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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A biografia como produto de consumo - parte I

Continuo hoje a desenvolver o tema iniciado há duas semanas a respeito das biografias. Como antecipei, pretendo demonstrar que ambas as partes envolvidas na discussão pública da questão têm razão em parte. Prossigo, pois, cuidando agora da biografia como produto de consumo e de seu conteúdo. Biografia: produto de consumo Na sociedade capitalista em que vivemos, um livro não gera interesse econômico? Bem, estão aí as várias leis que garantem os direitos autorais e de edição para garantir que sim. E, aliás, é muito justo que assim o seja. Antes tivéssemos muitas editoras e autores endinheirados em função das vendas de seus livros. Seria realmente bom para todos. Quanto mais livros vendidos e lidos, mais a sociedade tornar-se-ia melhor. Eu não tenho dúvidas disso. Ademais, é claro no capitalismo atual, que livro é produto: é produzido, embalado, oferecido, vendido nas lojas físicas ou virtuais, com preços pagos à vista, a prazo, no cartão de crédito ou débito, em promoções com descontos etc., tudo regulado pelo Código de Defesa do Consumidor (e em outros países pelas leis e praxes locais de proteção ao consumidor). Estão, por isso, sujeitos a vícios, devoluções e demais garantias legais. Como me perguntou meu amigo Outrem Ego: "Bem, se é assim, por que é então que se diz que biografias não tem esse escopo?" Eu não sei responder; talvez seja para desviar a atenção, pois me parece que, cada vez mais, as biografias ocupam espaços nas prateleiras das livrarias e seus sites como típicos produtos de consumo altamente rentáveis. Veja o exemplo de Angelina Jolie. Recentemente, o jornal britânico Daily Star anunciou que três editoras disputam os direitos de editar sua autobiografia. Já foi oferecida a "bagatela" de 50 milhões de dólares! Ela, mostrando seu largo sorriso, afirmou: "Estou pronta para revelar tudo em um livro de memórias!" .Disse também que não pretende deixar nenhum assunto de sua vida de fora do livro: indústria milionária e manipuladora de Hollywood, o Oscar, seus 6 filhos, a mastectomia, o casamento com o ator Brad Pitt, atuação como embaixadora da ONU1. Aqui, por terras tupiniquins, a biografia da prostituta Bruna Surfistinha (codinome usado por Raquel Pacheco em seu mister), escrita pelo jornalista Jorge Tarquini, vendeu 250 mil exemplares, além de ter sido lançada em Portugal e na Espanha. Nada mal. Numa rápida consulta na web vi que há no mercado inúmeras biografias típicas da sociedade de consumo do espetáculo, da diversão e da curiosidade (mórbida ou não). Há, por exemplo, biografias do cantor Leonardo, do ator (de tevê e astro pornô) Alexandre Frota, dos apresentadores de tevê Milton Neves e Marcelo Rezende (este em pré-lançamento já anunciado), do Bispo Edir Macedo (dois volumes), do ex-jogador de futebol e também apresentador de tevê Walter Casagrande, de Max Cavalera da banda Sepultura, do cantor Lobão, da banda Roupa Nova e da banda Black Sabbath e até já de Neymar (encontrei duas!), etc. Claro que há também biografias e autobiografias importantes de pessoas que podem contribuir para o bem da humanidade, dos leitores e das sociedades, mas isso não muda o fato de que elas são típicos produtos de consumo e, como tal, podem ser úteis, essenciais ou supérfluas exatamente como qualquer produto. E, repito: têm preço de venda, geram receitas, honorários e lucros para editores, produtores, donos de gráficas, distribuidores, lojistas e autores. Muito bem. Estabelecido que a biografia é produto, pensemos agora no seu conteúdo. A intimidade Como antecipei, penso que não há necessidade de autorização prévia para a feitura de biografias, desde que o biógrafo trabalhe com os elementos da vida pública do biografado. Se os dados foram extraídos das ações e atitudes do biografado enquanto emanados de seu papel social público, podem ser utilizados à vontade. A barreira legal existente diz respeito à privacidade, intimidade e honra do biografado. Mas, mesmo aqui haverá exceções. É que há certos aspectos de vida privada ou íntima do biografado, que pelas circunstâncias em que ocorreram, podem ser divulgadas em função do interesse público. Por ora, cito dois exemplos: um Chefe de Estado, digamos o Presidente da República, no momento de intimidade, na cama com sua namorada, resolve revelar segredos que podem colocar em risco a segurança da nação. Ou, então, a situação de um criminoso (que mereça ser biografado, claro) que, por força de ações hediondas, perde o direito à manutenção dessa garantia, como é o caso do estuprador, que não tem nem honra nem intimidade a ser preservada. São exceções, que garantem a regra. Aliás, o que defendo é exatamente o que os próprios historiadores defenderam num documento recém-trazido a público: "O respeito à privacidade não pode sobrepor-se ao interesse coletivo em se conhecer o passado e o presente. Cabe ao biógrafo distinguir criteriosamente entre a exposição inútil da vida pessoal e os detalhes significantes para a explicação do contexto"2. Isso mesmo! Cabe ao biógrafo distinguir criteriosamente entre a exposição inútil da pessoa e os detalhes significantes para a explicação do contexto, exatamente como estou a defender. Veja, agora, o que me relatou meu amigo Outrem Ego. Ele me ligou para contar a seguinte história. Disse-me ele que na sua infância, no interior do Estado de São Paulo, havia um garoto com quem brincava na rua, muito simpático, amigo de todos dali; era de uma família muito pobre, da roça e duas vezes por semana aparecia à tarde para jogar bola na rua. Certo dia, foram todos catar goiaba num pé à beira da estrada. Esse menino, então com 12 anos, acabou caindo de um galho alto com as pernas abertas em cima de uma pedra. O acidente foi grave, ele teve de ser hospitalizado. Semanas depois, Outrem Ego, que era seu melhor amigo, ficou sabendo de um segredo: o menino teve que colocar uma prótese peniana. Mas, vejam o que veio depois, pela voz de meu amigo. "Não sei até hoje quantos ficaram sabendo do segredo, mas, certamente, eu, o irmão dele e um outro amigo sabíamos. Nós quatro nunca deixamos de ser amigos. Mesmo depois que minha família se mudou para a Capital, continuamos nos falando, aliás até hoje". "E, lendo sobre essas discussões a respeito de biografias e intimidade, lembrei desse meu amigo. Sabe o que aconteceu com ele? Olha, daria uma excelente biografia. Ele, como eu disse, era muito pobre. Estudou em escola pública (aliás, foi atendido em hospitais públicos na maior parte das vezes) e acabou entrando na Faculdade de Administração de Empresas da USP. Incrível né? Mas, isso é ainda pouco. Ele formou-se, trabalhou numa multinacional, juntou um bom dinheiro, comprou uma casa para os pais. Pediu demissão e montou um pequeno negócio junto do irmão". "Mas, deixe eu dar um salto no tempo: com 40 anos, ele estava milionário. Sua empresa, com várias filiais tanto aqui como no exterior, tinha centenas de trabalhadores. Ele, então , decidiu entrar na política. Foi, naturalmente, recebido de braços abertos em um Partido. Candidatou-se a Deputado Federal e foi eleito. Mas, havia um problema: ao chegar no Congresso ele queria fazer tudo certo, num figurino diferente do vigente. Não deu certo. Depois de um mandato tumultuado, ele desistiu. Saiu da política., voltou para a empresa, que atualmente tem milhares de empregados. Ele, sozinho, mantém sem fazer escândalo nem marketing, dezenas de instituições de caridade". Meu amigo continua: "Esse homem, durante toda a vida, claro, teve problemas com sua prótese. Fez várias cirurgias para adaptá-la a seu crescimento e envelhecimento. Tudo em sigilo, especialmente depois dele se tornar conhecido". "Eis aí, meu amigo, uma história de luta e sucesso que merece ser contada por um bom escritor e/ou historiador de preferência. Esse homem, vindo de onde veio, conseguindo o que conseguiu, vendo o que viu e ajudando literalmente milhares de pessoas todos os meses, poderia mesmo merecer algumas páginas que ficassem para a história. Algumas páginas que narrassem sua vida pública". "Mas, agora, coloco a pergunta que não quer calar: o que a prótese peniana que ele carrega na intimidade de seu corpo tem a ver com isso. Quem é que teria o direito de revelar esse segredo tão íntimo? Para que serviria as pessoas terem conhecimento desse problema tão antigo quando sigiloso"? "Penso que nenhum biógrafo teria o direito de fazer essa revelação. Nenhum biógrafo, nem eu, o irmão dele, seus pais ou os médicos que dele cuidaram. Ninguém. É algo de sua vida pessoal que não se pode revelar. Seria uma violação flagrante de sua vida íntima. Teria como função apenas e tão somente matar a curiosidade mórbida de um tipo de público consumidor acostumado com fofocas e colunas degradantes de revistas e sites." Eu ouvi atentamente, depois objetei: "Penso que um psiquiatra poderia avaliar seu amigo e chegar à conclusão de que ele se tornou o empresário de sucesso, conseguindo enfrentar e vencer as dificuldades da vida, exatamente porque havia aprendido uma lição marcante quando teve de colocar a prótese peniana. Quero dizer, seria possível mostrar que o drama sofrido na infância tinha fortalecido seu amigo para ajuda-lo no futuro". Ele respondeu: "É possível. Mas, mesmo que assim o fosse, estaríamos ainda no campo da interdição, pois o segredo continuaria com meu amigo e o psiquiatra não poderia revelá-lo por dever de ofício. Ele haveria de manter sigilo". Realmente. Nem essa desculpa de tentar demonstrar uma conexão entre algo íntimo e privado e uma ação pública conhecida serve de justificativa para a divulgação violadora. Ou, como também disse meu amigo: "Ainda que um compositor se torne muito famoso, escrevendo músicas de 'fossa' e 'dor de cotovelo' e que isso na origem tivesse relação com uma história de amor frustrado que ele nunca revelou, não haveria base para a divulgação desse segredo". Outrem Ego contou essa história por causa do imbróglio que envolveu o Rei Roberto Carlos, dentre outros músicos da MPB. Eu sou de um tempo em que o Rei embalava nossos sonhos nos "bailinhos". Deve ser muito difícil encontrar alguém de minha idade que não goste dele, que não o admire. Por isso, soam estranhos os ataques que ele tem sofrido apenas e tão somente porque está lutando na Justiça de uma sociedade que se diz democrática por um direito seu. Os ânimos estão muito exaltados. Achei, por exemplo, não só injusto como indelicado o tratamento dado ao Rei pelo escritor Ruy Castro. Este escritor, durante a recente Feira do Livro de Frankfurt, perguntou à ministra Marta Suplicy da Cultura se o biógrafo teria que pagar um dízimo ao biografado e completou: "Pagar esse dízimo vai garantir nossa liberdade? Eu posso pagar um dízimo ao Roberto Carlos e falar da perna mecânica?3" Ora, como apontou meu amigo Outrem Ego em sua explanação, se RC tem ou não uma perna mecânica isso é algo que só interessa a ele e a mais ninguém. Sua biografia não ficará melhor ou pior apenas porque esse aspecto não é tratado. Seria pura fofoca, violação de sua intimidade para satisfazer a um tipo de satisfação pública da pior espécie. Esse tipo de atitude do escritor referido, ao que parece, mostra, ao contrário do texto do manifesto dos historiadores acima transcrito, que alguns candidatos a biógrafos não estão à priori interessados em respeitar o biografado. O que fariam se pudessem falar qualquer coisa? A prova é o que o mesmo escritor disse sobre Roberto Carlos em outro depoimento: uma pessoa com 'vaidade e insegurança sem limites' como o cantor e a falta de uma lei específica para biografias, permite a criação de uma 'indústria de processos'4. Na verdade esse modo desrespeitoso de falar do outro, bem examinado, dá razão ao outro e não a quem fala. Ou, como diz Gilberto de Mello Kujawski, "quando se fala bem ou mal de alguém, exige-se a necessária comprovação. Entre o biógrafo e o biografado instaura-se um contraditório virtual, ao qual o biógrafo tem a obrigação de responder sempre que instado"5. Se um biógrafo, desde logo, já não gosta do biografado; se tem opinião negativa sobre o mesmo, não deve nem pensar em começar seu trabalho, pois está longe de efetuá-lo de um modo o mais isento possível. Começou mal e assim terminará seu mister. Não mostrará ao público o que o biografado era ou é, o que ele fez, de quais fatos relevantes ele participou. Dará seu próprio depoimento distorcido por uma subjetividade viciada. Com essa atitude, essas pessoas parecem querer impor sua vontade, independentemente dos fatos, dos direitos envolvidos, do direito à vida privada e à intimidade de que gozam os biografáveis. Esse debate do modo como se tornou público, com depoimentos raivosos e apaixonados acaba colocando em dúvida o que os escritores podem, de forma neutra, realmente dizer dos biografados. Por fim, sempre buscando aclarar o que há na base das discussões, aproveito o exemplo do psiquiatra na hipótese narrada acima por meu amigo Outrem Ego, para questionar um argumento muito utilizado pelos biógrafos: o de que eles são capazes de "conhecer" o biografado. Sim, talvez sejam, mas penso que conseguem fazê-lo naquilo que envolvem as ações públicas do investigado. Na esfera da privacidade e intimidade é duvidoso. Veja, caro leitor. Se já é difícil para um psiquiatra, após muitas sessões de psicanálise, onde o paciente expõe sua vida de modo confessional, estabelecer os tipos de conexões entre a vida pregressa e a atual, entre as vivências anteriores e as experiências que daí vieram, entra o drama vivido pelo paciente e sua reclamações como fruto dos fatos de sua própria vida pessoal (pública e privada), o que se dirá de um biógrafo que não só não tem essa qualificação profissional como também não recebe as informações diretamente da fonte e confessada. Como ele faria para ter acesso a essa esfera de intimidade? Ademais, ainda que o biógrafo fosse, ele próprio, um psiquiatra, não poderia estabelecer de forma científica os critérios de conexão, as vivências, as experiências, as causas e consequências, pois faltaria o contato com o paciente. Seria - como tudo indica que é - dificílimo apresentar adequadamente os fatos da vida privada e íntima do biografado ou mostrar os elementos de sua via psicológica: suas emoções, suas dores, angústias, prazeres etc. Qual a solução? No próximo artigo, pretendo concluir esse ponto que envolve o conflito entre direito à escrita e liberdade de expressão e direito à vida privada, intimidade e honra. Penso que a solução deve se dar pela busca de um princípio maior na própria Constituição Federal, que é o da garantia da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, interpretação que há de ser feita pelo critério de incidência do princípio da proporcionalidade. Adianto, de todo modo, em função do que aqui escrevi, que não se deve confundir a pesquisa e escrita do biógrafo com o direito de opinião e de liberdade de expressão garantidos no texto constitucional. Estes são mais amplos, pois dizem respeito ao direito que as pessoas têm ao livre pensar e se manifestar sobre fatos e ideias, fazendo comentários e exercendo seu direito de crítica, além, claro, de também poderem produzir textos, obras de arte em todas as vertentes, trabalhos científicos e se expressar livremente a favor ou contra todos esses produtos de comunicação. Naturalmente, o direito do biógrafo está inserido no da liberdade de expressão intelectual, artística e científica, mas seu campo de atuação é mais restrito, pois visa examinar e mostrar a vida de um terceiro, como, aliás, assegura a etimologia da palavra de origem grega: bíos (vida) e gráphein (escrever). __________ 1Colhido em Clicrbs, em 27/10/2013. E também em O Globo, na mesma data. 2Trecho do Manifesto assinado por 220 historiadores. In Migalhas. 3Apud Josias de Souza, blog UOL, 28/10/2013. 4Em entrevista ao Uol entretenimento, 25/4/2013. 5"Liberdade de expressão", In Migalhas, 24/10/2013.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A vida privada como produto de consumo - parte II

Continuo hoje a desenvolver o tema iniciado na semana passada a respeito das biografias. Como antecipei, pretendo demonstrar que ambas as partes envolvidas na discussão pública da questão têm razão em parte. Prossigo, pois, cuidando agora da fofoca e do segredo. A fofoca O outro lado desse produto envolve não só a violação pura e simples da privacidade e da intimidade das pessoas como os malefícios da fofoca. Com efeito, o ato de fofocar é tão antigo como andar para trás, como se diz. Já na Grécia antiga fazia-se fofocas. É conhecida a objeção de Sócrates sobre ela: Certo dia em Atenas, o filósofo encontrou com um conhecido que lhe disse:- Sócrates, sabe o que acabo de ouvir sobre um de seus alunos? - Um momento. Antes de me dizer, gostaria de submetê-lo a um pequeno teste. É o teste dos três filtros - respondeu Sócrates. - Três filtros?- Sim. Antes de me contar o que quer que seja sobre meu aluno, quero que você pense um pouco e reflita sobre o que vais me dizer - disse o filósofo. Depois continuou: O primeiro filtro é o da verdade. Estás completamente seguro de que o que vais me dizer é verdade?- Bem... Acabo de saber... - respondeu reticente o amigo- Então, sem saber se é verdade, ainda assim quer me contar? - perguntou e prosseguiu: Vamos ao segundo filtro, que é o da bondade. Quer me contar algo de bom sobre meu aluno?- Não, pelo contrário - falou o outro.- Então, queres me contar algo de ruim sobre ele, mas não sabes se é verdade! - exclamou e foi em frente: Veja! Ainda podes passar no teste, pois resta o terceiro filtro, que é o da utilidade. O que queres me contar vai ser útil para mim?- Acho que não muito...- Então, se o que você quer me contar sobre meu aluno pode não ser verdade, não é bom e pode não ser útil... Por que, então, quer me contar? - terminou magistralmente o filósofo. Sabe-se que as objeções do filósofo grego nunca foram muito levadas a sério pelas pessoas. Nem antes e muito menos agora. A fofoca é não só prato de conversa como até matéria para programas de tevê, colunas de revistas, jornais, blogs, etc. Isso, independentemente do mal que possa causar aos terceiros envolvidos. Veja, caro leitor, coloquei mais esse outro elemento para mostrar como o conjunto de fatos de comunicação social levianos - as fofocas -- misturam-se aos não levianos - por exemplo, os fatos jornalísticos relevantes - e geram uma confusão sobre os direitos envolvidos. Do modo como o sistema de transmissão de informações funciona nos dias de hoje, muitas vezes o leitor, o espectador, o ouvinte, enfim, as pessoas em geral e até os estudiosos das comunicações, da antropologia, da semiótica e de outras ciências não conseguem distinguir o que é um fato verdadeiro de uma fofoca, o que pode ser uma notícia com interesse público de uma informação inócua, o que é violação ou não é violação da vida de alguém. Precisamos de cautela na análise jurídica dessas questões, deixando de lado paixões e opiniões pré-concebidas. O segredo Um dos componentes do direito à intimidade é o segredo. O segredo é também um direito subjetivo. Quem não os tem? Ele está por todos os lados, inclusive, como direito não só da pessoa física como da jurídica e se apresenta de vários modos. Há, claro, o segredo humano, a base de todos os demais, este que cada um dos indivíduos tem, independentemente de origem ou idade: mesmo crianças, que ainda não compreendem bem as relações de comunicação, mantêm segredos. Com efeito, o ser humano guarda segredos desde cedo, numa tenra idade. As crianças e adolescentes têm os seus e, claro, os adultos em profusão. Podem ser inocentes ou terríveis. A revelação de um segredo pode não ter qualquer consequência como pode ser devastadora. O fato é que as pessoas, como regra, os respeitam. Guardar segredo não tem, por exemplo, relação com amor, fidelidade ou confiança. Os filhos podem manter muitos segredos resguardados quanto aos pais e estes em relação àqueles, sem que a relação de amor e confiança entre eles se abale um centímetro. O mesmo pode ser dar na situação amorosa dos casais: manter segredos não implica traições (a não ser, claro, que a traição seja o segredo...). Enfim, é pacífico que as pessoas guardam segredos individualmente ou em duplas, grupos, amigos, parentes etc., como é pacífico que eles devem ser respeitados. Muitos dos segredos individuais são repartidos entre amigos e parentes. Por ser de interesse mútuo ou por não suportar guarda-lo sozinho, a pessoa o divide com alguém de sua confiança (e aqui começa a morar o perigo...). Há também segredos de ordem profissional: o sigilo profissional é, ao mesmo tempo, um direito (do confidente e do profissional - psicólogo, psiquiatra, médico, advogado, padre, etc. ) e uma obrigação, pois o profissional não pode dele abrir mão, mesmo que a pedido do juiz num processo instaurado. Há segredos que são comerciais e industriais e ninguém duvida que eles não podem ser revelados. Eles se traduzem nas fórmulas, práticas, procedimentos e instrumentos de negócios, no design, padrões, etc. São também as informações confidenciais. Esses segredos podem pertencer a pessoa física ou a pessoa jurídica e estão salvaguardados da bisbilhotice alheia, limitados que estão no círculo concêntrico da intimidade. Meu caro leitor, você acredita que a violação de um segredo poderia ser resolvida pelo pagamento de uma indenização? Há um episódio da série da tevê norte americana Seinfeld em que a personagem Elaine resolve fazer consultas com um Rabino e conta para ele alguns segredos, inclusive da vida pessoal e sexual de seu amigo, o personagem George. O episódio termina com George deitado na cama vendo tevê com sua noiva, assistindo a um Programa no qual o Rabino trabalha dando depoimentos. Ele e sua noiva, com os olhos arregalados (ela mais que ele) veem e ouvem o Rabino dizer: "Uma pessoa, digamos, de nome Elaine, disse-me que seu amigo... Vamos chama-lo de George... Ele lhe perguntou se sair com uma prostituta antes do casamento seria traição". Claro que se trata de uma brincadeira numa sitcom, mas serve para vermos o que é sentir-se traído em função de um segredo revelado publicamente. Indenizar o quê? É conhecida uma piada que ajuda também a ilustrar o segredo e as consequências de sua violação. Veja. Um doente está deitado na cama, na verdade, seu leito de morte. Ele está definhando, faltando pouco para morrer. Ao lado dele está sua esposa, de mãos dadas com ele. Ela parece estar rezando. Ele, então, interrompe e diz: - Amor, eu preciso confessar algo. - Chio... Fique quieto, poupe sua energia - diz ela, passando a mão em seu cabelo. - Não, eu não posso partir com esse peso... Eu preciso revelar um segredo... - Não precisa, fique calmo. Ele, num esforço hercúleo, insiste: - Não...Não... Tenho que te falar. Contar o que eu fiz... Ela, segurando sua mão, põe o ouvido do lado de sua boca, para ouvir. Ele diz, com uma voz embargada e arrependida: - Eu traí você várias vezes.. Com sua melhor amiga, Alice e também com nossa vizinha do andar de baixo... Ela, então, colocou a mão suavemente em sua boca, aproximou-se de seu ouvido e disse bem baixinho: - Eu sei, eu sei. Foi por isso que te envenenei. Segredo e sigilo Os termos segredo e sigilo são usados como sinônimos, mas de fato, embora imbricados, têm conotações um pouco diversas. Ambos traduzem aquilo que não pode ser exposto publicamente, aquilo que não pode ser comunicado. Mas, o sigilo indica um dever legal, uma determinação para que o segredo seja mantido e que é conhecido como regra em várias profissões: na advocacia, na psiquiatria e na psicanálise, na medicina e até na confissão que é feita ao religioso (padre, bispo, etc.). O jornalista, por exemplo, deve resguardar o sigilo de fonte quando as circunstâncias o exigirem. Entre nós, está estabelecido o sigilo fiscal e o sigilo bancário. Há também o sigilo das telecomunicações e o sigilo das correspondências, enfim, uma enorme gama de situações de segredos resguardada pelas leis. Na sequência, abordarei algumas delas, mas desde logo anoto que é consensual que esse tipo de sigilo deve ser resguardado, não podendo ninguém violá-los. Aliás, não parece que exista alguém defendendo suas violações. Interesse público e segredo Penso que a chave para a resolução de alguns dos problemas existentes entre biógrafos e biografados é a busca do interesse público. A divulgação de informações deve ter por suporte esse interesse. E mais: existem fatos que devem ser mantidos em segredo, exatamente por causa do interesse público. Há situações que naturalmente nascem bloqueadas. Vejamos alguns exemplos: nas licitações públicas para venda de companhias estatais, deve ser guardado segredo das ofertas dos interessados; nos vários tipos de concursos públicos para ingressos nos cargos estatais ou para ingresso no quadro da Ordem dos Advogados, ou na Magistratura, no Ministério Público e em todas as carreiras públicas em todos os níveis, as questões não podem tornar-se públicas antecipadamente (óbvio!); o mesmo se dá no Enad, nos vestibulares etc.; acaso o ministro da Fazenda e seus subordinados resolvam baixar medidas que afetarão o câmbio ou a bolsa de valores, tais resoluções devem ser guardadas até que possam ser levadas a público; há um longo etc. de situações que devem permanecer em segredo. O fato é que o interesse público exige o segredo, algo que não é contestado. Sigilo profissional O sigilo profissional se impõe a certas pessoas que exercem atividades, que em função de suas especificidades e competências, possibilitam o conhecimento de fatos que envolvem a esfera íntima e privada de outras pessoas (em alguns casos, como dos advogados, esses fatos dizem respeito a pessoas físicas e também jurídicas). Essas informações privadas são, como regra, fornecidas pelo próprio interessado (cliente, paciente, fonte) para que a relação profissional possa ter andamento. Pode se tratar de um cliente acusado de um crime, que deve revelar fatos para seu advogado; pode ser um paciente fazendo suas confissões no consultório do psiquiatra ou alguém confessando seus pecados a um padre; pode ser, também, um cliente recebendo diagnóstico de seu médico ou um jornalista colhendo informações de interesse público de uma fonte não revelada (e que ele promete resguardar) etc. No Brasil, o sigilo profissional nasce no texto constitucional: "É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional" (inciso XIV do art. 5º da Constituição Federal - CF). E é garantido em várias normas relacionadas às profissões específicas. Cito, a título de exemplo, o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que regula o tema nos artigos 25 a 27; refiro também o Código de Ética Médica, que normatiza a questão nos artigos 73 a 79. De maneira mais ampla o Código Civil também regula o sigilo no inciso I do artigo 229, dispondo que "Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo". E, na mesma linha, o Código Penal no seu artigo 154 já dispunha: "Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa". Sigilo bancário O sigilo bancário é decorrente da garantia da inviolabilidade da vida privada e da intimidade tanto das pessoas físicas como das pessoas jurídicas, garantida no art. 5º, inciso X da CF. Ele está ligado a comunicação privada feita pelos clientes com as instituições financeiras. Daí que esse direito ao segredo dos dados existentes na instituição financeira decorre de dois direitos fundamentais: o do direito à vida privada e intimidade e o do dever de sigilo profissional, conforme visto no item anterior, eis que o banqueiro ou administrador está de posse dos dados em função de sua atividade profissional. Além disso, A lei Complementar nº 105 de 10 de janeiro de 2001 estabelece para as instituições financeiras o sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados. Sigilo fiscal O segredo aqui diz respeito às informações fiscais prestadas pelos contribuintes à Fazenda Pública. É sigilo que se impõe também pela garantia de vida privada e intimidade das pessoas físicas e jurídicas (Conf. inciso X do art. 5º da CF). Há, pois, proibição de divulgação dos dados registrados, eis que as informações fornecidas pelo contribuinte ao Estado diretamente ou a seus agentes são de foro íntimo, uma vez que envolvem não só seus dados cadastrais como uma detalhada descrição do patrimônio, suas receitas, seus ganhos e suas perdas, seus investimentos etc. O Código Tributário Nacional, por sua vez, impõe o sigilo: "Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades" E o Código Penal dispõe: "Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: I - permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; II - se utiliza, indevidamente, do acesso restrito". Sigilo de correspondência e das telecomunicações O sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas é direito fundamental, garantido no inciso XII do art. 5º da CF: "É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" Veja-se que o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e de dados não pode ser quebrado nem por ordem judicial para fins de investigação criminal ou instrução processual. A CF abre exceção apenas na decretação do Estado de Sítio (art. 139, III). E o Código Penal estipula: "Art. 151 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa". Sigilo de domicílio, segredos comerciais, industriais, etc. Há ainda uma série de situações protegidas pela legislação constitucional e infraconstitucional, tais como a inviolabilidade do domicílio, os segredos industriais e de comércio, de marca, de projetos, etc., como acima já apresentei. Na Consolidação das Leis do Trabalho, por exemplo, é motivo de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho a violação do segredo da empresa pelo empregado. Enfim, há vários outros sigilos impostos, mas penso que o que já referi é suficiente para demonstrar que não é tudo que pode ser levado a conhecimento do público, independentemente do fato pertencer ao campo do público ou do privado. Além disso, como visto, em algumas situações o interesse público impõe o segredo.
quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A vida privada como produto de consumo - parte I

Não poderia ficar de fora da polêmica das biografias, especialmente porque, de um lado, elas aparecem como produto existente no mercado e também como resultado do sistema amplo e democrático de informar e ser informado e , de outro lado, a polêmica se instaurou exatamente pela existência dessa natureza democrática dos meios. Para facilitar o entendimento do que pretendo demonstrar, começo apresentando parte de minhas conclusões. Depois desenvolverei meu raciocínio. Ei-las: penso que no sistema constitucional brasileiro - independentemente da legislação civil vigente - não há necessidade de autorização para a realização de biografia de pessoa viva que exerça papel público, mas a apresentação dos fatos deve ser as de domínio e interesse públicos. Há sim proteção e interdito constitucional para a divulgação de fatos relativos à vida privada do biografado. Para explicar minha teoria, tenho de apresentar os conceitos de papel social (público e privado), interesse público, vida pública, vida privada e intimidade (que é uma esfera concêntrica dentro da esfera privada). Em outro momento, abordarei a questão das biografias dos mortos e a questão dos herdeiros. Repito e acrescento em itens: A.O biógrafo não precisa de autorização do biografado que esteja vivo, desde que: a.1) os fatos narrados estejam circunscritos à esfera pública de atuação do biografado; e/ou a.2) os fatos narrados estejam circunscritos ao papel público exercido pelo biografado. B. Em consequência do contido na letra "a", o biografado vivo pode: b.1) proibir a divulgação da obra que tenha adentrado nos fatos de sua vida privada (sem autorização); e/ou b.2)pleitear indenização por danos morais; Desse modo, como o leitor pode desde logo perceber, do meu ponto de vista, ambas as partes envolvidas na discussão têm razão em parte. Mas, para manter este espaço de artigos funcionando de forma adequada e para que o leitor possa, de fato, acompanhar meus argumentos, dividi minha exposição em 4 tópicos, a saber: A vida privada com o produto de consumo - primeira parte A vida privada com o produto de consumo - segunda parte A biografia como produto de consumo - primeira parte A biografia como produto de consumo - segunda parte Segue, pois, o tópico 1. A vida privada como produto de consumo - primeira parte "De tanto olhar, nós nos esquecemos de que podemos ser olhados", vaticinou, no século passado, Roland Barthes, falecido em 1980. E, de fato, vivemos uma crise do privado; estamos numa época em que parece que não há mais o segredo, o sagrado, a intimidade; época em que tudo é abertamente mostrado; aliás, parece que tudo deve ser mostrado; vivemos a época do explícito. A vida privada O que é privado em nossos dias?, pergunta Mario Vargas Llosa1 e responde: "Uma das consequências involuntárias da revolução informática foi a volatilização das fronteiras que o separavam do público, confundindo-se ambos num happening em que todos somos ao mesmo tempo espectadores e atores, em que nos exibimos reciprocamente, ostentamos nossa vida privada e nos divertimos observando a alheia, num strip tease generalizado no qual nada ficou a salvo da mórbida curiosidade de um público depravado pela necedade2."3 Meu amigo Outrem Ego diria: "Não todos! Eu não abro mão de minha vida privada". Endosso que também não eu, na medida em que, ao menos entre nós, temos essa garantia outorgada pelo texto constitucional. Não só nossa vida privada mas também nossa intimidade é garantida expressamente (Art. 5º, inciso X da Constituição Federal). Mas, de outro lado, se se trata de um direito subjetivo, de uma prerrogativa, podemos, então, abrir mão dele e daí tem razão o famoso escritor peruano: atualmente, milhões de pessoas abrem as portas de sua casa, de sua vida pessoal em larga medida via Internet para mostrarem seus corpos, seus problemas, suas mazelas, suas alegrias e tristezas, seus relacionamentos amorosos e sua vida sexual etc. para quem quiser ver, ler, falar e ouvir. Daí se pode concluir que, realmente, essa abertura social da imagem pessoal e uso de que os terceiros dela podem fazer não importa violação, pois se trata de autorização. Todavia, o inverso disso é também verdadeiro: como a lei garante a imagem privada e íntima, quem se dispuser a não ceder e dela abrir mão, pode exercer o direito de negação. Pode impedir que todos os terceiros possam dela se utilizar ou mesmo "dar uma olhadinha". O problema, atualmente, está em que o mercado de consumo conseguiu emplacar a ideia de que a vida privada e a intimidade das pessoas foi feita para ser mostrada a todos e o tempo todo. Basta ficar com o exemplo dos reality shows para percebemos o escancaramento ou o das páginas do Facebook. Pior: há uma inversão de valores, de tal modo que aquele que se nega a abrir mão de sua privacidade é que parece que está errado. Veja essa história ocorrida com meu referido amigo Outrem Ego já há cerca de cinco anos. Ele, que é professor universitário, saia de uma aula e descia a rampa do prédio da escola conversando com seus alunos. De repente, surgiu à sua frente - e dentro do campus! - um repórter com um microfone em punho, tendo atrás de si um cinegrafista com uma câmera apontada para a direção dele. Sem pedir licença, o repórter colocou na frente dos lábios de meu amigo um microfone e foi fazendo uma pergunta. Meu amigo, então, gentilmente empurrou o microfone de sua frente e disse; "Não quero dar entrevistas nem ser filmado". O repórter insistiu e foi na direção dele com o microfone, quase o atingindo na boca. Sem alternativa, ele empurrou novamente o microfone e passou adiante. O repórter começou a falar em tom agressivo e perguntou: "Quem é você para não ser filmado?". É isso! Nos dias que correm, parece mesmo uma ofensa não querer responder a perguntas ou ser filmado. As pessoas acreditam que a imagem, sua imagem não lhe pertence; que ela é do coletivo, é de todos. A confusão está instaurada. Agora, acrescente-se a esse molho encorpado mais um tempero: a curiosidade. Ela pode ser observada em muitas espécies animais como algo instintivo, aliás como também o é no ser humano: basta ver como as crianças são curiosas. Mas, quando ultrapassa um certo limite pré-estabelecido socialmente em relação aos terceiros, a curiosidade pode tornar-se incômoda e invasiva. Nessa hipótese, o curioso ganha outros apelidos, tais como xereta, intrometido, bicão, intruso. Em termos filosóficos e científicos, sempre se disse que a curiosidade humana é uma grande impulsionadora das pesquisas, das descobertas, da evolução do pensamento. É boa mesmo. No entanto, o mercado acabou validando os bicões, desenvolvendo uma espécie de voyeurismo, não apenas no sentido original e sexual mas mais amplo: em todo e qualquer modo de observação. Como se sabe, o voyeur é a pessoa que busca prazer sexual através da observação de outras pessoas, que podem estar envolvidas em atos sexuais, vestidas com roupas íntimas ou com qualquer outra peça do vestuário que chame a atenção e atraia o observador ou simplesmente nuas, etc. A prática do voyeurismo manifesta-se de várias formas, embora uma das características-chave seja a de que o indivíduo não interage com o objeto (ou pessoas que, por vezes, não estão cientes de estarem sendo observadas); em vez disso, observa-o a uma relativa distância, talvez escondido, com o auxílio de binóculos, câmeras, o que servirá de estímulo, por exemplo, para a masturbação durante ou após a observação. Na sociedade em que vivemos, vingou um modo, como disse, muito mais amplo de voyeurismo e que, de certo modo, foi retratado com maestria no cinema por Alfred Hitchcock, no filme "Janela indiscreta"4. Vingou, portanto, aquela curiosidade mórbida e que não tem função ou qualidade. É mero olhar por olhar. Ao mesmo tempo e também em parte por causa desse esquema do olhar e porque ele é muitas vezes vulgar, a fofoca acabou tomando corpo no sistema de informações. As pessoas gostam de ver e de fofocar e se elas gostam, por que não transformar esse gostar em projeto? Em objeto de consumo? Porque não possibilitar que as pessoas, como consumidores, olhem e fofoquem à vontade? E ao mesmo tempo tragam dinheiro para as empresas de plantão que se utilizam dessas ferramentas e também aos administradores dos sites, revistas eletrônicas e físicas, programas de tevê, blogs, etc.? Os paparazzi A vida privada como produto é fruto de uma época anterior ao consumismo atual, tendo surgido a partir de divulgação da vida de artistas de hollywood por revistas, jornais populares e depois a tevê. Ganhou grande repercussão com o surgimento dos paparazzi. Com efeito, como se sabe paparazzo (no plural paparazzi) é uma palavra de origem italiana utilizada para designar os repórteres que fotografam pessoas famosas sem autorização, expondo em público as atividades que eles fazem em sua vida privada e/ou íntima. Após conseguir tirar as fotografias os paparazzi as vendem para a imprensa de fofoca e escândalo por valores significativos. Atualmente, esse tipo de foto aparece em praticamente toda a imprensa escrita (revistas e jornais) e televisada. E, com o surgimento da Internet, as fotos vão para sites e a todo o planeta literalmente. Diz-se que foi Fellini quem popularizou os paparazzi no cinema, no seu filme La Dolce Vita de 1960. Nele, o jornalista Marcello Rubini (representado por Marcello Mastroianni) era acompanhado por um fotógrafo chamado Paparazzo (interpretado por Walter Santesso). "Os paparazzi metralham, fuzilam. Eles perseguem, caçam, acossam. É só aparecer a ocasião que eles se tornam crápulas oportunistas. Às vezes decepam suas vítimas com golpes de flashes. Vivem em esconderijos, colocam-se em emboscada e se atiram inesperadamente sobre sua presa. Formam uma matilha que se lança em perseguição de uma caça dourada"5. Realço: o trabalho dos paparazzi é apenas e tão somente tornar público o que é privado. Eles são "aqueles fotógrafos cuja profissão consiste em surpreender vedetes e celebridades na sua intimidade e cuja tarefa visa tornar público o privado, sobretudo quando se supõe que este privado deveria continuar privado"6 Eles não se interessam por imagens públicas. Eles e aqueles que adquirem suas fotos vivem de violações. Criou-se assim um mercado voyuerista: as pessoas tornaram-se consumidoras da vida privada alheia. Esta, reduzida a imagens obtidas ilegalmente e que deveriam permanecer fora do olhar do público, exatamente por serem ilegais, tornaram-se atratativas. Como uma proibição sexual com alta carga libidinosa, a vida privada virou produto de consumo atraente e quase pronográfico (quando não é mesmo pornográfico!).O que era proibido passou a poder ser visto em revistas, jornais e depois na tevê e num clique na web. A janela foi aberta e ficou escancarada! Mas, lembro: a vida privada não acabou! E, pelo menos em nosso sistema constitucional, é ainda garantida contra o olhar e a curiosidade de terceiros intrometidos. O que confunde - a quase todos, inclusive juristas e jornalistas - é essa disponibilidade das pessoas para com sua própria intimidade. Vive-se um momento em que se espia e se é espiado, mas o espiado gosta. Mais: o espiado se mostra, abre as portas de sua casa, seu sorriso, seu corpo, sua intimidade (muitas vezes em momentos muito constragedores). Por isso, algumas pessoas ficam pensando como aquele reporter que tentou entrevistar meu amigo Outrem Ego: "Quem é você para não se mostrar? Quem é você para não ser visto em sua intimidade e em sua vida privada?". Daí a se concluir que ninguém está a salvo dessa invasão é um pulo! Pergunto, então: o que ocorreu, a partir do incremento das comunicações e do consumismo? O modelo de violação tipo paparazzi tornou-se lugar comum. A vida alheia, qualquer que seja ela e especialmente a vida privada alheia de celebridades, políticos, artistas e demais pessoas públicas virou produto de consumo e como tal é oferecido, vendido, comprado, olhado, arquivado, passado e repassado. É um produto de alta rentabilidade e com um público enorme de potenciais consumidores e em todas as classes sociais. A vida privada é um produto como outro qualquer e como tal é pensado e estudado antes de ir ao mercado; é planejado dentro de uma perspectiva de marketing, visando atingir determinado público alvo; é negociado à vista ou à prazo e visa lucro. Aliás, de fato, gera altas receitas e dá grandes lucros. Assim, pergunto mais: se a vida privada é um produto, como de fato é, quem é que pode estar a salvo da invasão? Lembro que a vida das pessoas, uma vez devassada, pode render um preço elevado. Claro que, com o crescimento do mercado, a vida privada tipo paparazzo ganhou uma companheira, que é a vida privada oferecida pela própria pessoa exposta. Nesta, naturalmente, não há violação, mas permanece o produto: vida privada planejada e oferecida pela pessoa dona da imagem sozinha ou cercada de parceiros comerciais. Repito: é um produto bem conhecido e rentável. Por exemplo, fotos de bebês recém-nascidos, filhos de celebridades rendem milhares (e até milhões) de dólares para os felizes papai e mamãe. __________1"A civilização do espetáculo", Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, pág. 140. 2Necedade: extrema ignorância ou estupidez. 3Idem, mesma pág. 4No original: "Rear window", produção de 1954. Posteriormente, em 1984, Brian de Palma fez uma homenagem a Hitchcock e também se inspirou no "Janela indiscreta" para fazer seu filme "Dublê de corpo" (No original: "Body Double"). 5Philippe Marion, "Clichés de paparazzi em campagne", Louvain-la-neuve, outubro de 1997 apud Ignacio Ramonet, A Tirania da Comunicação. Petropolis: Vozes, 5ª. Edição, 2010, pág. 11. Grifos no original. 6Ignacio Romanet, obra citada, pág. 10, grifei.
Trato deste assunto mais uma vez pela importância que ele tem não por sua existência no Brasil, mas porque demonstra os modos de controle que o mercado exerce sobre os consumidores em geral, bem como a dificuldade que existe para a tomada de consciência da possibilidade de libertação das amarras tão bem engendradas pelo capitalismo contemporâneo. Pois bem. Vem aí mais um dia das bruxas. Ao que parece, já é parte do calendário comercial e, o pior de tudo, é que muitas escolas aderiram! Halloween no Brasil? São as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma gorda receita, vendendo bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. É verdade que algumas escolas, não conseguindo fugir do evento, estão começando a fazer atividades didáticas e lúdicas, sem o emporcalhamento de doces e guloseimas oferecidos em grandes quantidades e sem nenhuma função de educação ou saúde. Mas, é pouco, pois, infelizmente, tudo indica que o tal dia das bruxas, famoso nos Estados Unidos, instalou-se entre nós, alegre (ou macabro) e impunemente. Tive oportunidade de mostrar que Ignácio Ramonet, no livro Guerras do Século XXI (Petrópolis: Vozes,2003), diz que o novo sistema de controle dos grandes países poderosos não é mais o de territórios, mas o de mercados. Aliás, são as grandes corporações que controlam as forças internas desses países desenvolvidos pela via do mercado, de modo que elas e esses países visam por esse meio (o do mercado) ao controle dos mercados (e das sociedades) do mundo inteiro. Essa forma de domínio, no final do século XX e início do XXI, passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração. Pensemos a questão do Halloween no Brasil. O que, afinal de contas, as crianças brasileiras têm a ver com essa festa pagã? Nada. Trata-se de uma importação sem qualquer fundamento ou justificativa local. É agora apenas algo que o mercado deseja. Para se ter uma ideia do que está em jogo, nos Estados Unidos, a festa do terror, das bruxas e dos fantasmas já se tornou o segundo maior momento de faturamento do mercado, perdendo apenas para o Natal. Lembro da reclamação de meu amigo Outrem Ego: já há quatro anos no fim de outubro, ele estava na casa de parentes num condomínio fechado do interior de São Paulo, quando bateram à porta crianças fantasiadas de bruxas, caveiras, duendes e o que o valha. A porta foi aberta e eles disseram: "travessuras ou gostosuras". E lá foram os parentes de meu amigo entregar saquinhos que tinham previamente preparado com doces, balas e chocolates. E depois daquelas crianças vieram muitas outras. "Uma grande bobagem", reclamou. Na época, depois dele me contar o episódio, eu, brincando, objetei que também tínhamos a Páscoa e mais ainda o Natal, este que, por muitos anos - e ainda até hoje - faz, por exemplo, com que comamos, em pleno calor tropical, comidas gordas, doces, frutos secos, nozes etc., alimentos típicos de lugares frios, de onde a festa foi importada. "É verdade", disse ele. "Mas, isso se deu em outros tempos. Eu pensava que atualmente nós pudéssemos lutar contra esse tipo de imposição; que poderíamos resistir". "E neste ano", disse meu amigo, "foi pior". "Eu estava, no dia 26 passado, um sábado, coincidentemente na casa do mesmo parente, quando surgiram novamente as crianças. Tocaram a campainha, eu atendi e vieram três meninas com idade entre sete e nove anos pedindo doces. Como eu não tinha, disse-lhes e elas foram embora, não sem antes jogarem papéis picados e uma espécie de serragem que traziam num saquinho sobre meu automóvel. Elas avisaram que fariam travessuras... Mas, sabe o que é pior mesmo: é o fato de que não era dia 31 de outubro, o dia do tal do Halloween. Foi como se aquelas crianças estivessem comemorando o Natal no dia 20 de dezembro. Bem, como a festa não tem sentido, tanto faz né"? Realmente, a conscientização a respeito do controle exercido pelo mercado, algo que vem se esboçando desde fins do século XX, ainda é pequena. O consumidor, considerado como tal - o que ficou bem estabelecido a partir da mensagem enviada ao Congresso Americano em 15-3-1962 pelo então Presidente John Kennedy - pôde começar a se perceber como alvo dos fornecedores em geral e até do próprio Estado produtor. E, assim, aos poucos, passou a reclamar e reivindicar direitos. Passou a poder resistir às tentações e determinações unilaterais. Mas, ainda não consegue fazê-lo em larga escala. Aliás, essa questão do Halloween no Brasil oferece uma boa oportunidade para o exame de como as coisas são feitas. É que estamos ainda no nascedouro de uma imposição mercadológica. No meu tempo de criança ou adolescente (há quarenta anos) seria impensável um dia das bruxas no Brasil. Não sei quando começou. Mas, possivelmente há cerca de dez ou quinze anos, alguma escola de inglês deve ter feito a programação para seguir o ritual norte americano. Depois, no ano seguinte mais um escola e mais outra etc. Com a importação via tevê à cabo e também tevê aberta de cada vez mais enlatados americanos que reproduzem a festa (Basta ficar com o exemplo famoso do grande filme de Steve Spielberg, ET, no qual o evento é retratado), aos poucos, os brasileiros foram se acostumando com a festa, como se ela também fizesse parte de nossa realidade. Daí, mais um ano, e a festa foi feita em escolas; depois em baladas de adultos e, enfim, chegou o momento em que parece que ela tem a ver conosco. Atualmente, nas tevês a cabo, nos canais de programas infantis, são apresentados programas específicos somente sobre a festa. Evidentemente, o mercado, sempre de olho nas oportunidades, deu sua contribuição e eis que temos entre nós crescendo vigorosamente uma festa importada, sem qualquer fundamento cultural e mesmo sem sentido ritualístico. Dá para resistir? No Estado de São Paulo e também na capital, há leis oficializando o dia 31 de outubro como o Dia do Saci, como uma tentativa de se opor ao Dia das Bruxas, uma vez que o Saci é tipicamente Nacional, pertencendo a nosso folclore e tradições. Há também na Câmara Federal projeto de lei para instituir o Dia Nacional do Saci. São, penso, tentativas válidas. Mas, é pouco. A resistência real e que poderia funcionar deve vir do próprio consumidor, especialmente os pais, que podem explicar aos menores o que é a festa e porque não participar dos eventos. As escolas devem fazer o mesmo e, claro, os pais poderiam pressioná-las a não produzirem esse tipo de comemoração. Repito o que disse acima: se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas, nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e a obesidade infantil. O que conseguimos observar, é que cada vez mais nossa cultura (e a sociedade brasileira) vai cedendo espaço àquilo que não nos pertence. Aos poucos e continuamente, vamos preenchendo nossos espaços com tradições de outros povos - como já fizemos e muito -- e que, nesse caso, sequer é algo relevante, pois se trata de uma evidente imposição do mercado oportunista que, como já disse, só pensa em faturar. O processo é lento, mas constante. Aqueles que atuam no mercado são espertos o suficiente para entender um pouco a alma do consumidor e acabam descobrindo a necessidade de preencher os espaços existentes no lar, no convívio doméstico, na relação entre pais e filhos. Daí, na presente hipótese, oferecem, com essa estranha comemoração, mais uma boa desculpa de ocupação desse tempo, que fica, como quase sempre, intermediado pelo dinheiro gasto. É o consumismo enlatado e alienante, esteja ou não de acordo com nossas tradições e nossas leis.
Os consumeristas mais responsáveis têm insistido muito, e com razão, que é preciso modificar os hábitos de consumo. No que diz respeito às crianças, há oportunidades muitos eficazes e que podem, simultaneamente, servir como elemento de educação em sua ampla formulação: pessoal, social, ambiental, etc. Aproveito a data do dia das crianças para fazer uma reflexão e uma indicação. Primeiro, a reflexão. Meu amigo Outrem Ego contou que sua prima, uma professora, andava reclamando de que seu filho, um adolescente de 14 anos,  ganhou um ipad, mas não consegue se interessar pela história do Brasil apresentada nas aulas da escola. E que a irmã dele, com 12 anos, tem um iphone, mas diz que é uma chatice fazer cálculos matemáticos. Além disso, as duas crianças não saem da frente da tela do computador. Gastam a maior parte do tempo livre em jogos eletrônicos. É, de fato, nos dias atuais, como já tive oportunidade de referir, o mercado de consumo é um forte inimigo das relações entre pais e filhos. Mas, como sempre gosto de lembrar, os pais têm também boa parcela de responsabilidade na questão. Não á fácil mesmo lutar contra o mercado e tudo que o cerca, mas com alguma imaginação, pesquisa e criatividade é possível obter bons resultados com coisas simples - e baratas! Uma maneira muito boa de interação é a utilização de jogos, alguns milenares.  Ao invés de deixar o filho por horas a fio e solitariamente na frente da tela, é útil chama-lo a participar de jogos muito conhecidos e interessantes. Os jogos de baralho, por exemplo, são divertidos, clamam por inteligência e cálculos e propiciam experiências de interações pessoais bastante agradáveis.  Dominó, damas, xadrez são outros exemplos que têm a mesma função e qualidade. O jogo de pega-varetas é ótimo para a atenção, o controle e o equilíbrio e integra a família. E sabe o que esses jogos têm também em comum? O preço e a durabilidade. São baratos e duram muito tempo. Não é à toa que o mercado não goste muito deles e nem os estimule. Para não se desprezar totalmente o mercado, anoto que há sim alguns produtos que conseguem cumprir essa função de interação, divertimento e aprendizado. São, por exemplo, os que devem ser jogados em grupo, com propostas de desafios, estratégias, perguntas e respostas, adivinhações, etc. Basta uma pesquisa na web ou nas lojas para encontrar esses produtos, sempre lembrando que é preciso observar a idade para a qual eles foram projetados. Claro que não há qualquer problema em assistir filmes na tevê ou vídeo com os filhos e também brincar com eles na web, mas é preciso realçar que alguns desses jogos básicos e antigos geram um modo de interação muito superior e, como disse, alguns são muito baratos e têm alta durabilidade. Agora, a indicação. O Instituto Alana, que, dentre suas atividades, luta pelos direitos das crianças e dos adolescentes, tem um programa intitulado "Troca de brinquedos". No seu site, o Instituto ensina como montar uma Feira de Troca de Brinquedos, algo que pode ser muito salutar para as crianças, para os adolescentes e também para seus pais. Como diz o Alana, essas Feiras "são uma maneira engajada e divertida de repensar a forma como consumimos, envolvendo adultos e crianças na prática desta reflexão". Como funciona?  Escreve o Alana: "A feira de troca de brinquedos pode acontecer em locais diferentes: um parque, uma escola, um condomínio, uma ONG, uma igreja, uma praça do bairro. O importante é que o lugar escolhido seja amplo e agradável, que permita às crianças não apenas trocar os brinquedos, mas também experimentá-los enquanto brincam durante o evento".  Diz mais: "Ao realizar a feira em um parque ou uma praça, tenha em mente que outras crianças que estiverem ao redor podem querer participar e não terão brinquedos para trocar. Fique atento: talvez seja necessária a mediação de um adulto para que a criança que não levou brinquedos seja sempre bem-vinda. Os outros locais sugeridos têm o ambiente controlado, uma vez que as crianças que ali chegaram foram pelo mesmo motivo: a troca".  Um alerta importante: "As Feiras são realizadas exclusivamente para troca - não devendo haver compra ou venda de produtos. Esses eventos são um exercício de desapego e podem contribuir para a formação de valores menos materialistas em tempos de consumo sem reflexão".  Realmente. Esse tipo de empreitada tem o efeito didático de ajudar a colocar um freio no consumismo, pois ensina para as crianças que se divertir com e a partir de brinquedos não implica necessariamente ir a mais uma loja ou shopping fazer compras. E, penso que uma das questões mais importantes que aparece num mercado de trocas é o enriquecimento das crianças e adolescentes para a vida adulta, repleta de desafios. Um garoto chega com seu carrinho para fazer a troca, porque desistiu dele. Não quer mais com ele brincar. Na feira, depois de olhar as ofertas, decide por um jogo e oferece seu carrinho em troca, mas o outro garoto que está se desfazendo do jogo não gostou do carrinho.  Pode ser que haja necessidade de intervenção de um adulto para que a negociação seja concluída e até que ela se dê numa triangulação com outra criança. Mas, a experiência é válida. Aliás, no site do Alana, há dicas para agir em situações como essa e em outras. Quem estiver interessado em promover uma dessas feiras, pode acessar o site do Alana para descobrir como fazer. Que tal, então, oferecer para os pequenos diversão familiar e barata, ficando próximo deles e/ou também propiciar novas experiências enriquecedoras?
quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O consumidor atordoado e a comunicação social

Meu amigo Outrem Ego tem várias teorias a respeito do funcionamento do mercado em nossa sociedade capitalista. Uma delas diz respeito ao jogo das contradições e paradoxos. "É proposital", diz ele. "Muitos dos mecanismos de comunicação implantados servem apenas para nos confundir e atordoar. Cansados, nós acabamos fazendo o que eles querem. E muitas vezes, o próprio Estado contribui para tanto". Ele dá alguns exemplos. Veja este das pastas de dentes e seus anúncios: a Colgate diz que seu creme dental é "A marca nº 1 em recomendação dos dentistas". A Sensodyne diz que "Nove entre dez dentistas recomendam Sensodyne". A Oral B, por sua vez, para falar de sua pasta de dentes, diz que ela é "A mais usada pelos dentistas". Ou seja, segundos esses fabricantes, os dentistas preferem Colgate, recomendam Sensodyne, mas somente usam Oral B. Daí, com razão, indaga meu amigo: "Afinal, trata-se de publicidade enganosa? Ou será que eles gostam de nos confundir? Ou, então, os dentistas é que são muito atrapalhados?" Realmente. Examinemos, agora, um outro caso, de maior complexidade e que tem consequências mais graves: o das bebidas alcóolicas. A lei Federal 9.294/96, como se sabe, fixou restrições ao uso e à publicidade de produtos fumígeros, bebidas alcóolicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas e em seu art. 4º definiu: "Somente será permitida a propaganda comercial de bebidas alcoólicas nas emissoras de rádio e televisão entre as vinte e uma e as seis horas"1. Essa lei, no entanto, no parágrafo único de seu artigo 1º, definiu que, para seus efeitos, as bebidas alcoólicas são "as bebidas potáveis com teor alcoólico superior a treze graus Gay Lussac". Ora, essa limitação deixou de fora do âmbito da lei muitos vinhos (que têm teor alcóolico abaixo dos 13 graus) e todas as cervejas, cujo teor alcóolico varia, como regra, de 2,5 e 5 graus apenas. E é aqui no caso das cervejas que morava, como mora, o perigo. Desde que eu era menor de idade, nós sabíamos que cerveja era bebida alcóolica. Mas, o que podemos fazer se o legislador diz que não? Claro, vai se dizer que a cerveja não é bebida alcoólica apenas para fins de publicidade na tevê. Sim, sim, bom argumento. Logo, cerveja é e também não é bebida alcóolica... Vejamos agora a lei penal. O art. 63, inciso I da lei das Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688/1941) dispõe: "Art. 63. Servir bebidas alcoólicas: I - a menor de dezoito anos; (...) Pena - prisão simples, de dois meses a um ano, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis". Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - lei 8.069/1990), disciplina matéria relacionada ao tema. No artigo 81, proíbe a venda de bebidas alcóolicas a menores: "Art. 81. É proibida a venda à criança ou ao adolescente de: (...) II - bebidas alcoólicas;" E, no art. 243 tipifica um crime, nesses termos: "Art. 243. Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida: Pena - detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave" Embora não seja o foco deste meu artigo, anoto que, para aqueles que pensam que convivem tranquilamente esses dois diplomas legais nesse ponto, há várias decisões judiciais entendendo que servir bebida alcoólica à menor de idade é contravenção penal, não incidindo na espécie o crime do art. 243 do ECA2, pois "a distinção estabelecida no art. 81 do ECA das categorias 'bebida alcoólica' e `produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica' exclui aquela do objeto material previsto no delito disposto no art. 243 da lei 8.069 /90"3. E mesmo deixando de lado a questão estritamente jurídica, há de se convir que, para que uma bebida alcoólica possa causar dependência física ou psíquica, não basta tomar uma lata de cerveja ou um copo de vinho. A maior parte das pessoas convivem socialmente e muito bem com esse tipo de bebida sem se tornar "dependente". Mas, voltemos ao ponto que aqui me interessa: o da publicidade. A Ambev lançou o movimento + ID: uma campanha publicitária para estimular que os vendedores de bebidas alcoólicas peçam o documento de identidade para os consumidores. O ícone está presente em várias peças e ações do "Programa Ambev de Consumo Responsável". Como diz a empresa: "Lembrar que bebida alcoólica não é para menor de idade. Esta é a função do Movimento +ID". É importante notar que se trata de publicidade de cerveja. Aliás, a publicidade ao mesmo tempo fala da cerveja e da limitação, não deixando de fazer o anúncio da cerveja. As imagens são bonitas, as pessoas idem (aliás, jovens de bem com a vida, divertindo-se como sempre) e chega um rapaz pedindo uma cerveja, momento em que o atendente pede o documento de identidade. Naturalmente, ninguém pode ser contra uma campanha que esclareça o que diz a lei... Quero dizer, junto com meu amigo Outrem Ego, mas o que diz mesmo a lei? Se a própria Ambev reconhece que cerveja é bebida alcoólica, então, deveria deixar de fazer anúncios entre as 21 horas e as 6 horas da manhã. Ou não? Esse tipo de "campanha" de engajamento tráz várias vantagens de imagem para as empresas. De um lado, dão um ar de respeito e interesse social por parte delas. De outro - como nesse caso do movimento +ID - ajudam a promover os produtos. Belas imagens que devem fazer os garotos de 17 anos ficarem torcendo para chegarem logo aos 18... Como perguntou meu amigo O. Ego: "Não seria muito mais producente e de interesse social simplesmente não fazer mais publicidade de cerveja no horário em que a maioria dos menores e adolescentes assiste à tevê?". Realmente. Ou como diz a psicóloga Ilana Pinsky "qualquer pessoa que já tenha assistido a alguma propaganda de álcool na televisão brasileira, verifica a agressiva utilização da sexualidade nas propagandas, especialmente no caso da cerveja. Também é fácil verificar que os (muito) jovens são certamente alvos das propagandas, com temas evidentemente voltados a eles (ex: desenhos animados, festas rave, etc.). Além disso, as indústrias têm desenvolvido produtos voltados a essa faixa etária (os produtos "ice", destilados misturados com refrigerantes ou sucos), e oferecido patrocínio a festas exclusivamente desse público-alvo (ex.: Skol Beats). Mas tão importante como as estratégias descritas acima, é a utilização do Brasil e de símbolos nacionais para a venda de álcool. Um exemplo bem recente e evidente dessa técnica ocorreu durante [a realização] Copa Mundial de Futebol, com a criação de uma tartaruga de desenho animado associada a uma marca de cerveja que foi denominada a "torcedora símbolo da seleção brasileira". Algumas marcas de cachaça também têm se utilizado de características fortemente brasileiras, como o samba, para vender seus produtos4". Realmente. E, a propósito. Se a indústria cervejeira quisesse mesmo proteger os jovens de suas bebidas alcoólicas não contrataria seus ídolos para promovê-las, tais como Ronaldo (Brahma), Romário (Kaiser), Junior (Antártica), Cafu (Brahma), Gerson (Vila Rica). Nem fariam propagandas sexistas utilizando mulheres como objeto na maior parte dos comerciais, o que, além de tudo, colabora para a manutenção do preconceito machista reinante na sociedade (o que também comprova, como eu já disse mais de uma vez, a falta de imaginação dos realizadores). Engana-me que eu gosto! Nem entrarei neste artigo na questão do álcool e direção de veículos. Certamente, para os bafômetros cerveja é sim bebida alcoólica. Então, se todo mundo sabe que para ser bebida alcoólica, basta ter algum teor alcoólico, como pode uma lei dizer que não? Daí, se pode concluir que, segundo os fabricantes de cerveja, sua bebida é alcoólica. Porém, para a lei Federal não é. Os fabricantes querem proteger os menores, mas fazem anúncios publicitários massivos nos horários em que os menores assistem tevê. Assim, indago, parafraseando meu amigo Outrem Ego: "Afinal, trata-se de publicidade enganosa? Ou será que eles gostam de nos confundir? Ou, então, os fabricantes de cervejas e os legisladores é que são muito atrapalhados?".__________ 1Referida norma decorre dos termos do § 4º do art. 220 da Constituição Federal (CF), combinado com o § 3º, inciso II do mesmo dispositivo. Transcrevo-os a seguir: "Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (...) § 3º - Compete à lei federal: (...) II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. § 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso". 2Ementa: Apelação Criminal. Condenação. Fornecimento de bebida alcoólica a menor (Art. 243, ECA ).(...) De ofício. Desclassificação do tipo penal. Artigo 63, I, da Lei das Contravencões Penais. Precedentes. Nulidade de sentença. Remessa dos autos ao Juizado Especial. 2. A jurisprudência é pacífica no sentido de que a contravenção penal tipificada no artigo 63 , inciso I , do Decreto-Lei nº 3.688 /41, afasta a incidência da especialidade do Estatuto da Criança e do Adolescente , no que diz respeito ao crime do artigo 243 . Isto porque, diante de um simples cotejo entre os citados artigos, e ainda do artigo 81 , inciso II , do ECA , nota-se que o Estatuto prevê distintas nomenclaturas para o que se poderia entender por bebida. Naquele (artigo 243), a previsão é a de que produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ao passo que neste (artigo 81), a proibição de venda recai sobre bebidas alcoólicas. 3. A analogia in malan partem não é admitida pelo Direito Penal, restando impossível que se dê sentido ao crime do artigo 243 , do ECA , em análise ao artigo 81, II, do mesmo diploma legal. É por tal motivo e porque a contravenção penal mostra-se mais específica, que a desclassificação é medida que se impõe. (...). Recurso não conhecido, sentença anulada de ofício e determinação de remessa dos autos ao Juizado Especial.... (TJ-PR - 8589368 PR 858936-8 (Acórdão) Data de publicação: 29/3/2012). No mesmo sentido há várias decisões do mesmo Tribunal de Justiça e de Tribunais de outros Estados. 3Conf. Acórdão TJ/PR - Apelação Crime ACR 7043632 PR 0704363-2 - Data de publicação: 24/02/2011 .4In: artigo escrito em 14/4/2013; consultado em 30/9/2013.
Não é a primeira vez que trato do tema nesta coluna, mas, como os fatos se repetem, eu também me vejo obrigado a voltar a cuidar dos direitos dos consumidores nesse período de greve dos funcionários dos correios e dos empregados dos bancos. Evidentemente, todo dano causado aos usuários é de responsabilidade primeira da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor: ela responde pelos vícios ou defeitos de seus serviços, o que inclui, naturalmente, a ausência destes. E não há necessidade de que seja apurada sua culpa, eis que a sua responsabilidade é objetiva e decorre da exploração da atividade empresarial desenvolvida e seu risco. O empreendedor público, privado ou de atividade privatizada explora o mercado de consumo e a própria exploração da atividade gera risco social, independentemente de sua vontade. É lógico que, por exemplo, quando uma correspondência entregue pelo consumidor aos serviços do correio não chega a seu destino no prazo ou simplesmente se extravia, essa falha não se dá por interesse da empresa. Ela não decorre da vontade dos administradores da ECT, mas da atividade em si, eis que falhas sempre existirão no sistema de leitura ótica, na incorreta observação do pessoal que faz seleção dos envelopes e pacotes, no transporte etc. Portanto, o dano existirá, apesar da vontade em sentido contrário dos administradores e funcionários. A lei sabe disso. Ela sabe que, apesar do esforço do prestador do serviço, em algum momento, por evento imprevisto, o serviço falhará, causando danos ao consumidor. Naturalmente, a responsabilidade é a mesma na sua ausência, como a que ocorre no período de greve e que persistirá mesmo após seu fim por mais algum tempo até que o serviço se normalize. Por isso tudo, a lei estabeleceu a responsabilidade objetiva. Basta a constatação do serviço contratado e seu defeito para que possa ser pedida indenização. De fato, a ausência de um serviço como o dos correios sempre gera danos em larga escala, atingindo fornecedores e consumidores. Para o funcionamento dos serviços massificados, como os de telefonia, tevês a cabo, cartões de crédito, empréstimos bancários, etc. é fundamental o serviço dos correios. Isto porque, é através dele que a maior parte dos milhões de faturas é entregue mensalmente para pagamento. Entretanto, o não recebimento de uma fatura não retira a responsabilidade do consumidor em pagá-la no prazo se o credor manda as faturas pelo correio mas, simultaneamente, coloca à disposição do consumidor outro modo de quitar o débito. Cabe ao fornecedor entregar as faturas antes da data do vencimento. Todavia, com a paralisação dos serviços do correio, a entrega fica prejudicada. O fornecedor, então, tem que oferecer uma alternativa de pagamento ao consumidor. As segundas vias devem ser oferecidas via fax, e-mail, acesso ao site, por ligação telefônica, etc. Se essas segundas opções são oferecidas, cabe ao consumidor utilizá-las para o pagamento da dívida. Aliás, é bom também lembrar que mesmo quando os serviços dos correios não estão paralisados, isso não impede que alguma correspondência não seja entregue. Logo, até fora desse período crítico, pode acontecer de o consumidor não receber fatura para pagamento dentro do prazo ou simplesmente não recebê-la. Mas, de outro lado, se o consumidor não recebe a fatura para pagamento nem tem à sua disposição outro meio para fazê-lo, não se pode imputar a ele a responsabilidade pela quitação da dívida no prazo. Não tem sentido culpá-lo pelo que ele não fez. É risco do fornecedor entregar a fatura com tempo suficiente para pagamento, risco esse que não pode ser repassado ao consumidor. Todavia, como sempre digo, não é fácil para o consumidor, nessa questão, se proteger. Para eventualmente tentar não ser responsabilizado, o consumidor tem que provar que não recebeu a fatura, o que é muito difícil de fazer quando ela não é entregue. Dá para fazer a prova, por exemplo, se o consumidor avisou por escrito seu novo endereço para recebimento da fatura e ela foi enviada ao antigo ou quando o próprio correio coloca carimbo de entrega atrasada (Nesse caso, é a ECT quem deve ser responsabilizada pelo atraso). No entanto, afora esses tipos de exceções, o consumidor acaba sendo responsabilizado pelo atraso. Por isso, é que se aconselha que o consumidor mantenha uma agenda com datas dos vencimentos de suas faturas regulares. Se, até a véspera do vencimento, ainda não recebeu alguma, então, ele pode e deve entrar em contato com o credor, solicitando segunda via. Essa é uma regra geral para o dia a dia de todos os consumidores que, evidentemente, nesse período de greve, deve ser imediatamente seguida. (Anoto que, para aquele que não faz esse tipo de controle, a saída é pegar as contas do mês anterior, ver as datas dos vencimentos e checar o prazo que existe para pagá-las). Atualmente, todos os grandes fornecedores mantêm Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) e/ou sites, nos quais é possível obter uma segunda via da fatura. Se o credor não tiver esse tipo de serviço, como já disse acima, ele é obrigado a dar outra alternativa para pagamento, como, por exemplo, envio do boleto via fax ou apresentação de dados bancários para depósito em conta (número de conta corrente, banco e agência, número do CNPJ - se for pessoa jurídica - ou CPF - se for pessoa física). Repito: se o credor não der alternativa, o consumidor não pode ser responsabilizado pelo atraso. Para piorar o quadro, está em curso outra greve, esta no sistema bancário. Apesar das opções que, no caso, os consumidores têm - mas não todos - de pagamentos via web e casas lotéricas, valem as mesmas regras de proteção ao consumidor que acima transcrevi. O que se espera, é que os fornecedores não cobrem multas daqueles que, eventualmente, pagarem suas faturas fora do vencimento no período de greve, pois não se pode responsabilizar o consumidor que pretende pagar suas dívidas se ele não tem como fazê-lo.
Algumas semanas atrás, em meio às manifestações de rua que reivindicavam um país melhor, a palavra "alvissareiro" podia ser vista pipocando aqui e ali. O termo "alvissareiro" tem origem na junção da palavra "alvíssara" com o sufixo "-eiró". Como adjetivo, refere-se à qualidade ou condição do que é promissor, do que promete ou dá esperanças, boas notícias, etc. Como se sabe, como adjetivo, ela anuncia boas novas, o que é auspicioso, promissor. Enfim, é algo que promete um futuro melhor. Enche-nos de esperança. Bem. Na semana passada, a palavra me surgiu à mente de novo. É que li que as Medidas Provisórias só poderão tratar do seu assunto principal e não mais de temas acessórios, cumprindo, na verdade, a legislação já vigente (LC 95). Os líderes partidários e o presidente da Câmara, deputado Henrique Eduardo Alves, decidiram no dia 10 p. p. que a Medida Provisória só poderá tratar do seu assunto principal e não mais de temas acessórios. Eu já tive oportunidade de tratar dessa questão, que deveria simplesmente nem existir, pois a lei é clara a respeito. Lembremos os pontos principais, com exemplos do direito do consumidor. Com efeito, "acostumou-se" por aqui a produzir leis com um objetivo expresso e declarado e, aproveitando a oportunidade, colocar em vigor normas cuidando de assunto diverso (e muito diverso!). Em matéria de direito do consumidor, tal conduta já foi adotada mais de uma vez. A doutrina e também algumas decisões judiciais têm deixado claro que a prática é inconstitucional por violação à LC 95 de 26/2/1998. Sem entrar na discussão sobre a existência ou não de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, eis que não interessa especificamente para a solução do problema nem a modifica, fico apenas com uma das posições possíveis que é a de que, a partir de 5 de outubro de 1988, quando entrou em vigor a nova Carta Constitucional, não há mais que se falar em hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, isto é, a lei complementar não determina as condições de validade da lei ordinária. No entanto, apesar de não ser condicionante em função do conteúdo, ao menos uma lei complementar, a citada LC 95, exerce controle no modo de produção das demais leis, por se tratar de norma geral dirigida ao próprio legislador. O texto constitucional dá mais, digamos assim, "peso" normativo à lei complementar, reservando para ela temas legislativos de relevo. As leis complementares têm como função tratar de certas matérias que a Constituição Federal entende devam ser reguladas por normas, cuja aprovação exija controle mais rígido dos parlamentares. Por isso, o quorum legislativo exigido para sua aprovação é especial; é o da maioria absoluta (CF, art. 69: "As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta"). E as matérias para as quais é feita essa exigência de votação aparecem taxativamente no texto constitucional. Por exemplo, o art. 93, que trata do Estatuto da Magistratura; o art. 131, que disciplina a Advocacia Geral da União; o art. 192, que cuida do sistema financeiro nacional, etc. Portanto, o que diferencia a lei complementar da ordinária é a matéria específica e o quorum qualificado de aprovação para as leis complementares e não exatamente uma posição hierárquica. Remanesce, também, uma dúvida, às vezes apontada pela doutrina, em relação ao tema da hierarquia, por conta da existência de uma específica LC, a suso apontada de 95, que dispõe sobre a elaboração e consolidação das leis. E, em função do conteúdo dessa norma, argumenta-se que ela teria que ser hierarquicamente superior às leis ordinárias, para que estas a pudessem obedecer. Penso que esse argumento é inconsistente. Em primeiro lugar, se isso fosse verdade, ao menos um tipo de norma não precisaria obedecê-la: exatamente as demais leis complementares, que estão no mesmo patamar, mas não é isso que se espera, conforme veremos. Em segundo lugar, não é o conteúdo da norma que define sua hierarquia, mas sua posição jurídico-política aceita historicamente pelos operadores do direito e em geral por toda a sociedade. A citada LC 95 é norma de organização. Diz como o próprio legislador deve produzir um texto de lei, separando-o por capítulos, artigos, parágrafos etc. De fato, haverá conflitos - como há - entre essa norma complementar e outras normas do sistema, na medida em que o legislador não a siga à risca. No entanto, a solução do conflito, se puder ser dada, não se fará pela via da hierarquia, mas sim pela da solução interpretativa sistêmica. O intérprete terá de verificar se o sistema, dando qualificação especial de conteúdo à lei complementar, traz solução capaz de adequar os dois tipos de norma. Não se trata, portanto, de um problema de hierarquia, mas de diálogo. É caso do já conhecido diálogo das fontes, tema bastante atual e necessário ao exame dos novos modelos jurídicos vigentes no mundo contemporâneo, como ensina com muita precisão em suas obras a Profª. Cláudia Lima Marques. Ora, a lei complementar 95 é verdadeira lei geral de elaboração e consolidação das leis. Veja o que diz seu art. 1º e parágrafo único: "Art. 1º - A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta lei complementar. Parágrafo único. As disposições desta lei complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo". E uma das importantes funções e, talvez, a principal, é aquela estabelecida no art. 7º. Extrai-se da teleologia desse artigo o claro intuito de impedir uma prática escusa que consiste em se aprovar uma lei, cuidando de determinado assunto e, "escondido" entre seus artigos, colocar-se outro tema totalmente desconectado do objeto da norma editada. O texto do art. 7º é preciso nesse sentido: "Art. 7º - O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa". Antes de prosseguir, chamo atenção para o fato de que, como acima pode ser lido, é o art. 1º de qualquer lei que indica seu objeto e seu âmbito de aplicação. É importante atentar para esse ponto. Vejamos em exemplo na área do direito do consumidor: o caso da Medida Provisória 1.963-17, de 30 de março de 2000, sucessivamente reeditada até a Medida Provisória 2.170-36 de 23 de agosto de 2001. Ela, de forma mascarada, acabou por permitir a capitalização de juros, o que, como se sabe, com o alto índice percentual praticado, é um desastre para todos aqueles que tomam dinheiro emprestado. Vejam o que diz o art. 1º dessa MP: "Art. 1º - Os recursos financeiros de todas as fontes de receitas da União e de suas autarquias e fundações públicas, inclusive fundos por elas administrados, serão depositados e movimentados exclusivamente por intermédio dos mecanismos da conta única do Tesouro Nacional, na forma regulamentada pelo Poder Executivo". Mas, eis que, de repente, no art. 5º "caput" constou: "Art. 5º -  Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano" Esse modo de criação legislativa ao que se diz, visa, se não enganar os destinatários, ao menos ocultar da população e retirar do debate aberto questões de relevo. Na verdade, esse tipo de produção legislativa põe à mostra o poder de pressão dos grupos de interesse que atuam nos bastidores do sistema. Deu-se o mesmo com a Medida Provisória 1.925/99, que foi convertida na lei 10.931/2004. Esta institui o "regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação" (art. 1º). Essa lei, com esse objeto, também de forma sub-reptícia, nos arts. 26 e s., criou a cédula de crédito bancário, um título de crédito a ser utilizado por instituições financeiras em operações de crédito, ou seja, um novo objeto diferente daquele instituído por ela. É verdade que o art. 18 da LC 95 diz que "eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento". Mas, claro, essa não é a hipótese das normas apresentadas. Entende-se por inexatidão formal mero erro que seja incapaz de desnaturar a norma, como, por exemplo, um parágrafo estar numerado erradamente ou artigos com números repetidos, etc. A notícia que citei no início deste artigo é mesmo, portanto, alvissareira. Há que se acabar com essas normas feitas de contrabando. Aliás, cumprindo regra fixada paradoxalmente pelo próprio Poder Legislativo num momento de alta sabedoria (Ao editar a LC 95!). Dizem que o Brasil é o país do futuro. Os pessimistas analisam a frase dizendo que acreditar nela é manter o país estagnado, pois como o futuro não existe, fica-se apenas esperando ele chegar sem nada fazer. Os otimistas, de outro lado, dizem que ela impulsiona a imaginação, ajudando o país a ir para a frente em busca de algo melhor. Os sinais apontam às vezes numa direção, às vezes n'outra. Neste momento, vivemos tempos alvissareiros (ou não?). O futuro dirá!
quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O direito de sonhar

Ontem o Código de Defesa do Consumidor fez 23 anos de existência, editado em 11/9/1990. Foi uma luta aprová-lo, mas ele acabou surgindo, tardiamente, mas veio. Nasceu no século XX, muitos anos atrasado. Para ser ter um ideia do tempo, nos Estados Unidos - o país que lidera o capitalismo contemporâneo - a proteção ao consumidor havia começado em 1890 com a lei Sherman, que é a lei antitruste americana. Isto é, exatamente um século antes do nosso CDC, numa sociedade que se construía como sociedade capitalista de massa, surgia uma lei de proteção ao consumidor. É verdade que, mesmo lá, a consciência social e cultural da defesa do consumidor ganhou fôlego maior a partir dos anos 1960, especialmente com o surgimento das associações dos consumidores com Ralf Nader. Ou seja, o verdadeiro movimento consumerista (como se costuma chamar) começou para valer na segunda metade do século XX. Mas é importante atentarmos para essa preocupação existente já no século XIX com a questão do mercado de consumo, no país mais poderoso do mundo. Por outro lado, como se sabe, nossa lei consumerista, apesar de tardia - e em parte por causa disso - acabou incorporando várias normas modernas protecionistas e isso gerou resultados altamente positivos a favor dos consumidores e do próprio mercado produtor. O CDC foi um sonho que se realizou e que dá frutos diariamente. Ele gerou mais igualdade, trouxe harmonia às relações jurídicas, fez com que o resultado das transações fosse mais honesto, enfim, é um marco da evolução jurídica no país. Naturalmente, falta muito, até por que uma única lei não poderia resolver todas as mazelas sociais perpetradas pelo capitalismo da última geração globalizada e dominada por empresários com monstruoso poder de fogo. Mas, os consumeristas sonham ainda mais e lutam para implementar os objetivos de conseguir obter um sociedade mais humana e justa. Pensando no tema, lembrei do texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano sobre o direito de sonhar, que ele intitula mais poeticamente de direito ao delírio. Trata-se de um maravilhoso texto extraído de um de seus livros. Não fala só de capitalismo, mas como este, de algum modo, está no centro de quase tudo, eu o transcrevo abaixo para nosso deleite. Vale a pena lê-lo. Quem quiser assistir ao próprio escritor declamando a poesia, pode acessar: clique aqui. (É muito bonito!) Eis: O direito ao delírio1 Por Eduardo Galeano Que tal se delirarmos por um tempinho? Que tal se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia para imaginar outro mundo possível?O ar estará limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das humanas paixões.Nas ruas os automóveis serão esmagados pelos cães. As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelos supermercados, nem serão também assistidas pelo televisor.O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas.Será incorporado aos códigos penais o delito de estupidez, que cometem os que vivem para ter ou para ganhar, em vez de viver por viver e só. Assim como canta o pássaro, sem saber que canta, e como brinca a criança, sem saber que brinca.Em nenhum país irão presos os rapazes que se neguem a cumprir o serviço militar, mas os que queiram cumpri-lo.Ninguém viverá para trabalhar, mas todos nós trabalharemos para viver. Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo; nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas.Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram que as fervam vivas.Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos. Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas. A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude e ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo. A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento nem por fortuna se converterá o canalha em um virtuoso cavalheiro. A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio.Porque a comida e a comunicação são direitos humanos.Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.A educação não será o privilégio daqueles que possam pagá-la, e a polícia não será a maldição de quem não pode comprá-la.A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, bem grudadinhas, costas contra costas.Na Argentina, as loucas da "Praça de Maio" serão um exemplo de saúde mental,porque elas se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória. A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das Tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará festejar o corpo. A Igreja também proclamará outro mandamento que Deus havia esquecido: "Amarás a natureza da qual fazes parte". Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma. Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de muito, muito esperar e eles se perderam de muito, muito procurar. Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido quando tenham nascido e tenham vivido onde tenham vivido, sem que importe nenhum pouquinho as fronteiras do mapa nem do tempo. Seremos imperfeitos porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégio dos deuses.Mas neste mundo, neste mundo desajeitado e fodido, seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última. __________ 1É trecho do livro "Patas Arriba": Buenos Aires, dezembro de 1998, ps. 222/224. O trecho do livro traduzido para o português pode ser encontrado na web. Este eu extraí do vídeo citado acima.
Estou espantado - ou melhor, continuo espantado - com o desconhecimento de muitos consumidores sobre as propriedades e funções dos produtos alimentícios, a despeito de todas as informações que são lançadas via imprensa escrita, falada, nos portais da internet, etc. Enquanto isso, as pessoas continuam engordando mal (não há qualquer  problema em estar acima do peso esperado para a idade, estatura, gênero, desde que se tenha saúde) com sérios problemas para sua qualidade de vida. E, por outro lado, é também sabido que é possível alimentar-se bem e com prazer sem qualquer prejuízo à saúde. Muito bem. Na semana passada foi publicada uma pesquisa que mostrou que, em 2012, 51% da população brasileira estava acima do peso1. Os dados apresentados demonstram que a taxa de sobrepeso vem crescendo constantemente, ano a ano. Em 2006, o percentual dos mais gordos era de 43%. Já em 2011 passou a 48,5% e chegou à maioria agora em 2012. A pesquisa mostrou mais ou menos o óbvio: que a dieta alimentar inadequada é a causa principal do  problema. Constatou-se o consumo exagerado de gorduras e refrigerantes. Em  função da publicação da pesquisa, o Ministério da Saúde anunciou que tem projetos para combater os maus hábitos,  construindo polos com academias para incentivar a prática de exercícios e um programa de orientação nutricional para alunos da rede pública, além de acordos com a indústria para reduzir o teor de sódio nos alimentos. São ações bem-vindas, mas ainda é pouco. E falta conscientização dos consumidores, pois  pelo que se pode constatar, nesse assunto dos maus hábitos alimentares,  um dos grandes vilões é o próprio consumidor. O mercado está repleto de produtos alimentícios que "não alimentam" de verdade e engordam brutalmente, de anúncios publicitários que incitam a aquisição desses produtos e, infelizmente, milhões de consumidores estão acostumados a ingeri-los e até defendem  esse tipo de consumo. A pesquisa está centrada na população adulta, mas é sabido de todos que o problema do sobrepeso e também da obesidade começa bem mais cedo, na infância. Aliás, já mostrei aqui nesta coluna que a obesidade infantil é uma epidemia mundial2. Há, contudo, boas notícias. Na mesma semana passada, foi aprovado no Senado Federal o projeto apresentado pelo senador Paulo Paim (406 de 2005) que proíbe a venda em escolas públicas e privadas de bebidas com baixo valor nutricional, como o refrigerante, e de alimentos com alto teor de gordura e sódio, como os salgados. O projeto segue agora para a Câmara dos deputados. Esse tema dos alimentos de baixo teor nutritivo e repleto de ingredientes  que fazem mal ao organismo,  como sódio, açúcares, gorduras, conservantes, etc. deveria ser tranquilamente conhecido de todos os consumidores. Seu consumo excessivo deveria ser, realmente, evitado como algo óbvio. Mas, não é. Basta um único exemplo: o do incrível consumo de refrigerantes. São muitas as matérias científicas e jornalísticas que mostram os malefícios da ingestão desse tipo de bebida. E pelo que se pode ver, o correto é simplesmente deixar de tomá-la, pois ela somente faz mal. Como disse o pediatra e nutrólogo Fábio Ancona Lopes "Não há uma indicação de quantidade recomendada, simplesmente, porque ela não deve fazer parte do cardápio nem da rotina das crianças. Quanto menos ingerir, melhor"3. Um dos problemas  ligados aos produtos alimentícios a serem evitados é o da publicidade. Cito também e apenas um exemplo atual: o de um anúncio coca-cola que está sendo impugnado pelo site de abaixo-assinados change.org4. Diz a petição: "Pedimos a remoção imediata da campanha publicitária 'Energia Positiva' que está sendo veiculada pela Coca-Cola no Brasil em comerciais de televisão, cinema, outdoors, pontos de venda e plataforma online. Esta campanha foi proibida por órgãos do México e do Reino Unido por ser considerada enganosa e trazer riscos à saúde. A campanha transmite informações erradas aos consumidores, pois promove o consumo maior de calorias para ser gasto com diferentes atividades físicas, e ainda não deixa claro que esse produto contém sódio e outros aditivos químicos que podem acarretar em problemas de saúde. Este tipo de publicidade contribui para agravar a epidemia atual de sobrepeso e obesidade que a população brasileira está sofrendo"5. O outro é o do costume que já está incorporado ao cotidiano de hábitos alimentares. Se para os adultos é difícil largar o vício, para as crianças é pior ainda. Não é simples bolar estratégias para evitar esse tipo de consumo com os atrativos do mercado. Como mostrou a matéria publicada pela jornalista Sheila Fernandes, proibir a bebida talvez não seja a maneira mais eficaz de brecar o consumo exagerado. O hábito de beber refrigerante está enraizado na educação nutricional do dia a dia. A conscientização dos  pais é um caminho inicial a seguir: "As crianças aprendem por imitação. Elas gravam tudo e gostam de se comportar como os pais, ou seja, se os adultos consomem muito refrigerante, é bem provável que a criança também venha a consumir, por isso a educação nutricional desde cedo é importante", afirma Maria Edna de Melo, endocrinologista e diretora da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica)6. E ainda outro problema é o da influência do meio circundante: amigos, escolas, festas etc.. Nas festas infantis,  há uma enorme oferta de produtos da pior qualidade nutricional, como frituras, salgadinhos, doces, bolos, balas, refrigerantes e sucos adoçados etc.. É como se os pais entregassem seus filhos para experiências nutricionais sinistras. Os amigos, por sua vez, podem ajudar no exemplo de má nutrição, na medida em que os pais não têm como controlar os demais pais. Por isso é que a proibição de vendas de guloseimas e demais porcarias na cantinas das escolas está por demais atrasada. Alguns Estados brasileiros  têm legislação sobre o assunto, mas há que  se implantar a medida urgentemente em todo o país. Uma outra boa notícia: algumas escolas já adotam a oferta de produtos de alto valor nutritivo e baixam regras para evitar que seus alunos ingiram porcarias. Proíbem, por exemplo, que os pais enviem para o lanche doces, salgadinhos, refrigerantes etc. No entanto, você leitor, sabe o que muitas vezes acontece nessas escolas? Os pais reclamam! Isso, os pais podem ser um entrave para que os filhos se alimentem bem. Eu li, recentemente, na internet o relato de uma mãe protestando contra uma escola, porque esta estava proibindo que ela - mãe - mandasse guloseimas açucaradas e gorduras vazias na lancheira de seu filho. Ela, que se dizia  indignada, afirmou: "Quem manda no lanche do meu filho, sou eu". E justificou sua opinião com o argumento de que se tratava de um direito individual e que a proibição seria invasão de privacidade. Certamente, ela se esqueceu de que uma escola não é um lugar privado, mas público e que seu filho tem, diariamente, relação com seus demais colegas e amigos de sala e de toda a escola. Fiquei a pensar, o que ela diria - se não gostasse que se filho ingerisse porcarias - se o filho chegasse em casa com a boca repleta de chicletes que havia ganho dos amiguinhos ou se negasse a jantar porque estava empanturrado dos salgadinhos e refrigerantes que havia recebido de seu melhor amigo. Lembre-se que, como eu disse, se a escola é pública, o ambiente do lanche é o local de maior contato e divisão entre os alunos.  É lá que eles conversam, fofocam, disputam, trocam, ficam à vontade, enfim, se divertem. A proibição de venda de porcarias em cantinas é algo a favor da saúde das crianças e adolescentes. Serviria de exemplo, as educaria e também educaria e ajudaria aos pais, que ainda estão perdidos nesse assunto. Sei que há atualmente um problema invertido: o daqueles pais conscientes em relação à questão alimentar e dos menores submetidos  a  dietas  corretas por decisão dos pais ou intervenção médica. Como mostrei no meu artigo anterior sobre o assunto, o depoimento da Endocrinologista Pediátrica Dra. Soraya Cristina Sant'Ana,  me parece suficiente para esclarecer alguns dos pontos principais da questão. Diz ela: "Minhas crianças vivem esta batalha diariamente, pois muitas realizam consultas periódicas por obesidade, diabetes, colesterol ou triglicérides elevados. E não há nada mais frustrante do que nos depararmos com piora da obesidade e dos exames, após o empenho de toda família pela melhora da saúde da criança; e depois de uma conversa minuciosa, descobrirmos que apesar de todo esforço da família, a criança não melhorou porque continuou comendo guloseimas, escondido na escola. Ou então ouvir o choro de um garoto de 9 anos que chega a ser torturado com as guloseimas que seus amigos compram na cantina, ele conta que os outros meninos sabem que ele não pode comer guloseimas, então, de propósito eles compram e ficam passando os doces em seu nariz, para provocá-lo. Então, eu sei sim o quanto esta batalha contra a má alimentação é árdua e só está começando. E que, se não houver o apoio das escolas,  dificilmente atingiremos o sucesso!". Os produtores irão colaborar? De livre e espontânea vontade, duvido muito. Há que se legislar para se restringir a venda de alguns produtos em certos pontos (como as cantinas em escolas), fiscalizar e controlar as informações que são oferecidas, assim como o mecanismo do marketing e da publicidade. Naturalmente, cabe aos consumidores adultos adotar  um hábito alimentar mais saudável para si e para seus filhos menores. __________ 1Publicado, por exemplo, e por todos em www.g1.globo.com/bem-estar de 27/8/2013.   2Em novembro de 2012.   3Extraído da reportagem de Sheila Fernandes, de 12/8/2013).   4Do anúncio consta uma garrafa de Coca-Cola com o sinal de igual ao lado escrito a seguir: "123 calorias de energia positiva".   5In   6Extraído da matéria citada.  
Como o noticiário dos últimos dias (Talvez, para ser mais preciso, deveria dizer  "das últimas semanas") não para de falar de médicos, então, eu também resolvi voltar ao assunto e na ótica do direito do consumidor. E para começar com um assunto de última hora, antes de cuidar dos direitos dos consumidores em relação aos médicos e hospitais, devo dizer que fiquei perplexo com a declaração do presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, dr. João Batista Gomes Soares. Relativamente aos serviços que os médicos cubanos virão prestar  no Brasil, ele declarou: "Vou orientar meus médicos a não socorrerem(sic) erros dos colegas cubanos".  Jamais pensei que um representante da classe médica pudesse aconselhar que,  diante de uma falha de um colega, aquele que pudesse corrigi-la não o devesse fazer. São as vidas das pessoas que estão em jogo, ou não? É isso? Vendo um erro médico, seu colega deve fechar os olhos? Essa é uma afirmativa que viola as leis, as pessoas, o bom senso e até o juramento de Hipócrates, que, certamente, dr. João fez. Assim, como, ao que parece, o bom senso não está na ordem do dia e o esquecimento pode estar em voga, lembro na sequência alguns dos direitos e obrigações que envolvem o atendimento médico e hospitalar: os aplicáveis à relação médico-paciente no consultório e no hospital, assim como à relação paciente-hospital/clínica. Naturalmente, o respeito ao Código de Defesa do Consumidor e demais normas aplicáveis vale para os médicos brasileiros e para os estrangeiros que aqui estiverem trabalhando. Daí que,  de fato, o problema da comunicação entre o profissional e o paciente é algo que deve ser realçado e deve ser um dos primeiros entraves a serem superados. Às vezes,  até o médico brasileiro não se faz entender porque,  ao invés de utilizar uma linguagem direta e inteligível, adota jargões científicos que o cliente/paciente não compreende, gerando, só por causa disso, falha no serviço e até sérios danos. Vejamos, então, um panorama geral. Tanto no consultório como no hospital, o médico tem obrigação de prestar um atendimento adequado e dentro dos parâmetros legais. O médico é um prestador de serviço e,  como tal, deve fazê-lo de forma técnica compatível com sua especialidade, sem ações precipitadas ou omissões injustificadas. E, sem pressa. Ele deve gastar o tempo que for necessário para concluir o atendimento. Evidentemente, qualquer comunicação feita pelo médico ao paciente e/ou seu familiar, responsável ou acompanhante há de ser feita em português, em linguagem comum de forma clara e compreensível. Repito: não importa a nacionalidade do médico; mesmo o brasileiro deve fazer a comunicação nos termos da lei. É também por isso que tem o consumidor o direito de receber receitas escritas de forma legível. Nada de "caligrafia de médico é assim mesmo". Não é nem um pouco engraçado ficar decifrando junto ao farmacêutico os "quase-hieróglifos" do médico para descobrir qual medicamento comprar e como tomá-lo. Além de sem graça, é ilegal, posto que é uma falha na informação. Esta deve ser clara, precisa, detalhada. Ademais, é evidente que a compra do remédio errado, bem como sua equivocada utilização, pode causar sérios danos ao consumidor. A consulta é confidencial e,  resguardados os casos de doenças de notificação compulsória (epidemias, por exemplo) ou risco real para terceiros, o médico deve proteger as informações que recebe de seus clientes. Na violação desse sigilo, o consumidor pode pleitear indenização do médico e/ou hospital. O médico e os demais profissionais devem tratar o consumidor com educação e respeito a sua dignidade como ser humano, jamais podendo usar expressões preconceituosas, nem se referir ao paciente pelo nome de sua doença. Esse direito se estende ao acompanhante, aos familiares e, caso ocorra, ao falecido. Nos hospitais, os profissionais devem se apresentar devidamente identificados com crachá, no qual conste nome completo, profissão e cargo (médico, anestesista, enfermeiro, etc.). Quanto ao prontuário, é direito do consumidor receber uma cópia, quer seja no consultório, quer seja no hospital ou clínica. Quando não estiver consciente, a cópia do prontuário tem que ser entregue a seu responsável legal (geralmente um familiar próximo: cônjuge, filhos, pais, etc.). É direito do consumidor receber por escrito do médico (de forma legível, de preferência datilografado ou impresso via microcomputador) o relato do diagnóstico feito, bem como quais serão as condutas médicas a serem adotadas, com a descrição das etapas da doença pelas quais o paciente irá passar, os tratamentos que serão empreendidos, os riscos envolvidos, etc., pois o paciente pode recusar os diagnósticos e tratamentos. Seu consentimento deve vir depois de ter recebido claras e totais informações sobre o caso em linguagem simples. Ademais, o paciente pode dar o consentimento e depois, se quiser, pode revogá-lo. Quando se tratar de doença grave e/ou desconhecida, é direito do paciente saber da expectativa que se tem sobre o resultado do tratamento, além de ser esclarecido a respeito do diagnóstico e do tratamento, quando se tratar de pesquisa ou procedimento experimental, assim como, também, ser esclarecido dos riscos na relação com os benefícios. É obrigação do médico/hospital/clínica fazer testes antialérgicos para uso de medicamentos que apresentem riscos quando ministrados (por exemplo, penicilina), bem como teste para verificação de diabetes, quando o procedimento ou o uso do medicamento trouxer riscos em função dessa doença. É obrigação do médico/hospital/clínica utilizar-se de material esterilizado ou descartável, tudo dentro das mais estritas regras de segurança e higiene. Se for necessária a utilização de sangue, o paciente tem direito de conhecer a procedência do sangue que irá receber. Nas consultas e intervenções o paciente pode ter presente um acompanhante e isso é válido para o parto; o pai, querendo, pode assistir. O paciente tem direito a receber um orçamento prévio do serviço que será prestado e dele devem constar: o valor dos honorários; o preço dos materiais a serem empregados; as condições de pagamento (ou seja: se é à vista, parcelado, com ou sem entrada, etc.); as datas de início e término do serviço ou a previsão da necessidade de sua continuidade; e o prazo de validade do orçamento. Se o orçamento não falar do prazo de validade, ele valerá por dez dias. Após a sua aprovação, não pode ser alterado. Em casos de internação de urgência, realço que a lei 12.653, de 28/5/2012 tipificou o crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial1 para coibir os abusos praticados pelos hospitais. Por fim, lembro que todos os direitos do consumidor aqui narrados são extensivos aos familiares do paciente. __________ 1A lei acrescentou o art. 135-A ao Código Penal: Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial  Art. 135-A.  Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial:   Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Parágrafo único.  A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte. 
quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A sociedade do espetáculo

Algumas semanas atrás, ouvi numa rádio da capital de São Paulo uma matéria que se apresentou do seguinte modo. Tratava-se de uma reportagem que anunciava um evento que estava para se iniciar num teatro. O que desde logo chamou minha atenção foi que a repórter entrou no ar demonstrando uma ansiedade enorme. Ela falava com grande euforia realçando com muita expectativa o que estava prestes a ocorrer. Narrou que havia centenas de jornalistas no local do evento. Ela disse mais ou menos o seguinte: "Olha, estou aqui no teatro... Aguardando o início do credenciamento dos jornalistas. Já estão aqui mais de quinhentos. São aguardados cerca de mil de todo o mundo. Há um clima de expectativa muito grande. Eu tentei descobrir alguma coisa sobre o lançamento, mas não consegui. Ninguém conseguiu. É segredo de Estado. Está guardado a sete chaves. Daqui a pouco, vamos adentrar no teatro e vamos nos posicionar. Todos querem pegar um bom lugar..." Bem. Eu também fiquei ligado e bateu-me até um certo anseio. Seria o anúncio da descoberta da cura do câncer? Ou a apresentação por cientistas brasileiros da vacina que eliminaria o vírus HIV? Ou, quem sabe, por esses acertos do destino, o governo brasileiro teria conseguido que a paz pudesse ser enfim selada entre palestinos e israelenses que habitam a faixa de Gaza? Fiquei aguardando, pois o que viria era algo muito importante. Passados alguns intervalos comerciais, a repórter voltou e anunciou do que se tratava: o lançamento do novo iPhone da Apple! À parte a excelente jogada de marketing, o que se vê é uma das características do jornalismo contemporâneo, a do espetáculo. Aliás, essa é também uma característica da sociedade de consumidores em que vivemos, na qual a velocidade e a superficialidade são marcas importantes e na qual a diversão a qualquer preço impregna quase tudo. No último livro de Mario Vargas Llosa, "A civilização do espetáculo"1, o tema é explorado em várias vertentes. De fato, esse fenômeno observável não começou agora. Como mostra o escritor peruano, já em 1967, Guy Debord lançava em Paris um livro no qual apontava a existência de uma "sociedade do espetáculo"2. Nele o autor classifica de "espetáculo" aquilo que Karl Marx chamou de "alienação", especialmente aquela do fetichismo dos produtos, mediante o qual as pessoas dão mais importância aos bens materiais que aos seres humanos em todas suas dimensões. As pessoas passam, então, a ser valorizadas pelos bens que possuem e não por seus atos de benevolência ou sua inteligência. Esse fetichismo da mercadoria no estágio do capitalismo avançado atinge tanta importância que substitui na vida dos consumidores outros interesses legítimos de ordem cultural, intelectual ou política, tornando-se o centro de suas preocupações. Esse modo de viver torna-se uma obsessão. O consumo constante de produtos e de serviços, muitas vezes supérfluos e inúteis impostos pelo marketing, pelas modas, pela publicidade massiva, vai assim esvaziando a vida interior das pessoas em relação às outras preocupações sociais ou simplesmente humanas. Como mostra Vargas Llosa a respeito do livro de Debord, uma de suas afirmações feitas naquela época ("O consumidor real torna-se um consumidor de ilusões") é mais que confirmada nos anos posteriores3. A consequência disso é a futilização que domina a sociedade de consumidores. A multiplicação das ofertas de produtos e serviços gera uma falsa sensação de liberdade de escolha, pois as trocas existentes entre dinheiro (do consumidor) e produtos e serviços (dos fornecedores) é feita segundo a imposição do modelo de produção capitalista e segundo os interesses dos produtores e do sistema econômico subjacente, que se encarrega de oferecer crédito para aqueles que, por ventura, não tenham dinheiro para adquirir os bens. Não se trata, pois, de liberdade de escolha, mas de necessidade de aquisição, num processo de representação de uma vida encenada para o consumo e pelo consumo. Vejamos um exemplo bastante significativo desse modelo: a dos produtos culturais que passam a ser enxergados como de consumo, numa substituição que gera um tipo de ilusão muito interessante no que diz respeito ao comportamento dos consumidores e que é muito bem explorada pela indústria de turismo. Os anúncios publicitários do tipo "Conheça a Europa em 15 dias" confirma o diagnóstico. A enorme quantidade de pessoas que visitam os museus da Europa todos os dias também comprova esse comportamento. É, na verdade, mais um modismo (solidificado e tornado permanente) e um modo de aquisição pelos consumidores. O que é adquirido é uma ilusão de que se está recebendo alguma vivência ou alguma cultura. Certamente, não é possível obter a experiência de "conhecer" a Europa com toda sua riqueza distribuída em dezenas de cidades, com suas populações de vidas diversificadas com suas histórias e tradições em apenas alguns dias, como também não se pode compreender nem conhecer a riqueza das obras do Louvre num único dia de visita. Como diz o escritor peruano Nobel de Literatura, "... essas visitas de multidões a grandes museus e monumentos históricos clássicos não representam um interesse genuíno pela 'alta cultura', mas mero esnobismo, visto que a visita a tais lugares faz parte das obrigações do perfeito turista pós-moderno4". Ao que eu acrescento o seguinte. Não se trata somente de esnobismo de alguns consumidores, mas também de um processo de alienação no qual o consumidor se vê obrigado a entrar para poder pertencer a um grupo, o daqueles que "conhecem" a Europa, suas cidades, seus museus. Trata-se de um produto de consumo muito bem vendido, dentro da ideia de identificação que homogeneíza os consumidores, que passam a ser enxergados como tal. Há os que possuem carrões, os que moram em mansões, os que conhecem a Europa, que foram ao Louvre e os que possuem o iphone último tipo. É pelo processo de identificação com aquilo que os demais possuem que os consumidores acabam por adquirir os produtos e serviços que os outros adquirem para com isso pertencerem a algum segmento. Para com isso poderem ser reconhecidos de algum modo. É o fenômeno da identificação, uma outra característica da sociedade de massas. É isso. São pistas para, pelo menos, tentarmos entender como é que uma jornalista apresenta na rádio o lançamento de um produto tecnológico banal com mais ansiedade e temor do que o assassinato de uma família inteira! __________ 1Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. 2O titulo de seu livro é: "La societé du Spetacle", citado por Mario Vargas Llosa na obra referida, os. 20 e 21. 3Idem, ibidem, p. 22. 4Obra citada, p. 25.
Meu amigo Outrem Ego mora em frente a alguns restaurantes que oferecem serviços de manobristas grátis (os chamados valets). E, um dia desses, me ligou indignado. Ele disse que é perigoso atravessar as tranquilas ruas de perto de sua casa porque os manobristas passam em alta velocidade: "Os manobristas recebem o automóvel das mãos do cliente e, assim que este entra no restaurante, eles saem em disparada, pisando fundo no acelerador". Disse, também, que a rua tem sido o local de estacionamento dos veículos: "Ora, se é para estacionar na rua, eu mesmo faço", reclamou. De fato, esses e outros problemas atingem os consumidores que entregam seus automóveis para os manobristas de bares, restaurantes, teatros e outros estabelecimentos. Assim, na coluna de hoje tratarei dos direitos e violações relativos a esse serviço, que é oferecido por uma série de estabelecimentos comerciais na cidade de São Paulo e em todo o país. Os abusos são muitos e vão além dos apontados por meu amigo, tais como excesso de velocidade, ultrapassagem de semáforo no vermelho, conversões ilegais, estacionamento em locais proibidos, o que inclui calçadas e guias rebaixadas, etc. E, muitos consumidores não sabem dos riscos que correm: se o automóvel entregue nas mãos dos manobristas sofrer algum tipo de multa de trânsito, como de estacionamento irregular ou ultrapassagem proibida no semáforo, é o consumidor que arcará com seu pagamento. Claro que ele tem direito de se ressarcir junto ao serviço de valet ou do estabelecimento comercial que o oferece. Mas a solução não é tão simples, pois o consumidor tem que, primeiro, pagar a multa, depois procurar o prestador do serviço ou restaurante, teatro, etc. e tentar receber. E, infelizmente, não há boas notícias por aqui, porque muitos estabelecimentos simplesmente se negam a fazer o reembolso, alegando que não há prova de que foi o manobrista ou que não há como provar que aconteceu naquele momento, dentre outros tipos de escusas. A saída, então, é o Poder Judiciário, mas muitos desistem porque nem sempre o valor da multa compensa o trabalho e o custo. Pior: se a multa gerar pontuação negativa no prontuário do proprietário, é para este que vai. Aliás, mesmo que o prestador do serviço ou o estabelecimento comercial faça o reembolso da multa, ainda assim, o consumidor sofrerá mais transtornos, pois terá ainda que apresentar recurso ao Detran e tentar provar que era outro o motorista. Algo difícil de conseguir. Além disso, o comum é que o manobrista, ao verificar que o veículo sofreu multa, retire a notificação do vidro e a jogue fora. Conclusão: o consumidor só fica sabendo quando recebe o aviso para pagamento em casa. Há mais problemas. O manobrista pode riscar a lataria do veículo, pode rasgar o assento, pode quebrar o câmbio, estragar o motor (lembre-se de que, às vezes, até mesmo na cara do cliente, o manobrista sai cantando pneu ou chega rasgando, como se diz). Ele pode bater o veículo em outro ou na guia ou no poste, etc. Mais grave: ele pode atropelar alguém. Acontece também dele deixar o veículo aberto e ele ser furtado ou furtarem coisas que estavam no interior. A responsabilidade pelos danos, segundo a lei, é tanto do prestador de serviço de valet como do estabelecimento comercial que o oferece. O problema é que, mais uma vez, nem tudo é constatado na hora ou pode ser provado pelo consumidor. Alguns estacionamentos já adotam a tática de verificar os vícios aparentes que o carro tenha e, no ato da entrega do recibo, anotam as avarias. É uma boa ação que garante ambas as partes. Mas, muitos não fazem isso, nem os serviços de valet. Além do mais, os problemas com motor, câmbio, etc. não podem ser constatados desse modo. Logo, se o manobrista causar algum dano ao veículo, é difícil provar que aconteceu quando estava nas mãos dele. A situação piora muito se o acidente causado atingir bens de terceiros ou causar danos diretamente a outra pessoa, que deve ser socorrida, hospitalizada, etc. e, é mais grave ainda, se causar invalidez provisória, permanente ou morte. Em todos esses casos, segundo entendimento do Poder Judiciário, o proprietário do veículo causador do acidente poderá ser processado e responsabilizado para indenizar o terceiro atingido. E não é pouca coisa: evidentemente depende da extensão do dano, mas, por exemplo, pode ocorrer perda total do veículo do terceiro, hospitalização, invalidez ou morte. A indenização nesses casos envolve tudo o que esse terceiro/vítima perdeu. Além disso, poderá haver indenização pelos danos morais sofridos a ser paga à vítima que sobreviveu ou aos familiares da vítima falecida. É verdade que a responsabilidade final é do prestador do serviço de valet ou do estabelecimento comercial. Porém, como o Judiciário entende que o proprietário que entrega o veículo ao terceiro (pode ser o manobrista, o filho, o amigo, etc.) é o primeiro responsável, este, uma vez processado, terá que arcar com toda a indenização e, só depois, é que poderá acionar o prestador do serviço de valet ou o estabelecimento comercial. Lembro de que há o seguro: tanto o do consumidor (se tiver seguro para indenizar terceiros) como o do serviço de valet e do estabelecimento comercial. Contudo, se o consumidor tiver seguro, é necessário que não haja restrição na apólice para a entrega do veículo a terceiros, pois se houver a seguradora não quererá pagar a indenização. Além disso, as indenizações do seguro têm limites para cada tipo de dano e o juiz não está limitado a eles: a condenação pode ser maior e o proprietário terá que pagar a diferença, que pode ser altíssima. No caso do seguro do prestador do serviço de valet e do estabelecimento comercial, o mesmo se dá em relação aos limites. Mas, o principal nesse aspecto é que não dá para garantir que eles tenham, de fato, seguro contratado. Por tudo isso, como diria meu amigo Outrem Ego, a melhor prevenção é, sem dúvida, não utilizar o serviço, especialmente se o consumidor desconfiar de que seu veículo será largado na rua. Se é para estacionar nas ruas, é melhor ele mesmo fazer o serviço, pois é mais seguro, ele o coloca em local permitido, tranca o veículo corretamente, liga o alarme e leva as chaves.
Ainda falta muito para que o mercado de consumo brasileiro se alinhe com o que há de mais moderno em termos de respeito aos direitos dos consumidores. Nem mesmo as empresas estrangeiras, que vendem ou se apresentam como de alta qualidade no atendimento ao consumidor, conseguem fazê-lo quando chegam aqui. Parece que vivemos essa praga da falta do "padrão FIFA": tirando os novos estádios de futebol, parece que todo o resto está capengando (Sei que se trata de mera esperança, porque nós ainda nem conseguimos concluir os estádios no tal "padrão", afora o buraco fundo nas contas públicas por causa deles, etc.). Pois veja o que aconteceu com meu amigo Outrem Ego. Ele estava precisando de um iphone para seu trabalho e acabou ganhando de presente de sua mulher um moderno aparelho iphone 5 da Apple. Feliz da vida, saiu para trabalhar. Mas, como ele é muito azarado, a alegria durou pouco. No primeiro dia de uso, à tarde, o produto parou de funcionar (isto é, nunca funcionou), pois quando ele foi bater fotos, elas não saíram. Justo o que ele precisava para o serviço que estava fazendo. Munido da nota fiscal (sim: a mulher entregara a nota fiscal com preço e tudo; afinal eles não têm segredos) ele correu até a loja da Apple, onde o aparelho fora comprado. Deixo agora ele narrar o ocorrido: "Lá chegando, naquela loja impecável, padrão Apple, limpa, linda, com funcionários simpáticos, fui atendido e pedi que me dessem um novo aparelho, porque aquele não funcionava. Depois de um exame, o atendente me disse que precisaria mandar o produto para algum lugar e depois de alguns dias poderia entregá-lo funcionando. Eu respondi que não. Queria um novo e funcionando perfeitamente. Mas, o rapaz disse que a lei dava 30 dias para eles arrumarem. 'Trinta dias?', disse quase gritando. 'De jeito nenhum. Isso é produto essencial'" Não adiantou. Por incrível que pareça, a famosa e conhecida Apple, criada e desenvolvida pelo senhor Steve Jobs, muitíssimo moderna, em terras tupiniquins é igual a qualquer vendedor de quinta categoria quando se trata de respeitar seus clientes. Aquele vendedor que diz: 'levou o produto? Ele não funciona. Problema seu. Estamos com seu dinheiro bem investido. Volte daqui a trinta dias, que ele estará funcionando'. Bem. O vendedor da loja da Apple citou a lei para meu amigo. Vejamos o que ela diz. Com efeito, dispôs o art. 18 do Código de Defesa do Consumidor: "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas". É verdade que a lei fala em 30 dias. Veja: "§ 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 (trinta) dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço". Porém, o parágrafo 3º do mesmo artigo diz: "§ 3º O consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do § 1º deste artigo, sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir-lhe o valor ou se tratar de produto essencial". Ou seja, o consumidor, sempre que tiver produto enquadrado nas hipóteses do § 3º, poderá fazer uso imediato - isto é, sem conceder qualquer prazo ao fornecedor - das alternativas previstas no § 1º, quais sejam: a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; o abatimento proporcional do preço. A escolha, naturalmente, é do consumidor. Das hipóteses previstas, a que nos interessa é a da relativa ao produto essencial, que, todavia, a lei não define. E o que seria? Ora, produto essencial é aquele de que o consumidor necessita para a manutenção de sua vida com dignidade, diretamente ligado à saúde, higiene pessoal, limpeza, segurança, etc. E, claro, se o consumidor adquire o produto para fins profissionais, a essencialidade está ligada ao uso necessário e urgente para seu mister. Não se pode esquecer de que quando a lei refere o produto essencial, está supondo essa qualidade na relação com o consumidor que dele necessita. O produto é "essencial" para o usuário e não para o fabricante ou vendedor. No caso narrado por meu amigo Outrem Ego, evidentemente, o aparelho havia de ser trocado na hora, sem mais delongas por outro igual em perfeitas condições de uso. Bastava fazer a troca e pronto. Aliás, como as boas empresas fazem, tanto no exterior, como aqui1. Gosto sempre de lembrar que um produto essencial de primeira categoria é o dinheiro (em papel moeda, cheque ou mesmo nas formas de crédito: cartão de crédito; desconto de título, etc.). Ele é um típico produto essencial que o consumidor entrega em troca do outro produto (ou serviço) que adquire. Não tem sentido que o vendedor receba esse produto essencial (dinheiro) e entregue outro produto essencial (ou não) que não funcione, que não possa ser usado. Quando isso ocorre, o mínimo que o vendedor pode fazer é entregar outro produto novo em perfeitas condições de uso ou devolver ao consumidor seu "rico dinheirinho essencial", como diria meu amigo. O que não pode é o vendedor reter o dinheiro e não entregar produto que funcione! __________ 1Veja que interessante. Meu amigo, chegando em casa, resolveu ligar para outra loja da Apple. Colocou no Google: "Apple store". Apareceu na primeira página: "apple store próx. a São Paulo" com a indicação de um endereço na Av. Ibirapuera, 3.103 e dois telefones. Mas, nenhum dos dois telefones atenderam (A companhia telefônica informou que eles "não existiam"). Qualidade incrível, não é?
Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, de fato, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos apenas um dos aspectos de nossa democracia, a do fato do voto ser obrigatório entre nós. De todos os países do  mundo, apenas 24 ainda adotam esse modelo, sendo 13 na América Latina. E dentre os 15 que detêm  as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever. Na verdade, segundo penso e ao contrário do que dizem, o voto obrigatório transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa legítima democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão. A obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. O sistema serve apenas para legitimar uma estrutura de poder antiga e que agora está em cheque no Brasil. Para ser ter uma ideia, uma pesquisa do Instituto Datafolha realizada após as eleições de 2010 mostraram que, 20 dias após as eleições, 30% dos eleitores já não se lembravam em quem haviam votado. Esses dados compravam que milhões de brasileiros vão às urnas para se livrarem da obrigação de votar e para não perderem vários direitos retirados de quem não vota, como tirar passaporte, por exemplo. Por isso, sou daqueles que acreditam que o voto facultativo tem tudo de positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e  se encontrar algum candidato que de fato possa representar seus pensamentos, suas opiniões, assim como do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso (sem partido) etc. Mas, o fim do voto obrigatório parece-me um bom começo. Agora um outro aspecto: como já tive oportunidade de tratar, as democracias contemporâneas são formadas por cidadãos-consumidores. Isto é, uma característica marcante das sociedades capitalistas é que elas são formadas  basicamente por consumidores. Os direitos dos cidadãos são exercidos em larga medida pela atuação enquanto consumidores, pois no cotidiano as ações são "vividas" pelo e para o consumo. Ademais, em relação ao Estado, está claro que ele é um agente prestador de serviços (além de produtor) e se comunica com os cidadãos do mesmo modo que as empresas privadas com seus clientes. Nesse sentido, é que se diz que o eleitor é um cliente do Estado. Como o regime é democrático e as autoridades são guindadas a seus cargos pelos votos dos eleitores, estes esperam, legitimamente, que as ações e tomadas de decisões daqueles de algum modo, então, estejam em consonância com suas necessidades, interesses e direitos. Porém, a sociedade capitalista é formada por empresas que exploram, segundo as regras instituídas, o mercado existente. Esse mercado de consumo não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que a exploração é permitida. Como decorrência disso, o empresário tem responsabilidades a saldar para com a sociedade. Acontece que a empresa não tem relação com a democracia. Ainda que,  em algumas delas, sejam apresentados ares de participação dos empregados, a verdade é que a estrutura organizacional da empresa é autoritária. ("Manda quem pode. Obedece quem tem juízo"). As decisões são tomadas por um ou por poucos e não levam em consideração desejos ou interesses dos subalternos, a não ser na medida dos direitos instituídos e que aparecem como obstáculos - muitos deles a serem removidos pelas próprias decisões autoritárias. A extinção de empregos, por exemplo, pode ser uma meta a ser buscada, não importando as consequências sociais que daí advirão. No capitalismo contemporâneo de "última geração",  a eliminação de postos de trabalho tem sido uma característica marcante das fusões,  incorporações, aquisições, etc.    Do mesmo modo, como também já frisei anteriormente,  esse modelo autoritário expande-se  para fora na direção dos consumidores. Estes não só não participam das decisões das empresas, como são solenemente por elas desprezados: na maioria dos casos, os consumidores são levados em consideração apenas e tão somente na possibilidade e capacidade que têm de comprar os produtos e serviços oferecidos gerando, assim,  receitas e lucros.  E, como se sabe, também fruto do capitalismo atual, o Estado, por sua vez, aos poucos foi abrindo mão do direito de explorar parte do mercado e pelo sistema das privatizações entregou para a iniciativa privada o direito de prestar uma série de serviços e também de entregar produtos, guardando para si o direito e o dever de continuar oferecendo serviços e produtos  essenciais, tais como o de saúde e segurança pública e de controlar outros como o de transportes e de comunicações, assim como a educação, que pode ser explorada pela iniciativa privada e oferecida pelo Estado etc. Esse quadro mostra, então, de um lado, como a sociedade capitalista contemporânea é autoritária, pois as pessoas vivem como consumidores e a estes não é dada liberdade de escolha na maior parte de suas compras, necessárias ou essenciais. Aliás, essa é uma marcante característica dos consumidores: a falta de liberdade.  E, de outro lado, a dificuldade que os cidadãos-consumidores têm de se comunicar livremente com seus representantes. Como eu disse na semana passada nesta coluna, boa parte das reivindicações das pessoas nas ruas brasileiras envolve direitos típicos dos consumidores, tais como  transportes decentes, melhor atendimento médico e hospitalar, educação de boa qualidade e segurança pública.  As manifestações apontam para algo muito bom: a tomada de consciência de que, na sociedade capitalista contemporânea,  os cidadãos têm o direito de se manifestar livremente e podem exigir que se lhes entreguem produtos e serviços descentes a preços módicos e que a política seja executada de forma honesta a transparente. Parece que os cidadãos brasileiros estão descobrindo algo que em alguns países os consumidores locais já haviam descoberto:  que não só manifestações como boicotes podem funcionar eficazmente para fazer com que os direitos instituídos sejam respeitados e que os produtos e serviços prometidos sejam entregues. E, com a modernidade da internet e das redes sociais foram abertas vias para que as insatisfações dos cidadãos-consumidores possam ser ouvidas. As empresas privadas já estão, por exemplo, há certo tempo monitorando os sites de reclamações. Eles têm funcionado muitas vezes com ótima eficácia na resolução de problemas que os consumidores enfrentam sem ter que  necessariamente recorrer aos canais oficiais, como os Procons e o Judiciário. Aliás, os próprios Procons também ajudam nessa meta com a publicação periódica de suas listas de fornecedores que recebem reclamações e resolvem ou não os as demandas. Outro canal que começa a se tornar muito relevante é o das petições online. Os abaixo-assinados são uma forma democrática e aberta das pessoas fazerem suas reivindicações e até de proporem boicotes. Enfim, as presentes manifestações de rua que não foram organizadas  por partidos políticos e que, tirando os casos de extremistas e infiltrados, são pacíficas e envolvem pessoas muito diversas e de idades diferentes, surgiram de forma espontânea e são a prova de que as pessoas querem falar e ser ouvidas. Que os cidadãos têm direitos, interesses e desejos que clamam por representação e que os canais para se fazerem representar não estão abertos. Esses movimentos são um alento para o fortalecimento de nossa democracia. E, na falta de canais oficiais, outros estão surgindo para permitir que as pessoas reclamem e se façam ouvir. __________ PS.: Eu mesmo já me utilizei desses canais online. Em fevereiro p.p. após a terrível tragédia da boate Kiss em Santa Maria, na qual morreram  242 pessoas,  propus a introdução de novas regras no Código de Defesa do Consumidor para proibir as comandas e criar segurança em boates e estabelecimentos similares. Atualmente, o abaixo-assinado tem mais de 3.600 assinaturas. Quem quiser apoiar a proposta,  clique aqui.   Na semana passada, coloquei no ar  um novo abaixo-assinado. Desta vez,  propondo o fim do voto obrigatório e pela instituição do voto distrital. Quem quiser apoiar, clique aqui. Depois de ter feito essa proposta, ouvindo alguns amigos, percebi que seria melhor desvincular a instituição do voto distrital do voto facultativo. Isso porque muitas pessoas são a favor do voto facultativo mas não concordam com o voto distrital ou ainda não têm amadurecida uma opinião a respeito desse sistema. Por isso, criei um novo abaixo-assinado. Este apenas para obter apoio das pessoas que são contra o voto obrigatório, deixando a discussão sobre o voto distrital para um segundo momento. Quem quiser apoiar esse projeto para  acabar com o voto obrigatório, clique aqui.   
Não é possível ficar de fora. Por isso, eu também cuidarei das manifestações democráticas que se espalharam por várias partes do país. Especialmente porque a maior parte das reivindicações envolve o direito dos cidadãos-consumidores a transporte público eficiente e barato ou grátis, à segurança pública, à distribuição correta das receitas arrecadadas, o que aponta para as prioridades de investimentos, etc. Na minha época de estudante universitário, em plena ditadura, muitas vezes ouvi dizer que a letra do nosso hino nacional, de certo modo, refletia e seria um entrave ao movimento social: "Deitado eternamente em berço esplêndido...". Será que o que se viu nos últimos dias por todo o Brasil, e também em vários lugares do exterior, significa que os brasileiros acordaram? Será que agora, cansadas, as pessoas se levantaram e continuarão a protestar? Tomara! Só assim uma verdadeira democracia prospera. Os acontecimentos são alvissareiros; e o interessante é que, ao que parece, não se trata de um movimento revolucionário organizado desses que pretendem derrubar governos. Pelo que se pode ver, é algo voltado ao legítimo exercício dos direitos de cidadania já instituídos - dentre eles os direitos dos consumidores relacionados aos serviços públicos e também privados - , cuja qualidade e eficiência têm deixado muito o desejar. Não pretendo fazer comparações; apenas aponto um traço de esperança por dias melhores. Veja. Nas presentes manifestações, há elementos inéditos: não foram organizadas por partidos políticos; tirando os casos de extremistas e infiltrados, o movimento é pacífico; envolvem pessoas muito diversas e de idades diferentes; ao que consta, o movimento surgiu de forma espontânea. O que eu penso é que as bases para as manifestações estavam prontas, latentes, esperando um fato, uma desculpa para explodir. E o estopim foi o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus na capital de São Paulo. Seria isso um motivo relevante? Como eu disse, sem querer comparar, gostaria de fazer alguns comentários para nossa reflexão. Em primeiro lugar, alguém ou algumas pessoas tem de começar. Tomemos um exemplo conhecido e muito importante: aquele que dizem ter sido o marco inicial do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. No dia 1º de dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, Estado do Alabama, no sul do país, onde o racismo era exacerbado, aconteceu um fato que se propagou fortemente. As leis locais segregacionistas proibiam que negros sentassem-se nos bancos da frente dos ônibus. Naquela data, a costureira Rosa Parks, após um dia exaustivo de trabalho, entrou num ônibus voltando para casa. Estafada, sentou-se num banco da frente. Intimada a dar seu lugar a um passageiro branco e sentar-se no fundo do veículo, recusou-se. Acabou presa, julgada e condenada. Seu ato e sua prisão deflagraram uma onda de manifestações de apoio e revolta. A população, indignada com o acontecimento, resolveu fazer um boicote aos transportes urbanos, o que deu início, na prática, à luta dos cidadãos negros por igualdade com os cidadãos brancos perante as leis americanas.  O boicote aos transportes públicos, que teve participação de negros e brancos, durou 386 dias, quase levando à falência o sistema urbano de transportes. Acabou somente quando a lei que separava brancos e negros nos ônibus de Montgomery foi extinta. Rosa Parks estava cansada das violações que sofria. Os cidadãos negros estavam cansados de serem violados cotidianamente. Algo foi feito e tudo mudou. Repito: será que os brasileiros se cansaram? Se cansaram de não receberem serviço público adequado? De pagar tarifas por transportes públicos, que oneram seus salários e cuja ineficácia rouba horas de suas vidas? De aceitar calados desmandos com dinheiro público mal aplicado? De viverem na insegurança das cidades, cercados por criminosos de um lado e pela ineficiência e violência policial do outro? Já disse aqui nesta coluna que, quando era estudante da graduação em Direito na PUC/SP, nos idos dos anos setenta, sonhava - todos nós sonhávamos - um dia ver a democracia real instituída no Brasil. A ditadura acabou, vieram as eleições livres e diretas e ficamos esperando. Quando surgiu a Constituição Federal de 1988, nossa esperança aumentou: afinal, era o melhor, mais democrático, mais livre e mais claro e extenso texto de garantias ao cidadão jamais estabelecido antes por aqui. Uma luz verdadeira se acendia dentro do túnel. O tempo passou e se percebe que ainda é difícil estabelecer-se um real Estado Democrático de Direito. É algo que a mim entristece e descorçoa. É incrível como o Poder, em todas as esferas, viola com seus procedimentos as garantias constitucionais. Foi-se a ditadura, mas permaneceu, de vários modos, a mentalidade profundamente enraizada do autoritarismo. Há muita ineficiência em todas as esferas de governo. As ações policiais, por exemplo, muitas vezes parecem ter como técnica de controle e investigação apenas e tão somente o espalhafatoso instrumento das blitz, que normalmente produzem muito pouco resultado além do espetáculo e de atrapalhar a vida dos cidadãos, que já têm muita dificuldade de se locomover pelas ruas das grandes cidades. A polícia militar continua sendo treinada para agir contra cidadãos de bem, enquanto a violência grassa por toda parte contra esses mesmos cidadãos. Na falta de motivação para prisões, as pessoas são levadas para "averiguações" ou acusadas de "formação e quadrilha", algo risível se não fosse trágico. Lembro de uma história de muitos anos atrás narrada por um advogado criminalista. A polícia havia prendido um líder do movimento sem-terra por formação de quadrilha. O acusado conduzira mais de duas mil pessoas numa invasão de uma fazenda. Disse o advogado: "Sabe, sou advogado das antigas. O Código Penal ainda é o mesmo e por isso o tipo penal do artigo 288 do Código Penal1 ainda fala que formação de quadrilha ou bando é uma associação de mais de três  pessoas com o fim de cometer crimes. Não sabia que se podia fazer algo assim com duas mil pessoas. Como será que foi feito? Será que  alugaram um estádio de futebol e assim planejaram as ações criminosas? Será que decidiram no voto?". Ou, como disse meu amigo Outrem Ego: "Não é verdade que o fato ilícito tem de corresponder ao tipo? Será que dá para espremer milhares de pessoas num tipo como esse? Precisa apertar muito para transformar duas mil pessoas numa quadrilha". O comportamento das autoridades nesses casos é muito ruim, porque mostra o despreparo para lidar com situações regulares de exercício de cidadania. De outro lado, os cidadãos podem encontrar formas de ações reivindicativas, tais como as manifestações e também outras como o boicote, a exemplo da história de Rosa Parks. Como propôs meu citado amigo O. Ego: "E se nós boicotássemos essa tal de Copa das Confederações e no ano que vem a Copa do Mundo? E se nós nos recusássemos a assistir aos jogos? Que tal?". É mais uma ideia. E há muita coisa acontecendo. Veremos no que vai dar. __________ 1Código Penal: Art. 288 - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes: Pena - reclusão, de um a três anos.
quinta-feira, 13 de junho de 2013

A esperança é um produto de consumo?

Com a realização de mais um incrível "feirão da casa própria", promovido nas últimas semanas, sou obrigado a voltar ao assunto das ofertas que nem deveriam existir e do desespero em que se encontra o consumidor no mercado capitalista atual. É fato conhecido que muitos consumidores jamais poderão adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo. Por mais que o sistema financeiro consiga, cada vez mais, oferecer crédito para uma ampla camada da população, muitos objetos do desejo dos consumidores continuam e continuarão inacessíveis. Há muito a ser dito a respeito disso, mas o que interessa aqui é o elemento psíquico: o que o marketing, que oferece esses bens de difícil aquisição, alimenta, de fato, é a frustração (alguns entendem que a frustração é boa para o mercado, pois, como o consumidor não consegue preencher seu "espaço interior" adquirindo mercadorias, nunca para de comprar, na tentativa - vã - de apaziguar sua alma). Além disso, como esses consumidores - já frustrados ou que ainda se frustrarão - são seres humanos, têm, dentro de si, uma coisa chamada esperança. Daí, vivem a ilusão da possibilidade de um dia realizar seu sonho de aquisição - qualquer que seja ele. Assim, de frustração em frustração, o consumidor vai preenchendo o vazio de sua esperança; se olhar para trás, verá o quanto não conseguiu obter. Mas, a esperança é forte e a ilusão também. Por isso, ele acredita na sorte e participa de todo tipo de jogos para ganhar prêmios (estes ironicamente chamados de "jogos de azar"): loterias, cassinos (quando e onde há), entra em concursos de todo tipo, adora promoções, sorteios, etc. Isto é, o consumidor é presa fácil das ofertas que prometem uma vida melhor e, de preferência, obtida rápida e facilmente. Visto desse modo, é possível afirmar que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem: a esperança de, passando um creme, ficará com a pele mais bonita ou mais saudável; de, usando um novo xampu, ficará com os cabelos mais sedosos; a esperança de, usando uma certa roupa, ficará mais bonito ou mais bonita ou de fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos, conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; pagar prêmios de seguros para garantir o próprio futuro e, também, o da família; poupar de forma adequada para conseguir chegar nesse futuro e ter tempo ainda de gozar a vida, etc etc. O mercado oferece o futuro de uma vida melhor. Mas, como eu disse, o consumidor tem pressa. Aliás, foi o próprio mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não há tempo para nada; nem se pode perder tempo algum. Recebe-se à vista e paga-se a crédito, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o dia das mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem de entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que já nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel - criadas e continua pagando as prestações de seu financiamento. Como é que diz mesmo a propaganda?: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável. Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. Veja o caso do "feirão de imóveis" que referi no início e que uma grande instituição financeira faz todo ano (e realizou nova recentemente): por mais absurdo que possa parecer, sempre dá certo (Nesse último e atual "feirão" foram movimentados mais de doze bilhões de reais! Isso por enquanto, pois a promoção continua neste mês de junho em algumas cidades do Brasil). O consumidor, desprotegido, é transparente, fácil presa desse tipo de iniciativa. Repito o que meu amigo Outrem Ego falou, no ano passado, ao perceber que estava anunciada mais uma promoção de venda de imóveis desse tipo. Ele disse: "Sempre que vejo isso, me vem a imagem do marido que diz pra sua mulher num sábado à tarde: 'Querida, vamos dar uma saidinha? Vamos até o shopping, pois eu preciso comprar uma gravata e vou te comprar uma bolsa. Depois, na volta, já que estamos no caminho, nós aproveitamos e compramos um apartamento de três quartos porque este aqui com dois está pequeno demais'". É mesmo desanimador. O chamado "feirão da casa própria", promovido nos últimos anos, é um esquema de vendas que acabou vingando. Essa instituição torra milhões de reais em anúncios espalhados na mídia, num tipo de oferta que envolve o consumidor em seus temores, anseios e esperanças. Ademais, nessa questão, surge o problema da desinformação, pois o comprador está agindo contra as cautelas normais e necessárias que se exige nesse tipo de transação. Tem razão o meu amigo: uma casa ou um apartamento não devem jamais ser comprados numa exposição de fim de semana, como se a pessoa estivesse comprando frutas na feira livre ou numa liquidação tipo queima de estoque de roupas ou sapatos. A casa própria é, para a grande maioria dos consumidores, o mais importante (e mais caro) negócio da vida inteira. É a realização de um sonho e, por isso, deve ser tratado com a reflexão e o carinho que merece. Indo numa dessas "promoções", o consumidor corre o risco de comprar um imóvel por impulso, sem qualquer avaliação objetiva, pois, quando chega ao local, sofre todo tipo de pressão e influência dos vendedores, cujo maior interesse é vender, fechar um bom negócio com polpudas comissões. Para o comprador, fica, às vezes, a frustração (mais uma e essa praticamente definitiva) de morar onde não tinha exatamente planejado e, ainda por cima, endividado pelo compromisso assumido de longo prazo (10, 15, 20 anos ou mais). Ora, sabe-se que, antes de se comprar um imóvel, é preciso conhecê-lo, examinando-o para ver se ele atende às necessidades e expectativas. Deve-se vistoriá-lo não só de dia, no horário marcado pelo corretor ou vendedor, mas também em outro período, procurando conhecer as condições da vizinhança à noite - barulhos, trânsito, feira livre, etc. É importante conhecer a região para ver se ela oferece aquilo que o comprador precisa, como escolas, farmácias, supermercados, etc. Aliás, esse tipo de operação rouba mercado dos próprios advogados, que deveriam ser sempre consultados antes do fechamento desse negócio. Não só há necessidade da produção e exame de certidões forenses e do Cartório do Registro Imobiliário, como da avaliação de todas as peculiaridades daquela específica operação jurídica. Por exemplo, a compra de imóvel por empreitada ou preço de custo ou feita pelo Sistema Financeiro de Habitação, etc envolve aspectos bem diferenciados. Em alguns casos é preciso inclusive checar se não há projeto para desapropriação do local: se o imóvel está localizado numa rua importante ou perto de estrada ou área de manancial, etc. É preciso saber, ainda, em alguns casos, se a área não é de proteção ambiental, etc. Lembro, naturalmente, que cada situação comporta componentes próprios de avaliação que devem ser levados em consideração, além das preliminares e genéricas que apresentei. As questões concretas e particulares devem, por isso, ser levadas a um advogado especialista que, como já disse, deve intervir em contratos de compra e venda desse tipo. É uma pena. O capitalismo é muito selvagem, ganancioso e egoísta e o consumidor - vítima frágil do modelo - jogado a própria sorte, apresenta-se cada vez mais desesperado, vivendo a esperança de um futuro de bem-estar decorrente da aquisição de produtos e serviços que não chega (quero dizer, pelo menos não chega para muitos milhões de consumidores).
Como, ultimamente, os meios de comunicação têm abordado com certa regularidade a questão do barulho, mas nem sempre têm tratado as questões jurídicas como exige o caso, eu volto a cuidar do assunto, lembrando, desde logo, que a violação do sossego no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais violado abertamente.   Em abril de 2012, um trabalhador rural foi morto a tiros na cidade de General Salgado. O acusado do crime era um vizinho, professor de ciências, que praticou o delito por causa do barulho que sempre ocorria no local. Testemunhas disseram a polícia que as discussões entre os vizinhos eram constantes. A ironia é que o professor já havia inclusive registrado na delegacia local um boletim de ocorrência contra os vizinhos por causa do barulho, o que não foi apurado, mas depois do homicídio a investigação estava sendo feita...  No início do mês passado, num condomínio de luxo na grande São Paulo, um empresário que reclamava constantemente do barulho provocado por seu dois vizinhos, após outra discussão, matou os dois, marido e mulher. Depois se suicidou.  Fazendo uma busca na internet sobre esse crime, eu encontrei uma carta de uma leitora que, de algum modo, traduz o sentimento de ira e impotência que esse tipo de violação ao sossego envolve. Veja: "Eu já tive problemas terríveis com vizinhos que ouvem música alta. Isso vai dando uma irritação progressiva e a gente chega ao ponto de quase explodir...Por conta disso, tive depressão e literalmente abandonei esse apartamento que era meu, quitado, bem localizado e de três quartos. Acho que o sujeito que atirou não teve uma crise súbita, acho que foi um acúmulo de circunstâncias que terminou em tragédia...".  Recentemente, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou uma lei que proíbe o uso de aparelhos de som portáteis instalados em carros estacionados que emitam som alto, considerado este o que atinge 50 decibéis.  A medida, naturalmente, é boa, mas é muito menos do que já existe legalmente estabelecido no país, como se verá na sequência. Nós temos em vigor leis muito mais rigorosas que permitem que se puna os infratores e exige que se faça cessar a violação quando ela estiver ocorrendo.    Como já tive oportunidade de comentar, na sociedade atual não só há uma falta de educação, cortesia e respeito ao direito do outro como, de fato, parece que neste capitalismo do império globalizante em que vivemos, tudo faz barulho. Existe mesmo uma busca incessante em sua produção: são músicas em altos volumes nos automóveis, nas lojas e nos restaurantes, nos clubes, nas academias, nos intervalos comerciais da tevê, nos espetáculos teatrais e nos cinemas, nos estádios de futebol, onde há também o barulho das torcidas que atinge toda a redondeza; são festas de aniversário e de casamento; são shows ao vivo em estádios que vão muito além de suas arquibancadas; são bares, boates e danceterias que invadem o espaço dos vizinhos, etc. Além disso, há, no dia a dia, excesso de ruído por todos os lados: dos veículos nas ruas, das máquinas nas fábricas, das construções, das oficinas, etc. Trata-se de um enorme amontoado de ações barulhentas, algumas ensurdecedoras, nem sempre em nome do tão sonhado progresso. E, claro, há os sons "privados" dos aparelhos eletrônicos domésticos que saem pelas janelas de apartamentos e casas perturbando os vizinhos com seus exagerados volumes. Há também latidos incessantes de cachorros e até "imitações" dos papagaios (licenciados ou não pelo IBAMA). Enfim, os barulhos, ruídos, sons em altos volumes entram em nossas casas e apartamentos a toda hora sem pedir licença, violando esse nosso direito sagrado ao silêncio e ao sossego. Não abordarei um aspecto importante dos sons não pedidos, como a imposição dos estabelecimentos comerciais de que seus frequentadores escutem as músicas por eles escolhidas (o que, por exemplo, em academias de ginástica e musculação pode ser altamente prejudicial não só pelo excesso de volume, como pela qualidade das músicas...). Tratarei do outro lado da questão: do direito ao silêncio, ao sossego e ao descanso, sagrados e que qualquer pessoa pode exigir, com base nas leis em vigor!  O direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito, que envolve uma série de transtornos que já foram avaliados e julgados pelo Poder Judiciário. Por exemplo, o Judiciário considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente etc. Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente. Num caso em que se considerou excessivo o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação da planta pela Prefeitura e seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou que a quadra de esportes produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha aprovado sua construção. Aliás, lembro que os shows produzidos em estádios de futebol e que violam às escâncaras o direito ao sossego dos vizinhos são, como regra, autorizados pela Prefeitura local. Alguns shows, inclusive, varam a noite e a madrugada, numa incrível violação escancarada. Realço que, nesses casos, a própria Prefeitura é responsável pelos danos causados às pessoas. Dizia acima que a legislação pátria é rica no tema. Muito bem. A Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo decreto-lei 24.645/1934 que dispõe que "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (lei 9605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o novo Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 2003, garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Consigno que, para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras.   
Depois do fatídico jogo entre Corinthians e Boca Juniors na semana passada no Estádio do Pacaembu, oportunidade em que o time paulista foi abertamente surrupiado, vejo-me obrigado a voltar ao assunto do futebol e do torcedor consumidor. Refaço, pois, a pergunta: Tem o consumidor torcedor direito de pagar para assistir os jogos de futebol que sejam disputados e decididos de forma verdadeira? Tem ele direito a que as pelejas tenham resultados justos? Isto é, que quando o gol é feito em impedimento seja anulado, que as faltas sejam corretamente marcadas, que o gol feito com a mão não seja convalidado, que gols legítimos sejam anulados, que pênaltis, quando ocorram, sejam marcados? No caso do referido jogo, há algo a mais de interessante. Na eliminação do time do Corinthians, com erros clamorosos do árbitro de futebol, o paraguaio Carlos Amarilha, houve uma revolta dos dirigentes. Como explica a reportagem: "O juiz paraguaio foi fundamental na eliminação do Corinthians. Ele deixou de marcar um pênalti claro em Emerson nos primeiros minutos de jogo e anulou incorretamente um gol de Romarinho, alegando um impedimento inexistente"1. De fato, as falhas foram tão escandalosas que o diretor de Futebol do Corinthians, Roberto de Andrade, declarou indignado:"O Amarilla devia estar preso, mas conseguiu escapar (...) O Amarilla chegou ao Brasil para apitar esse jogo com uma encomenda, e ele devolveu certinho, do jeito que pediram para ele fazer, para tirar o Corinthians da Libertadores. Ou você acha que estou falando alguma coisa exagerada. É assim que funcionam as coisas no futebol, infelizmente"2. O jogo em si não apresentou nada de novo, eis que as cenas de erro e acusações de malandragem repetem-se há muitos anos. Mas, no caso, há um depoimento de um dirigente falando de certas coisas que se passam em alguns jogos. E as regras do futebol se mantêm em termos tecnológicos, muito atrasadas. Como já tive oportunidade de tratar anteriormente, a FIFA - a dona do negócio futebol - e, no episódio narrado, a Conmebol, são grandes corporações, que se utilizam dos mais modernos métodos existentes no mercado para promover seus eventos, lançando mão do que existe de mais avançado em termos de tecnologia: de venda, de distribuição, de marketing, de transmissão dos jogos, etc. Todavia, paradoxalmente, mantêm em funcionamento um esporte no qual vigem regras antigas que não são submetidas ao mais simples elemento da tecnologia como, por exemplo, o uso de câmaras e "tira-teimas" para a aferição de infrações e gols. Algo que pode ser feito sem muito transtorno ao espetáculo. Como tem sido defendido por alguns especialistas, a introdução da tecnologia no jogo, como acontece, por exemplo, no futebol americano, evitaria desgastes e dificultaria eventual tentativa de manipulação dos resultados. Aliás, esse tipo de situação envolvendo a arbitragem, assim como os atos de violência entre as torcidas, as manifestações de racismo, etc. certamente fazem com que o espetáculo perca público. Seria muito bom se ao lado da verdade e da Justiça no próprio jogo, se conseguisse paz entre os torcedores, oferta de qualidade das instalações dos estádios, em condições dignas de higiene, com alimentação adequada, etc. Torçamos para que a Copa das Confederações e a Copa do Mundo que serão realizadas no Brasil demonstrem que esse patamar de respeito ao consumidor torcedor foi alcançado, ainda que as regras do jogo não sejam modificadas. Por enquanto, com as regras atuais, cabendo ao árbitro a decisão soberana e para quem gosta de questões jurídicas, passo a seguir o exercício que já fiz com meus alunos do pós-graduação e do curso de especialização em Direito do Consumidor. Perguntei a eles o seguinte: Tendo em vista a evidente armação de um resultado, pode o torcedor pedir de volta o valor pago pelo ingresso? Poderia também ingressar com ação pedindo indenização por danos morais, alegando que se sentiu ludibriado e foi ferido em sua honra de torcedor? Sempre depois de alguma discussão, acaba havendo consenso entre os alunos em responder negativamente as assertivas. É que se chega à conclusão de que o erro por mais clamoroso que seja faz parte do jogo; é uma regra não escrita do sistema. Além do mais, vale para os torcedores dos dois times, tanto do time perdedor quanto do vencedor. No fundo, o princípio vigente no futebol não é o da busca da verdade, mas apenas e tão somente o da autoridade do árbitro. Este, intocável em suas decisões dentro do gramado, transforma sangue em água; areia em ouro. É um mágico. Capaz de mudar o real. Mesmo com os vídeos, com os tira-teimas e repetições, mesmo havendo contra a decisão do árbitro o fato tal como ocorreu, nada muda. Permanece o regime de permitir que ele modifique o real a seu bel prazer, doa a quem doer. __________ 1Extraída do UOL, 16/5/2013. 2Mesma matéria.
quinta-feira, 16 de maio de 2013

O mercado de medicamentos não tem base moral?

Albert Sabin, cientista que dispensa apresentações,  descobriu a vacina que leva seu nome e que foi aprovada pelo Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos em 1961. Seu produto, preparado com o vírus atenuado da pólio, poderia ser tomado oralmente e prevenia a contração da moléstia. Sabin renunciou aos direitos de patente da vacina que criou, facilitando sua difusão e permitindo que crianças de todo o mundo fossem imunizadas contra a poliomielite. Sua descoberta efetivamente eliminou a pólio em quase todo o mundo.Não se fazem mais cientistas como Sabin. Atualmente, a corrida por registros e patentes é uma forte marca da "inventividade humana", aliás, na maior parte dos casos, produzidas por cientistas-empregados das grandes corporações de medicina, biologia e medicamentos. Onde foi parar a humanidade da ciência?O noticiário internacional das últimas semanas mostrou que cerca de cem oncologistas de quinze países denunciaram em um artigo1 os preços abusivos dos medicamentos contra o câncer necessários para preservar a vida dos doentes, particularmente nos Estados Unidos, e fizeram um apelo para que prevaleçam "as implicações morais".Veja isto: Entre os doze tratamentos contra o câncer aprovados em 2012 pela agência americana que regula alimentos e medicamentos (FDA), onze custam mais de 100.000 dólares por ano. Segundo esses médicos especializados em leucemia, um custo desta magnitude não se justifica moralmente porque os medicamentos, dos quais dependem os doentes para preservar sua vida, não deveriam estar submetidos às leis do mercado."Quando um produto afeta a vida ou a saúde das pessoas, o preço justo deveria prevalecer por suas implicações morais", escreveram os médicos, dando como exemplo o preço do pão na época da fome, da vacina da poliomielite e de tratamentos de patologias crônicas como diabetes, hipertensão arterial ou tuberculose.O mercado engole tudo. E, na medida em que os conservadores liberais passaram a dominar o livre mercado e a defender que a economia deve ser deixada a si mesma, sendo que a ciência econômica deve ser neutra, isto é, não pode emitir juízos de valor, mas apenas descrever os fatos, parece que algo do humano se perdeu. E, de fato, um ser humano absolutamente "neutro", sem uma base moral, não é "bem" um ser humano, pois falta algo nele. Falta um mínimo de senso de solidariedade, de bom senso, de conduta justa, etc., enfim, de "humanidade". É de conhecimento geral a vida de um casal de historiadores que descobriu que seu filho Lorenzo de oito anos de idade era portador de uma doença rara e degenerativa diagnosticada como adrenoleucodistrofia (ALD), que provoca uma incurável degeneração do cérebro, levando o paciente a morte em pouco tempo.A história de Lorenzo e seus pais ficou mundialmente conhecida em função da realização do excelente filme "O óleo de Lorenzo"2. O filme é uma lição de vida e a vida de Augusto e Michaela Odone - os pais de Lorenzo - uma lição de humanidade. Haveria muito o que falar sobre o filme (e a quem não assistiu, indico), mas vou centrar num dos aspectos: o do mercado (ou da falta dele, no caso).Mas, é necessário um pequeno resumo: O drama começa quando o casal descobre que o filho Lorenzo é portador da ALD. De acordo com os médicos, o garoto não viveria mais do que três anos. O desespero toma conta dos pais e afeta fortemente Michaela, pois Lorenzo, além de ser seu único filho, herdara a patogenidade dela, eis que a ALD transmite-se exclusivamente de mãe para filho (somente do sexo masculino) devido a uma disfunção genética relacionada com o cromossomo sexual X. Apenas as mulheres são portadoras, havendo 50% de chances de transmitirem a doença para o filho.Augusto e Michaela acabam por se envolver com os membros de uma ONG de pais com filhos portadores de ALD, porém constatam que esses pais se preocupavam principalmente em aceitar a doença, buscando somente a conformidade e não a cura.Inconformado com essa situação, Augusto, o pai, resolve dedicar sua vida para descobrir os fatores determinantes da doença. E, numa verdadeira epopeia, ele e Michaela acabam por descobrir um problema com a dieta dos doentes: utilizando um óleo especial de oliva, Lorenzo conseguiu, apesar de não ter voltado ao estado normal de saúde, barrar a doença, com melhoras significativas (Lorenzo Odone morreu aos 30 anos, em 30 de maio de 2008, um dia depois de fazer trinta anos, por causa de uma pneumonia. Ele viveu 20 anos a mais do que os médicos previram).Augusto Odone teve o reconhecimento dos seus estudos pela comunidade médica e acadêmica americanas: o título de Doutor honoris causa por sua imensa contribuição à ciência e à medicina. Eis a atuação do mercado: Os Odone haviam resolvido organizar um simpósio para ouvir cientistas e, juntando esforços, buscar uma saída para o problema. Daí, surgiram as questões mercadológicas. O médico que era o pesquisador que tinha desenvolvido um modelo da dieta (que não estava dando certo) disse que os custos para um evento daquele porte eram altíssimos e que eles não conseguiriam angariar fundos para tanto. Mas, o principal: não havia interesse naquela doença, pois ela não tinha uma grande prevalência no mundo. O número de doentes era insuficiente para motivar e sustentar investimentos para a pesquisa. (Os Odone não desistiram e conseguiram realizar o Simpósio, gastando o dinheiro que tinham e recebendo doações de amigos e colegas de trabalho).Eis o ponto: a história dos Odone mostra como age o mercado de pesquisa: é a quantidade de doentes que importa. Se uma doença atingir apenas alguns poucos (ainda que milhares na correlação com os gastos necessários para a pesquisa), certamente estarão fadados a permanecerem doentes e abandonados a própria sorte pelo mercado. A base do mercado não é mesmo ética!É por essas e outras que cada, vez mais, os governos têm intervindo no mercado de medicamentos, quebrando patentes. Já que o mercado não tem base moral, a política, que deve se sustentar nela e também nos sistemas legais justos e protetores da dignidade da pessoa humana, deve bloquear os abusos.Fiquemos com o exemplo brasileiro: A presidenta Dilma Rousseff prorrogou, por mais cinco anos, a quebra de patente do medicamento Efavirenz, usado no combate ao vírus HIV. A decisão foi publicada no "Diário Oficial da União" de 5/5/2012. Cinco anos antes, o presidente Lula decidiu pela quebra de patente do remédio, produzido pelo laboratório norte-americano Merck Sharp & Dohme. A publicação do decreto diz: "Fica prorrogado, por cinco anos, o prazo de vigência do licenciamento compulsório das patentes no 1100250-6 e 9608839-7, referentes ao Efavirenz para fins de uso público não comercial".Em 2007, o governo brasileiro comprava o Efavirenz a US$ 1,59 do laboratório norte-americano, detentor da patente. Com a decisão da quebra, passou a pagar US$ 0,44 de um laboratório da Índia. Foi a primeira vez que o Brasil recorreu à medida, prevista no Acordo de Propriedade Industrial (Trips) da Organização Mundial do Comércio (OMC).Em 2008, o medicamento começou a ser produzido no Brasil, na apresentação 600 mg, por meio do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz (Farmanguinhos), que é ligado ao governo. Desde 2011, a produção supre toda a necessidade nacional do Efavirenz 600 mg. Cerca de 103 mil pessoas usam o medicamento regularmente.O governo, no entanto, continuou pagando 1,5% de royalties ao Merck Sharp & Dohme. O remédio é repassado gratuitamente aos pacientes com Aids por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).Recentemente, no dia 1º de abril. p.p., a Suprema Corte da Índia negou o pedido da farmacêutica multinacional suíça Novartis para ter direito à patente do medicamento anticancerígeno mesilato de imatinib, comercializado com o nome Glivec. A decisão favorece os fabricantes indianos de genéricos, cujas versões do remédio custam menos de 10% da original vendida pelo laboratório suíço. O Tribunal indiano rejeitou a patente da Novartis ao considerar que o medicamento é uma leve modificação de um produto anterior, embora com propriedades que não mudaram, explicou o advogado Anand Grover, integrante da equipe de defesa da Associação de Ajuda aos Pacientes com Câncer. Assim, a Novartis não teria direito à patente da droga, pois esta não seria um medicamento novo. O advogado elogiou o Tribunal, ressaltando que a sentença "dá razão aos direitos dos pobres da Índia" e também beneficia os pacientes do mundo em desenvolvimento, pois o fármaco da Novartis custa 2.600 dólares por paciente ao mês, enquanto as versões genéricas possuem custo mensal de até no máximo 175 dólares.Para as grandes companhias farmacêuticas, no entanto, a sentença da corte indiana pode desestimular os investimentos em pesquisa e inovação nos principais laboratórios do setor. A disputa judicial entre a Novartis e os fabricantes de genéricos da Índia começou há sete anos, quando a companhia farmacêutica ingressou com um pedido de patente para uma nova versão do Glivec. O governo indiano negou a solicitação, baseado em uma lei que impede a aquisição de patentes a partir de pequenas mudanças em medicamentos já existentes.Desde então, a Novartis buscava contestar a medida na Justiça. Pelas leis internacionais, companhias com direito à patente têm 20 anos de exclusividade na comercialização do produto. Após esse prazo, a empresa que primeiro quebra a patente pode vender o medicamento por 180 dias. Decorrido esse período, a produção fica liberada a outros fabricantes. O mercado de genéricos da Índia é um dos maiores do mundo e seus laboratórios foram pioneiros na quebra de patentes de medicamentos, política que inclusive serviu de modelo para o Brasil. Por fim, respondendo, à pergunta do título deste artigo, digo que, tudo indica, não há base moral no mercado de medicamentos em geral. Apesar das indústrias do setor, aparentemente, preocuparem-se com os seres humanos, o que se percebe é que o que as impulsiona é o lucro (sempre ele) independentemente do bem estar que seus produtos podem (ou melhor, devem) propiciar. Olhando o setor, se veem doentes abandonados, prática de preços abusivos e outras mazelas numa grande cadeia de abusos.   __________   1De 25/4/2013, na versão digital da revista americana Blood, publicação da Sociedade Americana de Hematologia (ASH).   2Direção: George Miller. Produção: 1992, com Nick Nolte, Susan Sarandon, Peter Ustinov e outros. Universal Pictures Internacional -  em DVD (129 min.).
Um casal vai ao shopping center comprar uma camisa para dar de presente para um amigo comum. Estão sem tempo e, por isso, dividem-se. Sai um para cada lado. Quem encontrar primeiro, avisa o outro pelo celular. Passados 15 minutos, coincidentemente, ambos encontram o que procuravam. Ele compra e paga. Ela compra e paga. Assim que ele pega o pacote e está para sair do estabelecimento, o celular toca; ele atende e descobre que a mulher também comprara o presente. Assim, ainda sem antes deixar o espaço da loja, vira-se para a vendedora e diz: "Desculpe. Não preciso mais desta camisa, pois minha mulher já encontrou o que precisávamos. Cancele a compra, por favor". A resposta não poderia ter sido mais estúpida: "Você comprou. Pagou. Agora leve. Problema seu". Claro que a resposta da vendedora nessa história fictícia - mas, nem por isso pouco real - poderia ser: "Só podemos fazer troca de numeração" ou "Não podemos fazer o cancelamento. A senhor pode trocar por outro produto do mesmo preço", etc., o que daria no mesmo. O que o caso narrado mostra? Empresários despreparados, desrespeitosos, ávidos por vender, embolsar o dinheiro do comprador para nunca mais ouvir dele falar (um tiro no pé, porque significa a perda do cliente). Algo existente no mercado brasileiro que mostra a mentalidade tacanha de muitos comerciantes. Na verdade, eu não precisaria escrever sobre isso, algo corriqueiro, abusivo e conhecido. Mas sou obrigado a cuidar do tema, porque fiquei espantado com a recente notícia de que a presidenta Dilma Rousseff estava enfrentando resistências dentro do próprio governo para implementar o Plano Nacional de Defesa do Consumidor, que foi anunciado no dia mundial do consumidor deste ano (15 de março p.p.) como uma ação importante de Estado. E a dificuldade encontrada está na implantação da principal medida: A da publicação da lista de produtos que devem ser trocados na hora pelas lojas em caso de defeito. Fui investigar e vi que os argumentos dos opoentes são pífios, contra a lei, falsos e, além de tudo, imorais. A reportagem da Folha disse que "desde o dia 15 de março, quando a presidente anunciou o plano para defender interesses do consumidor, empresários se movimentam nos bastidores para tentar barrar a inclusão dos seus respectivos produtos na lista. Os ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento são considerados como 'mais sensíveis' às demandas, num momento em que o governo luta para retomar os investimentos no país, uma das bases para a recuperação do crescimento da economia"1. Como? Li novamente. É isso mesmo. Estão dizendo que o respeito ao direito do consumidor pode barrar investimentos no país. Durma-se com um barulho desses. Até parece que nenhum deles jamais foi aos Estados Unidos da América. Aquele enorme mercado de consumo não tem problemas porque os comerciantes devolvem o dinheiro ao consumidor que compra produto que não funciona ou mais que isso: devolvem o dinheiro para o consumidor que simplesmente não gostou do produto, funcionando e tudo. E lá o consumidor, respeitado, consome com mais segurança porque sabe que o comerciante não embolsará o dinheiro dele pura e simplesmente em qualquer circunstância. Vender um produto que não funciona e não trocá-lo imediatamente ou devolver o dinheiro ao comprador é quase um estelionato. O comerciante embolsa o dinheiro, entrega algo inoperante ao consumidor que fica com o prejuízo. É uma forma de repassar para o consumidor o risco de sua atividade, algo ilegal. Há mais argumentos espúrios. Veja: "Outros pontos controversos são a disponibilidade de estoques fora dos grandes centros e como dividir responsabilidades entre indústria e comércio. A indústria diz que terá aumento de custos para manter estoques mais elevados, e a Fazenda não quer, 'em hipótese alguma', justificativas para reajustes de preço, ainda mais em um momento de pressão inflacionária. Outro receio é que a lista inviabilize a venda de produtos em cidades menores"2. Com disse meu amigo Outrem Ego: "Ei pessoal! Vocês já ouviram falar do Código de Defesa do Consumidor? Ele entrou em vigor há apenas pouco mais de 22 anos. E regula tudo isso que vocês dizem agora que não querem cumprir". De fato, há muito tempo eu não ouvia pataquada desse tipo. Estoques em excesso? Estoque é estoque, como sempre foi. E nele todos os produtos que estão alocados devem funcionar. Ou os empresários mantêm em estoque produtos impróprios para o consumo? A divisão da responsabilidade entre comércio e indústria não mudou. O comerciante acerta a conta com o consumidor e só depois se acerta com a indústria. Regra básica de compra, venda, distribuição e revenda. Aumentar custos para manter produtos em estoque que sempre estiveram lá? Como diria meu amigo: "Conta outra!". Pura lorota. Nenhum industrial ou comerciante, repito, pode manter em estoque produtos deteriorados para vender. E se o fizer sabendo que estavam impróprios para o uso é mais que simples responsabilidade civil; é fraude pura, verdadeiro estelionato. O vendedor não pode conscientemente entregar produto estragado e embolsar o dinheiro do consumidor! Por fim, anoto que a matéria também aponta que um dos impasses está nos critérios de elaboração da lista. O Ministério da Justiça considera usar o ranking de reclamações dos Procons, que inclui, por exemplo, telefone celular, produto que as empresas se recusam a considerar como essencial. Não me alongarei nesse ponto. O aparelho celular é, evidentemente, um produto essencial, como demonstrei nesta mesma coluna no dia 10 de março de 2011. Uma coisa é patente: O consumidor paga o preço pedido, fechando o legal e legítimo contrato de compra e venda. Desembolsa, assim, seu suado e sacrificado dinheiro. Logo, tem o direito líquido e certo de receber o produto funcionando adequadamente ou, em caso de vício, o direito de efetuar a troca. O mercado dos Estados Unidos da América, que tanto inspira o setor empresarial, nessa hora é, solenemente, esquecido. Passou da hora de seguir o exemplo do sistema americano no respeito ao direito do consumidor nesse ponto. Por lá, como disse, o consumidor pode desistir do negócio, recebendo o dinheiro de volta, mesmo que o produto não apresente vício ou defeito. E, mesmo por aqui, essa regra já vige, na hipótese prevista no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, que permite que o comprador desista da aquisição dentro do prazo de reflexão de sete dias, sem necessitar dizer por que desistiu. É regra que também está em vigor há mais de 22 anos e não vi até hoje alguém reclamar de problemas de estoque ou que, por causa disso, iria subir o preço dos produtos. Ora, deixem o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça (DPDC) trabalhar, cuidando dos interesses e direitos dos consumidores, como vem fazendo com qualidade e eficiência. Isso somente pode ser favorável ao mercado, jamais contra. Essa atitude comprova mais uma vez a falta de ética de certos setores empresariais e o batido uso dessa conversinha mole para boi dormir. Apenas mais um capítulo da interminável novela de um tipo de comunicação do regime capitalista contemporâneo: "Engana-me que eu gosto!". __________  1Folha de São Paulo, 28/4/2013. Colhi a matéria no UOL. 2Idem, ibidem
Hoje, mais uma vez e pela importância da data, eu deixo de lado as intrigas e os enormes problemas que existem no mercado de consumo para apresentar novamente um artigo sazonal, o relativo ao dia das mães.  De todo modo, como não dá para escapar totalmente das enganações reinantes, lembrarei de algumas cautelas necessárias para as boas compras, pois  a data é especial e, por isso mesmo, a compra é emocional e irresistível. O consumidor terá de comprar o presente, que nem sempre é fácil escolher e, já antes de sair de casa, está envolvido de tal forma que pode tornar-se presa fácil de artimanhas. Aliás, como sempre digo, qualquer que seja o dia a ser comemorado, seja o das mães, dos pais,  das crianças, dos namorados, Natal, aniversário de alguma pessoa querida etc., em todos o consumidor está mais fragilizado, pois é um momento de compra compulsória. Até aí, tudo bem. Mas, o mercado sabe disso e pode criar armadilhas. Por isso, os cuidados devem ser maiores e a escolha deve ser a mais racional possível. Pesquisando preços Em primeiro lugar e, como regra geral, não se deve comprar um produto sem antes fazer uma pesquisa de preços. Os preços variam muito de vendedor para vendedor. As diferenças entre os estabelecimentos às vezes são tão grandes que permitem a aquisição de dois presentes em vez de um. Nos dias atuais, com todas as facilidades oferecidas pela internet, naturalmente, é  por ela que a pesquisa de preços deve ter início. Há até sites de busca especializados em procurar e encontrar o menor  preço. Mas, claro, depois de obtê-lo, é ainda necessário checar estoque, qualidade e condições de entrega para ver se vale a pena mesmo, o que pode ser feito pela própria web, pelo telefone ou pessoalmente. No entanto, dependendo do tipo de produto que se deseja comprar, a pesquisa haverá de ser feita "in loco". Daí o jeito é bater perna, mas, nunca se deve pesquisar preços num só local. Por exemplo, apenas numa mesma rua ou num único shopping center. Isso porque, da mesma forma que o consumidor pesquisa, os lojistas também o fazem. E assim, pode acontecer que numa mesma rua, principalmente em lojas próximas, os preços não sejam tão diferentes.  E, com os preços em baixo do braço, é possível exercer um direito básico do consumidor: o de pechinchar. Vale a pena pedir descontos e negociar com o comerciante. Cuidado com os "descontos" Uma tática bastante atraente e enganosa é a da oferta de descontos. Há lojas que estão sempre fazendo promoções, oferecendo vantagens. Algumas usam essa "técnica" de vendas o ano inteiro! Ora, se a promoção é permanente, então, na verdade, ela é falsa: é tática enganosa da loja para atrair o consumidor pelo desconto e não pelo preço. Por isso, não se deve confiar cegamente nesse tipo de oferta; a preocupação deve estar centrada no preço final do produto. O percentual de desconto não significa nada. Dez, vinte, trinta, cinquenta por cento são apenas atraentes aos olhos. O que vale é quanto custa o produto realmente após o abatimento, isto é, o que interessa mesmo é quanto o consumidor irá desembolsar.         Mais ofertas enganosas Há mais enganações. Por exemplo, existem anúncios que dizem: "Pague à vista com 20% de desconto ou em 3 x sem acréscimo". Ora, se à vista tem desconto, quando o preço é dividido em três prestações, o valor do desconto está incluído. Portanto, há acréscimo, sim: ele é o correspondente ao montante do desconto. Meu amigo Outrem Ego contou que, certa vez, passando pela vitrine de uma conhecida loja de móveis para escritório, viu uma cadeira exposta e sobre ela um cartaz: "Oferta imperdível. Apenas R$50,00". Como queria trocar as cadeiras de seu escritório entrou no estabelecimento. Apontou a vitrine e disse: "Eu quero quatro iguais àquela na cor cinza ou preto". A vendedora, muito gentil, disse que eles tinham em preto e começou a anotar o pedido. Meu amigo viu que ela escreveu ao lado da cadeira e modelo o preço: R$150,00. Ele a interrompeu: "Desculpe. Há algo errado, pois o cartaz da vitrine diz que ela custa R$50,00 e não R$150,00". A vendedora, então, respondeu: "É mesmo. A da vitrine custa R$50,00. Só a da vitrine. Se o senhor quiser posso vendê-la, mas só temos uma, que é  aquela que está exposta". "Mas, ela é cor rosa choque! E nem que fosse de outra cor serviria, pois preciso de quatro", disse revoltado meu amigo. A vendedora deu de ombros e ainda por cima quis justificar que o cartaz era claro, pois estava colocado sobre a cadeira. É mole? Essa história de meu amigo, é um outro exemplo de chamariz: O das lojas que colocam na vitrine produtos com preços bem atrativos, mas, quando o consumidor se interessa e entra para comprar, o vendedor diz que o estoque acabou ou, em caso de roupas, que a numeração não existe. E, em seguida, o vendedor oferece produto similar bem mais caro. É um método grosseiro de atrair o consumidor e tentar vender o produto pelo constrangimento causado. Ademais, e por falar em relação pessoal, é bom tomar cuidado com  a conversa do vendedor que, claro, está preparado para falar coisas agradáveis e fechar o negócio. É preciso, pois, refrear o impulso da compra e refletir bem antes de se decidir por fazê-la. Cartão de crédito Só para lembrar o que é sabido de todos: É abusiva a cobrança de preço diferenciado (maior) para pagamento com cartão de crédito. O preço à vista e no cartão tem de ser o mesmo. E por mais que os órgãos de fiscalização multem a toda hora os estabelecimentos, eles continuam com a prática. Problemas com trocas Comprar presentes é uma arte. É sempre difícil descobrir "aquilo" que o presenteado gostaria de ganhar. Tanto mais quando a pessoa é muito querida. Felizmente, as trocas dos presentes repetidos ou dos que não serviram, como, por exemplo, sapatos muito grandes, camisas pequenas, bolsas repetidas etc., podem ser feitas na maioria dos estabelecimentos comerciais. Todavia, é preciso prestar atenção aos produtos que não podem ser trocados. Algumas lojas, às vezes, não aceitam trocas porque o produto é de fim de linha, fim de estação, ponta de estoque etc. E, como a troca é um direito que nasce na oferta feita pelo vendedor, vale a pena perguntar antes de comprar se a troca pode ser feita e em quais condições. Abusos Não fazer trocas aos sábados Algumas lojas, porém, impõem algumas condições inconvenientes para efetuar as trocas, como, por exemplo, não efetuá-las aos sábados. Essa á a regra: fazer troca em função de tamanho, cor ou porque o presente é repetitivo não é, a princípio, obrigação  do comerciante. Contudo, se ele se propõe a fazer a troca, como é a praxe do mercado, ele tem que cumprir o prometido, pois cria um direito para o consumidor. É uma simples relação contratual e como tal não pode ser abusiva. Daí decorre que, não fazer trocas aos sábados é ilegal, porque é exigência abusiva. O comerciante não pode impor dia para a troca. Problema com nota fiscal Há ainda um outro problema que às vezes ocorre: O da exigência de nota fiscal para a troca. Nem sempre quem dá o presente gosta de entregar a nota fiscal ao presenteado, pois lá consta o preço. Sem alternativa, é melhor guardar a nota fiscal para se for necessário, utilizá-la. Porém, já há muitas lojas que se modernizaram nesse ponto e entregam senhas, documentos separados, etiquetas especiais etc., o que facilita a troca. Problema com etiqueta Outro aspecto que se deve ter em conta diz respeito às etiquetas. Há estabelecimentos que se negam a trocar o produto se a etiqueta for removida. É uma exigência abusiva, mas para evitar aborrecimentos, aconselha-se que a etiqueta não seja removida até que o presente seja experimentado e aprovado. Produto entregue em casa Se o produto adquirido for ser entregue em casa, é importante perguntar se o valor do transporte está incluído no preço. E ao receber o produto em casa, deve-se checar, antes de assinar a nota, se ele corresponde ao que foi pedido, se não está danificado e, sempre que possível, testá-lo ou avisar a mãe presenteada para fazer o mesmo. Nota fiscal Para finalizar, lembro que, como sempre, em qualquer compra, é importante pedir e guardar a nota fiscal.
Se já não bastassem os problemas com carboidratos, proteínas, gorduras, calorias etc., que atingem os consumidores crianças, jovens, adolescentes, adultos, idosos, enfim, todos os consumidores, a cada dia fica mais claro que, na sociedade capitalista contemporânea, que só conhece o lucro e só pensa nele, muitos produtos vendidos são falsificados, adulterados e deteriorados. E não se trata apenas de se "vender gato por lebre". Há muitos produtos autênticos que fazem mal por suas próprias substâncias, por falta de informação ou por informação imprecisa, etc.Noutro dia, meu amigo Outrem Ego me perguntou: "Você gosta de escondidinho?". Eu disse que sim, especialmente o original com carne seca e purê de mandioca. Ele, então, acrescentou se eu conhecia tudo o que se "escondia" no produtos alimentícios. "Como é que a gente, isto é, como é que o consumidor pode identificar se os produtos que ingere são, de fato, de boa qualidade", indagou. Realmente, é difícil fazer essa identificação. Em boa parte das vezes, o consumidor se serve dos olhos e do nariz: Aparência e cheiro são boas alternativas para se aferir qualidade, mas nem sempre dá certo.Claro que o comprador pode lançar mão das cautelas tradicionais como, por exemplo, se for adquirir carnes vermelhas, verificar se elas apresentam zonas (ou manchas) escurecidas ou zonas ou pontos secos, sinais de deterioração. Ou, então, nunca comprar carne moída que já estava triturada quando ele chegou ao açougue (Deve-se sempre escolher a carne inteira e pedir para moer à vista). Também não deve comprar carne de porco que apresente pequenas bolinhas brancas (conhecidas como "canjica").Bem, já que comecei deixe-me lembrar das cautelas para compras de aves: A sua carne estará boa quando tiver consistência firme, cor amarelo-pálida, brilhante e com odor (cheiro) suave, e estará deteriorada quando: apresentar cor esverdeada; sua consistência não estiver firme; e/ou apresentar cheiro forte.E, quanto aos peixes, o consumidor só deve adquirir os que tiverem o corpo rijo (duro), escamas firmes e os olhos salientes e brilhantes. Já os peixes secos, como o bacalhau, estarão deteriorados se apresentarem manchas úmidas ou avermelhadas.Você, meu caro leitor, quer compre os próprios alimentos para preparar quer os compre prontos, sabe muito bem que o mercado está repleto de fraudes de todo tipo e também de produtos deteriorados, que transmitem doenças nem sempre de forma rápida a se poder perceber o que causou o mal (O que gera um grande problema de prova e investigação - pessoal ou pelas autoridades). O noticiário dos últimos dias trouxe à tona alguns casos envolvendo a venda de produtos deteriorados por falha na produção industrial ou má-fé do fabricante. O mais falado, certamente, foi o de um lote do leite de soja Ades, que tinha em seu conteúdo soda cáustica, que, ao que tudo indica, apresentou-se desse modo por um problema de controle de produção e qualidade na fábrica. Mas, na Holanda, as autoridades anunciaram que cerca de 50 mil toneladas de carne de bezerro poderiam estar sendo comercializadas misturadas com carne de cavalo. Vou repetir a quantidade: 50 mil toneladas, distribuídas para 130 compradores holandeses e outros 370 do resto da Europa, isso entre janeiro de 2011 e janeiro deste ano. Grande parte dela já foi consumida, mas as autoridades também informaram que não havia, por enquanto, indícios de risco para a saúde, até porque só por ser carne de cavalo não significa que faça mal...Mais: Boa parte da carne foi revendida para terceiras empresas, que as processaram para fabricar alimentos preparados e prontos para o consumo. As investigações agora concentram-se no DNA dos bezerros utilizados em lasanhas prontas e molhos bolonhesa e também busca-se identificar rastros de um anti-inflamatório intitulado fenilbutazona na carne dos cavalos dos matadouros, que é potencialmente nocivo às pessoas. E na mesma Holanda, neste mês de abril, as autoridades de saúde investigam se as almôndegas de um atacadista de produtos de carnes da cidade de Amsterdã continham carne de cachorro na linha de produção. Além de itens para consumo humano, ele fabricava produtos para consumo animal. Segundo se noticiou, o alarme sobre o caso foi dado no ano passado pela proprietária de um abrigo de animais da cidade espanhola de Pontevedra, que ficou preocupada após o desaparecimento de alguns cachorros. De acordo com essa versão, uma empresa pagava aos proprietários para se livrarem de animais de estimação mortos, mas, quando um deles quis se despedir de seu mascote - uma vez que ele não estava presente no momento de sua morte -, viu pela porta que os animais estavam sendo desossados.Esse mundo capitalista às vezes é de arrepiar e tirar o apetite! Não é à toa que alguns bons restaurantes, desde há muito tempo, passaram a abrir suas cozinhas para que os clientes possam ver como a comida está sendo preparada ou, pelo menos, permitem que eles façam uma visita nas instalações. Porém, nem sempre isso é suficiente - lembremos das carnes preparadas, dos embutidos, etc. Por isso, inclusive, os consumeristas dizem que um bom modo de conhecer a higiene do restaurante é ir, antes de mais nada, ao banheiro local. Se ele estiver asseado, é um bom começo. Mas, se nem o banheiro, que é escancarado ao olhar do consumidor, está limpo, o que se dirá do resto? Claro que, como diz meu amigo, Outrem Ego, "Dá para 'maquiar' o banheiro. Este pode estar tinindo, lindo, cheiroso e ainda assim a comida não estar no mesmo padrão. Não é fácil mesmo a vida de consumidor, especialmente se estiver com fome".Essa situação de fragilidade do consumidor em relação aos serviços e produtos oferecidos e adquiridos, já disse mais de uma vez aqui nesta coluna, é uma característica universal e que a nossa lei de proteção expressamente reconhece: Ele é vulnerável, porque não só não tem acesso aos meios de produção e distribuição como é obrigado a acreditar (confiar?) nas informações que se lhe dirigem. Ademais, em relação aos alimentos, ele pode se enganar com os olhos e com o olfato. Essa, digamos, natureza frágil do consumidor em geral e no caso da alimentação em particular é visível de muitas maneiras. Vejam-se as frutas. Meu querido e referido amigo adora goiabas - pelo menos adorava. Ele contou que, na sua infância, costumava pegar goiaba no pé junto dos amigos. Eles amarravam a blusa na frente, dando um nó dos dois lados, de modo a gerar uma espécie de saco. Dentro enchiam de goiabas apanhadas nas goiabeiras das casas dos próprios amigos e se empanturravam. Ele disse que muitas vezes comiam até o bigato ou melhor, a metade que não viam... Quando Outrem Ego cresceu e deparou-se, na feira, com goiabas maravilhosas: Brilhantes, redondas, bonitas e ficou desconfiado. Havia algo estranho. Ele disse que, em primeiro lugar, as goiabas plantadas naturalmente têm tamanhos diferentes no mesmo pé, não são redondas, bonitas, etc.. São diferentes uma das outras e muito saborosas. "Agora estão todas iguais, lindas e para meu paladar, sem gosto. Pelo menos, como eu me lembro".Pensemos num caso hipotético, mas passível de acontecer. Tomemos Zé Mineirinho, o produtor do melhor queijo branco de Minas Gerais. Por exemplo, da região de Uberlândia. Ele sabe que seu queijo é o melhor do país, de alta qualidade e produzido com rígido controle de higiene e, aliás, ele é reconhecido no Brasil inteiro exatamente por isso. Um belo dia, os pais do Zé Mineirinho resolvem mudar-se da cidade. Decidem ir morar na capital de São Paulo. Mudam-se. Três meses depois, ele vai visitá-los. No domingo, Zé Mineirinho acorda e vai até a padaria comprar pãozinho para o café da manhã. Chegando lá, ele vê o queijo "Zé Mineirinho" de Uberlândia na vitrine do balcão refrigerado. Dá, um sorriso, estufa o peito e pergunta ao balconista: "Esse trem de queijo Zé Mineirinho é bom?". O atendente diz: "É o melhor do Brasil". Zé Mineirinho abre agora um sorriso largo que ilumina todo seu rosto e diz: "Vou levar. Me dá um".Ele chega na casa dos pais, todo feliz, mostra o queijo, sentam-se à mesa e se deliciam com os pãezinhos frescos, com o café e o leite e o queijo. Antes da hora do almoço, os três começam a sentir fortes pontadas na barriga e logo são internados num Hospital, intoxicados que foram pelo queijo. Pode?Pode. Na condição de consumidor, Zé Mineirinho tornou-se frágil como qualquer consumidor. Ele, como produtor, sabia que o queijo era bem produzido, feito com insumos de primeira qualidade e em condições de higiene perfeitas. Mas, como comprador, não sabia como é que o queijo havia sido transportado, se na linha de distribuição algum dos comerciantes havia deixado o queijo sem armazenamento adequado ou em contato com produtos indevidos ou mesmo se na padaria ele fora bem guardado e cuidado, etc. Não tem jeito: A condição do consumidor é mesmo de vulnerabilidade.Daí que, a cada dia é mais difícil se alimentar bem e sem preocupações. Nenhuma área está isenta de fraudes e/ou problemas de qualidade. Podem ser produtos "in natura" ou industrializados. Se a verdade é que, como se diz, "você é o que você come", é preciso tomar muito cuidado para continuar sendo o que se é.
Aqueles que estudam Direito sabem que um dos problemas da eficácia das normas jurídicas editadas pelo Estado - democrático ou não - está no divórcio entre a lei -- abstrata e geral - e a realidade social. Muitas vezes, a edição das leis segue ideais político-partidários ou filosóficos, mas os legisladores esquecem-se de investigar as condições sociais, as formas de condutas vigentes que serão atingidas pela lei, as relações existentes entre as pessoas por ela visadas, certas tradições legítimas, o costume jurídico existente, etc. Não há, necessariamente, algum mal nisso, pois uma das funções da lei é exatamente essa de possibilitar o avanço social a partir de parâmetros políticos e filosóficos superiores. Está aí nossa Constituição Federal de 1988 para prová-lo: Muitos avanços sociais foram por ela estabelecidos, assim como ficou firmada a dignidade da pessoa humana como um super princípio e assim por diante. E, claro, nosso Código de Defesa do Consumidor é um outro bom exemplo dos avanços que o direito posto pode propiciar em termos sociais e econômicos. No entanto, algumas vezes, o legislador, encantado com a beleza abstrata e também com a sintonia racional das palavras da lei, se esquece de investigar mais a fundo a realidade para encontrar alternativas diferentes das estabelecidas, ainda que na forma de exceção. Algumas leis são aprovadas, elevando o direito a um patamar de modernidade e, digamos assim, perfeição, enquanto a realidade subjacente, que não foi examinada em seus vários aspectos, tais como sociais, econômicos, educacionais etc., continua fluindo, até porque a vida prossegue em seu rumo natural, criando conflitos por vezes incompreensíveis para quem os sofre e também gerando injustiça. Meu amigo, o professor Mario Frota, presidente da Associação Portuguesa de Direito de Consumo, com sede em Coimbra, Portugal, publicou recentemente, sob o título "A pós-modernidade burocrática ou lá o que isso seja...", um texto que circula pela internet, mas que, para quem não leu, vale a pena tomar conhecimento. Mário Frota informa que se trata de uma carta fictícia escrita pelo engenheiro florestal Luciano Pizzatto, especialista em Direito sócio ambiental e detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia e que foi adaptada por Barbosa Melo.  Como diz o professor português "Nas caricaturas, um pouco da realidade...". Na coluna de hoje, pois, transcrevo o texto que envolve Direito em geral, Direito Ambiental, Direito do Consumidor etc., e a realidade social, econômica e a pessoa humana, para conhecimento e reflexão. Ei-lo:  "Carta do Zé Cochilo (da roça) para seu colega Luiz (da cidade) Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão e que por isso o sapato sujava.  Se não lembrou ainda, eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra, né Luiz?Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade que nem vocês. Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos aí da cidade. Tô vendo todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente.  Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro de uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.  Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou, deve ser verdade, né Luiz? Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né), contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana, aí não param de fazer leite. Ô, os bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário? Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa ! Eu não sei como encompridar uma cama, só comprando outra, né Luiz? O candeeiro, eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca.  Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luiz, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelos fiscais  e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo. Depois que o Juca saiu, eu e Marina (lembra dela, né? Casei) tiramos o leite às 5 e meia, aí eu levo o leite de carroça até a beira da estrada, onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora. Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou e, pra poder pagar eu tive que vender os porcos, as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não vai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luiz, aí quando vocês sujam o rio, também pagam multa grande, né?  Agora, pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado é com a água do rio. Aqui, agora, o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios aí, né? Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luiz? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora! Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa. Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vir fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo, aí eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foram os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.   Tô preocupado, Luiz, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, aí tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos. Eu vou morar aí com vocês, Luiz. Mas fique tranquilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Aí é bom que vocês é só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem plantar, nem cuidar de galinha, nem porco, nem vaca, é só abrir a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça.  Até mais Luiz.  Ah, desculpe, Luiz, não pude mandar a carta com papel reciclado, pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio". 
"O mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores", diz o escritor mexicano Nobel de Literatura, Octávio Paz. Como tenho mostrado muito o problema da ética no mercado - ou melhor da falta dela - hoje falarei de preços, mas de um ponto de vista das pessoas mais carentes. A sociedade capitalista vive uma tremenda crise. O planeta está sendo destruído pelo sistema de exploração das reservas naturais por ela inventado. Com o modelo de fusões abertamente implantado a partir do final do século XX, milhões de pessoas perderam empregos no mundo todo. Até os Estados Unidos da América, a nação mais poderosa do mundo, assiste a um forte empobrecimento de parte de sua população, algo que não se via desde os anos trinta do século XX, após a quebra da bolsa de Nova York. Na Europa, os países estão à beira da falência e o desemprego é brutal. Os governos estão todos envolvidos e perdidos no meio da crise: Afinal onde está o progresso prometido? O fim da pobreza? Da miséria? Os empregos? Ora, se vivemos numa sociedade de consumidores, há de haver trabalhadores. Caso contrário, como gastar para consumir? Claro, há o endividamento, outra doença, mas ele não é ilimitado no tempo e, mais cedo ou mais tarde, faz o consumo decair, além de gerar outras mazelas sociais. Esse modelo de produção e consumo é enganoso até a medula: Promete, promete, mas, na realidade, cumpre pouco do que prometeu. Naturalmente, há muitos defensores do modelo: Geralmente, os que estão em posição privilegiada e com capacidade de comando.No artigo de hoje, quero trazer para reflexão um aspecto pouco comentado: o do poder relativo do dinheiro na relação com o preço dos produtos e serviços, especialmente os de primeira necessidade e/ou essenciais.Falemos primeiramente dos privilegiados - porque precisaremos deles para entender a questão relativa - e a incrível e distorcida distribuição de renda existente nos países capitalistas. No mês passado a Revista Forbes publicou novamente sua famosa lista dos bilionários. Nela, o brasileiro Eike Batista despencou de sua alta posição anterior. No ano passado ele era o 7º mais rico do planeta. Agora é "apenas" o 100º. Sua fortuna está avaliada em 10,6 bilhões de dólares. Ele deixou de ser o brasileiro mais rico. Este posto ficou com Jorge Paulo Lemann, que aparece atualmente no posto de nº 33, dono de empresas como Ambev e Burger King e com uma fortuna estimada em 15,8 bilhões de dólares.Michael Sandel faz um comentário sobre os americanos mais ricos que frequentam as listas da Forbes1. O primeiro na lista de 2008 era Bill Gates, com uma fortuna estimada em 57 bilhões de dólares (Na deste ano ele está em segundo lugar. O topo é ocupado pelo mexicano Carlos Slim, dono da Claro, dentre outras empresas, mas Bill Gates já está com 67 bilhões de dólares). Sandel mostra que 1% dos americanos mais ricos (o ápice da pirâmide capitalista) detém mais de um terço das riquezas do país. Se descermos um pouco do cume da montanha e ficarmos com os 10% mais ricos, veremos que eles representam 42% de toda a renda e 71% de toda a riqueza2.Em escala mundial, diz Ignácio Ramonet, as 225 maiores fortunas do mundo representam um total de mais de um trilhão de euros ou o equivalente a renda anual de 47% das pessoas mais pobres (isto é, cerca de três bilhões de pessoas). É realmente impressionante a proporção: pessoas que caberiam numa sala de cinema detém uma renda anual superior a mais de três bilhões de seres humanos3.Ramonet também mostra que, em função das fusões e concentrações, algumas grandes empresas detém receita maior que o PIB de robustos países. Por exemplo, a receita da General Motors é superior ao PIB da Dinamarca, a da Exxon Mobil supera o PIB da Áustria4. Mas, deixe-me voltar ao chão, à dura realidade dos assalariados e consumidores de baixa renda. Pergunto: qual o peso do preço das coisas no bolso dessas e demais pessoas? Um pão doce sendo vendido a R$2,00 numa padaria significa que esses dois reais têm o mesmo "valor" para todos os compradores? Ou, dizendo de outro modo: Aparentemente, um produto de consumo oferecido no mercado tem um preço "objetivo". Parece que a quantidade de moeda nele estampada - no exemplo, dois reais - é "absoluta", vale de "per si" - pão doce igual a R$2,00 - e afeta a todos os consumidores que o queiram adquirir do mesmo modo. No entanto, não é bem assim.Os preços estampados nos produtos e serviços são "relativos". O mesmo produto com certo preço fixado pesa de forma diferente no bolso de cada consumidor com poder aquisitivo diferente. O preço, antes de ser objetivo e absoluto, tem peso relativo para a pessoa que o adquire (ou, por isso mesmo, para aquela que não o pode adquirir). Examinemos alguns exemplos.Peguemos um pãozinho francês. Ele custa em média R$0,60. Agora, pensemos no empresário Eike Batista, frequentador das listas da Forbes. Quando ele adquire um pãozinho desses, seu preço para ele (logo, relativo) é não só irrisório: é insignificante; um sem sentido; um inexistente. Se ele comprar seis pãezinhos para comer com o filho Thor e a namorada no café da manhã (dois para cada um), a insignificância continuará. E eles estarão bem alimentados.Agora, pensemos em José da Silva, cujo salário é de apenas R$1.200,00 por mês. Quando ele compra seis pãezinhos para ele, sua mulher e seu filho comerem certamente o preço pago terá peso considerável em seu orçamento doméstico. Lembre-se que ele tem apenas R$40,00 por dia para gastar com tudo o que necessita. Somente os R$3,60 gastos nos pãezinhos representam 9% dessa importância diária. Apenas os pãezinhos! Afora leite, açúcar, café, água, energia elétrica e um longo etc. de produtos e serviços essenciais, que, para quem está no topo da pirâmide é irrelevante. Não só no topo, abaixo também: Para uma boa parcela de abastados, esses produtos e serviços básicos de consumo têm muito pouco peso.Se colocarmos entre José da Silva e Eike Batista toda a gama de pessoas com poderes aquisitivos diferentes, veremos que, na escala decrescente, quando mais perto de José, mais pesa o preço dos produtos essenciais e, subindo, quanto mais perto de Eike, menos importância ou nenhuma importância tem o preço. Basta ampliar o exemplo do pãozinho para os demais produtos necessários diariamente com higiene e alimentação para ver como o "preço", apesar de ser "fixo", estampado em cada produto pesa no bolso das pessoas e varia com a posição dela nessa pirâmide imaginária. (Aliás, a situação pode ser bem pior que a de José: Há milhões de pessoas que têm uma renda menor que a dele ou, simplesmente, não têm renda alguma). Essa hipótese de relatividade do preço vale para todos os produtos e serviços necessários e essenciais para a manutenção de mínimo de uma vida digna. Os serviços públicos essenciais, por exemplo. O preço estipulado, em sua grande maioria, é o mesmo para os vários tipos de bolsos. São ainda poucos os casos de gratuidade. Ora, serviços de energia elétrica, abastecimento de água e esgoto, transporte, telefonia, etc. pesam muito para alguns e quase nada para outros. É profundamente injusto algumas pessoas ficarem sem o fornecimento de água ou energia elétrica porque não conseguem pagar contas de pequenos valores (É também ilegal, conforme já mostrei nesta coluna). Veja-se que o preço relativo desses serviços essenciais oprime alguns e fazem cócegas em outros. Gera uma sociedade realmente muito injusta. O problema da distribuição de renda não é só, pois, de ganhos totais ou "per capita" e sim de quanto cada preço pesa no bolso das pessoas de baixa renda.Algumas vezes, parece que essa relatividade é levada em consideração. Veja-se, por exemplo, a divulgação de índices de inflação feita neste mês de abril pela Fundação Getúlio Vargas5. Os percentuais publicados mostram que, para o público de baixa renda (que para a pesquisa são as famílias com renda de até 2,5 salários mínimos - R$1.695,00) a inflação foi de 6,94% nos últimos doze meses. E a inflação para a média dos brasileiros, no mesmo período, ficou em 6,04%. É maior para os de baixa renda, mas a diferença não é tão grande. Já a inflação em relação aos preços dos alimentos ficou em 13,94% para os de baixa renda e 12,29% para a média dos brasileiros.Ora, índices têm sempre uma tendência a enganar porque feitos por média e, no caso, como adicional, não leva em consideração o peso relativo do poder aquisitivo de cada pessoa. Para cuidar de renda per capita, meu amigo Outrem Ego costuma dizer o seguinte: "Se saímos para jantar, você e eu e, no restaurante, eu como dois frangos e você não come nenhum, então, em média comemos um frango cada um. Mas, eu estarei explodindo de tanta comida e você estará passando fome". Ou, dizendo de outro modo, a média desconsidera a realidade concreta de cada pessoa e até grupo de pessoas, gerando uma ilusão em relação à renda e, naquilo que interessa nesta análise, ao poder aquisitivo de cada um na relação com o preço das coisas, especialmente os produtos e serviços essenciais. De fato, se uma pessoa ganha R$15.000.000,00 por ano e mil pessoas ganhem R$14.400,00 por ano cada uma, em média todos ganham R$24.500,00 anuais. Mas, na realidade, o primeiro nadará em dinheiro sem preocupação com o preço das coisas e os demais continuarão fazendo contas e se apertando para conseguir comer dois pãezinhos por dia no seu orçamento diário de R$40,00 (Ou R$1.200,00 por mês). __________1No livro "Justiça - o que é fazer a coisa certa". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª. ed., 2012, pág. 77 e segs.2Idem, ibidem, pág. 773No livro "Guerras do século XXI - novo temores e novas ameaças". Petrópolis: RJ, 2003, págs. 13 e 14. Os dados são de antes da crise mundial de 2008, mas pode-se aceitar que os dados não tenham se alterado tão drasticamente. Basta ver que Bill Gates em 2008 tinha uma fortuna estimada em 57 bilhões de dólares e atualmente a mesma está em 67 bilhões.4Idem, ibidem, pág. 16.5Minha fonte é o Jornal O Estado de São Paulo de 1/4/2013, pág. B1.
quinta-feira, 4 de abril de 2013

Os direitos do consumidor idoso

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) já foi acusado de ser "excessivamente protecionista". Pergunto: alguém seria contra uma lei que protegesse o menor de idade? Ou um deficiente? Ou, então, contra uma lei que desse alguns privilégios à mulher grávida? Ora, o mesmo se dá com o consumidor: A lei reconhece que ele necessita de proteção. Aliás, a proteção estabelecida no CDC advém de comandos constitucionais: O inciso XXXII do art. 5º diz que o "Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" e o art. 48 do Ato das disposições constitucionais transitórias estabeleceu que o "Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição" deveria "elaborar o código de defesa do consumidor". Daí, a lei 8078/90 nada mais fez do que reconhecer o óbvio da sociedade capitalista: O consumidor é vulnerável e, por causa disso, precisa de amparo. Ademais, o CDC reconhece que, dentre os consumidores, há alguns que são ainda mais vulneráveis, exigindo maior proteção, como se pode ver do inciso IV do art. 39 ou do parágrafo 2º do art. 37. Muito bem. Hoje cuido de consumidores que têm essa proteção especial. Falo dos idosos. Os consumidores, como eu disse, são protegidos pelas regras do CDC (lei 8078/90) e os idosos pelo Estatuto do Idoso (EI: lei 10.741/03). Na sequência, apresento, com fundamento nesses dois diplomas legais, alguns direitos dos consumidores idosos. O idoso consumidorEm primeiro lugar, lembro que, por força de expressa disposição legal, o consumidor é considerado vulnerável porque, no mercado de consumo, ele é apenas aquele que atua no polo final, sem ter condições de saber como os produtos e serviços são fabricados e oferecidos, quais são suas reais condições de operacionalidade, funcionamento, qualidade; se as informações fornecidas são verdadeiras ou não; se, inclusive, ele precisa mesmo adquirir determinado produto ou serviço, etc. Enfim, o consumidor é aquele que age, digamos assim, passivamente no mercado de consumo, na medida em que ele não determina nem conhece os modos de produção, os meios de distribuição e sequer decide pela criação deste ou daquele produto ou serviço. Assim, independentemente de sua idade, o consumidor precisa mesmo de proteção legal.Além disso, como adiantei, o CDC já havia dado especial proteção a certos tipos de consumidores, protegendo-os mais fortemente que os demais no capítulo das práticas comerciais. Lá, especificamente no artigo 39, estabeleceu que é "vedado ao fornecedor prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social" (inciso IV). De modo que, o idoso-consumidor já tinha proteção legal especial nas relações de consumo. É verdade que, com o EI, de pronto, estabeleceu-se novo marco de idade para a caracterização do idoso, o que ampliou o leque de proteção. Idosa, por definição legal, é toda pessoa que tiver idade igual ou superior a 60(sessenta) anos (art. 1º, EI). Prioridade no atendimentoO EI garante o direito à prioridade, buscando assegurar ao idoso atendimento preferencial numa série de serviços públicos e privados. Aliás, atender pessoas idosas discriminando-a positivamente sempre foi uma exigência da concreta aplicação do princípio da isonomia do texto constitucional. Para dar atendimento preferencial - qualquer que fosse, e indistintamente de ser público ou privado - bastava, em primeiro lugar, ser educado - como se faz oferecendo o lugar no ônibus - ou exigindo os direitos garantidos na Constituição Federal. Esse tratamento diferenciado como obrigatório, claro, é um reforço àquilo que já existia. Mas, o que preocupa é o fato de que, mais uma vez se coloca na lei algo que o próprio Estado não respeita nem tenta aplicar concretamente. Veja, a título de exemplo, o que regularmente ocorre, infelizmente, com os milhares de aposentados (maiores de 60 anos!) que fazem filas diariamente em frente aos postos do INSS pelo Brasil afora; eles ficam várias horas por dia debaixo de sol e chuva, muitos passam mal, desmaiam, adoecem; centenas têm mais de setenta e até oitenta anos; outros fazem filas nos postos de saúde e hospitais públicos etc. Ora, como é que se aplicará a lei que dá proteção ao idoso se o Poder Público - e suas autarquias - é o primeiro a não cumpri-la? Faço questão de colocar aqui esse comentário, pois para dar prioridade ao idoso, o Poder Público jamais precisou de lei ordinária: bastava cumprir o comando constitucional. Planos de saúde O EI regra alguns direitos que o idoso goza no que diz respeito à proteção à sua saúde. Ressalto, nesse ponto, um dos aspectos mais importantes, o de que ficou proibida a cobrança de valores diferenciados ao idoso pelos Planos de Saúde. A discriminação em função da idade ficou vedada (§ 3º do art. 15). Assim, com o estabelecimento dessa norma, ficou simplesmente proibido o aumento da contraprestação pecuniária dos usuários-idosos dos planos privados de assistência à saúde. Descontos em ingressos O consumidor-idoso tem direito a 50% (cinquenta por cento) de desconto nos ingressos para toda e qualquer atividade de diversões públicas, tais como eventos esportivos, culturais, artísticos e de lazer (art. 23, EI). Desse modo, cinemas, teatros, estádios de futebol etc. somente poderão cobrar metade do valor de face dos ingressos. A lei nada fala a respeito da qualidade dos assentos nos locais em que os serviços de diversões e culturais estão sendo oferecidos e todos sabem que muitos deles cobram preços diferentes em função da localização: arquibancada, geral, numerada nos estádios de futebol; galeria, plateia, balcão, camarote nos teatros, etc. A interpretação que se deve dar ao texto é, evidentemente, que cabe ao consumidor-idoso escolher o assento e pagar metade do preço, independentemente de sua localização. Para exigir o desconto, basta que o consumidor-idoso apresente qualquer documento que comprove sua idade. As normas do capítulo no qual está inserido esse direito nada dizem a respeito, mas por analogia com o § 1º do art. 39 (que cuida do transporte), entendo que é o máximo que o fornecedor pode exigir. Serviços de transporte No que respeita aos transportes públicos, o EI fixa uma série de direitos: a) aos consumidores-idosos usuários dos serviços de transporte coletivo urbano e semi-urbano é assegurada: a1) a gratuidade. Essa regra vale para os idosos com idade igual ou superior a 65(sessenta e cinco) anos e estão excluídos da garantia os serviços de transporte seletivos ou especiais prestados simultaneamente aos regulares; a2) as empresas de transporte coletivo deverão reservar 10% (dez por cento) dos assentos para os idosos, devidamente identificados; b) no transporte interestadual: b1) fica assegurada a reserva de 2 vagas gratuitas por veículo para os idosos com renda igual ou inferior a dois salários-mínimos; b2) sempre que o número de idosos interessados numa viagem especifica exceder as duas vagas reservadas, os demais (que perceberem até dois salários-mínimos) terão direito ao desconto de 50% no preço da passagem. O artigo 41 garante aos idosos 5% de vagas "em estacionamentos públicos e privados", que deverão "ser posicionadas de forma a garantir comodidade" na sua utilização, mas remete a regulamentação à lei local, o que dificulta sua implementação. Já o art. 42 garante prioridade no embarque em todo o sistema de transporte coletivo, de modo que os prestadores de serviços em geral deverão cumprir tal regra tanto nas rodoviárias, como nos portos e aeroportos. A propósito, anote-se que nos embarques feitos em aeroportos, as companhias aéreas têm de dar preferência aos idosos juntamente com pessoas com crianças de colo e deficientes.Aponto, e repito, que, para o idoso ter acesso a todos esses benefícios, basta que demonstre a idade mediante a apresentação de qualquer documento pessoal (§ 1º, art. 39, EI).Internação do idoso As entidades de atendimento do idoso, quer sejam governamentais ou privadas, estão sujeitas à inscrição de seus programas junto aos órgãos competentes existentes: Vigilância Sanitária e Conselho Municipal da Pessoa idosa e, na falta deste, no Conselho Estadual ou Nacional da pessoa idosa (Parágrafo único do art. 48). A oferta dos serviços feitas por essas entidades está regulada pelo CDC (art. 30 e seguintes), assim como o contrato a ser firmado deve obedecer ao comando da lei de proteção ao consumidor (arts. 46 e seguintes), mas o EI, no seu artigo 50, regrou especificamente o mínimo no que respeita a oferta e contratação. Obrigou a que seja feito contrato escrito; determinou a oferta de uma série de itens no que diz respeito à qualidade dos serviços oferecidos (incisos II a XVII), dentre os quais se destacam a necessidade de criar espaço para o recebimento de visitas (inciso VII), a obrigação de fornecer atividades educacionais, esportivas, culturais e de lazer (inciso IX), o dever de manter arquivo atualizado com todas as informações referentes a cada idoso individualmente, tais como data de ingresso na entidade, nome do idoso e de seu responsável, com endereço atualizado, relação de seus pertences - cujo recibo tem de ser oferecido na entrada, conforme inciso XIV --, valores cobrados a título de preço e contribuições, assim como suas alterações e todos os demais dados que envolvam o idoso (inciso XV).Conclusão Estão aí, pois, alguns direitos estabelecidos em lei a favor do consumidor-idoso. Resta a esperança de que algum dia, em nosso país, os idosos possam mesmo ser respeitados com ou sem lei!
Todo ano é a mesma história, com crimes praticados a céu aberto sem que se tome alguma providência (mais uma repetição anual, tal como as chuvas, os alagamentos, os deslizamentos e as mortes consequentes, etc.). Refiro-me ao odioso trote violento. A humilhação causada aos novatos continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa questão? Veja um resumo incompleto das barbaridades deste início de ano: Na USP calouros foram recebidos com banho de lama e tinta; na UFRGS os novos alunos do curso de engenharia civil foram obrigados a segurar uma cabeça de porco enquanto respondiam perguntas indiscretas e sobre eles eram lançados vísceras de peixe e ovos podres; na UFMG os veteranos estudantes de Direito pintaram o corpo de uma caloura com tinta preta, a acorrentaram e nela colocaram um cartaz escrito: "Caloura Chica da Silva"; na mesma escola, um novato foi pintado com tinta vermelha e amarrado a uma pilastra, enrolado por uma faixa de plástico utilizada para isolamento de acessos. À frente dele, os veteranos fizeram uma saudação nazista. Nos dois casos, fotos foram tiradas e distribuídas via internet e redes sociais; na Escola Politécnica da USP, foi implantada uma gincana machista, que agrediu e humilhou as calouras e, no campus de São Carlos, alguns veteranos ficaram pelados para hostilizar alunas que faziam manifestação contra o machismo e abuso dos trotes; no Rio Grande do Sul, uma estudante de apenas 14 anos, que não tinha qualquer relação com as manifestações, teve a visão comprometida ao ser atingida por um ovo lançado, etc. Um dos problemas nos trotes está em que, na maior parte dos casos, os próprios calouros não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Veja o que disse um veterano a respeito dos trotes racista e nazista feitos na UFMG: "Acompanho o trote desde que entrei aqui. O trote da nossa faculdade, todos os alunos aceitam. Não tem violência (sic). Não acho que foi racista (sic!). É normal. O trote não tem violência física e psicológica. É para os alunos se enturmarem. O que houve foi uma descontextualização (referindo-se aqui a divulgação das fotos"1. É a própria confissão dos delitos! Há algumas mudanças na direção certa promovidas por Centros Acadêmicos, é verdade, mas é preciso avançar mais e para tanto, haveria de se deixar claro que os calouros não só não devem participar como devem denunciar os veteranos. Sei que a pressão psicológica é grande e o medo também. Por isso, cabe às autoridades intervir. No início do ano, as violações são feitas nas vias públicas aos olhos de todas as autoridades públicas! Ou nos campi, à vista dos responsáveis pelas escolas. Uma possível explicação para a aquiescência dos calouros com as violações está em que, desde muito cedo, é incutida neles, enquanto estudantes, a necessidade de evoluírem até atingirem uma espécie de ápice com o ingresso na faculdade (e, claro, seu término). O gargalo do vestibular exerce uma pressão tão grande que não é raro que eles se sacrifiquem além de suas forças para ultrapassá-lo, acabando por adoecer. De algum modo, essa forma de imposição adiciona-se ao já existente ingrediente da passagem do jovem (ou adolescente) para o mundo adulto com todas suas semelhanças com a jornada do herói. Esta, como diz Joseph Campbell, é mais profunda do que qualquer rebeldia e vai até o âmago do espírito humano, para depois retornar trazendo essa essência de vida e doá-la para a humanidade. Para o famoso mitólogo, a façanha do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa ou que sente deslocado entre as experiências normais dos membros da sociedade. Daí, essa pessoa parte numa jornada que ultrapassa o usual para recuperar o que tinha sido perdido ou, então, - como é o caso - para descobrir seu lugar na sociedade. Normalmente, o herói perfaz-se um círculo que inicia com a partida e termina com o retorno. Essa jornada tem algo de uma busca espiritual e de uma evolução, na qual o jovem passa de uma posição de imaturidade psicológica para uma nova forma, adulta. É como se ele morresse e nascesse novamente. Trata-se de uma batalha, de uma luta para atingir um outro patamar de vida2. Nas antigas sociedades os rituais de passagem são celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de sua comunidade. Essa transição pode ser de um padrão social ou sexual para outro (uma mudança para um patamar superior). Ritualmente, reproduz o nascimento, a saída do bebê da barriga da mãe e a entrada para uma nova realidade. E, assim como no nascimento, o rito de passagem exige esforço e sacrifício. Esses ritos podem, inclusive, ter caráter religioso, como, por exemplo, no batismo. Os rituais das "cerimônias de iniciação têm sempre uma base mitológica e se relacionam à eliminação do ego infantil, quando vem à tona o adulto, seja menina ou menino"3. Tanto os meninos quanto as meninas experimentam mudanças fisiológicas muito intensas, que provocam uma mudança psicológica transfiguradora, ou seja, a passagem não é apenas fisiológica, é sobretudo mental. Os ritos de passagem seriam uma forma de resolver os conflitos entre a mente e o corpo. Adicione-se que a independência é conquistada quando o jovem se desprende da dependência dos pais. O primeiro passo para a independência é a oposição à ordem vigente e todo herói começa como um rebelde. Nas sociedades da antiguidade, determinados momentos na vida de seus membros eram marcados por cerimônias, conhecidas como ritos de iniciação ou de passagem. Essas cerimônias, além de representarem uma transição particular para o indivíduo, significavam igualmente sua progressiva aceitação e participação na sociedade na qual estava inserido, tendo, portanto, um cunho individual e também coletivo. Pois bem. O trote universitário tem todas as características de um ritual de passagem, no qual estão presentes os elementos característicos da transposição, da mudança de patamar, da entrada numa comunidade de nível superior, algo atingido com muito sacrifício e o ingresso representa a vitória do herói sobre os obstáculos. Esses elementos talvez sejam um dos grandes problemas para que se possa eliminar o abominável trote universitário. E pior: nessa mazela brasileira, ao que tudo indica, esse ritual do trote não nasceu de nenhuma necessidade instintiva ou ancestral que fosse capaz de lavar a alma dos calouros para que eles entrassem puros no templo universitário. A tradição é muito mais "pobre" e acabou vingando por um vício, um defeito de povos de países colonizados e explorados: o da imitação, como já tive oportunidade de relatar nesta coluna e que repito a seguir. Consta que o trote estudantil nasceu nas Universidades europeias na Idade Média. Tendo em vista o terrível baixo nível de higiene da época, por razões profiláticas, isto é, para evitar doenças e sua proliferação, raspava-se a cabeça dos alunos ingressantes (os calouros) e muitas vezes queimavam-se suas roupas. Essas questões, inicialmente higiênicas, muito provavelmente influenciadas pelo grau de brutalidade reinante, já no século XIV, nas Universidades de Bolonha, Paris e Heidelberg, haviam se transformado em rituais bárbaros claramente sadomasoquistas: Os veteranos arrancavam pelos e cabelos dos calouros, que muitas vezes eram obrigados a ingerir urina e comer excrementos. (Fatos observados em Faculdades no Brasil dos séculos XX e XXI!). Em Portugal, há relatos de trotes violentos no século XVIII na Universidade de Coimbra. Tudo indica que os estudantes da elite brasileira que lá estudaram tenham importado a prática para o território nacional. A ignorância e a bestialidade do ritual fez sua primeira vítima fatal no ano de 1831, com a morte de um estudante da Faculdade de Direito de Olinda. Os trotes, assim como os crimes e as mortes continuaram por todo o século XX: em 1980 um calouro de um curso de jornalismo foi morto por traumatismo cranioencefálico em Mogi das Cruzes; em 1990 morreu de parada cardíaca um calouro do curso de direito em Goiás; em 1999, um calouro de medicina da USP morreu afogado em uma piscina etc. (um longo e tenebroso etc.). O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressavam nas faculdades. Mostra também uma contradição: os jovens ingressam na faculdade - um restrito setor da elite brasileira - e se mostram muito mal educados. Ao invés de agradecerem ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agem como bárbaros, arrogantes e sádicos. E pior: o mercado de consumo vem ano após ano reforçando a figura do calouro violado como se ele assim não fosse. O modelo é, infelizmente, realçado no imaginário do estudante pré-universitário pela publicidade de cursinhos e faculdades, que sempre mostram calouros felizes e violados (no mais das vezes com os cabelos raspados e pintados). Assim, o sistema capitalista vai colaborando para a manutenção das violações. Nunca é demais lembrar que aquilo que é repetido nos meios de comunicação como uma normalidade e que depois é confirmado pelos fatos públicos com naturalidade, acaba aparecendo como um comportamento correto e dentro da legalidade. Esse comportamento incutido pelo mercado funciona como violência simbólica. Como demonstra o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a base da violência simbólica está presente nos símbolos e signos culturais, especialmente no reconhecimento tácito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas, como por exemplo, a mídia, a religião, a publicidade, etc. Por isso, a violência simbólica propriamente dita nem é percebida como violência, mas sim como uma espécie de indicação, uma permissão ou uma proibição desenvolvida com base em um respeito ao que "naturalmente" se faz; ela se apresenta como um modelo de conduta a ser seguida4. Vê-se, pois, que no caso dos trotes ilegais, há uma junção de violência física, psicológica e também simbólica. Tudo muito lamentável. Por fim, para não deixar passar em branco, já que fui obrigado a voltar ao tema, apresento na sequência alguns dos delitos praticados nos trotes e também mostro a responsabilidade das escolas, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro. Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo, fazê-lo engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP). Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP). Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente. Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim. Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizá-la, mas não se deve esquecer que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. O CDC garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a instituição de ensino pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC. Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e, nos primeiros dias de aula, distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro. Apesar de tudo, é preciso lembrar que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. Poe isso, é preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas. Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de direito, medicina, sociologia, engenharia etc. possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, mas que precisa ser combatida. __________ 1In: Portal Terra - 19/3/2013. 2O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990, pág. 131 e seguintes. 3Idem, ibidem, pág. 147. 4O Poder simbólico. Lisboa: Edições 70, passim.
No meu artigo de hoje, apresento alguns pontos para reflexão a respeito do tempo, o nosso tempo privado e de sua perda. Meu amigo Outrem Ego um dia desses reclamava de sua ida ao dentista. Ele teve que tratar um canal e disse "Fazia anos que não ia ao dentista ou, como se diz agora, endodontista. (É assim que meu dentista se apresenta: É mole?). Era tudo muito moderno. Ele envolveu meu dente em uma espécie de máscara de borracha que tampou minha boca e parte de meu rosto. Minha boca ficou aberta sem que eu pudesse evitar. Aliás, bem aberta. Depois isolou o maldito - o dente, quero dizer. Fiquei lá, imóvel, com os apetrechos cirúrgicos colocados; o dente ali meio solitário sem contato com a gengiva, a língua, etc. Daí, com uma espécie de câmera, ele foi com umas agulhinhas até o local da infecção, cutucou, remexeu e resolveu tudo. Tudo muito moderno, como disse. Mas, algo não mudou: o sofrimento. Não doía, mas eu sofri profundamente. Impotente, passivo e não podendo sequer mexer a língua. Tava difícil de respirar. Demorou muito tempo. Parecia que não ia acabar nunca. Mas quer saber? Qual não foi minha surpresa, quando após o serviço acabar eu perceber que se passara apenas cinquenta minutos. Eu pensava que estava lá há horas". Não há nenhuma novidade na descrição feita por meu amigo. Esse é um tipo de tempo, subjetivo. Todos sabem que uma hora de amor dura muito pouco, e ao contrário de meia hora na cadeira do dentista. Ou, como disse, brincando, Einstein: "Você entende a relatividade quando vê que uma hora com a sua namorada parece um minuto e um minuto sentado num formigueiro parece uma hora". O tempo subjetivo, de todo modo, tem muita importância para o mercado. Por exemplo, nas diversões públicas, como um filme no cinema. Para que o espectador aguente um filme de quatro horas, ele há de ser muito bom. E isso acontece mesmo. Quantos filmes não assistimos com duas, três até quatro horas que "acabaram depressa"? Ou que ficamos torcendo para não acabar? E o inverso é verdadeiro: há filmes que depois de vinte, trinta minutos de exposição nos fazem mexer na cadeira sem parar ou que nos faz levantar e ir embora do cinema. Aliás, é comum que as pessoas descubram que o filme é ruim ou chato exatamente porque "percebem a poltrona". Em filmes bons, a cadeira passa despercebida. Há também um tempo sagrado, o tempo das festas periódicas, por exemplo. O "Tempo sagrado é indefinidamente repetível. De certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que o tempo sagrado 'não flui" que não constitui uma 'duração' irreversível. É um tempo ontológico por excelência... A cada festa periódica reencontra-se o mesmo Tempo sagrado - o mesmo que se manifestara na festa do ano precedente ou na festa de há um século... Em outras palavras, reencontra-se na festa a 'primeira aparição do Tempo sagrado', tal qual ela se efetuou 'ab origine"1. O outro tempo é o profano, este nosso do dia a dia da vida social e política, de certo modo privado de religiosidade ou ao menos de significação religiosa2. O mercado de consumo apoderou-se também desses dois. Há muito a dizer sobre isso, mas coloco para o que interessa aqui que, simultaneamente, o mercado, de um lado, digamos assim, "rouba" significação do tempo sagrado (pelos menos os das festas periódicas) transformando as oferendas rituais em meros presentes adquiridos repetida e indefinidamente todo ano, pagos à vista ou em prestações e baseado na mera materialidade do produto. E, de outro lado, confere um aspecto "religioso" ou "sagrado" ao próprio mercado, criando templos de consumo, como os shoppings centers, ou tomando os rituais das festas e inserindo-as em várias diversões públicas, como nas competições esportivas. O tempo profano, que nunca se repete, pode ser medido. Ele "passa" ou, como dizem os filósofos, ele "dura". E, exatamente porque passa ou dura, ele se perde. Uma vez vivido, não volta mais. É o nosso tempo de relógio; uma duração que experienciamos no presente a cada segundo, a cada instante e que se perde na imensidão do passado também a todo momento. O futuro vai chegando, passando pelo presente e se perdendo no passado. Essa experiência do presente, essa duração nunca mais retorna. Daí que esse nosso tempo pode ser medido e perdido. Esse tempo, isto é, essa duração tem um custo, tem um preço e ademais tem um valor. O salário do trabalhador é medido em parte pelo tempo dedicado à prestação do serviço, o que se converte em custo para o empregador. Daí que a busca de eficiência e aumento de produtividade tem relação direta com a passagem do tempo. Quanto mais produtivo é o trabalhador no mesmo espaço de tempo, menos custo para o empregador na relação com o resultado do trabalho: a mercadoria produzida ou o serviço prestado ao consumidor. Por isso, o salário pode também ser majorado na relação com a produtividade no tempo. O trabalhador é também um consumidor (e há, claro, muitos consumidores não trabalhadores). O tempo para o consumidor tem um valor. Valor objetivo de troca do valor de seu próprio tempo, pois enquanto consome ou o gasta para consumir, perde-o para exercer outras atividades que não de consumo (embora, cada vez mais a maior parte de suas atividades como pessoas possam ser traduzidas como de consumo; ações de consumo). Valor subjetivo: o que ele quer fazer com seu tempo, é problema dele. Só a ele diz respeito. É direito pessoal, privado e da esfera de sua intimidade; é uma prerrogativa que lhe pertence. Mas, tanto no papel de trabalhador como no de consumidor, cada vez mais a sociedade "produz" perda de tempo. Há um tempo "roubado"3 pela sociedade, um tempo sem qualquer utilidade objetiva. Olhando-se a sociedade atual, percebe-se que o capitalismo é um "ladrão de tempo". "Ladrão" de vida, portanto. Esse roubo se verifica tanto em relação ao inevitável trabalho (na maior parte, sem função lúdica e/ou prazer; apenas de troca de tempo e força de trabalho por salário) como do tempo reservado ao consumo. Isso envolve, em alguns lugares específicos, como o das grandes cidades, o roubo do tempo feito pela ineficiência dos serviços públicos como, por exemplo, o de transportes. Os congestionamentos são verdadeiros ladrões sem quaisquer escrúpulos. Essa perda é irreversível. O dia, as horas, os minutos passaram; não voltam mais. Não há como recuperá-los. Mas, essa perda de tempo não é muito consciente em várias situações. E, ademais, é preciso impedir que as pessoas tomem consciência dela. São vidas roubadas, jogadas fora impunemente. Não é bom que essas perdas aflorem na consciência, para que as pessoas não descubram sua própria inutilidade nesse desgaste insano e irreversível. É conhecido o mito de Sísifo, um rei de Corinto. Por ter contado que avistara uma enorme águia carregando em suas garras uma jovem, sequestrada a mando de Zeus, foi por este condenado a ficar eternamente rolando montanha acima uma rocha que sempre caia antes de chegar ao cume. Perda de tempo total. Lendo-se a obra homônima de Camus, "O Mito de Sísifo", vê-se que o problema do pobre coitado rei não estava exatamente na subida da montanha. De algum modo, ao fazer o esforço para empurrar a pedra morro acima, pode-se imaginar Sísifo vivo ou pelo menos sentindo-se assim, usando seus músculos, percebendo o esforço empreendido, suando, enfim, vivendo com alguma utilidade (mesmo que fosse apenas no ato de empurrar a pedra). O problema dava-se na volta: Quando a pedra rolava morro abaixo, Sísifo a observava e, enquanto descia, tinha tempo para pensar. Tinha tempo para refletir sobre sua própria condição e sobre sua prisão. Pode-se, pois, dizer que, no dia seguinte ele teria de, novamente, empurrar a rocha para cima e, antes do cume, ela rolaria de volta; e no dia seguinte e seguinte, indefinidamente. Ele podia assim sentir-se inútil. Ele poderia perceber que nada valia. Essa consciência era seu verdadeiro drama. E, para citar novamente, Einstein: "Fazendo a mesma coisa dia após dia, não há como se esperar resultados diferentes". Aquilo que se passou a intitular de "consumismo" (a necessidade e o desejo de comprar incessantemente) assume, em parte, o papel de bloquear a consciência dessa perda. O modelo do mercado atual criou uma "urgência para o consumo". Há uma necessidade, uma imposição para que o tempo que reste após aquele gasto no trabalho (e/ou nos estudos) seja utilizado no consumo; seja literalmente consumido. É uma oferta de prazer, na verdade. O consumo como prazer. Oferece-se um prazer no imediato e, talvez, porque não se consiga preencher a alma do consumidor, este continue na busca incessante desse prazer imerso no consumismo irrefreado. Não se busca mais um consumo como um finalidade de descanso ou sossego; com um resultado que alivie o peso da existência. Há uma espécie de pressa insana e por demais exagerada. Pressa para se chegar aos lugares, pressa para se trocar de roupas, de sapatos e até de automóveis. Muita pressa para se chegar nos mesmos locais. Ou, como diz a antropóloga Alexandra Morais Pereira, na sociedade contemporânea, o ritmo da vida alterou-se. Busca-se ao máximo possível uma espécie de prazer ligada ao consumismo, numa maratona diária. "O dia não é mais de sol a sol mas, de 86.400 segundos... A urgência no consumo, como fonte de prazer, é deste modo cada vez maior"4. O sistema de consumo veloz se impõe como uma perspectiva necessária de consumo, numa espécie de círculo que aprisiona o consumidor: Este tem de consumir porque é isto que alimenta sua vida e como esta não pode ser preenchida satisfatoriamente com produtos e serviços, então a saída, é consumir mais. Tudo numa velocidade cada vez maior. O mercado oferece economia de tempo, bem-vinda, permitindo que o consumidor ao invés de ir ao banco, faça as transações em casa; que, ao invés de ir até as lojas, adquira produtos pela internet e os receba em sua residência; que converse com seus amigos ou faça negócios via internet sem ter que atravessar o trânsito das cidades, ganhando, pois, tempo. Em tudo isso e em muito mais, há mesmo economia de tempo, mas esse tempo ganho é gasto com consumo sem fim e urgente. Os pacotes de viagem são um bom exemplo desse modelo: É oferecido que o consumidor "conheça" toda a Europa em apenas quinze dias! O consumidor chega na cidade, é levado para o hotel, hospeda-se, desfaz as malas, sai de ônibus, este para em alguns pontos, ele tira muitas fotos, volta para o hotel, toma banho, sai para jantar com o grupo em algum restaurante, dorme, refaz as malas, acorda cedo, é levado para o aeroporto, viaja para outra cidade; e começa tudo de novo. Enfim, ao cabo de quinze dias, muitos deles gastos em aeroportos, ônibus e fazendo e refazendo malas, o consumidor leva para casa centenas de fotos de algumas cidades, como se tivesse mesmo conhecido a Europa inteira. E esse tipo de pacote é um grande sucesso. E, como disse, nessa urgência, é importante não deixar o consumidor perceber o tempo passar. Há um case de um supermercado do Estado americano de Connecticut que é elogiado por prestar um ótimo serviço ao consumidor e que usa a seguinte tática: Quando as filas nos caixas passam de três pessoas, seus funcionários começam a distribuir doces, balas, chocolates e outras guloseimas para quem espera e aproveitam para fazer pesquisa sobre os produtos. Desse modo, o tempo passa mais facilmente. A ideia é tornar agradável a espera inevitável. Na verdade, a questão das filas é realmente um problema sério em todo o mundo (eu, inclusive, por isso já abordei aqui nesta coluna a questão dos fura-filas). A fila é uma das mais evidentes ladras de tempo. Como disse meu amigo Outrem Ego: "Um dia desses tive de ir à uma agência de um banco oficial. Quando entrei, vi que havia um monte de cadeiras arrumadas em fileiras diante dos caixas. Havia muita gente sentada. Desisti e voltei no dia seguinte. Levei um livro e fiquei sentado lendo enquanto aguardava. Realmente, não é uma boa notícia entrar numa agência bancária e ver cadeiras alinhadas em frente aos caixas!". Apesar de tudo, cada vez mais as pessoas começam a se dar conta do tempo perdido em suas vidas por culpa dos terceiros e do funcionamento da sociedade como um todo. Não é à toa que alguns serviços públicos tem o nome de "Poupa-tempo". E, no mercado de consumo, como a perda de tempo muitas vezes é por demais exagerada, os consumidores passaram a reclamar e até a propor ações judiciais pleiteando indenização pelos danos causados. Do ponto de vista jurídico, esse tempo perdido, roubado na esfera do direito do consumidor, pode realmente gerar indenizações. De fato, há muitas situações de perda efetiva de tempo em matéria de relações jurídicas de consumo. As filas reais de muitos serviços que já referi em bancos, hospitais, aeroportos (e aqui não só filas, como também os atrasos, os cancelamentos, as perdas de conexões e situações similares), etc. e as filas virtuais nos serviços de atendimento telefônicos em geral, quer seja para reclamar ou cancelar uma compra, são prova dessa perda. O consumidor também gasta muito de seu tempo para obter resultado adequado de seus direitos violados, como, por exemplo, no serviços de assistência técnica e nos consertos em geral ou quando fica aguardando o retorno de serviços essenciais de energia elétrica ou distribuição de água, interrompidos pelos mais variados motivos, etc. A doutrina jurídica defende esse direito à indenização em função do tempo desperdiçado por culpa do fornecedor, como se pode verificar no texto de Pablo Stolze, "Responsabilidade Civil pela perda de tempo" e na obra por ele citada de Marcos Dessaune, "Desvio produtivo do consumidor - O prejuízo do tempo desperdiçado"5. Do mesmo modo, a jurisprudência já tem se manifestado sobre o assunto, conforme se pode ver de Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, citado no artigo referido de Pablo Stolze, e que fixou indenização por dano moral em função da perda do tempo livre do consumidor6. Para terminar, quero frisar que, naturalmente, como o tempo privado pertence à própria pessoa, esta pode desperdiçá-lo caso queira. É direito seu. A questão, portanto, não é a perda do tempo em si, mas seu "roubo" por terceiros. Coloco assim esse importante tema do tempo e de sua perda para reflexão. Do modo como a sociedade caminha, o que se percebe é que cada vez mais há, como disse acima, uma perda de tempo e, logo, de vida; a sociedade atual "rouba" vida das pessoas. __________1Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 60. 2Idem, ibidem, p. 59. 3Usarei o verbo "roubar" em seu sentido leigo, não jurídico. 4O nu e a publicidade audiovisual. Lisboa: Pergaminho, 1997. P. 60. 5São Paulo: RT, 2011, apud Pablo Stolze, texto citado. 6Acórdão da lavra do Desembargador Luiz Fernando de Carvalho, 3ª. Câmara Cível, julgamento de 13/4/2011.
Nesse dia 15 de março é comemorado o dia mundial do consumidor. Famoso porque foi nesse dia do mês de março de 1962 que o então Presidente americano John Kennedy enviou ao Congresso uma mensagem na qual defendia os direitos dos consumidores, dentre estes, o direito a segurança, informação e escolha e o direito de ser ouvido, tema que já abordei nesta coluna. Aproveito a data para fazer uma abordagem de nossa lei de proteção ao consumidor, a lei 8078/90, o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Pretendo apresentar algumas de suas virtudes e também os defeitos que, depois de mais de 22 anos de vigência, acabaram-se verificando, o que está por exigir uma reforma. O Código de Defesa do Consumidor - algumas virtudes Inicio fazendo um elogio ao CDC. Os autores do anteprojeto apresentado pelo então Deputado Geraldo Alckmin, que o fez nascer, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Esta lei é tão importante que fez com que nós, importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu, e ainda serve, de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, nele inspiradas. Não resta dúvida de que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como seu texto foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e também em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea, o exercício da cidadania confunde-se com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nas diversões públicas em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como livros, filmes em DVDs e CDs; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; a matrícula em escolas particulares em todos os níveis; a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos; a aquisição da tão sonhada casa própria e um interminável etc. tudo isso é regulado pela lei 8078/90. Por isso, digo que o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a CF de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Ele não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege o vulnerável que é o consumidor em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido. Aliás, leis que protegem o consumidor são a favor do mercado e não contra, como querem alguns. Basta olhar para a sociedade da América do Norte e verificar que a proteção lá existente ajudou em muito o crescimento do mercado. O Código de Defesa do Consumidor - alguns defeitos Muito bem. Acontece que nem tudo o que se esperava dele acabou acontecendo. O CDC é de ordem pública e de interesse social, norma geral e principiológica, o que significa dizer que é prevalente sobre todas as demais normas especiais ou gerais que com ela colidirem. Ele inaugurou no sistema jurídico nacional um outro modo de produção legislativa: ingressou de maneira a não necessariamente revogar leis anteriores. O que ele fez e faz é tangenciar as relações jurídicas envolvendo consumidores e fornecedores estabelecidas com base em outras normas que continuam em vigor, tornando nulas ou inválidas no todo ou em parte as cláusulas contratuais e/ou práticas comerciais que desrespeitem seus princípios e regras. Qual o problema, então? O principal problema está em que nesses mais de 22 anos de vigência, os elementos gerais e principiológicos não conseguiram suprimir abusos sempre praticados, além de novos que surgiram. O que era para ser uma virtude, veio, pois, mostrar-se como um defeito em várias hipóteses. E para quem ainda tinha alguma dúvida, a ficha caiu recentemente no terrível episódio da cidade de Santa Maria. O CDC não foi capaz de proteger os consumidores, pois não tem elementos que permitam o controle real e efetivo de algumas atividades, assim como não consegue garantir a segurança dos consumidores em certos estabelecimentos. A tragédia da boate Kiss é, até agora, a maior, pior e mais triste prova desse defeito. Tomarei, pois, esse caso traumatizante para demonstrar a necessidade de que se faça uma reforma no CDC, deixando-o menos principiológico - sem abolir, claro, os princípios que lá estão - para torná-lo mais eficaz e capaz de regular especialmente certas situações concretas muito relevantes. Segurança abstrata, insegurança concreta Já foi dito inúmeras vezes que o CDC contém regras que garantem os direitos fundamentais do consumidor, dentre os quais a proteção a vida, saúde e segurança, conforme pode-se ver do inciso I do artigo 6º, do "caput" do artigo 8º e do "caput" do artigo 10. Há os que defendem que isso basta para dar guarida ao consumidor. Eu também já pensei assim mas, como disse acima, tenho agora plena certeza de que é hora de mudar. Para que, realmente, nossa lei de proteção ao consumidor cumpra sua missão, é necessário que ele regre situações específicas - as mais amplas, naturalmente - conhecidas e que conseguiram ficar esses anos todos à margem da lei e passaram imunes a seus efeitos. Repito: as normas atualmente existentes no CDC não são capazes de oferecer a segurança que se espera para muitas hipóteses e para o caso referido. Quem teria coragem de dizer para as famílias dos 241 jovens mortos na boate Kiss que no Brasil existe uma lei que garante a segurança dos frequentares de boates e clubes noturnos? Eis a realidade: A norma, como está escrita, simplesmente não funciona para garantir a segurança dos frequentadores de boates, clubes e estabelecimentos similares. Como eu tenho dito: É melhor um legislador que fale muito - escreva muito - mas que deixe claro o sentido da norma jurídica assim como sua incidência e eficácia, que um que fale pouco e deixe muitas dúvidas, com isso impedindo que a lei seja "de fato" aplicada. Por isso, penso que aprimorar a lei, ampliando claramente seu âmbito de ação e especificando que certos abusos não podem ser praticados é o que a sociedade espera.
quinta-feira, 7 de março de 2013

O poder empresarial na sociedade de consumo

Há muitas teorias sobre o funcionamento e o exercício do poder. Poder real, efetivo, de fato e não apenas formal. Ou, em outros termos, poder de quem realmente manda e não de quem parece que manda. E é comum usar-se a expressão "o poder do mercado" para referir o mercado capitalista. Nesse caso, estar-se-ia falando do poder dos fornecedores sobre o consumidor e sobre mercado em si. A história mostra que ele existe mesmo, sendo capaz de fazer coisas boas e más; coisas belas e sujas. Basta ficar com a crise financeira de 2008/2009 para apontar um exemplo de coisa suja feita no mercado dominado por administradores inescrupulosos e jogadores de todo tipo. Pessoas que detinham o poder para fazê-lo. E o poder dessas pessoas e desses bancos e demais instituições financeiras era tamanho, que em outubro de 2008, o governo americano forneceu 700 bilhões de dólares para socorrê-las1. Os administradores dessas instituições haviam criado uma situação tal que não permitia que eles falissem. O controle por eles exercido e a maneira como eles se envolveram em amplos aspectos da vida econômica e social impedia, como impediu, sua quebra, pois esta afetaria todo o sistema financeiro, econômico, produtivo e social. Eles conseguiram tornar-se "grandes demais para falir"2. Mas, esse comando exercido por esses administradores e banqueiros estava garantido de que modo? Era consubstanciado no quê, propriamente? Não faço a pergunta pensando nos aspectos econômicos, financeiros ou produtivos. Faço-a sob a perspectiva do poder. Como é que eles fizeram o que fizeram, escaparam ilesos (e muitos deles milionários)? Como esse enorme poder no mercado tornou-se possível? Há, naturalmente, muitas explicações e que envolvem os produtos oferecidos, os aspectos da desregulamentação do sistema financeiro americano, os empréstimos de alto risco, a questão dos subprimes, o (super) endividamento dos consumidores etc. Mas, isso não me interessa aqui. Gostaria de abordar o aspecto menos visível, o do poder existente e como ele se tornou e se torna possível no mercado de consumo. (Estou usando o exemplo da crise financeira de 2008/2009 apenas para mostrar, desde logo, que os empresários exercem forte poder na sociedade). Dentre as várias possibilidades de análise existentes, apresentarei alguns aspectos teóricos que envolvem a estrutura do poder, para que possamos refletir a respeito. Farei algumas escolhas, conforme mostro a seguir. O escritor de nacionalidade turca Elias Canetti em seu livro "Massa e Poder"3conta a parábola do gato e do rato. Do que ele diz, pode-se extrair mais ou menos o seguinte. Um gato segura um rato na boca. Pergunta: Isso é expressão de poder? A resposta é negativa. A imagem mostra uma expressão de força e não de poder. Tanto o gato quanto o rato estão presos a mesma força física. O rato, é verdade, nada poder fazer, mas o gato também não, pois se abrir a boca, o rato foge. Daí que a força que aparentemente é superior no gato, do modo como está sendo exercida, o paralisa. Trata-se de uma relação estagnada, sem movimento: O que falta é liberdade de ação; dos dois lados. Sem liberdade, verifica-se apenas a força bruta. Nada mais. Mas, eis que o gato solta o rato numa sala vazia e fica parado na porta. Surge o poder. Este aparece exatamente quando a força é ocultada e a liberdade permitida. O gato não perdeu sua força, apenas a guardou. O rato ganhou liberdade. Liberdade para se locomover num certo território e tempo para viver. Espaço e passagem de tempo. Claro que não há, no exemplo, muita liberdade, nem muito poder. O gato manda um pouco e o rato pode pouco, pois, se tentar sair da sala, cai na boca do gato e o poder do gato se esvai quando pega o rato na boca. Mas, o exemplo permite uma reflexão importante: Só existe poder, se aquele que obedece puder não obedecer. Isto é, só existe poder se aquele que obedece tem liberdade para obedecer ou não. Passemos para um outro exemplo. Um homem aponta uma arma para outro homem, que levanta os braços. Essa atitude de levantar os braços é sinal de obediência. Logo, a relação é de poder - ainda que pequeno, próximo da força física. Ela é de poder porque, com base nos elementos teóricos, aquele para quem a arma está sendo apontada pode ou não levantar a mão. Ele tem liberdade de ação para isso. Como ele levanta, há exercício de poder. Friso: Para existir poder, quem obedece deve pelo menos ter a liberdade de uma ação para não obedecer. No caso, levantar os braços ou não. Mas, esse homem com a arma manda que o outro ande na direção de um prédio. Ele, então, obedece e anda (Podia andar ou não, mas anda. São as duas opções). Depois, o homem armado diz para o outro entrar no prédio e no elevador. Ele obedece de novo (Podia não obedecer, mas obedece). O armado manda o desarmado apertar o botão do 30º andar. Ele novamente obedece. No entanto, quando chegam no 30º andar e dirigem-se até a sacada, o homem armado diz ao desarmado: "Vá até o parapeito e salte". Nesse instante o poder do homem armado se esvai. É que ele retira uma das alternativas do homem desarmado. Ele obedecia porque não queria morrer ("Levante os braços ou leve um tiro"; "Entre no elevador ou leve um tiro"). Acontece que, no parapeito do 30º andar a ordem é "Leve um tiro ou morra saltando". Não há mais alternativa. O poder acabou e a força surgiu. Só há força, sem alternativa de obediência (isto é, sem um mínimo de liberdade que é uma ação para desobedecer). No exemplo dado, tudo indica que o homem desarmado irá lutar com o homem armado. É a única chance que ele tem. Já não há mais motivo para obedecer. Podem-se fazer muitas ilações apenas a partir desses dois exemplos e da teoria de que deve existir um mínimo de liberdade para, de outro lado, existir um mínimo de poder. Uma delas: Se aquele que vai obedecer tem muita liberdade para não obedecer (isto é, muitas opções) , mas ainda assim obedece, então o poder de quem manda é muito grande. Ou seja, o poder cresce na medida em que a liberdade daquele que obedece também cresce. Muita liberdade para desobediência com obediência significa, pois, um grande poder. Pode-se, por isso, afirmar que, nas democracias nas quais se verifica ampla liberdade de ação por parte dos subordinados (ou, propriamente, cidadãos), que obedecem aos comandos legais, o poder é magistral. Pode-se também afirmar que, com base na liberdade para desobedecer, obedecendo, o poder de quem exerce é legítimo. Logo, do ponto de vista político, a democracia enquanto regime gera um enorme poder: Quanto mais os cidadãos são livres, mais poder tem o ocupante do cargo estatal; e legítimo. (O inverso parece ser verdadeiro: quanto mais força exerce o detentor do cargo estatal - por exemplo, numa ditadura - menos poder ele tem; e ilegítimo; por isso acaba usando a força física a toda hora). Outra ilação: O poder quando é grande mesmo não se utiliza da força, a não ser em situações especiais e não rotineiras. Ou, dizendo em outros termos, a força de quem detém um poder de verdade, forte, enorme, deve ser ocultada. Aquele que usa demais a força para conseguir obediência perde em legitimidade e também em poder. Veja-se o comando exercido por um pai ou uma mãe sobre o filho. Quanto menos força for usada mais poder e legitimidade haverá. Se um pai apenas fala e o filho obedece, seu poder é enorme. Mas, se para obter obediência ele castiga o filho, o tranca em casa, limitas suas ações, proíbe quase tudo, isto é, se exerce força física, então tem pouco poder. Se ele fala emitindo um comando e não consegue resposta (obediência), então terá sempre de recorrer à força física. Logo, vê-se a figura de um pai ou mãe fracos. No mesmo exemplo, mas com uma variável: Se um pai, para obter aquiescência do filho tem de mandar, depois ameaçar, depois chantagear ou dar um prêmio para conseguir obediência, seu poder também se esvai. Aliás, se o pai só consegue obediência do filho dando alguma coisa em troca, então quem tem poder é o filho e não o pai. Dá para ver, por exemplo, o poder que teria alguém que, sem arma em punho, mandasse que o outro levantasse as mãos e esse outro obedecesse. O mesmo se daria com o professor que simplesmente mandasse e os alunos obedecem sem pestanejar. Um professor que pudesse entregar as provas para os alunos e dissesse: "Não colem. Vou ao banheiro e já volto". Depois saísse da sala e ao retornar ninguém tivesse colado, realmente, teria muito poder. (Há muitas nuances em todos os casos que estou trazendo e que permitem mais ampla abordagem. Por exemplo, o Professor pode ter mais ou menos poder, dependendo da instituição a que ele pertença, pois esta pode já inspirar confiança nos alunos e daí comando e obediência. Do mesmo modo, a relação pai e filho não tem apenas aqueles estritos limites; há muito mais; há amor, carinho e proteção, por exemplo. Extraí apenas certos pontos para fincar a análise em alguns aspectos relevantes para nossa reflexão neste limitado espaço do artigo). Dos fatos apresentados, outra ilação pode ser retirada: A relação de poder implica confiança. Quem tem poder de verdade manda e confia na obediência e quem obedece confia em quem manda. Aliás, é por isso que se diz que os filhos precisam de limites; necessitam que os pais imponham certos parâmetros de ação. Em certo sentido, os filhos pedem o comando, pois isto lhes dá segurança. Daí que confiança e poder geram segurança dos dois lados. Quem tem poder é seguro da obediência que receberá. Um namorado inseguro é aquele que tem ciúme, que vigia a namorada, que pergunta a toda hora onde ela está, sem nenhuma garantia de obediência (na hipótese, de fidelidade). A confiança nesse caso se esvairá. Um pai que confia no filho, não fica perguntando toda hora o que ele faz ou fez. Mas, sabe que, se ele fizer algo importante ou considerado errado, chegará em casa e contará para ele. Destarte, os aspectos teóricos explicam que aquele que tem poder age com inteligência e conhecimento. Ele sabe muito bem quais são as possiblidades de ação do outro (daquele que vai obedecer ou não) e por ter essa sapiência sabe também quais são seus próprios limites: Há coisas que ele nunca pode pedir nem mandar. Ou, em outros termos, quem detém o conhecimento detém o poder. Um professor, para conseguir muita obediência, tem de saber que há certas coisas que ele jamais pode pedir que seus alunos façam. Tem de saber que suas ordens devem ser, num alto de grau de probabilidade, possível de serem obedecidas. De nada adianta ele mandar que seus alunos leiam e estudem um livro de mil páginas num único dia, pois não será obedecido (Esse exemplo-limite serve apenas para mostrar como deve ser feito o planejamento da ordem: Quando mais fácil ela for de ser obedecida, melhor). O mesmo se dá com um pai e uma mãe. Pergunto: quem tem poder? O pai que rejeita a filha grávida do namorado indesejado por ele ou o pai que aceita essa filha de braços abertos, a acolhe e cuida dela em casa? O primeiro não tem poder algum, até porque perderá a própria filha que irá embora. O segundo sim. Este conseguirá obediência de filha grata pela recepção (ainda que, em algum canto, ele chore calado...). É esse saber, portanto, que dá base à ação. Examinando-se tudo o quanto acima descrevi a respeito da teoria, o que mais chama a atenção, parece-me, é exatamente o fato de que o conhecimento pode levar ao controle, ao exercício de um enorme poder. No que respeita ao mercado, os administradores bem formados e bem informados já de há muito tempo desenvolveram alta tecnologia de arquivamento de dados que envolvem não só os consumidores como seus concorrentes - quando estes existem. Esses dados, bem coletados e bem estudados, permitem a tomada de decisão para os caminhos que a empresa deve tomar visando conquistar sua fatia de mercado (market share) inicialmente, para fazê-lo crescer ou para consolidá-lo. Isso se faz, certamente, conhecendo muito bem os consumidores, os concorrentes e também a si mesmo: Seus produtos, seus serviços e a comunicação a ser feita a partir desse saber. Note-se que as estratégias de marketing desenvolvem em larga medida a ideia de segurança (na marca, no produto, no serviço, na qualidade, no atendimento etc.), buscando firmar uma base de confiança (na empresa e em seus produtos e serviços). O poder de uma empresa no mercado, portanto, está em larga medida ligada a capacidade que ela tem de se conhecer a si mesma (seus produtos, seus serviços, seus métodos de comunicação, de administração etc.), de conhecer profundamente os consumidores de seu público alvo (seus hábitos, seus desejos, suas necessidades etc.) e ao mercado como um todo. Tanto no passado, como no presente e projetando perspectivas para o futuro (Como deve fazer um bom político ou um bom pai). Esse tipo de tecnologia do conhecimento e da informação é um caminho na direção do poder no mercado, do controle das ações dos consumidores, dos concorrentes e também dos demais atores políticos e sociais que existem na sociedade. __________ 1Ver a respeito desse assunto, por exemplo, Michael J. Sandel, Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª. Ed., 2012, p. 21. 2Idem, ibidem, mesma pág. 3São Paulo: Cia das letras, 1995, p. 281 e segs.