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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Big Brother nas escolas?

O Big Brother nas escolas? *Este artigo foi escrito por Rizzatto Nunes em conjunto com a pedagoga Claudia Calmon  Em 1946, George Orwell dizia: "Escrevo porque há uma mentira qualquer que quero denunciar...". E ele que, infelizmente, faleceu em 1950 aos 46 anos, vítima de tuberculose, desenvolveu com maestria excepcional uma experiência estética que foi capaz de proclamar uma série de denúncias envolvendo a natureza humana, o Estado e a sociedade. "O Grande Irmão está de olho em você" é o conhecido slogan do famoso romance "1984". Não preciso chover  no molhado de apontar o lado visionário desse livro, um clássico moderno atual e aterrorizante que, escrito entre 1943 e 1948 e lançado em 1949, nos legou uma série de avisos e modos de conduta e também apontou elementos de tecnologia que foram incrementados mesmo antes da data prevista no título. Dentre as várias situações assustadoras apresentadas, a mais famosa e que se tornou popular por um motivo mais ou menos torpe é a do Big Brother. Como se sabe, na obra de Orwell, as pessoas eram vigiadas 24 horas por dia por um aparelho intitulado teletela, que funcionava simultaneamente como televisão e câmera. A vigia que se fazia sobre as pessoas era de tamanha força que se controlavam não só as falas, mas também as expressões faciais, de tal modo que, se aparecesse na tela o Grande Irmão e a pessoa não demonstrasse seu amor por ele e aquiescência com suas ideias, era recolhida, torturada e eliminada. O herói do livro, Winston, que guardava um pouco de consciência das coisas que ocorriam, para poder pensar livremente e esconder a expressão de seu próprio rosto enquanto assim o fazia, descobriu um canto em sua casa não captado pela teletela. Era um espaço neutro em que ele podia permanecer longe da vigilância. Ali, na sombra da vigia, ele podia pensar e escrever num livro de páginas amareladas.  Muito bem. Recentemente, a colocação de câmeras de vídeo nas salas de aula de um colégio em São Paulo gerou, e ainda gera, uma discussão sobre a legitimidade de sua existência. A pergunta que se faz é: pode mesmo uma escola colocar câmeras de tevê para vigiar o comportamento do aluno em sala de aula? Os que se posicionam a favor dizem que, com isso, os alunos acabam se comportando de maneira mais adequada, respeitando as regras de convivência vigentes na escola. Os críticos, de outro lado, dizem que esse não é o melhor método de incorporação de normas de conduta. Penso que os críticos têm razão. A se continuar a implantação desse modelo de vigília em salas de aula, como se os alunos estivessem num presídio, talvez se consiga, de fato, um comportamento objetivamente adequado às normas, mas se coloque a perder o necessário processo de formação e interiorização delas. É preciso que o aluno não só cumpra as determinações, mas, especialmente, internalize-as, conferindo-lhes legitimidade, pois só assim conseguirão comportar-se de forma adequada não só na escola como em outros ambientes sociais. De nada adianta construir-se uma relação na qual se busque meramente um comportamento passageiro - no período das aulas - como se vivêssemos numa sociedade de total vigilância. Aliás, até mesmo em 1984 o Grande Irmão e seus asseclas queriam não só o comportamento exterior, mas também a internalização da obediência. Tanto que a pessoa flagrada em delito, antes de ser eliminada, era torturada até o momento em que interiorizava o comando, dizendo que aceitava as imposições do sistema. Depois disso, era eliminada. Será que restará aos alunos procurar um local onde as câmeras não os alcancem para poderem manifestar seus pensamentos, sua concordância ou discordância com as regras e os sistemas? Será que esses alunos terão que, de fato, pensar livremente apenas nos banheiros e cantos obscuros da escola? (é isso que se chama educação?). A autoridade do professor em sala de aula (e também a do diretor do estabelecimento) será trocada por câmeras de segurança? Essa questão das câmeras de vigilância há de ser bem analisada, inclusive pelos pais. Algumas perguntas podem e devem ser feitas. Será que a instalação do disposto não está a denunciar algo maior?  Como, por exemplo, a perda da autoridade do professor e do próprio estabelecimento de ensino? Ademais, no caso desse colégio de São Paulo há ainda uma questão jurídica relevante. Examinando-se o projeto pedagógico publicado na sua página da internet, vê-se um descumprimento da proposta. Vejamos alguns trechos: "Projeto Pedagógico - ... orienta-se por um fazer cotidiano que objetiva a aquisição de conhecimentos e competências permeados pelo diálogo, respeito à diversidade , atitude crítica e edificada em princípios éticos e de solidariedade. Fundamenta-se no binômio indissociável ACOLHER e EDUCAR, que: revela uma concepção de criança e de adolescente como sujeito competente e de direitos;     considera sua dimensão intelectual, social, emocional, expressiva, cultural, interacional; respeita as características de cada faixa etária em direção à sua formação integral em que o sentir, pensar e agir estão intrinsecamente interligados. A ação educacional que viabiliza essa proposta se dá por meio de projetos relacionados à valorização da vida... à convivência social, aos trabalhos em equipe... Esses procedimentos visam ao desenvolvimento de competências e habilidades que promovem reflexão crítica e construção de autonomia intelectual e moral, o desenvolvimento da criatividade e da capacidade de tomar decisões conscientes e responsáveis frente à realidade social. Nesse processo de inserção do aluno na vida em sociedade, nossa escola organiza suas ações em função de três valores centrais, que determinam a maior parte das decisões tomadas, sejam funcionais ou pedagógicas: COMPETÊNCIA - capacidade de mobilizar saberes para agir em situações concretas. ÉTICA - construção do pensamento criterioso, comprometido com o respeito mútuo, com a reciprocidade , com autonomia moral e intelectual. SOLIDARIEDADE - estabelecimento de convívio social que envolva produzir, dividir e aprender com os outros; compromisso com a causa humana, percebendo-se como agente de transformação da realidade e de si mesmo". Há mais no projeto, mas é o que basta para verificar que a proposta pedagógica - boa em essência - não tem qualquer relação com a inserção de câmeras de vigilância em sala de aula. Parece mesmo que a direção perdeu a rédea da administração da escola e dos alunos. Realmente, é uma contradição. Para educar é preciso sabedoria e autoridade. Ambas geram legitimidade. O aluno obedece porque compreende a razão da ordem e, ao internalizá-la, acaba por legitimar a autoridade do professor e da própria escola. Esse é um tipo de poder legítimo, que é exercido para gerar consciência e conhecimento. Com câmeras de vigilância, instaura-se uma espécie de força que se limita a controlar a ação no espaço físico. Perde-se, pois, a oportunidade de educar verdadeiramente. No caso, o próprio projeto prevê a autonomia dos alunos, o preparo para a vida social fora da escola e a responsabilidade.  Mas que autonomia terão os alunos com câmeras olhando para suas faces e seus atos? A autonomia não surge num sistema de imposição de ordem e de obediência vigiada.  Para sua aquisição, deve-se permitir e propiciar a discussão constante de princípios e regras pelos próprios alunos entre si e com a participação dos professores, para que, de fato, elas sejam internalizadas e se tornem legítimas. Não se trata de imposição, mas de aquisição negociada, dialogada, problematizada no contexto da aprendizagem. Os alunos devem ser convidados a pensar juntos sobre o que é construir uma sociedade com respeito, o que é que de ser considerado bom e correto para a comunidade escolar, como se deve dar o relacionamento entre os colegas, o que deve ser considerado saudável, justo, etc. Uma escola tem que estar preparada para formar cidadãos responsáveis e conscientes de seus direitos e deveres. Não pode se contentar em gerar robôs, que sejam incapazes de expressar o que pensam, cujos movimentos do corpo são controlados e que entram e saem das salas de aulas com sorrisos amarelos nos seus rostos vigiados.
Como já referi nesta coluna, se o consumidor adulto é, como de fato é, vulnerável e hipossuficiente no mercado de consumo (como diz o Código de Defesa do Consumidor), a criança-consumidora é especialmente vulnerável. E, se o consumidor adulto é, geralmente, vítima do fornecedor, a criança-consumidora é não só vítima do fornecedor como também muitas vezes dos pais e demais pessoas próximas. Os pais (e também os avós e demais parentes) poderiam - ou, melhor, deveriam - aproveitar essas ocasiões artificiais - como a do Dia das Crianças - em que o elemento externo (isto é, o mercado) impõe que eles façam compras e deem presentes aos filhos e netos para refletirem sobre como querem que essas crianças não só recebam esses presentes como que valor devam dar a eles. Naturalmente que, uma vez que se está decidido a dar o presente, o primeiro caminho é descobrir o que dar. Tem-se, portanto, que refletir sobre a qualidade do presente. Haverá coisas úteis e porcarias. Coisas indispensáveis e outras desnecessárias. O mercado, como sempre digo, saberá oferecer de tudo. O marketing sedutor e enganador, aliado ao sistema de crédito e parcelamento consegue convencer até quem não pode comprar e adquirir produtos e se endividar (ou aumentar ainda mais seu endividamento). E, nessa questão dos presentes, há muito mais do que simplesmente essa ocasião do dia das crianças: os produtos - e também serviços - de consumo de há muito têm intervindo nas relações de pais e filhos de modo que a reflexão impõe que pensemos num horizonte mais amplo do que apenas essa fictícia data comemorativa. Muito se tem falado, nessa nossa sociedade que se diz civilizada, da dificuldade que os pais têm, atualmente, para educar seus filhos na imposição de limites claros. É um tema batido, mas repito o que se tem assistido: muitos pais acabam oferecendo para seus filhos produtos e serviços em excesso porque eles não tiveram essa oportunidade na própria infância. Isso por, pelo menos, dois motivos: primeiro porque os pais desses pais não tinham condições financeiras para adquirir os produtos e serviços que eram oferecidos; segundo, porque, de fato, naquela época, havia menos oferta e o preço era muito mais elevado. Agora, esses pais, que melhoraram seu padrão aquisitivo, têm à sua disposição muito mais produtos e serviços a menores preços, o que acaba sendo uma tentação irresistível. Ademais, como aqui tenho sempre lembrado, o marketing agressivo de vendas de produtos e serviços para crianças, muitas vezes, cria de propósito um liame entre pais e filhos de modo a possibilitar que esses últimos pressionem os primeiros em busca das compras. Aliás, por causa disso, não é incomum que pais se endividem apenas e tão somente para comprar bugigangas e produtos desnecessários para seus filhos. Não quer dizer que os filhos não possam fazer por merecer, nem que não devam, em algum momento, receber certos produtos e serviços. A questão é outra. É preciso que as crianças e adolescentes deem valor a tais oferendas; é necessário que eles saibam o real preço das coisas; que consigam, de fato, perceber que aquilo é uma conquista e não algo que facilmente caiu do céu. Lembro o que disse meu amigo Outrem Ego a respeito desse assunto. Ele me contou que, quando era criança, de infância pobre e recursos limitados, como qualquer garoto da idade dele, gostava de colecionar figurinhas. Mas, como seu pai, operário, não tinha recursos para adquiri-las a toda hora, ele ficava aguardando dias a fio numa alta expectativa. Ele me contou que, até hoje, ainda lembra da torcida que fazia para que a chegada do seu pai em casa às sextas-feiras fosse acompanhada dos desejados pacotinhos de figurinhas. E me falou da enorme alegria que sentia quando ganhava cinco pacotinhos. Cinco. Apenas cinco e gerava um incrível sentimento de felicidade. Uma vez, seu pai trouxe-lhe dez e ele quase não dormiu de tão contente e eufórico que ficou. Ele dava muito valor não só às figurinhas como ao esforço do pai para adquiri-las. Sei, como você, meu caro leitor, que os tempos são outros, mas o modo de aquisição de produtos e serviços e a importância que as crianças devem dar a esse ato continuam os mesmos. É preciso que elas consigam dar valor aos presentes; que descubram que eles exigem um esforço para sua compra e seu recebimento. E, como há muitos pais que, como os de meu amigo, não têm condições financeiras para a aquisição mesmo de alguns produtos simples e baratos, é também importante que elas saibam que nem sempre poderão possuir certos produtos e serviços sem que isso signifique alguma derrota ou tragédia. Para terminar essa proposta de reflexão, já que estou falando de crianças e referi que vivemos numa sociedade civilizada, faço questão de apresentar uma história narrada pelo filósofo Mario Sérgio Cortella no seu livro "Qual é a tua obra?"1. Ele conta uma história da visita de dois caciques da nação Xavante em 1974 à cidade de São Paulo. Naquela época, diz Cortella, "os xavantes não usavam o dinheiro como meio de qualidade de vida. Para eles, qualidade de vida era alimento, porque era o jeito de garantir sobrevivência"2. Dentre os vários lugares que os xavantes foram levados para conhecer, um deles foi o Mercado Municipal de São Paulo, no centro da cidade. O filósofo da PUC/SP conta que os xavantes ficaram pasmos e maravilhados com tanta comida sendo oferecida. Eram - e são - pilhas de alfaces, tomates, cenouras, laranjas etc. De repente, diante de uma banca repleta de legumes, um dos xavantes apontou para um menino e perguntou: "O que ele está fazendo?". Tratava-se de um menino pobre, que estava "pegando alface pisada, tomate estragado e batata já moída"3. Ele recolhia do chão e colocava tudo num saquinho. Cortella disse que responderam: "Ué, ele está pegando comida". O cacique, então, não disse mais nada e continuou andando e observando as coisas ao seu redor. Depois de um tempo, perguntou: "Eu não entendi. Por que ele está pegando essa comida estragada aqui no chão se tem essa pilha de comida boa?". Ao que responderam: "É que para pegar comida dessa pilha aqui, precisa-se de dinheiro". O cacique continuou: "E ele não tem dinheiro?". "Não tem", disseram. "Por que não tem dinheiro?", indagou o cacique. Mario Sérgio Cortella afirma que, depois disso, os caciques disseram algo que ele nunca se esqueceu: "Vamos embora". E explicou que eles queriam dizer: "Vamos embora da cidade de São Paulo". "Veja como eles são 'selvagens'"4. Cortella concluiu: "Eles não conseguiram compreender essa coisa tão óbvia: que uma criança faminta, diante de uma pilha de comida boa, pega comida podre. Eles não são civilizados". Penso que a culpa por esse estado de coisas não é só do sistema, mas que o modelo de capitalismo selvagem em que vivemos contribui e muito para tanto não resta dúvidas. Quem sabe um dia possamos afirmar com o peito repleto de alegria que realmente atingimos um elevado estágio de civilização, no qual as crianças não precisam passar e morrer de fome - e que ninguém precise.
Aproveito o caso da brasileira que colocou sua virgindade à venda numa espécie de reality show de uma produtora australiana, para propor uma reflexão sobre o que, de fato, pode-se vender na sociedade capitalista em que vivemos. O fato de uma moça querer vender sua virgindade talvez não possa mesmo ser capaz de chocar ninguém. Vivemos uma época em que há um entorpecimento tal que parece que fica difícil acontecer algo escandaloso. (Basta o exemplo da banalização da violência e da criminalidade do dia a dia para demonstrar a gravidade do problema). Daí que, neste artigo, a partir da proposta da catarinense que se chama Catarina e que deu o que falar, pretendo focar o mercado de consumo e sua incrível capacidade de criar comportamentos, sua tremenda e oculta força para amoldar pessoas e impor normas. Já referi aqui nesta coluna o livro de Michael J. Sandel, cujo título é sugestivo: "O que o dinheiro não compra"1. Quem lê o livro vê que o dinheiro pode comprar quase tudo. (Há os que defendem que possa mesmo comprar tudo). Aos moldes do livro, vou colocar uma questão: "Tudo está à venda?". Pensando na jovem catarinense, fica-se com uma tentação em responder que sim, que os eventuais limites éticos que permitiriam que respondêssemos "não!" estão perdidos. A importância do dinheiro na sociedade capitalista abertamente colocada e também fixada como fundamento das relações instituídas, realmente, estabeleceu um novo modelo normativo. Os lemas da sociedade em que vivemos são bem conhecidos: "O dinheiro não traz felicidade, manda buscar" ; "O dinheiro não traz felicidade, mas compra algo bem parecido";"O dinheiro não compra felicidade, mas prefiro chorar no carro a chorar no ônibus" e outras bobagens do tipo, mas que dizem muito sobre o sistema. Por outro lado, não resta dúvida de que ele é importante. As pessoas oprimidas pela falta do dinheiro olham à volta e depois de muito - ou pouco - pensarem acabam descobrindo algo que possam vender dado ao alto grau de permissividade para fazê-lo. Para ficarmos no tema da venda da virgindade ou, tecnicamente, de parte do corpo humano - a possibilidade oferecida a um homem de, penetrando a candidata, romper seu hímen - situarei os pontos, para nossa reflexão, em alguns elementos do capitalismo que envolvem o corpo. No livro "O mercado humano", Giovanni Berlinguer e Volnei Garrafa apresentam um panorama da enorme quantidade de casos de venda e compra de partes do corpo em muitos países do mundo2. Vários deles são bem conhecidos e, inclusive, regulamentados em alguns lugares, tais como o das barrigas de aluguel ou a venda do próprio sangue humano (algo permitido nos Estados Unidos da América3). Berlinguer e Garrafa focam casos de venda de órgãos, mostrando o drama que envolve vendedores desesperados e médicos e compradores inescrupulosos4. O episódio da catarinense, claro, está situado no campo da prostituição - tema também abordado no livro dos dois autores. É do tipo de oferta do corpo às escuras. Um "blind date" sexual em que a mulher não conhece seu parceiro; basta que ele pague e aceite as regras previamente estabelecidas, como a própria Catarina explica: "O comprador não pode levar outra pessoa, querer realizar fantasias (sic...), usar brinquedo sexual, nada. Também é obrigatório o uso de camisinha e só pode tirar a virgindade, nada mais. Conversar pode. Mas beijar, não. Beijar não está no contrato"5. (grifei o pedaço da fantasia, pois como pretendo mostrar é exatamente fantasia - machista - que está sendo vendida). Na questão do uso e venda do corpo, a influência dos métodos capitalistas se faz sentir quando as pessoas, ao se referirem a esse tipo de transação, utilizam-se da expressão "mercado de órgãos humanos", "mercado de barrigas de aluguel", "mercado de sangue humano", etc., o que é uma forma simbólica de incorporar a transação, dando-lhe ares de normalidade, isto é, apresentando-a como produto de consumo. Acresço aos exemplos acima outro citado por Sandel no referido livro: Uma mulher de 30 anos do Estado de Utah no EUA, Kari Smith, mãe solteira de um menino de 11 anos de idade que tinha problemas na escola, precisava de dinheiro para a educação de seu filho. Em 2005, num leilão via internet, ela se ofereceu para tatuar um anúncio permanente na própria testa para qualquer patrocinador comercial que estivesse disposto a lhe pagar 10.000 dólares. Um cassino online aceitou a oferta. Apesar da resistência do tatuador - quem diria? - Kari tatuou o endereço eletrônico do cassino na testa, virando uma espécie de outdoor ambulante6. Na maior parte desses exemplos, o que os pesquisadores mostram é que se trata de gente desesperada e necessitada. São pessoas muito pobres que vendem o próprio sangue para conseguir trocados e continuar vivendo como der ou vendem o rim ou alugam a testa! Mas, não deveria haver limites? Na venda de órgãos, há, e na de sangue, também em vários lugares. E a existência de um mercado lícito ou mesmo ilícito não seria capaz de estimular a venda aberta de qualquer coisa? Será que basta existir compradores para surgir a oferta? Ou é o contrário? Voltemos ao caso do leilão da virgindade. Ao contrário do que mostram os autores nos livros citados, não é o desespero que marca a oferta de Catarina. Ao que consta, ela não é uma moça que precise vender sua virgindade para sobreviver, como ela mesma confirma: "O que eu posso te dizer agora é que o leilão, para mim, é um negócio"7. Aliás, diz mais que com o dinheiro que receberá pretende abrir uma ONG e investir num projeto de casas populares para famílias pobres em Santa Catarina8. A acreditar-se nas palavras dela, seria, então, um sacrifício o que ela se propõe. Seria um sacrifício que vale a pena? Dá para desconfiar, pois como se pode ver das reportagens, ainda que ela pretenda desmerecer o pagamento em dinheiro - polpudo, diga-se-há um claro interesse pela fama, esse outro produto da sociedade de consumo, que criou as celebridades e o culto às estas. Os chamados cinco minutos de fama são um doença típica da sociedade capitalista contemporânea: "Quando deu certo - o chamado para o reality show - , fiquei feliz. Eu era de uma cidade pequena em Santa Catarina e um cineasta australiano me escolheu"9. O caso é complexo: Quem olha, pensa que ela não dá valor à própria virgindade ou fisicamente falando, ao hímen que há de ser rompido. Não farei qualquer consideração porque, naturalmente, somente uma avaliação sóciopsicológica poderia responder. E, talvez, ninguém tivesse nada a ver com isso não fosse um detalhe: Catarina e os produtores do intitulado "documentário" tornaram a oferta pública. Ela abriu mão de sua privacidade e, bem ao contrário, se mostrou abertamente a todo o mundo. Aliás, era esse mesmo o propósito, pois se trata de um leilão, uma oferta pública e ganha quem mais der. Eu pergunto: o que, de fato, Catarina está vendendo e o que os compradores pretendem adquirir? Seria a "virgindade"? Ora, 'virgindade" é um conceito construído que tem base fisiológica e sócioculturais (o que faz variar seu sentido, dependendo do local e momento da história). Do ponto de vista objetivo, a virgindade pode ser definida como o atributo de uma pessoa que nunca teve nenhum tipo de relação sexual, representada na mulher pela existência do hímen intacto (o que pode eventualmente trazer problemas para mulheres que não tenham hímen, embora nunca tivessem sido penetradas pelo membro masculino). Simbolicamente, a virgindade emana a ideia de pureza, candura, da obra intocada. Na sociedade de consumo, por isso, fala-se em CD virgem, DVD virgem, azeite virgem ou extra virgem (quando referido à primeira prensagem), etc. Na religião cristã, a Virgem Maria é o exemplo da pureza: a mulher santa que deu a luz sem ser maculada. Pergunto, agora, como fazem os autores dos livros citados: Que mal há nisso? Se a virgindade é dela, por que não pode vender? Nos outros casos, o aspecto comercial mostrou-se bastante prejudicial por vários motivos. Não só porque são sempre os oprimidos e desprotegidos que recorrem a esses estratagemas insólitos, como também porque enfraquece o sentido moral que deveria nortear as ações humanas e que deveriam servir de sustentação ao mercado - qualquer tipo de mercado. No caso de venda de órgãos, Berlinguer e Garrafa contam que um dos primeiros processos judiciais para punir a prática foi desenvolvido na Grã-Bretanha contra um médico (Raymond Crockett) por ele ter transplantado para quatro pacientes ingleses os rins de outros quatro cidadãos turcos recrutados como doadores recompensados ou remunerados. Na sentença, o juiz deixou claros os malefícios do ato para todos: "A tragédia pessoal e profissional de V. S, dr. Crockett, é que o seu comportamento desacreditou profundamente a prática do transplante renal, que havia sido encorajada por V. S. através de suas atividades na Grã-Bretanha"10. Na questão da venda de sangue, Sandel apresenta um estudo feito pelo britânico Richard Titmuss em 1970 para mostrar a relação entre venda e doação11. Ele comparou o sistema em vigor no Reino Unido, onde todo o sangue para transfusão é doado com o dos Estados Unidos, onde parte é doada e outra parte é comprada por bancos de sangue comerciais de pessoas dispostas a vendê-lo. Titmuss comprovou, através de dados, que o sistema britânico de coleta de sangue funciona melhor que o americano. O modelo de mercado livre para compra e venda de sangue leva à escassez crônica, ao desperdício, a custos mais altos e a maior risco de contaminação. Mas, ele também apontou os problemas de ordem ética: os bancos de sangues lucrativos nos EUA recrutam boa parte de seus vendedores em bairros pobres e favelas; pessoas desesperadas para obterem algum dinheiro. Há uma redistribuição do sangue dos pobres aos ricos, um efeito perverso e imoral. Titmuss diz, e com razão, que transformar o sangue em mercadoria corrói o sentimento de obrigação de doar sangue, diminui o espírito de altruísmo e solapa a relação de doação, que é uma característica ativa da vida social. E os dados comprovavam que, por causa da existência de um mercado de compra e venda de sangue, o que se observava nos EUA era um decréscimo do número de doadores. "A comercialização e o lucro com o sangue vêm afastando o doador voluntário"12. Como pondera Titmuss, a partir do momento em que começam a encarar o sangue como um produto que pode ser vendido e comprado, as pessoas perdem um pouco de seu senso de responsabilidade moral pela doação. A compra e venda de sangue desmoraliza a prática da doação gratuita. Então, para concluir, retorno ao caso da Catarina. A oferta é de um produto imaterial, uma fantasia machista: a virgindade que será violada. Espanta mesmo que, em pleno século XXI, algum homem pague e muito para ter essa experiência, desse modo frio e calculista. E, se existe algum produto material, ele é o hímen que será rompido. Daí, então, há também uma espécie de serviço: o direito a seu rompimento. Caso típico de oferta que fazem todos os dias as prostitutas, com a diferença de que não se trata de rompimento, mas apenas de penetração. Qual o alcance desse tipo de oferta? Talvez passe em branco e, como acontece com a maioria dos "famosos de cinco minutos", logo logo não se tratará mais do assunto. Realmente. Todavia, o problema da oferta remanesce e deveria nos fazer pensar. Seu caráter machista expõe o que há de pior nesse modelo: A ideia de que a mulher vale por sua virgindade e que sua violação é um prêmio muito especial, algo que já devia ter sido extirpado do imaginário social masculino e feminino, pois mantém em vigor um tabu indesejado (a virgindade) e o preconceito de que a mulher deve sempre apresentar-se virgem para seu homem. __________ 1Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1ª. ed. 2012. 2Brasília:UNB, 1ª. Edição, 1996. 3Como mostra Sandel no referido livro, p. 121/123. 4Idem, passim. 5Trecho de entrevista à Folha de São Paulo publicado em 26/9/2012. 6Idem, p. 184. No livro, Sandel narra outros casos de uso do corpo com outdoor permanente e temporário (Conf. ps. 179/184). 7Mesma entrevista acima referida. 8Idem. 9Idem 10Livro citado, p. 11. 11Livro citado, ps. 121 e segs. 12Titmuss citado no livro de Sandel, p. 122.
Não é a primeira vez que trato do tema nesta coluna, mas, como as greves se repetem, eu também me vejo obrigado a voltar a cuidar dos direitos dos consumidores nesse período de greve dos funcionários dos correios e dos empregados dos bancos. Tenho referido os Correios no Brasil como exemplo de serviço de alta qualidade e eficiência. Ou, como digo, um dos caminhos mais rápidos entre dois pontos é o correio. Realmente, é induvidoso que esse é um dos melhores serviços públicos do país e que cumpre a missão estatal que se espera obter de todo serviço essencial (público, privado ou privatizado). Mas, por conta da paralisação, muitas pessoas podem já ter sofrido danos ou ainda podem vir a sofrer até a completa regularização do sistema. Daí que vale a pena lembrar os direitos e obrigações envolvidos. Evidentemente, todo dano causado aos usuários é de responsabilidade primeira da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor. É que ela responde pelos vícios ou defeitos de seus serviços, o que inclui, naturalmente, a ausência dos mesmos. Para que a ECT seja responsabilizada, não há necessidade de que seja apurada sua culpa, eis que a sua responsabilidade é objetiva e decorre da exploração da atividade empresarial desenvolvida e seu risco. O empreendedor público, privado ou de atividade privatizada explora o mercado de consumo e a própria exploração da atividade gera risco social, independentemente de sua vontade. É lógico que, por exemplo, quando uma correspondência entregue pelo consumidor aos serviços do correio não chega a seu destino no prazo ou simplesmente se extravia, essa falha não se dá por interesse da empresa. Ela não decorre da vontade dos administradores da ECT, mas da atividade em si, eis que falhas sempre existirão no sistema de leitura ótica, na incorreta observação do pessoal que faz seleção dos envelopes e pacotes, no transporte, etc. Portanto, o dano existirá, apesar da vontade em sentido contrário dos administradores e funcionários. A lei sabe disso. Ela sabe que, apesar do esforço do prestador do serviço, em algum momento, por evento imprevisto, o serviço falhará, causando danos ao consumidor. Naturalmente, a responsabilidade é a mesma na sua ausência, como a que ocorre no período de greve e que persistirá mesmo após seu fim por mais algum tempo até que o serviço se normalize. Por isso tudo, a lei estabeleceu a responsabilidade objetiva. Basta a constatação do serviço contratado e seu defeito para que possa ser pedida indenização. E, de fato, a ausência de um serviço como o dos correios sempre gera danos em larga escala, atingindo fornecedores e consumidores. Para o funcionamento dos serviços massificados, como os de telefonia, tevês a cabo, cartões de crédito, empréstimos bancários etc. é fundamental o serviço dos correios. Isto porque, é através dele que a maior parte dos milhões de faturas é entregue mensalmente para pagamento. Entretanto, o não recebimento de uma fatura não retira a responsabilidade do consumidor em pagá-la no prazo se o credor manda as faturas pelo correio mas, simultaneamente, coloca à disposição do consumidor outro modo de quitar o débito. Cabe ao fornecedor entregar as faturas antes da data do vencimento. Todavia, com a paralisação dos serviços do correio, a entrega fica prejudicada. O fornecedor, então, tem de oferecer uma alternativa de pagamento ao consumidor. As segundas vias devem ser oferecidas via fax, e-mail, acesso ao site, por ligação telefônica, etc. Se essas segundas opções são oferecidas, cabe ao consumidor utilizá-las para o pagamento da dívida. Aliás, é bom também lembrar que mesmo quando os serviços dos correios não estão paralisados, isso não impede que alguma correspondência não seja entregue. Logo, até fora desse período crítico, pode acontecer do consumidor não receber fatura para pagamento dentro do prazo ou simplesmente não recebê-la. Mas, de outro lado, se o consumidor não recebe a fatura para pagamento nem tem à sua disposição outro meio para fazê-lo, não se pode imputar a ele a responsabilidade pela quitação da dívida no prazo. Não tem sentido culpá-lo pelo que ele não fez. É risco do fornecedor entregar a fatura com tempo suficiente para pagamento, risco esse que não pode ser repassado ao consumidor. Todavia, como sempre digo, não é fácil para o consumidor, nessa questão, se proteger. Para eventualmente tentar não ser responsabilizado, o consumidor tem que provar que não recebeu a fatura, o que é muito difícil de fazer quando ela não é entregue. Dá para fazer a prova, por exemplo, se o consumidor avisou por escrito seu novo endereço para recebimento da fatura e ela foi enviada ao antigo ou quando o próprio correio coloca carimbo de entrega atrasada (Nesse caso, é a ECT quem deve ser responsabilizada pelo atraso). No entanto, afora esses tipos de exceções, o consumidor acaba sendo responsabilizado pelo atraso. Cabe ao consumidor manter uma agenda com datas dos vencimentos de suas faturas regulares. Se, até a véspera do vencimento, ainda não recebeu alguma, então, ele pode e deve entrar em contato com o credor, solicitando segunda via. Essa é uma regra geral para o dia-a-dia de todos os consumidores que, evidentemente, nesse período de greve, deve ser imediatamente seguida. (Anoto que, para aquele que não faz esse tipo de controle, a saída é pegar as contas do mês anterior, ver as datas dos vencimentos e checar o prazo que existe para pagá-las). Atualmente, todos os grandes fornecedores mantêm Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) e/ou sites, nos quais é possível obter uma segunda via da fatura. Se o credor não tiver esse tipo de serviço, como já disse acima, ele é obrigado a dar outra alternativa para pagamento, como, por exemplo, envio do boleto via fax ou apresentação de dados bancários para depósito em conta (nº de conta corrente, banco e agência, número do CNPJ - se for pessoa jurídica - ou CPF - se for pessoa física). Repito: se o credor não der alternativa, o consumidor não pode ser responsabilizado pelo atraso. Sei que, atualmente, há outra greve correndo no sistema bancário, o que piora a situação do consumidor. Apesar das opções que, no caso, os consumidores têm - mas não todos - de pagamentos via internet e casas lotéricas, valem as mesmas regras de proteção ao consumidor que acima transcrevi: não se pode responsabilizar o consumidor que pretende pagar suas dívidas se ele não tem como fazê-lo. O que se espera, naturalmente, como demonstração de boa prestação de serviços, é que os fornecedores não cobrem multas dos consumidores que eventualmente pagarem suas faturas fora do vencimento no período de greve. Anoto, de todo modo, que, no que diz respeito à entrega das faturas dos serviços de água e esgoto e energia elétrica, a greve não tem muito efeito porque muitas concessionárias utilizam seus próprios funcionários para a entrega das faturas. Há ainda problemas numa série de cobranças de serviços e compras de produtos relativas ao comércio em geral. Os comerciantes e prestadores de serviços costumam emitir boletos com observação de envio para Cartório de Protesto após certo período de atraso. Nesses casos, valem também as mesmas regras que acima apresentei e, por certo, cabe ao consumidor entrar em contato com o comerciante ou prestador de serviço para obter outro meio de quitação da dívida.
quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O consumidor empregado do fornecedor

A ideia do consumidor ser transformado em empregado do fornecedor não é nova. É conhecida de todos nos serviços self service em restaurantes, passando pelos postos de combustíveis nos Estados Unidos da América, vindo a desembocar, no final do século XX, nos atendimentos self service feitos pelo consumidor via internet dos serviços bancários e se expandiu por toda a rede de vendas online. Esse modo de transferir atividade fim para o consumidor, que é quem paga para recebê-la, às vezes, de fato, traz vantagens: quando, por exemplo, ele faz transferências bancárias sem sair de casa ou quando escolhe aquilo que quer comer nos restaurantes olhando e examinando os pratos oferecidos. Mas, nem sempre significa bom serviço. Veja-se o caso dos postos de combustíveis self service americanos. É exemplo de serviço de péssima qualidade com, inclusive, riscos para a saúde e a segurança do consumidor (Por sorte, por aqui não foi implantado). Essa "técnica" é, naturalmente, uma maneira que o fornecedor tem de diminuir custos, usando mão de obra terceirizada gratuita do próprio consumidor. E ela não para de se expandir, piorando os serviços: já chegou nos check-ins dos aeroportos, que em muitos lugares não são lá grande coisa em matéria de qualidade. Meu amigo Outrem Ego contou-me o seguinte de recente viagem que fez aos Estados Unidos. Desembarcou em Nova York e, depois de passar três dias curtindo a Big Apple, dirigiu-se ao aeroporto de Newark para tomar um avião com destino à cidade de Boston. Ao chegar ao aeroporto, percebeu que a companhia aérea, a Continental, não tinha balcão de atendimento. Havia um serviço self service obrigatório. O passageiro tem de usar uma máquina para fazer o check-in. Outrem Ego começou a suar frio e entrou na fila, que não andava, porque cada consumidor-passageiro gastava muito tempo apertando os botões da máquina que, evidentemente, não conversava com eles. Depois de muito tempo, efetuado o check-in, ele não resistiu e foi reclamar com um funcionário da companhia aérea e perguntou a ele se não tinha medo de perder o emprego com essa transferência dos serviços primários para o usuário, ao que este respondeu: "não se preocupe, meu emprego está garantido". "Como é que ele não percebe!" pensou meu amigo. É que, na mesma hora, ele lembrou de um manobrista que trabalhava no estacionamento de um banco em que ele tinha, e ainda tem, conta no Brasil. Quando esse banco foi adquirido por um outro e fundido, na semana seguinte após a fusão, a primeira pessoa que perdeu o emprego, apesar de lá trabalhar há mais de dez anos, foi, exatamente o manobrista, piorando, naturalmente, o serviço porque, a partir daquele momento, quem tinha e tem que se virar com os automóveis é o próprio consumidor que vai à agência bancária. De fato, as palavras redimensionamento, reorganização, reposicionamento, reacomodação ou qualquer outro termo que o valha são usuais nas fusões. Elas significam que muitos trabalhadores perderão, como de fato perdem, o emprego, para que, com a diminuição dos custos, as empresas faturem mais (não vamos nos iludir com a ideia de que a redução dos custos, é repassada para o preço aos consumidores, eis que a realidade mostra algo muito diferente). Aliás, fusões significam desemprego, às vezes, em massa. O mesmo ocorre com a suposta redução de custos na implantação do sistema self service: o consumidor é transformado em empregado sem nada receber em troca, nem qualidade dos serviços, nem diminuição de preço. Aliás, ao contrário, muitas vezes ele paga para fazer o serviço do fornecedor, pois imprime os comprovantes em sua casa com seu papel e sua tinta ou paga um preço maior por ter feito o pedido em casa como acontece, por exemplo, com os ingressos para o cinema. Neste último serviço, o negócio é muito bom (para o fornecedor!): o consumidor usa seu computador e sua internet, imprime o ingresso em casa e pelo "serviço" ainda paga a mais taxas que variam de 27,39% (para meia entrada) a 13,69% (para inteira). Para filmes projetados em 3D o preço do ingresso e da taxa são maiores com percentuais similares. Cito um exemplo que extraí de um Shopping: preço do ingresso meia- entrada - R$11,50 mais taxa de serviço de R$3,15; preço do ingresso inteira - R$23,00 mais taxa de serviço também de R$3,15. A ironia é que sai impresso no recibo que a taxa diz respeito aos "serviços de conveniência"... Mas, como já mostrei antes em outros artigos, o mercado é mesmo muito bom em "criar modas" e ditar comportamentos e o consumidor, embalado por elas vai se adaptando e se acostumando. Ele se vira sozinho mexendo nas araras das lojas de roupas para encontrar o traje que tem interesse; depois se arranja para experimentar o que encontrou sozinho em frente o espelho; quebra a cabeça para decifrar as informações dos sites das companhias aéreas para conseguir emitir um ticket de viagem ou se atormenta tentando obter uma passagem via milhagem, etc. Em algumas lanchonetes e praças de alimentação podem ser lidos avisos do tipo "Limpe a mesa para o próximo cliente". Muitos consumidores, por cortesia e educação, fazem a limpeza. Mas, nem sempre há local para se colocar os recipientes, o que impede que se faça a arrumação. Em outras ocasiões, como nem sempre o consumidor cumpre a determinação, não é incomum encontrar-se mesas sujas, repletas de pratos, talheres, copos e restos de comida pela falta de empregados em número suficiente para manter o lugar limpo. O fornecedor esquece que não basta dar uma ordem ao consumidor; é necessário ter pessoal próprio para efetuar a limpeza caso o consumidor não o faça. Tiro no pé, pois. Gosto sempre de lembrar que todo empregado é consumidor e que, muitas vezes, o empregado, após violar um cliente a mando do patrão, acaba sendo violado como consumidor, enganado pelo empregado de outro patrão. Trata-se, afinal, da sociedade capitalista como a conhecemos. Nesse modelo do self service, talvez pudessem os empregados se preocupar com seus empregos, porque quando o sistema dá certo, certamente, há enxugamento de postos de trabalho. Sei que nesse assunto não há saída, pois o sistema self service veio para ficar, dando mais lucros via redução de custos e tirando emprego dos trabalhadores, mas em alguns setores, como postos de combustíveis e aeroportos, eles bem que poderiam não existir.
quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Por que os consumidores são tão previsíveis?

Nesse último fim de semana, meu amigo Outrem Ego fez uma indagação a respeito do enorme congestionamento nas estradas paulistas (e também em várias outras pelo país afora). Disse ele: "Era um fim de semana longo, emendado pelo feriado. A previsão do tempo apontava sol sem chuvas. Não era óbvio que haveria congestionamento? Por que é que mesmo assim as pessoas, nessa condição de viajantes ou turistas, enfiaram-se na estrada para fazer, em seis horas, um trajeto de uma? Aliás, como sempre acontece, todo ano, todo feriado emendado, em todas as festas de fim de ano etc. As pessoas são mesmo tão previsíveis?". Um caminho para tentar responder essa questão é o do exame do comportamento humano nos papéis sociais desempenhados. O consumidor, por exemplo, é um papel social com características próprias que, inclusive, no Brasil, foi elevado à condição de figura constitucional (Constituição Federal, art. 5º, inciso XXXII). O consumidor como papel social - aliás, como também outros papéis sociais - apresenta-se com diversas ramificações e especialidades, tais como o usuário de cartão de crédito, o correntista, o turista, o espectador, o internauta etc., cada qual com especificidades próprias. Nessa linha de reflexão, servir-me-ei de elementos da Sociologia do Direito que, penso, pode nos ajudar na busca. Com efeito, a Sociologia Jurídica desenvolveu o conceito de papel social . O surgimento dos papéis está ligado ao crescimento da sociedade, de maneira que o conceito atualmente utilizado é o de complexidade, ou melhor, alta complexidade social1. O sentido de complexidade social está relacionado ao dado concreto e real das ações possíveis do indivíduo. Ou, melhor dizendo, o mundo real se apresenta ao indivíduo oferecendo, latentemente, ações que ele pode realizar. Mas a quantidade de ações é tão grande que, de fato, real e historicamente, o mundo oferece sempre muito mais possibilidades do que aquelas que o indivíduo vai realizar em toda a sua vida. O indivíduo está, assim, fadado a escolher. Desde que entra no mundo, vai agindo a partir de escolhas; não há alternativa. A essas escolhas, dá-se o nome de seletividade. Esta é uma operação de seleção para optar diante da complexidade de ações possíveis. A cada ato, a cada passo, o indivíduo age por seleção e vai compondo o quadro de seu destino. A inexorabilidade da seleção tem como função reduzir a complexidade do mundo: a cada escolha que a pessoa faz, opera-se uma seleção e reduz-se a complexidade - escolheu algo entre muitos2. Mas, simultaneamente, enquanto se opera a seleção, vai-se produzindo um enorme contingente que ficou de lado: escolheu ser advogado; em compensação, não será juiz, promotor de justiça, delegado etc. Escolheu ser médico; não será odontólogo, nem advogado ou engenheiro etc. Para essa teoria dos papéis sociais, o que vale é o dado objetivo da escolha. Não se está - isso não importa para o papel social - pensando na motivação que levou à escolha (se foi consciente ou inconsciente, por desejo, vontade ou "sem querer") nem na capacidade ou condição da pessoa que escolheu (força física, inteligência, força intelectual, arranjo político ou familiar, ação entre amigos etc.), nem, ainda, nos interesses que geraram a seleção (econômicos, jurídicos, religiosos etc.). O que vale é a seleção objetivamente operada. Assim, por exemplo, não interessa perguntar por que o candidato ao vestibular tornou-se estudante de Direito: se por vocação, ameaça dos pais, acidente - "ele queria fazer Medicina, mas não conseguia passar" - ou qualquer outro motivo. O que importa é a seleção: o indivíduo tornou-se estudante de Direito; e o contingente: logo, não é estudante de medicina, de engenharia, de administração de empresas etc., como exposto acima. Os papéis sociais foram criando-se por conta das inúmeras seleções operadas pelos indivíduos no mundo. A produção desses papéis tem sua explicação na exata medida em que as sociedades crescem em complexidade. O crescimento da complexidade oferece alternativas infindáveis; estas acabam sendo selecionadas, indo compor, pelos encontros de sentidos das opções operadas, os papéis sociais. Na realidade, a complexidade da sociedade é tamanha que, para o indivíduo, as alternativas que lhe oferece o mundo não são ações puras, mas papéis sociais postos à sua disposição para serem selecionados. A escolha é de papéis e não de ações. Os papéis sociais podem ser, assim, definidos como repertórios formais de funções sociais - ações e comportamentos - preenchidos temporalmente por indivíduos. E é muito raro que um indivíduo isolada e conscientemente "crie" um novo papel social. Este surge espontaneamente, da ilimitada e intrincada soma de ações e relações sociais pré-existentes entre os demais papéis sociais. Isso significa que, estando no papel, o indivíduo deve comportar-se de acordo com o figurino normativo para ele previsto. Para o comportamento socialmente adequado ao papel, basta agir como o esperado: todas as demais pessoas têm uma expectativa normativa de que o indivíduo, naquele papel, vai comportar-se como se espera que se comporte, o que traz vantagem e desvantagem. A vantagem está ligada à economia de ações: no papel, para o indivíduo estar bem socialmente, basta agir como se espera que vá agir. O comportamento já estava pronto e ele se enquadrou; amoldou-se à estrutura normativa reinante formalmente no papel. Ele passa, então, a participar da sociedade dentro de maior estabilidade. A desvantagem está relacionada ao próprio indivíduo, à pessoa que existe "por detrás" do papel: ela deixa de ser vista como tal. Apresenta-se, comunica-se e é cobrada a partir do papel por ela assumido. O indivíduo real - psíquica e fisicamente considerado - é um centro de papéis; é um feixe de papéis que dispõe de inúmeras ações e comportamentos. Cada indivíduo é uma soma de papéis e, por vezes, esse indivíduo, enquanto ser real, confunde-se com os papéis que exerce. O indivíduo é simultaneamente pai, filho, irmão, estudante, profissional, político, torcedor etc., num composto de papéis sociais. Há muito ainda o que dizer a respeito dos papéis sociais: a possibilidade de o indivíduo irradiar sua luz pessoal para o papel; a institucionalização dos papéis etc. Mas para o assunto que se está aqui estudando é o suficiente3. Como elemento de comprovação do que estou apresentando, isto é, o de que o papel social exerce forte influência no comportamento das pessoas, mostro na sequência como os agentes financeiros organizaram-se para conhecer de antemão o comportamento de seus futuros tomadores de empréstimos. É pela análise dos papéis sociais desempenhados pelas pessoas e a catalogação das ações e comportamentos neles desenvolvidos, que as pesquisas sobre expectativas de ações futuras têm sido feitas. E o desenvolvimento desse setor é cada vez mais preciso. Os bancos, já na metade do século XX, implantaram o cálculo do risco dos empréstimos a serem concedidos pela avaliação dos consumidores em seus diversos segmentos de papéis. Eles criaram o credit score, que nada mais é do que um método de concessão de pontos para certas características das pessoas nos papéis em que estão investidas. Funciona assim: são colocadas notas negativas e positivas numa escala crescente que valoriza posições e ações: a idade, a profissão, o estado civil, o tempo no emprego, o salário, a condição de ser funcionário privado ou público, as posses (propriedade de imóveis, móveis etc.), a existência de filhos e a idade deles etc. - um longo etc. e bem detalhado. Com isso, pode-se fixar um score, isto é, uma nota pelo risco que o indivíduo pode gerar, bastando, para tanto, que a ficha cadastral esteja preenchida. Nem é preciso conversar com o consumidor: é só dar notas para seus dados pessoais. Esse tipo de análise de crédito foi o que propiciou o desenvolvido dos chamados créditos de massa, créditos pré-aprovados e os cartões de crédito. Se um consumidor é aposentado do serviço público, tem bom salário - sem risco de não receber no fim do mês - é proprietário de imóveis, automóveis, seus filhos já são independentes etc. pode receber boa nota e, logo, ele implica baixo risco. Se se trata de um engenheiro recém-formado, que acaba de arrumar um emprego num pequeno escritório, é casado há dois anos, sua esposa está grávida, não possui patrimônio, a não ser um imóvel financiado por 30 anos, então, recebe nota baixa, pois oferece alto risco. Esses exemplos simples, mas reais, e as características de cada proponente variam ao infinito, mas quanto mais se avalia os atos e as circunstâncias de cada um, mais se pode acertar no resultado do futuro adimplente ou inadimplente. Os bancos vêm fazendo isso há dezenas de anos e formaram um enorme arquivo com esses dados, o que permite uma muito boa avalição de seus clientes. O risco, naturalmente, também está atrelado ao valor do crédito ou empréstimo, ao tempo de relação existente com o proponente e o banco, aos empréstimos anteriormente tomados e pagos ou não por ele e outros elementos particulares e específicos do proponente, que são levados em consideração. Mas, o importante para nossa análise é a avaliação do comportamento objetivo da posição cadastral - via papéis - para demonstrar como se dá o exame da previsibilidade comportamental. Olhando-se as ações e comportamentos por essa via, é de se indagar se, então, o futuro pode ser previsto. A resposta é sim, mas apenas nas circunstâncias e nos percentuais objetivamente avaliados em relação a certos e escolhidos comportamentos, como o exemplo dos turistas de fim de semana, dos proponentes de cartões de crédito e empréstimos e outros tantos interesses difusos dos consumidores, dos votos nas eleições em geral etc. O futuro é previsível, portanto, no coletivo, a partir do exame dos papéis sociais. No individual, no particular de cada pessoa, o futuro continua imprevisível porque, evidentemente, qualquer pessoa pode escolher não se comportar como os demais estão se comportando ou irão se comportar: alguém que não apresenta risco para um banco pode, por exemplo, furar o sistema deixando de pagar; alguém que sempre pega a estrada nos fins de semana prolongados pode resolver não viajar em algum deles etc. São exceções que podem também ser consideradas estatisticamente para melhorar o cálculo e que, quando envolve grande quantidade de pessoas agindo dentro do padrão, ainda permite a previsibilidade, pois funciona como mero desvio. Realmente, do ponto de vista da liberdade, é um pouco assustador que se possa antecipadamente saber como é que as pessoas irão se comportar. É mesmo. Parece estranho, mas o cálculo acaba dando certo, porque desconsidera a pessoa real, a pessoa que existe, com nome, documento e endereço. O cálculo leva em consideração o papel social e não a pessoa. Mas, é exatamente esse método que "salva a liberdade". É que, como visto acima, a possível ação livre dá-se no plano do indivíduo e não do papel. Ou, em outras palavras, não se consegue antecipadamente descobrir "quem" irá se tornar inadimplente ou mesmo adimplente. Não se pode, de antemão, adivinhar qual será a pessoa real, com nome, CPF e RG que, afinal, acabará atrasando o pagamento de sua dívida ou que manterá as prestações em dia. O cálculo dá certo exatamente porque desconsidera a pessoa real; esta não importa. O que vale é o papel que ela desempenha, o que conta são as características dos papéis sociais em que ela está inserida. Por isso, ainda dá para se falar em liberdade individual: alguém pode não corresponder às expectativas previstas para o comportamento no papel social e examinadas para a feitura do cálculo. Por outro lado, para quem faz o cálculo visando estabelecer controle sobre um certo grupo de pessoas ou querendo antecipar resultados em função das ações dessas pessoas, isso não importa. Basta desconsiderar os eventuais deslizes de alguns componentes - algumas pessoas - do grupo estudado. É assim que as coisas se dão: no papel social, existe uma muito grande possibilidade de que as pessoas se comportem da maneira como se espera que elas se comportem, de modo que, sim, pode-se antever suas ações e comportamentos. Poder-se-ia objetar que os consumidores-turistas de fim de semana não têm alternativas de lazer, além de colocar o pé na estrada. É verdade. Mas, lembre-se que para o método que permite a previsão dos acontecimentos, isso não é importante; os motivos da ação ou comportamento não são relevantes. O que vale é o comportamento em si e objetivamente considerado. E este é previsível. Assim, considerando-se as características desse consumidor-turista de fim de semana, é possível antever seu comportamento para os próximos feriados, período de festas de fim de ano etc. Respondendo, então, a meu amigo Outrem Ego, posso dizer que no próximo feriado emendado dar-se-á exatamente o mesmo, pois, no papel social de turista de fim de semana, grande parte das pessoas se comportam como se espera que elas se comportem. Isso não é um mal, mas, apenas um dado objetivo do comportamento humano. Ademais, essa possível previsibilidade tem seu lado bom. Ela permite que as empresas que administram as estradas planejem as viagens, que a polícia rodoviária faça o mesmo, que os comerciantes das cidades visitadas aumentem seus estoques de produtos e se preparem para oferecer serviços para a multidão que chegará etc. Goste-se ou não, é assim que as coisas são. De fato, essa possibilidade de previsão é quase enfadonha. É ela que explica em parte o sucesso de campanhas publicitárias, das promoções, dos concursos, dos feirões de imóveis etc. Já se sabe que o consumidor irá comportar-se de certo modo. Somente muita educação e tomada de consciência do jogo capitalista e social permitiria um mudança nesses padrões repetitivos e previsíveis. Contrariando o maravilhoso Nelson Rodrigues que dizia que "no Brasil até o passado é imprevisível", a ciência demonstra como fazer cálculos capazes de prever comportamentos. Quem duvida, que aguarde o próximo feriadão e observe os congestionamentos nas estradas. __________ 1Assim, por exemplo e pelos demais: Niklas Luhmann, que produziu vários textos com base na Teoria dos Sistemas de Talcott Parsons. Cito especificamente "Legitimação pelo procedimento", Brasília: UNB, 1980, especialmente ps. 71 e segs. 2A escolha gera um alívio para o indivíduo. Como o mundo se apresenta com alta complexidade e milhões de possibilidades, isso por si só é fator gerador de angústia. A seleção a diminui. 3Para mais dados, consulte-se o livro citado de Niklas Luhmann.
quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A ganância empresarial e o direito do consumidor

O Código de Defesa do Consumidor faz 22 anos no próximo dia 11 de setembro (lei 8.078/90). Não preciso chover no molhado para dizer o quão importante essa lei foi e é para todos os consumidores brasileiros e também para os estrangeiros que estejam no território nacional. Aliás, não só para os consumidores como para os próprios fornecedores que souberam e souberem bem aproveitar as normas firmadas. Aproveito, então, essa comemoração de aniversário para abordar um aspecto preocupante que aflorou no mercado de consumo abertamente nos últimos anos, para que possamos fazer uma reflexão sobre a questão do consumidor nos tempos atuais. Falarei da ganância, a sede de ganho sem limites. Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1. No livro citado, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente2". Esse tipo de conduta não é novo nem surpreendente e já se verificou no Brasil inúmeras vezes. Apenas para ficar com dois exemplos: Recentemente, no mês de março p.p., alguns donos de postos de combustíveis em São Paulo, aproveitando-se da escassez provocada pela greve dos caminhoneiros, aumentaram (e muito) o preço da gasolina e do álcool nas bombas; em janeiro de 2011, alguns comerciantes da região serrana do Estado do Rio de Janeiro aumentaram abusivamente os preços dos gêneros de primeira necessidade, logo após os deslizamentos de terra nas cidades de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis e outras e que deixaram centenas de mortos e milhares de desabrigados. São práticas abusivas proibidas pela legislação protecionista do consumidor e, evidentemente, odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos empresários e colocam à mostra defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza3; trata-se de um vício humano, sempre combatido. Mas, o que chama a atenção no episódio do furacão na Flórida não é tanto a ganância, mas a incrível e aberta defesa feita por muitos economistas do ato ganancioso como elemento intrínseco do sistema e - pasme-se - positivo! Dentre os vários "teóricos de mercado" que fizeram esse tipo de defesa naquela oportunidade, refiro, por todos, o economista Thomas Sowell para quem o termo "extorsão", utilizado pelas vítimas dos comerciantes, não passava de uma "expressão emocionalmente poderosa porém economicamente sem sentido, à qual a maioria dos economistas não dá atenção, porque lhes parece vaga demais"4. Veja o que escreveu Sandel sobre a fala dele: "Preços mais altos de gelo, água engarrafada, consertos em telhados, geradores e quartos de motel têm a vantagem, argumentou Sowell, de limitar o uso pelos consumidores, aumentando o incentivo para que empresas de locais mais afastados forneçam as mercadorias e os serviços de maior necessidade depois do furacão. Se um saco de gelo alcança dez dólares quando a Flórida enfrenta falta de energia no calor de agosto, os fabricantes de gelo considerarão vantajoso produzir e transportar mais. Não há nada injusto nesses preços, explicou Sowell; eles simplesmente refletem o valor que compradores e vendedores resolvem atribuir às coisas quando as compram e vendem"5. Trata-se de um sofisma ridículo e pueril, pois obviamente os fabricantes de gelo somente se motivariam se o preço se mantivesse nas alturas de forma constante. No caso, o preço foi elevado excessivamente, fixado para um curto período de tempo e imposto contra consumidores desesperados. Esse tipo de argumento poderia passar despercebido, não fosse algo consistentemente defendido por diversos e diferentes setores empresariais e seus inúmeros asseclas "teóricos". Parece mesmo que uma característica desses últimos vinte, trinta anos na sociedade capitalista é a falta de vergonha na cara, do surgimento da possibilidade do "cara de pau" falar qualquer coisa. Defender a ganância é apenas um dos exemplos desse descaramento que pensa e propõe o mercado funcionando como um Deus capaz de tudo resolver. Aliás, e a propósito, é isso mesmo: na concepção cristã, como disse acima, a avareza é um dos sete pecados capitais porque o avarento (e na hipótese, o ganancioso) prefere os bens materiais ao convívio com Deus. Mas, no capitalismo selvagem atual, faz sentido, na medida em que, como disse, o mercado funciona como um Deus. E é nesse aspecto, inclusive, que tem se usado a expressão "fundamentalismo de livre-mercado". Os estudiosos da sociedade capitalista têm dito e também demonstrado que o capitalismo da segunda metade do século XX para cá é eminentemente fundamentalista. É o chamado fundamentalismo de livre-mercado (do inglês free-market fundamentalism), expressão usada criticamente e que denota a injustificada e exagerada crença de que os mercados livres são capazes de propiciar a maior prosperidade possível e que qualquer interferência nos processos de mercado reduz o bem estar social. Ou seja, os livre-mercados seriam capazes de resolver, de per si, todos os problemas que afetam uma sociedade. Eis, pois, uma mostra de um dos aspectos mais perniciosos da sociedade capitalista contemporânea mas, que, de todo modo, acaba ajudando a realçar a importância de nossa lei protecionista do consumidor, editada há 22 anos. __________ 1Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11. 2Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores. 3Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade). 4Ibidem, p.12. 5Ibidem, p. 12.
quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A felicidade é um produto de consumo?

O mercado oferece abertamente a felicidade. Nos anúncios publicitários, por exemplo: "Pão de açúcar, lugar de gente feliz". Nos nomes de produtos e nas promoções como a dos brindes no Mc Lanche Feliz ou do Mc Dia feliz do Mc Donald's. O mercado oferece também a paixão, que, claro, leva à felicidade: "Grandes paixões a gente nunca explica. Apenas sente. Seja sócio Premiere FC e viva a emoção de ver as conquistas do melhor time do Brasil: o seu! Sky". "Paixão Sem Freio, Tanque Cheio", da Baterias Moura, etc. Examinando-se os anúncios publicitários, como regra, o que se vê são pessoas bem sucedidas, sempre sorridentes, alegres, cantando, se abraçando, passeando, dançando, enfim, felizes. E não é para isso que os produtos e serviços são oferecidos? Para que as pessoas se sintam bem, se satisfaçam, atinjam seus sonhos, cheguem ao patamar desejado, isto é, se sintam felizes? Para a insatisfação com o corpo, partes postiças; para as rugas, cremes miraculosos; para as gordurinhas indesejadas roupas adequadas ou academias repletas de promessas ou, ainda, dietas que adornam a esperança; tudo, naturalmente, para que, no final das contas, nós consumidores atinjamos um excelente patamar de vida. Férias? É o momento de suprema felicidade. Quer emoção? Paixão? Não perca as finais do campeonato de futebol e sinta-se sublime. Pacotes de viagem, hotéis, lugares paradisíacos ou simplesmente indispensáveis (Paris, por exemplo, ou Nova York). Desfrutar os momentos de lazer, passeando à beça e conhecendo muitos lugares ou simplesmente não fazendo nada etc.; mais uma vez, para quê? Ora, sermos felizes. Se nós fossemos capazes de conseguir olhar por trás dos bens adquiridos, além dos serviços, embaixo das embalagens, dentro da química dos alimentos e dos cosméticos, se pudéssemos ver realmente como as coisas são, numa espécie de raio-x mágico que enxergasse o espírito dos produtos e dos serviços, certamente encontraríamos um anjo (!) sorridente que nos entregaria a chave da porta de entrada da cidade feliz; um lugar onde poderíamos, afinal, respirar sossegados e em paz, essa que talvez seja a irmã da felicidade. Mas, será que esse anjo existe? Ou se trata de mais uma ilusão oferecida pelo mercado? O modelo de produção muito bem engendrado foi capaz de, aos poucos, encontrar e preencher certos espaços vazios encontrados na alma humana. As pessoas foram muito bem estudadas em seus anseios, suas dificuldades, seus desejos, suas necessidades, seus comportamentos, etc. Além disso, a vida social foi esmiuçada e acabou por ser penetrada pelo modelo de produção capitalista. Desse modo, aos poucos, o mercado foi avançando no meio social e penetrando no coração das pessoas. Os espaços encontrados foram sendo preenchidos pelos produtos e serviços oferecidos no mercado. Atualmente, o poder do mercado é tamanho que praticamente nada se lhe escapa. Como já demonstrei em vários artigos meus aqui publicados, o modelo de produção acabou se imiscuindo em praticamente todas as esferas sociais, afetando relações pessoais, de emprego e sociais das mais gerais, o sistema educacional, os esportes etc. e também a própria relação do indivíduo com ele mesmo. A propósito, acaba de sair em português o livro do professor Michael J. Sandel, intitulado "O que o dinheiro não compra" (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira), que apresenta dezenas de exemplos de casos de invasão do mercado em esferas antes jamais imaginadas. Para ficarmos com apenas alguns exemplos relatados no livro: Upgrade na cela carcerária: US$ 82,00. Em Santa Ana, Califórnia, e tantas outras cidades, os infratores não violentos podem pagar por acomodações melhores - uma cela limpa e tranquila na prisão, longe das celas dos prisioneiros não pagantes; Acesso às pistas de transporte solidário: a partir de US$ 8,00 nas horas de rush. Para tentar diminuir o congestionamento do trânsito, Minneapolis e outras cidades estão permitindo que motoristas desacompanhados usem as pistas reservadas ao transporte solidário a taxas que variam de acordo com a intensidade do tráfego; Barriga de aluguel indiana: US$ 6.250,00. Os casais ocidentais em busca de uma mãe de aluguel recorrem cada vez mais à terceirização da Índia, onde a pratica é legal e o preço corresponde a menos de um terço das taxas em vigor nos Estados Unidos; Direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção: US$ 150.000,00. A África do Sul passou a autorizar fazendeiros a vender a caçadores o direito de matar uma quantidade limitada de rinocerontes para incentivá-los a criar e proteger a espécie ameaçada de extinção; O direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera: (? 13,00). A União Europeia mantém um mercado de emissões de gás carbônico que permite às empresas comprar e vender o direito de poluir. Tenho também aqui tratado, mais de uma vez, do processo de controle que joga os consumidores numa alienação que os impede de perceber os reais interesses em jogo. Por isso que, muitas vezes, encontram-se consumidores com problemas financeiros adquiridos em função de gastos com compras supérfluas e sem nenhum interesse ou função pessoal. Não prosseguirei por essa via porque minha intenção aqui nesse artigo é desvendar ou, ao menos, levantar uma discussão sobre se por trás desse modelo de produção, com essa enorme profusão de produtos e serviços, o que se esconde é uma promessa de encontro da felicidade. Ou, dito de outro modo, será que o sucesso do mercado de consumo no atual modelo capitalista ocorre porque, no fundo, o que se está oferecendo, ainda que não declaradamente, é a felicidade? É possível ilustrar esse processo de oferta e também controle com vários exemplos, mas ficarei apenas com um que sempre me chamou atenção e que é muito peculiar. Aqui na cidade de São Paulo é comum encontrarmos pendurados nos postes anúncios de videntes, médiuns, leitores de búzios, etc. que prometem resolver, dentre outros, os problemas amorosos dos consulentes. Intrigado com esses anúncios resolvi fazer uma pesquisa e, para minha surpresa, descobri que não só os jornais de grande circulação como revistas semanais trazem páginas com muitas ofertas desse tipo. Algumas são incríveis, mas talvez reflitam o desespero do consumidor: "Amor perdido. Trago de volta quem você ama, melhor que era antes". Existem dezenas de exemplos oferecendo o encontro do amor, a salvação do casamento, etc. Se essas ofertas existem em grande profusão é sinal de que há um público consumidor interessado nelas. E isso demonstra que, realmente, o mercado conhece profundamente o consumidor em suas dificuldades, necessidades, anseios, desejos, etc. Mostra, também, que por trás das ofertas - não só nestas como em muitas outras - existe uma promessa de encontro da felicidade. Do ponto de vista do consumismo, isto é, das compras exageradas de produtos e serviços, muitas delas desnecessárias, isso talvez explique um círculo vicioso contínuo e interminável: o consumidor vai ao mercado procurar a felicidade e compra, para tanto, sapatos, relógios, roupas, viagens, consultas em videntes, etc., mas, como nem sempre consegue ser feliz por esse meio, continua comprando na esperança vã de atingi-la. Como diria meu amigo Outrem Ego, "essa frustração gerada pelo mercado de consumo, paradoxalmente, alimenta o próprio mercado de consumo, fazendo crescer a indústria química de medicamentos contra ansiedade, 'stress', angústia e enchendo os consultórios dos médicos, psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, etc".
Recentemente, a Secretaria Nacional do Consumidor - Senacon, órgão do Ministério da Justiça, notificou 10 instituições financeiras para questionar a cobrança de tarifas para abertura de crédito na venda e compra de veículos automotores. Essa prática, que não é nova e é ilegal, envolve não só a cobrança desse tipo de "tarifa", intitulada pelos fornecedores de TAC, como tantas outras "inventadas" apenas para subtrair dinheiro do consumidor e ainda outras que simplesmente transferem para o consumidor o custo da atividade fim que está sendo vendida. Como demonstrarei na sequência, o Poder Judiciário tem coibido esse tipo de abuso. Mas, vejamos inicialmente porque os fornecedores conseguem executar facilmente essa malandragem grosseira e abusiva. Para tanto, aponto um fato conhecido, o de que uma característica básica da sociedade capitalista, a partir especialmente do início do século XX, é ter uma produção planejada e executada de forma estandartizada e em série: o resultado desse modelo é a oferta de produtos e serviços "de massa", típicos de consumo. No que diz respeito ao Direito, lembro que este acompanhou tal movimento industrial e criou modelo próprio de contratação, adequado ao processo homogeneizado que surgia. Passou-se a criar fórmulas padronizadas, autênticas cláusulas contratuais em série, verdadeiros contratos de consumo. Dentre as características desses contratos, a mais marcante é sua estipulação unilateral pelos fornecedores, que, adotando modelo prévio, estudado e decidido por conta própria, os impõem a todos os consumidores que quiserem - ou precisarem - adquirir seus produtos e serviços. O produto e/ou serviço são oferecidos acompanhados do contrato. Com isso, o consumidor, para estabelecer a relação jurídica com o fornecedor, tem que assiná-lo, aderindo a seu conteúdo. Daí se falar em "contrato de adesão". Agora, anoto, para frisar, que o uso do termo "adesão" não significa "manifestação de vontade" ou "decisão que implique concordância com o conteúdo das cláusulas contratuais". No contrato de adesão, não se discutem cláusulas e não há que se falar em pacta sunt servanda. É uma contradição apontar-se o conhecido aforismo em matéria de contrato de adesão. Não há acerto prévio entre as partes, discussão de cláusulas e redação de comum acordo. O que se dá é o fenômeno puro e simples da adesão ao contrato pensado e decidido unilateralmente pelo fornecedor, o que implica maneira própria de interpretar e que foi totalmente encampado pela lei consumerista. Foi isso o que reconheceu o legislador na redação do caput do art. 54 do Código de Defesa do Consumidor, ao dizer que o "contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo". Aliás, a lei 8078/90 CDC é a primeira lei brasileira a definir contrato de adesão. Esse nome dado ao contrato que envolve relação jurídica de consumo, "de adesão", é simplesmente a constatação de que na sociedade capitalista em que vivemos o fornecedor decide, sem a participação do consumidor, tudo o que pretende fazer: escolhe ou cria os produtos que quer fabricar ou o serviço que pretende oferecer, faz sua distribuição e comercialização, opera seu setor de marketing e publicidade para apresentar e oferecer o produto ou o serviço e elabora o contrato que será firmado pelo consumidor que vier a adquirir o produto ou o serviço. Tudo unilateralmente, isto é, tudo sem que o consumidor participe ou palpite. É risco e responsabilidade do fornecedor. Ao consumidor, cabe apenas adquirir o produto ou o serviço e "aderir" ao contrato. Na verdade, para comprar qualquer produto ou serviço, o consumidor é obrigado a aderir à oferta, pagando o preço anunciado e nas condições de pagamento exigidas. O contrato de adesão é um dos componentes da oferta e que existe na forma escrita quando desse modo exige a natureza da operação. Assim, por exemplo, se se trata de um plano de saúde, deve haver contrato escrito. O mesmo ocorre quando se faz um empréstimo no banco ou se financia a casa própria, ou, ainda, quando se contrata um seguro ou a assinatura da TV a cabo etc. Em todos os casos, o consumidor não discute as cláusulas contratuais nem pode exigir alterações substanciais no termo escrito. Ele apenas "adere" ao que já estava previamente preparado e ponto final. Aliás, não é um consumidor que adere; são todos. O contrato de adesão é elaborado pelo fornecedor para ter validade de igual forma para todos os seus clientes. Do mesmo modo que uma montadora de veículos reproduz um automóvel na série centenas, milhares de vezes ou que um produtor fabrica milhares de canetas iguais a partir de um modelo específico, um único contrato de adesão é elaborado pelo departamento jurídico do fornecedor e reproduzido centenas, milhares de vezes. Cada consumidor que adquire o produto ou o serviço adere ao modelo impresso, que é idêntico aos demais. Logo, fica claro que não é difícil para o fornecedor-redator do contrato de adesão nele incluir cláusulas abusivas de forma camuflada ou ostensivas. É isso que explica a facilidade com que agentes financeiros acabam impondo tarifas sem base legal ou que não representam um serviço prestado: Para obter o financiamento, o consumidor acaba aderindo ao contrato e sofrendo a abusiva cobrança. Mas, como as cláusulas abusivas são nulas de pleno direito, conforme estipulado no art. 51 do CDC, o consumidor, após firmado o contrato, pode pleitear extra ou judicialmente a devolução dos valores indevidamente cobrados. E o Poder Judiciário tem dado ganho de causa aos consumidores. Na sequência, transcrevo trechos dessas decisões. "Ação declaratória c. c. repetição de indébito Contrato de financiamento - Taxa de Abertura de Crédito (TAC) e remuneração de serviços de terceiros - Ilegalidade da cobrança - Juros moratórios até o limite de 1% ao mês súmula 379 do STJ Devida a restituição dos valores cobrados indevidamente - Sentença mantida Recurso Desprovido". (Apelação 0210323-28.2010.8.26.0100 Rel. Des. IRINEU FAVA - 13ª Câmara de Direito - j. 13/7/2011 - v.u.). "CONTRATO. FINANCIAMENTO. TARIFAS. ABUSIVIDADE. 1. Embora contratualmente previstas, é abusiva a cobrança de tarifa de inclusão de gravame eletrônico, ressarcimento e despesa de promotora de venda, serviço de terceiro, de avaliação de bem, porquanto não poderia o fornecedor cobrar do consumidor despesas de sua responsabilidade. 2. É abusiva a cobrança de taxas que não representam prestação de serviço ao cliente, servindo apenas como estratagema para redução de riscos da atividade do fornecedor. 3'..' . 4. Recurso parcialmente provido". (Ap. 0007259-75.2011.8.26.0482 - Rel. Des. MELO COLOMBI - J. 18/1/2012 - v.u.). "É abusivo o repasse ao consumidor de tarifas provenientes de operações que são de interesse e responsabilidade exclusivos do fornecedor dos serviços, inerentes à sua atividade voltada ao lucro, como é o caso da tarifa de abertura de crédito, da de emissão de carne, da de serviços de terceiro e de promotoria de venda e da de ressarcimento de gravame eletrônico". (Ap. 0011847-83.2011.8.26.0011, 21ª Câmara, Rel. Des. ITAMAR GAINO, j. 29/2/2012, v.u). "Além disso, são mesmo indevidas as cobranças a título de "tarifa de cadastro", "tarifa de abertura de crédito", "tarifa de emissão de carnê", "tarifa de serviço de terceiros", "registro de contrato", "avaliação do bem" etc., na medida em que é patente a abusividade da cláusula que permite a transferência para o consumidor dos custos". (Apel. 0039654-08.2011.8.26.0002, Rel. Des. Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, j. 15/8/12, v.u.). "CONTRATO BANCÁRIO. TARIFA DE EMISSÃO DE BOLETO. (...). 1 - Cobrança de taxa de emissão de boleto de cobrança que se o configura como conduta abusiva. Precedente do STJ: "Sendo os serviços prestados pelo Banco remunerados pela tarifa interbancária, conforme referido pelo Tribunal de origem, a cobrança de tarifa dos consumidores pelo pagamento mediante boleto/ficha de compensação constitui enriquecimento sem causa por parte das instituições financeiras, pois há dupla remuneração pelo mesmo serviço, importando em vantagem exagerada dos Bancos em detrimento dos consumidores, razão pela qual abusiva a cobrança da tarifa, nos termos do art. 39, V, do CDC ce art. 5 1 , § I, I e III, do CDC. Precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo". (Apelação 990.10.278772-9 - 18ª Câmara de Direito Priva - Rel. Des. Alexandre Lazzarini - j. 24/8/10 - v.u.). "Ademais, é patente que é abusiva a cláusula que permite a cobrança de tarifas sem a correspondente contraprestação do serviço, sendo, pois, nulas suas disposições. Em se tratando de tarifa para emissão de boleto, ela é não só ilegal como esdrúxula, porque transfere para o consumidor o custo da atividade, além de não corresponder a qualquer serviço prestado. O mesmo se diga em relação à "tarifa de abertura de crédito", mera nomenclatura que não traduz serviço prestado, já que o crédito é, em si, o negócio firmado no contrato" (Ap. 0010615-25.2011.8.26.0047, Rel. Des. Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, TJSP, j. 25/4/2012, v.u.).
Einstein disse: "Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta". Dentre as várias funções das normas jurídicas (determinar ações, gerir comportamentos, educar, exemplificar, permitir, proibir, etc.), uma delas e que não é muito tratada pelos estudiosos é essa de limitar a estupidez humana. Parece mesmo que o ser humano, largado a si mesmo, sem freios e direções, é capaz de atos horrorosos. Dentre estes, cuidarei de um que pode causar danos ao estimular outros atos mais terríveis. Volto a falar de publicidade, desta feita especificamente da abusiva. Por sorte, a lei já regula o assunto há mais de vinte e um anos. Nas últimas semanas, o noticiário mostrou a indignação de centenas de consumidores que protestaram nas redes sociais contra dois anúncios que estimulavam a violência sexual contra as mulheres: um dos preservativos Prudence e outro da cerveja Nova Schin. Examinando os dois anúncios, vi estarrecido que tudo indica que seus criadores perderam mesmo a noção dos limites, aliás, bem definidos no Código de Defesa do Consumidor. Lembro, a seguir, o teor do texto legal, embora pense que, no caso, não haveria necessidade alguma de que a lei dissesse algo. Bastava que os anunciantes e os criadores do anúncio tivessem um pouco mais de bom senso e respeito para com as mulheres. Mas, como não tiveram, é bom que saibam o que a lei estipula a respeito. Eis os termos legais: "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança"." "Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança: Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa". A publicidade do preservativo foi colocada na página da Prudence no Facebook no dia 16 de julho p.p. e depois das reclamações foi suprimida em 30 de julho. O anúncio trazia um foto de um rosto de mulher e sobre ele, em letras graúdas estava escrito: "Dieta do Sexo". Ao lado era apresentada uma tabela que mostrava quantas calorias seria possível perder praticando diferentes formas de atos sexuais. Entre estes, aparecia no topo da foto: "Sexo com o consentimento - 10 calorias; Sem o consentimento dela - 190 calorias". Na sequência, outra forma: "Com as duas mãos - 8 calorias; com uma mão - 32 calorias; com uma mão, apanhando dela - 208 calorias". Apesar do absurdo do anúncio, evidentemente sexista e que dava a entender que o homem pode sim praticar sexo contra a vontade da mulher que está em seus braços (o que caracteriza estupro), após o protesto nas redes sociais a empresa ainda tentou justificá-lo, como mostra o site SOF-Sempreviva Organização Feminista (clique aqui): "Em um primeiro momento, a Preservativos Prudence buscou, no espaço de comentários da imagem no Facebook, justificar a situação. Disse ser contrária à violência, alegando que a propaganda não faz apologia a estupro, mas sim à 'conquista'. Ou seja, de acordo com a empresa, fazer sexo sem o consentimento da mulher é conquistá-la . Na tentativa de consertar a situação, só conseguiu piorá-la. Ao invés de reconhecer que a propaganda faz apologia a um crime, colocou esse tipo de agressão como algo normal, banal, uma mera 'conquista'. Há de se lembrar que a minimização do estupro é uma das causas pelas quais as vítimas não têm apoio, e muitas vezes nem conseguem efetivar uma denúncia. Quando tomam a iniciativa de denunciar o agressor, é comum ainda serem responsabilizadas pela própria agressão devido a seu ' comportamento permissivo". Não só praticaram o abuso, como violaram a lei e ainda tentaram justificar, antes de retirar de circulação a peça ilegal. E não é que, logo depois, a fabricante da cerveja Nova Schin cololocou no ar uma publicidade que fazia a mesma coisa! No anúncio veiculado nas tevês, está um grupo de homens jovens reunidos num quiosque numa praia, olhando para as mulheres na areia. De repente, um deles diz: "Já pensou se a gente fosse invisível?". Na sequência, duas mulheres que caminham pela praia sentem que são tocadas pelas costas por pessoas invisíveis. Depois, as cenas mostram algumas mulheres saindo de um vestiário, invadido pelos invisíveis, sem a parte de cima do biquíni. Nas duas cenas, as mulheres se assustam e fogem. Esses são apenas mais dois exemplos dos abusos impunemente praticados via publicidade comercial, nesses casos contra a dignidade das mulheres. Nos anúncios de cerveja, aliás, a falta de criatividade que impera no setor é tamanha que há muitos anos que a mesma ladainha machista de mulheres e cervejas vem sendo repetida; a novidade é agora ser insinuado que o "sexo cervejeiro" pode ser feito contra a vontade da mulher. Mais um caso de incentivo ao estupro. Já disse aqui que um dos grandes problemas do consumidor na sociedade capitalista é o de sua dificuldade em se defender publicamente contra tudo o que lhe fazem de mal. Se ele é enganado, sofre um dano etc tem de recorrer aos órgãos de proteção ao consumidor ou contratar um advogado. Mas, há esperança. Ela esta nas redes sociais da internet e no surgimento de sites de reclamações. Aos poucos, os consumidores vão encontrando um caminho para expressar sua insatisfação com os produtos e serviços adquiridos e também contra toda forma de malandragem perpetrada por muitos fornecedores, além, claro, de protestar contra a publicidade enganosa e abusiva. No caso desses incríveis dois anúncios, o repúdio via redes sociais foi muito grande, o que é alvissareiro. Em matéria de publicidade machista, penso que o boicote dos consumidores seria o melhor remédio para coibi-los. Boicote não só das mulheres, mas também dos homens de bem que não podem se calar diante dos delitos. Os maus empresários só conhecem um modo de fracasso: a perda em suas vendas. Daí, unindo-me a todos aqueles que se expressaram contra esses anúncios, termino transcrevendo trecho do ótimo e indignado texto publicado no Blogueiras Feministas (clique aqui): "Isso é engraçado, Nova Schin? Mulheres amedrontadas porque têm suas roupas arrancadas e seus corpos tocados sem permissão é motivo de riso? Que tal falar que 'é só uma piada' para as milhares de mulheres que são diariamente vítimas de abuso sexual em nosso país? Que tal dizer que isso tudo não passa de 'ficção' para as milhares de mulheres que são abusadas por homens em metrôs, ônibus e trens? Por que você não encara as meninas que são vendidas pelo tráfico sexual, as prostitutas espancadas, as esposas estupradas por maridos, as estudantes violentadas no próprio ambiente universitário? Por que você não exibe esse vídeo para as mulheres que sofrem todos os dias devido a essa mentalidade perpetuada por vocês? Essa mentalidade de que os homens têm o direito inquestionável de extrair diversão daquilo que para nós mulheres é um terror diário".
Eu aproveito a Olimpíada de Londres para apresentar algumas reflexões de ordem jurídica sobre o evento e, ligado a elas, a da possibilidade de se indenizar atletas, técnicos e demais membros de comissões técnicas que sofreram algum tipo de dano em função da competição. Os jogos olímpicos são, sem dúvida alguma, a maior festa do esporte mundial. De longa tradição e impondo respeito, eles são realmente o melhor momento de confraternização entre os povos e também de bela competição dos atletas de cada país. Seria muito bom se, um dia, no futuro, se pudesse decidir disputas políticas pela via do esporte e não das armas... No entanto, não é de agora - só que atualmente é evidente -, as Olimpíadas são um grande negócio e altamente lucrativo para muitos que nelas se envolvem. São literalmente bilhões de dólares envolvidos e bilhões de pessoas sintonizadas, além de milhares de profissionais das mais diversas áreas trabalhando direta e indiretamente no evento, afora os voluntários. Que não nos enganemos. Uma Olimpíada é um produto, um grande e belo produto, trabalhado, explorado, vendido e anunciado como tal. É verdade que se trata de um produto especial talhado por milhares de pessoas ao redor do planeta, mas o Comitê Olímpico Internacional - COI vende esse produto do mesmo modo que as grandes corporações vendem os seus: com preços e lances, cotas de patrocínio, direitos de imagem, sessão de direitos patrimoniais e morais etc. Tudo num grande esquema bem desenvolvido pelos competentes profissionais de marketing e vendas. Aliás, com a competência dos grandes empreendedores. Ora, com tanto dinheiro e interesses em jogo, seríamos muito inocentes se acreditássemos numa total transparência dos atos e pureza daqueles que se envolvem nos acontecimentos de todos os jogos. Há, é verdade, algumas competições em que é bastante difícil fazer-se algum tipo de manipulação ou praticar-se fraude, mas em outras é possível. Não estou, evidentemente, dizendo que nesta Olimpíada de Londres houve; estou apenas chamando atenção para o modelo estabelecido: trata-se do mais moderno capitalismo. Logo, a chance de manipulação e fraude existe porque essa é uma característica bastante conhecida do modelo. Reclamações existem: a equipe do Japão de ginástica artística, após o anúncio do resultado que a deixou de fora do pódio, recorreu de uma das notas no cavalo com alças. Teve sua reivindicação atendida e acabou ficando com a medalha de prata, eliminando os ucranianos. No judô, num combate entre um japonês e um sul-coreano que havia terminado empatado, a decisão foi para a bandeirada. Primeiramente, o trio de juízes deu a vitória ao sul-coreano. Mas, depois, a comissão de especialistas não concordou e fez com que o resultado fosse invertido. E foi exatamente no judô que a brasileira Rafaela Silva foi eliminada por uma decisão polêmica dos juízes, em função da aplicação por ela de um golpe proibido. Foram várias as reclamações contra arbitragens. Pergunto: Há algum tipo de manipulação? Não se sabe, mas sempre que houvesse alguma dúvida, dever-se-ia apurar. Além do mais, como produto que é, está sujeito a vícios e defeitos. Mesmo não havendo manipulação intencional, há o erro, o simples e ancestralmente conhecido erro humano, que também pode causar dano. Pense nisso: numa competição como a Olimpíada, milhares de atletas passam pelo menos vários anos de suas vidas dedicados exclusivamente a chegar lá. Esses atletas muitas vezes sacrificam-se, deixando de lado a família, os amigos e muitos deles não contam com apoio financeiro ou logístico de ninguém. Arriscam-se sozinhos, sabendo que as dificuldades para o sucesso serão enormes. Isso, se tudo for feito honestamente e dentro do previsto. Não se faz teste de antidoping para eliminar os atletas que violam os princípios dos jogos? Deve-se tomar a mesma atitude de apurar e punir aqueles que praticam outros atos ilícitos. Além disso, é preciso garantir o direito do atleta que se sinta injustiçado de pedir revisão do resultado. E, uma vez apurada a incorreção, anular-se a disputa. Mas, penso mais que isso. Uma Olimpíada não existe sem os atletas, treinadores e comissão técnica que são a base dos jogos e do monumental interesse comercial envolvido. Então, parece razoável que se deva indenizar os atletas que foram injustiçados e/ou prejudicados pela arbitragem ou pela organização. A indenização em dinheiro é uma boa maneira de ressarcir em parte o transtorno e a dor sofrida pelo atleta nessas condições. Não se deve simplesmente aceitar que os organizadores de um evento desse porte, faturando o que faturam e que possam causar danos aos atletas e seus treinadores, comissão técnica etc. saiam ilesos; não sejam responsabilizados. Uma das garantias mais importantes do capitalismo contemporâneo é exatamente a da indenização paga em dinheiro pelos danos causados - materiais e morais. Lembro do evento bastante significativo ocorrido na Olimpíada de Pequim há quatro anos e que vitimou nossa atleta do salto com vara, Fabiana Murer (que, infelizmente, também neste ano não conseguiu atingir seu intento). Ela foi prejudicada pela incompetência da organização dos jogos, cuja desídia impediu que ela fizesse seu salto com o aparelho adequado. Um prejuízo irreparável, depois de tantos anos de preparação. Dano moral puro. A única forma de reparação teria sido o pagamento de uma indenização em dinheiro e em valor tal que fosse capaz de funcionar de forma exemplar e pedagógica para poder impedir que acontecesse novamente. O mesmo deveria se dar no caso de se apurar e descobrir manipulação de resultados. O atleta haveria de ser indenizado.
quinta-feira, 5 de julho de 2012

Os presentes de grego na sociedade capitalista

É de conhecimento geral a expressão "presente de grego", que é aquele que gera prejuízo ou aborrecimento a quem o recebe. Ela ilustra a história do enorme cavalo de madeira que os troianos receberam como presente dos gregos e que estava repleto de soldados prontos para a luta, o que acabou pondo fim à Guerra de Tróia. Passaram milhares de anos, mas na sociedade capitalista os fornecedores continuam dando esse tipo de presente a seus clientes. Ilustro com dois casos recentes. Um que foi apresentado como dádiva (a queda dos juros) e outro que é oferecido como presente mesmo. O primeiro, uma tragédia, o segundo, uma comédia. Veja. Não muito tempo atrás, uma grande empresa do varejo fazia uma propaganda enganosa nas TVs, que era espetacular (não direi o nome da empresa para não fazer propaganda, mas certamente o leitor se lembrará). O anúncio apresentava-se da seguinte forma: aparecia um número na tela, por exemplo 8%, e em seguida um raio destruía aquele número e aparecia um número menor, 7%. Em off, o locutor dizia: "A C B. baixou novamente os juros e aumentou o prazo. Aproveite!!!". Era uma propaganda enganosa, mas imperceptível para o consumidor que não está habituado aos cálculos e sistemas de cobrança de juros. O que fazia a empresa? Ela baixava os juros para 7%, mas aumentava o prazo do financiamento de 12 para 18 meses, ou seja, ela aumentava a cobrança dos juros em função do aumento do prazo. Mas parecia ao consumidor que os juros eram menores. E não é que essa prática acabou sendo adotada recentemente pelos bancos, inclusive os oficiais, com ampla publicidade e, aliás, também forte divulgação pelos meios de comunicação. Um presentão para o consumidor. Veja-se apenas o exemplo da Caixa Econômica Federal. Ela anunciou aos quatro cantos que os juros para o financiamento de imóveis no Sistema Financeiro de Habitação (SFH) haviam caído de 9% para 8,85% ao ano e, para os imóveis fora do SFH, de 10% para 9,9% ao ano. (Anoto que, não era preciso fazer tanto alarde para uma redução percentual tão pequena). Em contrapartida, o prazo de financiamento cresceu de 30 para 35 anos.Sem querer entrar por demais nos detalhes, eis que é escancarada a manobra, aponto apenas os cálculos feitos e publicados no jornal "Agora" de 12 de junho p.p. (pág. A11): Para um imóvel no valor de R$ 300.000,00, com entrada de R$ 43.975,59 e financiamento de R$ 256.024,41, o valor das prestações mensais para o prazo de 20 anos é de R$ 2.994,63; para um financiamento de 30 anos, R$ 2.639,12 e para um financiamento de 35 anos, R$ 2.537,55. A prática comercial é a mesma que já antes apontei aqui, ligada não a benefícios da operação de financiamento, mas ao valor mensal da prestação, que uma vez reduzido, faz o consumidor optar pelo prazo mais longo. Acontece que os valores totais pagos no decorrer dos anos mostram que o prejuízo do mutuário é enorme. No 1º caso (20 anos), o valor total pago é de R$ 550.103,88. No 2º caso (30 anos), o valor total é R$ 691.102,49 e no 3º caso (35 anos), o valor total é de R$ 772.723,53. Ou seja, a diferença paga a mais pelo consumidor que optar pelo financiamento mais longo - ainda que os juros tenham abaixado um pouquinho - em relação ao de menor prazo é de R$ 222.619,65. A questão que estou abordando não é a de maior ou menor taxa de juros, nem de maior ou menor gasto em longos períodos de tempo, mas sim a de que a maneira como a oferta é apresentada pela publicidade, como se fosse uma grande vantagem, mas não é. Presente de grego, pois. A outra questão que quero abordar diz respeito a um tipo de marketing que, quando examinamos de perto, parece que já atingiu as raias do absurdo, mais parecendo que o fornecedor está rindo da cara do seu cliente. Vou deixar meu amigo Outrem Ego narrar o que aconteceu com ele no dia do seu aniversário. Leia: "No meu aniversário recebi uma mensagem do meu cartão de fidelidade. Estava escrito: 'Olá, algumas datas merecem ser celebradas, clique e assista'. Eu cliquei e assisti. Era um vídeo simpático apresentando o museu da companhia aérea que no final trazia uma série de imagens de seus funcionários me desejando feliz aniversário. Até aí tudo bem, achei muito simpático. No entanto, não gostei do presente. Parecia mais uma gozação. No final do vídeo aparecia: 'No mês de seu aniversário você e seu acompanhante têm direito a 50% de desconto nos ingressos'. Tratava-se dos ingressos para poder entrar no citado museu da companhia aérea. Havia alguns problemas adicionais; por exemplo, eu moro em São Paulo e o museu fica no interior do Estado, distante 250 km. Aí eu fui averiguar o valor do presente (50% de desconto). E você sabe quanto custa o ingresso para entrar no museu? R$ 25,00. Eu estava ganhando um presente de R$ 12,50 que, para usufruir, me obrigava a me locomover 250 quilômetros da minha cidade até lá. Será que eles não podiam me dar pelo menos o valor do ingresso inteiro? Sabe, se eu aceitasse o verdadeiro presente de grego, eu ainda teria que pagar R$ 12,50 mais despesas com gasolina, pedágio, etc. Eu achei que fosse trote ou vírus que havia entrado em meu e-mail, mas não! Era mesmo pra valer: Eles estavam tirando sarro da minha cara mesmo". Bem, por hoje é isso. Parece mesmo que os marqueteiros de plantão estão completamente descontrolados, de um lado, podendo falar e endossar qualquer tipo de informação (enganosa ou não) e, de outro, nem mais se preocupando com aquilo que os consumidores possam vir a pensar ou sentir em relação às suas mensagens. Já passou da hora de se respeitar os consumidores, não só porque assim o exige a lei, mas também pelas boas regras de educação. E chega de presente de grego.
Nem bem se encerrou a Conferência das Nações Unidas sobre o desenvolvimento sustentável - a Rio +20 - e a mesma já desapareceu dos noticiários. No presente artigo, não farei qualquer colocação a respeito da citada Conferência que, segundo os críticos, não teve o resultado sonhado como almejado na primeira Conferência do Rio de Janeiro há 20 anos. Mas, gostaria de aproveitar o ensejo para fazer algumas considerações a respeito de consumo e da sociedade capitalista, que, para existir, utiliza-se de um modelo de exploração não só das reservas naturais do planeta, como de muitas das conquistas sociais existentes nos vários países que compõem o mundo, tais como garantia de emprego, limite de horas de trabalho, direito à aposentadoria com salário justo, direito à saúde gratuita, direito ao lazer, etc. Parece-me que o que precisa realmente ser feito, é uma mudança nos hábitos de consumo, não só aqui como em outros lugares. Para se ter uma ideia do que quero dizer, vejam esses dados (que variam um pouco de acordo com a fonte, mas de todo modo indicam o problema). A produção e o consumo dos Estados Unidos da América (apesar da crise vivida por lá), com um número de consumidores que correspondem a aproximadamente 5% da população do planeta, contribuem com 36% das emissões de gases de efeito estufa e consomem 25% da energia mundial. No que se refere aos países desenvolvidos, estes congregam um quinto da população mundial. Esta minoria, porém, consome 80% de todos os recursos naturais existentes. Logo, ao contrário do que se propaga, a globalização é uma ilusão, pois não dá para "globalizar" o padrão de consumo dos EUA e dos demais países desenvolvidos. Precisaríamos de vários planetas para tanto. Esses dados mostram que é preciso mudar o foco, posto que, caso se perpetue o modelo de consumo dos dias que correm, não haverá salvação. Ao invés de se produzir mais e se consumir mais, a diminuição do consumo é que talvez pudesse ajudar a sustentar o planeta. Além disso e atrelado a isso, outro elemento que talvez pudesse colaborar para que o planeta não viesse a ser destruído seria o da educação para o consumo, de tal modo que os consumidores pudessem tomar consciência de seu efetivo papel como protagonistas da sociedade capitalista e também percebessem que o regime consumista no qual estão inseridos não faz bem nem a seu bolso nem a sua saúde nem a seu bem-estar e, claro, nem ao planeta. Como quero apenas fazer algumas colocações para a nossa reflexão, eu termino por aqui, deixando, na sequência, uma série de máximas do comediante americano George Carlin e também algumas que eu mesmo fiz, que dizem respeito ao modo de vida da sociedade em que vivemos. De George Carlin: Se um homem sorri o tempo todo, ele provavelmente está vendendo algo que não funciona. Nós bebemos demais, gastamos sem critérios. Dirigimos rápido demais, ficamos acordados até muito tarde, acordamos muito cansados, lemos muito pouco, assistimos TV demais e raramente estamos com Deus. Multiplicamos nossos bens, mas reduzimos nossos valores. Aprendemos a sobreviver, mas não a viver; adicionamos anos à nossa vida e não vida aos nossos anos. Fomos e voltamos à Lua, mas temos dificuldade em cruzar a rua e encontrar um novo vizinho. Conquistamos o espaço, mas não o nosso próprio. Fizemos muitas coisas maiores, mas pouquíssimas melhores. Aprendemos a nos apressar e não, a esperar. Construímos mais computadores para armazenar mais informações, produzir mais cópias do que nunca, mas nos comunicamos cada vez menos. Estamos na era do 'fast-food' e da digestão lenta; do homem grande, de caráter pequeno; lucros acentuados e relações vazias. Essa é a era de dois empregos, vários divórcios, casas chiques e lares despedaçados. Essa é a era das viagens rápidas, fraldas e moral descartáveis, das rapidinhas, dos cérebros ocos e das pílulas 'mágicas'. Um momento de muita coisa na vitrine e muito pouco na dispensa. Acrescento: Estamos na era das fusões de empresas e dos desempregados em profusões. Do acúmulo de cartões de crédito fácil e abundante e das dívidas impagáveis. Das dezenas de pares de sapatos nos armários de casa e das crianças andando descalças nas ruas. Nunca tivemos tanto acesso à informação, mas nosso conhecimento é paupérrimo. As pessoas sabem muito sobre automóveis, mas pouco sobre arte. Muitos consumidores tem noção dos preços das cervejas, mas desconhecem o valor da solidariedade. Tira-se foto de tudo, mas, realmente, não se aprecia quase nada
quinta-feira, 21 de junho de 2012

Apertem os cintos, o copiloto sumiu!

A ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil, baixou a resolução 218, que entrou em vigor neste mês de junho, para estabelecer procedimentos para divulgação de percentuais de atrasos e cancelamentos de voos do transporte aéreo público regular de passageiros. O art. 2º da norma define: "As informações de que trata a presente Resolução visam: I - a divulgação das características dos serviços ofertados; e II - a transparência das relações de consumo". Para garantir a tal transparência, o art. 8º dispõe: "Os percentuais de atrasos e cancelamentos de voos serão divulgados pela ANAC e pelas empresas de transporte aéreo público regular doméstico e internacional de passageiros que operam no Brasil e seus prepostos". E o art. 10 diz: "Os percentuais de atrasos e cancelamentos de voos do transporte aéreo público regular doméstico e internacional de passageiros no Brasil deverão ser disponibilizados pelas empresas e seus prepostos, para cada etapa básica de voo, no início do processo de comercialização dos serviços, por ocasião de sua oferta. § 1º Para os efeitos desta resolução, o processo de comercialização inicia-se quando o adquirente do bilhete de passagem informa o itinerário e as datas desejadas ao transportador ou seus prepostos. § 2º As informações serão disponibilizadas ao adquirente do bilhete de passagem em todos os canais de comercialização utilizados e corresponderão aos dados divulgados pela ANAC. § 3º Na oferta presencial e telefônica do serviço, a informação deverá ser apresentada ao adquirente do bilhete de passagem, mediante solicitação. § 4º As informações apresentadas ao adquirente do bilhete de passagem devem corresponder ao mês mais recente divulgado pela ANAC". Qual a finalidade do estabelecido? Segunda a própria agência, foi para "aumentar a transparência na relação de consumo entre empresa e passageiro, que poderá analisar o histórico dos percentuais de atrasos e cancelamentos de voos antes de concluir a compra do bilhete". Com tanta coisa importante para se regular e controlar na aviação civil brasileira e sai essa norma, que literalmente não muda nada em lugar nenhum: na qualidade do atendimento, nas condições dos aeroportos e aeronaves, no respeito aos direitos estabelecidos etc. Trata-se apenas de estatística que, parece-me, só por isso, não gerará mudanças na atitude do consumidor em comprar passagens. Este está interessado no preço cobrado (algo que está completamente fora de controle - voltarei a esse assunto em outro artigo), na existência de voos para onde lhe interessa e no dia e horário escolhidos (muitas vezes ele só tem uma opção) e não é porque haja atrasos estatisticamente estampados que ele decidirá comprar aqui ou ali. Como diria meu amigo Outrem Ego, após ler a resolução, "trata-se de conversa mole para boi dormir". Mas, veja que, tão logo entrou em vigor a norma (em 4 de junho passado), o Procon/SP foi fiscalizar as companhias aéreas, como se tivesse sido encontrada uma solução mágica para o problema da aviação civil no país e, como se, de fato, agora haverá mais transparência da relações e como se isso, de per si, pudesse gerar competição entre as empresas do setor. Deixarei meu amigo Outrem Ego narrar o que aconteceu com ele, dois dias depois, em 6 de junho, quando tentava embarcar com parte da família para a cidade de Juiz de Fora/MG, saindo do aeroporto de Guarulhos. Leia: "Iria passar o feriado em Juiz de Fora, visitando a família de minha mulher. E, como São Paulo provavelmente seja a cidade mais congestionada do mundo e ainda por cima era véspera de feriado, saí de casa às 14h45 para pegar um voo às 19h. Demoramos, da avenida Pacaembu até o aeroporto de Cumbica, nada mais nada menos que uma hora e cinquenta e cinco minutos. Tudo bem. Chegamos, pegamos uma filinha que já estava formada à frente do balcão da Trip - a companhia aérea - e nos dirigimos à sala de embarque. Duas, na verdade: de uma primeira abarrotada de pessoas, quase não dando para se mexer e até respirar, fomos levados de ônibus para uma segunda também lotada. Era, então, 17h45. Perguntei algumas vezes se o voo estava no horário e sempre me responderam que sim. Aliás, no painel eletrônico estava cravado que o embarque estava próximo ('Trip voo 5642 - Juiz de Fora - 19h'). O tempo foi passando, a sala esvaziando e somente nós da Trip Juiz de Fora por lá. Estava próximo o embarque. A cada pergunta a mesma resposta: 'O voo está no horário'. Ok, pensei. Só que chegou 19h e nada de nós embarcarmos. Só com muitos minutos de atraso é que nos colocaram num ônibus com destino à aeronave estacionada na pista. Embarcamos. E as cenas que se seguirão - embora num primeiro momento tenham feito a maior parte dos passageiros rirem - não foram nada engraçadas. O avião estava lotado. Passaram cinco, dez, vinte minutos e nada de ele sair do lugar e nem haver movimento nesse sentido. De repente, o piloto toma o microfone e anuncia: 'Senhoras e senhores passageiros, aqui quem fala é o comandante. O que tenho de falar é um pouco constrangedor... Nós não podemos voar porque não sabemos onde está o copiloto'. Todos riram, mas logo todos nos demos conta do imbróglio em que estávamos metidos. O comandante prosseguiu para nos tranquilizar: 'Anuncio que recebemos a informação de que o copiloto já está chegando ao aeroporto. Ele estava preso no engarrafamento'. Passou uma hora e nada. O ar condicionado havia sido desligado e nós já suávamos bastante. A aeromoça surgiu com água para distribuir, avisando que o ar condicionado seria religado... Aproveitei e perguntei para ela do destino do copiloto. Por incrível que possa parecer ela disse: 'Vou confessar a vocês. O copiloto que estava chegando não era o nosso. Era o daquela outra aeronave ali - e apontou para outro avião também parado na pista ao nosso lado. Nosso copiloto ninguém sabe onde está'. Algum tempo depois, quando já se percebia um certo vislumbre de reclamações, o comandante retornou ao microfone para anunciar que agora sim o copiloto já se apresentara ao aeroporto e no máximo em quinze minutos chegaria ao avião. E que não valia a pena desembarcarmos para retornarmos logo depois. Todos concordaram, pois, afinal, já fazia mais de uma hora que estávamos lá dentro. Quinze minutos mais tarde surgiu o copiloto, muito aplaudido - sinal do desespero dos passageiros que olharam aliviados para o atrasado homem. Fomos para a pista, agora na fila de aeronaves, e, uma hora e quarenta minutos de espera dentro do avião depois, levantamos voo. Pena que nossa via sacra não terminou ali. Com uma hora de voo, o comandante nos avisou que o aeroporto de Juiz de Fora estava fechado e que estávamos indo para o aeroporto da Pampulha em Belo Horizonte, o que fez muitos de nós desconfiarmos que eles já sabiam do fechamento quando ainda estávamos em Guarulhos. Não explicaram também porque não fomos para o Galeão, muito mais perto do destino em Juiz de Fora. Para completar o quadro de desinformação, antes de pousarmos na Pampulha a despreparada aeromoça leu o folheto de chegada no local, que soou como escárnio. Disse ela: 'Bem vindos a Belo Horizonte. Esperamos que a viagem tenha sido confortável, etc.'. No desembarque, foi-nos informado que dois micro-ônibus e uma van nos esperavam para viajarmos cerca de trezentos quilômetros até Juiz de Fora. Aos que diziam que queriam pernoitar em Belo Horizonte e ir no dia seguinte (já que era mais de vinte e três horas e algumas pessoas estavam com seus filhos menores) era dito que não havia vagas nos hotéis. É mole? Véspera de feriado, milhares de pessoas saindo de BH e os hotéis lotados. Piada!(Mais uma). Minha filha e eu fomos no micro-ônibus e, finalmente, às quatro e vinte da matina chegamos ao local de destino. Faltava arrumar um táxi, mas ele não demorou a chegar". Evidente que, se as condições meteorológicas não permitem o voo, se o aeroporto está fechado por questões climáticas etc., a companhia aérea nada pode fazer. Não é esse o ponto. A questão é essa da transparência e do direito do consumidor de receber prévias informações verdadeiras e precisas sobre as condições de embarque, transporte, escalas, etc., do voo que irá empreender. O episódio narrado por meu amigo Outrem Ego, com algumas variáveis semelhantes e também diferentes, é vivido diariamente por muitos usuários nos aeroportos brasileiros. Se a Agência reguladora quer mesmo que as companhias aéreas ajam com transparência no trato com seus clientes, ela deve, então, obrigá-las a dizer a verdade não só antes do embarque, como durante e depois. Infelizmente, a falta de informações e também a mentira descarada têm sido uma constante no atendimento dado pelas empresas aos consumidores. Saber se aquele voo atrasou uma, duas ou mais vezes nos meses anteriores, fixada a informação numa tabela estatística entregue no ato da compra da passagem, não refresca a oprimida situação dos consumidores, que entregam sua sorte aos agentes aeroportuários, atendentes de companhias aéreas e demais funcionários. O que o consumidor que pretende embarcar num avião para qualquer destino quer saber e, aliás, tem direito a tanto, é se o voo sairá, se ele está no horário, se chegará ao destino programado, se as condições de voo são adequadas e, claro, é direito seu também ser conduzido por tripulação preparada, descansada, completa, receber tratamento condizente com a situação, receber em terra o atendimento devido com alimentação adequada, hospedagem quando necessário, etc. Isso sim é transparência e respeito ao direito dos consumidores. Por ora, penso que a citada resolução não trará benefícios que digam respeito à transparência. Tudo indica que meu amigo tem razão: é mais colóquio flácido para acalentar bovino.
Uma das características marcantes da sociedade de consumo em todos os tempos é a de que os consumidores em geral não tem capacidade financeira para adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos. A partir de um certo momento na história, especialmente após o período da revolução industrial, cada vez mais os fabricantes passaram a produzir bens em grandes quantidades. O intuito como sempre era o lucro. Com o aumento da tecnologia de produção, passou-se a poder produzir em série, de tal modo que o produto final foi ficando cada vez mais barato. O produtor passou a ter um menor lucro por cada produto vendido, mas como vende em muito maior quantidade, fatura mais e ganha mais. A criação de novos produtos e serviços fez a quantidade de variedade crescer ao infinito. Isso me faz recordar Sócrates que, quatro séculos antes de Cristo, foi ao mercado em Atenas e disse: "Como são numerosas as coisas de que eu não preciso". Hoje, frequentando qualquer shopping center e observando a incrível e enorme quantidade da oferta, o famoso filósofo talvez perdesse sua natural simplicidade e sua imbatível lucidez. A verdade é que o sistema capitalista que vingou, de produção em massa de produtos necessários mas também supérfluos, inúteis, só cresceu com o passar do tempo. Mas, havia um problema: os consumidores continuavam sem dinheiro para adquirir os bens oferecidos. Isso no século XX foi resolvido com a criação do sistema de oferta de créditos em massa, dos empréstimos pré-aprovados, dos financiamentos a longo prazo e, claro, dos cartões de crédito, a porta de entrada no paraíso das compras, que permite aquisição de produtos e serviços para o consumidor que não tem dinheiro algum. A oferta de crédito, todavia, tem seu próprio limite na capacidade de pagamento do consumidor-tomador. Não adianta oferecer crédito fácil se, do outro lado da oferta, há limites restritos de devolução. Ou, dizendo de outro modo, é preciso que o fornecedor controle a capacidade de pagamento de seus clientes (daí, em parte, a justificativa para a existência dos cadastros negativos e positivos de crédito). Para piorar o quadro, no Brasil, o mercado criou um modelo de financiamento para quase tudo que existe à venda pela criação do cheque pré-datado, (invenção nacional) o que inclui produtos que, em outros lugares, só se compram à vista. Um bom exemplo é o combustível: o consumidor enche o tanque de seu veículo pagando com cheques pré que, por sua vez, acumulam-se junto de outros relativos às demais compras, numa substituição sem fim (nesse emaranhado de cheques, é muito comum que o consumidor perca-se na administração doméstica e acabe, fatalmente, emitindo cheques sem fundo). O consumidor, então, usa hoje o combustível que pagará no mês seguinte ou dois ou três meses depois. Essa questão do superendividamento dos consumidores - especialmente, no âmbito familiar - é, atualmente, um dos temas centrais das preocupações dos consumeristas, tanto que, no projeto de lei do Senado Federal que pretende atualizar o Código de Defesa do Consumidor, foi feita proposta de proteger o consumidor contra essa mazela. O problema é que os fornecedores - concorrendo entre si para oferecer crédito em larga escala, ainda que tentando controlar os riscos - acabam estimulando sobremaneira a aquisição de produtos e serviços a prazo, no que contam, naturalmente, com a ajuda da longa mão do marketing massivo. Por tudo isso, é mesmo muito importante que o Estado intervenha no mercado para regular o crédito. Infelizmente, o que se tem observado nos últimos tempos é um estímulo às aquisições a prazo, em função da crença de que o aumento das vendas é o mais importante elemento que tem valor no capitalismo, o que gerou uma forma de crédito perniciosa. Acabou sendo adotado o modelo que é muito usado pelas grandes lojas populares de varejo que vendem móveis e eletrodomésticos e atendem às classes C, D e E. Essas, como se diz, não "vendem propriamente" uma cama, um sofá ou um armário. Elas vendem "prestações de pequenos valores" pelas quais os consumidores adquirem esses bens. A estratégia é, pois, descobrir "quanto" de valor de uma prestação cabe no salário do consumidor para, após esse cálculo, fazer as ofertas. Daí que o prazo é sempre alongado e, já que o cálculo é bem feito, não custa nada embutir generosas taxas de juros nas prestações, eis que o crediário é feito por empresas financeiras ligadas aos lojistas. Conclusão: o consumidor consegue comprar alguns produtos, pagando por meses e anos a fio. Não é incomum que, ao final, o consumidor tenha adquirido um armário e pago o preço de três ou quatro. Mas, esse é um sistema que, bem ou mal, funciona - porque os consumidores, mesmo pagando caro, conseguem a longo prazo adquirir certos produtos, o que não seria viável à vista, pelo menos não frequentemente. No entanto, essa mesma fórmula aplicada à venda de veículos automotores - especialmente, automóveis - e também aos imóveis, não funciona tão bem. Isso porque, quando o consumidor adquire um automóvel pelo fato de que a prestação "cabe" na sua renda - no seu salário -, comete um erro, pois se esquece de considerar os demais custos ordinários e extraordinários ligados ao produto. Um automóvel, por exemplo, gera gastos imediatos e rotineiros com manutenção (revisões, trocas de peças, óleos, etc.), impostos, taxas, seguros obrigatórios e voluntários, além do consumo regular. De cara, sem recursos, o consumidor acaba não fazendo o seguro voluntário para se garantir contra acidentes e roubos. Se sofrer um, já perde tudo. E, essas circunstâncias, a longo prazo, proporcionalmente, só pioram, porque o custo da manutenção aumenta e os demais permanecem. Chega uma hora em que a prestação cabia no salário, mas todos os demais custos não. Fatalmente, o consumidor tornar-se-á inadimplente, sendo que os veículos retornarão aos financiadores. A esse propósito, nos últimos dias, a imprensa noticiou que, de fato, a inadimplência no setor de veículos financiados cresceu brutalmente e já existe um acúmulo desses produtos nos pátios de leilões, que estão abarrotados. Pode-se dizer o mesmo em relação à venda de imóveis, principalmente, aqueles oferecidos também a essas classes de renda, eis que não basta que a prestação caiba no salário, uma vez que, como se sabe, imóveis não só exigem manutenção e pagamento de tributos e taxas, como os mais populares estão sendo entregues ao mercado praticamente apenas com as paredes e o chão. O consumidor tem que adquirir o bem e, depois, ainda tem que gastar muito para equipá-lo adequadamente para uso. Só para ficarmos com alguns elementos, há apartamentos sendo oferecidos com chão de cimento, sem aquecedor, sem chuveiro, sem uma série de utensílios que são absolutamente necessários. Aliás, e a propósito, anoto que não é raro que o consumidor adquira apartamentos em construção e depois não tenha dinheiro suficiente para pagar o ITBI e as taxas de Cartório. O mercado, portanto, é repleto de armadilhas. Em algumas delas, é verdade, o tiro pode sair pela culatra, o que pode acontecer quando um grupo muito grande de consumidores é atingido simultaneamente gerando crise em bloco e afetando um específico fornecedor ou vários do mesmo setor. Mas, do lado do consumidor, ávido por consumir - na crença de que assim pode ser feliz - as chances dele sair-se mal nas operações são grandes. Falta, pois, educá-lo adequadamente para que ele possa compreender os riscos reais que corre ao efetuar compras a prazo, além claro, de ser adotada uma política de financiamento mais realista e que possa proteger o polo de consumo.
Num de meus artigos do ano passado (de 14/4/2011 - clique aqui) eu contei uma estória para ilustrar o drama vivido por centenas de consumidores neste país. Vou transcrevê-la a seguir e depois continuo o presente. Ei-la: José da Silva, usuário do plano de saúde X, que firmou para si e sua família, chega ao Hospital Y, para internar sua esposa que teve um ataque cardíaco. A situação é grave e ela necessita de atendimento médico urgente.Ele, tenso, vai ao balcão de atendimento da entrada de emergência do hospital e entrega a carteirinha do plano de saúde. A atendente, então, com muita calma, num contraste muito forte com a dor do sr. José, pede a guia de internação. José está tão nervoso que sequer entende o pedido: "Guia ? Que guia ?". "Para sua esposa dar entrada no hospital o senhor tem que me apresentar a guia de internação expedida pelo seu plano", responde a mocinha do balcão, com uma frieza de mármore e, claro, lendo um roteiro escrito a sua frente. Confuso, José gagueja e diz que não tem guia alguma. E, levantando a voz, assim, meio sem querer, aponta para sua mulher deitada na maca: "Ela teve um ataque... São duas horas da madrugada! Ela teve um ataque...precisa de ajuda...". "Eu sei meu senhor. Eu sei. Mas este é o procedimento"., devolveu a mármore que fala. José já ia responder, quando a treinada funcionária hospitalar interveio: "Mas, não se preocupe. Nós temos a solução. O senhor assine, por favor, um cheque caução e me entregue que está tudo resolvido". "O que é isso?", perguntou, atônito, José. "É o seguinte: o senhor deixa um cheque conosco; ele fica como garantia dos gastos aqui no hospital; se o plano de saúde não cobrir os valores que o hospital vai cobrar, então, nós depositamos o cheque". "Mas, como? Se eu tenho plano de saúde é exatamente pra não ter que passar por isso. Veja minha mulher, ela está morrendo... Está morrendo!". "Calma, calma. É rápido. Pegue seu talão que eu vou calcular quanto é o valor para o preenchimento...". "Eu... Eu não tenho talão de cheque aqui comigo". "Então me passa o relógio!". * * * * * * * * A narrativa da estória (tirando, claro, o pedido do relógio) mostrava o que acontecia regularmente nos atendimentos de urgência de muitos hospitais brasileiros. Por isso, evidentemente, a lei 12.653 - clique aqui, recentemente promulgada, que tipificou o crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial é bem vinda . Ela coloca uma pá de cal nos absurdos argumentos que sempre pretenderam justificar em juízo a validade do procedimento. Assim, escrevo este artigo não para falar do que já sabemos, mas apenas para lembrar que, como se trata de lei penal, a mesma não retroage e existem centenas de casos de abusos praticados anteriormente nos moldes em que a lei agora vem coibir expressamente. E, quero consignar que esses consumidores que foram violados no passado não estão desprotegidos. Isso porque, mesmo antes da introdução desse novo crime no Código Penal já era possível enquadrar a conduta lesiva dos hospitais nas normas do CDC e até do próprio CP. Com efeito, o poder Judiciário já vinha anulando contratos obtidos desse modo abusivo pelos hospitais, com base nas normas em vigor. E mais: um elemento importante que foi considerado muitas vezes dizia respeito ao ônus da prova para a demonstração da lisura do procedimento. Entendia-se que havia presunção "juris tantum" de que, em internações hospitalares de urgência, os funcionários dos hospitais impunham seus contratos e títulos aos próprios pacientes ou seus acompanhantes. Transcrevo, para terminar, trechos de uma dessas decisões: "(...)conforme vem decidindo esta C. Câmara, toda vez que o consumidor alega que foi coagido a assinar contrato de prestação de serviço hospitalar ou o chamado cheque caução numa internação de emergência, inverte-se o ônus da prova para que o hospital demonstre o inverso. Isto é, há mesmo presunção juris tantum de que, em internações hospitalares de urgência, os funcionários dos hospitais impõem seus contratos aos próprios pacientes ou seus acompanhantes em flagrante violação ao sistema legal. Infelizmente, trata-se de prática conhecida que vige no setor. Com efeito, a prática é claramente abusiva, conforme definido pelo Código de Defesa do Consumidor, no inciso V do artigo 39, que assim dispõe: 'Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: V- exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva". E, para se fixar o sentido de "vantagem manifestamente excessiva", deve-se valer do § 1º do artigo 51 do mesmo diploma legal, que, por sua vez, dispõe: '§1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual; III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso'. Não resta dúvida, portanto, de que a imposição de contrato ou título de crédito a ser assinado na véspera de uma internação de emergência é ilegal. E, se assim o é, como de fato se verifica, tal comportamento dos funcionários dos hospitais - claro, a mando dos administradores e proprietários destes -configura em tese o crime de constrangimento ilegal previsto no artigo 146 do CP, assim tipificado: 'Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa'. Esta C. Câmara vem decidindo nesse sentido regularmente. Por exemplo nas apelações 7.051.878-4, Des. Relator Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, j. 25/6/08, v.u. e 7.109.503-1, Des. Relator Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, j. 04.02.09, v.u. Destaque-se do apelo 7.051.878-4, acima citado, o seguinte trecho que deixa patente o abuso: 'Anote-se que a prática abusiva da autora contra a ré se deu no ato da internação, que se realizava em caráter de urgência, previamente a qualquer definição do valor final devido, que dependia de apuração, sem que fosse concedido tempo suficiente para a devida reflexão por parte da ré, dadas as condições da paciente. Como bem apontado pela r. sentença atacada, 'a conduta da autora, na hipótese, caracteriza verdadeira coação psicológica, a invalidar o termo de responsabilidade e a emissão da nota promissória referidos, sem o que nenhuma obrigação reste a cargo da ré, a respeito das despesas ora cobradas.' (fls. 146)1. Desse modo, patente o abuso da exigência feita pelo hospital réu que não se desincumbiu, repita-se, de seu ônus de provar a licitude do contrato firmado, era de se julgar procedente a ação. Diante do exposto, dá-se provimento ao recurso para julgar a ação procedente"2. __________ 1A Lei acrescentou o art. 135-A ao Código Penal: Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial Art. 135-A. Exigir cheque caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte. 2Apelação 9226644-96.2007.8.26.0000 (Comarca de São Paulo). Eu sou o Relator, j. 18/4/2012, v.u., publ. 24/4/2012.
quinta-feira, 24 de maio de 2012

Os abusos das operações casadas

É impressionante ver como há empresários que se especializaram em burlar as leis de proteção ao consumidor com o único e exclusivo objetivo de auferir lucro, mas uma espécie de lucro exagerado, sem fim. A ganância é mesmo uma das bases do sistema capitalista contemporâneo. E, atualmente, os maiores violadores do sistema são exatamente aqueles que não precisariam fazê-lo, pois seus ganhos são por demais excessivos. Lembro um caso que já tive oportunidade de contar e que atinge muita gente: o do zelador do prédio onde mora meu amigo Outrem Ego. Ele foi a uma agência bancária solicitar um empréstimo de apenas R$500,00. Pediram-lhe toda a documentação de praxe e ele a levou. Aprovado o empréstimo, trouxeram-lhe o contrato e também outro documento para assinar: tratava-se de um seguro residencial. O zelador, então, disse que nem casa ele tinha, pois morava com sua família no apartamento pertencente ao condomínio. Não adiantou: o funcionário do banco disse que para receber o empréstimo ele tinha que fazer o seguro. E, olha, não foi pouca coisa. Para um empréstimo de apenas R$500,00 "enfiaram-lhe pela goela abaixo" (desculpe-me a expressão, mas ela é adequadíssima) R$64,20 ou o equivalente a 12,84% do total emprestado! Esse episódio, tão corriqueiro como, infelizmente, qualquer assalto à mão armada em plena rua de uma cidade brasileira, nos joga na cara esse lado estranho da condição humana que criou a hipocrisia e mais ainda o cinismo. Lendo-se a apólice de seguro, percebe-se a farsa, a comédia e a tragédia. Nosso zelador-consumidor (assim como qualquer um de nós) vive oprimido pelo abuso que as grandes corporações do capitalismo dito neoliberal (descontrolado) lhes impinge. Ele, morador de um apartamento dentro do condomínio no qual trabalha, acabou fazendo seguro contra "queda de raio" com coberturas contra "vendaval e fumaça" ! Não gostaria de voltar ao assunto que considero por demais conhecido, que é o das sacolinhas plásticas que passaram a não ser mais entregues gratuitamente nos supermercados do Estado de São Paulo. Todavia, sou obrigado a voltar ao tema porque a prática é tipicamente uma operação casada, que é vedada pelo Código de Defesa do Consumidor. Na realidade, o que se constata é que obrigar o consumidor a adquirir uma sacola, qualquer que seja ela, de plástico, papel ou tecido, para poder levar consigo os produtos que adquiriu no próprio estabelecimento comercial, é uma típica operação casada porque obriga o consumidor a comprar e pagar por algo que não queria comprar e muito menos pagar. E a regra estabelecida atualmente pelos empresários do setor é esta: leva nos braços ou paga pela sacola.Faço aqui um parêntese para apresentar algumas colocações trazidas por Outrem Ego. Disse ele o seguinte: "Imagine que um consumidor vai a uma joalheria adquirir um par de brincos para sua namorada. Após escolher o produto, perguntar o preço e concordar em comprá-lo, ele diz: 'vou pagar com cartão de crédito'. A vendedora então pergunta: 'o senhor vai levar os brincos na mão?'. Ele responde: 'não, na caixinha', ao que ela devolve: 'bem, é que a caixinha para colocar os brincos custa R$ 10,00'... Imagine agora a consumidora que vai a uma loja de esportes adquirir um par de tênis. Ela compra os tênis, vai ao balcão, faz o pagamento e o vendedor lhe entrega o par solto na mão. Daí ela diz: 'eu gostaria de levar os tênis na caixa' e o vendedor responde: 'são mais R$ 15,00'". Outrem Ego, com razão, mostrou que os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente porque, claro, quando o consumidor compra qualquer produto, esse produto tem que ser entregue em condições nas quais ele possa levá-lo consigo. Não tem sentido comprar algo e ter de pagar pela embalagem. Isso seria operação casada, abusiva e ilegal, assim como também o é o da venda de sacolas pelos supermercados. A operação casada é proibida A chamada operação casada ou simplesmente venda casada é uma imposição feita pelo fornecedor ao consumidor. Ela se dá quando o vendedor exige do consumidor que para ele comprar um produto tem que obrigatoriamente adquirir outro (o mesmo se dá com os serviços). Algumas dessas operações são bem conhecidas. Dentre elas estão certas imposições feitas por bancos para abrir conta ou oferecer crédito, como, por exemplo, somente dar empréstimos se o consumidor fechar algum tipo de seguro (residencial, como o do zelador ou seguro de vida). Outro exemplo é o do comerciante que só serve a bebida no bar se o consumidor comprar um prato de acompanhamento, etc. Alguns cinemas estão também operando ilegalmente quando deixam que o consumidor entre na sala de exposições com comidas compradas no próprio local (sacos de pipocas, refrigerantes, etc.), mas impedem que ele leve consigo o produto comprado fora do local ou que tenha levado de casa. O expositor pode até impedir que todos entrem com comida, mas se permite que ela seja consumida após adquirida ali mesmo, não pode impedir que o consumidor a traga de fora. É uma prática abusiva casada às avessas, pois quer forçar o consumidor a comprar os produtos vendidos no local. Outrem Ego lembrou o caso das pizzarias. Há algumas que vendem pizzas de mais de um sabor, mas cobram pelo preço da mais cara. Por exemplo, se uma pizza de camarão custa R$70,00 e uma de mussarela custa R$30,00 e o consumidor pede meio a meio (meio de camarão, meio de mussarela) é cobrado R$70,00. Um absurdo. O preço somente pode ser de R$50,00, que corresponde à metade do preço de cada uma. Essa é também uma espécie de operação casada travestida, pois impõe o preço mais caro para o consumidor que quer comprar a pizza meio a meio. Um setor que pratica bastante a operação casada é o de venda de automóveis e seus conhecidos opcionais. Muitas vezes o consumidor tem de comprar o veículo com o "opcional" na marra e, na maior parte dos casos, os preços anunciados não incluem os mais desejados. Isso e muito mais é simplesmente ilegal e abusivo e dependendo do tipo de operação, o consumidor pode aceitá-la no momento do fechamento do negócio para, em seguida, anular parte dele. Por exemplo, se for caso de banco que exige que seja feito um seguro para obter um empréstimo, o consumidor pode primeiro obter o empréstimo e, depois, cancelar o seguro, o que pode ser feito até de forma bem simples com o envio de uma carta/notificação tratando do abuso e exigindo o cancelamento. Operação casada legítima Só para não esquecermos: Apesar da proibição, existem exceções para algumas operações casadas. É que certas exigências casadas são legítimas, dentro de critérios razoáveis. Assim, por exemplo, o comerciante pode se negar a vender apenas a calça do terno, por motivos óbvios. Da mesma maneira, o industrial pode embalar o sal em pacotes de 500 g, mesmo que o consumidor queira adquirir apenas 200 g, etc.
O dito popular é claro: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo". Como se sabe, uma ordem dada por alguém pode ser legal e legítima e quando forem, obedecê-la é o caminho correto a ser seguido. Um dos problemas do comando, isto é, do exercício do poder, é o de sua delimitação. Quem detém o poder, pode dele abusar. E, infelizmente, na sociedade capitalista atual, profundamente materialista e egoísta, muitos fornecedores que podem, abusam. Essa é uma constatação vivida na pele, praticamente todos os dias, por milhares de consumidores. No mês passado, eu recebi uma carta do leitor A.S.S, que reproduzo na sequência e que mostra um dos tipos de abusos perpetrados diariamente. Leia. "Hoje, dirigi-me ao banco para encerrar minha conta corrente. Após senha e longa espera, fui chamado pelo - permitam-me a metonímia - "caixa". Sem rodeios, solicitei, de plano, o encerramento da conta corrente. Pediu-me documentos. Fui encaminhado a novo calvário de senha, sobe escada, espera, mostra documento, desce escada, senha, espera e mostra documento de novo. Ufa! Novamente sentado cara a cara com o "caixa", fico no aguardo dele terminar seu ciberjogo de paciência, campo minado, tetris ou pinball - não é crível que se demore tanto para a simples troca do nome e do RG de um contrato-padrão de 2 folhas. Quando, feliz, penso que era o fim ('That's all folks'), tenho a sensação do coito interrompido: falta responder ao questionário. 'Por que motivo deseja encerrar sua conta corrente?' Obviamente, pautado na máxima de que minha vida particular é o maior problema meu, respondi: 'Sem motivo'. Resposta recusada sob a justificativa da opção não constar no questionário. Por sorte, no momento, lembrei dos ensinamentos de lógica do Prof. Ricardo Andreucci. Expliquei, fazendo um paralelo com o Direito Penal e já em tom de ameaça, que matar alguém sem motivo não corresponde ao homicídio qualificado de matar alguém por motivo fútil (banal, insignificante), ou seja, matar sem motivo ou encerrar minha conta sem motivo já é um próprio motivo em si mesmo, diferentemente de todos os outros motivos que constem no questionário ou no tipo penal. E continuei: assim como o homicida sem motivo se livra da qualificadora penal pelo princípio da reserva legal, livrar-me-ei de você! Resposta aceita; menos pelo convencimento lógico, mais pelo tom de ameaça (...)". E, sobre o mesmo assunto, anoto o que perguntou meu amigo Outrem Ego: "Você já tentou contratar uma linha telefônica fixa e fechar um pacote de minutos? Ou então, o que é pior, cancelar uma linha, uma assinatura, uma conta? Ah!, é uma experiência parecida com luta livre: você leva soco na cara, golpe baixo do atendente, leva gravata para aceitar a proposta que ele fez, mas você não queria, leva empurrão para ver se cai fora do ringue e desiste de cancelar, etc. Enfim, um jogo de enganações para o qual o empregado (que também é consumidor, como sempre gosto de repetir) faz de tudo para não atender o consumidor, quero dizer, faz de tudo para não respeitar seus direitos. Mais mentira de que o atendimento é bom, como dizem os anúncios". Veja-se o que está acontecendo nas vésperas da Rio + 20 - Conferência das Nações Unidas sobre desenvolvimento sustentável que ocorrerá entre os dias 13 e 22 de junho próximos. As tarifas dos hotéis cariocas para a ocasião estão fixadas em valores uma vez e meia mais altos que os da cidade de São Paulo e já se equiparam aos de Nova York. Segundo dados divulgados na imprensa, hoje em dia é possível hospedar-se no tradicional Hotel Plaza Athenee, no Central Park, em Manhattan, pagando a diária a partir de 1.127 reais. O Copacabana Palace, por exemplo, apresenta valores semelhantes: as diárias variam entre 1.140 reais a 5.600 reais e todos os 243 quartos estavam reservados para as dezesseis delegações estrangeiras que participarão do encontro. Claro, vai se dizer, são as "leis de mercado". Mas, como no caso, os consumidores têm algum poder de barganha, está sendo feita pressão para que haja diminuição dos preços. Por exemplo, a delegação do Parlamento Europeu cancelou sua vinda. O alemão Matthias Groote, presidente da Comissão de Meio Ambiente do Parlamento Europeu, chegou a fazer um apelo ao governo brasileiro para intervir no que considerou "um abuso" por parte dos hotéis no Rio de Janeiro. Por aqui, chamou atenção a reclamação do presidente da Câmara dos Deputados, Sr. Marco Maia, que declarou que o Legislativo Federal não pagaria diárias nos preços praticados. Segundo ele, a Câmara enviaria 100 parlamentares para o evento, mas, agora, por causa disso, eles só iriam se pagassem as diárias do próprio bolso. "Vamos chamar os representantes do setor para explicar o porquê dessas tarifas tão elevadas", disse o deputado. E, ainda sobre abusos recentes, Outrem Ego me disse o seguinte:"No final de semana, nos arredores do estádio do Morumbi, preparado para a final do campeonato paulista, enquanto a polícia prendia dezenas de 'flanelhinhas guardadores dos carros' estacionados em vias públicas, alguns torcedores pagavam extorsivos R$50,00 para guardar seu veículo num Shopping Center da região. Preço fixo: cinquentinha!". Mas, voltando a questão dos preços das diárias dos hotéis para a Rio + 20: as notícias do início desta semana dão conta de que foi firmado um acordo entre representantes do governo e do setor hoteleiro e este prometeu que haverá uma redução de até 30% nos preços das diárias. Ah, como seria bom se todos os consumidores tivessem esse poder de negociação! O problema é que não têm. A maior parte dos consumidores está jogada a própria sorte e acaba sofrendo abusos de todo tipo. A saída, como os consumeristas têm pregado, é a formação de associações de consumidores para agir em conjunto. No Brasil, temos muito poucas, algumas quase heroicas na luta pela defesa do consumidor como, por exemplo, o Idec, de São Paulo, mas é preciso mais. Individualmente, o consumidor pode muito pouco, especialmente no caso dos chamados abusos de varejo: aqueles do dia a dia e de pequenos valores. Ele prefere aceitar a imposição ou o abuso do que procurar proteção, pois esta acaba dando muito trabalho e/ou custa dinheiro e/ou gasto do seu precioso tempo. É verdade que os Procons têm trabalhado bem nesse sentido, assim como os Juizados Especiais têm servido de escoamento para as reclamações mais simples e de valores mais reduzidos. Do mesmo modo, o Ministério Público em todas as suas esferas tem também dado sua contribuição. Mas, nada disso tem impedido ou atenuado os abusos, pois os fornecedores são mesmo muito criativos para levar vantagem. Enfim, trata-se de uma luta a ser travada diariamente pelos consumidores. Por isso, apesar de parecer chato, para que a sociedade capitalista melhore como um todo e os fornecedores respeitem um pouco mais o consumidor, é necessário exercer esse direito básico de todo consumidor, que é o de reclamar. De preferência, na forma coletiva, como, aliás, quer o Código de Defesa do Consumidor.
O capitalismo selvagem e os consumidores desesperados É fato conhecido que muitos consumidores jamais poderão adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo. Por mais que o sistema financeiro consiga, cada vez mais, oferecer crédito para uma ampla camada da população, muitos objetos do desejo dos consumidores continuam e continuarão inacessíveis. Há muito a ser dito a respeito disso, mas o que interessa neste artigo é o elemento psíquico: o que o marketing, que oferece esses bens de difícil aquisição alimenta, de fato, é a frustração (Alguns entendem que a frustração é boa para o mercado, pois, como o consumidor não consegue preencher seu "espaço interior" adquirindo mercadorias, nunca para de comprar na tentativa - vã - de apaziguar sua alma). Além disso, como esses consumidores - já frustrados ou que ainda se frustrarão - são seres humanos, têm, dentro de si, uma coisa chamada esperança. Daí, vivem a ilusão da possibilidade de um dia realizar seu sonho de aquisição - qualquer que seja ele.  Assim, de frustração em frustração o consumidor vai preenchendo o vazio de sua esperança; se olhar para trás, verá o quanto não conseguiu obter. Mas, a esperança é forte e a ilusão também. Por isso, ele acredita na sorte e participa de todo tipo de jogos para ganhar prêmios (estes ironicamente chamados de "jogos de azar"): loterias, cassinos (quando e onde há), entra em concursos de todo tipo, adora promoções, sorteios, etc. Isto é, o consumidor é presa fácil das ofertas que prometem uma vida melhor e, de preferência obtida rápida e facilmente. Visto desse modo, é possível afirmar que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem: a esperança de, passando um creme, ficar com a pele mais bonita ou mais saudável; de, usando um novo xampu, ficar com os cabelos mais sedosos; a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita ou de fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; pagar prêmios de seguros para garantir o próprio futuro e, também, o da família; poupar de forma adequada para conseguir chegar nesse futuro e ter tempo ainda de gozar a vida, etc., etc. O mercado oferece o futuro de uma vida melhor. Mas, como eu disse, o consumidor tem pressa. Aliás, foi o próprio mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não há tempo para nada; nem se pode perder tempo algum. Recebe-se à vista e paga-se a crédito, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o Dia das Mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem  de entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que já nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel - criadas e continua pagando as prestações de seu financiamento. Como é que diz mesmo a propaganda?: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável... Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. Veja o caso do "feirão de imóveis" que uma grande instituição financeira faz todo ano (e realizou novamente no último fim de semana): por absurdo que pudesse parecer, sempre dá certo (Nesse 8º "feirão" foram movimentados mais de quatro bilhões de reais!). O consumidor, desprotegido, é transparente, fácil presa desse tipo de iniciativa. Meu amigo Outrem Ego ao perceber que, na semana passada, estava anunciada mais uma promoção de venda de imóveis desse tipo, disse: "Sempre que vejo isso, me vem a imagem do marido que diz pra sua mulher numa sábado à tarde: 'Querida, vamos dar uma saidinha? Vamos até o shopping, pois eu preciso comprar uma gravata e vou te comprar uma bolsa. Depois, na volta, já que estamos no caminho, nós aproveitamos e compramos um apartamento de três quartos porque este aqui com dois está pequeno demais'". É mesmo desanimador. O chamado "feirão da casa própria", promovido nos últimos anos, é um esquema de vendas que acabou vingando. Essa instituição torra milhões de reais em anúncios espalhados na mídia, num tipo de oferta que envolve o consumidor em seus temores, anseios e esperanças. Ademais, nessa questão, surge o problema da desinformação, pois o comprador está agindo contra as cautelas normais e necessárias que se exige nesse tipo de transação. Tem razão o meu amigo: uma casa ou um apartamento não devem jamais ser comprados numa exposição de fim de semana, como se a pessoa estivesse comprando frutas na feira livre ou numa liquidação tipo queima de estoque de roupas ou sapatos.  A casa própria é, para a grande maioria dos consumidores, o mais importante (e mais caro) negócio da vida inteira. É a realização de um sonho e, por isso, deve ser tratado com a reflexão e o carinho que merece. Indo numa dessas "promoções", o consumidor corre o risco de comprar um imóvel por impulso, sem qualquer avaliação objetiva, pois, quando chega ao local, sofre todo tipo de pressão e influência dos vendedores, cujo maior interesse é vender, fechar um bom negócio com polpudas comissões. Para o comprador, fica, às vezes, a frustração (mais uma e essa praticamente definitiva) de morar onde não tinha exatamente planejado e, ainda por cima, endividado pelo compromisso assumido de longo prazo (10, 15, 20 anos ou mais). Ora, é fato conhecido que, antes de se comprar um imóvel, é preciso conhecê-lo, examinando-o para ver se ele atende às necessidades e expectativas. Deve-se vistoriá-lo não só de dia, no horário marcado pelo corretor ou vendedor, mas também em outro período, procurando conhecer as condições da vizinhança à noite - barulhos, trânsito, feira livre, etc. É importante conhecer a região para ver se ela oferece aquilo que o comprador precisa, como escolas, farmácias, supermercados, etc. Aliás, esse tipo de operação rouba mercado dos próprios advogados, que deveriam ser sempre consultados antes do fechamento desse negócio. Não só há necessidade da produção e exame de certidões forenses e do Cartório do Registro Imobiliário, como da avaliação de todas as peculiaridades daquela específica operação jurídica. Por exemplo, a compra de imóvel por empreitada ou preço de custo ou feita pelo Sistema Financeiro de Habitação, etc. envolve aspectos bem diferenciados. Em alguns casos é preciso inclusive checar se não há projeto para desapropriação do local: se o imóvel está localizado numa rua importante ou perto de estrada ou área de manancial, etc. É preciso saber, ainda, em alguns casos, se a área não é de proteção ambiental, etc. Lembro, naturalmente, que cada situação comporta componentes próprios de avaliação que devem ser levados em consideração, além das preliminares e genéricas que apresentei. As questões concretas e particulares devem, por isso, ser levadas a um advogado especialista que, como já disse, deve intervir em contratos de compra e venda desse tipo. É uma pena. O capitalismo é muito selvagem, ganancioso e egoísta e o consumidor - vítima frágil do modelo - jogado a própria sorte, apresenta-se cada vez mais desesperado, correndo atrás do futuro  de bem-estar decorrente da aquisição de produtos e serviços que não chega (quero dizer, pelo menos não chega para muitos milhões de consumidores).
No ano passado, meu amigo Outrem Ego, bastante nervoso, disse-me o seguinte: "Sou cliente de uma operadora de tevê a cabo há mais de dez anos. Nunca atrasei uma só prestação. Nenhum mês. Há dias e semanas em que nem assisto nada. Muitas vezes o sinal foi cortado nesses anos todos e jamais me deram um desconto. Pois bem, sabe-se lá porque o conta desse mês de agosto ficou enroscada em outras - tenho muitas contas pra pagar. Vencia dia 10 de agosto e eu só vi dia 15. Paguei, então, no dia 15. Mas, não é que recebi uma carta grosseira, expedida no dia 16, dizendo que se eu não regularizasse meu débito em dois dias o sinal iria ser cortado. Empresários grossos e mal educados. Será que não viram que foi um engano? Será que não distinguem bons clientes de maus clientes? Esses milhares de reais que eu entreguei para eles esses anos todos não valem nada? Fico pensando: se eu fosse cliente de um restaurante por igual tempo e fosse lá uma vez por mês comer e pagasse a conta direitinho. Será que, depois de dez anos, se eu tivesse esquecido a carteira, o dono do restaurante me faria lavar os pratos? Diante do desrespeito, eu até pensei em trocar de operadora, mas deve ser tudo igual. Nós consumidores não temos saída. É assim que eu me sinto: ultrajado. Os administradores desse capitalismo moderno são todos uns estúpidos!". Infelizmente, sou obrigado a concordar com ele. O desprezo ao consumidor grassa na sociedade capitalista atual. Veja esse exemplo: nos anos oitenta, os bancos de primeira linha tinham uma técnica de cobrança que sempre levava em consideração o histórico dos clientes. "Uma coisa", diziam seus executivos, "é um novo cliente que logo no primeiro empréstimo deixa de pagar alguma prestação; outra, bem diferente, é um cliente antigo que sempre pagou em dia e que, de repente, atrasa". Isso era não só elegante, como inteligente e técnico mesmo: se um cliente nunca deu problema, a probabilidade de que ela venha a dar é menor que daquele que começou na contramão. Ademais, o cliente antigo já rendeu muitos benefícios ao fornecedor e, por isso, merece uma maior consideração. Um outro exemplo muito particular, que nos últimos tempos tem ocorrido na área do ensino, pode permitir uma explicação para esse tratamento que, atualmente, recebem os consumidores. Não é de agora que os consumeristas mostram que a educação tornou-se um produto de consumo e que ela vem sendo produzida em algumas escolas inspiradas nos modelos de linhas de produção. E é um mercado em expansão. Recentemente, li uma matéria no jornal Valor Econômico que tratava da aquisição da Universidade Norte do Paraná - Unopar pela Kroton Educacional pelo preço nada desprezível de R$1,3 bilhão. A primeira parcela do acerto foi paga com o aumento de capital de R$ 650 milhões com subscrição feita a R$ 17,50 por ação em março deste ano. Outros R$ 390 milhões serão pagos em parcelas. E, até o fim do semestre, novas ações serão emitidas e entregues à família fundadora da Unopar, completando a incorporação. A aquisição da Unopar foi a maior já realizada no setor. O que me chamou a atenção foi que, segundo dizia a matéria, a primeira impressão do mercado foi a de que a transação teria sido fechada a preço elevado. Cada aluno custou à Kroton cerca de R$ 8 mil. Um mês antes, a Anhanguera pagara R$ 6,9 mil por estudante da Uniban. Cada estudante, isto é, cada consumidor tinha um preço, como se faz com um produto. E mais: um consumidor vale aquilo que é capaz de render à vista ou à prazo, pois segundo disse o representante da compradora "O preço foi relevante, mas não caro. O valor pago é uma projeção para o ganho futuro". É verdade que o consumidor (isto é, o cliente) sempre foi considerado um ativo do fundo de comércio dos negócios em geral. Até aí, não parece haver novidade. O problema é que, nesta sociedade capitalista hiperdesenvolvida e administrada no mundo das ações e finanças, passou a existir uma enorme distância entre o detentor da empresa e seus executivos e o consumidor final. Veja-se o exemplo da Universidade fundada por uma família: enquanto seus administradores são seus membros, ainda é possível um contato real, um encontro ou uma conversa autêntica entre o aluno e o administrador, na figura do reitor, vice-reitor, diretor ou mesmo presidente da mantenedora, etc. Mas, na medida em que os donos são investidores que adquiriram ações em bolsa (e que podem ser investidores de qualquer lugar do mundo), a distância criada torna-se intransponível. O consumidor é visto muito de longe. Assim, se o consumidor não é considerado como uma pessoa real, mas como um mero número que tem certo valor econômico, não há mesmo necessidade de respeitá-lo e nem de enxergá-lo. A hipótese de perda de um cliente não é vista como uma descontinuidade dos negócios nem como um rompimento indesejado: basta que a situação esteja prevista dentro do quadro estatístico que cuida da inadimplência e das rupturas. Se estiver dentro do previsto, não haverá preocupação. São números. O consumidor é um número. Isso é mais relevante nas grandes operações de massa e em que há pouca competição ou monopólios e oligopólios. Se o consumidor for mal atendido num restaurante, não precisa mais voltar lá porque há outros para ir. Mas, como bem disse Outrem Ego, trocar de operadora de tevê a cabo, se desse para mudar, não alteraria o panorama do desrespeito porque o sistema de tratamento ao consumidor é parecido ou idêntico. É, meu caro amigo Outrem Ego, os tempos mudaram e, claramente, emburreceram: você, bom pagador, está em pé de igualdade com o que não é; e não se trata de uma questão jurídica, mas apenas de uma estratégia de desprezo geral. Já disse aqui, antes em meus artigos: como esses grandes conglomerados agem sempre em conjunto com a mesma estratégia ultrajante e indelicada, eles podem considerar o consumidor apenas um número, um número desqualificado que representa uma certa receita mensal. Se for mais barato violá-lo, nem que seja por uma carta automática mandada via computador, é assim que será. Ele nada poderá fazer, porque, como você bem disse, nem dá para trocar de fornecedor. Todos são muitos parecidos nas práticas danosas. O pior é que, mesmo nesse automatismo, daria para criar modelos de cobrança para consumidores diferenciados: bastava programar o computador. Mas, isso é ideia de uma era que acabou: a do capitalismo que respeitava o consumidor.
Meu amigo Outrem Ego disse-me que a sociedade capitalista havia descoberto mais um vírus. A produção agrícola havia feito alastrar o vírus da gripe suína; os computadores vivem infestados de vírus fabricados e, agora, a sociedade civil havia inventado um novo vírus: o do devedor, que ele intitula de vírus da negativação, um estigma social. Ele estava comentando a atitude de alguns empregadores que andam fazendo consultas aos serviços de proteção ao crédito (SPCs) em relação aos candidatos a emprego e que ele havia visto uma decisão do TST, publicada aqui nesse poderoso rotativo Migalhas (clique aqui), que, julgando uma Ação Civil Pública, acabou por admitir como lícito esse tipo de consulta, o que o deixou preocupado. Meu amigo perguntou: "Qual a relação entre colocar tijolos sobre tijolos ou arrumar papéis no almoxarifado ou vender roupas numa loja etc., com o fato de estar atrasado com a prestação da geladeira?". De fato, como também disse Outrem Ego, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa e a questão dos cadastros de inadimplentes é mesmo muito mal compreendida. Nessa questão dos cadastros de inadimplentes, ao que me parece, existe um desconhecimento de sua função. Na verdade, os serviços de proteção ao crédito estão regulamentados no Código de Defesa do Consumidor (arts. 43 a 44; arts. 72 e 73) e, como o próprio nome indica, têm como função proteger o crédito existente no mercado, isto é, as anotações cadastrais servem para análise daquele que irá conceder algum tipo de crédito ou financiamento ao consumidor. Vale dizer, a função do cadastro é apenas a de indicar para os fornecedores quais são os consumidores que, por algum motivo, não estejam pagando suas dívidas. Ademais, é sempre importante realçar que o cadastro é uma mera informação ao fornecedor. Nada impede que ele forneça crédito, financiamento ou até um empréstimo para um consumidor que esteja negativado. Com base nos dados existentes, ele faz uma análise do risco do crédito a ser ou não concedido. E não é incomum que bancos e financeiras concedam empréstimos ao consumidor que esteja negativado apenas para ele se recompor, organizando suas finanças e ficando em dia com suas obrigações. Por isso que, conseguir um emprego e, portanto, ao final do mês, receber um salário pode ter exatamente a função de colaborar para que o trabalhador ___ consumidor inadimplente ___ possa pagar suas dívidas. A pergunta que não quer calar nessa questão é a se esse tipo de busca significa discriminação ao trabalhador ou candidato ao emprego. Penso que a solução está no texto constitucional, que deve ser lido e interpretado à luz da natureza dos SPCs, conforme acima antecipei. Com efeito, dispõe o art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal: "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" Não nos esqueçamos da ênfase nos pronomes: "quaisquer outras" e continuemos nossa análise. Como se sabe, é comum que a própria lei faça discriminações, mas essas hão de ser positivas e favoráveis ao indivíduo discriminado e ao sistema social particular a que ele pertence e mais geral da sociedade como um todo. Ninguém se opõe a que a lei discrimine para proteger o idoso, o menor de idade, a mulher gestante, etc. Logo, discriminações podem ser feitas, mas desde que respeitem o indivíduo, a coletividade e, claro, a Constituição Federal. Isso decorre do princípio da igualdade, estampado no caput do art. 5º da Constituição Federal, que dispõe: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:". Ora, é fato conhecido que: a) o princípio da igualdade ou isonomia é dirigido ao legislador e ao aplicador; b) a interpretação adequada de tal princípio é tão antiga quanto Aristóteles, que já explicava que seu resultado adequado advinha da fórmula: dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade; c) essa fórmula, que em abstrato é bastante adequada, nem sempre surge facilmente no mundo real. Ainda assim, é uma determinação obrigatória ao intérprete e ao aplicador, que devem seguir todos os esforços possíveis a fim de obter a igualdade como resultado prático de seu mister. E, como dito, não é tão simples definir quando há e quando não há discriminação. Na obra Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, Celso Antônio Bandeira de Mello dá uma série de indicações para a concretização dessa garantia constitucional. Vale aqui lembrar alguns tópicos do trabalho do jurista paulista1. Uma das funções da lei é discriminar situações, e isso não fere, por si só, o princípio da igualdade. Assim, é plenamente constitucional a lei dizer que a maioridade penal inicia-se aos 18 anos. Nenhum menor de 18 pode dizer que foi discriminado, uma vez que se trata de uma das funções da lei. A constatação da existência de discriminações, portanto, não é suficiente para definir se o princípio constitucional de isonomia está ou não sendo respeitado, pois, como visto, em determinadas situações a discriminação empreendida está em consonância com o preceito constitucional. Ao contrário, é exatamente da discriminação que nasce o princípio. Contudo, para aferição da adequação ao princípio da igualdade, é necessário levar em conta outros aspectos. Todos eles têm de ser avaliados de maneira harmônica: se adotado o critério discriminatório, este tem de estar conectado logicamente com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade apontada. Além disso, há que existir afinidade entre essa correlação lógica e os valores protegidos pelo ordenamento constitucional. Ou seja, nenhum elemento, isoladamente, poderá ser tido como válido ou inválido para verificação da isonomia. É o conjunto que poderá designar o cumprimento ou não da violação da norma constitucional. Assim, resumidamente, afere-se a adequação ou não ao princípio da isonomia verificando-se a harmonização dos seguintes elementos: a) discriminação; b) correlação lógica da discriminação com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade; c) afinidade entre essa correlação e os valores protegidos no ordenamento constitucional. Como bem o dizem os Professores David Araujo e Vidal Serrano Nunes, a "exigência de altura mínima de 1,50 metro para inscrição em concurso de advogado da Prefeitura, por exemplo, é claramente inconstitucional, pois o fator discriminatório adotado em nada se ajusta ao tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade entre os que têm altura maior ou menor. O mesmo critério, contudo, é absolutamente afinado à isonomia se adotado em concurso para ingresso na carreira policial. Aqui, o porte físico é essencial ao bom desempenho das funções. Logo, não implica qualquer inconstitucionalidade"2. Lembre-se, também, que o poder constituinte, ao elaborar o texto magno, desde aquele instante tratou de deixar estabelecidos certos grupos de pessoas e certos indivíduos que merecem a proteção constitucional, isto é, a Constituição Federal reconhece de plano a hipossuficiência, que deve, então, ser levada em conta pelo intérprete, pelo aplicador e pelo legislador infraconstitucional de maneira diferenciada, visando a busca de uma igualdade material. É o caso da reserva de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência (art. 37, VIII), da proteção ao consumidor3 etc. Tendo em vista aquela decisão do TST referida por meu amigo, fiz uma pesquisa e descobri uma decisão lapidar da lavra de ilustre ministro Pedro Paulo Teixeira Manus, que, segundo penso, resolve cabalmente a questão. Transcrevo-a a seguir: RECURSO DE REVISTA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VIGILANTES. EDITAL DE LICITAÇÃO. DISCRIMINAÇÃO. Discute-se, -in casu-, a legalidade da cláusula contida em edital de licitação, na qual se prevê a impossibilidade de contratação, pela empresa terceirizada, de vigilante que apresentar restrição creditícia, mediante consulta em serviços de proteção ao crédito. Para que se confira validade à discriminação perpetrada, necessária a comprovação de que o fator adotado como critério de desigualdade tenha relação com a finalidade a ser alcançada com a lei ou, no caso, com o edital de licitação. Isso porque, não pode haver eleição de critério de discriminação que não guarde nenhum tipo de relação com a finalidade buscada pelo setor público, in casu, a contratação de serviço de vigilância. No caso concreto, a situ ação financeira do empregado vigilante não tem vinculação com o serviço a ser prestado, tampouco atesta a idoneidade do empregado, o que demonstra se tratar de eleição de fator arbitrário para a seleção dos vigilantes a serem contratados. Por outro lado, dispõe-se no art. 5º, XIII, da Constituição Federal que -é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Da exegese da Lei nº 7.102/83, que disciplina a função de vigilante, não se constata a previsão de restrição ao seu exercício, no caso de débito registrado nos serviços de proteção ao crédito. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento. (Processo: RR - 123800-10.2007.5.06.0008 , j. 14/12/2011, m.v., Relator Ministro: Pedro Paulo Manus, 7ª Turma, publicado em DEJT 03/02/2012). Desse modo, penso que a consulta aos SPCs feita por empregadores é discriminatória por falta de amparo legal e falta de afinidade entre a ação de investigação e a qualidade do candidato e a natureza de sua pretensão (preencher vaga de emprego). Realço, mais uma vez, que a legitimidade dos SPCs e a legalidade dos lançamentos lá efetuados e as consultas neles realizadas têm relação com a função e natureza dos cadastros definidas no Código de Defesa do Consumidor para proteger o crédito. Não há qualquer relação com emprego e empregabilidade. A relação de um empregado com seu empregador tem a ver com a prestação de serviço que aquele fornecerá a este e não existe nenhuma lógica e, aliás, também nenhuma norma que vá fazer a conexão entre o empregado prestador de serviços para exercer o seu mister, qualquer que seja ele, com o fato de que em algum momento, ele por qualquer motivo não ter conseguido pagar uma dívida. Além disso, também como já antes afirmei nesta coluna, não é crime ser devedor e, inclusive, muitas vezes, a anotação negativa se dá por abuso do fornecedor. E, quando um banco nega um empréstimo com base na negativação do proponente ou uma loja nega o financiamento a um comprador, eles o fazem porque acreditam que não irão receber o crédito, pois há uma informação pregressa que induz a isso. Mas, nunca se ouviu dizer que um trabalhador acorda e decide não ir trabalhar, para exercer suas funções, quaisquer que elas sejam, apenas porque está negativado nos SPCs. Como também disse Outrem Ego, "Se continuar assim, com esse tipo de perseguição na entrada, o argumento pode ser usado na saída. Logo logo o patrão despedirá o empregado porque ele entrou no cheque especial e não pagou. Ao invés de dar um aumento de salário para ajudá-lo, ele irá colocá-lo no olho da rua, fundado no vírus da negativação". Ele ainda me perguntou se os empregadores examinam os SPCs apenas para empregados que concorram a cargos mais humildes ou para todos. Bem, se fosse apenas dos mais humildes, seria uma discriminação maior ainda; já, como tudo indica, esse tipo de conduta vale para qualquer cargo, se a moda pegasse poderiam ocorrer fatos tais como os seguintes: médicos barrados em concursos públicos, porque não pagaram a conta de seu celular; bacharéis em Direito não ingressando nos quadros da OAB porque atrasaram a conta de financiamento do automóvel; advogados não sendo contratados em escritórios de advocacia porque não pagaram a prestação da casa própria; juízes que não seriam vitaliciados porque esqueceram de pagar a conta do cartão de crédito; pilotos não contratados pelas companhias aéreas porque não pagaram a conta de água e esgoto, etc.,etc., um longo etc. _________ 1Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, São Paulo: Malheiros, 3ª. ed., 1997, passim. 2Curso de Direito Constitucional, São Paulo:Saraiva, 1998, Cap. 2.1. 3A Constituição Federal reconhece a vulnerabilidade do consumidor. Isso porque, nas oportunidades em que ela manda que o Estado regule as relações de consumo ou quando põe limites e parâmetros para a atividade econômica, não fala simplesmente em consumidor ou relações de consumo. O texto constitucional refere-se a "defesa do consumidor", o que pressupõe que este necessita mesmo de proteção. Assim está no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ("O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor" - grifei), no art. 5º, XXXII ("O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" - grifei); e assim está no art. 170, V ("A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V - defesa do consumidor" - grifei). Para mais dados a respeito desse tema, ver nosso Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2011, ps. 86 e segs.
Hoje eu deixo de lado as intrigas e os profundos problemas que existem no mercado de consumo para apresentar mais um artigo sazonal, desta feita relativo ao dia das mães. De todo modo, como não dá para escapar totalmente das enganações reinantes, lembrarei de algumas cautelas necessárias para as boas compras, pois a data é especial e, por isso mesmo, a compra é emocional e irresistível. O consumidor terá de comprar o presente, que nem sempre é fácil escolher e, já antes de sair de casa, está envolvido de tal forma que pode tornar-se presa fácil de artimanhas. Aliás, como sempre digo, qualquer que seja o dia a ser comemorado, seja o das mães, dos pais, das crianças, dos namorados, Natal, aniversário de alguma pessoa querida, em todas elas o consumidor está mais fragilizado, pois é um momento de compra compulsória. Até aí, tudo bem. Mas, o mercado sabe disso e pode criar armadilhas. Por isso, os cuidados devem ser maiores e a escolha deve ser a mais racional possível. Pesquisando preços Em primeiro lugar e, como regra geral, não se deve comprar um produto sem antes fazer uma pesquisa de preços. Os preços variam muito de vendedor para vendedor. As diferenças entre os estabelecimentos às vezes são tão grandes que permitem a aquisição de dois presentes em vez de um. Nos dias atuais, com todas as facilidades oferecidas pela internet, naturalmente, é por ela que a pesquisa de preços deve ter início. Há até sites de busca especializados em procurar e encontrar o menor preço. Mas, claro, depois de obtê-lo, é ainda necessário checar estoque, qualidade e condições de entrega para ver se vale a pena mesmo, o que pode ser feito pela própria web, pelo telefone ou pessoalmente. No entanto, dependendo do tipo de produto que se deseja comprar, a pesquisa haverá de ser feita "in loco". Daí o jeito é bater perna, mas, nunca se deve pesquisar preços num só local. Por exemplo, apenas numa mesma rua ou num único shopping center. Isso porque, da mesma forma que o consumidor pesquisa, os lojistas também o fazem. E assim, pode acontecer que numa mesma rua, principalmente em lojas próximas, os preços não sejam tão diferentes. E, com os preços em baixo do braço, é possível exercer um direito básico do consumidor: o de pechinchar. Vale a pena pedir descontos e negociar com o comerciante. Cuidado com os "descontos" Meu amigo Outrem Ego disse que a mãe dele, um dia entrou em casa e disse: "Querido, acabei de economizar um mil reais em compras. Fui a uma loja que vendia tudo com cinquenta porcento de desconto. Comprei umas roupas que custaram dois mil reais. Com o desconto gastei apenas a metade. Economizei mil". E, meu crítico amigo, dando um abraço na mãe, respondeu de forma educada: "Mãezinha, a senhora não economizou mil, gastou mil". Uma tática bastante atraente e enganosa é a da oferta de descontos. Há lojas que estão sempre fazendo promoções, oferecendo vantagens e descontos. Algumas usam essa "técnica" de vendas o ano inteiro! Ora, se a promoção é permanente, então, na verdade, ela é falsa: é tática enganosa da loja para atrair o consumidor pelo desconto e não pelo preço. Por isso, não se deve confiar cegamente nesse tipo de oferta; a preocupação deve estar centrada no preço final do produto. O percentual de desconto não significa nada. Dez, vinte, trinta, cinquenta porcento são apenas atraentes aos olhos. O que vale é quanto custa o produto realmente após o desconto, isto é, o que interessa mesmo é quanto o consumidor irá desembolsar. Mais ofertas enganosas Há mais enganações. Por exemplo, existem anúncios que dizem: "Pague à vista com 20% de desconto ou em 3 x sem acréscimo". Ora, se à vista tem desconto, quando o preço é dividido em três prestações, o valor do desconto está incluído. Portanto, há acréscimo, sim: ele é o correspondente ao montante do desconto. Um outro exemplo de chamariz é o das lojas que colocam na vitrine produtos com preços bem atrativos, mas, quando o consumidor se interessa e entra para comprar, o vendedor diz que o estoque acabou ou, em caso de roupas, que a numeração não existe. E, em seguida, o vendedor oferece produto similar bem mais caro. É um método grosseiro de atrair o consumidor e tentar vender o produto pelo constrangimento causado. Ademais, e por falar em relação pessoal, é bom tomar cuidado com a conversa do vendedor que, claro, está preparado para falar coisas agradáveis e fechar o negócio. É preciso, pois, refrear o impulso da compra e refletir bem antes de se decidir por fazê-la. Cartão de crédito Só para lembrar o que é sabido de todos: É abusiva a cobrança de preço diferenciado (maior) para pagamento com cartão de crédito. O preço à vista e no cartão tem de ser o mesmo. Problemas com trocas Comprar presentes é uma arte. É sempre difícil descobrir "aquilo" que o presenteado gostaria de ganhar. Tanto mais quando a pessoa é muito querida. Felizmente, as trocas dos presentes repetidos ou dos que não serviram, como, por exemplo, sapatos muito grandes, camisas pequenas, bolsas repetidas, etc., podem ser feitas na maioria dos estabelecimentos comerciais. Todavia, é preciso prestar atenção aos produtos que não podem ser trocados. Algumas lojas, às vezes, não aceitam trocas porque o produto é de fim de linha, fim de estação, ponta de estoque, etc. E, como a troca é um direito que é ofertado pelo vendedor, vale perguntar antes de comprar se a troca pode ser feita e em quais condições. Abusos Não fazer trocas aos sábados Algumas lojas, porém, impõem algumas condições inconvenientes para efetuar as trocas, como, por exemplo, não efetuá-las aos sábados. Essa é a regra: fazer troca em função de tamanho, cor ou porque o presente é repetitivo não é, a princípio, obrigação do comerciante. Contudo, se ele se propõe a fazer a troca, como é a praxe do mercado, ele tem que cumprir o prometido, pois cria um direito para o consumidor. É uma simples relação contratual e como tal não pode ser abusiva. Daí decorre que, não fazer trocas aos sábados é ilegal, porque é exigência abusiva. O comerciante não pode impor dia para a troca. Problema com nota fiscal Há ainda alguns outros problemas. Por exemplo, a exigência de nota fiscal para a troca. Nem sempre quem dá o presente gosta de entregar a nota fiscal ao presenteado, pois lá consta o preço. Sem alternativa, é melhor guardar a nota fiscal para se for necessário, utilizá-la. Porém, já há muitas lojas que se modernizaram nesse ponto e entregam senhas, documentos separados, etiquetas especiais, etc., o que facilita a troca. Problema com etiqueta Outro aspecto que se deve ter em conta diz respeito às etiquetas. Há estabelecimentos que se negam a trocar o produto se a etiqueta for removida. É uma exigência abusiva, mas para evitar aborrecimentos, aconselha-se que a etiqueta não seja removida até que o presente seja experimentado e aprovado. Produto entregue em casa Se o produto adquirido for ser entregue em casa, é importante perguntar se o valor do transporte está incluído no preço. E ao receber o produto em casa, deve-se checar, antes de assinar a nota, se ele corresponde ao que foi pedido, se não está danificado e, sempre que possível, testá-lo ou avisar a mãe presenteada para fazer o mesmo. Nota fiscal Para finalizar, lembro que, como sempre, em qualquer compra, é importante pedir e guardar a nota fiscal.
quinta-feira, 12 de abril de 2012

Engana-me que eu gosto - parte 2

Continuo hoje a desenvolver a série do título, muito em voga no país. Como eu disse no primeiro episódio da série (no dia 2/2/2012 - clique aqui) retirei o nome de uma comédia. É uma brincadeira que, de todo modo, ilustra um fato importante: se, de um lado, a mentira pode ser conscientemente utilizada, de outro, muitas vezes, a pessoa enganada, estava mesmo interessada em sê-lo. Aceita a mentira porque lhe soa cômoda ou está de acordo com seu próprio interesse ou, ainda, porque não desenvolveu senso crítico capaz de percebê-la. Do ponto de vista da sociedade de consumo - e também do sistema mais amplo da sociedade em geral, como demonstrarei abaixo - há muito tempo que os consumeristas descobriram que um dos fundamentos da sociedade capitalista de consumo é a mentira, mentira nem sempre detectável, mas que pode muitas vezes ser.Cuido, a seguir, de dois casos: um, que é, - para ficar com a ideia do título que extraí de um filme - uma reprise: o das sacolas plásticas. O outro, escancarado e abertamente praticado nas ruas e avenidas de nossa megalópole São Paulo congestionada assombrosamente. Começo por esta.No início deste ano, foram divulgados os valores que a prefeitura de São Paulo arrecadou com as multas de trânsito no ano de 2011. Foram aproximadamente R$ 748.000.000,00, um crescimento de quase 35% em relação ao ano de 2010 (naquele ano a prefeitura arrecadou a bagatela de R$ 556.000.000,00).Meu amigo Outrem Ego, examinando o valor das cifras, reclamou e me perguntou se eu tinha percebido o retorno dessa montanha de dinheiro no setor dos transportes em São Paulo? "O trânsito está melhor? As ruas estão menos esburacadas? Os funcionários da CET estão melhor preparados? Eles te ajudam, ajudam o trânsito, te respeitam ou só pensam em multar?", prosseguiu indignado. E ele tem boas razões. Veja, na sequência, duas situações, uma vivida por ele e outra por sua esposa, Bete. No final do ano passado, em um começo de noite, após uma forte chuva, meu amigo, ouvindo uma buzinação enorme na rua, foi até a janela de seu quarto. De lá observou que o semáforo quase em frente de seu prédio estava quebrado, o que ocasionava transtorno no trânsito e, naturalmente, as buzinadas.De repente, ele viu um carro da CET estacionar na rua. Pensou: "Ainda bem que eles chegaram". Uma moça desceu do veículo, olhou para o trânsito e ao redor.Você sabe o que essa servidora, que trabalha para uma empresa que administra o trânsito, fez? Veja.Ela sacou do talonário, foi até um veículo estacionado num local proibido, aplicou uma multa, colocou no para-brisa, olhou de novo para a balbúrdia do trânsito por causa do semáforo quebrado, entrou no carro e foi embora, deixando o caos do trânsito para trás!A outra história foi protagonizada pela Bete e ocorreu no dia 7/12/2011 na porta de um importante colégio na região de Pinheiros. Como é de costume, mais ou menos em torno das 12h30, ela dirigiu-se à porta do colégio à espera da saída dos filhos. Ficou parada na fila, que normalmente se forma à porta.De repente, quando fez menção de tirar o cinto de segurança, eis que estava ali parada, surgiu na frente dela um funcionário do colégio gesticulando pedindo que ela abrisse o vidro, o que ela fez. Ele então disse: "Minha senhora, não retire o cinto de segurança até que seus filhos cheguem à porta do carro e a senhora tenha que descer para ajudá-los. Veja ali aqueles fiscais (e apontou para dois servidores da CET). Eles multam todas as pessoas que ficam aqui paradas esperando os filhos sem o cinto de segurança".Bete, indignada, verificou que o trânsito era bastante confuso na região, aliás, como é todo dia, mas os dois servidores públicos, ao invés de ajudarem as pessoas, realmente passavam devagar ao lado dos carros com o talão na mão, apenas para lançar o maior número de multas possíveis.Depois de me contar as histórias, Outrem Ego repetiu as questões incisivamente: "Você acredita que a enorme arrecadação com a aplicação de multas reverte a favor da administração do trânsito? Acredita que existe alguma preocupação com a qualidade de vida da população?". Depois para terminar disse: "A eficiência tecnológica beneficia apenas o lado do faturamento" e lembrou que sempre que chove na cidade de São Paulo, o noticiário das rádios aponta como é interessante que os semáforos deixem de funcionar, mas os radares que lavram as multas não!Eis, agora, o caso da ladainha das sacolas plásticas.Albert Camus disse no seu livro "A queda", que, no futuro, para definir o homem moderno bastará uma frase: "Fornicava e lia jornais". Meu amigo Outrem Ego, que é fã do famoso escritor francês-argelino disse, nele inspirado, que, no futuro, os historiadores poderão definir os paulistas como pessoas que acreditam em Papai Noel e carregam sacolas plásticas pelas ruas...De fato, os supermercados já foram um lugar agradável de frequentar. Aliás, o slogan de uma grande rede é "um lugar de gente feliz". É caso de mudar o refrão, mas penso que os marqueteiros de plantão baterão o mesmo martelo na esperança de que, de tanto o consumidor ouvir o slogan, passe nele a acreditar. Ora, atualmente, as pessoas não devem estar muito felizes nos supermercados, especialmente nas saídas dos caixas. Eu, particularmente, nunca pensei que algum empresário pudesse tratar seus clientes com tamanho desprezo e antipatia, como estão fazendo esses do setor. Agora, é levar tudo nas caixas, se existirem, nos braços ou em pequenas ou grandes e caras sacolas adquiridas na hora. Mas, ouvi numa rádio, de um dos dirigentes do setor, que eles estudam transformar essas grandes sacolas em retornáveis. Disse ele, constatando o óbvio, como faria o antigo personagem Pedro Bó: as pessoas simplesmente se esquecem de levar as sacolas ou, de repente, resolvem ir ao supermercado sem, naturalmente, estarem com uma sacola no bolso ou na bolsa.Outrem Ego, estupefato, lembrou-me que as pessoas não vão ao supermercado comprar sapatos - embora até isso alguns vendam. E que ele não gostaria nem um pouco de utilizar sacolas retornáveis usadas por muitas outras pessoas que passaram sabe-se lá por onde para colocar os mantimentos que ele leva para casa. "Sacolas retornáveis? E sujas? Será que haverá desconto por bactérias?". "Serão também laváveis e lavadas?". É! Talvez.Como diria meu amigo, isso mudaria se os consumidores simplesmente deixassem de ir ao supermercado e o substituísse por quitandas, padarias e feiras ou fossem até lá para comprar apenas o estritamente necessário que coubesse nos braços. Só com a queda no faturamento, esse setor voltará a respeitar seus clientes.E, para terminar mais este capítulo do filme "Engana-me que eu gosto", colo abaixo a foto que recebi via internet.
Quatro séculos antes de Cristo, Sócrates foi ao mercado em Atenas e disse: "Como são numerosas as coisas de que eu não preciso". Hoje, frequentando um shopping center o famoso filósofo talvez perdesse sua natural simplicidade e sua imbatível lucidez. O sistema capitalista que vingou, de produção em massa de produtos necessários mas também supérfluos, inúteis, só cresceu com o passar do tempo. Atravessou o século XX com larga margem de expansão, inclusive com produção de armas e bombas de destruição em massa; ingressou no século XXI produzindo excessivamente e, como diria o filósofo, muitas coisas - milhares! - das quais não se precisa. No artigo de hoje, meu interesse é a produção excessiva que pôs em risco a sobrevivência do planeta. Essa produção exagerada, que, espoliando e poluindo, destruiu de tal modo o meio ambiente, que já se põe em dúvida a possibilidade de manutenção da vida humana por aqui. Isso não é novidade. É de conhecimento geral. O que eu quero colocar está relacionado a um movimento meramente superficial que engana os consumidores e o público em geral ligado à ideia de sustentabilidade, como se realmente alguma coisa estivesse sendo feita para salvar o planeta. Infelizmente, sou obrigado a dizer que os dados existentes demonstram que não está. A propaganda de última geração nos diz que sim, mas a verdade está muito longe disso. O marketing "sustentável" apresenta empresas que se dizem respeitadoras do meio ambiente, mas os fatos mostram que a degradação e a poluição continuam em larga escala. E, talvez, nem pudesse ser diferente, pois os modos de produção e de consumo não mudaram. Como é que estaríamos destruindo menos o meio ambiente? A produção crescente tem como base os mesmos agentes poluidores, as mesmas máquinas destruidoras, os mesmos métodos de invasão e deterioração conhecidos desde há muito tempo no sistema capitalista. Ted Rall diz que "Poluidores industriais, tanto americanos como internacionais, estão em guerra com o planeta, em solo americano e à volta do mundo, ativa e tacitamente apoiados pelos governos Federal, estaduais e locais"1. E, de fato, qual governo seria contra o aumento do consumo, contra o aumento da produção? A equação não fecha, pois o verdadeiro problema é ser a favor desse tipo de produção que despedaça o meio ambiente. Lamentavelmente, tudo indica que, se o sistema capitalista não mudar e se o modo de consumo não se alterar, a vida no planeta corre riscos à médio prazo. Esse modelo que está acabando com o meio ambiente veio se acelerando em termos de deterioração a partir do término da segunda guerra mundial e cravou fundo no ritmo desenfreado de desrespeito a partir dos anos sessenta/setenta, ingressando no século XXI com uma voracidade destruidora inimaginável. Não adianta nos iludirmos com medidas paliativas e cosméticas vendidas via publicidade: ou realmente muda-se o sistema de produção e consumo ou estaremos perdidos muito mais rapidamente do que prevíamos. Para que possamos pensar um pouco mais sobre essa avassaladora forma de destruir o planeta e consumir, transcrevo na sequência um texto que circula na internet e que eu modifiquei um pouco. Ele fala da produção e do consumo que existia há poucos anos (trinta/quarenta anos atrás ou menos) e que pode ajudar a nossa reflexão sobre o mundo atual. Conta-se que, na fila do supermercado, o rapaz do caixa diz a uma senhora idosa que ela deveria trazer suas próprias sacolas para as compras, uma vez que as plásticas eram poluidoras. A senhora pediu desculpas e disse: "Não havia essa onda verde no meu tempo". O caixa, então, teria dito: "Esse é exatamente o nosso problema hoje, minha senhora. Sua geração não se preocupou o suficiente com nosso meio ambiente". "Será mesmo? Você sabe em que época é que melhor se protegeu o meio ambiente?", respondeu a senhora e depois contou para o rapaz como era o consumo e a preservação ambiental no tempo dela. Veja alguns pontos. Naquela época, as garrafas de leite, de refrigerante e de cerveja eram devolvidos ao vendedor, que as mandava de volta para a fábrica, onde eram lavadas e esterilizadas antes de cada reuso. E eles, os fabricantes de bebidas, usavam as garrafas, umas tantas outras vezes. Não se usavam milhões de garrafas pet que agora lotam as matas, os rios e os oceanos e demoram literalmente séculos para se degradar. Até então, as fraldas de bebês eram lavadas, porque não havia fraldas descartáveis. Nossas roupas eram secadas por nós mesmos, não nestas máquinas bamboleantes de 220 volts. A energia solar e a eólica é que realmente secavam nossas roupas. As crianças pequenas usavam as roupas que tinham sido de seus irmãos mais velhos, e não se era obrigdo a ficar comprando roupas novas toda vez que elas cresciam um pouco. Naqueles dias, tínhamos somente um aparelho de televisão e um de rádio em casa e não uma tevê em cada quarto, outra na sala e até na cozinha. Aliás, a tevê tinha uma tela do tamanho de um lenço e não um telão do tamanho de um estádio, que depois será descartado como? E, inclusive, tínhamos que levantar da poltrona toda hora para mudar de canal, aumentar ou diminuir o volume ou arrumar a sintonia, o que já nos permitia queimar algumas calorias, ao invés de ficarmos engordando no sofá e "zapeando" com o aparelhinho procurando alguma coisa para asssitir nos 500 canais oferecidos, que incrivelmente, às vezes, não estão passando nada interessante. Antigamente, se não estivesse passando nada agradável, nós simplesmente líamos um livro. Subíamos os degraus das escadas, porque as rolantes eram raras e andávamos à pé até a padaria, ao mercadinho, à quitanda e às lojas em geral, ao invés de usarmos nosso potente automóvel com "trocentos" cavalos de potência e bebedor de combustível cada vez que precisamos ir a dois quarteirões de distância. Na cozinha, tínhamos que bater, amaciar, moer, triturar os alimentos com as mãos porque não vinha tudo embalado (em plástico...) e pronto para uso, nem havia máquinas elétricas, que fazem tudo por nós. Quando embalávamos algo um pouco frágil para o correio, usávamos jornal amassado para protegê-lo, não plástico bolha ou pellets de plástico que duram cinco séculos para começar a degradar. Naqueles tempos não se usava um motor a gasolina apenas para cortar a grama: era utilizado um cortador de grama que exigia músculos. Espremíamos laranja fresquinha num espremedor de plástico ou de ferro, mas o fazíamos com nossas mãos. Gastávamos energia e tomávamos suco natural ao invés de bebermos das caixinhas plásticas. Com o gasto calórico que tínhamos com todas essas atividades domésticas e andando pelas ruas, não precisávamos ir à academia correr nas esteiras... elétricas! Onde é que se colocam todos os produtos "descartáveis" que não se reintegram ao meio ambiente? O que fazer com milhões e milhões de baterias de celulares, de lap-tops, ipods, etc? Naqueles dias, as pessoas tomavam o bonde ou o ônibus e as crianças iam em suas bicicletas ou a pé para a escola, ao invés de usar a mãe ou outros parentes como um serviço de táxi 24 horas. Tínhamos só uma tomada em cada quarto e não um quadro de tomadas em cada parede para alimentar uma dúzia de aparelhos. Era uma época em que as pessoas tinham apenas um automóvel e não dois para poder fugir do rodízio (que paradoxalmente foi criado para proteger o meio ambiente...)2. Ah, nós não precisávamos de um GPS para receber sinais de satélites a milhas de distância no espaço, só para encontrar a pizzaria mais próxima! __________ 1Manifesto anti-americano, Lisboa: Babel, 2011, p. 83. 2E, com o diria meu amigo Outrem Ego, a respeito desse tema: Terá o rodízio sido invenção da indústria automobilística, ela que adora que as pessoas possuam dois carros mesmo sem precisar?).
Este é mais um artigo sazonal, que escrevo para lembrar o leitor-consumidor de cautelas que ele pode tomar para fazer algum tipo de compra, projeto de compra, planejamento, etc. Tendo em vista os vários problemas que ultimamente têm atingido brasileiros em viagem pelo exterior, hoje, lembro algumas dicas para quem for viajar no próximo feriado de Páscoa para fora do país. Algumas informações são conhecidas outras nem tanto e sei também que algumas parecem um tanto "burocráticas", mas penso que vale a pena seguí-las, pois podem evitar uma série de transtornos. Tirar cópias do passaporte É bom tirar duas cópias do passaporte, de preferência autenticadas em cartório. Deve-se copiar a folha contendo o número, as folhas de qualificação e a da foto, a folha com a prorrogação do vencimento do passaporte (se houver) e a(s) folha(s) com todos os vistos que serão utilizados na viagem. Daí, deve-se levar junto na viagem, em local diferente do passaporte, uma cópia autenticada de tudo. Deixe a outra em casa, em lugar acessível e conhecido, caso precise usá-la. Tirar cópias do RG, CPF e outros documentos Deve-se tirar, também, cópias autenticadas de toda a documentação exigida para tirar passaporte: Carteira de Identidade (RG), cartão de inscrição no CPF, título de eleitor, certidão de nascimento ou casamento. Se for do sexo masculino, tire também do Certificado de Alistamento Militar. Leve-os na viagem. Esses documentos são necessários para tirar novo passaporte, em caso de extravio. Parece muito, mas será feito uma única vez e valerá para as próximas viagens. Na volta, basta guardar as cópias numa pasta. Tirar cópias da passagem aérea Deve-se, ainda, tirar duas cópias da(s) passagem(ns) aérea(s) ou do e-ticket onde conste o nome do passageiro, o tipo de tarifa, os trechos e rotas que serão usados, o número, a data da emissão, a agência de viagens/operadora que emitiu a passagem e a companhia aérea. Uma cópia deve ser levada e outra guardada em casa. No caso de e-ticket, não se deve eliminá-lo da caixa do e-mail, pois caso preciso será fácil encontrá-lo. Cartões de viagem Em substituição aos traveller's cheque, atualmente os bancos e admnistradores de cartões de crédito oferecem cartões recarregáveis em moeda estrangeira. Eles são mais práticos, seguros e são reembolsáveis em caso de extravio por perda ou furto/roubo. Vale a pena levá-los no lugar de papel moeda. Este pode, então, ser levado em menor quantia. Na viagem: cuidado com os documentos Quem porta, além do passaporte, o RG, deve mantê-lo no bolso da calça/blusa/saia, em lugar diverso do passaporte. Como o RG é um documento fácil de carregar, é simples deixá-lo em lugar seguro. É preciso fazer o mesmo com cartões recarregáveis e de crédito. Guarda do dinheiro Já o papel moeda deve ser separado em três ou quatro montes e guardados em lugares separados. Deve-se sempre deixar alguma quantia, ainda que pequena, no hotel, em lugar escondido e/ou no cofre. Endereços e telefones É bom ter em mãos o endereço e telefone da embaixada ou do consulado brasileiros no(s) país(es) visitado(s), o número do telefone da administradora do cartão de crédito internacional e do gerente do banco no Brasil. Problemas com o uso do cartão e/ou extravio podem ser resolvidos no local da estada. Embaixadas e consulados Antes de embarcar, vale entrar no site do Ministério das Relações Exteriores (clique aqui). Deve-se clicar em "endereço", procurar o nome da cidade a ser visitada pela lista de Embaixadas, consulados ou vice-consulados, anotar o endereço e telefone e levar na viagem. Lembre-se: o brasileiro é estrangeiro no exterior Cada país adota seu próprio critério para a admissão e permanência de estrangeiros em seu território. É importante, por isso, entrar em contato com a agência de viagens ou com a companhia aérea (caso o bilhete tenha sido adquirido diretamente) e perguntar quais são as exigências do país para onde se está indo. Elas variam de acordo com o objetivo da viagem. A agência, operadora de viagens ou companhia aérea tem o dever de fornecer esse tipo de informação. Caso haja dificuldade em obtê-la, é possível descobrir diretamente antes do embarque consultando a embaixada ou consulado do país que será visitado. Comprovante de reserva e bilhete de volta É importante levar para mostrar na alfândega, acaso solicitado, o comprovante de reserva do(s) hotel(is), ou do pacote de viagem fornecido pela agência/operadora. Dinheiro suficiente para a estada Do mesmo modo, deve-se levar, para mostrar ao fiscal alfandegário se exigido, dinheiro em espécie local ou cartões suficientes para o tempo de estadia. O cartão de crédito internacional ajuda, mas apesar disso, alguns países exigem também o porte de dinheiro/cheques de viagem-cartões em valores condizentes com o tempo de estadia. Vacinas e seguro médico internacional É preciso perguntar à agência de viagens ou ao consulado correspondente sobre a exigência de vacinas. Alguns lugares exigem que seja tomada vacina previamente. Além disso, deve-se fazer seguro médico internacional e levar o cartão correspondente, comprovante, apólice ou outro documento entregue. Vale a pena viajar com esse tipo de garantia. Visto Não se esqueça do visto. É preciso checar se o país visitado o exige. Alguns países o dispensam, quando se trata de viagem por motivo de turismo. (Para estudar ou trabalhar no exterior é sempre necessário tirar visto específico). Mas, claro, não se pode viajar sem visto quando o país o exigir, pois não se conseguirá entrar e a consequência pode ser a prisão e/ou a deportação. Cuidado na chegada Ter um visto ou estar dele dispensado não dá direito à entrada automática no país visitado. A decisão final somente é dada no ponto de entrada pela autoridade migratória. É decisão soberana de todo país aceitar ou não o ingresso de cada estrangeiro no seu território. A desconfiança sobre os reais motivos da visita é motivo suficiente para não permitir a entrada do estrangeiro. Por isso, ao responder as perguntas do agente, deve-se adotar tom de respeito, ficar calmo e não cair em contradições. Tempo de estada O tempo de estadia no país estrangeiro é fixado no ponto de entrada. É preciso ver qual prazo foi concedido e retornar dentro dele. Detenção Se por qualquer motivo o brasileiro for detido por autoridade estrangeira, é bom lembrar que ele tem o direito de telefonar para a Embaixada ou Consulado brasileiro. Boa viagem Já foi mais tranquilo viajar, mas nos dias que correm, com tanta desconfiança em relação aos estrangeiros, a crescente criminalidade e serviços nem sempre de primeira linha, vale a pena gastar um tempinho na prevenção.
Imagine que o consumidor chegue a uma loja, compre uma calça, pague e, na hora de recebê-la, o vendedor diz que ela já foi localizada e em alguns dias ele poderá ir buscá-la. Ou imagine qualquer compra em que se prometa a entrega para certo dia e ela nunca chegue. Não nos esqueçamos de que em qualquer compra - entregando-se ou não na hora - o consumidor tem sempre de pagar primeiro - ou firmar um financiamento primeiro; o consumidor sempre paga antes de receber o produto que adquiriu. Nas relações de consumo de compra e venda de produtos e também de serviços, pode-se dividir a operação em três fases: a pré-venda, a venda em si e o pós-venda. Essas três variam de acordo com o tipo de serviço e de produto. Por exemplo, na aquisição de automóveis zero quilômetro o pós-venda é longo e importante, assim como nos serviços médicos e hospitalares etc. Aliás, por falar em serviços médicos e hospitalares, lembro que muitas vezes o pós-venda (no caso, pós-prestação do serviço) é tão ou mais importante que a venda ou a prestação do serviço em si: o acompanhamento de um paciente operado no pós-operatório é essencial. Enfim, as três fases estão interligadas e a importância de cada uma está relacionada ao tipo de negócio envolvido. Veja-se o caso das vendas pela internet. Na semana passada, o Procon de São Paulo autuou uma grande empresa do setor que administra três sites de vendas e que não prestam os serviços adequadamente ou em português mais claro: vendem, recebem o preço mas não entregam a mercadoria. A empresa autuada, que deveria ficar 72 horas fora do ar em função da punição, disse que as reclamações correspondem a apenas 1% do total de seus negócios e que a autuação era "uma violação à garantia constitucional do livre comércio". Nem discutirei esses termos porque, evidentemente, não há no texto constitucional vigente permissão para que alguém venda algo, receba e não entregue, algo que não tem qualquer relação com livre comércio, mas pura e tão somente com má administração, ganancia ou algo pior. E, também, claro, estamos diante de percentuais. Um por cento! Imagine se fosse um medicamento que matasse "apenas" um por cento dos usuários... E, no caso, segundo dados do Procon, no ano de 2011 foram 6.233 registros de ocorrências (o tal um por cento). Certamente, o consumidor que comprou, pagou e não recebeu não está nem um pouco preocupado com as estatísticas: ele quer receber aquilo a que tem direito. Como disse meu amigo Outrem Ego: "Quando meu pai foi fazer uma operação para colocar ponte no coração, os médicos disseram que no caso dele a chance de dar tudo certo era de 96%. Pouco risco, portanto. Mas, ele retrucou: e seu eu estiver nos 4% que morreram?". Por sorte, o pai de meu amigo ficou na curva estatística do lado que deu certo. A verdade é que muitas empresas não se preparam para o pós-venda. Pensam apenas em faturar e nem se organizam para resolver de forma rápida e inteligente os problemas que surgem, especialmente quando atuam no mercado altamente massificado, como esse de vendas pela internet. É mesmo pura incompetência e falta de investimento correto e, também, pelo que se pode ver, desprezo pelas leis e pelos consumidores. Talvez uma aposta na falta de controle e punição. Essas empresas não estão preparadas para atuar nesse mercado. Podem desaparecer que não farão falta. É torcer para que a concorrência mantenha funcionando as que realmente sabem trabalhar. No pós-venda não só se exige velocidade na resolução dos problemas, como se deve montar equipes específicas para com eles lidar e deve-se criar um sistema de benefícios para indenizar o consumidor que teve algum tipo de dano, sofreu o atraso na entrega ou teve a compra cancelada pela falta do produto etc. Esses benefícios devem ser tal que realmente possam gerar conforto e satisfação ao consumidor lesado. Eles devem ser sempre um pedido formal de desculpas, acompanhado de algo mais: podem ser descontos, brindes, concessão de direitos especiais etc. Contudo, é bom lembrar que é preciso que tais benefícios sejam mesmo capazes de pôr um fim na questão; caso contrário eles poderão representar uma nova ofensa ou violação, criando um novo problema. A propósito e para terminar este artigo, transcrevo a seguir uma carta que meu amigo Outrem Ego entregou a um famoso Hotel cinco estrelas, no qual ele se hospedou, tratando dessa questão de um pós-venda desastrado. Ela, por si só, mostra o despreparo de muitos empresários sobre o tema. "Senhor Diretor Geral, Antes de iniciar minha narrativa, quero consignar que ela não tem qualquer relação com os funcionários de seu prestigioso hotel. Todos que atenderam a mim e a minha família foram muito educados, simpáticos e eficientes, de modo que o problema que narrarei envolve um apenas e, tão somente, um ato de decisão empresarial da alta direção. (Se, de fato essa direção estiver mesmo interessada; eu, como consumidor consciente, não nutro muita esperança). Eis os fatos: Vindo de viagem pelo interior do lindo país onde esse hotel está instalado, minha família e eu ficaríamos apenas dois dias e meio hospedados. Ao chegarmos, o atendente muito gentilmente nos disse que as reservas não davam direito ao café da manhã, mas nos ofereceu por um preço razoável para que tomássemos o café da manhã na área executiva que ficava no 16º andar, pois pelo preço fixo ainda teríamos direito a um lanche da tarde e uso da internet sem pagar as altas taxas cobradas no quarto. Topamos a proposta e, de fato, como dávamos entrada à tarde, deixamos as bagagens nos quartos (eram dois em andares diferentes: minha mulher e eu num; nossos três filhos no outro) e seguimos para o 16º andar. Muito bom: Queijos, presuntos e demais petiscos, vinhos, sucos, etc. No dia seguinte, a primeira decepção. Acordamos cedo, já que era o único dia inteiro na cidade. Fomos ao café da manhã na área executiva. Nossos três filhos queriam ovos. Eu pedi. Recebi como resposta um olhar reticente e o seguinte: 'O senhor quer mesmo? É que demora um pouco, pois temos de pedir lá embaixo'. Surpreso, respondi: 'Não tem ovos aqui?'. 'Não', disse o rapaz. 'Lá embaixo tem. Farei o pedido. Deve demorar uns vinte minutos'. Nós não tínhamos muito tempo, mas as crianças queriam ovos mexidos e, feito um cálculo, vinte minutos daria para nós tomarmos o café da manhã calmamente. Acontece, senhor diretor, que passaram vinte, depois trinta, quarenta minutos e quando deu uma hora, nós nos retiramos. Perdemos parte do único dia inteiro na cidade, aguardando os ovos que não chegaram. Eu pergunto: Que hotel de luxo é esse que não oferece ovos no café da manhã? Qualquer pousada chumbrega oferece. É padrão básico em todo lugar. E, pior, estávamos na área supostamente 'executiva'. Quando minha mulher e eu estávamos para deixar o quarto, recebi um telefonema com uma pessoa se desculpando pelo atraso dos ovos que haviam acabado de chegar (uma hore e vinte minutos depois) e perguntou se eu os queria no quarto (!). Engasguei e disse que não antes de desligar (mas, o senhor pode imaginar o que eu pensei da oferta...). Foi uma falha, mas tudo bem. 'Acontece', pensei. O pior veio depois: à tarde, quando retornamos ao quarto, havia um carta na mesa escrita pelo Gerente Geral, se desculpando pelo incidente com os ovos. Li a carta e fiquei contente. Afinal, mostrava certa consideração. Mas, junto da carta havia um brinde, um regalo para nos agradar;. Uma garrafa de vinho. Teria sido agradável, se o vinho não fosse de baixa qualidade e cujo preço era dos mais baratos. Conclusão: o brinde, de baixa qualidade, anulou a suposta boa intenção da carta. Preferia ter recebido apenas a carta! À noite, fomos ao quarto de nossos filhos para ajeitar tudo, eis que eles já se preparavam para dormir. De repente, minha filha entrou no banheiro, escorregou e sofreu um acidente (graças a Deus sem qualquer sequela). Havia um vazamento de água no teto do banheiro, que a essa altura estava totalmente molhado. Chamei a recepção e contei o ocorrido. Rapidamente surgiram vários funcionários e disseram que teríamos que trocar de quarto. Fizemos as malas e fomos levados para outro quarto. Antes de sairmos, vimos que se tratava de vazamento ligado aos canos do ar condicionado. 'Acontece', pensei. Fomos mais uma vez bem atendidos, mas, claro, perdemos mais do pouco tempo que tínhamos fechando e abrindo malas e trocando de quarto. Quando as crianças já estavam quase dormindo, tocou o telefone e eu atendi. Alguém se desculpava pelos transtornos e oferecia um suco como compensação. Quase uma hora da manha, depois de todo o ocorrido e alguém liga oferecendo um suco? Disse que não, mas o senhor sabe exatamente o que eu pensei em dizer para ele fazer com o suco... Sabe, senhor diretor, como se diz, acidentes acontecem. Na sociedade capitalista em que vivemos, por mais que o prestador do serviço queira ele não consegue exercer seu mister sem que ocorra algum vício ou defeito. Ninguém pode prever que um cano de ar condicionado fure e vaze. Ok. O problema vem depois. Oferecerem como compensação pelos transtornos um suco, é demais! É isso, senhor diretor geral. O hotel é de primeira, o atendimento cordial. A entrada é boa. Mas, o pós-venda é péssimo. Se o senhor não entendeu, digo de outro modo: oferecer serviços de primeira inclui início, meio e fim e resolução eficiente das ocorrências indesejadas. Se durante a prestação dos serviços surgem problemas, estes têm não só que ser resolvidos rapidamente (ovos em poucos minutos) como o pedido de desculpas deve ser acompanhado de muita gratidão e, se vocês pensam que gratidão se compensa com presentes, estes hão de ser de primeira, de acordo com o nível do hotel. Caso contrário (como do vinho porcaria que ganhei ou o suco que quiseram nos entregar!) o presente se torna mais ofensivo que o vício do serviço. Aprendam esta lição com humildade ou contratem algum executivo que saiba agradar seus clientes! Atenciosamente, Outrem Ego".
Há 50 anos, no dia 15 de março de 1962, o então presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, enviou uma mensagem ao Congresso Americano tratando da proteção dos interesses e direitos dos consumidores. "Consumidores somos todos nós", disse ele nessa fala que se tornou o marco fundamental do nascimento dos chamados direitos dos consumidores e que causou grande impacto nos EUA e no resto do mundo. Na mensagem, foram estabelecidos quatro pontos básicos de garantia aos consumidores: o do direito à segurança ou proteção contra a comercialização de produtos perigosos à saúde e à vida; o do direito à informação, incluindo os aspectos gerais da propaganda e o da obrigatoriedade do fornecimento de informações sobre os produtos e sua utilização; o do direito à opção, no combate aos monopólios e oligopólios e na defesa da concorrência e da competitividade como fatores favoráveis ao consumidor; e o do direito a ser ouvido na elaboração das políticas públicas que sejam de seu interesse. O Dia Mundial dos Direitos do Consumidor foi instituído no dia 15 de março em homenagem ao presidente Kennedy; inicialmente, foi comemorado em 15 de março de 1983 e, em 1985, a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) adotou os Direitos do Consumidor como Diretrizes das Nações Unidas, o que lhe deu legitimidade e reconhecimento internacional. Não resta dúvida de que, de 1962 para cá, houve um avanço na proteção ao consumidor em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. No nosso caso, a verdadeira proteção surgiu com a promulgação do CDC em 11/9/1990 (e que entrou em vigor em 11/3/1991). É mesmo importante que se comemore esta data. Mas, falta ainda muito para que a batalha pelos direitos dos consumidores esteja ganha, pois vários aspectos apontadados no famoso discurso vêm sendo a cada dia violados de diversas maneiras. Os fornecedores tornaram-se cada vez mais ganaciosos e organizaram-se num sistema de alta tecnologia de controle e enganações de todo tipo. Um dos itens de fundamental importância para o presidente Kennedy, que é o direito de optar do consumidor, especialmente combatendo-se monopólios e oligopólios e defendendo-se a livre concorrência e a competitividade (pois, com isso, certamente a oferta amplia-se criando um maior leque de opções), com o fenômeno da chamada globalização, praticamente se perdeu. A era das fusões de empresas da área financeira, de seguros, comercial, industrial, etc. traduz uma derrota na proteção ao consumidor e também aos trabalhadores, eis que elas eliminam postos de trabalho, gerando desemprego em larga escala. As fusões põem fim à possibilidade de existência da concorrência, criando oligopólios poderosos e gananciosos com a drástica redução da oferta: o consumidor vai aos poucos tendo reduzida sua possibilidade de trocar de fornecedor, o que sempre foi um eficaz elemento de proteção. Além disso, como já tive oportunidade de apontar, por conta da abertura do mercado de vários países, do incremento da tecnologia e das comunicações, da melhora das condições de distribuição, etc., as grandes corporações acabaram por mudar seus polos de produção para locais que ainda não tinham - nem têm - tradição de produção de qualidade. Essas empresas foram buscar maiores lucros, pagando menores salários e produzindo bens de consumo de pior qualidade. Para lucrar mais, o empresário acaba correndo maior risco de oferecer piores produtos e serviços ao consumidor. Mas, lendo os folhetos, assistindo às propagandas e também recebendo informações diárias dos mundos dos negócios (via jornais, rádio, tevê, internet, etc.) o consumidor pode até acabar acreditando que o mundo capitalista é moderno e respeitoso. É que o conhecimento das comunicações avançou muito e o mercado capitalista especializou-se em iludir e enganar, usando expressões muito belas (em palavras e imagens), mas que não querem dizer muita coisa (ou pior, ocultam muito). Por isso, em homenagem ao Dia Mundial do Consumidor, eu publico a seguir uma tabela utilizada nos cursos de Direito para mostrar como é possível fazer um longo discurso bonito, interessante, mas sem dizer nada. Eu o adaptei para as questões do mercado de consumo. Após 50 anos do famoso discurso kennedyano, que muito disse e representou, ainda há um longo caminho a percorrer para se conseguir um dia realmente respeito aos direitos dos consumidores. Até lá, muitos de nós continuaremos a ouvir belos discursos dos fornecedores sem nenhum efeito prático no que respeita a nossos direitos de consumidores. Eis as regras para o uso da tabela: a) A leitura da 1ª linha e da 1ª coluna é obrigatória. b) Depois é só ir combinando as frases da cada coluna na ordem (2,3,4) c) Cada frase seguinte pode iniciar em qualquer linha combinando com qualquer coluna na sequência (1,2,3,4). Por exemplo, linha 3, coluna 1, linha 4 coluna 2, linha 6 coluna 3, linha 2 coluna 4. d) Assim, sucessivamente, é possível formar um longo discurso. 1 2 3 4 Caros Colegas, em tempo denovas experiências a consulta ao mercado exige uma definição dos fundamentos do Sistema Jurídico capitalista No entanto, não esqueçamos que a consolidação das bases econômicas se nos impõe um rigor analítico do espírito jurídico fundamental dos negócios O dia a dia das pessoas prova que o novo tempo do século XXI significa contínua aplicação das normas com plena eficácia na sustentabilidade Quiçá, possamos demonstrar que o desenvolvimento do mercado de consumo facilita a busca das fórmulas preferidas para atingir o fim desejado pelos consumidores Sabe-se que a estrutura do regime capitalista nos chama a atenção para o exame das bases para o consumo e respeitando o meio ambiente Ora, diante disso a complexidade das relações jurídicas de consumo nos dias que correm serve de base à verificação das condições para a obtenção da Justiça Por outro lado o comando exercido pelos meios da comunicação gera um processo de reformulação dos fundamentos da liberdade de escolha dos consumidores Pois se pode fazer um balanço dos problemas, uma vez que o princípio de toda atividade de consumo leva à reflexão, sobre a modernização dos vários aspectos do poder econômico E acima de tudo o padrão moderno de conduta do consumidor dinamiza a postura do comando das normas jurídicas de proteção ao consumidor Ressalte-se que o "modus operandi" nos confere a necessária consequência que devemos ter dos resultados programados
A Fifa é uma multinacional que se utiliza, como qualquer corporação nestes nossos tempos de capitalismo globalizado, dos mesmos métodos de venda de produtos de outras grandes corporações. Aliás, muitas vezes, ela deixa à mostra os modos de operar característicos do mundo atual, inclusive no que diz respeito a seu envolvimento com os governos. Como diz Ted Randall "O governo existe para servir o poder econômico. Nos EUA e a nível global, o poder econômico está concentrado no mundo dos negócios, nomeadamente nas grandes empresas, cujos lucros representam mais de 10 por cento do produto interno bruto da nação. As grandes empresas não conseguem operar sem o governo. São codependentes e, no entanto, independentes e indiferentes relativamente à nação"1. Qual não foi o desespero do Secretário Geral da Fifa ao perceber que as coisas não andavam por aqui como eles lá queriam. O que, como diria meu amigo Outrem Ego "Mas, será que eles não conheciam a nosso modo de trabalhar? Essa é boa!". E, de repente, com o uso da expressão "se donner un coup de pied aus fesses" - que uns dizem ser chula e outros dizem que não - gerou uma série de reclamações indignadas. Mas, claro, as obras da Copa vão numa toada à brasileira, o que, há de convir, assusta com aeroportos caóticos, falta de acomodação nos hotéis para os esperados turistas, estádios por construir, etc. Dizem, também, que há uma grande preocupação com a Lei Geral da Copa ainda não aprovada. Essa parte a mim assusta, pois se quer retirar direitos conquistados dos consumidores brasileiros em geral e também de idosos, estudantes, etc., além de se pretender permitir a venda de bebidas alcóolicas nos estádios, um absurdo inominável. (E ouvir que se gostaria também, já de uma vez, de modificar o Estatuto do Torcedor para "atualizá-lo" aos negócios atuais, vale dizer, destruir parte dele). A Fifa, como empresa, além dos produtos de terceiros vendidos, cedidos e franqueados, vende um produto de tecnologia atrasada: o jogo de futebol. Ela resiste em aceitar modernizar o espetáculo com o uso das tecnologias disponíveis. A mesma tecnologia que ela vende em sistemas de transmissão e no jogo de marketing, nega para seu produto principal. Afinal, por que o jogo de futebol não se moderniza? Por que não se usa tecnologia para fazer as regras serem cumpridas? A bola entra e o Juiz não dá o gol, violando a regra. Esse produto continuará antiquado até quando? Nessas importantes questões que geram sempre discussões tão acaloradas no Brasil, só espero que, de fato, não se dê um passo atrás (ou vários), dando-se um chute nos traseiros dos consumidores-brasileiros e suprimindo os direitos tão duramente conquistados. Bem, mas como esta é uma coluna jurídica (e um pouco mais) e como estou falando de futebol, de produtos, de jogos de interesses, de regras, de uma certa ordem a ser cumprida e, por que não e por causa disso, de Verdade e de Justiça (que a ausência de tecnologia no produto impede), aproveito para relembrar uma analogia do Direito com o jogo de futebol, para ficarmos com algo mais ameno nesse momento bicudo. Com efeito, já se disse que dá para comparar o processo judicial com o jogo de futebol e suas regras. Este é um jogo, é verdade, mas que tem: a) começo, meio e fim; b) limites físicos bem delimitados; c) números de participantes fixos e que podem diminuir; d) regras de funcionamento que não podem ser quebradas e e) um árbitro ou juiz de futebol para decidir sobre essas regras e o funcionamento do jogo (com seus auxiliares bandeirinhas). O processo civil é formalmente parecido, com algumas diferenças: a) tem começo, meio e fim. Mas, ao contrário do futebol, o meio pode ser demorado e o fim também. Lá são 90 minutos mais algum tempinho, dependendo do andamento da peleja e só; b) Os limites físicos são também delimitados: os autos do processo, onde vige o aforismo "o que não está nos autos não está no mundo"; c) O número de participantes não está definido "a priori", mas está ligado ao direito reclamado. Variará de acordo com o tipo de demanda. Durante o processo pode aumentar ou diminuir; d) O processo também tem regras próprias e que servem para que sejam julgadas as demais regras em jogo, isto é, servem para se analisar e decidir sobre as normas de direito que estão sendo discutidas. Os profissionais envolvidos no processo devem cumprir essas regras do jogo processual; e) O julgamento será feito por um juiz de Direito (que também pode se servir de auxiliares: os peritos). Muito bem. Para o Direito, dentre os vários temas importantes, dois são fundamentais: o da Verdade e o da Justiça. No processo, o que se espera obter é a verdade dos fatos e um resultado justo. Mas, no futebol, não é assim, aliás não é assim escancaradamente. Se um jogador chuta uma bola que bate no travessão superior e desce por dentro da linha do gol e, no ar, o goleiro a coloca para fora, é gol, claro. Mas digamos que o juiz não dê. Se não der, não será gol. E nem importa o porquê ele tenha feito isso: se porque estava longe e não viu ou se porque, de má-fé, não quis dar. Não é gol e pronto. Depois, a tevê fica mostrando vídeos deixando patente que a bola entrou. Mas, de nada adianta: não foi gol e o jogo acabou, ainda que todo mundo saiba que a bola entrou. É justo? Não, não é. A questão é que, no fundo, o princípio vigente no futebol não é o da busca da verdade, mas apenas e tão somente o da autoridade do árbitro. Este, intocável em suas decisões dentro do gramado, transforma sangue em água; areia em ouro. É um mágico. Capaz de mudar o real. Ou uma espécie de ditador nomeado e aceito. Quando vieram os vídeos, com os tira-teimas e repetições, eu pensava que as coisas mudariam, porque o mágico árbitro teria contra si o fato real para demonstrar seu erro, mas nada mudou. Permanece o regime autoritário de permitir que o árbitro modifique o real a seu bel prazer, doa a quem doer. E, olhe que, em tempos atuais, isso pode significar muitos milhões de reais ou dólares, porque a mudança de um único resultado pode impedir ou levar um time à final de um campeonato importante; ou a um torneio importante, valorizar o depreciar clubes, técnicos e jogadores, etc. É, de fato, muito poder concentrado com alto grau de permissividade. Ainda bem que, pelo menos no processo, as falhas podem ser corrigidas. Lá é diferente, não porque não possa haver erros, pois errar é humano: o sistema de recursos permite a modificação das decisões, pois, como dito, o que vale é a busca da Verdade e o encontro da Justiça, algo muito distante do jogo de futebol. Mas, o futebol não para aí em matéria de analogia com o Direito. Vamos pensar nos regimes políticos e nas seleções. A seleção brasileira, por exemplo. Seu técnico tem uma função de Rei ou Imperador. Age como bem entende e toma as decisões que quiser, sem ter que dar satisfação a ninguém. Lembre-se a expectativa que sempre gera uma convocação de jogadores para compor a seleção brasileira. Não são necessariamente os melhores jogadores que estarão na lista, mas tão somente aqueles que o Imperador definir como "melhores", algo subjetivo e sem obrigação de justificativa (embora existam razões para acreditar que ele esteja sujeito a influências internas). Como um Imperador romano na arena, cabe a ele levantar o dedão para salvar este ou aquele jogador ou virar o dedão de cabeça para baixo para o aniquilar (pelo menos até a próxima convocação e oportunidade; ou para sempre se ele estiver no fim da carreira). Claro que, publicamente, o técnico se justifica, mas vale apenas o que ele decide, vale o que ele pensa que é justificativa, pois sua defesa não é avaliada. De nada adiantam os apelos da população de torcedores, nem dos jornalistas especialistas que deveriam influenciar o império. Como vassalos, eles morrem com a esperança de que o soberano tenha acertado. Este apenas diz o que quer e pronto. Está acabado. Não deve satisfações a ninguém, ainda que possa colocar sua nação em risco. Ainda que, decidindo erradamente, coloque a perder a batalha, a guerra ou o campeonato que seus convocados enfrentarão. É. Para nós, estudantes de Direito, trata-se de um bom exercício de pensamento, que mostra que, cada vez mais, devemos nos esforçar para manter em funcionamento a democracia, para que lutemos pela Verdade e pela Justiça, ao menos nos outros setores da sociedade. PS.: 1. Eu havia terminado de escrever este artigo, quando li a notícia de que a Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovara o projeto de Lei Geral da Copa que, dentre outros temas, permite o consumo de bebida alcóolica no estádios. Isso sim é um chute "no traseiro" da população... Nunca pensei que pudéssemos ficar tão por baixo. Ainda tenho a esperança de que o Plenário da Câmara dos Deputados derrube essa incrível permissão ou, em último caso, nossa corajosa presidenta vete pelo menos esse ponto. 2. O dia esteve repleto de chutes nos traseiros dos consumidores. Vi que alguns donos de postos de combustíveis em São Paulo, aproveitando-se da escassez provocada pela greve dos caminhoneiros aumentaram (e muito) o preço da gasolina e do álcool nas bombas. Prática abusiva proibida pelo CDC e odiosa, mas que apenas confirma a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por muitos empresários. Mas, como eles emitem notas fiscais, é fácil pegá-los. Basta o consumidor fazer a denúncia ao Procon.
O Ministério Público Federal em Minas Gerais ajuizou ação civil pública contra o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas (IFSEMG) acusando a instituição de ter sido omissa, ao longo dos anos, em reprimir a prática de trotes estudantis em suas dependências e pleiteando o pagamento de indenizações. O trote estudantil, covarde e criminoso, não seria nenhuma novidade. Acontece que, no caso, trata-se de jovens que ainda nem ingressaram na Universidade. A escola oferecia alojamento estudantil, em regime de internato, a mais de cem alunos matriculados em cursos técnicos da área de ciências agrárias, para formação equivalente ao ensino médio. Seus estudantes são, em sua maioria, adolescentes com idade entre 14 e 16 anos de idade. A humilhação causada aos novatos e abertamente praticada continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa questão? Aliás, os próprios calouros, na maior parte dos casos, não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Por isso, volto ao tema mais uma vez, deixando consignados os direitos envolvidos e lembrando que alguns atos estão tipificados como crimes. Abordo, também, a responsabilidade das instituições de ensino, com base nas garantias de proteção à saúde e segurança dos estudantes (consumidores) previstas no Código de Defesa do Consumidor. Como já disse antes, o trote estudantil degradante, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado, sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressavam nas faculdades. Quando ingressei na Faculdade nos idos de 1976, nós estudantes já pensávamos que aquilo era um jeito muito estranho de dar boas vindas. Não só eu, mas muitos de nós, achávamos uma contradição os jovens ingressarem na faculdade - um restrito setor da elite brasileira - e se mostrarem tão mal educados: ao invés de agradecer ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agiam como bárbaros, arrogantes e sádicos. Os trotes eram generalizados, sendo praticados em quase todas as escolas. Felizmente, isso mudou em parte: são muitas as escolas que não só proíbem os trotes violentos, como vários Centros Acadêmicos (CAs), cônscios de suas responsabilidades como guardiões dos direitos e das liberdades, também os combatem. Muitas escolas e CAs, por exemplo, substituíram esse tipo de delito pelos chamados "trotes solidários": organizam festas de recepção, shows, teatros nos quais os calouros não só participam como distribuem produtos alimentícios, medicamentos e roupas para serem doados a Instituições de Caridade. Há escolas em que os veteranos montam grupos de recepção para integrar os calouros na vida universitária, mostrando o funcionamento efetivo do campus, o método de ensino, as condições reais de estudo, explicando as regras vigentes, etc. Isso é mesmo muito bom. Todavia, não só os trotes continuam como, pelo visto, existem também no ensino médio, o que é assustador. Lembro que o trote violento - física, moral e psicologicamente - caracteriza prática criminosa prevista em nossa legislação penal. É possível também ao calouro-vítima buscar ressarcimento na esfera civil. Vejamos. Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que, efetivamente, quando ocorrem, são investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro. Humilhar o calouro, ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo, fazê-lo engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP). Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e, se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre), o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP). Haverá outros crimes que podem ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente. Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fosse problema delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim. Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim buscar responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizar a escola, mas não se deve esquecer que, provavelmente, os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. O CDC, como adiantei, garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a escola pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC. Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e nos primeiros dias de aula distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente, terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro. Não se deve esquecer que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. É preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas. Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de Direito, medicina, sociologia, engenharia, etc possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, aliás, talvez a mesma minoria que anos depois, no período da formatura, faz os "botaforas"violentos.
Em função do artigo da semana passada (clique aqui), no qual abordei o abuso do corte de água do condômino inadimplente feito pelo condomínio, resolvi publicar este para demonstrar porque as próprias companhias prestadoras dos serviços essenciais de água, esgoto e de energia elétrica também não podem fazê-lo, a não ser em circunstâncias muito especiais. O Código de Defesa do Consumidor regrou no art. 22 especificamente os serviços públicos essenciais e sua existência para impedir que os prestadores de serviços públicos pudessem construir "teorias" para tentar dizer que não estariam submetidos às normas do CDC. (Mas, mesmo com sua expressa redação, alguns prestadores de serviços públicos lutaram na Justiça "fundamentados" no argumento de que não estariam submetidos às regras da lei 8.078/90)1. Serviço público prestado direta ou indiretamente Diz a norma: "órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento", vale dizer, toda e qualquer empresa pública ou privada que por via de contratação com a Administração Pública forneça serviços públicos, assim como, também, as autarquias, fundações e sociedades de economia mista. O que caracteriza a pessoa jurídica responsável na relação jurídica de consumo estabelecida é o serviço público que ela está oferecendo e/ou prestando. No mesmo artigo a lei estabelece a obrigatoriedade de que os serviços prestados sejam "adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". Examinemos o sentido desses termos. Eficiência Em primeiro lugar diga-se que essa disposição da norma decorre do princípio constitucional estampado no caput do art. 37. É o chamado princípio da eficiência2. É verdade que tal princípio somente passou a integrar explicitamente o corpo constitucional com a edição da Emenda 19, de 4 de junho de 1998, data posterior à edição da lei 8.078/90. Mas a emenda citada apenas tornou explícito o princípio outrora implícito em nosso sistema constitucional, como explicam os professores Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior: "O princípio da eficiência tem partes com as normas de 'boa administração', indicando que a Administração Pública, em todos os seus setores, deve concretizar atividade administrativa predisposta à extração do maior número possível de efeitos positivos ao administrado. Deve sopesar relação de custo-benefício, buscar a otimização de recursos, em suma, tem por obrigação dotar da maior eficácia possível todas as ações do Estado"3. Hely Lopes Meirelles disciplina que a eficiência é um dever imposto a todo e qualquer agente público no sentido de que ele realize suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. Diz o administrativista: "É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros"4. É fato que a lei designa outros adjetivos aos serviços prestados, além do relativo à eficiência: fala em adequado, seguro e contínuo (este último para os essenciais, que ainda comentarei). Ora, adjetivos expõem a qualidade de alguma coisa, no caso o serviço público. Então, quando o princípio constitucional do art. 37 impõe que a Administração Pública forneça serviços eficientes, está especificando sua qualidade. Ou, em outros termos, o tão falado conceito de qualidade, do ponto de vista dos serviços públicos, está marcado pelo parâmetro constitucional da eficiência. E essa eficiência tem, conforme vimos, ontologicamente a função de determinar que os serviços públicos ofereçam o "maior número possível de efeitos positivos" para o administrado. Isso significa que não basta haver adequação, nem estar à disposição das pessoas. O serviço tem de ser realmente eficiente; tem de cumprir sua finalidade na realidade concreta. E o significado de eficiência remete ao resultado: é eficiente aquilo que funciona. A eficiência é um plus necessário da adequação. O indivíduo recebe serviço público eficiente quando a necessidade para a qual ele foi criado é suprida concretamente. É isso que o princípio constitucional pretende. Assim, pode-se concluir com uma classificação das qualidades dos serviços públicos, nos quais o gênero é a eficiência, tudo o mais decorrendo dessa característica principal. Logo, adequação, segurança e continuidade (no caso dos serviços essenciais) são características ligadas à necessária eficiência dos serviços públicos. Realmente, o serviço público só é eficiente se for adequado (p. ex., coleta de lixo seletiva, quando o consumidor tem como separar por pacotes o tipo de material a ser jogado fora), se for seguro (p. ex., transporte de passageiros em veículos controlados, inspecionados, com todos os itens mecânicos, elétricos, etc. checados: freios, válvulas, combustível, etc.), e, ainda, se for contínuo (p. ex., a energia elétrica sem cessação de fornecimento, água e esgoto da mesma forma, gás, etc.). Para uma classificação dos serviços públicos pelo aspecto da qualidade regulados pelo CDC, ter-se-ia, então, de dizer que no gênero eficiência estão os tipos adequado, seguro e contínuo. Pode acontecer de o serviço ser adequado, mas não ser seguro. Ou ser seguro e descontínuo. Ou ser inadequado apesar de contínuo etc. No primeiro caso, cite-se como exemplo o serviço de gás encanado sem controle de inspeção das tubulações e/ou válvulas. No segundo cite-se o serviço de fornecimento de energia elétrica que é interrompido. No terceiro aponte-se o fornecimento contínuo de água contendo bactérias. Em todos esses casos há vício do serviço e, dependendo do dano sofrido pelo consumidor, haverá também defeito. Tudo nos exatos termos do estabelecido nas regras dos arts. 14 e 20 do CDC. E, claro, como os serviços públicos hão de ser eficientes, as variáveis reais possíveis da junção dos tipos não são apenas as dicotômicas apresentadas (adequado-inseguro; seguro-descontínuo; inadequado-contínuo, etc.), mas também podem ocorrer pela conexão das três características: adequado-inseguro-descontínuo; inadequado-seguro-contínuo; adequado-seguro-descontínuo, etc. Foi isso o que ficou estabelecido na lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que disciplinou o regime de concessão e permissão dos serviços públicos, como decorrência do estabelecido no art. 175 da Constituição Federal. É que a Carta Magna dispõe que a lei deve regulamentar a obrigação da manutenção do serviço público de forma adequada. Leia-se a citada norma constitucional: "Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II - os direitos dos usuários; III - política tarifária; IV - a obrigação de manter serviço adequado". Os §§ 1º e 2º do art. 6º da lei 8.987/95, então, dispõem: "Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. § 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. § 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço". Vê-se, portanto, que há ampla determinação para que os serviços públicos sejam eficientes, adequados, seguros e contínuos. Serviço essencial contínuo Prosseguindo no exame, chega-se ao aspecto da essencialidade do serviço que, na determinação da norma do caput art. 22, tem de ser contínuo. Há que distinguir dois aspectos: o que se pode entender por essencial e o que pretende a norma quando designa que esse serviço essencial tem de ser contínuo. Serviço essencial Começo pelo sentido de "essencial". Em medida amplíssima todo serviço público, exatamente pelo fato de sê-lo (público), somente pode ser essencial. Não poderia a sociedade funcionar sem um mínimo de segurança pública, sem a existência dos serviços do Poder Judiciário, sem algum serviço de saúde etc. Nesse sentido então é que se diz que todo serviço público é essencial. Assim, também o são os serviços de fornecimento de energia elétrica, de água e esgoto, de coleta de lixo, de telefonia, etc. Mas, então, é de perguntar: se todo serviço público é essencial, por que é que a norma estipulou que somente nos essenciais eles são contínuos? Para solucionar o problema, devem-se apontar dois aspectos: a) o caráter não essencial de alguns serviços; b) o aspecto de urgência. Existem determinados serviços, entre os quais aponto aqueles de ordem burocrática, que, de per si, não se revestem de essencialidade. São serviços auxiliares que: a) servem para que a máquina estatal funcione; b) fornecem documentos solicitados pelo administrado (p. ex., certidões). Se se fosse levantar algum caráter de essencialidade nesses serviços, só muito longínqua e indiretamente poder-se-ia fazê-lo. Claro que existirão até mesmo emissões de documentos cujo serviço de expedição se reveste de essencialidade, e não estou olvidando isso. Por exemplo, o pedido de certidão para obter a soltura de alguém preso ilegalmente. É o caso concreto, então, nessas hipóteses especiais, que designará a essencialidade do serviço requerido. O outro aspecto, sim, é relevante. Há no serviço considerado essencial uma perspectiva real e concreta de urgência, isto é, necessidade concreta e efetiva de sua prestação. O serviço de fornecimento de água para uma residência não habitada não se reveste dessa urgência. Contudo, o fornecimento de água para uma família é essencial e absolutamente urgente, uma vez que as pessoas precisam de água para sobreviver. Essa é a preocupação da norma. O serviço público essencial revestido, também, do caráter de urgente não pode ser descontinuado. E no sistema jurídico brasileiro há lei ordinária que define exatamente esse serviço público essencial e urgente. Trata-se da Lei de Greve - lei 7.783, de 28 de junho de 1989. Como essa norma obriga os sindicatos, trabalhadores e empregadores a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, acabou definindo o que entende por essencial. A regra está no art. 10, que dispõe, verbis: "Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais: I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; II - assistência médica e hospitalar; III -distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; IV- funerários; V - transporte coletivo; VI - captação e tratamento de esgoto e lixo; VII - telecomunicações; VIII - guarda, uso e controle de susbstâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais; X - controle de tráfego aéreo; XI - compensação bancária". Dessa forma, nenhum desses serviços pode ser interrompido. O CDC é claro, taxativo e não abre exceções: os serviços essenciais são contínuos. E diga-se em reforço que essa garantia decorre do texto constitucional. Com efeito, como se sabe, a legislação consumerista deve obediência aos vários princípios constitucionais que dirigem suas determinações. Entre esses princípios encontram-se os da intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da garantia à segurança e à vida (caput do art. 5º), que tem de ser sadia e de qualidade, em função da garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado (caput do art. 225) e da qual decorre o direito necessário à saúde (caput do art. 6º) etc. Ora, vê-se aí a inteligência da lei. Não é possível garantir segurança, vida sadia, num meio ambiente equilibrado, tudo a respeitar a dignidade humana, se os serviços públicos essenciais urgentes não forem contínuos. Interrupção A lei 8.987, citada acima, prevê a possibilidade de interrupção do serviço público em situação de emergência por motivo de "ordem técnica ou de segurança das instalações" (art. 6º, § 3º, I). Em primeiro lugar, essa regra excepcional apenas constata que certas situações de fato podem ocorrer (mas não deviam: razões de ordem técnica e segurança das instalações que gerem a necessidade de interrupção), e tais situações, ainda que, eventualmente, venham a surgir, significam interrupção irregular do serviço público, aliás em clara contradição com o sentido de eficiência e adequação. Afinal, problema técnico e de insegurança demonstra ineficiência e inadequação. (Lembro que qualquer dano - material ou moral - causado pela interrupção dá direito a indenização, uma vez que a responsabilidade do prestador do serviço é objetiva, e a mera constatação da possibilidade de descontinuidade feita pelo art. 6º, § 3º, I, da lei 8.987 não tem o condão de elidir a responsabilidade instituída no CDC). Inadimplência do consumidor Alguns operadores do Direito, a meu ver de forma equivocada, têm-se manifestado no sentido contrário à norma (e mesmo contra sua clara letra expressa), admitindo que o prestador do serviço público corte o fornecimento do serviço essencial em caso de inadimplemento. Antes de apresentar os argumentos pró e contra a descontinuidade em caso de inadimplemento, há que se abordar, como preliminar, a hipótese inserta na supracitada lei 8.987. Isso porque aquele mesmo § 3º do art. 6º dispõe não se caracterizar como descontínuo o serviço quando ocorrer "inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade". E essa disposição tem servido de apoio àqueles que, erradamente, admitem o corte do fornecimento em caso de não pagamento da tarifa. Teria sido melhor a lei 8.987 não ter tratado do assunto, porque: a) seria inconstitucional, como veremos, a lei ordinária admitir o corte por mera inadimplência; b) para dizer o que disse, bastavam as disposições já vigentes da lei 8.078, que dão cabal solução à questão. Mas, como a norma existe, cuido dela, pois, antes de prosseguir. A redação do inciso II do § 3º do art. 6º fala em inadimplemento do usuário, "considerando o interesse da coletividade". É essa parte da proposição normativa que salva o texto. O interesse da coletividade que seja capaz de permitir a interrupção do serviço público essencial - garantido constitucionalmente - só pode algum tipo de fraude praticada pelo usuário e que, por isso, possa causar algum prejuízo à coletividade. Conforme mostrarei mais à frente, admitir-se-á o corte do fornecimento do serviço apenas após autorização judicial, se demonstrado no feito que o consumidor inadimplente, podendo pagar a conta - isto é, tendo condições econômico-financeiras para isso -, não o faz. Afora essa hipótese e dentro dessa condição - autorização judicial -, o serviço não pode ser interrompido. Na sequência deixarei tal circunstância mais esclarecida. O fato é que aqueles que pensam que se pode efetuar o corte confundem o direito de crédito que tem o fornecedor com o direito que ele não tem de interromper a prestação do serviço. Os partidários dessa posição alegam que o Poder Público não pode ser compelido a prestar serviço público ininterrupto se não for feito o pagamento da tarifa ou taxa. Mas isso também não corresponde à verdade: a) O principal argumento contra essa "tese" da possibilidade do corte do fornecimento dos serviços essenciais no caso de inadimplemento é não só o do expresso texto legal, mas simplesmente o da lógica mais simplória. Pergunta-se: para que então o legislador escreveu que os serviços essenciais são contínuos? Se fosse para permitir que eles pudessem ser interrompidos em caso de inadimplemento, então não precisaria ter sido escrito. Bastava a redação do art. 22 terminar no adjetivo "seguro". Em sendo assim, o prestador do serviço público essencial poderia cortar o seu fornecimento, desde que existisse previsão contratual para tanto. Porém, a lei declara expressamente: serviço essencial é contínuo! b) Por outro lado, se o legislador escreveu apenas para dizer que os serviços públicos são essenciais e contínuos, isto foi em vão, porque não é o art. 22 que faz esse tipo de prestação ser essencial, mas sua própria natureza. c) É de lembrar-se que a determinação de garantia da dignidade, vida sadia, meio ambiente equilibrado, etc. é constitucional, como visto. É direito inexpugnável a favor do cidadão-consumidor. d) Existem, além disso, outros argumentos jurídicos menos relevantes, mas que também são aplicáveis ao caso: d.1) Há milhares de cidadãos isentos de pagamentos de tributos e taxas sem que isso implique a descontinuidade dos serviços ou qualquer problema para a administração do Estado; d.2) Um bem maior como a vida, a saúde e a dignidade não pode ser sacrificado em função do direito de crédito (um bem menor); d.3) É plenamente aceitável que seja fornecido ao cidadão um serviço público gratuito. Aliás, em última instância é essa a função do Estado, que deve distribuir serviços de qualidade e gratuitos a partir dos tributos arrecadados. Não há nenhum impedimento lógico para que certos grupos sociais de menor poder aquisitivo recebam, portanto, alguns serviços públicos sem ter de pagar por eles. Repito: já é assim com tributos como, por exemplo, o IPTU; d.4) Aliás, se quem mais pode mais paga tributo, não há qualquer inconveniente em que aquele que não pode pagar pelo serviço público o receba gratuitamente, como já ocorre no atendimento hospitalar, na segurança pública, na educação, etc. É preciso concretizar num exemplo a intenção da lei, para se ficar plenamente convencido da justiça e constitucionalidade de sua determinação. Tomemos o caso do serviço de energia elétrica ou de água e esgoto. Suponhamos a família composta por João da Silva, sua esposa Maria e seus dois filhos pequenos, de 2 e 4 anos de idade. Digamos que ele, trabalhador da indústria metalúrgica há muitos anos, perca o emprego, pois a indústria empregadora, num corte de gastos, mandou embora dezenas de trabalhadores5. João da Silva mora com a família numa pequena casa financiada pelo Sistema Financeiro de Habitação. Juntou, anos a fio, uma reserva mensal para poder dar entrada no seu sonho (e necessidade) maior: o imóvel. Mas, depois que o adquiriu, com o nascimento do seu segundo filho, o arrocho salarial e o aumento das despesas, não conseguiu mais guardar um "tostão" sequer, como se diz. Pois bem. Despedido, passou a engrossar a longa fila dos desempregados e a viver da mirrada quantia do seguro-desemprego. Os depósitos que tinha, retirados do Fundo de Garantia, esgotaram-se em 3 meses, já que a maior parte foi usada para complementar a parcela de entrada da residência. Com dificuldades para comprar comida para seus filhos, João deixou de pagar as contas de água e energia elétrica. Ou, em outros termos, os serviços públicos essenciais de água e esgoto e de energia elétrica fornecidos na casa de João e que são medidos e cobrados todo mês - e que, diga-se, ele sempre pagou - não foram quitados no vencimento. Agora, o que irá acontecer? Para os adeptos da posição de que pode haver suspensão da entrega dos serviços essenciais em caso de inadimplemento, João da Silva, sua esposa e filhos pequenos estarão em grande dificuldade, e a violação a seus direitos constitucionais será flagrante. Se os prestadores dos serviços públicos cortarem o fornecimento de energia elétrica, bem como água e esgoto, além das perdas imediatas (comida se estragando na geladeira, riscos de acidente noturno no escuro com as crianças, etc.), os direitos básicos daquelas pessoas passam a não ser supridos. Com isso, surge um problema de saúde pública. As chances de João e sua esposa e, especialmente, de seus filhos adoecerem aumentam enormemente. E, quanto mais tempo passar, pior será. Diríamos até que, depois de algum tempo, o problema de saúde inexoravelmente ocorrerá. Nem estou citando o sofrimento (o dano moral) de João e seus familiares, porque ele é evidente. Doente aquela família, há riscos para os demais cidadãos que com eles convivem e, assim, para toda a comunidade. (Paradoxalmente, o Estado estará punindo essas pessoas causando-lhe dor e sofrimento, fazendo-as adoecer e, depois, deverá delas cuidar nos serviços de saúde!) É isso o que essa posição doutrinária pretende? Garantia constitucional A Carta Constitucional proíbe terminantemente que isso ocorra: a) O meio ambiente no qual vive o cidadão - sua residência, seu local de trabalho, sua cidade etc. - deve ser equilibrado e sadio. É verdade que é difícil obter um adequado meio ambiente no que respeita ao ar atmosférico numa grande cidade. Mas não é numa casa. E esse direito já está garantido com plena eficácia. b) É desse meio ambiente que decorre, em larga medida, a saúde da pessoa e consequentemente sua vida sadia, tudo garantido constitucionalmente. c) Se para a manutenção desse meio ambiente e da saúde e vida sadia do indivíduo têm de ser fornecidos serviços públicos essenciais, eles só podem ser ininterruptos. d) O corte do serviço gera uma violação direta ao direito do cidadão e indiretamente à própria sociedade. e) Aliás, numa análise global da possível economia do sistema de administração da justiça distributiva, é evidente que é mais custoso para o Estado ter de amparar a família que adoeceu por falta do fornecimento dos serviços essenciais do que fornecê-lo gratuitamente, conforme acima anotei (afora o problema de as doenças se espalharem6). É um trabalho simples e barato de prevenção da saúde. Preço Além disso tudo e para concluir, falo um pouco do preço do serviço público. A remuneração do serviço público, adotando o regime tarifário, tem a mesma concepção de preço, mas não se confunde com o preço privado, cuja amplitude nasce num contexto de fixação pelo fornecedor, dentro dos parâmetros e com os limites constitucionais. Ora, o serviço público é bem indisponível, sendo prestado pelo Estado e seus agentes por força de lei. Tais agentes não podem dispor do serviço público: são obrigados a prestá-lo para atingir o interesse público irrenunciável. Assim, ainda que remunerado por meio de preço (tarifa), é claro que este há de cercar-se de características especiais, já que nesta seara não há que se falar em negociação ou decisão entre as partes contratantes, nem em disponibilidade do objeto do negócio. Não se pode, por isso, confundir o preço que o consumidor paga ao adquirir roupas numa loja com o preço que o usuário de um serviço público, essencial e indisponível paga a uma concessionária. Ademais, mesmo na esfera privada há produtos e serviços necessários como, p. ex., o medicamento produzido por uma única empresa que pode curar o câncer, o atendimento do socorro médico, etc. Nesses casos, o consumidor também não tem escolha. Não pode decidir por adquirir ou não: é prisioneiro da compra. Nos serviços públicos a necessidade é de sua própria natureza. De um lado o comando constitucional determina sua prestação; de outro, o usuário não tem possibilidade de escolher a negociação: é obrigado a usufruir do serviço público, tanto mais em se tratando do serviço essencial. Logo, não são o preço e seu pagamento que determinam a prestação do serviço público, mas a lei. Nessa linha de entendimento já expunha Geraldo Ataliba: "Se o serviço é público, deve ser desempenhado por força de lei, seu único móvel. O pagamento (...) é-lhe logicamente posterior: é mera consequência; não é essencial à relação de prestação-uso do serviço"7. Destarte, com ou sem pagamento do preço (tarifa), o Estado não pode eximir-se de prestar o serviço público, como determina a lei. Claro que esse quadro não se altera quando os serviços são prestados mediante concessão ou permissão. E, para concluir minhas observações, mais dois pontos. O primeiro, já adiantado, refere-se à constatação de que existem serviços públicos fornecidos independentemente do pagamento. Por exemplo, o de coleta de lixo. Quer o cidadão pague quer não as taxas cobradas, o lixo é (tem de ser) recolhido. Pelo simples motivo de que isso é essencial, contínuo e fundamental para a manutenção de um meio ambiente saudável. O segundo é relativo ao direito de crédito do prestador do serviço público. Não se pretende simplesmente tirar-lhe o direito de receber o quantum relativo ao fornecimento do serviço. Ele pode, é claro, receber seu crédito. Mas este, para ser cobrado, está também submetido às regras instituídas no CDC. A cobrança não pode ser abusiva (art. 42, c/c o art. 71). E, uma ameaça ilegal de cobrança é a do corte do serviço essencial. E pior: o corte efetivo com o intuito de forçar o consumidor inadimplente ao pagamento é uma concreta violação. A meu ver só há um caminho para o prestador do serviço essencial suspender o fornecimento desse serviço: é ele propor ação judicial para cobrar seu crédito e nessa ação comprovar que o consumidor está agindo de má-fé ao não pagar as contas. Pode haver, inclusive, pedido de antecipação de tutela ou pedido de liminar em cautelar, se o fornecedor-credor puder demonstrar a má-fé do consumidor. Naturalmente, no caso de João da Silva e sua família, o corte dos serviços não poderá ser feito. Mas, no de alguém que, não pagando as contas de água, adquire um automóvel zero-quilômetro, é fácil demonstrar sua má intenção. Com isso, salva-se o sistema jurídico, respeita-se o consumidor e garante-se o direito do credor. A justiça plena do sistema constitucional se realiza. E nem se argumente que tal circunstância seria uma violação ao direito do credor, porquanto, como aqui já referi inúmeras vezes, receber ou não crédito decorre do risco de sua atividade. E lembre-se que, atualmente, no sistema jurídico brasileiro, um credor como, por exemplo, um banco pode ficar impossibilitado de receber seu crédito pela via judicial se o devedor residir no único imóvel que lhe pertence, impenhorável por força da lei 8.009, que instituiu o chamado bem de família legal, e não tiver mais bens penhoráveis. Nem por isso se pode falar em injustiça, uma vez que aquela lei é constitucional e decorre do direito de moradia, assegurado na Carta Magna, que também garante, como já vimos, a vida sadia, o meio ambiente equilibrado e, assim, a dignidade da pessoa humana. __________ 1Para ficar só com um exemplo, veja-se o caso da decisão da 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo no agravo de instrumento interposto pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo - Sabesp. Nas razões do recurso do feito, que envolve a discussão a respeito de valores cobrados pelo fornecimento de água e esgoto (que o consumidor alega foram cobrados exorbitantemente), a empresa fornecedora fundamenta sua resignação "na não subordinação da relação jurídica subjacente àquela legislação especial (o CDC)". O Tribunal, de maneira acertada, rejeitou a resistência da Sabesp: "indiscutível que a situação versada, mesmo envolvendo prestação de serviços públicos, se insere no conceito de relação jurídica de consumo. Resulta evidente subordinar-se ela, portanto, ao sistema do Código de Defesa do Consumidor" AI 181.264-1/0, rel. Des. J. Roberto Bedran, j. 9-2-1993, v. u., RTJE 132/94. 2Para mais dados, consultar meu Curso de Direito do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed. 2011, Cap. 3, item 3.11. 3Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 235 4Direito administrativo brasileiro, São Paulo: Saraiva, 13ª. ed, p. 90. 5Realço que esse exemplo inventado é absolutamente (e infelizmente) real no País, e, aliás, os casos que se multiplicam são muito piores do que esse aqui relatado. 6Isso sem falar em outros problemas que o corte de serviços públicos acarreta, como o da segurança, por exemplo. 7Hipótese de incidência tributária, 5. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 1992, p. 146.