo que sim, mas apenas na maioria das vezes; não em 100% delas. Pergunto: e se for constatado que não se verificou nenhum dos elementos da culpa (e, claro, nem de dolo), como fica a situação jurídica e a continuidade da oferta do mesmo serviço? Uma das características principais da atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades por parte do empresário é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. Mas o risco é dele. Muito bem. O CDC, compreendendo o funcionamento do binômio risco/custo (ao qual se deve acrescentar outro: custo/benefício) resolveu cuidar dos elementos ligados ao resultado da produção (no caso dos produtos) e ao resultado da prestação de serviços (que incorpora muitas vezes os produtos com os quais e através dos quais é prestado o serviço). Dito de outro modo: o CDC não se preocupou com os meios em que se produzem objetos ou se prestam os serviços, mas com a qualidade com que eles são entregues ao consumidor, controlando os vícios e defeitos e determinando trocas, devoluções de valores pagos e ressarcimento de prejuízos. A responsabilidade civil objetiva do fornecedor prevista na lei tem, assim, foco na relação de causalidade que envolve o consumidor, o produto e/ou serviço e o dano. Há algo de bem inteligente nisso: o CDC sabe que, de um lado, com todo o incremento da tecnologia é bastante difícil provar culpa do fabricante, montador, produtor, prestador do serviço etc., assim como que, mesmo com todos os esforços sincera e adequadamente empreendidos por esses agentes econômicos, ainda assim haverá vícios e defeitos. Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria muitas vezes lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como se dava no regime anterior ao CDC). Veja-se o acidente do Playcenter ocorrido no último domingo. Todas as declarações dos envolvidos dão conta que o aparelho chamado Double Shock estava em perfeitas condições de uso, com a manutenção em dia e com os sistemas de operação funcionando corretamente (nota: não sou inocente a ponto de acreditar que qualquer um dos funcionários fosse confessar desde logo uma falha. Mas, tenho de admitir para o raciocínio que estou montando - até porque plausível e real - que os fatos podem ter se passado exatamente desse modo). É possível, portanto - e somos obrigados a admitir -, que a falha do funcionamento do aparelho de diversões possa ter se dado sem que se verifique qualquer grau de culpa dos responsáveis. O que estou a dizer é corriqueiro, por exemplo, no caso de vícios e defeitos ocorrentes nos veículos automotores (aliás, é por isso, quer dizer, é por ocorrências desse tipo, sem participação direta do fornecedor, que em larga medida o CDC prevê o recall, que tem sido largamente utilizado por esse setor). Para deixar bem esmiuçado esse aspecto: como se sabe, de regra, o fabricante, produtor, prestador de serviços etc., não agem com negligência, imprudência ou imperícia exatamente por causa das consequências negativas para seu negócio. Como é notório, o negligente é aquele que causa dano por omissão (ex.:o motorista que não coloca óleo no freio do automóvel e, por causa disso, numa brecada, o freio falha, causando um acidente); o imprudente é quem causa dano por ação (ex.: o motorista que, dirigindo seu carro, passa o sinal vermelho de trânsito, atingindo outro veículo); e o imperito é o profissional que não age com a destreza que dele se espera (ex.: o médico que deixa um instrumento cirúrgico dentro do corpo do paciente operado). Ora, pode muito bem acontecer - como, repito, ocorre regularmente na indústria automobilística - do fabricante de um aparelho de diversões públicas ou do prestador do serviço por ele responsável, agir dentro de todas as regras técnicas exigidas para a manutenção e funcionamento adequado do produto e ainda assim, ele, em algum momento, apresentar falha de funcionamento. Ou seja, pode acontecer do aparelho gerar danos aos usuários a despeito de todos os esforços em sentido oposto feito pelo prestador do serviço; apesar de não se constatar nenhuma das características da culpa. Do ponto de vista da lei, a situação é simples, posto que o prestador do serviço responde de forma objetiva, bastando ao consumidor demonstrar o nexo de causalidade entre os danos e o defeito do serviço. Não me estenderei nisso, pois como adiantei acima a responsabilidade é induvidosa (a hipótese que estou avaliando é de típico acidente de consumo, prevista no art. 14 do CDC). Meu questionamento diz respeito ao mau funcionamento do aparelho, inobstante se constate a existência de controle técnico preciso. Isso porque, a verdade é que nenhuma técnica, por mais apurada que seja, consegue abolir as leis da física. Mais cedo ou mais tarde alguma coisa acontece sem explicação científica ou técnica e quando se trata de algo como um aparelho que faz um giro de 360º a uma altura de 12 metros com pessoas dentro (que é o que faz o citado Double Shock), as consequências podem ser gravíssimas. Veja um dos efeitos jurídicos dessa constatação. O Estado - no caso a prefeitura - tem o poder-dever de fiscalizar o adequado funcionamento dos serviços de diversões públicas, dentre os quais se encontram os parques de diversões. Ora, como se sabe, a entidade estatal também responde objetivamente por ação ou omissão de seus agentes. Mas, se acabar sendo constatado, como no exemplo que estou analisando, que o fiscalizado não agiu com culpa e que o funcionamento do aparelho seguiu todo o roteiro de segurança estabelecido, não haverá omissão (nem, claro, ação). A outra consequência - que é a que me parece mais importante - está ligada à existência de um "brinquedo" com tal risco de utilização, que poderia fazer voltar a responsabilidade do órgão estatal. Penso que, se de fato, fique constatado que, apesar de todos os esforços técnicos para gerar um funcionamento condizente do aparelho, ainda assim ele acabe gerando insegurança que se possa controlar, a atração deve simplesmente ser proibida. E é, mais uma vez, o próprio CDC que permite a proibição da atração: seu artigo 10 é claro em dizer que o fornecedor não pode colocar no mercado produto ou serviço com alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde e segurança do consumidor. Portanto, se um aparelho de diversões públicas não pode ser controlado em termos de funcionamento adequado por mais que a manutenção seja bem feita e que o controle técnico esteja correto, repito, só há um destino para ele: deixar de ser oferecido. Nisso o Estado pode e deve atuar - para inclusive não vir a ser responsabilizado.
O Brasil foi colonizado, a população catequizada e, fruto desse modo de imposição cultural, a legislação pátria, em larga medida, se inspirou nas normas jurídicas estrangeiras. O Código Civil de 1916 foi inspirado em leis da Europa do Século XIX e até a edição da Constituição Federal de 1967 nós nos intitulávamos "Estados Unidos do Brasil": CF de 24/2/1891-Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil; CF de 16/7/1934-Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil; CF de 10/11/1937- Constituição dos Estados Unidos do Brasil; CF de 18/9/1946-Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Esse título que nós nos demos, certamente foi influenciado pelos Estados Unidos da América, grande equívoco de nossa parte, eis que eles realmente eram "Estados (as 13 Colônias)" que se uniram, enquanto nós éramos um Estado unitário que se dividiu. De todo modo, os exemplos mostram nossa experiência cultural de importação de leis e seus significados. (Os professores de Direito Civil sempre referiram o regime dotal do casamento previsto no CC/16 como um bom exemplo de importação sem conexão com nossa realidade). Muito bem, porque estou começando o artigo com isso? Inicio por aqui para fazer, desde logo, um forte elogio à lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor. Os autores do anteprojeto apresentado pelo então deputado Geraldo Alckmin, que gerou o CDC, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Esta lei é tão importante que fez com que nós, importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agirmos como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu e ainda serve de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, inspiradas em nossa lei. Não resta dúvida, que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como o texto do CDC foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e também em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea o exercício da cidadania se confunde com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nas diversões públicas em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como livros, filmes em DVDs e CDs; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; a matrícula em escolas particulares em todos os níveis; a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos; a aquisição da tão sonhada casa própria e um interminável etc.; tudo isso é regulado pela lei 8.078/90. Por isso, dizemos que o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a CF de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Ele não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege o vulnerável que é o consumidor em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido. A lei 8.078/90 funciona muito bem e não precisa de alterações ou atualizações. Necessita sim de apoio para ser mais ainda compreendida e bem aplicada. Ela é de ordem pública e de interesse social, norma geral e principiológica, o que significa dizer que é prevalente sobre todas as demais normas especiais ou gerais que com ela colidirem. Ela inaugurou no sistema jurídico nacional um outro modo de produção legislativa: ingressou de modo a não necessariamente revogar leis anteriores. O que ela faz é tangenciar as relações jurídicas envolvendo consumidores e fornecedores estabelecidas com base em outras normas que continuam em vigor, tornando-as nulas ou inválidas no todo ou na parte que desrespeite seus princípios e regras. A rigor, como eu disse, o que o CDC precisa é de maior conhecimento, especialmente entre os operadores do Direito, que ainda desconhecem parte de suas regras. Tenho dito que, um pedaço do problema reside numa questão de memória: grande parte dos operadores do Direito lêem o texto do CDC com base na sua formação privatista (larga e profundamente estudada a partir do CC/16 e também das demais normas, penais e processuais). Veja um exemplo disso na questão contratual: a memória privatista do operador faz com que ele, ao se deparar com um contrato, lembre do aforismo que diz pacta sunt servanda, posto que no Direito Civil essa é uma das características existentes, com fundamento na autonomia da vontade. Sabe-se que, nas relações contratuais no Direito Civil, pressupõe-se que aqueles que querem contratar sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo num texto. São proposições organizadas em forma de cláusulas que, impressas num pedaço de papel, fazem surgir o contrato escrito. É a tentativa de delineamento objetivo da vontade, portanto, elemento subjetivo, que o Direito Cvil tradicional pretende resguardar e controlar. Então, quando o operador jurídico se refere às relações contratuais privatistas, está fazendo uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que devem representar a vontade das partes que lá estavam, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E, uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, os pactos devem ser respeitados. Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é completamente equivocado, porque o consumidor não senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC pretende controlar, e de forma inteligente. O problema é que a aplicação da lei civil, assim como a memória dos operadores do Direito, atrapalha a interpretação. Até a oferta, para ilustrarmos com mais um exemplo, é diferente nos dois regimes: no Direito Privado é um convite à oferta; no Direito do Consumidor, a oferta vincula o ofertante, que fica obrigado a cumpri-la. Então, estas eram, foram e ainda são situações que acabaram afetando o entendimento da lei, que junto de outras questões especiais como o controle abstrato de cláusulas abusivas, a responsabilidade civil objetiva quase absoluta, a boa-fé objetiva etc., exigem maior conhecimento. O que está estabelecido no CDC resolve com muita eficácia os problemas advindos das relações de consumo. Por isso, repito: ele não precisa de alteração ou atualização e sim de contínua e incessante luta de implementação. Mas, eis que o Senado Federal criou uma comissão visando sua atualização. A comissão de juristas nomeada pelo Senado Federal é, sem dúvida, de alta qualidade e profundo conhecimento e experiência na área. Mas, isto certamente não impedirá que todos aqueles interessados em diminuir o poder de controle exercido no mercado pelo CDC (isto é, o grande grupo composto por agentes retrógados com poder econômico), trabalhem para retirar os sagrados direitos dos consumidores brasileiros já instituídos. Segundo consta, dentre as pretensões da comissão estão o trato do superendividamento dos consumidores, a questão do comércio eletrônico e a busca de fortalecimento dos Procons. Começo pelo último: Os Procons já atuam muito bem e seu fortalecimento não necessita de modo algum de mudança no CDC: basta que os municípios e Estados-membros (com o auxílio do governo Federal caso assim este o deseje) aumentem o investimento no setor. Quanto ao comércio eletrônico, ainda que se possa pensar numa lei para cuidar do assunto, a experiência tem mostrado que o CDC se sai muito bem, pois regula as compras feitas à distância (art. 49), controla a oferta (art. 30 e seguintes), anula as cláusulas não escritas, não informadas e abusivas (art. 46 e seguintes), sendo que o Judiciário tem aplicado tais regras com eficiência. E, a questão do superendividamento de um lado, tem a ver com a falta de políticas públicas capazes de educar o consumidor para a aquisição de produtos e serviços financiados ou não e, de outro, já encontra eco nos dispositivos do CDC, que contém regras que servem para a proteção dos consumidores endividados. O pior é que, os consumeristas - dentre os quais eu me encontro - duvidam muito que um tema que possa afetar ainda mais as instituições financeiras possa ser introduzido no CDC, sem que se lhe retirem "pedaços". Devo lembrar que o CDC não tem nada que impeça os bancos e demais agentes financeiros de ganharem muito dinheiro - como comprovam todos os números publicados - e ainda assim eles lutaram na Justiça contra o CDC por 16 anos seguidos em todas as instâncias, perdendo finalmente no STF com o julgamento da Adin dos bancos em 29/9/2006. Quem é que pode garantir que aberta a porta da "atualização" do CDC, não ingressarão por ela as normas atrasadas ou os cortes desejados por aqueles que lutam contra os direitos que estão assegurados? O lobby do sistema financeiro é poderoso e organizado e se tiver chance, aproveitará a oportunidade para retirar direitos instituídos. Dou apenas um exemplo: a Medida Provisória 1.963-17, de 30 de março de 2000, sucessivamente reeditada até a Medida Provisória 2.170-36 de 23 de agosto de 2001, foi editada para cuidar dos recursos financeiros da União, autarquias e fundações públicas. É o que dispõe seu art. 1º: "Art. 1º. Os recursos financeiros de todas as fontes de receitas da União e de suas autarquias e fundações públicas, inclusive fundos por elas administrados, serão depositados e movimentados exclusivamente por intermédio dos mecanismos da conta única do Tesouro Nacional, na forma regulamentada pelo Poder Executivo". Mas, esse lobby conseguiu, assim, digamos de contrabando, introduzir na MP um assunto completamente diverso de seu objeto, dispondo sobre capitalização de juros. Veja: "Art. 5º - Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano"1. É preciso também lembrar os bastidores da verdadeira batalha pela aprovação da lei 8.078/90: A sociedade civil, representada pelos órgãos de proteção ao consumidor, associações de defesa do consumidor, professores e juristas engajados na luta conseguiram sua aprovação contra poderosos interesses econômicos. O momento histórico também favoreceu a vitória, pois a CF havia sido promulgada em 5/10/1988 e determinava no art. 48 da ADCT que o CDC fosse editado: era uma prova de efetivo trabalho do Congresso àquela altura dos acontecimentos. Venho, portanto, neste artigo também expressar minha opinião contra a anunciada "atualização". Quero consignar que já se manifestaram publicamente contra a proposta o professor Nelson Nery Junior, um dos autores do anteprojeto, Marilena Lazzarini do IDEC, Maria Inês Dolci da Proteste e outros, e se começa a perceber surgir um movimento da sociedade civil contra essa proposta. Quero lembrar, como fez Maria Inês Dolci no artigo que publicou e para utilizar um jargão tão à moda dos brasileiros que, em time que está ganhando não se mexe. Não há mesmo nenhum motivo para se mexer no CDC. Para finalizar quero colocar que, no dia 21 de março próximo passado, proferindo aula inaugural do curso de especialização em Direito do Consumidor da Escola Paulista da Magistratura (EPM), o professor português Mário Frota, um dos principais juristas empenhado na luta pelos direitos dos consumidores na Europa, disse: "Ninguém melhor que os brasileiros versaram de forma adequada sobre relações entre consumidores e fornecedores" e, depois ao final confirmou: "Com o Código de Defesa do Consumidor, o Brasil superou o que a Europa pode fazer em matéria de proteção ao consumidor". É isso! Repito, junto dos demais consumeristas que já se pronunciaram e digo eu também: não mexam no Código de Defesa do Consumidor! ___________ 1É verdade que essa inserção espúria é vedada pela Lei Complementar nº 95, de 26/2/1998, gerando vício de origem capaz de rechaçá-la do ordenamento jurídico. Referida Lei Complementar dispõe o seguinte em seu artigo 1º e parágrafo único, verbis: "Art. 1º A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta Lei Complementar. Parágrafo único. As disposições desta Lei Complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo". Esta mesma Lei Complementar disciplina em seu artigo 7º o seguinte: "Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa" (grifei).
No presente artigo, examinarei o importante instituto das astreintes, que a cada dia tem sido mais utilizadas pelo Poder Judiciário para fazer valer suas decisões nas obrigações de fazer e não fazer, especialmente nas questões envolvendo consumidores e fornecedores. O tema não é novo, mas ainda assim não está bem esclarecido entre os juristas e aplicadores do Direito. Por isso, tentaremos solver alguns dos problemas que têm aparecido como pendentes nas disputas forenses. 1. O vocábulo Antes de fazer as observações necessárias a respeito das astreintes, é importante consignar que parte da doutrina equivoca-se não só ao defini-la, como ao tratar de suas consequências e suas funções. O termo astreintes, mantido entre nós no vocábulo estrangeiro, tem origem na jurisprudência francesa. Apesar da hostilidade da doutrina, que via na sua fixação uma violação ao princípio da nulla pena sine lege, firmou-se lá como criação pretoriana1. O vocábulo, ao que parece, é utilizado entre nós como o original francês por mera dificuldade de tradução (aproximadamente, seria compulsão, constrição), mas não há dúvida de que se trata de multa, cuja única finalidade é cominatória, vale dizer, sua existência tem como objetivo o cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer. 2. Função Em nosso sistema que, diga-se, é o único que importa, as astreintes são previstas em mais de um texto legal (como se verá adiante). Cabe ao magistrado fixá-las no caso concreto para estimular - forçar, na verdade - o devedor a cumprir sua obrigação. No entanto, infelizmente, há casos de abusos na sua fixação e, especialmente, na sua liquidação em pecúnia quando não cumprida a obrigação, em parte influenciada pela equivocada doutrina. E, para citar, por todos, a posição jurídica que penso ser a acertada a respeito do tema, transcrevo o pensamento de Calmon de Passos. Diz ele que o valor das astreintes deve ser proporcional à obrigação inadimplida e que seja capaz de desempenhar a função de coercibilidade sobre o devedor: "Suficiente para induzir o devedor a adimplir, pelo que variará em função da capacidade econômica do devedor, mais do que em função da natureza da obrigação, mas essa correção não pode alcançar excesso, devendo cingir-se ao compatível".2 3. Natureza Realce-se, também, um aspecto que, às vezes, passa despercebido, o de que, a rigor, o resultado da liquidação da multa não deveria reverter a favor do credor da obrigação. A natureza das astreintes é de pena para exercer pressão psicológica, imposta pelo magistrado para garantir sua própria decisão, e não o crédito ou o direito da outra parte. Tanto isso é verdade que, de fato, as astreintes substituem o delito de desobediência. A liquidação da multa, portanto, não tem relação com o direito da parte contrária, exatamente como o cumprimento da pena do crime de desobediência não a prejudica nem a beneficia. Desse modo, o produto da liquidação das astreintes, evidentemente, deveria pertencer ao Estado e não à parte. Nesse sentido é a doutrina de Luiz Guilherme Marinone: "a multa (...) serve apenas para pressionar o réu a adimplir a ordem do juiz, motivo pelo qual não parece racional a idéia de que ela deva reverter para o patrimônio do autor, como se tivesse algum fim indenizatório ou algo parecido com isso; seu único objetivo é garantir a efetividade da tutela jurisdicional."3 E também de Marcelo Lima Guerra: "o credor não tem, em princípio, direito de receber nenhuma quantia em dinheiro, em razão direta do inadimplemento do devedor, que não seja àquela correspondente a perdas e danos. Na relação entre credor e devedor, o primeiro só tem direito à prestação contratada ou ao equivalente pecuniário dessa mesma prestação (o ressarcimento em dinheiro pelos prejuízos resultantes da não realização da prestação)".4 4. O caráter objetivo: confusão a ser evitada Outrossim, há de se deixar claro o caráter objetivo da fixação da multa inibitória. Ela não pode ter a natureza de vingança ou castigo pelo descumprimento da ordem judicial. O que se percebe, algumas vezes, nos pronunciamentos de alguns magistrados, é uma espécie de ira pelo descumprimento de sua ordem, como se a negativa fosse subjetiva e especificamente dirigida a seu prolator. Nesses casos, embora o sentimento seja compreensível, a decisão acaba denotando uma espécie de revanche pessoal dirigida ao infrator o que pode caracterizar abuso do direito. É de ponderar que, não há nada de pessoal, quer no cumprimento quer no descumprimento de uma ordem judicial. Esta é resultado de uma ação dita jurisdicional, feita não por uma pessoa na condição de indivíduo, mas por alguém investido do papel social público e essencial, no qual está investido, vale dizer, na função pública de magistrado. Uma vez dada a ordem, ela se dirige ao devedor não pela pessoa física do juiz, mas por seu papel, na investidura do cargo como representante do Estado. Além disso, exponha-se desde já, a Justiça não fica diminuída em sua dignidade, porque em certo momento alguém não cumpre uma determinação do juiz, como também não fica diminuída se esse mesmo juiz (ou pela via de recurso, o juízo ad quem) modifique a decisão, revogando a obrigação. É algo juridicamente possível, justo e plenamente de acordo com o sistema processual vigente no país. Desse modo, é de se excluir as considerações doutrinárias e jurisprudenciais de fundo psicológico, eis que isso vicia a objetiva incidência do instituto das astreintes nos estritos limites do equitativo e razoável no caso concreto. 5. O limite do "quantum" Na questão do valor, há de se convir que nenhuma multa, seja de que natureza for e independente do modo linguístico utilizado (lembre-se que a linguagem retórico-jurídica pode gerar alguma ilusão), deverá reduzir o infrator à insolvência nem enriquecer ilicitamente o credor e, muito menos, ser fixada de tal maneira que a torne mais importante que o objeto da ação principal em jogo. Aliás, anote-se que não há como sustentar lógica e juridicamente a hipótese de liquidação de astreintes cuja somatória seja maior, mais relevante ou mais importante que o objeto perseguido na ação principal; é uma contradição em termos: Condenar o devedor por não ter cumprido uma ordem judicial a pagar mais que o valor do pleito feito pelo credor na própria ação principal é tão estranho que mais justo seria julgar procedente a ação sem ouvir o réu. É o que aconteceria, por exemplo5, numa ação por danos morais fundada em negativação indevida de nome nos cadastros de inadimplentes em que, como regra, os Tribunais fixam o quantum indenizatório em cinco, dez, vinte ou, em casos muitos especiais, em trinta mil reais. Numa ação desse tipo, o descumprimento da ordem de retirada da anotação no órgão de proteção ao crédito (geralmente conferida liminarmente) com fixação de astreintes, não pode, evidentemente, gerar um valor dezenas de vezes superior ao da condenação na ação principal (e esse raciocínio é válido, mesmo que no momento da execução das astreintes não tenha ainda o juiz ou o Tribunal fixado definitivamente o valor da indenização da ação principal). Realmente, não tem sentido nenhum, repita-se, que o não cumprimento de uma ordem incidental no feito, possa ser mais importante que o próprio feito tomado em seu conjunto. Não poderia, pois, o quantum das astreintes fixado no incidente superar o valor pleiteado na principal. A jurisprudência no mesmo sentido é farta: "IMPOSSIBILIDADE, CONDENAÇÃO, DEVEDOR, PAGAMENTO, 'ASTREINTE', VALOR SUPERIOR, VALOR CONTRATO/ HIPÓTESE, DEVEDOR INADIMPLEMENTO, OBRIGAÇÃO PRINCIPAL; CREDOR, FIXAÇÃO, MULTA POR ATO UNILATERAL; DEVEDOR NÃO IMPUGNAÇÃO, VALOR, MULTA / DECORRENCIA, MULTA, MESMA NATUREZA JURÍDICA, CLAUSULA PENAL; OBSERVANCIA, CÓDIGO CIVIL, 1916. CABIMENTO, RESCISÃO, ACÓRDÃO, TRIBUNA AQUO/ HIPÓTESE, DECISÃO JUDICIAL, VIOLAÇÃO, LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI, CODIGO CIVIL, 1916, PREVISÃO, LIMITE MÁXIMO, CLÁUSULA PENAL, EQUIVALÊNCIA, VALOR, OBRIGAÇÃO PRINCIPAL/ APLICAÇÃO, CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. (...) RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. CLÁUSULA PENAL. LIMITAÇÃO AO VALOR DA OBRIGAÇÃO PRINCIPAL. - Ofende o art. 920 do Código Beviláqua a estipulação de cláusula penal que supere o valor da obrigação principal (...) Com essas considerações, dou provimento ao recurso especial para julgar procedente o pedido e rescindir o acórdão atacado. Em novo julgamento da causa, limito a multa a ser cobrada pela recorrida ao valor dos contratos firmados pelas partes"6 "Execução de obrigação de fazer - 'astreintes' - Possibilidade de alteração, se verificada a insuficiência ou o excesso da multa - Redução para o valor equivalente ao da obrigação principal - decisão alinhada com a melhor doutrina e com a jurisprudência tradicional - recurso desprovido (...) Mas, a multa diária atingiu valor expressivo (R$378.000,00) e por isso, o magistrado, por aplicação analógica do artigo 920, do Código Civil, reduziu-a para o valor da obrigação principal".7 6. Previsão legal Com a redação dada ao parágrafo único do art. 645 do CPC, pela lei 8953/94, qualquer dúvida que eventualmente existisse a respeito deste assunto, foi elucidada, pois a lei permite expressamente a modificação para cima ou para baixo do valor das astreintes. Leia-se: "Art. 645. Na execução de fazer ou não fazer, fundada em título extrajudicial, o juiz, ao despachar a inicial, fixará multa por dia de atraso no cumprimento da obrigação a data a partir da qual será devida. Parágrafo único. Se o valor da multa estiver previsto no título, o juiz poderá reduzi-lo, se excessivo". O legislador, inclusive, inspirou-se na tradicional jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Veja-se, por exemplo, que no Resp 13.416-0-RJ, da relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, o tema é estudado e aplicado com base na interpretação dos arts. 287, 644 e 645 do CPC: "Ação cominatória. Execução. Pena pecuniária. CPC, arts. 287, 644 e 645. Enriquecimento indevido. Limitação. CC, arts. 920 e 924. Hermenêutica. Recurso inacolhido. I - O objetivo buscado pelo legislador, ao prover a pena pecuniária no art. 644 do CPC, foi coagir o devedor a cumprir a obrigação específica. Tal coação, no entanto, sem embargo de equiparar-se a 'astreintes' do direito francês, não pode servir de justificativa para o enriquecimento sem causa, que ao direito repugna. II - É da índole do sistema processual que, inviabilizada a execução específica, esta se converterá em execução por quantia certa, respondendo o devedor por perdas e danos, razão pela qual aplicáveis os princípios que norteiam os arts. 920 e 924 do CC. III - A lei, que deve ser entendida em termos hábeis e inteligentes, deve igualmente merecer do julgador interpretação sistemática e fundada na lógica do razoável, pena de prestigiar-se, em alguns casos, o absurdo jurídico".8 E, a partir da edição da lei, o judiciário vem corretamente aplicando o preceito: "Ora, malgrado o inconformismo do agravante, é de se ponderar que, com o advento da lei 8.953/94, que introduziu o parágrafo (único) ao artigo 645, do CPC, está o juiz autorizado a alterar multa imposta, quando verificar que se tornou ela insuficiente ou excessiva."9 "EXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER - Fazenda Pública - Multa cominatória - O art. 644 não excepcionou o Estado de sua incidência - Prerrogativas funcionais devem ser expressamente previstas, diante do princípio da igualdade das partes no processo - O valor da 'astreinte', no entanto deve guardar proporcionalidade com a finalidade da pena - Multa reduzida - Agravo parcialmente provido para esse fim".10 "AGRAVO DE INSTRUMENTO - Medida cautelar de busca e apreensão de documentos - Execução de Sentença - Cumprimento de decisão judicial já transitada em julgado - Mero efeito secundário e imediato da sentença que prescinde de ajuizamento de nova ação - Razoabilidade das 'astreintes', que não devem ultrapassar o valor da obrigação principal - Multa de natureza inibitória - Art. 461, § 4º, do CPC e art. 920 do CC de a 1916 - Art. 412 do novo CC - Inexistência de atos que reportem litigância de má-fé - Alegação afastada - Recurso improvido".11 "ADMINISTRATIVO - PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - FGTS - OBRIGAÇÃO DE FAZER - MORA NO CUMPRIMENTO DA DECISÃO - ASTREINTE - POSTERIOR AFASTAMENTO DA MULTA DIÁRIA - REDUÇÃO DO VALOR DA MULTA - ART. 461 §§ 5º, 6º, CPC. I - Cabível a cominação de 'astreinte' pela mora injustificável da obrigação que deriva de decisão judicial com fulcro no arts. 461, 461-A e 644, do CPC, e obedece o princípio da proporcionalidade. II - O valor da multa diária deve ser compatível com a obrigação, sob pena de redução, a teor do art. 461, § 4º, do CPC, e obedece ao princípio da proporcionalidade. III - A multa diária, instrumento para assegurar a efetividade das decisões do magistrado, se cominada pelo juiz 'a quo', deve ser confirmada para a credibilidade deste instituto. IV - Agravo de Instrumento parcialmente provido".12 7. Ação principal sem valor econômico Anote-se que, mesmo que a ação principal não tenha conteúdo econômico, ainda assim não há motivo para que seja fixada uma multa que possa gerar valores astronômicos. Nesses casos, deverá o magistrado avaliar as circunstâncias concretas do feito e arbitrar o montante que seria razoável que o autor obtivesse se tivesse que ser indenizado. Esse valor arbitrado servirá, então, de parâmetro para a determinação do quantum total do resultado da liquidação das astreintes. Isso decorre, naturalmente, de todos os fundamentos antecedentes e também dos demais que se expõe abaixo. 8. Medida direta do juiz Além disso, é importante lembrar que, se o juiz puder tomar medida ou determinar ação direta ou indireta que possa substituir a parte-devedora relutante na obrigação de fazer ou não fazer, basta que ele emita a ordem que a questão será eficazmente resolvida. Não há sequer necessidade de fixação de astreintes. É o caso de determinação de retirada de nome dos chamados serviços de proteção ao crédito. Basta a emissão de ofício ao órgão anotador para a obtenção do resultado querido. Assim tem decidido, por exemplo, a 23ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo: "Diante do exposto, concedo a liminar pleiteada, para determinar o sobrestamento da execução e a exclusão do nome dos executados recorrentes dos cadastros da Serasa e demais Serviços de Proteção ao Crédito relativos ao feito sub-judice. Para a efetivação desta medida deverá a parte indicar especificamente o órgão anotador com respectivo endereço para que o MM. Juízo "a quo" emita os ofícios correspondentes".13 Aliás, a própria lei assim o determina. Com efeito, dispõe o art. 84, §§ 4º e 5º do Código de Defesa do Consumidor: "Art. 84. Na ação que tenha por objeto obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação e determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento. ... § 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito." § 5º Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial". Note-se, pois, que a lei 8078/90 autoriza expressamente que o magistrado substitua a parte, sempre que possível, para tornar mais célere e eficaz o decisum (§5º do art. 84 acima). As hipóteses legais não são exaustivas, mas meros exemplos das medidas que o juiz pode tomar. Ele decidirá o caso "tomando as medidas necessárias", vale dizer, encontrando os meios pelos quais a determinação judicial tornar-se-á eficaz. O art. 461 do Código de Processo Civil, seguindo o Código de Defesa do Consumidor, teve a redação modificada para dar o mesmo sentido à norma: "Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado pratico equivalente ao do adimplemento. ... § 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito. § 5º Para efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício, ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas ou coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial". Assim, repita-se, podendo a obrigação de fazer ou não fazer ser satisfeita sem a participação da parte devedora e omissa, deve o juiz executá-la diretamente. Não há que fixar astreintes. A rigor, a fixação da multa cominatória só tem sentido quando o magistrado não pode tomar a medida diretamente e/ou quando o próprio credor também não (com ou sem o auxílio ou autorização do juiz) ou, ainda, quando um terceiro não possa fazê-lo. Numa ação para busca e apreensão de menor, por exemplo, não tem cabimento que o juiz fixe multa para sua não entrega. Ele simplesmente determinará que o Oficial de Justiça (com o auxílio de força policial, se necessário) recolha a criança e entregue a quem de direito. O mesmo se dá quando, por exemplo, o juiz determina a reintegração de posse num imóvel que foi bloqueado por um cadeado. Ora, basta mandar quebrar o cadeado e permitir a entrada no imóvel. Fixar astreintes em casos que tais não atende aos objetivos das normas vigentes. A questão é, portanto, de básica lógica jurídica: se o juiz pode substituir a parte recalcitrante, deve faze-lo. 9. Modificação das astreintes não viola a coisa julgada Anote-se, também, que não há que se falar em coisa julgada, pois o suposto crédito advindo de astreintes não integra propriamente a lide, com o reforço de que a lei, como acima exposto, permite expressamente a modificação do quantum. A doutrina e a jurisprudência nesse ponto, também, não têm dúvida: "Essa modificabilidade não ofende a coisa julgada, porque a multa, na espécie, não é compensatória e, portanto, não integra a obrigação exequenda propriamente dita. Trata-se de medida de coação, simples ato do processo de execução, como a busca e apreensão, a penhora e outros meios coercitivos que dispõe o credor" "...o valor executado não pode ser tido como líquido, haja vista a não fixação pelo juízo 'a quo' de termo inicial e/ou final para a incidência da multa pecuniária, de modo que tal se quedou ilimitada, o que se mostra abusivo, já que o valor até agora atingido ultrapassa em muito o valor pleiteado fixado a título de indenização em sentença, ou seja, o valor executado atinge a monta de R$714.000,00(Setecentos e quatorze mil reais), enquanto que o valor da indenização é de apenas R$25.000,00(vinte e cinco mil reais). A multa pecuniária, por ter cunho eminentemente coercitivo, não pode ter valor indeterminado e ilimitado, aumentando vertiginosamente a cada dia. Ainda que não tenha o réu, ora agravado, não cumprido o quanto expressamente determinado pela decisão que deferiu a tutela antecipada pleiteada pelo autor, isso não indica que a sua punição por tal desobediência não tenha limites. Ademais, as artigos 287 e 461, §4º, do Código de Processo Civil, combinados, prevêem que a multa fixada para o fim de garantir o cumprimento da tutela antecipada concedida deve ser suficiente e compatível com a obrigação principal. No caso em tela, contudo, o valor da multa é infinitamente superior ao valor da obrigação principal, o que não é, portanto, admitido pelo ordenamento jurídico pátrio" "EMBARGOS À EXECUÇÃO. 'ASTREINTES'. REVISÃO DA MULTA ORIGINÁRIA DE EXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 461, §6º, 644, 645 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. OFENSA À COISA JULGADA. NÃO CONFIGURADA. SUCUMBÊNCIA. Verificando-se que o valor a ser pago a título de multa é significativamente superior àquela resultante da condenação na lide principal, ou que o recebimento da mesma poderá implicar no enriquecimento da embargada, o juiz poderá reduzi-la. Incidência dos arts. 461, §6º, 644, 645 Do Código De Processo Civil. Ainda que o valor da multa seja reduzido pelo juízo em face de sua excessividade, o executado pode responder pela totalidade do ônus sucumbencial, vez que foi ele quem deu causa à execução. Aplicação do princípio da causalidade. Por outro lado, tal redução não implica em ofensa à coisa julgada, porquanto o crédito resultante das astreintes não integra a lide propriamente dita, não podendo ser enquadrada, destarte, como questões já decididas relativas a mesma lide, de que trata o art. 461 do CPC. RECURSO DA EMBARGADA PARCIALMENTE PROVIDO. IMPROVIDO O DA EMBARGANTE".16 10. O que acontece se a ação é julgada improcedente ou extinta sem julgamento do mérito Outro ponto relevante a ser avaliado no tema, é o do que acontece com o quantum das astreintes quando o devedor não cumpre a determinação judicial, mas sai vitorioso na demanda. Isto é, qual o fim das astreintes quando a ação é julgada contra o credor? Parece-me evidente que, não há que esse falar em liquidação da multa cominatória, eis que a mesma é apenas uma peça acessória do feito principal. De todo modo, é importante justificar essa posição. Candido Dinamarco tem esse mesmo entendimento. No caso de fixação da multa cominatória em antecipação de tutela, diz ele: "enquanto houver incertezas quanto à palavra final do Poder Judiciário sobre a obrigação principal, a própria antecipação poderá ser revogada, com ela, as 'astreintes'"17. Ou, em outros termos, e corroborando com o que expõe o professor Dinamarco, como a multa é fixada para garantir o cumprimento da liminar, enquanto não decidida definitivamente a ação principal em que se a confirme, ela não pode ser exigida. Dinamarco sustenta com razão que, por exemplo, ao se fixar a multa cominatória na sentença, não seria legítimo cobrá-la do devedor, se ele, podendo recorrer contra sua fixação, o faz, no que tem a possibilidade de vencer a demanda. Por isso que, "o valor das multas periódicas acumuladas ao longo do tempo só é exigível a partir do trânsito em julgado do preceito mandamental".18 E, realmente, aqueles que defendem a execução das astreintes, independentemente do resultado da demanda, ingressam na seara psicológica que acima demonstramos ser injustificável. Com efeito, não há fundamento para tanto. A função da multa cominatória, como exposto, é a de forçar o devedor a cumprir obrigação de fazer ou não fazer. Todavia, até certo momento (o do trânsito em julgado da sentença na ação principal) não se poderá afirmar que havia mesmo essa obrigação. Digamos que se trate, pode exemplo, de determinação para que um comerciante faça a retirada do nome do autor da ação de um cadastro de inadimplentes, sob pena de pagamento de multa diária, fundada no argumento de que esse autor quitara a dívida. Suponha-se que o comerciante não cumpra a determinação e, depois de alguns meses, a ação principal seja julgada improcedente porque o juiz verificou que ele continuava devendo. Como é que o autor poderia executar a multa? Qual o sentido? Se ele não tinha nenhum direito desde o início, não há que se falar em qualquer execução de astreintes pelo descumprimento de obrigação inexistente. Aliás, poderia se dar de se reconhecer que, inclusive, o autor da demanda estivesse da má fé. Ele, então, sairia vencido na demanda, seria condenado como litigante de má fé, mas receberia polpuda importância advinda da multa cominatória gerada pela obrigação não cumprida? É um non sense: seria como o Juiz condenar e, simultaneamente, absolver um réu. Ou, num outro exemplo: suponha-se que um cidadão é acusado de ter cometido um crime e, indiciado e feito o pedido de prisão provisória, o mesmo é deferido pelo Juiz. Mas, o réu se oculta e permanece foragido. Suponha-se que, posteriormente, é descoberto que o verdadeiro criminoso é outra pessoa, sendo arquivado o processo em relação ao foragido. Teria sentido puni-lo porque durante o trâmite do feito ele esteve foragido? Como, se ele nada devia? Ora, ele fugiu exatamente porque, nada devendo, não quis passar as agruras da prisão. Os exemplos podem se multiplicar, mas o relevante mesmo é o fato de que não se pode falar em condenar judicialmente alguém pelo descumprimento de uma obrigação que ele jamais teve. Poder-se-ia, argumentar, é verdade, que se o quantum devido pelo descumprimento da obrigação pertencesse ao Estado, então, nesse caso, seu valor seria sempre devido. Penso que, nem assim. É importante realçar um aspecto já tratado: a Justiça não fica diminuída em sua dignidade, porque em certo momento alguém não cumpre uma determinação do juiz, como também não fica diminuída se esse mesmo juiz (ou pela via de recurso o juízo ad quem) modifique a decisão, revogando a obrigação. É algo juridicamente possível, justo e plenamente de acordo com o sistema processual vigente no país. Pronunciamentos provisórios são, como o próprio nome indica, provisórios e não perdem o caráter de justeza apenas porque foram modificados. O que existe no momento da mudança é apenas um outro tempo processual: o tempo em que, após a colheita de provas e ouvida dos envolvidos ou reexame por outro juízo, se chega à conclusão diversa da anterior. Aliás, algo absolutamente possível em praticamente todo o sistema processual ocidental. Resta, por fim, analisar o que acontece na hipótese da ação principal ser extinta sem julgamento do mérito. E, naturalmente, nesse caso, o destino será o mesmo daquela ação julgada improcedente. Não há que se falar em pagamento de multa pelo descumprimento da obrigação porque esta não existe mais. Desapareceu junto da ação principal. __________ 1Alcides de Mendonça Lima, Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1974, Vol. VI, Tomo II, p. 773. 2Inovações do Código de Processo Civil. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.62 3Tutela inibitória (individual e coletiva). 2ª ed. São Paulo: RT, 2000. p. 179. 4Execução Indireta. São Paulo: RT, 1999, p. 207. 5Citamos caso que começa a se tornar comum. 6Resp 439434/RS; Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, Terceira Turma; 11.10.2005; DJ 20.03.2006, p. 264. 7A.I. 1.075.456-4 do extinto 1º TAC/SP, relator Ariovaldo Santini Teodoro, 7ª. Câmara, j. 23-04-02, v.u. 8J. 17.03.1992, DU 13.04.1992. 9A.I. 1.075.456-4 do extinto 1º TAC/SP, relator Ariovaldo Santini Teodoro, 7ª. Câmara, j. 23-04-02, v.u. 10A. I n. 156.854-5 - São Paulo - Da 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Desembargador Guerrieri Rezende, 17.04.00, v.u. 11A. I. n. 369.728-4/9 - Ribeirão Preto - Da 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Dsembargador Carlos Stroppa , j. 03.03.05, v.u. 12Resp 792.822, do STJ, Ministro Luiz Fux, DJ. 28-04-2006. 13Agr. Instr. 7.117.195-4, de nossa relatoria. 14Humberto Teodoro Junior, Processo de Execução, 18ª edição atualizada, LEUD, 1997, p. 282. 15Agr.Instr. 7.045.642-7, da 20ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, relator Desembargador Francisco Giaquinto, j. 07-02-2006, v.u. 16Apelação Civel nº 70013505607, da Décima Câmara Cível do Tribuna de Justiça do Rio Grande do Sul, relator Desembargador Luiz Ary Vessini de Lima, j. 16-03-2006, v.u., publicado no site do TJ/RS. 17A reforma da reforma. São Paulo: Malheiros, 2002, p.240. 18ob. cit., p. 239.
O dia mundial dos direitos do consumidor - há o que comemorar?                       No dia 15 de março de 1962 John Kennedy, então Presidente dos Estados Unidos, enviou uma mensagem ao Congresso Americano tratando da proteção dos interesses e direitos dos consumidores. Foi um marco fundamental do nascimento dos chamados direitos dos consumidores e que causou grande impacto nos EUA e no resto do mundo. Na mensagem foram estabelecidos quatro pontos básicos de garantia aos consumidores: o do direito à segurança ou proteção contra a comercialização de produtos perigosos à saúde e à vida; o do direito à informação, incluindo os aspectos gerais da propaganda e o da obrigatoriedade do fornecimento de informações sobre os produtos e sua utilização; o do direito à opção, no combate aos monopólios e oligopólios e na defesa da concorrência e da competitividade como fatores favoráveis ao consumidor; e o do direito a ser ouvido na elaboração das políticas públicas que sejam de seu interesse. O Dia Mundial dos Direitos do Consumidor foi instituído no dia 15 de março em homenagem ao presidente Kennedy; inicialmente foi comemorado em 15 de março de 1983; em 1985 a Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) adotou os Direitos do Consumidor como Diretrizes das Nações Unidas, o que lhe deu legitimidade e reconhecimento internacional. Não resta dúvida que, de 1962 para cá houve um avanço na proteção ao consumidor em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. No nosso caso, a verdadeira proteção surgiu com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em 11/9/1990 (e que entrou em vigor em 11/3/1991).  É mesmo importante que se comemore esta data. Mas, falta ainda muito para que a batalha pelos direitos dos consumidores esteja ganha. Aproveitemos, então, este dia para fazer uma reflexão a partir de certos fatos. Um empréstimo a um zelador Há certo tempo atrás, o zelador de um prédio de meu bairro foi a uma agência bancária solicitar um empréstimo de apenas R$ 500,00. Pediram-lhe toda a documentação de praxe e ele a levou. Aprovado o empréstimo, trouxeram-lhe o contrato e também outro documento para assinar: tratava-se de um seguro residencial. O zelador, então, disse que nem casa ele tinha, pois morava com sua família no apartamento pertencente ao condomínio. Não adiantou: o funcionário do banco disse que para receber o empréstimo ele tinha que fazer o seguro. E, olha, não foi pouca coisa. Para um empréstimo de apenas R$ 500,00 "enfiaram-lhe pela goela abaixo" (desculpem-me a expressão, mas ela é adequadíssima) R$ 64,20 ou o equivalente a 12,84% do total emprestado! Esse episódio, tão corriqueiro como, infelizmente, qualquer assalto a mão armada em plena rua de uma cidade grande, nos joga na cara esse lado estranho da condição humana que criou a hipocrisia e mais ainda o cinismo. Lendo-se a apólice de seguro, percebe-se a farsa, a comédia e a tragédia. Nosso zelador-consumidor (assim como qualquer um de nós) vive oprimido pelo abuso que as grandes corporações do capitalismo dito neoliberal (descontrolado) lhe impinge. Ele, morador de um apartamento dentro do condomínio no qual trabalha, acabou fazendo seguro contra "queda de raio" com coberturas contra "vendaval e fumaça" !1 O problema da falta de consciência Sempre que me deparo com abusos desse tipo, me vem a mente não só a imagem do empresário aproveitador, mas também a do funcionário que executa suas ordens. No caso do zelador, foi um empregado do banco que lhe impingiu o contrato de seguro abusivo. Esse mesmo empregado, que sabe muito bem que está abusando de um cidadão, ele próprio é também consumidor e certamente será enganado em algum lugar: numa loja, numa indústria, pelo serviço de transporte ou telefônico, etc. e por um banco! É, podemos dizer, uma falta de consciência de que todos somos consumidores. É essa falta de consciência que faz com que no telemarketing ativo o atendente viole a tranquilidade do consumidor em seu lar e, muitas vezes, o engane com ofertas miraculosas; ou no telemarketing passivo, quando o atendente nega-se a fazer o cancelamento solicitado, etc. A ironia é que neste mercado que só conhece o lucro, todos esses "pequenos infratores" a mando de seus patrões violam o direito de outras pessoas no horário de seu trabalho, mas assim que vão às compras são também enganados e violados. E não é só: pela via da publicidade (essa ponta de lança do marketing) vai se criando mitos nos quais o consumidor acredita e embarca para sofrer mais prejuízos. Vou referir um: o de que o gerente do banco oferece o melhor investimento ao cliente. Ora, se o consumidor tiver dinheiro para investir, a melhor alternativa é ele mesmo buscar informações antes de fazê-lo, pois se ele perguntar para seu gerente, a resposta levará em consideração em primeiro lugar o interesse do banco-patrão; em segundo lugar o interesse do próprio gerente que tem metas a cumprir. O único interesse real do banco é reter e investir o dinheiro do consumidor, mas sempre cobrando dele a melhor taxa e no investimento que trará o maior retorno possível (para o banco!). A organização bancária ao criar o sistema de metas para os gerentes dá alguma liberdade a ele, mas sinalizando para que certos produtos sejam vendidos. Daí, o gerente, sem alternativa vai oferecendo ao consumidor o que precisa vender e não o que há de melhor ao cliente. É normal. Trata-se de capitalismo. O processo de controle e enganação Em certa ocasião, li uma entrevista dada pelo presidente de uma grande corporação internacional do ramo de alimentos, uma das líderes do setor no Brasil. Dentre vários aspectos de autoenaltecimento da empresa que dirige, o empresário ressaltava o orgulho que tinha ao afirmar que ela funcionava com rígidos controles de qualidade no que dizia respeito à preservação da natureza, em especial no cuidado com a água e que sua empresa desenvolvia vários projetos sociais de que tanto o Brasil precisa. Fiquei feliz, afinal trata-se de uma empresa estrangeira explorando o mercado brasileiro e preservando nossa natureza, nossas águas e, ainda por cima, colaborando com a população brasileira em projetos sociais. No entanto, para minha decepção, no mesmo dia, lendo uma notícia de que o Ministério da Justiça havia autuado várias empresas pela prática de "maquiagem" de produtos, vi que uma delas era exatamente aquela presidida pelo entrevistado. (Como se sabe, a chamada maquiagem de produtos é uma prática abusiva que consiste na modificação da quantidade do produto em embalagens conhecidas, sem o prévio, amplo e ostensivo aviso aos consumidores. Na oportunidade foram autuadas empresas que modificaram embalagens de biscoito de 240 para 180 gramas, de "wafer" recheado de 160 para 140 gramas, de rosquinhas de 500 para 400 gramas, etc.). Esse modo de atuação no mercado é base de um tipo de marketing muito praticado: uma estratégia para dar uma aparência de respeito ao direito e às pessoas, quando, na verdade as práticas continuam sendo as mesmas de obter lucro a qualquer preço e enganando os clientes. Estado mais presente É por isso que os consumeristas têm defendido que o mercado de consumo precisa ser mais diretamente controlado pelo Estado, posto que se deixado à própria sorte os abusos contra os consumidores existirão sempre em grandes quantidades. Aliás, a crise financeira internacional de 2008 demonstrou como é perigoso para toda a sociedade (mundial!) deixar que os próprios operadores criem as regras de trabalho. O capitalismo contemporâneo exige vigilância sobre os procedimentos e observância estrita do cumprimento das normas já existentes.                                  Não é possível mais acreditar que o mercado de consumo resolve suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" natural que fosse capaz de corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: o empresário moderno e as grandes corporações que ele dirige quer, cada vez mais e sempre, faturar mais alto, nem que para isso ele tenha que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios e piorar a qualidade de seus produtos e serviços ou, como no caso da "maquiagem", manter a qualidade, mas alterar a embalagem para, iludindo o consumidor, aumentar sua receita. Globalização deteriorou a proteção do consumidor Além disso, com o fenômeno da chamada globalização, o quadro piorou. Por conta da abertura do mercado de vários países, do incremento da tecnologia e das comunicações, da melhora das condições de distribuição, etc. as grandes corporações acabaram por mudar seus polos de produção para locais que ainda não tinham - nem tem - tradição de produção de qualidade. Essas empresas foram buscar maiores lucros, pagando menores salários e produzindo bens de consumo de pior qualidade. Para lucrar mais, o empresário acaba correndo maior risco de oferecer piores produtos e serviços ao consumidor.  E, com as fusões de empresas da área financeira, de seguros, comercial, industrial, etc. o panorama é ainda mais desanimador, uma vez que as fusões eliminam não só postos de trabalho, gerando desemprego em larga escala (eliminando consumidores - talvez um tiro no próprio pé), mas também a diminuição da oferta ao consumidor. As fusões põem fim à possibilidade de existência da concorrência, criando oligopólios poderosos e gananciosos com a drástica redução da oferta: o consumidor vai aos poucos tendo reduzida sua possibilidade de trocar de fornecedor, o que sempre foi um eficaz elemento de proteção, aliás, um dos direitos garantidos na mensagem kennedyana. Conclusão O quadro pontual que apresentei mostra que as promessas de 1962 somente foram cumpridas em parte e, inclusive, a partir do final do século XX, aos poucos, muitos direitos dos consumidores estão se perdendo com o incremento de novos métodos de exploração capitalista e também em função da ineficiência dos Estados e seus governos em todo o globo para fazer cessar os abusos do setor empresarial. Além disso, todo o sistema de controle via procedimentos regulares das empresas, esquemas de marketing agressivos e publicidade enganadora massiva acabam por desnortear os consumidores que, de um lado, muitas vezes nem percebem que estão sendo violados e, de outro são eles próprios instrumentos da manipulação, alienados que estão no processo de produção que os colocam como agentes dos abusos. O momento é, pois, de reflexão. Todos nós consumidores devemos estar alertas. Posso dizer que, se existir chance para mais abuso, esta será abraçada rapidamente, eis que, infelizmente, como já mostrei, faz parte da natureza do sistema capitalista. __________ 1Trata-se, evidentemente, de operação casada ilegal.
Antes de mais nada, quero elogiar o trabalho desenvolvido pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça (DPDC), que muito tem feito em defesa do consumidor. E, o motivo deste meu artigo está relacionado à decisão do DPDC em definir como bem essencial os aparelhos de telefonia celular. Essa decisão acabou sendo questionada pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica e, por isso, ao final do ano passado gerou certo debate a respeito. Penso que o caso é simples e neste artigo eu apenas resumirei o que já escrevi sobre o assunto mais de uma vez, nos últimos dez anos em meus artigos e livros. O Serviço Público de telefonia Diz o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) que os "órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". Anoto o dado importante para a análise, o de que a lei liga o aspecto da essencialidade do serviço com o aspecto de sua continuidade, isto é, sua não interrupção. Para deixar claro o significado disso, distingo os dois aspectos para a compreensão do que se pode entender por essencial e também contínuo. Serviço essencial É pela natureza dos serviços prestados, primeiramente, que se pode definir de sua essencialidade ou não. Assim, pode-se dizer que, em geral, o serviço público, exatamente pelo fato de sê-lo (público), somente pode ser essencial. Não poderia a sociedade funcionar sem um mínimo de segurança pública, sem a existência dos serviços do Poder Judiciário, sem algum serviço de saúde, etc. Nesse sentido, é que se diz que todo serviço público é essencial. Assim, também o são os serviços de fornecimento de energia elétrica, de água e esgoto, de coleta de lixo, de telefonia, etc. (privatizados ou não). Mas, então, é de perguntar: se todo serviço público é essencial, por que é que a norma estipulou que somente nos essenciais eles são contínuos? Para solucionar o problema, aponto dois aspectos: a) o caráter não essencial de alguns serviços; b) o aspecto de urgência. Existem determinados serviços como, por exemplo, os de ordem burocrática, que, de per si, não se revestem de essencialidade. São serviços auxiliares que: a) servem para que a máquina estatal funcione; b) fornecem documentos solicitados pelo administrado (por exemplo, certidões). Se fosse levantar algum caráter de essencialidade nesses serviços, só muito longínqua e indiretamente poder-se-ia fazê-lo. Claro que, existirão até mesmo documentos cujo serviço de expedição se reveste de essencialidade, e não estou olvidando disso. Por exemplo, o pedido de certidão para obter a soltura de alguém preso. Nessas hipóteses especiais, é o caso concreto que designará a essencialidade do serviço requerido. O outro ponto é também relevante. Há no serviço considerado essencial um aspecto real e concreto de urgência, isto é, necessidade concreta e efetiva de sua prestação. O serviço de fornecimento de água para uma residência não habitada não se reveste dessa urgência. Contudo, o fornecimento de água para uma família é essencial e absolutamente urgente, uma vez que as pessoas precisam de água para sobreviver. Essa é a preocupação da norma. Para ficarmos com exemplos no assunto deste artigo, lembro que ninguém pode duvidar da essencialidade e urgência do serviço de telefonia celular para a pessoa que tenha seu veículo quebrado à noite num lugar ermo; ou que esteja acompanhado de alguém que sofra um ataque cardíaco; ou - para ficarmos num exemplo infelizmente corriqueiro - que tenha sido sequestrada e colocada no porta malas de seu veículo, etc. Atualmente, a linha telefônica celular é mesmo necessária e essencial. Logo, vê-se que o serviço público essencial revestido, também, do caráter de urgente não pode ser descontinuado. Assim, como disse, num primeiro momento, esse caráter decorre da natureza do próprio serviço e/ou da situação concretamente existente. Mas, no caso brasileiro, a lei Federal também define o que vem a ser serviço essencial. Trata-se da lei de Greve - lei n. 7.783, de 28 de junho de 1989. Como essa norma obriga os sindicatos, trabalhadores e empregadores a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, acabou definindo o que entende por essencial. A regra está no inciso VII do art. 10, que dispõe, verbis: "Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais: I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; II - assistência médica e hospitalar; III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; IV - funerários; V - transporte coletivo; VI - captação e tratamento de esgoto e lixo; VII - telecomunicações: VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais; X - controle de tráfego aéreo; XI - compensação bancária". Portanto, quer pela natureza do serviço prestado, quer pela definição legal, pode-se com certeza afirmar que o serviço de telefonia celular é essencial e, também, contínuo, não podendo ser interrompido. Aliás, realce-se que o CDC é claro nesse sentido, algo que, no Brasil, decorre diretamente do texto constitucional. Isto porque, a legislação consumerista deve obediência aos vários princípios constitucionais que dirigem suas determinações. Entre esses princípios encontram-se os da intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da proteção à segurança e à vida (caput do art. 5º), que tem de ser sadia e de qualidade, em função da garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado (caput do art. 225) e da qual decorre o direito necessário à saúde (caput do art. 6º), etc. Ora, decorre daí a inteligência do texto do art. 22 da lei. Não é possível garantir segurança, vida sadia, num meio ambiente equilibrado, tudo a respeitar a dignidade humana, se os serviços públicos essenciais urgentes não forem contínuos. Vejamos, agora, a questão do produto que envolve a prestação do serviço. Ou, perguntando de outro modo para o assunto deste artigo: Se a prestação do serviço de telefonia é essencial, o aparelho celular (produto) que permite sua utilização é ou não também essencial? Respondo na sequência. O serviço público é apenas serviço ou também produto? Em relação aos serviços em geral há os puros (prestados por meio da própria atividade) e os que são prestados com produtos que compõem o próprio serviço (a tinta do serviço de pintura, a cola da instalação do carpete, etc.). É importante frisar esse aspecto do serviço que se faz acompanhar do produto, para evitar dúvidas quanto ao serviço público. Este, ainda que entregue algum produto, como por exemplo a água ou a eletricidade, continua sendo caracterizado como serviço. Para elucidar a questão aproveitemos uma objeção feita por ocasião do famoso black-out ocorrido no país em abril de 1999. A questão colocada foi a de que água é produto, eletricidade também. Então, a distribuidora de energia elétrica, como revendedora do produto "energia", não pode ser responsabilizada pelo acidente de consumo que vitimou centenas de pessoas, em função do black-out. A abordagem dizia que, sendo ela distribuidora (comerciante) do produto, simplesmente não fez a sua entrega, porque não a recebeu das linhas de transmissão. Mas o argumento é falacioso e desconhece a essência do significado do serviço. Como dissemos, há serviços que se prestam acompanhados de produtos. E os serviços públicos de fornecimento de água, energia elétrica, gás encanado, etc. são típicos nesse caso. Na realidade é o "fornecimento" o serviço prestado. A montagem de toda a rede de transmissão, encanamento, saneamento, etc. é feita para que o serviço seja prestado, isto é, para que o "fornecimento" de água, energia elétrica, gás, seja realizado. É, repita-se, serviço essencial, que, por suas características, entrega produto, o que não o desnatura como serviço. Assim, na hipótese de qualquer black-out (algo quem infelizmente, tem ocorrido com muita regularidade no país), a distribuidora responde pelo enquadramento no art. 14 do CDC (defeito do serviço prestado) ou no art. 20 (vício) e em todas as demais regras do sistema legal que cuidam dos serviços. Desse modo, não pode haver qualquer dúvida de que, o produto uma vez integrado ao serviço essencial que é prestado reveste-se também do mesmo caráter de essencialidade. Veja-se o simples exemplo de uma torneira, quando se trata da prestação do serviço de água. Sem ela, o serviço jamais seria prestado. Ela é tão essencial quanto o próprio serviço. Da mesma forma, evidentemente, o aparelho celular (produto) é necessário para que o serviço essencial de telefonia seja prestado. Assim, esse produto se reveste do mesmo caráter de essencialidade. É, portanto, como dito, uma falácia dizer que o serviço de telefonia é essencial, mas o produto necessário para sua recepção não é. Como é que o consumidor teria acesso ao serviço, se não fosse pelo aparelho? Ou da água ou gás se não fosse pelos canos e torneiras? Por tudo o que expus, penso, pois, que estava, como está, certo o DPDC em definir o aparelho de telefonia celular como bem essencial. E, como tal, também como estipulado no CDC (art. 18, parágrafo 3º c/c parágrafo 1º do mesmo artigo), toda vez que o aparelho apresentar vício, deixando de funcionar adequadamente, cabe ao fornecedor fazer a troca do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso ou devolver o valor pago pelo mesmo. Quero, por fim consignar que, se as trocas dos aparelhos implicarem em perdas financeiras para os fabricantes, isso não tem qualquer relevo, pois trata-se de risco de sua atividade atrelada ao fato de que, na verdade, quem está sofrendo perdas são os consumidores, que pagaram para receber os produtos em pleno funcionamento.
No artigo de hoje apontarei a importância das ações coletivas, no que respeita à proteção processual inaugurada com a lei 8.078/90 - O Código de Defesa do Consumidor e, especialmente, no âmbito das definições de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos por ela trazidos ao sistema jurídico brasileiro. 1. O Caráter Coletivo da Proteção Processual do CDC 1.1. A Defesa do Consumidor em Juízo Um dos mais marcantes aspectos do Código de Defesa do Consumidor (CDC), apesar de regrar uma série de direitos subjetivos individuais dos consumidores, é o de sua preocupação especial com a proteção coletiva, isto é, de toda a coletividade de consumidores. Isso é significativo na lei 8.078/90. Se observarmos o título III da lei, "Defesa do Consumidor em Juízo", perceberemos isso. Muito embora a proteção individual não esteja excluída - o que, aliás, era mesmo de esperar -, a natureza do regramento é claramente coletiva. Tanto que, como se sabe, o CDC acabou por ser o responsável, no Sistema Jurídico Nacional, por fixar o sentido de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos. 1.2. A Proteção Coletiva O CDC permite a proteção dos consumidores em larga escala, mediante ações coletivas e ações civis públicas. É por elas que o consumidor poderá ser protegido. E, o que se verifica é que, aos poucos, começa-se a descobrir a importância desse tipo de ação nos ajuizamentos feitos pelo Ministério Público ou pelas associações de defesa do consumidor. Mas, a lei consumerista, digamos assim, "quer mais", ela "gostaria" que existissem muitas ações coletivas, pois um de seus alicerces fundamentais na questão processual é exatamente este de controlar como um todo os atos dos fornecedores. Além disso, é importante lembrar que as ações coletivas são, talvez, as únicas capazes de fazer cessar aquilo que eu chamo de "abusos de varejo": uma tática empresarial dolosa de impingir pequenas perdas a centenas ou milhares de consumidores simultaneamente. Veja-se um exemplo disso, numa mala-direta enviada por um grande Banco: "Prezado(a) Cliente, Temos uma novidade que vai aumentar ainda mais a sua tranquilidade. O Serviço de Proteção do seu cartão de crédito (...) foi ampliado e, a partir do vencimento de sua próxima fatura, você contará com o novo Seguro Cartão (...). Agora, além da proteção contra perda e roubo de seu cartão de crédito, você terá a mesma proteção para saques feitos sob coação em sua conta corrente. E mais: com o Seguro Cartão (...) você contará com um conjunto de coberturas e serviços, como renda por hospitalização e cobertura por morte acidental e invalidez permanente em consequência de crime, além de serviços de táxi, despachante, transferência inter-hospitalar e transmissão de mensagens. Por apenas R$ 3,50 mensais, somente R$ 1,00 a mais do que você paga atualmente, você terá acesso a todos esses benefícios. Esta é uma segurança da qual você não deve abrir mão. Porém, caso você queira manter apenas a cobertura atual, basta que nos próximos 30 dias você entre em contato com o (...) por telefone. Cordialmente," Perceba o abuso: o Banco já lançou o valor de R$ 1,00 na fatura do consumidor. Se este não tiver interesse no novo produto/serviço enviado/lançado, terá que tomar a iniciativa de telefonar para o banco para cancelar o que nunca pediu. Some-se a isso a eventual dificuldade de ligar para o banco e, se apesar da "desistência", acabar sendo cobrado, provar que telefonou. Agora, como trata-se de apenas R$ 1,00 ao mês, muito provavelmente os consumidores nada farão, nem reclamarão. Individualmente não compensa. Mas, o banco terá enorme vantagem com seus milhares de clientes. Somente uma ação coletiva teria eficácia na resolução desse tipo de problema. Lembre-se, também, de um outro exemplo vergonhoso, o da maquiagem de pesos e medidas feita diversas vezes pelas grandes indústrias de alimentos, na qual os produtos tiveram seu peso líquido diminuído sem que os consumidores soubessem. Manteve-se o preço e diminuiu-se o peso ou a medida dos produtos em pequenas quantidades e metragens, de modo que não só os prejuízos foram individualmente pequenos, como por isso mesmo, demorou em ser notado! Apesar dos avanços, a área jurídica ainda não respira uma atmosfera cultural de ações coletivas. Uma explicação possível para isso, diz respeito ao ponto da história em que as mesmas foram trazidas para as relações de consumo. O CDC surgiu no cenário jurídico nacional com muitos anos de atraso, gerando um problema típico de memória. Explico: quase todos aqueles que militam na área jurídica formados até 1990 não entendiam as inovações que a lei trouxe, porque foram estudar relações de consumo com base no aprendizado obtido no Direito Privado. E mesmo depois dessa data, ainda demorou muitos anos até que os conceitos introduzidos no sistema jurídico pelo CDC pudessem começar a ser entendidos. O prestígio de nosso Código Civil de 1916 impregnou o modo de percepção dos estudiosos do Direito que, com base no seu acervo mnemônico, acabavam interpretando - e ainda o fazem - as normas a partir do clássico modelo privatista. O vetusto Código Civil, que entrou em vigor em 1917, recebeu forte influência do Direito Privado europeu do século anterior, e que já não tinha plena relação com a nossa realidade. Ora, esse Direito Civil não estava aparelhado para atender as demandas típicas do processo de industrialização capitalista do século XX e seu modo de produção estandartizada, seus esquemas de oferta e marketing, sua capacidade de distribuição etc.. Por influência, em parte, dessa legislação e a interpretação que dela se fez, têm-se até hoje dificuldade para se compreender muitos aspectos da sociedade de massas, dentre os quais o sentido das ações coletivas. É por isso que ainda existe, por exemplo, discussões a respeito da legitimidade do Ministério Público para propor ações coletivas para defesa de direitos individuais homogêneos1. De todo modo, para prosseguir, deixo consignado esse ponto: a proteção processual no CDC tem forte caráter coletivo. 2. Os Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos e a Constituição Federal A Constituição Federal faz referência aos direitos difusos e coletivos (inciso III do art. 1292), mas não os define. Foi a Lei 8.078/90, que tratou de apresentar os parâmetros definidores de direitos difusos e direitos coletivos, o que fez no seu artigo 81. E a guisa de explicitar o sentido de cada um, acabou por trazer uma nova espécie, a dos direitos individuais homogêneos. Diga-se, desde já, que a definição legal está em perfeita consonância com o sistema constitucional, não havendo nada que possa macular suas disposições. Ou seja, o CDC, como lei principiológica que é, concretizador dos princípios e regras constitucionais, também aqui designa os limites e o modo de aplicação dos direitos postos e definidos. Para fazermos uma análise adequada, leia-se primeiramente o que diz a lei: "Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum." Na sequência, examinarei cada um dos tipos. Para facilitar o entendimento do sentido implantado pelo sistema legal, apresento para cada um dos tipos estudados, os tópicos que permitem o estudo das relações jurídicas em geral. Apontarei assim, os elementos da relação jurídica: sujeito ativo, sujeito passivo e objeto (elementos subjetivos e objetivos). 3. Os Direitos Difusos 3.1. Sujeito ativo indeterminado Os chamados direitos difusos são aqueles cujos titulares não são determináveis. Isto é, os detentores do direito subjetivo que se pretende regrar e proteger são indeterminados e indetermináveis. Isso não quer dizer que alguma pessoa em particular não esteja sofrendo a ameaça ou o dano concretamente falando, mas apenas e tão-somente que se trata de uma espécie de direito que, apesar de atingir alguém em particular, merece especial guarida porque atinge simultaneamente a todos. Por exemplo, se um fornecedor veicula uma publicidade enganosa na televisão, o caso é típico de direitos difusos, pois o anúncio sujeita toda a população a ele submetido. De forma indiscriminada e geral, todas as pessoas são atingidas pelo anúncio enganoso. Digamos que um vendedor de remédios anuncie um medicamento milagroso que permita que o usuário emagreça cinco quilos por dia apenas tomando um comprimido, sem nenhum comprometimento à sua saúde. Seria um caso de enganação tipicamente difusa, pois é dirigida a toda a comunidade. Agora, é claro que uma pessoa em particular pode ser atingida e enganada pelo anúncio: ela vai à farmácia, adquire o medicamento, ingere o comprimido e não emagrece. Ou pior, toma o comprimido e fica intoxicada. Nesse caso, esse consumidor particular, tem um direito individual próprio, que também, obviamente, está protegido. Ele, como titular de um direito subjetivo, poderá exercê-lo plenamente com base na Lei 8.078/90. Poderá, por exemplo, ingressar com ação de indenização por danos materiais e morais. Mas, o só fato de alguém em particular ter sido atingido pelo anúncio não só não elide os demais aspectos formadores dos direitos difusos em jogo, como ao contrário, exige uma rápida atuação dos legitimados para a tomada das medidas capazes de impedir a violação a esses direitos difusos (no caso, feita pelo anúncio enganoso). Aliás, diga-se que é exatamente essa característica da indeterminabilidade da pessoa concretamente violada um dos principais aspectos dos direitos difusos. O termo "difuso" significa isso: indeterminado, indeterminável. Então, não será preciso que se encontre quem quer que seja para proteger-se um direito tido como difuso. Ou, em outros termos, ainda que não se possa encontrar um único consumidor enganado concretamente por uma publicidade enganosa, ela poderá ser qualificada de enganosa assim mesmo. Portanto, quer se identifique um consumidor que foi violado no seu direito - individual -, quer não se encontre nenhum, trata-se sempre de direitos difusos. Aliás, ao contrário: essa é que é sua marca, a não determinação do sujeito. Diga-se mais: sempre que surgir, ao mesmo tempo, questão que envolva direitos difusos e outra que envolva direito individual, ambas ligadas pelo mesmo objeto - no exemplo, a publicidade enganosa -, ter-se-á dois tipos de direito em jogo, e ambos protegidos pelo regime legal consumerista: os direitos difusos e o direito individual. 3.2. Sujeito passivo Os obrigados a respeitarem os direitos difusos são todos aqueles que direta ou indiretamente vendem, produzem, distribuem, comercializam etc., produtos e serviços, isto é, são todos os fornecedores, cuja definição está estabelecida no artigo 3º do CDC. 3.3. A relação jurídica Em matéria de direitos difusos, inexiste uma relação jurídica base. São as circunstâncias de fato que estabelecem a ligação. Entenda-se bem: são os fatos, objetivamente postos, os elos de ligação entre todas as pessoas difusamente consideradas e o obrigado. Assim, utilizando-se o mesmo exemplo daquele anúncio enganoso, tem-se que da veiculação do anúncio projete-se sobre toda a coletividade sua influência real, efetiva e objetiva. Eis as circunstâncias de fato: o anúncio e sua projeção objetiva e significativa sobre toda a população. O elemento de comunicação do anúncio projeta-se, lança-se por toda a coletividade, difusamente, atingindo a todos3. 3.4. Objeto indivisível O objeto ou bem jurídico protegido é indivisível, exatamente por atingir e pertencer a todos indistintamente. Por isso, ele não pode ser cindido. Faça-se uma ressalva esclarecedora: o fato do mesmo objeto gerar dois tipos de direito, não muda a natureza de indivisibilidade do objeto nos direitos difusos. Isto é, se um anúncio enganoso atingir um consumidor em particular, esse direito individual identificado não altera em nada a natureza indivisível do fato objetivo do anúncio. É que na ação judicial de proteção aos direitos difusos, o caráter da indivisibilidade do objeto faz a ligação com a titularidade difusa, sem alterar o quadro da proteção particular. 3.5. Exemplos Eis alguns exemplos de fatos de direitos difusos: a publicidade em geral, a distribuição e venda de medicamentos, a poluição do ar e as questões ambientais em geral etc. 4. Os Direitos Coletivos 4.1. Sujeito ativo indeterminado, mas determinável Nos chamados direitos coletivos, os titulares do direito são também indeterminados, mas determináveis. Isto é, para a verificação da existência de um direito coletivo não há necessidade de se apontar concretamente um titular específico e real. Todavia, esse titular é facilmente determinado, a partir da verificação do direito em jogo. Assim, por exemplo, a qualidade de ensino oferecida por uma escola é tipicamente direito coletivo. Ela - a qualidade oferecida - é direito de todos os alunos indistintamente, mas, claro, afeta cada aluno em particular. 4.2. Sujeito passivo Os obrigados a respeitarem os direitos coletivos são os fornecedores envolvidos na relação jurídica base ou aqueles que se relacionam com o grupo de consumidores que formam uma relação jurídica base entre si (ver explicações da relação jurídica, a seguir). No exemplo acima, é a escola. 4.3. A relação jurídica Em matéria de direito coletivo são duas as relações jurídicas-base que vão ligar sujeito ativo e sujeito passivo: a) aquela em que os titulares (sujeito ativo) estão ligados entre si por uma relação jurídica. Por exemplo, os pais e alunos pertencentes à Associação de Pais e Mestres; os associados de uma Associação de Proteção ao Consumidor; os membros de uma entidade de classe etc.; b) aquela em que os titulares (sujeito ativo) estão ligados com o sujeito passivo por uma relação jurídica. Por exemplo, os alunos de uma mesma escola, os clientes de um mesmo banco, os usuários de um mesmo serviço público essencial como o fornecimento de água, energia elétrica, gás etc.. 4.4. Objeto indivisível O objeto ou bem jurídico protegido é indivisível. Ele não pertence a nenhum consumidor individual em particular, mas a todos em conjunto e simultaneamente. Se for divisível é individual ou individual homogêneo e não coletivo. O Direito Coletivo tem objeto que diz respeito à coletividade de consumidores como um todo. Nos exemplos já dados, a qualidade do ensino oferecido por uma escola é indivisível; o tratamento da água conferido pelo prestador do serviço público afeta toda a água a ser entregue. 4.5. Distinção dos direitos individuais homogêneos Note-se bem: às vezes se faz uma confusão entre direitos coletivos e direitos individuais homogêneos, o que exige uma elucidação que será feita no próximo item, mas há que se fazer desde já uma ressalva. Como se viu, o objeto do direito coletivo é indivisível. O que vai acontecer é que o efeito da violação a um direito coletivo gere também um direito individual ou individual homogêneo. Assim, por exemplo, o mau tratamento da água fornecida aos usuários é típico caso de direito coletivo com objeto indivisível, mas simultaneamente seu fornecimento e consumo pode gerar dano à saúde de um consumidor individualmente considerado ou a mais de um consumidor. Daí que, no caso, ambas as situações se configuram. Já o inverso não é verdadeiro: nem todo direito individual homogêneo é coletivo típico conforme se verá no próximo item, mas é uma espécie de direito coletivo (o caráter de divisibilidade do direito individual homogêneo remanesce dividido quando ele for puramente direito individual homogêneo). 4.6. Exemplos São exemplos de direito coletivo: a boa qualidade do fornecimento de serviços públicos essenciais como água, energia elétrica e gás; a segurança do serviço de transporte público de passageiros prestado pelas empresas de ônibus; a qualidade oferecida pela escola dos serviços educacionais por ela prestados etc. 5. Os Direitos Individuais Homogêneos 5.1. Sujeito ativo determinado e plural Aqui os sujeitos são sempre mais de um e determinados. Mais de um, porque em sendo um só, o direito é individual simples, e determinado porque neste caso, como o próprio nome diz, apesar de homogêneos, os direitos protegidos são individuais. Mas, note-se: não se trata de litisconsórcio e sim de direito coletivo. Não é o caso de ajuntamento de várias pessoas, com direitos próprios e individuais no pólo ativo da demanda, o que se dá no litisconsórcio ativo; quando se trata de direitos individuais homogêneos, a hipótese é de direito coletivo - o que permitirá, inclusive, o ingresso de ação judicial por parte dos legitimados no artigo 82 da lei consumerista. É verdade que a ação individual ou a ação proposta por litisconsórcio facultativo não estão proibidas, como também, não está proibido o ingresso de tais ações no curso da ação coletiva de proteção aos direitos individuais homogêneos. Porém, não se pode confundir os institutos, que tem natureza diversa: no litisconsórcio o que há é reunião concreta e real de titulares individuais de direitos subjetivos no caso, no polo ativo da demanda; na ação coletiva para defesa de direitos individuais homogêneos, o autor da ação é único: um dos legitimados do artigo 82 do CDC4. 5.2. Sujeito passivo Os responsáveis pelos danos causados aos sujeitos ativos são todos aqueles que direta ou indiretamente tenham causado o dano ou participado do evento danoso, ou ainda, que tenham contribuído para tal. 5.3. A relação jurídica O estabelecimento do nexo entre os sujeitos ativos e os responsáveis pelos danos, se dá numa situação jurídica - fato, ato, contrato etc. - que tenha origem comum para todos os titulares do direito violado. Isto é, o liame que une os titulares do direito violado há de ser comum a todos. Apesar disso - isto é, apesar de ser de origem comum - não se exige, nem se poderia exigir, que cada um dos indivíduos atingidos na relação padeçam do mesmo mal. Aliás, não só o aspecto do dano individualmente considerado será oportunamente apurado em liquidação de sentença, como o fato de serem tais danos diversos em nada afeta a ação coletiva de proteção e apuração dos danos ligados aos direitos individuais homogêneos. 5.4. Objeto divisível Aqui o objeto é divisível. A origem é comum e atingiu a todos os titulares determinados dos direitos individuais homogêneos, mas o resultado real da violação é diverso para cada um, de tal modo que se trata de objeto que se cinde, que é divisível. 5.5. Espécie de Direito Coletivo Apontamos no item anterior aspectos dos direitos individuais homogêneos diante do direito coletivo. Reexaminemos a questão. Primeiramente, anote-se, como já adiantando, que os direitos individuais homogêneos são também uma espécie do direito coletivo. E, também conforme dito acima, não se deve confundir com litisconsórcio facultativo (ou necessário). Quando duas ou mais pessoas reúnem-se no polo ativo de uma ação judicial, elas formam litisconsórcio facultativo ou necessário. Na hipótese dos direitos individuais homogêneos a ação judicial é coletiva, não intervindo o titular do direito subjetivo individual. Se este quiser promover ação judicial por conta própria para a proteção de seu direito individual pode à vontade, não afastando em nada a ação coletiva. 5.6. Exemplos São exemplos de direitos individuais homogêneos: as quedas de aviões, como o da TAM no Jabaquara em São Paulo; o naufrágio do barco "Bateau Mouche" no Rio de Janeiro etc. 6. Conclusão Vê-se, pois, por aquilo que foi exposto que, há no sistema jurídico nacional regras que permitem a proteção coletiva dos direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos. Quanto mais as pessoas tomarem consciência de sua existência e de sua possibilidade de eficácia muito ampla, mais poder-se-á no Brasil incrementar-se os chamados direitos coletivos "lato sensu", o que trará enorme economia não só para o Poder Judiciário - na correspondente diminuição das ações individuais --, como maior eficácia, posto que as decisões nessas ações acabam por beneficiar todos os atingidos, quer tenham ingressado em juízo ou não. __________ 1Mas, o fato é que o Ministério Público pode ingressar com ações para proteção desse tipo de direito. (Para um exame completo desse tema, ver nosso "Comentários ao Código de Defesa do Consumidor", 5ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010: comentários ao art. 82). 2"Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: ... III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;" 3Aliás, no que respeita à publicidade, esse caráter de expansão da mensagem sobre toda a coletividade é sua razão mesma de ser, já que, como diz o jargão, "a publicidade é a alma do negócio". Não é à toa que se gaste tanto dinheiro com ela. 4É verdade que se mais de um dos legitimados ingressar no polo ativo da demanda haverá litisconsórcio facultativo, mas ainda assim diverso daquele que liga os consumidores individuais.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O corpo humano, o mercado de consumo e a ética

O corpo humano, dizem, é um templo recebido de Deus (ou da natureza) e que nós devemos respeitar. Fruto de admiração desde a antiguidade passou a ser vendido pela sociedade capitalista contemporânea como um produto a ser alcançado na forma do belo. Isto é, a "beleza" virou produto de consumo. Há uma criação mercadológica e também cultural e, como decorrência dessas duas uma imposição social que a cada dia mais afeta as pessoas para que elas "pareçam" bonitas. Não como de fato são: a pressão é para que elas se pareçam com aquilo que o "mercado" diz que é belo. Há um quê de artificial nesse modo de se medir as pessoas. Aliás, não só artificial como falso. Na Inglaterra e na França há legisladores que pretendem obrigar que os publicitários sejam mais "realistas" na utilização de fotos de modelos. É que a utilização de modernas técnicas de manipulação de fotos, tais como o photoshop, permite a criação de imagens que nem sempre correspondem ao real. Muitas vezes, as próprias modelos têm se surpreendido com sua (falsa) beleza. Os anúncios estão muito distantes do que elas são realmente e, uma vez publicadas as fotos de "mulheres com corpos perfeitos", elas acabam influenciando os consumidores suscetíveis. Esses legisladores querem que as fotos sejam acompanhadas da informação de que se trata de efeito digital. Mas, penso que ainda assim, não mudaria a imposição. Pois a verdade é que, de um jeito ou de outro, nesta sociedade em que o ter é mais importante que o ser, onde a aparência é mais importante que a essência, o que se percebe é que algumas pessoas são prisioneiras de seus símbolos: roupas de marca, joias, relógios preciosos, carros último tipo, o corpo idem. O que o mercado acaba vendendo é uma ilusão de segurança e felicidade nos símbolos oferecidos nas vitrines e em anúncios publicitários, e o que esse tipo de consumidor adquire é uma falsa ideia de si mesmo, muitas vezes gerando frustração e um vazio que o obriga à voltar às compras, às transformações, etc. num círculo vicioso sem fim. Na segunda metade do século XX, pudemos assistir ao incrível incremento da tecnologia, do avanço das telecomunicações, da microinformática, do surgimento dos telefones celulares, da internet, enfim, a sociedade capitalista começava a alcançar a ficção científica. Aliás, prometia um conforto jamais imaginado (pena que ele jamais chegará para a maior parte da população do planeta). Muito bem. O desenvolvimento das ciências naturais aliado à tecnologia de ponta, se deve em larga medida a existência de um enorme mercado de consumo. A maior parte dos cientistas do final do século XX, início do século XXI não é mais aquele romântico pesquisador que pretende, com suas descobertas, trazer melhores condições de vida às pessoas. O mercado tudo engole e adotou o pesquisador como empregado, ávido por descobertas patenteáveis capazes de enriquecê-lo e a seus patrões com os correspondentes royalties. Se não há mercado, não há pesquisa. Esse é o lema. Para quem duvida, lembro aqui o filme "O óleo de Lorenzo", que conta a história verídica da luta dos pais do menino Lorenzo na tentativa de descobrir a cura para a sua doença. Eles percebem que a solução não surge por incúria dos cientistas, mas por falta de mercado: havia um número insuficiente de crianças doentes na relação com o custo do investimento exigido para a pesquisa. Ou, como disse um famoso médico brasileiro: "No mundo atual está se investindo cinco vezes mais em remédios para virilidade masculina e silicone para mulheres do que na cura do Mal de Alzheimer. Daqui a alguns anos, teremos velhas de seios grandes e velhos de membro ereto, mas eles não se lembrarão para que servem". O apelo pela beleza e pela estética é tamanho que, um dos aspetos mais evidentes dos avanços da ciência tecnológica é o da venda e reforma de partes do corpo humano. Quase como no filme de Frankenstein, existe a possibilidade da ficção virar realidade. Evidentemente, há muita coisa boa. O avanço da biologia e da medicina permitem os transplantes de órgãos que salvam muitas vidas, que devolvem funções de partes do corpo humano que estavam perdidas ou que dão a visão às pessoas etc. Há também o uso de vários tipos de próteses, as operações corretivas com ajuda de micro instrumentos e uma numerosa quantidade de procedimentos outrora impensáveis. Isso tudo é muito bom. Ao lado disso, porém, o mercado passou a oferecer toda sorte de cirurgias estéticas. Não só é possível deixar de usar óculos, fazendo uma fantástica, muito rápida e indolor operação oftálmica (que, aliás, é executada praticamente em série, uma atrás da outra), como homens e mulheres podem literalmente comprar partes do corpo humano, ou fazer trocas no próprio corpo com enxertos. A busca do corpo perfeito, da forma sempre esguia e jovem, esses produtos tão bem vendidos no mercado de consumo, fez surgir um enorme mercado de reposição de "peças" humanas. É aquilo que eu intitulo de "frankensteinização" do mercado. Naturalmente, não há nenhum mal em que as pessoas queiram fazer as correções que entenderem necessárias, desde que o façam conscientemente e com acompanhamento médico adequado. Podem querer fazer lipoaspiração para jogar fora as gorduras indesejáveis e difíceis de perder; ou desejar eliminar as papas dos olhos; as mulheres podem querer aumentar seus seios ou corrigi-los etc. É mero exercício do direito de cada consumidor. O mercado cuida desse assunto com alta prioridade e qualquer um pode ver. Basta ligar a tevê para perceber a quantidade de produtos e serviços ligados à forma e a beleza existentes. O marketing, por sua vez, em todas as suas vertentes, o tempo todo, mostra as pessoas de um modo que vai se impondo no imaginário e desejo dos consumidores. Nos filmes dos cinemas, nos canais de televisão, nas novelas etc. são apresentados atrizes e atores magros e "sarados" com formas desenhadas, que depois os consumidores tentam "copiar" adquirindo os produtos e serviços oferecidos. Há também muita coisa esquisita. Já tive oportunidade de comentar que alguns canais de tevê e vários sites na internet vinham apresentando mulheres com seios exagerados e havia, ao que parece, uma "campeã" brasileira, que detinha seu recorde com nada mais nada menos que 5,5 litros de silicone em cada seio. (A recordista mundial, segundo constava, era uma americana que possuía 7 litros em cada mama!). Olhando para aquela recordista brasileira, que, quando se levantava, era obrigada a ficar segurando os litros de silicone, senti pena, porque, sua decisão estava - como está - fora do padrão psíquico das demais pessoas. Até poder-se-ia garantir a ela um eventual direito de fazer o que fez (certamente questionável, como penso). Todavia, há algo mais grave, que é o do procedimento médico subjacente nessa questão: os excessivos seios de silicone foram colocados por um cirurgião médico, acompanhado de sua equipe com outro médico anestesista e seus assistentes. Pergunto: não há limite ético para um médico fazer tal operação? Não deve ele se negar a fazê-la e aconselhar a interessada a procurar ajuda psicológica? A mim parece que as entidades de medicina responsáveis deveriam cuidar desse tema, estabelecendo regras e limites. Não é só porque a ciência moderna e a incrível tecnologia que a acompanha seja capaz de construir corpos humanos com fantásticas próteses, enxertos e reformas, que se pode fazê-lo. Do ponto de vista ético, a possibilidade real de uma execução não significa necessariamente o direito de exercê-la. Não falo apenas do problema dessa mulher de seios enormes. Refiro a questão em sentido mais amplo, porque se for deixado que o mercado tome a decisão, com o alto faturamento que o segmento gera, poderemos assistir a muitas aberrações.
O Código de Defesa do Consumidor e os criminosos trotes estudantis É sempre a mesma coisa: com o início das aulas nas Faculdades, os veteranos trogloditas dão início a mais uma demonstração de selvageria na recepção aos calouros. As autoridades policiais são omissas nessa questão, pois como anoto abaixo alguns crimes são praticados para qualquer pessoa ver. Além disso, não se pode esquecer a responsabilidade das instituições de ensino. Neste ponto, abordarei o tema com base nas garantias de proteção à saúde e segurança dos estudantes (consumidores) previstas no Código de Defesa do Consumidor. Conforme já tive oportunidade de relatar em outras ocasiões, consta que o trote estudantil nasceu nas universidades europeias na Idade Média. Tendo em vista o terrível baixo nível de higiene da época, por razões profiláticas, isto é, para evitar doenças e sua proliferação, raspava-se a cabeça dos alunos ingressantes (os calouros) e muitas vezes queimavam-se suas roupas. Essas questões, inicialmente higiênicas, muito provavelmente influenciadas pelo grau de brutalidade reinante, já no século XIV, nas Universidades de Bolonha, Paris e Heidelberg, haviam se transformado em rituais bárbaros claramente sadomasoquistas: Os veteranos arrancavam pelos e cabelos dos calouros, que muitas vezes eram obrigados a ingerir urina e comer excrementos. (Fatos observados em Faculdades no Brasil dos séculos XX e XXI!). Em Portugal, há relatos de trotes violentos no Século XVIII na Universidade de Coimbra. Tudo indica que os estudantes da elite brasileira que lá estudaram tenham importado a prática para o território nacional. A ignorância e a bestialidade do ritual fez sua primeira vítima fatal no ano de 1831, com a morte de um estudante da Faculdade de Direito de Olinda. Os trotes, assim como os crimes e as mortes continuaram por todo o século XX: em 1980 um calouro de um curso de jornalismo foi morto por traumatismo cranioencefálico em Mogi das Cruzes; em 1990 morreu de parada cardíaca um calouro do curso de Direito em Goiás; em 1999, um calouro de medicina da USP morreu afogado em uma piscina, etc. (um longo e tenebroso etc.). O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressavam nas faculdades. Lembro que quando ingressei na Faculdade nos idos de 1976, nós estudantes já pensávamos que aquilo era um jeito muito estranho de dar boas vindas. Não só eu, mas muitos de nós, achávamos uma contradição os jovens ingressarem na faculdade - um restrito setor da elite brasileira - e se mostrarem tão mal educados: ao invés de agradecer ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agiam como bárbaros, arrogantes e sádicos. Os trotes eram generalizados, sendo praticados em quase todas as escolas. Felizmente, isso mudou em parte: são muitas as escolas que não só proíbem os trotes violentos, como vários Centros Acadêmicos (CAs), cônscios de suas responsabilidades como guardiões dos direitos e das liberdades também os combatem. Muitas escolas e CAs, por exemplo, substituíram esse tipo de delito pelos chamados "trotes solidários": organizam festas de recepção, shows, teatros nos quais os calouros não só participam como distribuem produtos alimentícios, medicamentos e roupas para serem doados a instituições de caridade. Conheço escolas em que os veteranos montam grupos de recepção para integrar os calouros na vida universitária, mostrando o funcionamento efetivo do campus, o método de ensino, as condições reais de estudo, explicando as regras vigentes, etc. Isso é mesmo muito bom. Todavia, nem bem o ano letivo começou e a violência retornou. Se eu dissesse a você, leitor, que jovens foram amarradas e sobre elas foram jogadas mistura de sangue, fezes de animal, urina e ovos, se eu dissesse que isso foi feito, você pensaria que se trata de agrado de boas vindas? Ou, na verdade, parece mais um grupo de bandidos em explícita prática de tortura? A resposta, evidentemente, aponta para uma quadrilha covarde e violenta. Pois, foi o que aconteceu com os calouros dos cursos de Zootecnia e Medicina da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). (Fotos foram tiradas e podem ser vistas - clique aqui: basta acessar e colocar "trote" na busca). Pergunto: Até quando as autoridades policiais permitirão esse e outros tipos de trote violento? No caso da Univasf as fotos permitem identificar os veteranos criminosos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, ainda se pratica o trote nas ruas para quem quiser ver. Lembro que o trote violento - física, moral e psicologicamente - caracteriza prática criminosa prevista em nossa legislação penal. É possível também ao calouro-vítima buscar ressarcimento na esfera civil. Vejamos. Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, como os que acima apontei, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro. Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo, fazê-lo gatinhar pelas ruas, faze-los andar um colado no outro como uma centopéia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (art. 140 do CP). Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP). Haverão outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente. Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim. Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim buscar responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizar a escola, mas não se deve esquecer que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. O CDC, como adiantei, garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a escola pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC. Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e nos primeiros dias de aula distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro. Não se deve esquecer que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. É preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas. Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de Direito, medicina, sociologia, engenharia, etc. possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, aliás, talvez a mesma minoria que anos depois, no período da formatura, faz os "bota-foras" violentos.
O Código de Defesa do Consumidor garante como direito básico do consumidor o de acesso aos órgãos judiciários e administrativos (inciso VII do art. 6º) e um dos mais efetivos modos de assegurar esse direito é o da concessão da assistência judiciária gratuita, garantia pela lei (1.060/50 - clique aqui), importante lei da década de 1950. Atualmente, muitas decisões judiciais têm negado a chamada Justiça gratuita, sob o argumento de que cabe ao requerente provar insuficiência de recursos para poder obtê-la. Trata-se, na verdade, de grave equívoco porque a lei 1.060/50 não faz essa exigência e o texto constitucional que cuida da questão não regula assistência judiciária gratuita, mas sim assistência jurídica integral, que é algo bem diverso. Na coluna de hoje, pretendo solver a confusão que tem sido feita nos meios forenses relativamente a esses dois institutos fundamentais de exercício da cidadania e de salvaguarda do acesso à Justiça, a saber o direito de assistência judiciária gratuita assegurado na lei 1.060/50 e o direito de assistência jurídica integral e gratuita assegurado na Carta Magna (art. 5º, LXXIV - clique aqui). Vejamos. 1. A assistência judiciária Um dos grandes entraves para o exercício da cidadania é - sempre foi - o de ordem financeira, capaz de por si só impedir a pessoa de bater às portas do Judiciário para apresentar seu pleito. No Brasil, fruto de uma sustentação democrática bastante ampla, já nos idos de 1950 foi editada a lei 1.060 visando acabar com essa ordem de impedimento. Pois bem. Anote-se um dado desde logo: um dos pontos fortes dessa lei está na garantia do direito de isenção que pode a parte requerer, consistente em não arcar com as taxas, custas e despesas processuais, vale dizer, a lei cuida de isentar do pagamento do custo do processo a pessoa que necessite. E o que ela exige para o exercício dessa prerrogativa? Apenas e tão somente a simples afirmação em juízo de que a parte não tem condições de arcar com esse custo sem prejuízo de seu próprio sustento e/ou de sua família. Nada mais. O artigo 4º da lei de assistência judiciária, como é conhecida a lei 1.060/50, é expresso nesse sentido ao dispor que: "A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família". O legislador fez exigência bastante singela: basta a mera afirmação na própria peça processual(a norma fala em petição inicial, mas a interpretação extensiva consensual e pacífica oferecida pela doutrina e jurisprudência deixam patente que o pleito pode ser feito na contestação, nos embargos, etc.). O texto legal é de clareza solar, exigindo uma mera interpretação gramatical. Aliás, a questão é induvidosa, inclusive, no E-STJ: "Processual civil. Recurso especial. Assistência judiciária gratuita. Estado de pobreza. Prova. Desnecessidade. - A concessão dos benefícios da assistência judiciária gratuita não se condiciona à prova do estado de pobreza do requerente, mas tão-somente à mera afirmação desse estado, sendo irrelevante o fato de o pedido haver sido formulado na petição inicial ou no curso do processo" (STJ, REsp. 469.594/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22/5/2003, DJ 30/6/.2003, p. 243). "Para o benefício de assistência judiciária basta requerimento em que a parte afirme a sua pobreza, somente sendo afastada por prova inequívoca em contrário a cargo do impugnante" (AG 509.905, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 11/12/2006). "Assim sendo, esta Corte já firmou entendimento no sentido de que tem presunção legal de veracidade a declaração firmada pela parte, sob as penalidades da lei, de que o pagamento das custas e despesas processuais ensejará prejuízo do sustento próprio ou da família (...). 7- Recurso provido para, reformando o v. acórdão recorrido, conceder ao recorrente os benefícios da assistência judiciária gratuita" (REsp. 682.152/GO, 4ª Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 22/3/2005, v.u., DJ 11/4/.2005, p. 327). No mesmo sentido: REsp. 653.887/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 2ª Turma, DJ 6/3/2007. E isso porque a garantia que está em jogo é a do acesso à Justiça e não a do direito do Estado arrecadar taxas. Mas, para aquele que duvide que a pessoa que vai ao Judiciário sem pagar taxas e com isso lesa o erário público, o §1º do referido art. 4º resolve a pendência: "Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais". 2. A questão da prova da insuficiência de recursos Agora pergunta-se: a parte não tem que provar a insuficiência de recursos? Esse é um dos temas que ainda gera decisões díspares. Isso porque é difícil ao magistrado admitir que alguma afirmação possa ser feita em juízo sem a devida apresentação de prova correspondente. Acontece que, na hipótese, o legislador presume a prova da afirmação. Não significa dizer que a parte não tem que provar, mas que existe uma presunção legal de que ela está falando a verdade. Essa presunção é "juris tantum", podendo a parte contrária impugnar a concessão para desmontá-la, conforme estabelecido no "caput" do art. 7º da lei: "A parte contrária poderá, em qualquer fase da lide, requerer a revogação dos benefícios de assistência, desde que prove a inexistência ou o desaparecimento dos requisitos essenciais à sua concessão". Portanto, não se trata de afirmação sem prova, mas de simples inversão do ônus da prova para a parte contrária, em função da presunção legal existente. De fato, não poderia ser de outro modo, pois caso assim não fosse, muitas demandas se perderiam, na medida em que antes de decidir o tema posto, o juiz teria que avaliar se a parte tinha ou não condições de arcar com as despesas. (Não se deve esquecer que a parte que mentir nesse ponto será condenada ao pagamento do décuplo das custas). De todo modo, apesar da permissão ampla ao requerente, o "caput" do art. 5º da lei permite que o juiz avalie o pleito até para indeferi-lo desde que haja elementos para tanto nos autos. Leia-se, "verbis": "Art. 5º. O juiz, se não tiver fundadas razões para indeferir o pedido, deverá julgá-lo de plano, motivando ou não o deferimento dentro do prazo de setenta e duas horas". Isto é, se o magistrado, examinando as provas já existentes nos autos, desde logo constata elementos capazes de permitir a formação de um juízo a respeito da capacidade financeira da parte, pode, então, fundamentadamente, indeferir o pedido. Todavia, anoto: trata-se de incapacidade financeira e não econômica, como às vezes se verifica servir de equivocado argumento para a negativa da concessão. A parte pode muito bem ter patrimônio e, logo, capacidade econômica, mas estar impossibilitada de pagar um mínimo de taxas. Aproveito para dizer que também não é impedimento para a concessão do benefício, o fato da parte ter advogado próprio, pois isso nada prova de sua capacidade financeira, na medida em que seu patrono pode fixar contrato de honorários para receber ao final do feito ou vinculado ao sucesso da demanda. Além do que, no que toca a contratação de advogado particular, já se decidiu que "A circunstância da parte ser pobre na acepção jurídica do termo, não implica estar ela tolhida de escolher seu próprio advogado (RT 602/229)", conduta, por sinal, expressamente autorizada pela lei 1.060/50 (artigo 5º, § 4º). Desse modo, reafirme-se que não precisa a parte fazer qualquer prova da insuficiência de recursos para arcar com as despesas processuais, pois a lei exige unicamente a declaração de pobreza específica para fins processuais. Ou seja, pela só declaração atestada na própria peça processual há indicação suficiente para se extrair da necessidade de seu deferimento, garantindo-se o acesso à justiça, garantia fundamental. Para terminar esse ponto, consigno também, que o pedido de concessão da justiça gratuita não preclui, podendo ser requerido a qualquer momento no processo quando a situação financeira da parte for insuficiente para honrar com o pagamento das custas sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família. 3. A confusão entre "assistência judiciária" e "assistência jurídica" Algumas decisões judiciais tem confundido "assistência judiciária" com "assistência jurídica"1 , o que tem levado ao indeferimento do pedido de assistência judiciária, sob o argumento de que "... é princípio constitucional a necessidade de comprovação de insuficiência de recursos (art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal)"2 , extraindo daí a conclusão de que "cabe a parte, demonstrar, documentalmente (através de comprovante de rendimento ou documento equivalente), a hipossuficiência alegada (...)", pois o "benefício é para quem realmente tem e demonstre a necessidade"3. Essa interpretação da norma constitucional, a nosso ver e com todo o respeito, é equivocada. Com efeito, dispõe o referido inciso LXXIV, do art. 5º, da Constituição Federal: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos." De uma simples leitura do texto feita com calma e utilizando-se apenas e tão-somente da primeira das regras de interpretação, a gramatical, percebe-se que o comando linguístico estampado no texto magno não se dirige a isenções de pagamento de taxas, custas e despesas processuais. A letra da lei expressamente trata de outro assunto: o da "assistência jurídica integral e gratuita" aos que, dela necessitando, requererem. Veja-se que a Constituição Federal utiliza o adjetivo "jurídico" e não o adjetivo "judiciário": aí reside a confusão. Não se perca de vista o fundamento de defesa democrática da cidadania trazido pela lei 1.060, já nos idos de 1950. Só por isso, deve-se, desde logo, prestar-se mais atenção no que disciplina a atual Constituição Federal em relação ao assunto, especialmente levando-se em consideração o fato de que ela inaugurou no país um vasto campo de defesa da cidadania e de acesso à justiça.4 Ora, o que o legislador constituinte disciplinou foi uma determinação para que o Estado garanta assistência jurídica integral e gratuita a quem necessitar. É para esse tipo de serviço essencial que o cidadão deve comprovar insuficiência de recursos - e não para requerer a mera isenção de taxas, custas e despesas processuais. A doutrina define, sem sombra de dúvida, o que vem a ser a assistência jurídica integral e gratuita: "(...) Diferentemente da assistência judiciária prevista na constituição anterior, a assistência jurídica tem conceito mais abrangente e abarca a consultoria e atividade jurídica extrajudicial em geral. Agora, portanto, o Estado promoverá a assistência aos necessitados no que pertine a aspectos legais, prestando informações sobre comportamentos a serem seguidos diante de problemas jurídicos, e, ainda, propondo ações e defendendo o necessitado nas ações em face dele propostas."5 Percebe-se, pois, que é razoável exigir do cidadão a comprovação da insuficiência de recursos, mas somente quando se trate de assistência jurídica integral e gratuita (e não de simples assistência judiciária, diga-se mais uma vez), e isto porque: a) não se está falando apenas de ação judicial, mas de atos anteriores, de aconselhamento relativo ao comportamento que a pessoa deve ter diante do texto legal, de quais atitudes tomar, que caminhos seguir, de assinar ou não um contrato, fazer uma queixa, firmar uma quitação, notificar alguém, etc., podendo chegar, claro, na ação judicial já encampada e patrocinada totalmente pelo Estado; b) se está tratando de entrega direta de serviço público, com prestação de serviço completo, o que exige do Estado aparelhamento específico - escritórios, advogados, etc. - e custo adicional. Realce-se um ponto importantíssimo: em momento algum se está a dizer que a parte pode fraudar o sistema processual fazendo afirmação falsa - como parecem querer dar a entender algumas decisões6 -; longe disso. O que a lei 1.060/50 faz é apenas, de um lado, garantir que a parte não tenha bloqueado o acesso ao judiciário por uma exigência burocrática e, de outro, transferir para a parte contrária o ônus da demonstração da não veracidade da afirmação daquele que recebe o benefício da assistência judiciária gratuita. Em outras palavras, a lei 1.060/50 dá o direito subjetivo à pessoa de, mediante simples afirmação especial, pleitear os benefícios de assistência judiciária gratuita. Exercida essa prerrogativa, ao juiz só cabe indeferi-la se tiver fundadas razões para tanto (art. 5º). Não tendo, nada pode fazer a não ser deferir o pleito. Daí, caberá à parte contrária - caso queira - impugnar a concessão, sendo dela o ônus da prova da inveracidade da afirmação. Se a parte contrária fizer tal prova, então, o beneficiário será condenado ao pagamento do décuplo das custas judiciais (§ 1º, do art. 4º). Vê-se, portanto, que não só a lei 1.060/50 foi recepcionada pela CF/88, como está em plena sintonia com seus princípios, ao garantir acesso à justiça, de forma célere, imparcial, e fundada no devido processo legal.7 Saliente-se, ademais, que não vinga a alegação, as vezes esposada em juízo, de que a parte deve fornecer os documentos previstos no § 3º, do art. 4º, da lei 1.060/50, e isso porque tal diploma está revogado. O referido § 3º, do art. 4º foi acrescentado pela lei 6.654/79, que exigia a apresentação da carteira de trabalho e previdência social, quando do requerimento de assistência judiciária gratuita. Tal norma dispunha o seguinte: "§ 3º. A apresentação da carteira de trabalho e previdência social, devidamente legalizada, onde o juiz verificará a necessidade da parte, substituirá os atestados exigidos nos §§ 1º e 2º deste artigo" Acontece que, pela nova redação dos parágrafos 1º e 2º, do artigo 4º, dada pela lei 7.510/86, foram dispensados os atestados anteriormente exigidos nestes parágrafos, o que tornou implicitamente revogado o § 3º e sua exigência8. 4. Conclusão Portanto, não há qualquer incompatibilidade entre a lei 1.060/50 e o inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal, posto que este regula a assistência jurídica integral e gratuita, aquela, nos artigos 1º ao 4º, apenas a assistência judiciária relativa à isenção de taxas, custas e despesas processuais. Nesta se exige comprovação da insuficiência de recursos; naquela basta a afirmação dessa insuficiência. __________ 1Assim, por exemplo está, dentre outros, nos seguintes recursos: a) AI 1.101.999-9 do 1º TAC/SP, DO. 28-6-02 ; b) AI 1.207.345-7 de 1/7/2003 também do 1º TAC/SP. 2AI da letra "a" da nota anterior. 3Decisão da 3ª vara Cível de Araçatuba/SP, Ação Monitória, Proc. 3354/2003 4V. a respeito Nelson Nery Jr., "Princípios do Processo Civil na Constituição Federal", 5ª ed. rev. Ampl., São Paulo: RT, Seção III. 5Nelson Nery Jr, ob. cit., p. 77. 6Com, por exemplo, a da letra "b" da nota 1 supra. 7Anote-se, em acréscimo, ainda que em rodapé, que a garantia constitucional do acesso à justiça não significa que o processo deva ser gratuito. No entanto, se a taxa judiciária for excessiva de modo a criar obstáculo ao acesso à justiça, tem-se entendido ser ela inconstitucional por ofender o princípio aqui estudado.(Conf. Nelson Nery Jr., ob. cit., p. 98) 8Nesse sentido e por todos: Theotônio Negrão. Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor, 35ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, nota 7 ao art. 4º, p. 1.150.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A oneomania ou doença das compras compulsivas

O vício está nas manchetes. São dezenas de filmes no cinema e na tevê que apresentam o drama de pessoas viciadas no jogo de cartas, em cassinos, no álcool e outras drogas, afora o noticiário que a todo momento mostra o drama vivido por gente famosa ou gerando acidentes graves e crimes inacreditáveis. Para ficar com dois exemplos de filmes, lembro Conduta de Risco, no qual George Clooney interpreta um advogado viciado em pôquer e que, por isso, passa uma série de necessidades, e O sonho de Cassandra, de Woody Allen, em que este descreve uma tragédia em que um dos personagens se endivida também no vício do pôquer, sempre alimentado por um agiota, pronto a lhe emprestar mais dinheiro para as apostas. O vício é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. Na área da literatura há um bom e incrível exemplo disso: Dostoiévski, um dos maiores escritores de todos os tempos, foi viciado nas roletas e nelas perdeu seus bens e amigos. Depois, como que para tentar exorcizar a doença, escreveu mais um maravilhoso livro, O Jogador. Muito bem. Fiz essa introdução apenas para referir a gravidade do vício e tratarei de um, contemporâneo e fruto da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e também é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles. O comprador compulsivo é aquele que se satisfaz não com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ele pode literalmente adquirir qualquer coisa que lhe surja na frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra o satisfará. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, esse tipo de comprador é um consumidor típico e, portanto, frequenta os mesmos lugares que os demais. Daí, ele acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ele mesmo quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, cds, etc. e com isso, às vezes, nem ele nem os que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ele é exagerado ou uma espécie de colecionador. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. Como eu costumo dizer, parafraseando Descartes: "Consumo, logo existo". Somos uma sociedade de consumidores e, infelizmente, as pessoas são vistas, avaliadas, medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem adquirir. No século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica. Além disso, o sistema capitalista compreendeu bem uma das questões de ordem psicológica, que poderia ser capaz de frear as vendas. Falo do dinheiro que se gasta quando se compra. Se uma pessoa tivesse que pagar em dinheiro toda e qualquer compra, saberia, ao menos quando carregasse as moedas, "o peso" de sua perda. Ela estaria trocando, por exemplo, alguns maços de papel moeda por um terno, um sapato ou uma bolsa. Trocaria muitos maços de dinheiro por uma viagem ao exterior e entregaria uma mala cheia dele para adquirir um automóvel. A pessoa "enxergaria" o quanto estava gastando. Mas, o comprador não percebe isso. Ele simplesmente passa um cheque, que representa o dinheiro e que, sintomaticamente, ele nem possui concretamente, pois está no banco. Quer dizer, está num número numa conta. Nem no cofre da agência bancária está. E o sistema financeiro foi ampliando essa ocultação. Num primeiro momento, então, como disse, o consumidor passa um cheque, que representa o dinheiro que ele possui. Mas, depois, por conta do sistema de créditos, ele passa o cheque sem nem mesmo ter o dinheiro. Com o cheque especial o crédito que está à disposição funciona como uma tentação dizendo "me usa que eu te satisfaço". Ele age de forma similar ao agiota do filme de Woody Allen. Isso é tão verdadeiro, que, com a "evolução" do sistema capitalista e seus modos de estímulo para as compras e controle dos consumidores, o cheque especial, que no início tinha de ser solicitado, atualmente é colocado na conta corrente -- é acoplado à ela --, sem que o cliente peça. Fica lá, virtualmente, como uma possibilidade. Na realidade, uma provocação ao consumo. Mas, há mais. O sistema de cartão de crédito é outro fortíssimo estímulo às compras. Ele é, digamos, assim, mágico. Um pedaço de plástico que dá acesso aos bens materiais existentes no mercado. Com ele se pode, quase que literalmente, adquirir tudo o que existe. Aliás, o usuário do cartão nem precisa ter dinheiro. Na atualidade, com a espetacular incrementação da internet, não só as compras tornam-se instantâneas e feitas de dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line (docs e teds), os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas, etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele. Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas (Nem preciso falar da ampla utilização do cheque pré-datado que é uma marca brasileira, mas nem por isso menos perniciosa e que afeta sobremaneira o modo de compra e de endividamento). Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença. Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. É claro que, se o comprador com oneomania for uma pessoa de posses e puder gastar muito dinheiro, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize. Assim, um outro modo de identificação da doença está em verificar o excesso da compra de produtos, que jamais são usados. Encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em várias cidades brasileiras os grupos de autoajuda intitulado "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", que muito ajudam os doentes. Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas boas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Os DVDs e os abusos praticados contra o consumidor

Quem aluga ou compra um filme em DVD, tem, evidentemente, o direito de assistir ao filme em si e quantas vezes quiser. No entanto, os distribuidores, sub-repticiamente enfiam pela "goela" do consumidor seus anúncios (remunerados) e seus trailers. Já na época do VHS, os distribuidores impingiam aos consumidores suas propagandas não solicitadas e seus trailers não queridos. Mas, naquele tempo era só colocar o vídeo para rodar e aguardar finalmente o filme chegar. O consumidor gastava poucos segundos com a operação. No passado, com o sistema de avanço no teclado esse abuso era quase imperceptível. Barreira Tecnológica Mas, eis que chegou o DVD. Era para ser favorável ao consumidor: a facilidade de sintonizar o filme, as cenas, a qualidade da imagem e do som. Era! Mas, não é! Com a tecnologia, houve um incremento da forma de abuso. O que devia ser prático e de qualidade passou a ser um transtorno. No início, até que os distribuidores se comportaram bem. Passavam, como sempre, propagandas indesejadas e trailers não pedidos, mas, como ainda não havia tecnologia, o consumidor conseguia ir direto ao que interessava: o filme. Bastava apertar "menu" e ir adiante. Mas, nesta sociedade capitalista do lucro em primeiro e em último lugar e em que alguns empresários não estão preocupados com a qualidade de seus serviços, a alegria de consumidor dura pouco. O problema surgiu: os novos DVDs, com moderna tecnologia de ponta, impedem que o consumidor exerça seu direito de assistir diretamente ao filme pelo qual pagou: em alguns desses produtos há bloqueio para menu, de tal modo que, sem assistir ao material imposto não dá para ir ao que interessa. Vou realçar este último ponto: o consumidor desembolsa dinheiro, seu rico e suado dinheiro, para alugar ou comprar um DVD e acaba sendo obrigado a ficar assistindo a propagandas e trailers. E, quando compra sofre indefinidamente, pois a ideia de quem compra é assistir ao filme muitas vezes e quando bem entender ou parar num dia e terminar no outro. Mas, toda vez que tenta ir até ele, é obrigado a enfrentar a abusiva barreira indesejada dos anúncios e trailers. Com o passar do tempo, inclusive, os próprios anúncios e trailers ficam velhos e perdem o sentido (o mesmo fenômeno de abuso se dá nos cinemas, com praticamente meia hora de anúncios e trailers; mas pelo menos no cinema estes são atuais...). Filmes infantis Realço que, essa situação é particularmente grave quando se trata de filmes infantis. Os pais compram esse tipo de DVD porque as crianças assistem várias vezes. E, não é incomum que a criança assista um pouco de um filme, desista e passe ao próximo e repita a operação. Acontece que, toda vez que retorna a criança é obrigada a ficar assistindo propagandas e trailers. Abuso qualificado, pois. Direito de escolha Antes de prosseguir, quero deixar consignado que esse sistema viola o sagrado direito de escolha do consumidor. É o consumidor quem tem o direito de escolher o que quer ver. Esses empresários não podem impor ao consumidor o que ele não pediu, especialmente porque o consumidor está pagando para assistir. Só seria aceitável esse tipo de imposição se os DVDs fossem amostra grátis. Fora isso, é abuso puro e simples. É verdade que, não são todos os distribuidores que estão fazendo isso, mas receio que a prática acabe se generalizando. Informação enganosa E, por falar em abuso e DVD, não posso deixar de comentar outro tipo que são as informações enganosas estampadas nas caixinhas. Algumas são claramente falsas quando não ridículas. No plano das ridículas coloco aquelas do autoelogio e que dizem : "o melhor filme do ano", "magnífico", "estupendo", "o filme mais engraçado que você já assistiu", etc. Dá até para dizer: "Hellôôô, não dá para perceber que os elogios são feitos pelo próprio produtor/distribuidor?". É risível, mas pode iludir. Note, meu caro leitor, que as expressões acima são reais e eu mesmo as extrai aleatoriamente numa locadora. Há mais: "Você nunca sentiu tanta emoção"; "Ria sem parar"; "As maiores gargalhadas de sua vida". Essas últimas parecem ser perigosas para cardíacos... Há também aquelas que pretendem dar um ar de autenticidade à frase, fingindo que são confessionais. Veja: 1. "O filme mais emocionante da década" e abaixo consta algo como: "assinado-John alguma coisa, da Revista Film Review publicada em alguma cidadezinha no interior dos Estados Unidos"; 2. "Não perca tempo. Alugue agora e emocione-se" e abaixo algo como: "assinado-Antony qualquer coisa, do Jornal Dayli Something", etc. Nesses casos, o elogio está ligado a uma pessoa desconhecida, que supostamente escreveu num jornal ou revista inacessível. Boa essa! Será que alguém acredita? Parece que sim... Agora, há casos de pura mentira: filmes que anunciam atores famosos em letras garrafais, com foto e tudo, mas quando o consumidor vai assistir ao filme percebe que o ator faz uma pontinha de dois ou três minutos. Ou, então, se trata do primeiro filme da carreira do ator, quando ele não era conhecido nem tinha expressão e trabalhou num filme fraquíssimo. Nem comentarei a hipótese dos distribuidores de filmes como, por exemplo, os de Woody Allen (que não é Diretor das grandes massas), que escondem o nome do Diretor, tentando empurrar o DVD apenas pelo nome do ator conhecido (há vários atores famosos trabalhando com ele). O interessante nesse exemplo é que, na prática, não há delito porque o caso é, digamos assim, de informação enganosa "a favor" do consumidor, pois dá uma chance à ele de assistir filme de primeira qualidade (como são os de Woody Allen), mesmo que alugando ou comprando apenas porque um conhecido ator aparece na capa! A honestidade vingará? Nesse mercado capitalista que não conhece valores, mas apenas preços, como diria Octávio Paz, será que algum dia teremos honestidade por parte dos produtores/distribuidores? Será que um dia, caro leitor, você chegará à vídeo-locadora, examinará as caixinhas de filmes e lerá: "Tente! Talvez você se divirta" "Fizemos de todo possível para o filme ser emocionante" "Há quem ria. Há quem não ria. Depende do humor de cada um" "Os atores são conhecidos e bons, o Diretor excelente, a produção de primeira. Esperamos que você goste". "A produção é caríssima. Leve para casa, por favor" "Nem melhor nem pior que os outros. Mas, o que você tem mesmo para fazer hoje?"
Sou de um tempo em que a tecnologia ainda engatinhava e lembro muito bem que, quando assistia na tevê ao filme Jornada nas Estrelas ficava vidrado no aparelho tipo celular que os personagens da nave espacial U.S.S. Enterprise utilizavam para se comunicarem. Era mesmo a antecipação pela ficção daquilo que se tornaria realidade. Star Trek, o nome original, é da década de sessenta (estreou em 1966 nos EUA e em meados de setenta no Brasil). Quando a Motorola lançou em 1996 um aparelho celular que se abria tal como o do Capitão Kirk batizou-o com o nome de Star Tac (Eu tive um e milhões de outros consumidores também em todo o mundo). Muito bem. A tecnologia avançou e em alguns casos até superou a ficção. Ainda não é possível fazer o teletransporte de pessoas (e, claro, nunca será), mas o mercado de consumo atual coloca à mão do consumidor muita coisa que ele sequer sonhava na segunda metade do século XX. É de conhecimento geral que o modelo de produção capitalista do século passado, com ênfase no pós-segunda guerra mundial, engendrou o maior desenvolvimento tecnológico de todos os tempos. Na segunda metade do século XX, pudemos assistir ao incrível incremento da tecnologia de ponta, do avanço das telecomunicações, da microinformática, do surgimento dos telefones celulares, da internet, enfim, a sociedade capitalista começava a alcançar a ficção científica. Aliás, prometia um conforto jamais imaginado (pena que ele jamais chegará para a maior parte da população mundial). Esse modo de exploração do mercado (leia-se da sociedade e do planeta) foi aos poucos tomando conta de todos os setores existentes. E, com sua grande mão invisível e também visível, absorveu praticamente todo o corpo social, acabando por imiscuir-se em setores antes imunes. Nada escapou. Lembro, a título de exemplo, o caso dos esportes ditos amadores: A Olimpíada é, atualmente, um enorme negócio. E, claro, do futebol nem preciso referir, porque faz muito tempo que a organização, local ou internacional, tem como meta o faturamento. Aliás, a FIFA hoje funciona como uma grande empresa franqueadora e licenciadora de produtos e serviços. O Estado contemporâneo, de sua parte, não poderia ficar imune ao modelo implementado. Ele também passou a ser um agente de produção capitalista - direta e indiretamente - e acabou por adotar os modos de exploração e controle existentes no mercado. Isso, evidentemente, no mundo inteiro. No Brasil, o fenômeno está presente em todas as esferas da administração pública, municipal, estadual, federal, no âmbito das autarquias e empresas públicas etc. Até aí, tudo bem. Não haveria, a princípio, nenhum problema em que a administração pública acompanhasse o desenvolvimento do mercado melhorando sua prestação de serviços. O problema é que, como anunciei no título, o que se constata é que somente digamos "meio" Estado é que se modernizou. Veja um exemplo de eficiência obtido do modelo capitalista pela administração pública: Um cidadão dirige seu veículo pelas ruas da capital de São Paulo. É um dia útil e passa das 17:00 horas. Numa esquina, ele é flagrado por um radar, pois seu final de placa não pode trafegar naquele dia e horário por causa do rodízio. Algum tempo depois, ele recebe pelo correio em casa a multa e a foto de seu veículo com o número da placa. No mês seguinte, ele ingressa via internet na sua conta bancária. Acessa "pagamentos" e "licenciamento de veículos". Cadastra o seu colocando o número do Renavan. Clica, aparece o valor do IPVA, da multa em relação ao rodízio, do seguro obrigatório e da taxa do serviço de correio, pois ele receberá o documento do licenciamento em casa. Paga e tudo se resolve quase que num piscar de olhos, rapidamente, com o que há de mais eficiente e prático em matéria de serviços e sem sair de sua casa. Não é incrível? Não é muito eficiente? Realmente, funciona muito bem, sem qualquer entrave ou burocracia. Essa modernidade tecnológica interligada "on-line" permite que o cidadão pague uma conta de serviços, peça uma nota fiscal eletrônica e consiga um crédito para abater parte do valor de seu IPTU ou que peça a nota fiscal paulista e além de receber créditos participa de sorteios mensais de prêmios em dinheiro. São adoções pela administração pública dos típicos casos de ofertas feitas pela iniciativa privada visando obter comportamentos do consumidor e vendas de seus produtos e serviços em troca de bônus, descontos e outros benefícios diretos e indiretos, participação em concursos etc. Aliás, não é de agora que a administração pública se utiliza das técnicas de "marketing" com publicidade massiva para anunciar suas obras (inclusive com publicidade enganosa...). Enfim, nem se discute que o Estado moderno copiou e adotou o modelo capitalista de atuação e funcionamento. Como diria George Orwell, esse Estado tipo "grande irmão" é muito bom para vigiar, controlar e cobrar. Em contrapartida, pergunto: onde está a eficiência do modelo capitalista quando se trata de dar à população o que ela precisa? Onde está a tecnologia quando se trata de proteger as pessoas e seu patrimônio? Como é que o agente público, tão eficiente para multar e cobrar, não consegue sequer prever a quantidade de chuvas que cairá? Como é que não obtém antecipadamente a medida da quantidade de água de uma represa e quanto ela ainda poderia suportar nos dias seguintes? Como é que não enxerga a ocupação desordenada de áreas de risco? Ora, o desenvolvimento tecnológico propicia nos dias atuais o melhor serviço de meteorologia que jamais tivemos; a ciência geológica é avançadíssima; o mapeamento dos solos feito por satélites e "in loco" permite avaliações muito precisas da situação das áreas, das ocupações regulares e irregulares, dos riscos de ocorrência de sinistros etc. Na atualidade, não há desculpa para que não se tomem medidas preventivas para tentar evitar catástrofes climáticas e ambientais. O desenvolvimento tecnológico existente tem de ser inteiramente utilizado pela administração pública e não apenas em parte e no mero interesse arrecadatório. Os acontecimentos dos últimos dias envolvendo o drama das pessoas nos alagamentos em São Paulo, Minas Gerais e especialmente no Rio de Janeiro são o retrato de mais uma crônica de tragédia anunciada que, ao que tudo indica, infelizmente, se repetirá no ano que vem, assim como já aconteceu no ano passado, no anterior, no anterior, etc. Um longo etecetera de catástrofes, que poderiam ter sido evitadas. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente Direito do Consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos. A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando centenas de mortos e feridos, é algo de tamanha gravidade que passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito a ocupação do solo e as necessárias ações preventivas visando a segurança das pessoas e de seu patrimônio. De nada adianta ficar simplesmente acusando as vítimas depois das ocorrências, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada e também nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Faço, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica em que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente causa o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agride uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos, etc., causando a morte e lesando centenas de pessoas, o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão, para ter direito ao recebimento de indenização. Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou ao menos minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla, é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e consequentemente da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e também pela vítima. Pensão Os familiares que são dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Do mesmo modo, a vítima sobrevivente pode pleitear pensão pelo período em que, convalescente, tenha ficado impossibilitado de trabalhar. Outros danos materiais Além da pensão, no cômputo dos danos materiais inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como, no caso de desmoronamento da habitação, seu preço ou o custo para a construção de uma outra igual e todas as demais perdas efetivamente sofridas relacionadas ao evento. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estadia e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral, etc. Danos morais Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que no caso dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo. De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às famílias das vítimas, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto. Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver às coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé, intenção de causar o dano, ou regularmente repete os mesmos erros. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor.