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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 15 de maio de 2014

A língua como produto de consumo e controle

Há muito tempo que se sabe que a chamada globalização é mais uma mentira inventada pelos países mais poderosos para impingir seu modo de produção e consumo para o resto da humanidade, gerando riqueza (para eles) e custo (para os demais países). Antigamente, esse método chamava-se imperialismo e os demais países, hoje, intitulados de emergentes, eram qualificados como subdesenvolvidos. Essa manipulação linguística é tão boa que pegou forte: todo mundo gostou. Os países ricos continuaram assim e os subdesenvolvidos foram "promovidos" a emergentes. Uma vitória simbólica. Vitória dos poderosos e não dos oprimidos, pois como diz o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a base da violência simbólica está presente nos símbolos e signos culturais, especialmente no reconhecimento tácito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas, como por exemplo, a mídia, a religião, a publicidade, etc. Por isso, a violência simbólica propriamente dita nem é percebida como violência, mas sim como uma espécie de indicação, uma permissão ou uma proibição desenvolvida com base em um respeito ao que "naturalmente" se faz; ela se apresenta como um modelo de conduta a ser seguida1. A produção cultural e tecnológica dos países dominantes é desenvolvida e entregue aos países emergentes (eu ia dizer "imposta", mas a aquiescência mansa e pacífica é tamanha que sou obrigado a abandonar esse verbo autoritário). Assim, na atual globalização, a invasão não se faz em termos de territórios, mas de mercados. Toma-se conta do polo de consumo e, na medida em que os consumidores aderem aos produtos e serviços inventados e produzidos pela indústria dominante, passam a se comportar como esses detentores do poder global querem que eles se comportem. Quanto aos produtos e serviços, vale de tudo, desde um refrigerante até os chamados "produtos culturais", tais como filmes de cinema (hollywoodianos de preferência), enlatados de tevê como séries e programas, etc. E um dos modos mais eficientes de dominação é o do uso da linguagem. Para ficarmos com a posição de Bourdieu, o uso de palavras e expressões pelos dominadores (os que vêm de fora ou que estão mesmo dentro da comunidade) é um dos modos mais eficientes de controle. Meu amigo Outrem Ego gosta muito de brincar com esse poder que a língua estrangeira tem, especialmente, o anglicismo (que no mais das vezes aparece escondido no termo "estrangeirismo". É que cada vez mais por aqui o estrangeirismo tem uma única origem e direção: a língua inglesa, como diria a banda britânica que acaba de passar por aqui, One Direction). Numa conversa sobre o tema, ele me disse: "Minha filha me contou que seu boyfriend foi até o shopping center de bike. Ela estava lá, esperando por ele, na pista de skate, que fica em frente a um outdoor. Quando ele chegou, foi que ela reparou que ele tinha um piercing na barriga, pois estava quase sem camisa por causa do vento. Parecia até que queira fazer strip tease. Brincando, ela perguntou se ele não queria fazer de vez um topless e aproveitar para arrancar o apetrecho do umbigo e colocar um band-aid no lugar. Ele riu e disse que estava tudo bem com ele, pois tinha feito um checkup recentemente. Daí eles encontraram outro casal e entraram correndo para comer numa lanchonete fast food. Ela comeu um hamburger, no qual passou ketchup e bebeu uma coca-cola light. Ele deglutiu um cheeseburger bacon e tomou um milk-shake de chocolate. De sobremesa, ela comeu um cupcake de blueberry e ele um sundae de creme. Os outros dois amigos, que sentaram na mesma mesa da praça de alimentação, haviam ido a lugares diferentes: ela foi a um restaurante self-service e de lá levou uma caesar salad e um smoothie de morango. Ele variou: pegou um tuna wrap num lugar, uma porção de onion rings em outro e bebeu um suco detox. De sobremesa, ela tomou frozen yogurt e ele um cookie de chocolate". Eu, em flash-back, voltei ao meu tempo de adolescente, quando comia hot-dog com suco natural e comia banana-split de sobremesa. De fato, a linguagem é um sistema aberto e, naturalmente, cada língua, de um jeito ou de outro, recebe influência externa. Não há necessariamente um mal nisso até por que é inevitável. Muitas vezes, inclusive, a língua pátria acaba por fazer uma adaptação. No caso brasileiro, são muitas as palavras aportuguesadas (ou abrasileiradas), tais como abajur, futebol, purê, batom, chofer, baguete, ateliê, bife, boate, sutiã, etc. Mas, o que nos últimos tempos chama a atenção é a enorme quantidade de termos em inglês que passou a fazer parte do dia a dia do mercado de consumo brasileiro, com muita naturalidade, a indicar, como acima referi, de um lado o poder de controle dos americanos e ingleses e, de outro, uma aceitação passiva do modelo. Não é pouca coisa. Junto com os termos e expressões, vêm regras e comportamentos, nem sempre declarados. Eu mesmo aqui neste espaço já fiz, por exemplo, uma análise do Halloween no Brasil e sua capacidade de influência e direção para a aquisição de produtos esdrúxulos, além de porcarias e guloseimas que só fazem mal à saúde das crianças. Uma simples passada d'olhos no mercado brasileiro mostra uma interminável sucessão de termos ingleses. Nem preciso ficar na tecnologia, com iphones, smarthphones, blue-rays, etc., ou nos computadores e seus inputs, outputs, backups, mouse, scanner, software, hardware, etc. ou, ainda, na internet e redes sociais com o skype, facebook, o twitter, as hashtags, etc. (Aliás, permita-me um parêntese para mostrar nossa capacidade de assimilação ligeira. Essa palavra "hashtag" tão difícil de pronunciar é usada com orgulho por locutores nas rádios...). Por falar em rádio, há uma empresa de TI, que faz uma propaganda, na qual diz mais ou menos isso: "Nossa empresa conta com grande portfolio de clientes, storage, data center, service desk e field services". Na área dos automóveis e demais veículos é incrível: os automóveis possuem transmissão automática H-matic com shiftronix, freios ABS, ar condicionado com AQS (Air quality control system), tração 4X4 full time, air-bags, pneus radiais com banda larga all season passenger, blue tooth, bluemediatv, bancos de couro premium, e muitos outros adereços, em inglês, claro. O novo Honda Fit permite uma acomodação dos bancos da seguinte forma: modo utility, modo tall, modo long e modo refresh. Capisce? Para terminar, conto a história do professor de Direito que, num Congresso, assistia a uma palestra de um outro professor. Este defendia que se usassem mais expressões em latim na comunicação jurídica, por que isso era um bem inominável e um patrimônio a ser preservado. O citado professor discordava disso. Daí, levantou a mão, pediu a palavra e com o braço estendido ao alto disse: "Prezado colega, permita-me discordar, data máxima vênia..." E ficou lá, parado, examinando sua própria fala em silêncio! __________ 1O Poder simbólico. Lisboa: Edições 70, passim.
quinta-feira, 8 de maio de 2014

O direito de não ser perturbado

Meu amigo Outrem Ego estava revoltado. Numa manhã dessas - era um domingo - às 8h, bem em frente à sua casa (logo, em frente à janela de seu quarto) estacionou um carro de som, tocando músicas de carnaval e de outros tipos, cercado de jovens que ficavam apenas olhando uns para os outros diante do barulho. Ele me ligou e disse: "Será que eles têm mãe? Ou pai? Se têm, por que é que eles não levam o carro de som pra frente da porta dos genitores e ficam lá fazendo barulho?" Eu, particularmente, nem pensava mais nessa reclamação de meu amigo, que se deu antes do carnaval. Mas, lendo a noticiário dos últimos dias, lembrei. Não sei se o leitor viu, mas o PSIU - Programa de Silêncio Urbano da Prefeitura de São Paulo, fechou, administrativamente, no dia 18 p.p. o Bar Mercearia, que fica na Vila Madalena, zona oeste da Capital. Segundo as reportagens, o fechamento se deu após "anos de reclamações dos vizinhos". "Bem", pensei, "acabou dando certo e a lei foi cumprida. Só demorou alguns anos de sono e perturbação do sossego das pessoas..." Porém, o que mais me chamou atenção na reportagem foi que os clientes barulhentos estavam revoltados. Para se ter uma ideia, a manchete da matéria da Folha de São Paulo era "Clientes defendem o bar 'Mercearia' e falam até em protesto". Li o texto e vi que uma frequentadora disse: "Se fechar esse bar é o caos, a gente faz protesto"1. Uma outra amiga dela disse: "O velhinho vai querer sossego na Vila Madalena? Vai morar no Morumbi!" Comentei com meu amigo que disse: "Será que as pessoas se esqueceram de que o direito de um termina onde começa o de outro?" Parece que sim. Mas, o pior é que esse padrão, individualista e egoísta ao extremo, acaba por ser leniente em relação às demais violações e, mais cedo ou mais tarde, voltam-se para o próprio violador (quem sabe quando a citada frequentadora do bar ficar "velhinha".) O direito de não ser perturbado, mais conhecido como direito ao sossego, que é correlato do direito de vizinhança, nasce naturalmente da garantia constitucional do direito à intimidade e privacidade prevista no inciso X do art. 5º da Constituição Federal. Do mesmo modo que a intimidade e a privacidade, o direito ao sossego é um direito de negação, de interdição da ação dos outros. Trata-se, pois, da imposição de um limite físico, visando garantir a tranquilidade das pessoas. O direito ao silêncio é um direito sagrado não só por ser exercício pleno da intimidade e privacidade, mas também por compor a sadia qualidade de vida, garantida, do mesmo modo, no texto constitucional (artigo 6º). Ele é instituído como prerrogativa a todo indivíduo, que pode, por isso, impor que o outro cesse o ruído ou barulho. Falei de Constituição Federal, mas o tema em análise e a atitude dos barulhentos nos remetem a tempos mais remotos. Jesus Cristo já tinha alertado para que façamos aos outros o que queremos que eles nos façam2. Todavia, parece que na sociedade capitalista brasileira, na qual se pode verificar uma falta de educação bastante ampla aliada a um baixo nível de civilização, o lema "o outro que se dane" ou "os incomodados que se mudem" está tornando-se lugar comum. Uma pena. Quem sabe se de, de fato, como diz meu amigo Outrem Ego, o barulho pudesse ser transferido para a casa dos barulhentos ou de seus parentes, a ficha caísse! *** PS.: O direito ao silêncio é um assunto de que já tratei em minhas colunas. Como se sabe, temos leis claras a respeito e o Poder Judiciário tem decidido a favor do direito de não ser perturbado. Apresento, assim, na sequência, as principais normas vigentes e a posição do Judiciário em alguns casos. Com efeito, a lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo decreto-lei 24.645/1934 que dispõe que "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos." É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora." E o Código Civil Brasileiro garante o direito ao sossego no seu art. 1.277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Consigno que, para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de caráter moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras. A questão, portanto, ao contrário do que sempre é mostrado nos noticiários, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais. O Judiciário, por sua vez, considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente, etc. __________ 1Reportagem de Artur Rodrigues, de 24/4/2014.   2Em Mateus 7:12
E não é que aconteceu mais uma vez! O Congresso Nacional aprovou o texto da medida provisória 627, que dentre seus dispositivos inclui um que estabelece um teto para a aplicação de multas às operadoras de planos de saúde, beneficiando as empresas. O plenário do Senado aprovou o texto que veio da Câmara com este aditivo de contrabando, como se diz, inserido numa MP que trata de outro assunto, o da tributação do lucro das empresas no exterior. Aguarda-se o veto da Presidenta da República, o que, diga-se, restabeleceria a lei a e ordem. Eu já tive oportunidade de tratar dessa questão, que deveria simplesmente nem existir, pois a lei é clara a respeito. Mas, tendo em vista mais essa tentativa e que envolve o direito dos consumidores, volto ao tema, lembrando os pontos principais. Com efeito, "acostumou-se" por aqui a produzir leis com um objetivo expresso e declarado e, aproveitando a oportunidade, colocar em vigor normas cuidando de assunto diverso (e muito diverso!). Em matéria de direito do consumidor, tal conduta já foi adotada mais de uma vez. A doutrina e também algumas decisões judiciais têm deixado claro que a prática é inconstitucional por violação à LC 95 de 26/2/1998. Sem entrar na discussão sobre a existência ou não de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, eis que não interessa especificamente para a solução do problema nem a modifica, fico apenas com uma das posições possíveis que é a de que, a partir de 5 de outubro de 1988, quando entrou em vigor a nova Carta Constitucional, não há mais que se falar em hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, isto é, a lei complementar não determina as condições de validade da lei ordinária. No entanto, apesar de não ser condicionante em função do conteúdo, ao menos uma Lei Complementar, a citada LC 95, exerce controle no modo de produção das demais leis, por se tratar de norma geral dirigida ao próprio legislador. O texto constitucional dá mais, digamos assim, "peso" normativo à lei complementar, reservando para ela temas legislativos de relevo. As leis complementares têm como função tratar de certas matérias que a Constituição Federal entende devam ser reguladas por normas, cuja aprovação exija controle mais rígido dos parlamentares. Por isso, o quorum legislativo exigido para sua aprovação é especial; é o da maioria absoluta (CF, art. 69: "As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta"). E as matérias para as quais é feita essa exigência de votação aparecem taxativamente no texto constitucional. Por exemplo, o art. 93, que trata do Estatuto da Magistratura; o art. 131, que disciplina a Advocacia Geral da União; o art. 192, que cuida do sistema financeiro nacional etc. Portanto, o que diferencia a lei complementar da ordinária é a matéria específica e o quorum qualificado de aprovação para as leis complementares e não exatamente uma posição hierárquica. Remanesce, também, uma dúvida, às vezes apontada pela doutrina, em relação ao tema da hierarquia, por conta da existência de uma específica LC, a suso apontada de número 95, que dispõe sobre a elaboração e consolidação das leis. E, em função do conteúdo dessa norma, argumenta-se que ela teria que ser hierarquicamente superior às leis ordinárias, para que estas a pudessem obedecer. Penso que esse argumento é inconsistente. Em primeiro lugar, se isso fosse verdade, ao menos um tipo de norma não precisaria obedecê-la: exatamente as demais leis complementares, que estão no mesmo patamar, mas não é isso que se espera, conforme veremos. Em segundo lugar, não é o conteúdo da norma que define sua hierarquia, mas sua posição jurídico-política aceita historicamente pelos operadores do direito e em geral por toda a sociedade. A citada LC 95 é norma de organização. Diz como o próprio legislador deve produzir um texto de lei, separando-o por capítulos, artigos, parágrafos etc. De fato, haverá conflitos - como há - entre essa norma complementar e outras normas do sistema, na medida em que o legislador não a siga à risca. No entanto, a solução do conflito, se puder ser dada, não se fará pela via da hierarquia, mas sim pela da solução interpretativa sistêmica. O intérprete terá de verificar se o sistema, dando qualificação especial de conteúdo à lei complementar, traz solução capaz de adequar os dois tipos de norma. Não se trata, portanto, de um problema de hierarquia, mas de diálogo. É caso do já conhecido diálogo das fontes, tema bastante atual e necessário ao exame dos novos modelos jurídicos vigentes no mundo contemporâneo, como ensina com muita precisão em suas obras a Profª. Cláudia Lima Marques. Ora, a LC 95 é verdadeira lei geral de elaboração e consolidação das leis. Veja o que diz seu art. 1º e parágrafo único: "Art. 1º A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta Lei Complementar. Parágrafo único. As disposições desta Lei Complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo". E uma das importantes funções e, talvez, a principal, é aquela estabelecida no art. 7º. Extrai-se da teleologia desse artigo o claro intuito de impedir uma prática escusa que consiste em se aprovar uma lei, cuidando de determinado assunto e, "escondido" entre seus artigos, colocar-se outro tema totalmente desconectado do objeto da norma editada. O texto do art. 7º é preciso nesse sentido: "Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa". Antes de prosseguir, chamo atenção para o fato de que, como acima pode ser lido, é o art. 1º de qualquer lei que indica seu objeto e seu âmbito de aplicação. É importante atentar para esse ponto. É verdade que o art. 18 da LC 95 diz que "eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento". Mas, claro, entende-se por inexatidão formal mero erro que seja incapaz de desnaturar a norma, como, por exemplo, um parágrafo estar numerado erradamente ou artigos com números repetidos, etc. O "contrabando" é a técnica de inserir um texto para cuidar de assunto diverso do regulado pela norma, como é o caso da MP referida. Esse modo de criação legislativa ao que se diz, visa, se não enganar os destinatários, ao menos ocultar da população e retirar do debate aberto questões de relevo. Na verdade, esse tipo de produção legislativa põe à mostra o poder de pressão dos grupos de interesse que atuam nos bastidores do sistema. Veja-se o exemplo da MP 1.925/99, que foi convertida na lei 10.931/2004. Esta institui o "regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação" (art. 1º). Essa lei, com esse objeto, também de forma sub-reptícia, nos arts. 26 e s., criou a Cédula de Crédito Bancário, um título de crédito a ser utilizado por instituições financeiras em operações de crédito, ou seja, um novo objeto diferente daquele instituído por ela. Veja-se a doutrina a respeito: "Criando e regulando cédula de crédito bancário, a LPAII desrespeitou flagrantemente o artigo 7º da lei complementar - LC 95/98 - que regula a elaboração e redação de leis no País, ofendendo-se a garantia do due process of law, maculando-se de inconstitucionalidade, no tópico que cria e regula a cédula de crédito bancário. Essa inconstitucionalidade, por ofensa às regras do processo legislativo, é, a um só tempo, formal e substancial. São inconstitucionais, portanto, os arts. 26 a 46 da LPAII" (Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, 10. ed., São Paulo: RT, 2007, p. 988). E no mesmo sentido a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao afirmar que "...a lei ordinária, o decreto-lei e a lei delegada estão sujeitos à lei complementar, em conseqüência disso não prevalecem contra elas, sendo inválidas as normas que a contradisserem". (Do processo legislativo. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 247) Relembro o alerta de Otto Von Bismarck que dizia que "Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis". E nós continuamos a produzir normas de contrabando. O paradoxo está no fato de que a LC 95 foi editada pelo próprio Poder Legislativo num momento de alta sabedoria. Vai entender!
Meu amigo Outrem Ego veio-me com este pensamento, um tanto quanto nostálgico. "Há muitos anos", disse ele, "Havia um jornal, o Notícias Populares, que nós dizíamos que se fosse espremido verteria sangue. Pois, não é que agora, eu, que ouço rádio todas as manhãs, sinto que estou ouvindo o tempo todo as mesmas manchetes do extinto jornal. E não adianta trocar de estação: todos os noticiários falam da mesma coisa, isto é, crimes, violência sexual e algo acrescido como corrupção, miséria, injustiças etc"1. Mas, meu caro leitor, o foco dele era outro. Meu amigo disse que, de fato, a culpa não é dos jornalistas e repórteres, que são obrigados a divulgar as mazelas da sociedade brasileira. Isso é a realidade ou, nada mais que a verdade ou parte dela. O que chamava a atenção dele é que, prestando atenção aos programas, ele percebia dois mundos muito nítidos e bem diferentes: um, o da realidade violenta e cruel; outro, o das propagandas, onde tudo é belo, respeitoso, todos sorriem, são educados, as coisas funcionam bem, enfim, um mundo ideal. "Vivemos, pois, em dois mundos: um real, que nos aflige e outro, fantasioso, no qual nos refugiamos, um mundo de ilusão". De fato, a primeira constatação é básica. O jornal Notícias Populares publicava a verdade, como anunciava, isto é, a realidade nua e crua. A História prosseguiu seu caminho na direção da deterioração da sociedade e de tal modo pungente, que nenhum noticiário mais pode ignorar. Atualmente, se "espremêssemos" os jornais impressos ou se pudéssemos "espremer" os jornalísticos das rádios e tevê "sairia sangue". A segunda constatação é também evidente: no mundo da fantasia da publicidade comercial e também da propaganda política, tudo parece funcionar muito bem. E é isso que, em parte, leva o consumidor às compras, muitas delas que não deveriam ser feitas. Porém, há mais. Examinando-se os anúncios publicitários, num primeiro momento, o que se percebe é a intenção de levar o público a comprar os produtos e serviços oferecidos. Porém, dando um passo adiante, vê-se que, além disso, a publicidade quer ir além. Ela pretende indicar um certo modo de agir, quer dar a direção de um comportamento a seu público alvo, quer também gerar crenças e modos de pensamento. É nesse sentido que se diz que a publicidade funciona como ideologia: incutindo crenças e valores nos consumidores. Jogado a própria sorte de seu dia-a-dia atribulado, o consumidor assiste ou ouve aos anúncios publicitários como uma espécie de válvula de escape. Realmente, é mais agradável ouvir um anúncio do novo e delicioso panetone que está sendo vendido no período de páscoa que ficar sabendo que alguém foi assassinado, esquartejado e as partes do seu corpo foram espalhadas pela cidade; melhor descobrir que é gostoso tirar férias no Caribe que saber de toda roubalheira e corrupção que campeia pelo país afora etc. - um longo etc. de dor e alívio. Com isso, as chances de influência do apelo publicitário aumentam. Claro que não impedem que o próprio anúncio seja ruim. Mas, é preciso treinar os olhos e ouvidos para entender. Explico. O publicitário, naturalmente, pretende seduzir o público e convencê-lo de que o que ele mostra e diz é o que vale e deve ser seguido. Só que, às vezes, erra. Da realidade não se pode falar em erro, apenas verdade ou não. Nos anúncios - além do aspecto ético e legal de que devem dizer a verdade - há tropeços e inconsistências, sutis ou brutas. E também arrogância, prepotência, machismo e outros tipos de violações escancaradas ou não. Após eu ter feito essa colocação, meu amigo Outrem Ego lembrou de um exemplo. Num anúncio de bebida energética, o piloto Fernando Alonso diz: "Eu aguento mais pressão numa curva que você a vida inteira". E, como disse meu amigo: "Vai ser pretensioso assim lá nas suas curvas. Você apenas dirige um automóvel, bem preparado e em pistas planejadas! Quer pressão? Vá morar em favelas, lutar na guerra, ficar desempregado e passar fome". E completou: "Por que você não experimenta a pressão de dirigir nas ruas esburacadas de alguma cidade brasileira e tenta ficar tranquilo nos nossos congestionamentos monstruosos diários e eternos!". Realmente, muito arrogante esse piloto. Erro crasso de quem produziu o texto, mas sabe-se lá, como se trata de um confessional, é possível que o tal piloto se sinta assim mesmo, melhor que os outros mortais. Sabe-se lá. O problema é que nem sempre os equívocos e valores que são transmitidos são perceptíveis. Eu, já aqui nesta coluna, mais de uma vez, referi a machismo das publicidades de cervejas, que violam abertamente as regras do Código de Defesa do Consumidor. Todavia, apesar da lei, eles estão sendo produzidos e veiculados há dezenas de anos, sem problemas. Aliás, fatalmente os dois mundos se encontram e nem sempre da melhor maneira, o que ocorre quando as promessas do mundo ficcional não são cumpridas, como, por exemplo, experimentam os usuários de internet banda larga não tão larga assim e com velocidade de tartaruga, ou como os possuidores de milhagens que não conseguem passagens para o destino desejado, ou tomadores de empréstimos que descobrem que baixos percentuais de juros escondem altos custos das demais taxas cobradas, ou os turistas que compram pacotes para lugares paradisíacos e que de paraíso encontram apenas as fotos dos anúncios, etc. De todo modo, a regra geral da publicidade comercial (e em parte também da política) é que ela seja agradável, atraente, bonita de se ver e ouvir e faça o consumidor sonhar. Ela cumpre essa função de tirar por alguns instantes o indivíduo de seu duro chão - esburacado ou não! Em teoria, esse modo paradoxal de vivenciar o que se lhe apresenta deve ser angustiante, mas como mostrei no artigo da semana passada, essa a angustia e outros tipos de aflições são muito boas para o mercado, pois para fugir delas o consumidor vai às compras... __________ 1O jornal Notícias Populares foi um jornal que circulou entre 1963 e 2001 na cidade de São Paulo e que ficou conhecido por suas manchetes violentas e sexuais. Ele veiculava um slogan: "Nada mais que a verdade".
Volto ao tema da felicidade e mais uma vez focado no problema do consumismo. Eu já tive oportunidade de levantar um questionamento a respeito da felicidade como produto de consumo e, na oportunidade, tentei mostrar que, ao que tudo indicava, o mercado promete, explícita ou implicitamente, a felicidade, que pode ser alcançada a partir e pela aquisição de produtos e serviços, mas que isso funciona como um chamariz para as compras e como uma ilusão. As propostas feitas mostram que os fornecedores conhecem profundamente os consumidores em suas dificuldades, necessidades, anseios, desejos, etc. e, por isso, por trás de muitas ofertas, surge essa promessa como uma espécie de esperança apresentada. Do ponto de vista do consumismo, isto é, das compras exageradas de produtos e serviços, muitas delas desnecessárias, isso talvez explique um círculo vicioso contínuo e interminável: o consumidor vai ao mercado procurar a felicidade - ainda que isso não esteja claro com todas as letras em sua mente - e, para tanto, compra sapatos, relógios, roupas, viagens, veículos, etc. Mas, como nem sempre se consegue chegar ao objetivo de se sentir feliz por esse meio, continua comprando na esperança vã de atingi-lo. Muito bem. Definir felicidade não é tarefa fácil. É possível encontrar-se dezenas de opiniões e posições no âmbito da filosofia, da religião, da psicologia, etc. A felicidade seria a ausência do sofrimento; um estado de plenitude, de êxtase ou júbilo intenso; os momentos de paz e tranquilidade; um estado durável de emoções positivas, etc. No cristianismo, por exemplo, o amor é um modo de atingimento da felicidade, no que se inclui a caridade. É o amor a Deus sobre todas as coisas e a seu próximo como a si mesmo, que faz com que a pessoa ganhe sua vida.  Querer encontrar a felicidade no receber é egoísmo e frustrante, porquanto há mais felicidade em dar do que em receber. Amor é doação e o amor que se dá nunca se perde: tanto mais que se o dê, mais ele cresce. No que respeita às sociedades capitalistas, há uma difusão de que felicidade é algo ligado ao dinheiro, à aquisição de bens. São bem conhecidos os slogans, que, com sua força simbólica, reforçam esse aspecto puramente materialista e de aquisições: "Dinheiro não compra felicidade, mas manda busca." "Dinheiro não compra felicidade, mas é melhor ficar triste numa mansão ou num carrão último tipo." "Dinheiro não compra felicidade, mas compra algo bem parecido."  Não pretendo fazer uma discussão sobre o conceito nem buscar uma melhor definição. Basta que aceitemos o fato de que as pessoas  desejam ser felizes. Mas, proponho uma reflexão: será que o mercado de consumo quer mesmo que as pessoas  sejam felizes? Recentemente, recebi um texto da professora Mirella Caldeira Fadel, doutora em Direito pela PUC/SP, no qual ela questiona exatamente a promessa de felicidade feita aos consumidores, dizendo que, ao contrário do que parece, tudo leva a crer que o mercado prefere consumidores infelizes aos felizes. Diz a professora: "A felicidade não é eterna, ao contrario, é efêmera. Ninguém é feliz. A pessoa está feliz. Temos momentos de felicidade, mas não conseguimos ser feliz o tempo todo. A esperança de quem se sente feliz é poder eternizar o momento". Assim, a felicidade é passageira e é também uma utopia, pois não se realiza plenamente, pelo menos para milhões ou bilhões de pessoas. Acontece que, como utopia, ela movimenta os indivíduos. Como diz o escritor uruguaio Eduardo Galeano: "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar". Tudo leva a crer que há aí mais um dado de controle e inteligência do sistema capitalista: a alimentação constante e bem engendrada dessa utopia da conquista da felicidade. A professora Mirella complementa: "... essa felicidade não tem a ver com o capitalismo contemporâneo. Ela não é alcançada pelo consumo; quem esta feliz nem precisa consumir"; "... quem está feliz, vê beleza nas coisas mais simples. Aprecia o pôr do sol e uma tarde no parque com os filhos. E basta. Não há vazio a ser preenchido". E, como entre um momento de felicidade e outro, as pessoas voltam, digamos assim, à realidade nua e crua com seus problemas, temores, desejos, alegrias, sofrimentos etc., surge o perigo: a oferta de produtos e serviços para suprir essas necessidades. Como explica a professora Mirella: "Os intervalos entre esses momentos felizes é que são perigosos. Porque a angústia, a ansiedade, o sofrimento e a sensação de vazio motivam as pessoas a consumirem, visando atenuar essas sensações. Eis, pois o estado de espírito que o capitalismo precisa"  . Ou, dizendo em outros termos, pessoas felizes não são boas para o capitalismo, pois consomem menos ou nem consomem. Se muitos consumidores tornassem-se felizes em muitos momentos, se conseguissem prolongar o tempo dessa sensação, desviariam a atenção das compras. De fato, o excesso de consumo não pode ser bom. Não só o excesso, como o gasto financeiro que o acompanha e que é estimulado pelo mercado. Nós, estudiosos consumeristas que combatemos o consumo exacerbado, desmesurado, descontrolado, desnecessário temos, então, um desafio: encontrar modos de realização dessa utopia. Como tornar as pessoas mais felizes, mais tempo? Talvez, indicando os caminhos da simplicidade; da volta à natureza; do prazer em admirar a beleza das flores e dos jardins; e do sol, quando nasce e quando se põe; e também da lua em todas as suas fases e formas; com a alegria da aproximação com os amigos e da convivência em família, enfim, das coisas que valem a pena, independentemente de estarem sendo anunciadas e vendidas em shopping centers ou lojas reais e virtuais com preços à vista ou a prazo. Sei que não incentivar o consumo é algo que vai contra toda política econômica da atualidade, cuja manutenção e crescimento são baseados quase que exclusivamente no consumo e que, aliás, por isso mesmo está destruindo o planeta. Bem, mas não é problema de quem quer ser feliz sem consumir. Se o consumo decrescer por esse motivo - pessoas que estão felizes - certamente encontrar-se-á outro caminho, e até mais justo, equilibrado e que respeite a natureza e as pessoas visando à manutenção do progresso tecnológico e econômico. Eis, pois, essa teoria para reflexão: mais felicidade, menos consumo. Para terminar, deixo indicado um texto conhecido de uma placa sobre a felicidade que alguém colocou na porta de entrada de sua casa:  Todos trazem felicidade a esta casa.Uns quando entram, outros quando saem.
"Todo filme é político. Nada mais político do que os filmes de super-heróis." (Costa-Gavras) Faço outra citação, mais longa: "Pressionada pela necessidade de mercados sempre mais extensos para seus produtos, a burguesia conquista a terra inteira. Tem que imiscuir-se em toda parte, instalar-se em toda a parte, criar relações em toda a parte. Pela exploração do mercado mundial, a burguesia tornou cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, retirou da indústria sua base nacional. As antigas indústrias nacionais foram aniquiladas e ainda continuam a ser nos dias de hoje. São suplantadas por novas indústrias cuja introdução se torna uma questão de vida ou de morte para toda as civilizações: essas indústrias não empregam mais matérias-primas locais, mas matérias-primas provenientes das mais longínquas regiões, e seus produtos acabados não são mais consumidos 'in loco', mas em todas as partes do mundo, ao mesmo tempo. As antigas necessidades, antes satisfeitas por produtos locais, dão lugar a novas necessidades que exigem, para sua satisfação, produtos dos países e dos climas mais remotos. A auto-suficiência e o isolamento regional e nacional de outrora deram lugar a um intercâmbio generalizado, a uma interdependência geral entre as nações. Isso vale tanto para as produções materiais quanto para as intelectuais. Os produtos intelectuais de cada nação tornam-se um bem comum. O espirito nacional tacanho e limitado torna-se cada dia mais inviável, e da soma das literaturas nacionais e regionais cria-se uma literatura mundial". Em 2012, o cineasta Costa-Gavras, atualmente com 81 anos, lançou seu último filme, O Capital, e em 2005, o anterior O corte. Como se sabe, em vários de seus trabalhos, o Diretor grego investiu contra ditaduras e a violência humana dos vários fascismos, apontando crimes e criminosos reais (cito apenas parte: Z, Missing, Estado de sítio, Muito mais que um crime, Amém etc.). Nesses dois de 2005 e 2012 mostrou as vicissitudes do mercado capitalista. Há muito a dizer dos dois filmes (que vale a pena serem vistos, assim como os demais), e anoto desde logo um dado interessante, relativamente ao último: O capital é uma adaptação do livro homônimo escrito por Stéphane Osmont, economista francês, egresso dos altos quadros dos bancos europeus. O livro, assim como o filme, investem contra o capital especulativo e a ganância dos banqueiros pelo mundo afora e que poderia gerar um crise internacional. A crise veio mesmo, em 2008/2009, como se sabe, mas o livro foi escrito em 2004, algo premonitório. A citação mais longa que abre este artigo, e que descreve muito bem os caminhos do capitalismo, eu retirei do famoso Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848, e escrito por Karl Marx e Friedrich Engels1, livro também premonitório em vários aspectos. Na verdade, o capitalismo contemporâneo tornou-se avassalador, penetrando com seu modelo de exploração em todas as partes do planeta, destruindo o meio ambiente global, e também as indústrias e o comércio locais e regionais, as tradições e as culturais locais. No modelo atual, a lucro foi globalizado e o prejuízo localizado. Recentemente, a ONG britânica OXFAM revelou que o patrimônio de apenas 85 pessoas, as mais ricas do mundo, é igual às posses de metade da população mundial, isto é, mais de três bilhões e meio de seres humanos. O filme O capital, de Costa-Gavras, é repleto de citações com forte ironia e cinismo: "Os estados democráticos não podem mais se livrar dos bancos que os asfixiam"; "O luxo é democrático! É um direito de todos!" "A moral do capital é deixar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres." Coisas de filme? Nem tanto. No programa "The Lang and O'Leary Exchange", da TV CBC canadense, de 20 de janeiro deste ano, o bem sucedido empresário Kevin O'Leary, para comentar a pesquisa que acima citei, mostrando a extraordinária concentração e injusta distribuição de renda, declarou: "É uma grande coisa, porque isso inspira todo mundo. Faz com que as pessoas olhem para o 1% e digam 'quero fazer parte dessa turma' e passem a trabalhar duro para chegar ao topo. É uma notícia fantástica, é claro que eu aplaudo. O que poderia estar errado com isso?" A afirmação foi tão surpreendente que sua colega de Programa, Amanda Long, perguntou: "Verdade? Então, uma pessoa que vive na África com um dólar por dia, ao acordar de manhã, deve pensar que poderá ser um Bill Gates?"2. No filme O capital, o personagem principal é Marc, um alto executivo que, com a doença do presidente de um grande banco francês, acaba assumindo o cargo. Assim que assume, descobre que foi colocado num jogo, no qual será usado. E a trama mostra várias jogadas internas da instituição e na relação com outros parceiros. Para satisfazer os acionistas, Marc é obrigado a fazer demissões em massa. Há uma demonstração de que, a cada demissão, o valor das ações do banco sobe. Ele acaba demitindo dez mil empregados, fazendo o banco valorizar-se sobremaneira. Claro que a versão dada publicamente para as demissões é outra. Explica-se que era a única forma de impedir a quebra da empresa e com isso salvar os empregos dos outros, num conjunto de mentiras contadas muitas vezes em todos os lugares deste planeta capitalista. Trata-se apenas de um jogo, no qual as pessoas perdem suas economias e vão à miséria como se fosse algo natural. As pessoas acreditam? Após contar mais uma mentira, Marc, rindo, diz em voz baixa para sua mulher que está ao lado: "Agora aceito dar qualquer entrevista. A gente diz uma bobagem e pronto". O filme mostra claramente o esquema da especulação financeira e dos indivíduos que dela vivem. Marc, apesar de surgir nas telas com relances de conflitos de consciência, decidira enriquecer. E não há limites para a quantidade de dinheiro que se ganha, por que a partir de certo ponto não é mais o dinheiro o que importa, e sim o poder, algo que não se pode saciar. Marc vivia algumas contradições e, quando assumiu, tentou evitar práticas que envolviam lavagem de dinheiro, mas percebeu que seria difícil escapar das armadilhas que existiam pelo caminho. Há um ensaio de tentar mostrar que havia alguma diferença entre o velho capitalismo europeu, digamos assim, ético, e o vale-tudo norte-americano. Porém, a conclusão é que, de fato, o capitalismo é o mesmo em todos os cantos do mundo. No filme anterior do Diretor grego, O corte, o jogo do mercado é desviado para a luta da sobrevivência entre os empregados. Ironicamente, o término da concorrência entre as empresas (fenômeno verificado fortemente a partir do final do século XX, com as fusões, incorporações e demissões em massa), gerou, como gera, uma disputa entre os desempregados. Uma concorrência que, claro, já se constatava no Século passado. Para ficarmos com um depoimento insuspeito sobre a competição entre empregados, lembro Albert Einstein, que, em meados do século XX, reclamava dos métodos de produção. "Para corresponder de modo efetivo às necessidades de hoje, toda a mão de obra disponível é amplamente inútil. Daí o desemprego, a concorrência mansã entre os assalariados e, junto com essas duas causas, a diminuição do poder de compra e a intolerável asfixia de todo o circuito vital da economia".3 Voltando ao filme, cuja ficção envolve uma realidade incontornável: os empregados disputam corpo a corpo as vagas existentes no mercado e muitos fazem qualquer coisa para conquistá-las e mantê-las. A narrativa mostra a vida de Bruno, um executivo que trabalhou 15 anos numa fábrica de papel e que foi despedido quando a empresa efetuou um processo de reestruturação: a fusão feita com uma concorrente e o ganho de "sinergia"(leia-se: geração de desemprego, dentre outras mazelas). Apesar das tentativas, passam-se dois anos sem que Bruno consiga um novo emprego. Os problemas domésticos se agravam, a esposa trabalha em dois lugares se sujeitando aos baixos salários, um dos carros da família é vendido, o padrão de consumo cai, o filho comete furtos, enfim, a crise se instala. Desesperado, o executivo desempregado bola um plano para conseguir uma colocação: ele mapeia a concorrência, isto é, outros executivos especialistas no setor de papéis, que também estão desempregados e, por isso, são concorrentes em potencial e decide eliminar um a um, assassinando-os. Não contarei o final do filme, para não estragar a expectativa de quem quiser assistir. Apenas digo que o enredo é terrivelmente realista, apesar de fictício. Para terminar, retorno ao filme O capital para referir o momento em que Marc, que está na reunião de Diretoria e de acionistas do banco como Presidente, dirige-se à plateia e diz: "Meus amigos, sou seu Robin Hood moderno, continuarei roubando dos pobres para dar aos ricos." É. Este é o mundo capitalista, no qual estamos vivendo! __________ 1Trecho extraído das p. 29 e 30 da edição L & PM Pocket. Porto Alegre: L&PM Editores, 2001.2Extraí os dados do seguinte endereço eletrônico em 23/3/2014. 3"Como vejo o mundo". São Paulo: Saraiva/Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2011, os. 91/92.
quinta-feira, 20 de março de 2014

Você acredita em tudo o que lê, vê e escuta?

Conta-se a seguinte piada de um menino conversando com sua mãe: - Manhêêêê! - grita o menino. - O que foi, meu filho? - Lá na escola, os meus coleguinhas estão dizendo que eu sou um grande mentiroso! - Larga de bobagem, meu amor. Você ainda nem está na escola! * * * Nem toda mentira tem assim perna tão curta. Mas, nessa área, há episódios pitorescos produzidos no mercado, tanto do mundo real como do virtual. E mais: na atualidade, a entrega da informação e sua força viral ou memes de web ou internet, como se diz, se propagam a tal velocidade e geram uma quantidade tão grande de reproduções que, muitas vezes, essa quantidade acaba sendo vista como medida da verdade. Há de tudo, desde coisas sem importância e bobagens engraçadas até boatos causadores de danos, verdades idem e falsidades planejadas. Recentemente, li num site informativo que um bispo, líder de uma grande igreja evangélica do país, acreditando no poder da língua inglesa - isto é, vivendo neste ambiente em que o inglês, ao menos aparentemente, domina -fez uma pregação extraordinária para seus seguidores: ele proibiu que os fiéis de sua Igreja consumissem a maionese da marca Hellmann's. Disse o bispo que, traduzindo o nome da maionese da língua inglesa para a portuguesa, o resultado seria 'homem do inferno', já que hell significa inferno e man, homem. Para reforçar seu ponto de vista, ele teria dito aos seguidores: "Você passaria o satanás no seu pão? Colocaria ele na sua salsicha ou comeria ele na sua salada com a sua família?". Estranho e engraçado! O problema do bispo era que, como se sabe, a colocação da apóstrofe após o nome e antes do ésse significa que algo pertence ao nome vindo antes. E Helmmann é o nome do criador da maionese, Richard Helmann, um alemão que a inventou e começou a vendê-la em 1905. Além disso, como a palavra tem origem alemã, na pior das hipóteses poderia ser traduzida por homem da luz ou gente da luz (hell = claro, iluminado, luminoso e man = gente, alguém), muito ao contrário do que ele pregou. Engraçado eu disse, mas falso. A notícia era, como é, falsa e já pipocou na web muitas vezes (a notícia que li trazia foto e nome do bispo!). *** Em matéria de Direito do Consumidor, por exemplo, o dever de informar é princípio fundamental no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Com efeito, na sistemática implantada pelo CDC, o fornecedor está obrigado a prestar todas as informações acerca do produto e do serviço, suas características, qualidades, riscos, preços etc., de maneira clara e precisa, não se admitindo falhas ou omissões. E, naturalmente, oferecendo informações verdadeiras. Trata-se de um dever exigido mesmo antes do início de qualquer relação. A informação passou a ser componente necessária do produto e do serviço, que não podem ser oferecidos no mercado sem ela. Ademais, o CDC tem também estabelecido o princípio da transparência, que se traduz na obrigação de o fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do contrato que está sendo apresentado. Assim, da soma desses princípios, compostos de dois deveres - o da transparência e o da informação -, fica estabelecida a obrigação de o fornecedor dar cabal informação sobre seus produtos e serviços oferecidos e colocados no mercado, bem como das cláusulas contratuais por ele estipuladas. Sabe-se que a web - mas não só - é um campo fértil para que sejam produzidas toda sorte de enganações, ao lado de tudo o que há de bom por lá. A pergunta que faço é a do título deste artigo: dá para acreditar em tudo o que é publicado, divulgado, mostrado, enfim, naquilo que se nos surge diariamente na web, nos folhetos, nos anúncios de tevê, revistas, jornais e até via SMS? Coincidentemente, enquanto escrevia este artigo, recebi via SMS o seguinte texto: "Parabéns! Você ganhou a portabilidade premiada! Ligue agora... e receba grátis instalação da TV, 3G e o melhor aparelho fixo com DDD ilimitado e de graça!" Por que é que o consumidor acredita nesse tipo de propaganda, que utiliza um dos motes mais antigos e fajutos da publicidade? Sei que, às vezes, a informação é bem feita e nos engana, como talvez seja o caso citado do Bispo acima e sei também que quando é bem feita demora para cair a máscara da falsidade e, por isso, podem acontecer muitos estragos. Recentemente, a ministra dos Direito Humanos, Maria do Rosário, sofreu injúria com a divulgação de notícia falsa a seu respeito e na semana passada circulou na web uma foto de uma camiseta de uma escola de Brasília, na qual estaria estampado "Centro de Encino Médio", o que teria causado problemas para os próprios alunos da escola. A foto seria uma montagem feita de "brincadeira". Enfim, são apenas dois exemplos divulgados nos últimos dias, dentre as centenas de outros casos. E a moda de gerar informação falsa, parece que pegou: há um site na web que ensina como fazer e divulgar notícias falsas via Facebook. Seu título é "notíciafalsa.com" e a chamada de abertura diz: "Divirta-se com seus amigos no Facebook!" O site ensina como produzir a notícia falsa, incluir fotos, etc. Trata-se de uma pegadinha, anunciam: "Com o NoticiaFalsa.com você pode criar e compartilhar notícias falsas que deixarão seus amigos de cabelo em pé. Crie um link falso para sacanear sua turma no Facebook. Quem sabe ele não se transforme em um viral?" Não sei se a divulgação, no caso, fica parecendo verdade, pois no exemplo que está na página do site, ao clicar na notícia surge uma frase deixando clara a brincadeira: "É pegadinha!". Há, como se sabe, muitos comediantes e metidos a tal que inventam situações falsas que acabam se passando por verdadeiras. Muitos são explicitamente falsos e têm apenas a função de divertir e, muitas vezes, divertem mesmo. O problema surge quando a informação e/ou imagem torna-se viral e é divulgada como se fosse verdadeira, ligada a alguma específica pessoa, pública ou não. Não nos esqueçamos de que nesses casos, é possível enquadrar o fato em um ou mais dos crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria). Mas, nem tudo é proposta de falsidade na web. Até ao contrário: há um site já antigo - e, por isso, bem conhecido - especializado em desvendar as mentiras. Trata-se do "e-farsas.com", cujo slogan diz: "Descobrindo farsas na web desde 2002!". E, de fato, o site é muito interessante, merecendo uma visita. Lá há dicas de como, desde logo, tentar descobrir se a informação é falsa ou verdadeira e há relatos de dezenas de casos desvendados (inclusive o da ministra que citei acima). *** É Isso! Se antes já era difícil saber como lidar com as informações em geral, conhecendo-se a fonte ou não, atualmente a dificuldade é muito maior. Aliás, como toquei no assunto e apenas para terminar, lembro que o maior problema de uma fofoca está exatamente no fato de a pessoa que a recebe conhecer a fonte e, muitas vezes, é por isso que acredita! __________ 1Informação retirada do site da Helmann's.
quinta-feira, 13 de março de 2014

Consumidores crentes, comportados e controlados

Essa é uma experiência conhecida: um grupo de cientistas colocou cinco macacos numa jaula, na qual havia, num dos cantos, uma escada e sobre ela, no topo, estava um cacho de bananas. Quando um primeiro macaco subiu na escada para pegar as bananas, um jato de água fria caiu sobre os demais que estavam no chão. Um segundo macaco subiu para pegar uma banana e ao chegar lá, novamente, os demais macacos sofreram com a água gelada que caiu sobre eles. E assim, sucessivamente, a cada vez que algum macaco tentava pegar uma banana, os demais sofriam com o banho de água gelada. Depois de certo tempo, quando um macaco ia subir a escada, os outros, rapidamente, o agarravam e lhe davam uma surra. Com as surras sucessivas e o passar do tempo, os macacos desistiram de subir na escada, apesar da tentação das bananas. Nesse momento, os cientistas substituíram um dos macacos por um novo. Adivinhe qual foi a primeira coisa que este fez ao entrar na jaula? Olhou para o alto da escada, viu as bananas e foi logo subindo. Não deu outra: foi puxado e levou uma surra. Tentou novamente, apanhou novamente. Tentou de novo e nova surra. Daí, desistiu. Quando este novo macaco já estava conformado em apenas admirar as bananas sem poder apanhá-las, um segundo macaco foi substituído por um novo. Com este novo, deu-se o mesmo processo: tentativa de subida e surra, várias vezes até que desistiu. Nota: o primeiro substituído também batia no novato, claro.Após o segundo macaco novo se conformar em não subir na escada, um terceiro foi trocado, passando pelo mesmo processo. Em seguida, o quarto e, por fim, o último que ainda podia lembrar que, ao se pegar a banana, tomava-se uma ducha de água fria.Os cientistas então ficaram com um grupo de cinco macacos que, mesmo nunca tendo tomado um banho frio, continuavam batendo naquele que tentasse pegar asbananas. Eles não sabiam por que, mas repetiam a surra, numa espécie de tradição. Se fosse possível perguntar a algum deles por que eles batiam em quem tentasse subir a escada, certamente responderiam que não sabiam, mas que era assim que as coisas funcionavam por ali. ***Faz muito tempo que os administradores do mercado de consumo sabem como controlar seus compradores, como fazer nascerem necessidades, como conquistá-los, como seduzi-los, enfim, esses técnicos sabem muito bem como fazer com que os consumidores se comportem do modo que foi planejado.A regra do macaco não é só da imitação, como usualmente se diz. É mais. Como a experiência mostra, existem comportamentos que se repetem por mero hábito e repetição e, às vezes, em forte contradição com a realidade dos fatos e até com os desejos e necessidades. Por isso, é importante fazer parecer que as ações envolvem decisões pessoais e livres ou atendem a necessidades, ainda que estas tenham sido fabricadas de fora, pelo outro ou pelo mercado.Mas, alienação é isso mesmo. Fazer coisas sem saber por que. Quero, agora, também tratar de um outro elemento, o que envolve a linguagem. ***Já disse aqui nestas páginas que, nós, brasileiros, fomos catequizados e que adoramos copiar o que vem do estrangeiro. Passamos dezenas de anos fazendo isso e continuamos; somos copiadores vorazes, inclusive de leis que não nos dizem respeito - como é o caso exemplar do regime dotal do casamento, copiado da Europa e introduzido no vetusto Código Civil de 1916. Estamos a todo vapor com o Halloween, que serve para empanturrar nossas crianças de açucares e gorduras. E, recentemente, chegamos à 4ª edição do Black Friday. Naturalmente, há dezenas de situações que demonstram nossa enorme vocação para a imitação.Na verdade, não se trata de um fenômeno apenas brasileiro nem de todos os povos colonizados, na medida em que esse comportamento pode ser constatado de um modo ou outro em muitas nações. Mas, claro, há os que vendem e impõem sua própria cultura aos demais e os que a aceitam. Trata-se de um modo de controlar e, no caso do mercado, de faturar, exportando tecnologia, serviços ou produtos de todos os tipos, inclusive, enlatados de tevê, filmes medíocres, comportamentos idem via cinema, etc. Essa exportação/importação pode até ser boa como acontece, por exemplo, no caso da Literatura com ele maiúsculo: atualmente, o consumidor tem acesso aos textos dos melhores escritores do mundo e, no caso brasileiro, em traduções muito bem feitas, às vezes pagando um preço baixíssimo em livros de bolso e até de graça via web.***Mas, voltando à questão do comportamento e abordando agora a linguagem, anoto que o controle também se faz pela incorporação e uso da língua. Os colonizadores impunham sua língua aos colonizados, pois através dela eram passados seus costumes, suas tradições, suas normas, enfim, seu modo de manutenção do poder.Nesse aspecto, a língua inglesa é um bom exemplo. E nós, no Brasil, sofremos uma enorme influência que vem por ela e, claro, por todos os outros modos de controle advindos de norte-americanos e ingleses (e de outros povos também). Goste-se ou não - e há os que não gostam dos norte-americanos ou dos ingleses - ao menos a influência da língua e cultura norte-americana por aqui é inconteste. Há uma história muito boa, especialmente para os fãs do produto futebol e das incríveis narrações feitas pelas rádios (que, de fato, são empolgantes!). Conta-se que, num certo domingo, um jogo do interior do Estado de São Paulo não começou por causa das chuvas. O campo estava por demais encharcado. Depois de aguardarem meia hora, o árbitro decidiu cancelar a disputa. Daí, a produção entregou um bilhete ao radialista. Estava escrito: "O jogo foi adiado sine die" (como se sabe, do latim: sem dia, sem data marcada). O locutor, acreditando tratar-se de uma expressão em inglês, disse: "Senhores ouvintes, temo informar que o jogo foi adiado saini dai".(Embora não tenha relação com o tema, mas como envolve programa de rádio, não resisto repetir uma história contada por meu amigo Outrem Ego. Ele, que é conhecido de um radialista, contou o seguinte. Certa feita, chovia muito forte na cidade de São Paulo. Um apresentador de um programa de variedades abriu o microfone para um repórter que estava na rua e perguntou: "Fulano, como é que estão as coisas por aí?". O repórter, então, respondeu: "Aqui na zona sul está chovendo granito". O âncora, então, disse rapidamente : "Então corre, se não você vai se machucar!").Na verdade, esse nosso amor ao estrangeiro (não só ao inglês e sua língua), às vezes, sobressai pelo inverso. Lembro mais uma vez meu amigo que disse que sua irmã ficara surpresa ao descobrir que a joalheria H. Stern era brasileira. "Nossa!", disse ela, "Jamais poderia imaginar. É tão boa! E está em tantos lugares do mundo!". Um complexo de inferioridade que ainda não extirpamos de nossa alma brasileira e que, claro, o mercado sabe bem explorar.Produtos e serviços vindos do exterior são sempre alardeados como os melhores do mundo (sei que muitas vezes são mesmo: mas não é esse meu foco aqui). E os brasileiros viajantes fazem a "festa nos mercados de fora" adquirindo tudo o que veem pela frente. Há muitos anos, ainda quando eu era estudante, uma colega de sala, endinheirada e que vivia viajando pela Europa (ela gostava de falar das viagens), surgiu em sala muito surpresa. Ela disse: "Vejam só, acabei de chegar de Milão. Fui a uma loja chiquérrima e comprei um sapato lindo! Última moda. E não é que, quando cheguei aqui, resolvi olhar debaixo da sola e estava escrito 'Fabricato in Brasile'. É lá do Rio Grande do Sul".Há pais que colocam seus filhos em escolas apenas e tão somente por que elas alardeiam que utilizam métodos nascidos no exterior, no Canadá, nos Estados Unidos, Suíça ou outro lugar mais ou menos famoso. Naturalmente, os empresários, conhecedores dessa mazela que afeta os consumidores brasileiros, exploram a vertente muito bem. Vendem ilusões ou apenas confirmam as que já existem. Moda e modismos são apenas as pontas do iceberg do controle dos consumidores. As pessoas não só seguem os modelos vigentes, como se acostumam com as coisas rotineiras, comuns, banais e acabam aceitando-as como válidas e verdadeiras. Como disse Molière, estando em moda, todos os vícios passam por virtudes.Ou, então, o que dá no mesmo, aceitam os fatos como se eles não pudessem ser diferentes. Muitas vezes, agem de certo modo e adquirem produtos e serviços apenas por que parece que é o correto a fazer e sem nenhum questionamento. Muitos consumidores se comportam como os macacos do início deste artigo: ficam olhando para as bananas com vontade de apanhá-las e comê-las, mas não sabem por que não podem fazê-lo, ainda que estejam morrendo de fome!
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A pessoa jurídica consumidora e o direito à imagem

No Brasil, a partir da edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), não há qualquer dúvida de que a pessoa jurídica é, além de fornecedora - fabricante, importadora, produtora, prestadora de serviços etc. - consumidora por expressa designação legal (art. 2º, CDC). E, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma corporação multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação etc. Ela goza dos mesmos direitos e garantias atribuídos aos consumidores pessoa física. Mas, subindo um degrau na hierarquia legal, no que diz respeito à imagem, pergunta-se: em relação às garantias estabelecidas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal (CF), a pessoa jurídica está abrangida? Vejamos, primeiramente, o texto normativo da CF: "Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". A doutrina e a jurisprudência são consensuais na resposta: sim, no quadro de proteção da norma constitucional em análise, a pessoa jurídica está incluída. Contudo, há algumas limitações de ordem prática: a) A pessoa jurídica não sofre dano estético, pois este diz respeito ao aspecto físico, mecânico e fisionômico do corpo humano; b) Não pode ser violada em sua honra, eis que esta somente pode ser atribuída ao indivíduo. Anoto que, quando se fala em honra de uma instituição, tal conceito aparece em sentido meramente figurativo: estar-se-á referindo tecnicamente à imagem. É, na verdade, reputação, garantida constitucionalmente pela imagem-atributo (que tratarei adiante); c) Não sofre, também, propriamente, dano moral, uma vez que sentir dor é uma exclusividade humana. É verdade que parte da doutrina fala em dano moral da pessoa jurídica e muitas decisões judiciais fazem o mesmo. No entanto, cuida-se de uma impropriedade do uso do termo. Sempre que se fala em dano moral da pessoa jurídica ou de indenização pelo dano moral causado à pessoa jurídica, está-se abordando a violação à sua imagem. Não devemos esquecer que há consenso no Brasil de que dano moral implica dor, constrangimento excessivo, angústia, sofrimentos de vários tipos etc., sentimentos que somente a pessoa natural pode experimentar; d) A pessoa jurídica não goza das garantias relativas à intimidade, essa esfera mais concêntrica dentro da órbita privada. Apenas para a pessoa humana é que se pode falar em vida íntima e intimidade. Por outro lado, porém, a pessoa jurídica goza de privacidade. Privacidade, que, oposta à publicidade, garante-lhe o direito a segredos comerciais, fórmulas e métodos que lhe pertencem reservadamente (além de decisões internas, reuniões de diretoria, etc.). Esses são os elementos que compõem sua esfera privada. De resto, a característica básica de atuação da pessoa jurídica é sempre pública, independentemente de sua natureza jurídica (pública, privada, sociedade civil, comercial etc.). Isto porque a ação da pessoa jurídica no que tange aos consumidores, demais pessoas jurídicas, autoridades e órgãos governamentais etc. se dá no meio social: no mercado ou na ação política governamental. Ela é, por isso, essencialmente pública. A pessoa jurídica tem, também, imagem. Apesar da discussão que já se fez a respeito, atualmente não resta dúvida de que a imagem da pessoa jurídica é protegida constitucionalmente. Para se compreender em que consiste essa imagem, eu recorro à mesma classificação que adoto para pessoa física1. Ela tem imagem-retrato, representada por seu nome, sua marca, seu logotipo, seus produtos, seus serviços, enfim, por tipos, sinais, letras e símbolos que a representem. Obviamente, coloco aqui a pessoa jurídica como possuidora de uma imagem-retrato de forma figurativa, por analogia ao conceito de imagem-retrato da pessoa física2. Todavia, o tipo "imagem-retrato" encaixa-se como uma luva, quando se quer entender o que está ocorrendo no uso sem autorização de uma marca ou na violação de um logotipo ou mesmo de um produto ou serviço. Percebe-se que no caso do produto há várias circunstâncias que envolvem não só o nome do produto, mas também sua embalagem, seu conteúdo, a ligação de tudo isso ao nome do fabricante e sua respectiva imagem etc. Além disso, a pessoa jurídica possui imagem-atributo3. E é aqui que reside certa confusão, no caso, não só para admitir a outra, a imagem-retrato, como para entender a distinção entre os dois tipos. Com efeito, a imagem-atributo é construída pelo meio social. Ela é, pode-se dizer, mais o que os outros reconhecem na pessoa jurídica do que sua própria designação ou construção. É uma espécie de "reputação" da pessoa jurídica. Por isso, embora a imagem-retrato guarde em alguns casos relação com a imagem-atributo, com ela não se confunde: é que a imagem-retrato é criada pela própria pessoa jurídica tão logo ela passe a existir. Por exemplo, o nome. Mas a imagem--atributo depende da atuação dessa pessoa jurídica - desse nome - no meio social. Quando se disser que esse nome ou essa marca tem alta credibilidade, estar-se-á diante da imagem-atributo. E o texto constitucional protege a ambas: a) a imagem-retrato de uma simples e inócua empresa de contabilidade, conhecida apenas por seu único cliente ou que ainda não tenha nenhum. Ninguém pode usar aquele nome sem autorização; b) a imagem-atributo daquela mesma empresa, que formou a maior auditoria do País, com notável reputação ou credibilidade. Ninguém poderá usar seu nome sem autorização, nem poderá denegrir sua imagem e reputação. Por fim, não posso esquecer-me de dizer, embora já o tenha adiantado no aspecto do CDC, que a Constituição Federal não faz distinção de pessoa jurídica: esta pode ser nacional ou estrangeira, pública ou privada, sociedade comercial ou civil, fundação, associação sem fins lucrativos, enfim, qualquer figura reconhecida como pessoa jurídica. Por extensão, garante-se a imagem do ente despersonalizado, como a "massa falida". __________ 1Acompanho neste ponto o Professor Luiz Alberto David Araújo, A proteção constitucional da própria imagem: pessoa física, pessoa jurídica e produto. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. 2Diz o professor Luiz Alberto David Araújo que o direito à imagem possui duas vertentes: a primeira delas é a relativa à reprodução gráfica, como o retrato (fotografia), o desenho, a filmagem. Esta tem o nome de "imagem-retrato" (ob. cit., p. 27-30). 3Continuando a exposição da nota anterior do Prof. Luiz Alberto, anoto, então, que a segunda vertente é a que revela as características do conjunto de atributos cultivados pelo indivíduo e que são reconhecidos pelo corpo social. Esta tem o nome de "imagem-atributo" (ob. cit., p.31-32).
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Será que é tão difícil fazer a coisa certa?

Vou contar uma história que eu vivenciei ainda quando era estagiário de Direito e que me marcou bastante. Não citarei nomes. Um dos advogados com o qual eu trabalhava gostava muito de me contar casos dos quais cuidava e aproveitava para falar de sua vida pessoal, especialmente familiar. Eu o auxiliava datilografando petições, procurações, etc. Certo dia, fui chamado à sala dele, onde se encontrava um casal, que pretendia fazer um desquite amigável. Fui encarregado de datilografar as procurações. Eles já estavam separados de fato e até moravam em casas diferentes. Foi feito também um contrato de honorários, de cujo valor não me lembro, mas eram altíssimos. Havia muitos bens envolvidos, além de três filhos, o pagamento da pensão alimentícia seria enorme e as demais questões de praxe. Quando o casal deixou a sala, o dr. fechou a porta e me disse, com um sorriso estampado no rosto: "Olha, esse casal caiu do céu. Sabe... Nesses últimos tempos, nós, lá em casa, andamos apertados de dinheiro. Por conta da doença de meu sogro eu acabei me endividando, estou devendo para meu banco e minha mulher também. Foi Deus que me enviou este casal. Cheios da grana. Vou resolver todos os meus problemas financeiros". Realmente, eu havia percebido que nos últimos tempos ele andava acabrunhado, mas naquele instante ele saltitava e demonstrava uma alma aliviada. Nos dias seguintes, reparei que o casal retornou ao gabinete do dr. Os vi por lá pelo menos três vezes em apenas poucos dias. Numa dessas vezes, após a saída de ambos da sala, fui chamado. O dr., então, me contou o seguinte: "Estou numa sinuca de bico. Tenho conversado bastante com esse casal, enquanto eles vêm aqui trazer os documentos para a separação. E já tive oportunidade de conversar com cada um em separado. Sabe o que eu descobri?". Balancei a cabeça negativamente. "Descobri que eles não querem se separar". "Foi isso que eles disseram?", perguntei e ele respondeu: "Não! Eles não sabem!" "Como assim?", argui. "Eu estou quase com a certeza de que eles se gostam e muito. E que não querem se separar. Se eu der um empurrãozinho, eles não se separam". Fiquei com cara de "não entendi" e ele completou. "Sabe, eu tenho muita experiência com separações. Já fiz dezenas. Amigáveis e litigiosas. Esse casal não tem nenhum problema um com o outro. Eles se adoram, se respeitam, se admiram, se dão bem. A relação com os filhos é ótima. Sei lá. Resolveram se separar de fato, moram em lugares diferentes, mas... Acho que se eu falar alguma coisa nesse sentido, eles reatam. Só tem um problema: eu preciso do dinheiro desses honorários". Mais ou menos uma semana depois, eu vi o casal sair animado e abraçado da sala do dr. Entrei, ele pediu que eu sentasse e me contou: "Amo muito minha mulher, meus filhos. Nossa família está passando por um apuro financeiro, que nunca imaginei que passaria. Pensei muito nesses dois que iam se separar. Era um erro. Uma besteira. Eles não sabiam. Alguém precisava dizer. Na vida, surgem caminhos que nós podemos escolher para tomar. Muitos deles são desafios à nossa consciência. E vou te dizer: às vezes, não há alternativa. Nós temos que fazer a coisa certa. E, por mais que eu precisasse do dinheiro dos honorários e mesmo sabendo que, quem sabe um dia, apesar de tudo, eles poderiam reatar, a coisa certa a fazer era dar aquele empurrão. Eu dei. Há dois dias eu conversei com eles. Hoje, eles me contaram que não irão mais se separar. Já até me pagaram pelos serviços prestados, mas, claro, foi muito pouco diante do que seria. Tudo bem, terei de ir ao banco pedir outro empréstimo". Foi uma lição e tanto. Sempre que penso em ética, lembro do querido dr. E estava pensando em falar de mercado de consumo e ética, quando mais uma vez me lembrei do episódio. Ah, se todas as pessoas fossem assim e se todos os empresários fossem... O modo de tratar os clientes, tanto nas pequenas empresas como nas grandes corporações, infelizmente, é o da exploração ao máximo dos resultados financeiros; não importa a condição real do consumidor envolvido na relação. Nem preciso referir os vários exemplos que afligem o consumidor todos os dias, pois isso é corriqueiro. Quantos de nós não experimentamos dissabores ao, por exemplo, tentar cancelar um serviço contratado ou devolver um produto com defeito. Do outro lado do balcão ou da linha telefônica, há sempre um empregado treinado para não nos atender ou para tentar adiar a todo custo o exercício de nossos direitos ou, ainda, para nos enganar fazendo ofertas mirabolantes. E o que se dirá dos gerentes de bancos, prontos para nos oferecer o que há de melhor, para os banqueiros e para eles próprios, com suas metas a serem cumpridas. Tudo conscientemente; tudo previamente sabido e treinado; não há inocentes por aí. E o pior é o efeito social desse tipo de comportamento: muitas pessoas acabam adotando o modelo; de algum modo essa falta de ética no dia a dia acaba afetando o consumidor. Funciona como um aprendizado, típico do fenômeno da imitação. Na realidade objetiva, esse comportamento desviado acaba virando lugar comum e enxergado como válido. Afinal, se muitos fazem, deve ser normal. Veja essa outra história contada por meu amigo Outrem Ego. Sua esposa trabalha numa escola de educação infantil. Ela contou que conhecia uma mãe e também um pai que chegavam sempre para trazer e buscar seu filho dirigindo carrões novos, importados e caríssimos. E eles estavam sempre vestidos de acordo com o que há de mais badalado em termos de roupas de grife. Enfim, gente cheia de dinheiro. Pelo menos, era o que ela pensava. Mas, adivinhe o que aconteceu no final de um ano? Vou deixar a mulher de meu amigo narrar: "Para minha surpresa e das demais funcionárias da secretaria, no final do ano, no momento das matrículas, a mãe surgiu na escola, estacionou seu carrão limpo e brilhante, desceu vestindo um tailleur chiquérrimo, sapatos e bolsa idem e pediu para falar com a diretora. Atendida, ela disse que estava com problemas em seu orçamento doméstico e que por isso precisava de um grande desconto nas mensalidades, para poder manter seu filho na escola. Mas, com aquela panca e conhecida que era de todos, a diretora, após conversar com sua assistente, recusou-se a conceder o desconto. Ela foi embora sem renovar a matrícula. Depois, voltou e pediu a documentação para a transferência. Colocou o filho numa escola muito mais barata e de reputação duvidosa. Mas, como ela morava perto da escola, continuava podendo ser vista - e também o marido - rodando com seus carrões. Economia doméstica às custas da educação do filho e para a manutenção das aparências. Pode uma coisa dessas?". Será que nos perdemos pelo caminho, nessa sociedade da velocidade, do imediato, das coisas passageiras, descartáveis e supérfluas? Será que desaprendemos a fazer a coisa certa? Michael Sandel, no livro que tem esse título Justiça: o que é fazer a coisa certa1, cita Kant para lembrar que o valor moral de uma ação consiste na intenção com a qual a ação é realizada. Se a coisa é certa é ela que deve ser realizada. Isto é, o ato deve ser praticado por representar o correto a fazer. Trata-se de um dever e não uma escolha determinada pelo prazer que dará ou pela imagem que fluirá socialmente, como acontece com alguns: fazem a coisa certa para mostrar para os demais, para seus amigos, para a sociedade; numa espécie de marketing pessoal - ou até marketing profissional. Naturalmente, não se vai condenar esse tipo de ação social, pois, afinal, o bem foi feito, mas os motivos escolhidos não são morais, pois não estão fundados no dever. Fazer a coisa certa para ter valor moral tem de decorrer de uma obrigação, independentemente de outros motivos. Repito: o motivo que confere valor moral a uma ação é o dever. Se, ao invés do dever, agirmos a partir do interesse próprio, a ação não terá valor moral. Sandel dá um exemplo para mostrar o valor da ação moral. Imagine que um comerciante recebe em seu estabelecimento um cliente ingênuo, digamos um jovem, que lhe pede um produto x. O comerciante percebe que pode cobrar pelo produto o dobro do que normalmente cobra, que o cliente pagará. Mas, pensa: "Se os outros cliente descobrirem, acabarei perdendo a clientela". E, assim, cobra o valor correto do jovem. Ele fez a coisa certa, mas pelo motivo errado. Sua ação não tem valor moral. Na verdade, esse é o máximo que temos conseguido enxergar no capitalismo vigente: existem algumas ações adequadas, como método de marketing e só. O resto, ou melhor, a maior parte das ações não faz uma coisa nem outra: é puro desprezo à pessoa do consumidor e suas necessidades, interesses e direitos. Será que é mesmo assim tão difícil fazer a coisa certa? __________1Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª. ed., 2012.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O atendimento ao consumidor está cada vez pior

Meu amigo Outrem Ego, sempre atento ao modo como ele e os demais consumidores são atendidos, acaba de chegar de viagem de férias e me veio com a seguinte história. Ele estava no exterior e precisava pagar uma conta de apenas R$30,00 que havia vencido há dois dias. Nem se preocupou muito, pois se tratava de uma grande operadora de internet e, pensou, seria facílimo obter uma segunda via e quitar via internet banking.   Mas, aí começou sua saga. Veja. "Nem me preocupei e fui ao site tirar uma segunda via. Bem, parece que estava com azar. Durante dois dias tentei acessar o setor indicado com meu nome de usuário e senha. Mas, aparecia como inexistente. A opção "esqueci senha" também não ia adiante. No terceiro dia, fiz nova tentativa. Também não deu certo e me mandaram ao chat de atendimento online. Me animei. 'Agora vai', pensei". Ele continuou:  "Surgiu uma tela escrito: 'Neste momento, todos os nossos agentes de relacionamento estão ocupados. Você é o quarto da fila. Por favor, aguarde'. Me tranquilizei, pois era apenas o quarto... E foi indo. 'Você é o terceiro da fila'; 'Você é o segundo da fila' e, finalmente, depois de uns dez minutos, 'Você é o primeiro da fila'". Aguardei feliz mais cinco minutos e depois disso, a surpresa: ao invés de me atenderem surgiu na tela a seguinte frase: 'Neste momento, todos os nossos agentes de relacionamento estão ocupados. Por favor, tente novamente mais tarde'. Bacana, hein?" A essa altura, meu querido amigo, já havia perdido sua habitual paciência. Anotou todos os endereços de e-mail da empresa, incluindo, a ouvidoria e enviou um e-mail escrevendo exatamente o mesmo que me narrou (e que transcrevi acima). Colocou no assunto: "Urgente: quero apenas pagar minha fatura!" e antes de colocar seu nome, escreveu em negrito: "Será que alguém por aí consegue resolver esse problema, sem que eu tenha que acionar meus advogados ou o Poder Judiciário? É uma dívida muito pequena e eu quero pagar!"   De um dos e-mails recebeu uma resposta automática, nos seguintes termos: "Prezado(a) Cliente, No intuito de atender da melhor forma possível seus clientes, a (...) precisa identificar o remetente da mensagem com um endereço eletrônico ou com o CPF do titular, a fim de que seu cadastro seja localizado e assim possamos verificar sua solicitação.Pedimos a gentileza de retornar a mensagem com as informações de identificação solicitadas acima. Ou, se preferir, entre em contato com nosso atendimento disponível nos sete dias da semana, através do canal abaixo:- Chat, das 5h40min da manhã às 2h da madrugada (...) - Caso tenha alguma dúvida, acesse o endereço. (...) Acesse a Central do Assinante,(...) , para verificar ou alterar seus dados cadastrais, como: forma de pagamento, dados pessoais e serviços contratados. Na Central de Pagamentos, (...) , você pode consultar seu histórico financeiro, emitir segunda via do boleto, negociar títulos pendentes, entre outros. Permanecemos à disposição para qualquer esclarecimento que se faça necessário. Atenciosamente,  (...nome de uma funcionária do setor de atendimento" Esse e-mail, naturalmente, deixou meu amigo irritado, pois ele já havia tentado de tudo. Como ele disse: "Para que serve um setor de atendimento que não atende?". Aquele dia terminou assim. Ele continuava inadimplente, embora estivesse se esforçando para pagar.   No dia seguinte - até que enfim - recebeu um e-mail com o boleto para pagamento. Ficou aliviado, embora tivesse recebido um boleto que envolvia o valor vencido a alguns dias e o valor que ainda iria vencer no mês seguinte! Como a importância total era pequena, deu de ombros e resolveu pagar para se livrar de vez do imbróglio. Mas, eis que logo depois recebeu um e-mail da ouvidoria da empresa. Isso! Da ouvidoria, isto é, um setor montado para atender consumidores com problemas, em desespero, sendo mal atendidos, etc. Logo, deveria ser um texto pessoal, direto, explicativo, com pedido de desculpas e tudo que fosse agradável de se ver e se ler. Que nada! Era apenas mais um texto pré-escrito, dirigido a qualquer um e sem nenhuma conexão com o caso de Outrem Ego. O texto que ele escreveu em resposta para a ouvidoria é suficiente para compreender o que se passou e é mais um bom exemplo de como não se deve tratar um consumidor. Veja: "Prezada Sra. (...), Talvez nem devesse responder, pois me parece  que seu texto é dirigido a qualquer cliente e não a mim. Tanto que não especifica o gênero nem cita meu nome. Mas, já que recebi este e-mail, vou responder. Se alguém daí ler,  será lucro. Seu texto nada me diz. Ou melhor, diz que a senhora (e ninguém aí) leu o que eu escrevi! E olha que o que eu escrevi está abaixo, enviado por V. S. no próprio e-mail. Se tivessem lido, não me enviaram essa resposta pronta que nada diz com o que eu falei (...). E, aliás, o pessoal do chat não me atendeu. Se quiserem examinar minha reclamação mesmo para valer, LEIAM! PS.1: Num e-mail anterior, eu recebi o boleto para pagamento. Já estou pagando. Mas, vejam que ironia: no boleto que vence dia 26 de janeiro foi incluída a parcela que somente venceria dia 10 de fevereiro (No importe de R$30,25). Eu, claro, como bom consumidor fui vencido pelo cansaço: pagarei daqui a pouco para encerrar esse assunto. Tenho mais o que fazer! PS.2: Agora para vocês dessa enorme empresa: em matéria de atendimento pessoal, vocês estão muito atrasados. Depois de minha legítima reclamação, enviar-me um e-mail com texto padrão, adredemente preparado, demonstra que vocês usam um dos modelos mais obtusos  de relacionamento com os clientes. É idêntico a mandar cartão de Feliz Aniversário no dia de nascimento do melhor amigo via e-mail automático!!! Acordem! PS.3: Isto não é uma mensagem automática e vocês não precisam responder!" Meu caro leitor, trata-se de um caso sem maiores implicações, mas fiz questão de apresentá-lo para mostrar como, em pleno Século XXI, aquilo que deveria ser o bê-a-bá da qualidade de atendimento, ainda está engatinhando e, em muitos casos, piorou por incompetência ou deliberadamente por questão de economia e desprezo aos clientes. De nada adianta usar de tecnologia com respostas rápidas e automáticas se elas não se enquadram na hipótese do consumidor que tem um problema. Evidentemente, muitas soluções podem mesmo se dar de forma pré-pensada e planejada, com formulários padrões prontos, bastando um elemento marcado para acioná-lo. Mas, em muitas situações esse automatismo é bisonho e, ao invés de dar uma reposta efetiva e compreensível ou apresentar uma solução para o problema, agrava a deteriorada relação estabelecida.  Não se trata apenas de uma questão legal, eis que, evidentemente,  o consumidor tem direito de ser bem atendido, ser ouvido na apresentação de seus problemas e receber, de maneira eficiente, uma solução para a questão apresentada. É mais: a manutenção de clientes exige profissionalismo e inteligência. Muitos consumidores já se cansaram de ser tratados como meros números, como se não existissem realmente. Certamente, um mau  atendimento gera perda de clientes e,  quanto mais os consumidores estiverem conscientes disso, mais as empresas terão de aprender a fazer atendimento. Isso vale tanto para grandes como para pequenas empresas, para corporações internacionais e para  um pequeno restaurante, para agentes financeiros e para profissionais liberais em todas as vertentes, etc. Atender bem exige, pois, estudo e investimento. Em sistemas e em pessoas. De nada adianta criar métodos automáticos de resposta sem conexão com  os fatos,  como o caso narrado por meu  amigo mostrou; nem também ficar fazendo o tempo todo pesquisa automática de satisfação do atendimento. É necessário ouvir de fato o cliente; saber o que ele pensa dos produtos e serviços oferecidos; entender como ele os usa, como ele os avalia; é necessário dialogar com ele. Repito: mas não como um número ou preenchendo um formulário com questões prévias. De que adianta criar uma "ouvidoria" que não ouve? Nem lê? Ou um Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) que não resolve problemas? O consumidor deve ser olhado em sua integridade pessoal e real, tal como ele é e se apresenta. Esse é um dos pontos da qualidade ou o mínimo de inteligência que qualquer setor de atendimento deve ter. 
Aqui vai mais um artigo que eu posso escrever simultaneamente ou mesmo antes dos fatos ocorrerem. Com o início das aulas nas faculdades retornam os trotes ilegais. Trato, pois, mais uma vez do assunto e, desde logo, pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa questão?Conforme já tive oportunidade de relatar em outras ocasiões, consta que o trote estudantil nasceu nas Universidades europeias na  Idade Média. Tendo em vista o terrível baixo nível de higiene da época, por razões profiláticas, isto é, para evitar doenças e sua proliferação, raspava-se a cabeça dos alunos ingressantes (os calouros) e muitas vezes queimavam-se suas roupas. Essas questões, inicialmente higiênicas, muito provavelmente influenciadas pelo grau de brutalidade reinante, já no século XIV, nas Universidades de Bolonha, Paris e Heidelberg, haviam se transformado em rituais bárbaros claramente sadomasoquistas: os veteranos arrancavam pelos e cabelos dos calouros, que muitas vezes eram obrigados a ingerir urina e comer excrementos. (Fatos observados em Faculdades de Medicina no Brasil do Século e XXI!1).Em Portugal, há relatos de trotes violentos no Século XVIII na Universidade de Coimbra. Tudo indica que os estudantes da elite brasileira que lá estudaram tenham importado a prática para o território nacional. A ignorância e a bestialidade do ritual fez sua primeira vítima fatal no ano de 1831, com a morte de um estudante da Faculdade de Direito de Olinda. Os trotes, assim como os crimes e as mortes continuaram por todo o século XX: em 1980, um calouro de um curso de jornalismo foi morto por traumatismo crânio-encefálico em Mogi das Cruzes; em 1990 morreu de parada cardíaca um calouro do curso de direito em Goiás; em 1999, um calouro de medicina da USP morreu afogado em uma piscina etc. (um longo e tenebroso etc.).O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de recebê-los. Aliás, é uma contradição os jovens ingressarem na faculdade -- um restrito setor da elite brasileira - e se mostrarem tão mal educados: ao invés de agradecer ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agem como bárbaros, arrogantes e sádicos. Felizmente, isso mudou em parte: são muitas as escolas que não só proíbem os trotes violentos, como vários Centros Acadêmicos (CAs), cônscios de suas responsabilidades como guardiões dos direitos e das liberdades, também os combatem. Muitas escolas e CAs, por exemplo, substituíram esse tipo de delito pelos chamados "trotes solidários": organizam festas de recepção, shows, teatros nos quais os calouros não só participam como distribuem produtos alimentícios, medicamentos e roupas para serem doados a Instituições de Caridade.  Há escolas em que os veteranos montam grupos de recepção para integrar os calouros na vida universitária, mostrando o funcionamento efetivo do campus, o método de ensino, as condições reais de estudo, explicando as regras vigentes etc. Isso é mesmo muito bom. Mas, a humilhação causada aos novatos continua sendo abertamente  praticada  a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos seus novos colegas. E os próprios calouros, na maior parte dos casos, não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Por isso, insisto em deixar consignados os direitos envolvidos, inclusive na esfera da responsabilidade das instituições de ensino, com base nas garantias de proteção à saúde e segurança dos estudantes (consumidores) previstas no Código de Defesa do Consumidor.Lembro, pois, que o trote violento - física, moral e psiquicamente - caracteriza prática  criminosa e está prevista em nossa legislação penal. É possível também ao calouro-vítima buscar ressarcimento na esfera cível. Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, como os que acima apontei, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro.Humilhar o calouro, ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrar os calouros, fazê-los engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como uma centopéia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP). Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e,  se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre),  o crime é qualificado e tem a pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, o crime pode ser caracterizado como de tentativa (art. 14, II do CP).Haverá outros crimes que podem ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente.Um ponto merece destaque: o da participação das Escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem  como se não fosse problemas delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim.Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim buscar responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que, quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizar a escola, mas não se deve esquecer de que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. Ademais, lembro que o mínimo que a Escola pode fazer é proibir o trote e nos primeiros dias de aula, distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E, a denúncia feita pelos calouros gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro.Não se deve esquecer  de que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. É preciso oferecer a eles um meio de se proteger. É preciso que eles possam falar e ser ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos em praça pública (literalmente), ruas e avenidas.Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de direito, medicina, sociologia, engenharia etc. possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, talvez a mesma minoria que anos depois, no período da formatura, faz os "bota-foras" violentos. __________ 1Foi o que aconteceu com os calouros dos cursos de Zootecnia e Medicina da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) no começo do ano de 2011.  
No dia 27 de janeiro fez um ano a tragédia da boate Kiss na cidade de Santa Maria, que matou 242 pessoas e deixou outras doentes e com sequelas até hoje. Como sempre acontece, logo após a desgraça, autoridades e políticos vieram a público para dizer que tudo mudaria, novas normas seriam aprovadas e que algo assim não voltaria a acontecer. Mas, como o noticiário da semana demonstrou, nada mudou. No máximo, o que se viu foram alguns donos de boates mais preocupados com segurança - especialmente em relação ao fogo. Algumas propostas foram apresentadas, mas até agora não resultaram em nada. Não posso falar muito sobre elas. Todavia, posso relatar o que aconteceu com a minha. Isso. Naquela oportunidade, fiquei com uma ponta de esperança de que algo poderia ser feito. Tanto que cheguei a fazer uma proposta que, pensava - e ainda penso - poderia evitar esse tipo de acontecimento. E, olha que a coisa chegou a andar. Fiz um abaixo-assinado na organização change.org, que rapidamente atingiu centenas de assinaturas (ainda é possível assinar, acessando : atualmente há 3.916 assinaturas). Alguns dias depois, recebi um comunicado da senadora pelo Rio Grande do Sul Ana Amélia, dizendo que encampara minha ideia nesses termos: "Prezado Dr. Rizzatto Nunes, Por solicitação da senadora Ana Amélia, informo que encaminhamos para análise da Consultoria Legislativa do Senado Federal a sua proposta de projeto de lei para alterar o Código de Defesa do Consumidor para proibir o uso de comandas ou cartões de consumo pelos bares e casas noturnas. Ressalto que a Senadora, juntamente com outros Senadores do Rio Grande do Sul, apresentou requerimento para a criação de uma comissão especial para analisar as legislações vigentes com relação à segurança de locais públicos. Acreditamos que essas medidas ajudarão a evitar tragédias como a ocorrida na cidade de Santa Maria. Assim que recebermos resposta da Consultoria, entraremos em contato" (e-mail recebido em 7 de fevereiro de 2013) Ao mesmo tempo em que isso acontecia, sofri um forte ataque de um representante da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes em São Paulo, criticando minha proposta, que, segundo ele, traria custos exagerados e excessivos aos donos dos estabelecimentos... No dia 22 de fevereiro de 2013, recebi outro e-mail do gabinete da senadora Ana Amélia, desta feita, encaminhando um parecer da Consultoria Legislativa do Senado Federal. Tratava-se da nota técnica 227 que, dentre outras coisas, dizia que minha proposta era desnecessária porque já existiam "normas no CDC que proíbem a conduta explicitada no dispositivo que se pretende incluir no art. 39, que certamente compromete a segurança do consumidor" (SIC). Eu, naturalmente, contestei o citado parecer e enviei minha resposta no dia 28 de fevereiro de 2013, demonstrando porque a Nota Técnica estava totalmente equivocada. Aliás, seria o caso de se perguntar aos familiares das vítimas se eles acreditam que o CDC protege mesmo o consumidor em casos como aquele! Bem, não mais tive notícia do encaminhamento do projeto. Mas, como podemos ver, passado um ano da tragédia, nada mudou. O noticiário dos últimos dias mostrou que apenas foram aprovadas algumas medidas para reforçar a fiscalização sobre a segurança dos estabelecimentos e que vários estabelecimentos foram fechados após o incêndio; a maior parte deles foi reaberta algum tempo depois1. Nada que possa evitar novas tragédias e que realmente gerem respeito aos direitos dos consumidores. Quanto aos demais projetos que tramitam tanto em âmbito nacional como no estadual, como mostrou a imprensa, penso que eles não resolveram um dos grandes problemas da questão, que é o da aglomeração de pessoas e da dificuldade de deixar o local de forma rápida e segura. Enquanto for permitido o uso de comandas e o controle na saída somente após o pagamento do consumo, de nada irá adiantar uma fiscalização prévia contra incêndios. No dia de funcionamento regular continuará havendo uma única saída ou mesmo mais de uma; todavia, sempre bloqueada aguardando os pagamentos pelos usuários-consumidores. Ademais, o evento de Santa Maria demonstrou que se as normas já existentes tivessem sido cumpridas, a tragédia poderia ter sido evitada, desde que a saída fosse facilitada. Relembro o que disse meu amigo Walter Ego a respeito do assunto: "Todos sabem que o que determina o controle de entrada e saída nos serviços de casas noturnas - bares, restaurantes, boates etc. - é o faturamento. As saídas são estreitas - e que muitas vezes é a porta de entrada, como na boate Kiss - para obrigar os consumidores a se comportarem "adequadamente" em fila para pagarem pelo consumo. Aliás, é bastante desconfortável e às vezes até constrangedor ter de sair desses locais, com o afunilamento proposital efetuado. Dependendo do horário, perde-se muito tempo para deixar o estabelecimento mesmo sem qualquer ocorrência anormal. Portas de emergência simples de manusear? Ora, os donos trancafiam todos lá dentro e só os deixam sair após o pagamento da dívida. Portas de saída de emergência fáceis de abrir seria um perigo, pois poderiam facilitar a fuga de devedores. Essas portas só funcionam mesmo nos eventos em que os consumidores pagam pelo ingresso na entrada. Daí sim, se eles quiserem ir embora, podem ir por qualquer saída". Como referi na oportunidade, não sei dizer se em todo lugar é assim, como diz meu amigo, mas esse fato da dificuldade de sair que coloca os consumidores em filas estreitas está, evidentemente, ligado ao interesse do faturamento. O empresário tem mesmo direito de receber, mas nunca, por causa disso, abrindo mão de manter o sistema de segurança funcionando rigorosamente. E há ainda uma outra pergunta: será mesmo legal criar filas infernais e desconfortáveis para cobrar o consumo de centenas de pessoas ao mesmo tempo, impedindo que elas deixem o estabelecimento comercial na hora em que quiserem sair? Tem cabimento obrigar a que se fique 20, 30 minutos ou mais esperando para poder deixar o local? No caso da boate Kiss, as reportagens apresentaram o depoimento de uma jovem que disse que foi impedida por seguranças de deixar o local porque ela antes deveria pagar a consumação! A mim, repito, esse modelo de controle sempre pareceu abusivo, conforme definido no Código de Defesa do Consumidor. Embora não conste expressamente do rol do artigo 39, ela está inserida na hipótese do "caput" ("dentre outras práticas abusivas"). E, de fato, os tais cartões de consumo são mesmo abusivos e por dois motivos: a) têm como função não permitir que o consumidor descubra quanto já consumiu - e já gastou; logo é uma espécie de engodo que pretende que o cliente fique sem saber quanto gasta, que consuma muitas vezes mais do que pode pagar ou desejaria pagar: b) impedem que o consumidor saia do estabelecimento quando ele bem entender, violando seu direito de ir e vir. As filas enfrentadas por ele para sair de muitas boates são infernais e tomam muito tempo. (Já houve muitos casos de retenção do consumidor porque ele perdeu o cartão de consumo). Mas, infelizmente, essa regra do CDC não impediu o uso das comandas. Por isso, insisto que é o caso de se aprovar uma lei que proíba especificamente que boates e similares se utilizem desse método esdrúxulo e abusivo contra seus clientes. Basta a inserção de um novo inciso no art. 39 do CDC. Esse modo de cobrança não é utilizado em vários lugares do planeta. Em algumas boates do Canadá e Estados Unidos, por exemplo, quem compra bebida ou comida paga na hora e sai do local quando bem entender, sem mais delongas. Com isso, não só se respeita o consumidor, como adicionalmente cria-se uma condição de segurança: o dono do estabelecimento sempre deixará destrancadas saídas de emergência, eis que não ficará com medo de que seus devedores deixem o estabelecimento. Se eles forem embora não haverá problema, pois já pagaram. É uma forma de usar a lógica do mercado capitalista a favor do consumidor para garantir sua incolumidade física. Ademais, o próprio Código Penal define o crime de perigo nesses termos: "Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais". Daí que pode e deve não só a autoridade administrativa, mas também a autoridade policial, determinar o esvaziamento da boate, clube ou congênere sempre que verificar que ele esteja com lotação acima de sua capacidade e/ou sem condições de segurança adequadas. Em função disso, apresentei também mais uma sugestão: a da introdução de outro inciso no artigo 39 do CDC, para permitir o controle da capacidade e lotação do estabelecimento pelo próprio consumidor. Eis, pois, a atualização de uma proposta. Transcrevo abaixo, após um ano, novamente minha sugestão de alteração da lei. E, na sequência, apresento a parte que interessa de minha resposta à referida Nota Técnica para que se veja que a modificação do CDC seria - se um dia vier, será -- benéfica aos consumidores. Lembro que a alteração pode ser feita pelo Legislativo ou pela Presidência da República, por intermédio de Medida Provisória. Para quem se interessar, ainda é possível firmar o abaixo-assinado. _________ Eis minha proposta: Projeto de Lei ou Medida Provisória (Para ficar claro, transcrevo o "caput" do art. 39) Art. 1º - O art. 39 da Lei nº 8.078, de 1990 que "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências", passa a vigorar com a seguinte redação e o parágrafo único de seu artigo 39 fica renumerado para parágrafo 1º: Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: XIV - Utilizar em boates, clubes e estabelecimentos similares, cartões de controle de consumo, tais como comandas, cartões ou fichas de consumação, cartões magnéticos etc. XV - Restringir em boates, clubes e estabelecimentos similares ou de qualquer modo impedir ou dificultar a saída do consumidor no momento em que este desejar. XVI - Permitir o ingresso em boates, clubes e estabelecimentos similares de um número maior de consumidores que o fixado pela autoridade administrativa como máximo. Parágrafo 2º - A cobrança do consumo em boates, clubes e estabelecimentos similares, conforme regrado no inciso XIV será feita no ato da entrega do produto. Parágrafo 3º - Para fins de controle pelo consumidor, na hipótese do inciso XVI, o número máximo de pessoas permitidas no local, conforme determinado pela autoridade administrativa, será afixado em cartaz visível e iluminado na entrada do estabelecimento, seguido do número do telefone da autoridade de fiscalização e da Delegacia de Polícia locais. Os caracteres serão ostensivos e o tamanho da fonte não será inferior ao corpo 72 do tipo conhecido como "Times new roman". __________ Reposta à Nota Técnica: (...) 2. O Código de Defesa do Consumidor - algumas virtudes Dito isso, passo a tratar dos pontos que envolvem minha proposta de reforma do CDC e que geraram a referida nota técnica. Inicio fazendo um elogio à lei 8078/90, o Código de Defesa do Consumidor. Os autores do anteprojeto apresentado pelo então Deputado Geraldo Alckmin, que gerou o CDC, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Esta lei é tão importante que fez com que nós, importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu e ainda serve de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, inspiradas em nossa Lei. Não resta dúvida que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como o texto do CDC foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e também em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea o exercício da cidadania se confunde com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nas diversões públicas em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como livros, filmes em DVDs e CDs; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; a matrícula em escolas particulares em todos os níveis; a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos; a aquisição da tão sonhada casa própria e um interminável etc; tudo isso é regulado pela lei 8078/90. Por isso, digo que o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a CF de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Ele não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege o vulnerável que é o consumidor em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido. 3. O Código de Defesa do Consumidor - alguns defeitos Muito bem. Acontece que nem tudo o que se esperava dele acabou acontecendo. Realmente, como aponta a nota técnica, o CDC é de ordem pública e de interesse social, norma geral e principiológica, o que significa dizer que é prevalente sobre todas as demais normas especiais ou gerais que com ela colidirem. Ele inaugurou no sistema jurídico nacional um outro modo de produção legislativa: ingressou de modo a não necessariamente revogar leis anteriores. O que ele faz é tangenciar as relações jurídicas envolvendo consumidores e fornecedores estabelecidas com base em outras normas que continuam em vigor, tornando-as nulas ou inválidas no todo ou na parte que desrespeite seus princípios e regras. Qual o problema, então? O principal problema está em que nesses mais de 21 anos de vigência, os elementos gerais e principiológicos não conseguiram suprimir abusos sempre praticados, além de novos que surgiram. O que era para ser uma virtude, veio, pois, mostrar-se como um defeito em várias hipóteses. E, a maior (e pior) prova desse defeito, infelizmente, é o da tragédia da boate Kiss na cidade de Santa Maria. 4. A abusividade das comandas Pergunto: é legal criar filas infernais e desconfortáveis para cobrar o consumo de centenas de pessoas ao mesmo tempo, impedindo que elas deixem o estabelecimento comercial na hora em que quiserem sair? Tem cabimento obrigar a que se fique 20, 30 minutos ou mais esperando para poder deixar o local? O empresário tem direito de receber, mas nunca, por causa disso, abrindo mão de manter o sistema de segurança funcionando rigorosamente. 5. A nota técnica 5.1. A respeito dos incisos XIV e XV e § 2º A nota técnica disse que para resolver esse problema basta "atacar a demora no atendimento, independentemente do sistema de cobrança adotado" (fl. 3). E diz que a "norma deveria estipular prazo máximo de atendimento - assim como há normas locais que determinam tempo máximo para atendimento em bancos - e não o sistema adotado, que, ainda que seja o de comanda, pode ser eficiente, dependendo da estrutura existente no estabelecimento". (mesma fl.) Bem, os fatos não permitem concordar com o argumento. Em primeiro lugar, basta ir à uma boate ou clube noturno e também às agências bancárias de maior movimento para saber que esse tipo de limitação não funciona adequadamente. E, ainda que possa gerar alguma pressão nos administradores das instituições financeiras, a verdade é que as filas dos bancos não geram perigo em relação aos consumidores que lá estão. Trata-se, pois, de uma analogia imperfeita e por isso sem efeito jurídico. No que diz respeito à eficácia das comandas, não é preciso perder qualquer tempo sobre o tema. Basta ingressar, como antes disse, em um estabelecimento do tipo e ver como (não) funciona. Eficiência de comanda diz respeito a padarias e restaurantes e não a boates. Foi por isso, aliás, que propositalmente deixei esse tipo de estabelecimento fora da proibição em minha proposta: as comandas funcionam bem em padarias e restaurantes e não representam nenhum perigo aos clientes. Quanto às boates, as pessoas favoráveis às comandas são, naturalmente, seus proprietários pelos motivos a seguir descritos. 5.2. Inciso XVI - a segurança Os tais cartões de consumo são abusivos e por dois motivos: a) têm como função não permitir que o consumidor descubra quanto já consumiu - e já gastou; logo é uma espécie de engodo que pretende que o cliente fique sem saber quanto gasta, que consuma muitas vezes mais do que pode pagar ou desejaria pagar: b) impedem que o consumidor saia do estabelecimento quando ele bem entender, violando seu direito de ir e vir. (repito: As filas enfrentadas por ele para sair de muitas boates são infernais e tomam muito tempo) No caso da boate Kiss, reportagens apresentaram o depoimento de uma jovem que disse que foi impedida por seguranças de deixar o local porque ela antes deveria pagar a consumação! Nós esperaremos que aconteça mais uma vez? Enquanto admiramos a estrutura simbólica, principiológica e abstrata da lei? 5.3. Segurança abstrata, insegurança concreta A nota técnica prossegue tratando de temas gerais por demais conhecidos e ineficazes para situações como a da segurança das pessoas em estabelecimentos como a boate Kiss. Na fl. 4 é feita transcrição do inciso I do art. 6 do CDC, assim como do art. 8º e 10. Ora, mais uma vez a nota apresenta norma geral, que não se coaduna com a segurança que se espera para o caso. E, com a licença pelo uso do expressão, chove no molhado ao dizer que "quer dar segurança" ao consumidor. Quem teria coragem de dizer isso para as famílias dos 239 jovens mortos na boate?2 Quem afirmaria que no Brasil existe uma lei que garante a segurança dos frequentares de boates e clubes noturnos? Eis a realidade: A norma como está escrita simplesmente não funciona para garantir a segurança dos frequentadores na hipótese. Aprimorar a lei, especificando que certos abusos não podem ser praticados é o que a sociedade espera. Como eu sempre digo a meus alunos: É melhor um legislador que fale muito - escreva muito - mas que deixe claro o sentido da norma jurídica assim como sua incidência e eficácia, que um que fale pouco e deixe muitas dúvidas, com isso impedindo que a lei seja "de fato" aplicada. 5.4. O Ministro Herman Benjamin Para tentar fundamentar parte do arrazoado, a nota técnica se utilizada do escólio do Ministro Herman Benjamin (fls. 4 e 5). E é muito bom que o faça, pois o ilustre Ministro é o Presidente da Comissão de reforma do CDC, nomeada pelo Senado Federal. Essa comissão, como se sabe, apresentou projetos de reforma do CDC que, de uma vez por todas, reconhece sua ineficácia em vários pontos, especialmente em questões de ordem principiológica. Aliás, ao contrário do que quer fazer crer a nota técnica, em um dos projetos apresentados pela comissão é feita a proposta de inserção de mais cinco incisos no artigo 39 do CDC, especificando, portanto, outras práticas abusivas. Tivesse na oportunidade já ocorrido a tragédia de Santa Maria e, por certo, a questão das comandas estaria lá também contemplada. Eu, particularmente, compreendo a posição apresentada na nota técnica. Isso porque, todos nós, consumeristas, no passado, vivemos anos de esperança na aplicação principiológica do CDC para todas as questões. Mas, lamentavelmente, não deu certo. A esperança acabou e é preciso coragem para mudar, como fez, repito, a Comissão nomeada pelo Senado Federal. 5.5. A questão da informação do preço Por fim, anoto que o argumento da fl. 2 da nota, que fala do direito do consumidor a receber informação do preço do produto não é propriamente uma objeção a minha proposta, eis que expressamente me preocupei com essa questão da informação prévia do preço. Lembro, assim, mais uma vez: não cuidei de restaurantes onde confortavelmente o consumidor examina o menu e o garçom anota o pedido na comanda. Mas, de estabelecimentos em que, por sua própria natureza, há dificuldade do consumidor conhecer o preço das coisas e também de controlar a quantidade do que está consumindo. Ao contrário do que está colocado, é minha proposta que garante ao consumidor os direitos estabelecidos no inciso II do art. 6º e no art. 31 do CDC. São essas, pois, as minhas considerações. Rizzatto Nunes São Paulo, 28 de fevereiro de 2013 __________ 1Pelo menos um terço dos 633 estabelecimentos interditados no Estado após a tragédia continua de portas fechadas, segundo dados da DTPI (Divisão Técnica de Prevenção Contra Incêndio) do Corpo de Bombeiros. As interdições desses estabelecimentos - 423 conseguiram reabrir e 210 seguem fechados - ocorreram por problemas em relação às condições de segurança contra incêndio e pânico. 2Quando escrevi o texto da resposta esse era ainda o número de mortes, que depois aumentou para 242.
Em matéria de diversidade de opiniões, os chamados rolês estão batendo recordes. Há posição para todo gosto e não só de leigos, mas também de cientistas. Até no Judiciário, as decisões, por enquanto, são divergentes. E como envolve claramente a sociedade de consumo em que vivemos, aqui vai a minha, técnica na medida do possível no espaço de tempo, com as informações de que dispomos. Eis, pois, minha lenha para a fogueira. O chamado rolê ou rolezinho, em primeiro lugar, não tem nada de político ou movimento social. Trata-se apenas de acontecimento possível em função do modelo de tecnologia existente (no caso, as redes sociais) e que reproduz em larga escala encontros de jovens ávidos por atividade sexual e/ou demonstração de poder e/ou por mostrar publicamente sua adoração aos ídolos. Algo tão antigo como a humanidade. Querer encontrar uma base ideológica ou um fundamento político no "movimento" é enxergar poeira em alto mar. O "movimento" é de corpos de jovens fincados alienadamente no modelo de consumo da sociedade capitalista repleta de símbolos que apenas alimentam o próprio vazio da existência humana. O uso de roupas de grifes, tênis, bonés, colares etc. demostra socialmente e de forma objetiva o controle ao qual estão submetidos os usuários-consumidores "rolezeiros". E deu o que falar e continua assim porque ocorreram duas coincidências: a primeira, a dos encontros terem sido marcados nos shopping centers - pura ironia com o mercado de consumo que oprime a todos. A segunda foi a adesão espetacular de milhares de jovens. Se o local fosse outro - por exemplo, um grande parque - ou o número de participantes fosse pequeno - apesar de fixado para um shopping center - não teria gerado problemas nem, talvez, chamado atenção. É evidente que impedir a entrada de alguma pessoa - jovem ou não - num shopping center é pura discriminação. Impedir um grupo de pessoas também. Mas, quando se trata de um grupo de mil, duas mil pessoas não há qualquer relação com discriminação e sim com segurança pública e paz social. Tanto faz a qualificação do grupo: podem ser jovens da periferia ou dos jardins, manos ou mauricinhos, minas ou patricinhas, empregados ou desempregados, evangélicos ou católicos, brancos, negros, pardos, amarelos, brasileiros, americanos, japoneses, franceses, chineses etc. O problema não é a pessoa, mas a multidão. Isso é tão claro como que a chuva molha. Mas, por incrível que pareça, há opiniões e decisões judiciais que desprezam esse simples fato: centenas de pessoas chegando juntas num lugar que não comporta de forma segura e tranquila esse número é caso típico de segurança pública. Li o depoimento de uma antropóloga com o qual não concordo, mas que serve para ilustrar parte das opiniões. Ela disse o seguinte: "O shopping sempre foi uma redoma, um lugar das elites e das camadas médias. De repente, essa paz e essa fronteira foram abaladas e no fundo se teme ver o que antes não se via: a periferia negra, a pobreza e a desigualdade"1 . Ao que parece, essa cientista, que estuda em Oxford esquece-se que há muito tempo no Brasil - e em outros lugares do mundo - há vários estabelecimentos comerciais, shopping centers e mesmo lojas on-line voltadas para o público de mais baixa renda. Na sociedade de consumo, os empresários se importam tanto com ricos como com pobres, como demonstram as lojas e sites populares: o que importa é faturar. É uma grande bobagem dizer que o shopping faz apartheid, como afirmou a antropóloga, dentre outros que se manifestaram na mesma linha. E, ademais, os centros comerciais acolhem consumidores de baixa renda, assim como os emprega em suas atividades. Naturalmente, não serei eu a defender shopping centers, eis que, de fato, são centros de controle e alienação - disfarçados com ofertas de oportunidades e fantasias, e com alguma alternativa de lazer. O que o shopping quer é vender. Como eu disse acima, se forem pessoas abonadas que compram, tudo bem: há produtos e serviços para elas. E se forem pessoas de baixa renda também: há produtos e serviços para elas. O mercado de consumo não faz controle discriminatório de pessoas; e shopping center não é centro de discussão política ou ideológica. Para isso, existem as universidades, os parlamentos, a imprensa, a literatura científica ou de ficção, os partidos políticos etc. Nesse sentido, quer se goste ou não, o mercado é o mais neutro possível. Pode pagar? Então, leva. Os únicos discriminados do mercado são os inadimplentes e, ainda assim, o mercado busca reabilitá-los o tempo todo - para que possam comprar! O que os comerciantes querem, e também os frequentadores dos espaços comerciais desejam é tranquilidade para trabalhar, como, aliás, se espera em qualquer lugar organizado. Quando há baderna, tumulto e ameaça à segurança das pessoas, assim como ao patrimônio, há que intervir a força policial. Qual o problema com isso? E, se é sabido de antemão que, em certo local, dia e horário haverá tumulto, há que se agir preventivamente. Se for necessário ir ao Judiciário para tanto, trata-se apenas de exercício regular de direito, como bem se estabeleceu nas sociedades democráticas. Evidentemente que, num país como o Brasil, onde os preconceitos em geral são e sempre foram fortíssimos - abertamente declarados ou ocultados -- em todas suas formas, tais como o racismo, o machismo, a perseguição às minorias etc., falar em apartheid soa bem. Dá manchete e fica bonitinho. Mas penso que não é o caso presente. E mais: o problema não está no rolezinho em si. Ele pode existir sem nenhuma intervenção de autoridade. A questão é outra e diz respeito à dimensão e ao espaço. Se fossem poucos jovens, poderia rolar em qualquer espaço. Em sendo centenas, em vários lugares não pode ser realizado. E shopping center é um deles. Outra afirmação com a qual não concordo é a de que o citado rolezinho é "fenômeno de massa" de "excluídos" que escolheram o "shopping center" como forma de demonstração de sua insatisfação ou de uma atitude contrária ao modelo capitalista que os exclui. Ora, como disse no início, o ajuntamento de centenas, milhares de pessoas é coincidente com a tecnologia da informação que propicia fácil contato via redes sociais. Dar rolê em shopping centers, passear e paquerar nas praças de alimentação é tão antigo quanto os próprios e primeiros shopping centers. A diferença é a quantidade. Quantidade essa que atinge números estratosféricos por causa das redes via web. Não há nada além disso e bem ao contrário: os "rolezeiros" adoram os shopping centers. Se deixassem e eles pudessem estariam lá a toda hora. Eles não querem destruir o "templo de consumo"; querem curti-lo; querem frequentá-lo; querem idolatrá-lo. De preferência, mostrando no corpo todos os adereços que os identifiquem como consumidores-padrão do grupo de consumo ao qual pertencem. Os "rolezeiros" são típicos consumidores muito a favor do consumo. Bastam esses depoimentos para constatá-lo: "Rolezinho é diversão, mano, a gente faz no shopping por que lá é um lugar luxuoso e um lugar onde nós nos sentimos bem. Tipo assim, nossa intenção é namorar, dar uns beijos e tal. Só que tem uns 'lixo' que não têm dinheiro pra comprar um Mizuno e 'vai' roubar..."2 "O primeiro que a gente fez em Itaquera foi só para amigos, teve menos de 500 pessoas. Shopping é um local aberto de fácil acesso para várias pessoas de fora participar. Nosso objetivo é de jovem: pegar mulher..."3 Como o assunto envolve aspectos antropológicos, consultei meu expert no assunto, Rodrigo Ferrari-Nunes, Mestre em Antropologia pela Universidade de British Columbia, em Vancouver, Canadá e Doutorando, em Antropologia Social pela Universidade de Aberdeen, na Escócia. Veja o que ele me disse: "Bom, o tal do rolezinho é um fenômeno social. Pode não ter intenção política, mas tem efeito político - tanto que todo mundo quer comentar sobre o assunto, e se sente afetado pela coisa em si. Claramente não é um 'movimento social,' pois estes requerem concentração ideológica e uma direção política organizada - algo que gere a necessidade de luta na arena política e social". Comentei o artigo da citada antropóloga e perguntei a opinião dele: "A antropóloga parece se iludir com um esquerdismo típico de uma elite intelectual alienada (é um tipo de ideologia da moda, dos que vivem entre o luxo e o prestígio e mesmo assim fingem estar do lado do 'povo'). Todos sabem da pobreza de São Paulo, da falta de segurança, etc. As multidões se alinham nos pontos de ônibus todos os dias, mães puxam carroças pelas ruas, descalças, procurando lixo para sobreviver e carregando seus filhos, enquanto outros compram cuecas de dezenas de dólares nas grifes e dirigem carros importados. Sim, as pessoas da elite do Iguatemi vivem numa bolha, mas sabem o que está além dela, e não vivem em 'paz' - isso a cidade não permite, tanto faz a classe social. Muitos dos ricos vivem obcecados por trivialidades superficiais e pouco se importam com o sofrimento alheio." "A antropóloga usou um termo de choque para chamar atenção - apartheid é um tipo de regime racista organizado pelo governo... O que acontece no Brasil é simplesmente um reflexo das diferenças brutais de renda entre indivíduos, e da falta de responsabilidade social dos extremamente ricos, que se vangloriam em suas banalidades e prazeres, ignorando o sofrimento dos que os rodeiam e servem. É um argumento padrão entre certos antropólogos, usar os 'oprimidos' como sujeitos em seus projetos, pois isso afeta aqueles que não passam tantas necessidades no dito 'primeiro mundo' (um termo colonialista que ainda não saiu de moda), com o objetivo de trazer à consciência dos mais alienados um pouco das dificuldades do outro lado do mundo, e que nunca experimentaram." E em relação ao movimento, disse ele: "De fato, é o Facebook que facilita com suas ferramentas a organização desses 'eventos.' Tudo que acaba virando moda na Internet passa a servir a vários objetivos políticos diferentes, dependendo de quem está escrevendo." ***** Bem, é isso. Deixo, assim, mais esses elementos para reflexão. ___________ 1 - In www.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/01/18. 2 - Depoimento do rolezeiro Rafael Oliveira, 18 anos. In www1.folha.uol.com.br/saopaulo. 18-01-2014. 3 - Depoimento de Eduardo, 17, organizador dos rolês do shopping Aricanduva na mesma matéria da nota anterior.
Estou em férias, mas não resisto falar sobre a questão que envolve o time da Portuguesa e o STJD. Muito do que li na defesa da decisão desse órgão é insustentável. Já no século IV antes de Cristo, os gregos sabiam que lei e justiça não são conceitos que combinam o tempo todo. A lei, como regra, é feita para valer para muitas pessoas, para uma cidade, uma comunidade, um país inteiro. Daí que ela é naturalmente geral e abstrata, pensada a priori para o maior número de situações de fato possíveis de serem previstas pelo legislador. Mas, como se diz, nem sempre o fato se adequa ao prescrito ou, em outros termos, por mais que o legislador queira não consegue prever todos os fatos que advirão para poder enquadrá-lo na norma. Por isso, é importante - e sempre foi - o papel do Juiz ao interpretar e aplicar a lei no caso concreto. Ele deve ser capaz de compreender os limites em que a norma foi posta e descobrir se o fato analisado está ou não em consonância com os termos legais ou com seu espírito. Realço: em consonância com os termos legais, vale dizer, com as palavras da lei ou com seu espírito, isto é, sua finalidade, sua natureza, sua função etc. Muito bem. Aristóteles havia percebido esse tipo de dificuldade da aplicação de leis muito gerais diante de fatos bem específicos: "...toda lei é universal, mas a respeito de certas coisas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta. Nos casos, pois, em que é necessário falar de modo universal, mas não é possível fazê-lo corretamente, a lei considera o caso mais usual, se bem que não ignore a possibilidade de erro. E nem por isso tal modo de proceder deixa de ser correto, pois o erro não está na lei, nem no legislador, mas na natureza da própria coisa, já que os assuntos práticos são dessa espécie por natureza".1 Como resolver esse problema da generalidade do texto legal diante do dado real não regulado? O Filósofo responde. Diz ele que estabeleceu uma espécie de justiça capaz de corrigir a natural vagueza da lei geral: a equidade. Esta é sempre dependente da hipótese real e concreta analisada: "É essa a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão de sua universalidade. E, mesmo, é esse o motivo por que nem todas as coisas são determinadas pela lei: em torno de algumas é impossível legislar...".2 Vê-se, então, que a equidade é dependente do caso real analisado e julgado, funcionando como um corretivo da lei, que acabou não estatuída de forma adequada em função de sua alta generalidade. Fixemos melhor ainda, então, o sentido semântico do termo. Vou me pautar na exposição de Alípio Silveira sobre o assunto3. Diz o jusfilósofo que há três acepções para o conceito de equidade. Uma de sentido amplíssimo, que representa o princípio universal de ordem normativa relacionado a toda conduta humana, do ponto de vista religioso, moral, social e jurídico que todos devem obedecer porque se constitui em suprema regra de justiça. A segunda, de sentido amplo, que leva ao conceito de justiça absoluta ou ideal relacionado à ideia de Direito Natural. E a terceira, em sentido estrito, que é a justiça no caso concreto. É esse último sentido que interessa e que deveria ter interessado aos membros do STJD. A escalação de um jogador suspenso deveria ser avaliada em função do princípio maior da Justiça e da razoabilidade, ambos fundamentos constitucionais. Transcrevo, por todos, o que disse o jornalista Fábio Sormani; "Héverton entrou em campo faltando 13 minutos para a partida acabar. Esteve com a bola nos pés por 1:47 minuto. Não fez gol, pois a partida terminou 0-0. E nem impediu que o Grêmio marcasse. Que consequências Héverton trouxe ao jogo? Nenhuma. Embora eu ache que a Portuguesa não pode ser punida pela escalação do jogador ... digamos que ela seja considerada culpada. Aí eu pergunto: a punição por ter escalado Héverton, que jogou 13 minutos, pegou na bola por 1:47 minuto, não fez gol e nem impediu gol do adversário, a punição do rebaixamento não parece desproporcional ao dolo cometido (que eu, torno a falar, acho que não ocorreu)? Volto a dizer: não é completamente desproporcional? Jogar à Série B um time que no campo de jogo conquistou limpa e guerreiramente o direito de permanecer na Série A porque utilizou um jogador que estava supostamente punido por 13 minutos, que pegou na bola por 1:47 minuto, não fez gol e nem impediu gol do adversário?"4 Nem adianta argumentar que regras de futebol não podem ser submetidas ao sistema jurídico constitucional, porque atualmente não há qualquer dúvida a respeito. Os jogos de futebol, os campeonatos, as disputas etc. são típicos produtos de consumo, planejado, promovidos, oferecidos e vendidos pelas regras do mercado de consumo e estão submetidos a leis específicas como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Torcedor. Logo, toda situação jurídica existente na área há de estar em consonância com os princípios e normas da Constituição Federal. E, antes que façam qualquer acusação sobre essa técnica, lembro que ela não se confunde com nenhum tipo de "direito alternativo", nem com inaplicação da norma, quer por desprezo, quer por inconstitucionalidade. Veja-se, por exemplo, que uma lei ordinária pode ter sua incidência bastante alterada ou afastada, com pleno respeito aos ditames constitucionais para que se concretizem os ditames da justiça, sem violação ao sistema jurídico vigente. O contrário disso seria uma iniquidade. E também não se pode olvidar que o comando constitucional determina a implementação de uma ordem jurídica justa, não só como decorrência lógica de seus fundamentos, uma vez que não se poderia - ou, ao menos, não se deveria - conceber um sistema constitucional democrático que não fosse justo, mas também porque, no caso da Constituição Federal brasileira, a construção de uma sociedade justa está estabelecida como um objetivo fundamental da República (art. 3º, I).5 Além, claro, como lembrei acima, da necessidade da utilização do princípio da razoabilidade como elemento do ato de decidir. Não quero nem preciso prosseguir. Li, como disse, defesas sem fundamento da decisão do STJD no caso da Portuguesa de Desportos. Cito apenas uma: a de que a decisão foi "técnica". Ora, uma decisão "técnica" válida é aquela na qual o julgador aplicou a lei e ao mesmo tempo fez justiça. Se a decisão aplica a lei e gera injustiça, ela não é técnica. Ela é - para o sistema constitucional brasileiro - inconstitucional e/ou injusta. É exatamente o caso da Lusa: além do non sense da aplicação direta e cega da lei, que, claramente, não foi pensada para o caso ocorrido, foi desprezado o princípio constitucional da razoabilidade. A decisão é insustentável. Sei que há também algumas questões em relação ao descumprimento de regras do Estatuto do Torcedor. Mas, penso que a decisão do STJD do modo como proferida, após o recurso dos dirigentes da Portuguesa de Desportos, deverá ser modificada pela Justiça Comum com o que se fará, finalmente, Justiça! *** PS.: Já havia escrito este artigo quando li a notícia de que os dirigentes da Lusa resolveram não ir à Justiça Comum. Uma pena. Continuo pensando que o produto "futebol" somente será mais interessante (e talvez até mais rentável) quando os consumidores-torcedores forem mais respeitados (por exemplo, sou a favor do controle das regras dentro de campo com o uso das modernas tecnologias existentes para evitar as manipulações; escrevi mais de uma vez sobre isto). Do modo com as coisas se passam, resta apenas ao torcedor boicotar os jogos e as transmissões televisivas. Algo difícil de acontecer. _________________ 1Ética à Nicômaco, Cap. V, 10 (15). 2Idem, ibidem (25). 3Conceito e funções da equidade em face do direito positivo, 1993, p. 60-62. 4Blog de 16/12/2013 publicado no portal Terra. 5Para quem tiver interesse em mais detalhes sobre essa questão, indico meu Manual de Filosofia do Direito. 5ª. Edição, São Paulo: Saraiva, 2013, Cap. VIII.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A biografia como produto de consumo - parte 2

Continuo a desenvolver o tema iniciado há quatro semanas a respeito das biografias. Reafirmo que pretendo demonstrar que ambas as partes envolvidas na discussão pública da questão têm razão em parte. Como antecipei na semana passada, no artigo de hoje quero resolver o conflito existente entre liberdade de expressão e respeito à vida privada e intimidade. Minha proposta, seguindo, então, parte da doutrina, é a de que o intérprete lance mão do princípio da proporcionalidade - que é instrumental e implícito no sistema jurídico - e, a partir dele, resolva a pendenga na direção do respeito ao outro princípio, o da dignidade da pessoa humana (que é um supraprincípio constitucional). É o que apresento na sequência. O princípio da dignidade da pessoa humana1 No atual sistema jurídico, a doutrina tem mostrado que o mais importante princípio de direito fundamental constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana. É ela, a dignidade, o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais. A isonomia, outro direito fundamental, serve para gerar equilíbrio real, porém visando concretizar o direito à dignidade. É a dignidade que dá a dire­ção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete. Lembro, então, desde logo que, após a soberania e a cidadania, aparece na Constituição Federal (CF) a dignidade como fundamento da República brasileira: "Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Dis­trito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Di­reito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana". Mas, o que vem a ser dignidade? Dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história e chegou ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, construído pela razão jurídica. Com efeito, é reconhecido o papel do Direito como estimulador do desenvolvimento social e freio da bestialidade possível da ação humana. Não interessa aqui discutir se o ser humano é naturalmente bom ou mau. Nem se deve refletir com conceitos variáveis do decorrer da história, pois, se assim fosse, estar-se-ia permitindo toda sorte de manipulações capazes de colocar o valor superior dignidade num relativismo destrutivo de si mesmo. Foi por isso que a CF firmou a dignidade garantida por um supraprincípio; para ser absoluta, plena, não podendo sofrer arranhões nem ser vítima de argumentos que a enfraqueçam. O que o intérprete tem de fazer é apontar o conteúdo semântico de dig­nidade, sem permitir que façam dele um conceito variável conforme se duvide do sentido de bem e mal ou de acordo com o momento histórico. Aliás, foi esse tipo de relativização, vigente em vários períodos da história, que serviu para justificar todo tipo de atrocidade. Em nome de um suposto bem, pessoas de várias classes e estamentos, cientistas etc. foram queimados nas fogueiras; em prol da existência de uma única religião, torturas e mais mortes foram praticadas; em nome da cor da pele ou por qualquer outro motivo, o mesmo: mais atrocidades. Esse é o relativismo histórico que se quer afastar. Importante notar nesse aspecto que o racismo - para ficar com uma hipótese - sempre existiu e ainda continua existindo, e nem por isso o direito irá legitimá-lo. Deve, ao contrário, ser sempre uma barreira contra; uma arma para brecá-lo - quiçá eliminá-lo. É salutar, por isso, lembrar que o ideal jurídico mundial evoluiu, e, no caso brasileiro, seu reflexo aparece no texto constitucional. Esse ideal avançou positivamente em termos de pensamento jurídico, embora mesmo nas nações mais desenvolvidas do globo haja prática de Estado, das instituições e dos grupos econômicos em sentido oposto. Lembremos que nossos avós e bisavós - muitos vivos - fugi­ram de perseguição racista e da discriminação. As Américas foram assim colonizadas. Mas, na robusta comunidade europeia atual, é crescente a posição discriminatória. Nos EUA o problema contem­porâneo não é diferente. É por isso que se torna necessário identificar a dignidade da pessoa humana como uma conquista da razão ético-jurídica, fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marcam a experiên­cia humana. Assim, para definir dignidade é preciso levar em conta todas as violações que foram praticadas, para contra elas lutar, extraindo-se dessa experiência o fato de que a dig­nidade nasce com o indivíduo. O ser humano é digno porque é. A dignidade nasce com a pessoa. É-lhe inata. Inerente à sua essência. Não é à toa que a Constituição Federal da Alemanha Ocidental do pós-guerra traz, também, estampada no seu artigo de abertura, que "A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público"2. Foi, claramente, a experiência nazista que gerou a consciência de que se devia preservar, a qualquer custo, a dignidade da pessoa humana. E isso se deve dar não só no âmbito da soberania estatal, mas universalmente no concerto das nações. Tanto que, para ficar com o dado exemplar da Constituição alemã, consigne-se que a segunda parte do art. 1º daquela lei Fundamental dispõe: "O Povo Alemão reconhece, portanto, os direitos in­violáveis e inadiáveis da pessoa humana como fundamen­tos de qualquer comunidade humana, da paz e da Justiça no mundo"3. Mas acontece que nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cres­ce e vive no meio social. E aí, nesse contexto, sua dignidade ganha - isto é, tem o direito de ganhar - um acréscimo. Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento em que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento - isto é, sua li­berdade -, sua imagem, sua intimidade, sua consciência - religio­sa, científica, espiritual - etc., tudo compõe sua dignidade. Percebe-se, então, que o termo dignidade aponta para, pelo menos, dois aspectos análogos mas distintos: aquele que é inerente à pessoa, pelo simples fato de ser, nascer pessoa humana; e outro dirigido à vida das pessoas, à possibilidade e ao direito que têm as pessoas de viver uma vida digna. Ora, toda pessoa tem sua dignidade garantida pela norma maior, independentemente de sua posição e conduta social. Até um crimi­noso inconteste tem dignidade a ser preservada. Ou, como diz Ingo Wolfgang Sarlet: "todos - mesmo o maior dos criminosos - são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pesso­as - ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmas"4. Claro que um criminoso não tem outro tipo de garantia. Por exemplo, tem seu direito à imagem limitado, podendo ser exposto para ser procurado; não goza do prestígio da boa reputação; um es­tuprador não tem honra etc. Mas, dignidade é-lhe inata. Mas, infelizmente, a questão da vida digna tem outras conotações, limitada que é, de fato, na sua concretude, na realidade social. Embora a Constituição Federal estipule, inclusive, aquilo que entende como um mínimo de garantia para que a pessoa possa gozar de uma vida digna (no artigo 6º), a verdade é que muitas pessoas vivem abaixo desse mínimo. A vida digna, garantida "in abstrato" no sistema, ainda não foi incrementada historicamente para todos os seres humanos. Outro aspecto é o que diz respeito aos enfermos, que, sendo dignos como pessoas, nem sempre levam uma vida digna, por estarem física, psíquica ou fisiologicamente lesados ou limitados, como alguém que, por exemplo, esteja em coma. No meio social, a vida das pessoas gera uma complexidade de enfretamentos: se, de um lado, a qualidade da dignidade cresce, se amplia, se enriquece, de outro, novos problemas em termos de gua­rida surgem. Afinal, na medida em que o ser humano age socialmen­te, poderá ele próprio - tão bem protegido - violar a digni­dade de outrem. Tem-se, então, de incorporar no conceito de dignidade uma qualidade social como limite à possibilidade de garantia. Ou seja, a dignidade só é garantia ilimitada se não ferir outra5. Como resolver o conflito existente entre liberdade de expressão e respeito à vida privada e intimidade? O princípio da dignidade da pessoa humana funciona como princípio maior para a inter­pretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional. Na verdade, a doutrina reconhece-o como um superprincípio ou supraprincípio constitucional. Não se está a dizer que ele tem, digamos assim, uma existência hierárquica superior aos demais6, mas apenas e tão somente que na hipótese de colisão com outro princípio ou alguma norma, o intérprete deve dar prevalência a ele. Aliás, ele também atua para dirimir dúvidas na colisão de dois ou mais outros princípios e/ou colisão de direitos fundamentais. Nesse caso, o intérprete deve lançar mão de um outro princípio, o da proporcionalidade - que é instrumental e implícito no sistema jurídico - e a partir dele resolver a pendenga na direção do respeito ao supraprincípio da dignidade da pessoa humana. A aplicação concreta do princípio da dignidade da pessoa humana: dever social O operador do Direito, deve, então, gerir sua atuação social pautado nesse supraprincípio fundamental. O esforço interpretativo nessa direção é necessário porque sempre haverá aqueles que pre­tendem dizer ou supor que dignidade é uma espécie de enfeite, um valor abstrato de difícil captação. Só que é bem ao contrário: não só esse princípio é vivo, real, pleno e está em vigor como deve ser leva­do em conta sempre, em qualquer situação. E a própria Constituição Federal, de certa forma, impõe sua im­plementação concreta, não só assegurando os demais direitos fundamentais, tais como o direito à vida, à liberdade, à intimidade, à vida privada, à honra etc. assim como os direitos sociais previstos no art. 6º. Portanto, percebe-se que a própria Constituição está posta na direção da implementação da dignidade no meio social. Com efeito, como é que se poderia imaginar que qualquer pes­soa teria sua dignidade garantida se não lhe fossem asseguradas saúde e educação? Se não lhe fosse garantida sadia qualidade de vida, como é que se poderia afirmar sua dignidade? Ou se se permitisse violar sua intimidade, sua liberdade etc.?7 Dignidade, igualdade e proporcionalidade Aqui, neste ponto, chamamos a atenção para um aspecto práti­co da implementação do princípio da dignidade da pessoa humana, trazendo novamente o princípio da proporcionalidade e, por isso, iniciando este tópico pelo envolvimento desse princípio-instrumento com o da isonomia. É verdade que o chamado princípio da proporcionalidade, que serve de instrumento para a resolução do eventual conflito entre princípios constitucionais, para a doutrina, está ligado ao princípio da igualdade. Há uma explicação para isso: é que de fato, até tempos recentes, era ele, o princípio da igualdade, o principal elemento articulador dos demais princípios, e servia para equalizá-los, harmonizando-os. Mas, com a mudança de paradigma, que, num salto de qualidade, colocou a dignidade da pessoa humana como o valor supremo a ser respeitado, é a ela que a proporcionalidade deve estar conectada. É nela, portanto, que a proporcionalidade nasce. Não estou, obviamente, dizendo que o princípio da proporcionalidade não tenha relação com o da isonomia, nem reduzindo a importância deste princípio. Claro que haverá relação entre ambos - tanto mais quanto, conforme adiantei, o princípio da proporcionalidade tem caráter instrumental. Apenas digo que, como o mais importante princípio cons­titucional é o da dignidade humana, é ele que dá a diretriz para a harmonização dos princípios, e, via de consequência, é nela - dig­nidade - que a proporcionalidade se inicia de aplicar. Mas, também, quando se tratar de examinar conflitos a partir do princípio da igual­dade, o da proporcionalidade estará presente. Agora, realmente, é a dignidade que dá o parâmetro para a solu­ção do conflito de princípios; é ela a luz de todo o ordenamento. Tanto no conflito em abstrato de princípios como no caso real, con­creto, é a dignidade que dirigirá o intérprete - que terá em mãos o instrumento da proporcionalidade - para a busca da solução. Concluindo Assim, e para o que nos interessa neste artigo, a intimidade e a vida privada da pessoa humana deve ser entendida como complemento da dignidade; daí decorre a garantia de sua inviolabilidade. No conflito entre esses direitos fundamentais e o outro direito fundamental da liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, é a dignidade que dá a direção para a solução. Logo, a interpretação para a solução do conflito deve ser a de que não se pode, em nome da liberdade de expressão, violar-se a intimidade e a vida privada de alguém, eis que somente assim se garante o respeito à dignidade dessa pessoa. E, para que fique clara minha posição em relação ao assunto, termino repetindo o que já disse: Penso que, no sistema constitucional brasileiro - independentemente da legislação civil vigente -, não há necessidade de autorização para a realização de biografia de pessoa viva que exerça papel público, mas a apresentação dos fatos deve ser as de domínio e interesse públicos. No que diz respeito aos elementos que compõem a intimidade e a vida privada do biografado, há sim proteção e interdito constitucional para sua divulgação, garantia que decorre da interpretação conforme a Constituição Federal, que estabeleceu a dignidade da pessoa humana como um supraprincípio constitucional. E, como as garantias fundamentais estão claramente estabelecidas, todo aquele que se sentir lesado ou que for ameaçado de lesão pode dirigir-se ao Poder Judiciário pleiteando a guarida legal preventivamente ou de forma reparadora. Não nos esqueçamos de que é também um direito fundamental o acesso à justiça, garantido no princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, previsto no inciso XXXV do art. 5 da CF: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Repito, pois, para que não paire dúvidas: a CF é clara na garantia do acesso ao Poder Judiciário tanto para prevenção da ocorrência de lesão - isto é, para evitá-la -, como para o pleito de reparação. Assim, por exemplo, se um biógrafo violar a vida privada e/ou a intimidade de alguém, este pode pleitear indenização pelos danos causados. E, claro, pode sim ingressar com ação judicial para impedir a lesão; pode, caso queira e exatamente para impedir que a lesão ocorra, pleitear que seja proibida a circulação da obra. Algo juridicamente possível e decorrente do exercício regular do direito estabelecido. E, tudo, com base no próprio texto da Constituição Federal, independentemente do que dispõe o Código Civil. Resumindo e terminando Penso que no sistema constitucional brasileiro - independentemente da legislação civil vigente - não há necessidade de autorização para a realização de biografia de pessoa viva que exerça papel público, mas a apresentação dos fatos deve ser as de domínio e interesse públicos. No que diz respeito aos elementos que compõem a intimidade e a vida privada do biografado, há sim proteção e interdito constitucional para sua divulgação, podendo a pessoa biografada pleitear judicialmente a proibição de divulgação de fato que decorra de sua vida íntima ou privada, ou a interdição da obra - para evitar a lesão que esteja para ocorrer - e/ou reparação dos danos causados - materiais e morais. __________ 1Extraí parte deste texto de meu livro "O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana". São Paulo: Saraiva, 3ª. edição, 2010. 2Art. 1º da Constituição Federal da Alemanha, primeira parte. O teor do texto original é o seguinte: "Art. 1º (Schutz der Menschenwurde). (1) Die Wurde des Menschen ist unantastbar. Sie zu achten und zu schutzen ist Verpflichtung aller staatlichen Gewalt". Tradução do Governo alemão, publicada pelo Departa­mento de Imprensa e Informação do Governo Federal, Bonn. Wiesbadener Gra­phische Betriebe Gmbh, Wiesbaden, 1983, p. 16. O texto traduzido diz "dignida­de do homem", mas o professor Nelson Nery Junior, que nos forneceu o texto, traduziu-o, também, com muita gentileza, para "dignidade da pessoa humana", que é, de fato, mais adequado.3O teor do texto original é o seguinte: "Art. 1º ... (2) Das Deutsche Volk bekennt sich darum zu unverletzlichen und unveräuberlichen Menschenrechten als Grundlage jeder menschlichen Gemeinschaft, des Friedens und der Gerechtigkeit in der Welt". Tradução e edição conforme nota anterior.4Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Fe­deral de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, 42. 5Há, ainda, outros aspectos que não cabe aqui analisar, como, por exemplo, o da violação da própria dignidade: pode o indivíduo violar a própria dignidade? Por exemplo, se drogando? Tentando se matar? Abandonando-se materialmente? Embebedando-se? Enfim, há algo de consciência ética, filosófica e/ou científica na garantia da própria dignidade? Para mais detalhes, indico meu livro citado na primeira nota.6A melhor doutrina repele a existência de hierarquia ente os princípios e também entre os direitos fundamentais estabelecidos.7Claro que é possível objetar que o direito à vida é mais impor­tante que a garantia da dignidade. Todavia, também aqui não há necessidade de desenvolvimento deste ponto. Para quem tiver interesse, indico mais uma vez meu livro acima referido.
Que fomos catequizados e que adoramos copiar o que vem do estrangeiro é fato conhecido. Passamos dezenas de anos fazendo isso e continuamos; somos copiadores vorazes, inclusive de leis que não nos dizem respeito - como é o caso exemplar do regime dotal do casamento, copiado da Europa e introduzido no vetusto Código Civil de 1916. Estamos a todo vapor com o halloween, que serve para empanturrar nossas crianças de açucares e gorduras. E, claro, chegamos à 4ª. edição do Black Friday. Como se sabe, o termo foi criado pelo varejo nos Estados Unidos para nomear a ação de vendas anual, que acontece sempre na última sexta-feira de novembro após o feriado de Ação de Graças. Por lá, todo ano, o volume de vendas é muito alto, pois os descontos são realmente verdadeiros e os empresários norte-americanos querem se livrar do estoque antigo e, no lugar, colocar as novas mercadorias para as vendas do período natalino que se inicia. Mas, como não poderia deixar de ser, até agora nosso Brazilian Black Friday tem sido mais uma espécie de Brazilian Black Fraude. Só no ano passado foram dezenas de denúncias contra as enganações perpetradas por muitos comerciantes, que usaram uma tática antiga: aumentar o preço na véspera ou alguns dias antes e depois aplicar um desconto para chegar no mesmo preço anterior (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais que por aqui se faz). Os abusos foram tamanhos que, neste ano, os Procons estão em alerta e algumas empresas passaram a fazer anúncios dizendo que elas juram que os descontos são para valer! Aumentar preços num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar no mesmo preço, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é publicidade enganosa, prevista no § 1º do artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, e também caracteriza o crime de publicidade enganosa prevista no art. 67 e o crime de informação falsa ou enganosa tipificada no art. 66, ambos também do CDC. De todo modo, como a maior parte das vendas será feita via web, aponto a seguir, para lembrar, as regras vigentes do CDC para as operações e também as do decreto presidencial que regulamentou o comércio eletrônico. O comércio eletrônico O decreto 7.962, de 15 de março de 2013, baixado pela presidenta da República fixou uma série de regras para o comércio eletrônico. Direitos básicos que já estavam fixados no CDC O art. 1º do Decreto deixa claro que são direitos dos consumidores na contratação de compras via Internet: a) O fornecimento de informações claras a respeito do produto, do serviço e do fornecedor; b) O atendimento facilitado ao consumidor; e c) O respeito ao direito de arrependimento. São determinações desnecessárias, eis que tudo isso e muito mais está estabelecido no CDC incontestavelmente. De todo modo, ajuda a fixar as determinações. A oferta eletrônica O art. 2º do Decreto determina que os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações: a) O nome empresarial e o número de inscrição do fornecedor no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda (CNPJ); b) O endereço físico e eletrônico e demais informações necessárias para sua localização e contato; c) As características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; d) A discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; e) As condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e f) Informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta. Garantia de atendimento facilitado ao consumidor O Decreto determina que, para garantir o atendimento facilitado ao consumidor, o fornecedor deverá: a) apresentar um sumário do contrato antes da contratação, com as informações necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor, enfatizadas as cláusulas que limitem direitos. Não nos esqueçamos da regra do § 4º do art. 54 do CDC, que determina que as cláusulas que implicarem limitação do direito do consumidor devem ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão, e que o art. 46 diz que os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. b) fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e correção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da contratação; c) confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta; d) disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua conservação e reprodução, imediatamente após a contratação; e) manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato; f) confirmar imediatamente o recebimento das demandas do consumidor pelomesmo meio empregado por ele; g) utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para tratamento de dados do consumidor. Anoto que o fornecedor tem cinco dias para encaminhar resposta ao consumidor sobre as demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato Desistência do negócio: prazo de 7 dias O CDC estabeleceu o direito de desistência a favor do consumidor. A intenção da lei é proteger o consumidor nesse tipo de transação para evitar compras por impulso ou efetuadas sob forte influência da publicidade ou do pessoal do telemarketing sem que o produto esteja sendo visto de perto ou o serviço possa ser testado. E, claro, no presente caso dessa suposta excelente promoção, pela pressão que a mídia e a publicidade exercem. Esse prazo garantido pela lei é de sete dias e chama-se prazo de reflexão. Se nesses sete dias o consumidor se arrepender da compra, pode desistir pura e simplesmente. O arrependimento não precisa ser justificado. Não é preciso dar qualquer satisfação do porquê da desistência. Basta desistir. A contagem do prazo dos sete dias inicia-se quando do recebimento do produto. Existem fornecedores que oferecem prazos maiores de arrependimento: dez, quinze e até trinta dias. Nesses casos, o prazo de reflexão fica automaticamente ampliado de sete para dez, quinze, trinta etc., conforme for a oferta. E, visando dar eficácia ao contido no art. 49, o decreto 7.962 referido trouxe para o sistema uma série de outras determinações específicas. Numa delas (art. 5º "caput"), reforça que o fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor. E n'outra (§ 1º do mesmo art. 5º) disciplina aquilo que já estava inserido como garantia no CDC: que o consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados. Uma boa novidade trazida pelo Decreto é a determinação de que o fornecedor envie ao consumidor a confirmação do recebimento da desistência imediatamente após a manifestação do arrependimento (§ 4º, art. 5º). Forma de pagamento não interfere no prazo A forma de pagamento não tem nenhuma implicação com o direito de arrependimento. Não importa como o pagamento do preço será feito: à vista ou parcelado com cartão de crédito; a prazo através de boletos ou avisos bancários; através de cheque contra a entrega da mercadoria; no caixa do posto dos correios; após a prestação de serviço ou mensalmente, trimensalmente etc. Em todos esses casos ou em qualquer outro, a desistência se operará da mesma maneira. Devolução do que foi pago Feita a desistência, qualquer importância que eventualmente já tenha sido paga (entrada, adiantamento, desconto do cheque, pagamento com cartão etc.) deve ser devolvida em valores atualizados. Se, por exemplo, foi feita a autorização para débitos parcelados no cartão de crédito e apenas o primeiro (do ato da compra) tenha sido lançado, este tem que ser devolvido em dinheiro ou lançado como crédito no cartão e os demais têm que ser cancelados pela vendedora junto à administradora do cartão de crédito. Realço que sou daqueles que sempre defendeu essa posição, que inclusive acabou sendo adotada em decisões judiciais. E o Decreto 7.962 citado pôs uma pá de cal numa eventual discussão que pudesse existir. Diz a norma que o exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor (§ 2º do art. 5º). E mais: que o exercício desse direito deve ser comunicado imediatamente pelo fornecedor à administradora do cartão de crédito, banco ou instituição financeira, para que: a) a transação não seja lançada na fatura ou conta do consumidor; ou b) que seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura ou conta já tenha sido realizado (§ 3º e incisos I e II do mesmo art. 5º). Consumismo Só para terminar, quando surgem essas mega promoções, gosto sempre de citar a história de meu amigo Outrem Ego. Certo dia, sua esposa chegou em casa e anunciou que fizera uma economia de R$ 1.000,00 em compras. Ela fora numa liquidação com descontos de 50% nos preços e comprou produtos que antes teriam custado R$ 2.000,00. Ao ver os produtos meu amigo disse: "Na verdade, você não economizou um mil reais; você gastou um mil reais! Nós não precisávamos de nada do que foi comprado". É isso. Descontos são bons... Se precisamos do produto!
quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A biografia como produto de consumo - parte II

Continuo hoje a desenvolver o tema iniciado há três semanas a respeito das biografias. Como antecipei, pretendo demonstrar que ambas as partes envolvidas na discussão pública da questão têm razão em parte. Lembro, antes de ir em frente, o que apontei ao final do artigo anterior: não se deve confundir a pesquisa e escrita do biógrafo com o direito de opinião e de liberdade de expressão garantidos no texto constitucional. Estes são mais amplos, pois dizem respeito ao direito que as pessoas têm ao livre pensar e de se manifestar sobre fatos e ideias, fazendo comentários e exercendo seu direito de crítica, além, claro, de também poderem produzir textos, obras de arte em todas as vertentes, trabalhos científicos e se expressar livremente a favor ou contra todos esses produtos de comunicação. Naturalmente, o direito do biógrafo está inserido no da liberdade de expressão intelectual, artística e científica, mas seu campo de atuação é mais restrito, pois visa examinar e mostrar a vida de um terceiro, como, aliás, assegura a etimologia da palavra de origem grega: bíos (vida) e gráphein (escrever). Prossigo agora, tentando resolver o imbróglio que envolve de um lado biógrafos, escritores e historiadores e, de outro, os biografáveis. Esse problema exige do intérprete uma solução que supere o conflito existente entre dois direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal (CF), o da liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (inciso IX do art. 5º) e o da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (inciso X do mesmo artigo). Como resolver o conflito? A doutrina há muitos anos apresenta uma saída para esse tipo de contradição ou oposição e, nesse caso, ela deve se dar pelo uso do princípio instrumental da proporcionalidade (que é implícito no sistema jurídico constitucional) e a utilização das diretrizes e luzes maiores lançadas na própria Constituição Federal pelo supraprincípío da dignidade da pessoa humana firmada no seu artigo 1º, inciso III. Antes de ingressar propriamente no tema que nos interessa, falarei de outros temas ligados à questão e também farei um proposta e um pedido a você, leitor: a da realização de um exercício para ver se conseguimos, de fato, saber como poderia um biógrafo falar de nossa intimidade. Começo por esta proposta. Um exercício sobre nossa intimidade Eis o teste: Pense numa questão sua, que somente você conhece. Pode ser uma lembrança de infância, uma paixão nunca declarada por uma amiga ou um amigo, um sofrimento guardado e escondido do mundo por uma questão de escolha ou impossibilidade de comunicação, ou alguma dor oriunda da incompreensão de um ente querido; ou ainda, simplesmente fatos ocorridos, memórias guardadas como retratos tirados na vida, como simples ocorrência felizes, alegres e fugazes, como fotos que iluminam o céu de sua memória; ou, também, fatos vividos, bem ou mal vividos, marcantes e que geraram sentimentos que são só seus e que faltam palavras para descrever; ou, então, pense nas partes de seu corpo que só você conhece ou que só divide com a pessoa amada ou mais: pense em suas entranhas, suas dores no peito, na barriga ou seus prazeres. Enfim, coisas que todos nós temos na intimidade e que somente nós mesmo podemos aferir, definir e talvez comunicar. Pense nelas. Agora, responda: Como é que uma terceira pessoa, um estranho, alguém que sequer participou de sua vida pessoal, como um parente ou um colega, alguém quem não participou de seu ciclo de amizades, como é que essa pessoa poderia falar de sua intimidade com alguma propriedade? Você acredita que ela seria capaz de narrar fatos, descrever imagens, apresentar sentimentos, emoções e relações de seu universo íntimo? Sem ao menos conversar com você? Veja que a psiquiatria e a psicanálise mostram que nem mesmo nas próprias memórias do indivíduo é possível confiar plenamente. Com o passar do tempo elas mudam. E a mudança não acontece apenas por questões problemáticas, traumas ou recalques; elas mudam pelo simples fato de que o tempo vai apagando certas linhas; novas experiências e conhecimentos vão sendo incorporados, de tal modo que o sujeito acaba por "reescrever" se próprio passado. Sem ele querer, isso acontece. Se quiser, claro, mais ainda. As emoções do passado se modificam. O que foi tristeza em certo momento - por exemplo, a dor pela morte de uma pessoa querida - após certo período muda (Aliás, é até uma defesa natural para não se ficar sofrendo a vida toda). No momento seguinte e logo após a morte de alguém próximo, a lembrança entristece e faz chorar. Anos depois, essa pessoa que se foi pode ser relembrada com saudade e às vezes até com frescor, como quando a lembrança traz os bons momentos vividos juntos. Meu amigo Outrem Ego fez esse teste e me disse: "Um estranho não consegue essa penetração e suas palavras não podem descrever o quadro adequadamente. Nenhum estranho conseguiria definir minhas emoções. Nem eu consigo...". Censura? Há um equívoco enorme em misturar o direito que tem uma pessoa de preservar sua intimidade como a ideia de censura. É verdade que alguns o fazem de má-fé apenas para confundir e também para se utilizar de um topos (uma máxima do senso comum) a favor de sua tese. Sempre gera um forte efeito acusar alguém de estar fazendo censura. Mas, ao contrário do que pregam, não há censura. A atriz Marília Pera entrou na polêmica das biografias e disse muito bem: "Quem tem mais de 50 anos, sofreu os tempos da ditadura, da censura, o medo de expressar seus sentimentos. Tive vários espetáculos censurados, fui presa, passei pelos horrores que quase todas as pessoas envolvidas nessa polêmica atual sobre biografias passaram. Hoje, vivendo numa democracia, é justo que desejemos narrar nossas verdades reprimidas durante anos. Mas a verdade depende da maneira que cada um de nós enxerga e sente um acontecimento. O biografado, o dono da vida, pode sofrer muito com as verdades narradas, mesmo que os excelentes biógrafos e as pessoas que opinam sejam sinceros e competentes. Considero golpe baixíssimo xingar de reacionário aquele que necessita preservar seus sentimentos, seus familiares, a vida privada"1. E como também bem definiu a advogada Eliane Y. Abrão: "Censura é o que se impôs à imprensa, ao teatro, ao cinema, nos anos de chumbo, proibidos de noticiar ou denunciar o que se passava nas ruas, nos porões das delegacias, nas contas públicas, nos encontros sombrios entre políticos e governantes. Censura é o medo que se apresenta em discussões politicamente legítimas em regimes de opressão. Censura é o que impõem às redações determinados veículos no sentido de proibir a divulgação de temas julgados prejudiciais a seus interesses econômicos ou ideológicos, dirigindo a atividade de comunicação. Muito diferente é o resguardo que alguns entendem que devam fazer sobre sua vida pessoal, assunto de sua exclusiva deliberação, isto é, da coibição de excessos, que normalmente pautam ações de quem vive em sociedade"2. Ou, como realçou Marília Pêra na entrevista citada: "É criancice chamar de censor o editor que corta palavras para adequar a matéria ao assunto e ao espaço. (...).Já tive cenas, palavras e remunerações cortadas no produto final de um filme, de uma obra de televisão, de entrevistas. Ficaram perdidas. Paciência! (...)Numa simples entrevista para um órgão de divulgação, o apagar de algumas palavras ou a banal supressão da pergunta do entrevistador pode nublar o sentido de uma frase! Mas, assim será, ainda que depois ocorram esclarecimentos. É muito sutil"! Realmente. Não há censura. Tanto é verdade que as pessoas estão de manifestando livremente sobre este e outros temas e à vontade. Aliás, como mostrei no meu artigo anterior, muitas delas se manifestam raivosamente, ofendendo quem pensa diferente. Elas parecem ter dificuldade de conviver com opiniões contrárias e com terceiros que lutam por seus direitos na justiça. Parecem mesmo - paradoxalmente - não conviver bem com a ausência da censura e com os limites éticos e legais impostos por um sistema constitucionalmente estabelecido, fruto de longa luta pela implementação das liberdades que vieram para assegurar a opinião de todos - até dos que discordam deles... Há pessoas que não precisam cumprir a lei? Alguns, ao que indica suas manifestações, postulam estar acima da lei. Naquele mesmo manifesto dos historiadores, que citei no artigo anterior, cujo trecho endossei, há outro que parece querer dizer que eles não se submetem nem devem se submeter à lei! Veja: "A biografia não é uma causa jurídica. Não pode ser controlada pelos legisladores nem cerceada pelos tribunais"3. "Como assim?", perguntaria indignado meu amigo Outrem Ego. Uma das grandes conquistas das sociedades democráticas foi exatamente o do estabelecimento em lei, especialmente nos textos constitucionais, dos direitos e garantias fundamentais de que gozam as pessoas de cada nação. Ninguém está ou pode estar acima ou fora da lei, nem seus principais governantes, o Presidente da República, Ministros de Estado, Governadores, políticos em geral, juízes em todas as instâncias, os religiosos etc. Ora, uma coisa é reconhecer que há conflitos entre os direitos e garantias estabelecidos e lutar pela prevalência de um sobre outro. Outra coisa, muito diferente, é defender que existem pessoas ou grupos vivendo numa sociedade democrática que não devem se submeter às leis. A luta por posições assumidas e modos de interpretação dos princípios e normas vigentes é democrática e bem vinda; a defesa da exclusão de alguns da submissão ao sistema é não só antiquada como autoritária. Espionagem Vejamos a interessante questão da espionagem, tema que suscitou discussões nas últimas semanas e gerou crises entre países. De forma rara, numa unanimidade nacional, ou melhor, mundial, todos criticaram a invasão da privacidade dos chefes de estado e demais autoridades públicas de várias nações. Eles foram espionados como agentes públicos (portanto, no papel social público) e também como pessoas humanas (no papel social privado). Espionar passou a ser sinônimo de invasão ilegal, de violação da privacidade e da intimidade das pessoas. Meu amigo Outrem Ego disse: "Ninguém aceitou as espionagens, mas como ficam os biógrafos? Eles poderiam espionar? Poderiam invadir a privacidade das autoridades e demais pessoas públicas? Os fins justificam os meios? Se assim for, parece-me claro que os espiões norte-americanos têm fortes motivos a favor da espionagem: segurança nacional e prevenção contra o terrorismo. Qual o fundamento para que o biógrafo espie, xerete, fuce, espione mesmo?" Penso que a comparação é válida, pois serve para mostrar como se pode invadir a privacidade das pessoas. A violação da privacidade feita pelo biógrafo, muitas vezes, como já apontei alhures, serve para matar a curiosidade do público, serve para aplacar a sanha consumista dos leitores, ávidos por escândalos, intrigas, segredos de alcova e todas as outras espécies de pimentas. O picante atrai e, portanto, vende. Ora, se não se pode ouvir conversas privadas nem observar as pessoas em sua intimidade com a desculpa de se promover a segurança nacional ou prevenir-se contra atentados terroristas então, como é que se poderia admitir a mesma invasão por intrusos que querem apenas fazer anotações à guisa de curiosidades, sem qualquer interesse público? E olha que o espião ouve, vê e anota, mas não conta (só para seus superiores hierárquicos). Já o biógrafo não só olha, vê e anota como mostra para todo mundo. Aliás, para quanto mais pessoas melhor, pois aumenta as vendas. No momento em que terminava de escrever este texto vi a notícia de que a terceira comissão da Assembleia Geral da ONU aprovou na terça-feira (dia 26-11-2013) uma resolução impulsionada por Alemanha e Brasil contra espionagem e a favor da privacidade. O texto irá ao plenário para votação no fim do ano4. A resolução é expressa na defesa da inviolabilidade da privacidade das pessoas: "Reafirmamos o direito à privacidade, segundo o qual ninguém deve ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, sua família, seu domicílio ou sua correspondência". Como base para o texto a resolução cita o artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 17 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. É importante anotar que o inciso X do art. 5º da Constituição Federal brasileira segue a mesma linha da inviolabilidade prevista nesses documentos internacionais. Vale a pena, pois, transcrevê-los: "Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques" (artigo XII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948). "1. Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação. 2. Toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas" (artigo 17 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de Dezembro de 1966) Como resolver o conflito existente entre liberdade de expressão e respeito à vida privada e intimidade? Minha proposta, seguindo, então, parte da doutrina, é a de que o intérprete lance mão do princípio da proporcionalidade - que é instrumental e implícito no sistema jurídico - e, a partir dele, resolva a pendenga na direção do respeito ao outro princípio, o da dignidade da pessoa humana (que é um supraprincípío constitucional). É o que desenvolverei na próxima semana. __________1In Folha de São Paulo, edição on line, de 15/10/2013. 2Biografias e Direitos Humanos, artigo publicado em de 24/11/2013. 3Trecho do Manifesto assinado por 220 historiadores. 4Colhi o material em InfoAbril. Mas, foi publicado em vários sites.
quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A biografia como produto de consumo - parte I

Continuo hoje a desenvolver o tema iniciado há duas semanas a respeito das biografias. Como antecipei, pretendo demonstrar que ambas as partes envolvidas na discussão pública da questão têm razão em parte. Prossigo, pois, cuidando agora da biografia como produto de consumo e de seu conteúdo. Biografia: produto de consumo Na sociedade capitalista em que vivemos, um livro não gera interesse econômico? Bem, estão aí as várias leis que garantem os direitos autorais e de edição para garantir que sim. E, aliás, é muito justo que assim o seja. Antes tivéssemos muitas editoras e autores endinheirados em função das vendas de seus livros. Seria realmente bom para todos. Quanto mais livros vendidos e lidos, mais a sociedade tornar-se-ia melhor. Eu não tenho dúvidas disso. Ademais, é claro no capitalismo atual, que livro é produto: é produzido, embalado, oferecido, vendido nas lojas físicas ou virtuais, com preços pagos à vista, a prazo, no cartão de crédito ou débito, em promoções com descontos etc., tudo regulado pelo Código de Defesa do Consumidor (e em outros países pelas leis e praxes locais de proteção ao consumidor). Estão, por isso, sujeitos a vícios, devoluções e demais garantias legais. Como me perguntou meu amigo Outrem Ego: "Bem, se é assim, por que é então que se diz que biografias não tem esse escopo?" Eu não sei responder; talvez seja para desviar a atenção, pois me parece que, cada vez mais, as biografias ocupam espaços nas prateleiras das livrarias e seus sites como típicos produtos de consumo altamente rentáveis. Veja o exemplo de Angelina Jolie. Recentemente, o jornal britânico Daily Star anunciou que três editoras disputam os direitos de editar sua autobiografia. Já foi oferecida a "bagatela" de 50 milhões de dólares! Ela, mostrando seu largo sorriso, afirmou: "Estou pronta para revelar tudo em um livro de memórias!" .Disse também que não pretende deixar nenhum assunto de sua vida de fora do livro: indústria milionária e manipuladora de Hollywood, o Oscar, seus 6 filhos, a mastectomia, o casamento com o ator Brad Pitt, atuação como embaixadora da ONU1. Aqui, por terras tupiniquins, a biografia da prostituta Bruna Surfistinha (codinome usado por Raquel Pacheco em seu mister), escrita pelo jornalista Jorge Tarquini, vendeu 250 mil exemplares, além de ter sido lançada em Portugal e na Espanha. Nada mal. Numa rápida consulta na web vi que há no mercado inúmeras biografias típicas da sociedade de consumo do espetáculo, da diversão e da curiosidade (mórbida ou não). Há, por exemplo, biografias do cantor Leonardo, do ator (de tevê e astro pornô) Alexandre Frota, dos apresentadores de tevê Milton Neves e Marcelo Rezende (este em pré-lançamento já anunciado), do Bispo Edir Macedo (dois volumes), do ex-jogador de futebol e também apresentador de tevê Walter Casagrande, de Max Cavalera da banda Sepultura, do cantor Lobão, da banda Roupa Nova e da banda Black Sabbath e até já de Neymar (encontrei duas!), etc. Claro que há também biografias e autobiografias importantes de pessoas que podem contribuir para o bem da humanidade, dos leitores e das sociedades, mas isso não muda o fato de que elas são típicos produtos de consumo e, como tal, podem ser úteis, essenciais ou supérfluas exatamente como qualquer produto. E, repito: têm preço de venda, geram receitas, honorários e lucros para editores, produtores, donos de gráficas, distribuidores, lojistas e autores. Muito bem. Estabelecido que a biografia é produto, pensemos agora no seu conteúdo. A intimidade Como antecipei, penso que não há necessidade de autorização prévia para a feitura de biografias, desde que o biógrafo trabalhe com os elementos da vida pública do biografado. Se os dados foram extraídos das ações e atitudes do biografado enquanto emanados de seu papel social público, podem ser utilizados à vontade. A barreira legal existente diz respeito à privacidade, intimidade e honra do biografado. Mas, mesmo aqui haverá exceções. É que há certos aspectos de vida privada ou íntima do biografado, que pelas circunstâncias em que ocorreram, podem ser divulgadas em função do interesse público. Por ora, cito dois exemplos: um Chefe de Estado, digamos o Presidente da República, no momento de intimidade, na cama com sua namorada, resolve revelar segredos que podem colocar em risco a segurança da nação. Ou, então, a situação de um criminoso (que mereça ser biografado, claro) que, por força de ações hediondas, perde o direito à manutenção dessa garantia, como é o caso do estuprador, que não tem nem honra nem intimidade a ser preservada. São exceções, que garantem a regra. Aliás, o que defendo é exatamente o que os próprios historiadores defenderam num documento recém-trazido a público: "O respeito à privacidade não pode sobrepor-se ao interesse coletivo em se conhecer o passado e o presente. Cabe ao biógrafo distinguir criteriosamente entre a exposição inútil da vida pessoal e os detalhes significantes para a explicação do contexto"2. Isso mesmo! Cabe ao biógrafo distinguir criteriosamente entre a exposição inútil da pessoa e os detalhes significantes para a explicação do contexto, exatamente como estou a defender. Veja, agora, o que me relatou meu amigo Outrem Ego. Ele me ligou para contar a seguinte história. Disse-me ele que na sua infância, no interior do Estado de São Paulo, havia um garoto com quem brincava na rua, muito simpático, amigo de todos dali; era de uma família muito pobre, da roça e duas vezes por semana aparecia à tarde para jogar bola na rua. Certo dia, foram todos catar goiaba num pé à beira da estrada. Esse menino, então com 12 anos, acabou caindo de um galho alto com as pernas abertas em cima de uma pedra. O acidente foi grave, ele teve de ser hospitalizado. Semanas depois, Outrem Ego, que era seu melhor amigo, ficou sabendo de um segredo: o menino teve que colocar uma prótese peniana. Mas, vejam o que veio depois, pela voz de meu amigo. "Não sei até hoje quantos ficaram sabendo do segredo, mas, certamente, eu, o irmão dele e um outro amigo sabíamos. Nós quatro nunca deixamos de ser amigos. Mesmo depois que minha família se mudou para a Capital, continuamos nos falando, aliás até hoje". "E, lendo sobre essas discussões a respeito de biografias e intimidade, lembrei desse meu amigo. Sabe o que aconteceu com ele? Olha, daria uma excelente biografia. Ele, como eu disse, era muito pobre. Estudou em escola pública (aliás, foi atendido em hospitais públicos na maior parte das vezes) e acabou entrando na Faculdade de Administração de Empresas da USP. Incrível né? Mas, isso é ainda pouco. Ele formou-se, trabalhou numa multinacional, juntou um bom dinheiro, comprou uma casa para os pais. Pediu demissão e montou um pequeno negócio junto do irmão". "Mas, deixe eu dar um salto no tempo: com 40 anos, ele estava milionário. Sua empresa, com várias filiais tanto aqui como no exterior, tinha centenas de trabalhadores. Ele, então , decidiu entrar na política. Foi, naturalmente, recebido de braços abertos em um Partido. Candidatou-se a Deputado Federal e foi eleito. Mas, havia um problema: ao chegar no Congresso ele queria fazer tudo certo, num figurino diferente do vigente. Não deu certo. Depois de um mandato tumultuado, ele desistiu. Saiu da política., voltou para a empresa, que atualmente tem milhares de empregados. Ele, sozinho, mantém sem fazer escândalo nem marketing, dezenas de instituições de caridade". Meu amigo continua: "Esse homem, durante toda a vida, claro, teve problemas com sua prótese. Fez várias cirurgias para adaptá-la a seu crescimento e envelhecimento. Tudo em sigilo, especialmente depois dele se tornar conhecido". "Eis aí, meu amigo, uma história de luta e sucesso que merece ser contada por um bom escritor e/ou historiador de preferência. Esse homem, vindo de onde veio, conseguindo o que conseguiu, vendo o que viu e ajudando literalmente milhares de pessoas todos os meses, poderia mesmo merecer algumas páginas que ficassem para a história. Algumas páginas que narrassem sua vida pública". "Mas, agora, coloco a pergunta que não quer calar: o que a prótese peniana que ele carrega na intimidade de seu corpo tem a ver com isso. Quem é que teria o direito de revelar esse segredo tão íntimo? Para que serviria as pessoas terem conhecimento desse problema tão antigo quando sigiloso"? "Penso que nenhum biógrafo teria o direito de fazer essa revelação. Nenhum biógrafo, nem eu, o irmão dele, seus pais ou os médicos que dele cuidaram. Ninguém. É algo de sua vida pessoal que não se pode revelar. Seria uma violação flagrante de sua vida íntima. Teria como função apenas e tão somente matar a curiosidade mórbida de um tipo de público consumidor acostumado com fofocas e colunas degradantes de revistas e sites." Eu ouvi atentamente, depois objetei: "Penso que um psiquiatra poderia avaliar seu amigo e chegar à conclusão de que ele se tornou o empresário de sucesso, conseguindo enfrentar e vencer as dificuldades da vida, exatamente porque havia aprendido uma lição marcante quando teve de colocar a prótese peniana. Quero dizer, seria possível mostrar que o drama sofrido na infância tinha fortalecido seu amigo para ajuda-lo no futuro". Ele respondeu: "É possível. Mas, mesmo que assim o fosse, estaríamos ainda no campo da interdição, pois o segredo continuaria com meu amigo e o psiquiatra não poderia revelá-lo por dever de ofício. Ele haveria de manter sigilo". Realmente. Nem essa desculpa de tentar demonstrar uma conexão entre algo íntimo e privado e uma ação pública conhecida serve de justificativa para a divulgação violadora. Ou, como também disse meu amigo: "Ainda que um compositor se torne muito famoso, escrevendo músicas de 'fossa' e 'dor de cotovelo' e que isso na origem tivesse relação com uma história de amor frustrado que ele nunca revelou, não haveria base para a divulgação desse segredo". Outrem Ego contou essa história por causa do imbróglio que envolveu o Rei Roberto Carlos, dentre outros músicos da MPB. Eu sou de um tempo em que o Rei embalava nossos sonhos nos "bailinhos". Deve ser muito difícil encontrar alguém de minha idade que não goste dele, que não o admire. Por isso, soam estranhos os ataques que ele tem sofrido apenas e tão somente porque está lutando na Justiça de uma sociedade que se diz democrática por um direito seu. Os ânimos estão muito exaltados. Achei, por exemplo, não só injusto como indelicado o tratamento dado ao Rei pelo escritor Ruy Castro. Este escritor, durante a recente Feira do Livro de Frankfurt, perguntou à ministra Marta Suplicy da Cultura se o biógrafo teria que pagar um dízimo ao biografado e completou: "Pagar esse dízimo vai garantir nossa liberdade? Eu posso pagar um dízimo ao Roberto Carlos e falar da perna mecânica?3" Ora, como apontou meu amigo Outrem Ego em sua explanação, se RC tem ou não uma perna mecânica isso é algo que só interessa a ele e a mais ninguém. Sua biografia não ficará melhor ou pior apenas porque esse aspecto não é tratado. Seria pura fofoca, violação de sua intimidade para satisfazer a um tipo de satisfação pública da pior espécie. Esse tipo de atitude do escritor referido, ao que parece, mostra, ao contrário do texto do manifesto dos historiadores acima transcrito, que alguns candidatos a biógrafos não estão à priori interessados em respeitar o biografado. O que fariam se pudessem falar qualquer coisa? A prova é o que o mesmo escritor disse sobre Roberto Carlos em outro depoimento: uma pessoa com 'vaidade e insegurança sem limites' como o cantor e a falta de uma lei específica para biografias, permite a criação de uma 'indústria de processos'4. Na verdade esse modo desrespeitoso de falar do outro, bem examinado, dá razão ao outro e não a quem fala. Ou, como diz Gilberto de Mello Kujawski, "quando se fala bem ou mal de alguém, exige-se a necessária comprovação. Entre o biógrafo e o biografado instaura-se um contraditório virtual, ao qual o biógrafo tem a obrigação de responder sempre que instado"5. Se um biógrafo, desde logo, já não gosta do biografado; se tem opinião negativa sobre o mesmo, não deve nem pensar em começar seu trabalho, pois está longe de efetuá-lo de um modo o mais isento possível. Começou mal e assim terminará seu mister. Não mostrará ao público o que o biografado era ou é, o que ele fez, de quais fatos relevantes ele participou. Dará seu próprio depoimento distorcido por uma subjetividade viciada. Com essa atitude, essas pessoas parecem querer impor sua vontade, independentemente dos fatos, dos direitos envolvidos, do direito à vida privada e à intimidade de que gozam os biografáveis. Esse debate do modo como se tornou público, com depoimentos raivosos e apaixonados acaba colocando em dúvida o que os escritores podem, de forma neutra, realmente dizer dos biografados. Por fim, sempre buscando aclarar o que há na base das discussões, aproveito o exemplo do psiquiatra na hipótese narrada acima por meu amigo Outrem Ego, para questionar um argumento muito utilizado pelos biógrafos: o de que eles são capazes de "conhecer" o biografado. Sim, talvez sejam, mas penso que conseguem fazê-lo naquilo que envolvem as ações públicas do investigado. Na esfera da privacidade e intimidade é duvidoso. Veja, caro leitor. Se já é difícil para um psiquiatra, após muitas sessões de psicanálise, onde o paciente expõe sua vida de modo confessional, estabelecer os tipos de conexões entre a vida pregressa e a atual, entre as vivências anteriores e as experiências que daí vieram, entra o drama vivido pelo paciente e sua reclamações como fruto dos fatos de sua própria vida pessoal (pública e privada), o que se dirá de um biógrafo que não só não tem essa qualificação profissional como também não recebe as informações diretamente da fonte e confessada. Como ele faria para ter acesso a essa esfera de intimidade? Ademais, ainda que o biógrafo fosse, ele próprio, um psiquiatra, não poderia estabelecer de forma científica os critérios de conexão, as vivências, as experiências, as causas e consequências, pois faltaria o contato com o paciente. Seria - como tudo indica que é - dificílimo apresentar adequadamente os fatos da vida privada e íntima do biografado ou mostrar os elementos de sua via psicológica: suas emoções, suas dores, angústias, prazeres etc. Qual a solução? No próximo artigo, pretendo concluir esse ponto que envolve o conflito entre direito à escrita e liberdade de expressão e direito à vida privada, intimidade e honra. Penso que a solução deve se dar pela busca de um princípio maior na própria Constituição Federal, que é o da garantia da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, interpretação que há de ser feita pelo critério de incidência do princípio da proporcionalidade. Adianto, de todo modo, em função do que aqui escrevi, que não se deve confundir a pesquisa e escrita do biógrafo com o direito de opinião e de liberdade de expressão garantidos no texto constitucional. Estes são mais amplos, pois dizem respeito ao direito que as pessoas têm ao livre pensar e se manifestar sobre fatos e ideias, fazendo comentários e exercendo seu direito de crítica, além, claro, de também poderem produzir textos, obras de arte em todas as vertentes, trabalhos científicos e se expressar livremente a favor ou contra todos esses produtos de comunicação. Naturalmente, o direito do biógrafo está inserido no da liberdade de expressão intelectual, artística e científica, mas seu campo de atuação é mais restrito, pois visa examinar e mostrar a vida de um terceiro, como, aliás, assegura a etimologia da palavra de origem grega: bíos (vida) e gráphein (escrever). __________ 1Colhido em Clicrbs, em 27/10/2013. E também em O Globo, na mesma data. 2Trecho do Manifesto assinado por 220 historiadores. In Migalhas. 3Apud Josias de Souza, blog UOL, 28/10/2013. 4Em entrevista ao Uol entretenimento, 25/4/2013. 5"Liberdade de expressão", In Migalhas, 24/10/2013.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A vida privada como produto de consumo - parte II

Continuo hoje a desenvolver o tema iniciado na semana passada a respeito das biografias. Como antecipei, pretendo demonstrar que ambas as partes envolvidas na discussão pública da questão têm razão em parte. Prossigo, pois, cuidando agora da fofoca e do segredo. A fofoca O outro lado desse produto envolve não só a violação pura e simples da privacidade e da intimidade das pessoas como os malefícios da fofoca. Com efeito, o ato de fofocar é tão antigo como andar para trás, como se diz. Já na Grécia antiga fazia-se fofocas. É conhecida a objeção de Sócrates sobre ela: Certo dia em Atenas, o filósofo encontrou com um conhecido que lhe disse:- Sócrates, sabe o que acabo de ouvir sobre um de seus alunos? - Um momento. Antes de me dizer, gostaria de submetê-lo a um pequeno teste. É o teste dos três filtros - respondeu Sócrates. - Três filtros?- Sim. Antes de me contar o que quer que seja sobre meu aluno, quero que você pense um pouco e reflita sobre o que vais me dizer - disse o filósofo. Depois continuou: O primeiro filtro é o da verdade. Estás completamente seguro de que o que vais me dizer é verdade?- Bem... Acabo de saber... - respondeu reticente o amigo- Então, sem saber se é verdade, ainda assim quer me contar? - perguntou e prosseguiu: Vamos ao segundo filtro, que é o da bondade. Quer me contar algo de bom sobre meu aluno?- Não, pelo contrário - falou o outro.- Então, queres me contar algo de ruim sobre ele, mas não sabes se é verdade! - exclamou e foi em frente: Veja! Ainda podes passar no teste, pois resta o terceiro filtro, que é o da utilidade. O que queres me contar vai ser útil para mim?- Acho que não muito...- Então, se o que você quer me contar sobre meu aluno pode não ser verdade, não é bom e pode não ser útil... Por que, então, quer me contar? - terminou magistralmente o filósofo. Sabe-se que as objeções do filósofo grego nunca foram muito levadas a sério pelas pessoas. Nem antes e muito menos agora. A fofoca é não só prato de conversa como até matéria para programas de tevê, colunas de revistas, jornais, blogs, etc. Isso, independentemente do mal que possa causar aos terceiros envolvidos. Veja, caro leitor, coloquei mais esse outro elemento para mostrar como o conjunto de fatos de comunicação social levianos - as fofocas -- misturam-se aos não levianos - por exemplo, os fatos jornalísticos relevantes - e geram uma confusão sobre os direitos envolvidos. Do modo como o sistema de transmissão de informações funciona nos dias de hoje, muitas vezes o leitor, o espectador, o ouvinte, enfim, as pessoas em geral e até os estudiosos das comunicações, da antropologia, da semiótica e de outras ciências não conseguem distinguir o que é um fato verdadeiro de uma fofoca, o que pode ser uma notícia com interesse público de uma informação inócua, o que é violação ou não é violação da vida de alguém. Precisamos de cautela na análise jurídica dessas questões, deixando de lado paixões e opiniões pré-concebidas. O segredo Um dos componentes do direito à intimidade é o segredo. O segredo é também um direito subjetivo. Quem não os tem? Ele está por todos os lados, inclusive, como direito não só da pessoa física como da jurídica e se apresenta de vários modos. Há, claro, o segredo humano, a base de todos os demais, este que cada um dos indivíduos tem, independentemente de origem ou idade: mesmo crianças, que ainda não compreendem bem as relações de comunicação, mantêm segredos. Com efeito, o ser humano guarda segredos desde cedo, numa tenra idade. As crianças e adolescentes têm os seus e, claro, os adultos em profusão. Podem ser inocentes ou terríveis. A revelação de um segredo pode não ter qualquer consequência como pode ser devastadora. O fato é que as pessoas, como regra, os respeitam. Guardar segredo não tem, por exemplo, relação com amor, fidelidade ou confiança. Os filhos podem manter muitos segredos resguardados quanto aos pais e estes em relação àqueles, sem que a relação de amor e confiança entre eles se abale um centímetro. O mesmo pode ser dar na situação amorosa dos casais: manter segredos não implica traições (a não ser, claro, que a traição seja o segredo...). Enfim, é pacífico que as pessoas guardam segredos individualmente ou em duplas, grupos, amigos, parentes etc., como é pacífico que eles devem ser respeitados. Muitos dos segredos individuais são repartidos entre amigos e parentes. Por ser de interesse mútuo ou por não suportar guarda-lo sozinho, a pessoa o divide com alguém de sua confiança (e aqui começa a morar o perigo...). Há também segredos de ordem profissional: o sigilo profissional é, ao mesmo tempo, um direito (do confidente e do profissional - psicólogo, psiquiatra, médico, advogado, padre, etc. ) e uma obrigação, pois o profissional não pode dele abrir mão, mesmo que a pedido do juiz num processo instaurado. Há segredos que são comerciais e industriais e ninguém duvida que eles não podem ser revelados. Eles se traduzem nas fórmulas, práticas, procedimentos e instrumentos de negócios, no design, padrões, etc. São também as informações confidenciais. Esses segredos podem pertencer a pessoa física ou a pessoa jurídica e estão salvaguardados da bisbilhotice alheia, limitados que estão no círculo concêntrico da intimidade. Meu caro leitor, você acredita que a violação de um segredo poderia ser resolvida pelo pagamento de uma indenização? Há um episódio da série da tevê norte americana Seinfeld em que a personagem Elaine resolve fazer consultas com um Rabino e conta para ele alguns segredos, inclusive da vida pessoal e sexual de seu amigo, o personagem George. O episódio termina com George deitado na cama vendo tevê com sua noiva, assistindo a um Programa no qual o Rabino trabalha dando depoimentos. Ele e sua noiva, com os olhos arregalados (ela mais que ele) veem e ouvem o Rabino dizer: "Uma pessoa, digamos, de nome Elaine, disse-me que seu amigo... Vamos chama-lo de George... Ele lhe perguntou se sair com uma prostituta antes do casamento seria traição". Claro que se trata de uma brincadeira numa sitcom, mas serve para vermos o que é sentir-se traído em função de um segredo revelado publicamente. Indenizar o quê? É conhecida uma piada que ajuda também a ilustrar o segredo e as consequências de sua violação. Veja. Um doente está deitado na cama, na verdade, seu leito de morte. Ele está definhando, faltando pouco para morrer. Ao lado dele está sua esposa, de mãos dadas com ele. Ela parece estar rezando. Ele, então, interrompe e diz: - Amor, eu preciso confessar algo. - Chio... Fique quieto, poupe sua energia - diz ela, passando a mão em seu cabelo. - Não, eu não posso partir com esse peso... Eu preciso revelar um segredo... - Não precisa, fique calmo. Ele, num esforço hercúleo, insiste: - Não...Não... Tenho que te falar. Contar o que eu fiz... Ela, segurando sua mão, põe o ouvido do lado de sua boca, para ouvir. Ele diz, com uma voz embargada e arrependida: - Eu traí você várias vezes.. Com sua melhor amiga, Alice e também com nossa vizinha do andar de baixo... Ela, então, colocou a mão suavemente em sua boca, aproximou-se de seu ouvido e disse bem baixinho: - Eu sei, eu sei. Foi por isso que te envenenei. Segredo e sigilo Os termos segredo e sigilo são usados como sinônimos, mas de fato, embora imbricados, têm conotações um pouco diversas. Ambos traduzem aquilo que não pode ser exposto publicamente, aquilo que não pode ser comunicado. Mas, o sigilo indica um dever legal, uma determinação para que o segredo seja mantido e que é conhecido como regra em várias profissões: na advocacia, na psiquiatria e na psicanálise, na medicina e até na confissão que é feita ao religioso (padre, bispo, etc.). O jornalista, por exemplo, deve resguardar o sigilo de fonte quando as circunstâncias o exigirem. Entre nós, está estabelecido o sigilo fiscal e o sigilo bancário. Há também o sigilo das telecomunicações e o sigilo das correspondências, enfim, uma enorme gama de situações de segredos resguardada pelas leis. Na sequência, abordarei algumas delas, mas desde logo anoto que é consensual que esse tipo de sigilo deve ser resguardado, não podendo ninguém violá-los. Aliás, não parece que exista alguém defendendo suas violações. Interesse público e segredo Penso que a chave para a resolução de alguns dos problemas existentes entre biógrafos e biografados é a busca do interesse público. A divulgação de informações deve ter por suporte esse interesse. E mais: existem fatos que devem ser mantidos em segredo, exatamente por causa do interesse público. Há situações que naturalmente nascem bloqueadas. Vejamos alguns exemplos: nas licitações públicas para venda de companhias estatais, deve ser guardado segredo das ofertas dos interessados; nos vários tipos de concursos públicos para ingressos nos cargos estatais ou para ingresso no quadro da Ordem dos Advogados, ou na Magistratura, no Ministério Público e em todas as carreiras públicas em todos os níveis, as questões não podem tornar-se públicas antecipadamente (óbvio!); o mesmo se dá no Enad, nos vestibulares etc.; acaso o ministro da Fazenda e seus subordinados resolvam baixar medidas que afetarão o câmbio ou a bolsa de valores, tais resoluções devem ser guardadas até que possam ser levadas a público; há um longo etc. de situações que devem permanecer em segredo. O fato é que o interesse público exige o segredo, algo que não é contestado. Sigilo profissional O sigilo profissional se impõe a certas pessoas que exercem atividades, que em função de suas especificidades e competências, possibilitam o conhecimento de fatos que envolvem a esfera íntima e privada de outras pessoas (em alguns casos, como dos advogados, esses fatos dizem respeito a pessoas físicas e também jurídicas). Essas informações privadas são, como regra, fornecidas pelo próprio interessado (cliente, paciente, fonte) para que a relação profissional possa ter andamento. Pode se tratar de um cliente acusado de um crime, que deve revelar fatos para seu advogado; pode ser um paciente fazendo suas confissões no consultório do psiquiatra ou alguém confessando seus pecados a um padre; pode ser, também, um cliente recebendo diagnóstico de seu médico ou um jornalista colhendo informações de interesse público de uma fonte não revelada (e que ele promete resguardar) etc. No Brasil, o sigilo profissional nasce no texto constitucional: "É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional" (inciso XIV do art. 5º da Constituição Federal - CF). E é garantido em várias normas relacionadas às profissões específicas. Cito, a título de exemplo, o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que regula o tema nos artigos 25 a 27; refiro também o Código de Ética Médica, que normatiza a questão nos artigos 73 a 79. De maneira mais ampla o Código Civil também regula o sigilo no inciso I do artigo 229, dispondo que "Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo". E, na mesma linha, o Código Penal no seu artigo 154 já dispunha: "Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa". Sigilo bancário O sigilo bancário é decorrente da garantia da inviolabilidade da vida privada e da intimidade tanto das pessoas físicas como das pessoas jurídicas, garantida no art. 5º, inciso X da CF. Ele está ligado a comunicação privada feita pelos clientes com as instituições financeiras. Daí que esse direito ao segredo dos dados existentes na instituição financeira decorre de dois direitos fundamentais: o do direito à vida privada e intimidade e o do dever de sigilo profissional, conforme visto no item anterior, eis que o banqueiro ou administrador está de posse dos dados em função de sua atividade profissional. Além disso, A lei Complementar nº 105 de 10 de janeiro de 2001 estabelece para as instituições financeiras o sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados. Sigilo fiscal O segredo aqui diz respeito às informações fiscais prestadas pelos contribuintes à Fazenda Pública. É sigilo que se impõe também pela garantia de vida privada e intimidade das pessoas físicas e jurídicas (Conf. inciso X do art. 5º da CF). Há, pois, proibição de divulgação dos dados registrados, eis que as informações fornecidas pelo contribuinte ao Estado diretamente ou a seus agentes são de foro íntimo, uma vez que envolvem não só seus dados cadastrais como uma detalhada descrição do patrimônio, suas receitas, seus ganhos e suas perdas, seus investimentos etc. O Código Tributário Nacional, por sua vez, impõe o sigilo: "Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades" E o Código Penal dispõe: "Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: I - permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; II - se utiliza, indevidamente, do acesso restrito". Sigilo de correspondência e das telecomunicações O sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas é direito fundamental, garantido no inciso XII do art. 5º da CF: "É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" Veja-se que o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e de dados não pode ser quebrado nem por ordem judicial para fins de investigação criminal ou instrução processual. A CF abre exceção apenas na decretação do Estado de Sítio (art. 139, III). E o Código Penal estipula: "Art. 151 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa". Sigilo de domicílio, segredos comerciais, industriais, etc. Há ainda uma série de situações protegidas pela legislação constitucional e infraconstitucional, tais como a inviolabilidade do domicílio, os segredos industriais e de comércio, de marca, de projetos, etc., como acima já apresentei. Na Consolidação das Leis do Trabalho, por exemplo, é motivo de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho a violação do segredo da empresa pelo empregado. Enfim, há vários outros sigilos impostos, mas penso que o que já referi é suficiente para demonstrar que não é tudo que pode ser levado a conhecimento do público, independentemente do fato pertencer ao campo do público ou do privado. Além disso, como visto, em algumas situações o interesse público impõe o segredo.
quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A vida privada como produto de consumo - parte I

Não poderia ficar de fora da polêmica das biografias, especialmente porque, de um lado, elas aparecem como produto existente no mercado e também como resultado do sistema amplo e democrático de informar e ser informado e , de outro lado, a polêmica se instaurou exatamente pela existência dessa natureza democrática dos meios. Para facilitar o entendimento do que pretendo demonstrar, começo apresentando parte de minhas conclusões. Depois desenvolverei meu raciocínio. Ei-las: penso que no sistema constitucional brasileiro - independentemente da legislação civil vigente - não há necessidade de autorização para a realização de biografia de pessoa viva que exerça papel público, mas a apresentação dos fatos deve ser as de domínio e interesse públicos. Há sim proteção e interdito constitucional para a divulgação de fatos relativos à vida privada do biografado. Para explicar minha teoria, tenho de apresentar os conceitos de papel social (público e privado), interesse público, vida pública, vida privada e intimidade (que é uma esfera concêntrica dentro da esfera privada). Em outro momento, abordarei a questão das biografias dos mortos e a questão dos herdeiros. Repito e acrescento em itens: A.O biógrafo não precisa de autorização do biografado que esteja vivo, desde que: a.1) os fatos narrados estejam circunscritos à esfera pública de atuação do biografado; e/ou a.2) os fatos narrados estejam circunscritos ao papel público exercido pelo biografado. B. Em consequência do contido na letra "a", o biografado vivo pode: b.1) proibir a divulgação da obra que tenha adentrado nos fatos de sua vida privada (sem autorização); e/ou b.2)pleitear indenização por danos morais; Desse modo, como o leitor pode desde logo perceber, do meu ponto de vista, ambas as partes envolvidas na discussão têm razão em parte. Mas, para manter este espaço de artigos funcionando de forma adequada e para que o leitor possa, de fato, acompanhar meus argumentos, dividi minha exposição em 4 tópicos, a saber: A vida privada com o produto de consumo - primeira parte A vida privada com o produto de consumo - segunda parte A biografia como produto de consumo - primeira parte A biografia como produto de consumo - segunda parte Segue, pois, o tópico 1. A vida privada como produto de consumo - primeira parte "De tanto olhar, nós nos esquecemos de que podemos ser olhados", vaticinou, no século passado, Roland Barthes, falecido em 1980. E, de fato, vivemos uma crise do privado; estamos numa época em que parece que não há mais o segredo, o sagrado, a intimidade; época em que tudo é abertamente mostrado; aliás, parece que tudo deve ser mostrado; vivemos a época do explícito. A vida privada O que é privado em nossos dias?, pergunta Mario Vargas Llosa1 e responde: "Uma das consequências involuntárias da revolução informática foi a volatilização das fronteiras que o separavam do público, confundindo-se ambos num happening em que todos somos ao mesmo tempo espectadores e atores, em que nos exibimos reciprocamente, ostentamos nossa vida privada e nos divertimos observando a alheia, num strip tease generalizado no qual nada ficou a salvo da mórbida curiosidade de um público depravado pela necedade2."3 Meu amigo Outrem Ego diria: "Não todos! Eu não abro mão de minha vida privada". Endosso que também não eu, na medida em que, ao menos entre nós, temos essa garantia outorgada pelo texto constitucional. Não só nossa vida privada mas também nossa intimidade é garantida expressamente (Art. 5º, inciso X da Constituição Federal). Mas, de outro lado, se se trata de um direito subjetivo, de uma prerrogativa, podemos, então, abrir mão dele e daí tem razão o famoso escritor peruano: atualmente, milhões de pessoas abrem as portas de sua casa, de sua vida pessoal em larga medida via Internet para mostrarem seus corpos, seus problemas, suas mazelas, suas alegrias e tristezas, seus relacionamentos amorosos e sua vida sexual etc. para quem quiser ver, ler, falar e ouvir. Daí se pode concluir que, realmente, essa abertura social da imagem pessoal e uso de que os terceiros dela podem fazer não importa violação, pois se trata de autorização. Todavia, o inverso disso é também verdadeiro: como a lei garante a imagem privada e íntima, quem se dispuser a não ceder e dela abrir mão, pode exercer o direito de negação. Pode impedir que todos os terceiros possam dela se utilizar ou mesmo "dar uma olhadinha". O problema, atualmente, está em que o mercado de consumo conseguiu emplacar a ideia de que a vida privada e a intimidade das pessoas foi feita para ser mostrada a todos e o tempo todo. Basta ficar com o exemplo dos reality shows para percebemos o escancaramento ou o das páginas do Facebook. Pior: há uma inversão de valores, de tal modo que aquele que se nega a abrir mão de sua privacidade é que parece que está errado. Veja essa história ocorrida com meu referido amigo Outrem Ego já há cerca de cinco anos. Ele, que é professor universitário, saia de uma aula e descia a rampa do prédio da escola conversando com seus alunos. De repente, surgiu à sua frente - e dentro do campus! - um repórter com um microfone em punho, tendo atrás de si um cinegrafista com uma câmera apontada para a direção dele. Sem pedir licença, o repórter colocou na frente dos lábios de meu amigo um microfone e foi fazendo uma pergunta. Meu amigo, então, gentilmente empurrou o microfone de sua frente e disse; "Não quero dar entrevistas nem ser filmado". O repórter insistiu e foi na direção dele com o microfone, quase o atingindo na boca. Sem alternativa, ele empurrou novamente o microfone e passou adiante. O repórter começou a falar em tom agressivo e perguntou: "Quem é você para não ser filmado?". É isso! Nos dias que correm, parece mesmo uma ofensa não querer responder a perguntas ou ser filmado. As pessoas acreditam que a imagem, sua imagem não lhe pertence; que ela é do coletivo, é de todos. A confusão está instaurada. Agora, acrescente-se a esse molho encorpado mais um tempero: a curiosidade. Ela pode ser observada em muitas espécies animais como algo instintivo, aliás como também o é no ser humano: basta ver como as crianças são curiosas. Mas, quando ultrapassa um certo limite pré-estabelecido socialmente em relação aos terceiros, a curiosidade pode tornar-se incômoda e invasiva. Nessa hipótese, o curioso ganha outros apelidos, tais como xereta, intrometido, bicão, intruso. Em termos filosóficos e científicos, sempre se disse que a curiosidade humana é uma grande impulsionadora das pesquisas, das descobertas, da evolução do pensamento. É boa mesmo. No entanto, o mercado acabou validando os bicões, desenvolvendo uma espécie de voyeurismo, não apenas no sentido original e sexual mas mais amplo: em todo e qualquer modo de observação. Como se sabe, o voyeur é a pessoa que busca prazer sexual através da observação de outras pessoas, que podem estar envolvidas em atos sexuais, vestidas com roupas íntimas ou com qualquer outra peça do vestuário que chame a atenção e atraia o observador ou simplesmente nuas, etc. A prática do voyeurismo manifesta-se de várias formas, embora uma das características-chave seja a de que o indivíduo não interage com o objeto (ou pessoas que, por vezes, não estão cientes de estarem sendo observadas); em vez disso, observa-o a uma relativa distância, talvez escondido, com o auxílio de binóculos, câmeras, o que servirá de estímulo, por exemplo, para a masturbação durante ou após a observação. Na sociedade em que vivemos, vingou um modo, como disse, muito mais amplo de voyeurismo e que, de certo modo, foi retratado com maestria no cinema por Alfred Hitchcock, no filme "Janela indiscreta"4. Vingou, portanto, aquela curiosidade mórbida e que não tem função ou qualidade. É mero olhar por olhar. Ao mesmo tempo e também em parte por causa desse esquema do olhar e porque ele é muitas vezes vulgar, a fofoca acabou tomando corpo no sistema de informações. As pessoas gostam de ver e de fofocar e se elas gostam, por que não transformar esse gostar em projeto? Em objeto de consumo? Porque não possibilitar que as pessoas, como consumidores, olhem e fofoquem à vontade? E ao mesmo tempo tragam dinheiro para as empresas de plantão que se utilizam dessas ferramentas e também aos administradores dos sites, revistas eletrônicas e físicas, programas de tevê, blogs, etc.? Os paparazzi A vida privada como produto é fruto de uma época anterior ao consumismo atual, tendo surgido a partir de divulgação da vida de artistas de hollywood por revistas, jornais populares e depois a tevê. Ganhou grande repercussão com o surgimento dos paparazzi. Com efeito, como se sabe paparazzo (no plural paparazzi) é uma palavra de origem italiana utilizada para designar os repórteres que fotografam pessoas famosas sem autorização, expondo em público as atividades que eles fazem em sua vida privada e/ou íntima. Após conseguir tirar as fotografias os paparazzi as vendem para a imprensa de fofoca e escândalo por valores significativos. Atualmente, esse tipo de foto aparece em praticamente toda a imprensa escrita (revistas e jornais) e televisada. E, com o surgimento da Internet, as fotos vão para sites e a todo o planeta literalmente. Diz-se que foi Fellini quem popularizou os paparazzi no cinema, no seu filme La Dolce Vita de 1960. Nele, o jornalista Marcello Rubini (representado por Marcello Mastroianni) era acompanhado por um fotógrafo chamado Paparazzo (interpretado por Walter Santesso). "Os paparazzi metralham, fuzilam. Eles perseguem, caçam, acossam. É só aparecer a ocasião que eles se tornam crápulas oportunistas. Às vezes decepam suas vítimas com golpes de flashes. Vivem em esconderijos, colocam-se em emboscada e se atiram inesperadamente sobre sua presa. Formam uma matilha que se lança em perseguição de uma caça dourada"5. Realço: o trabalho dos paparazzi é apenas e tão somente tornar público o que é privado. Eles são "aqueles fotógrafos cuja profissão consiste em surpreender vedetes e celebridades na sua intimidade e cuja tarefa visa tornar público o privado, sobretudo quando se supõe que este privado deveria continuar privado"6 Eles não se interessam por imagens públicas. Eles e aqueles que adquirem suas fotos vivem de violações. Criou-se assim um mercado voyuerista: as pessoas tornaram-se consumidoras da vida privada alheia. Esta, reduzida a imagens obtidas ilegalmente e que deveriam permanecer fora do olhar do público, exatamente por serem ilegais, tornaram-se atratativas. Como uma proibição sexual com alta carga libidinosa, a vida privada virou produto de consumo atraente e quase pronográfico (quando não é mesmo pornográfico!).O que era proibido passou a poder ser visto em revistas, jornais e depois na tevê e num clique na web. A janela foi aberta e ficou escancarada! Mas, lembro: a vida privada não acabou! E, pelo menos em nosso sistema constitucional, é ainda garantida contra o olhar e a curiosidade de terceiros intrometidos. O que confunde - a quase todos, inclusive juristas e jornalistas - é essa disponibilidade das pessoas para com sua própria intimidade. Vive-se um momento em que se espia e se é espiado, mas o espiado gosta. Mais: o espiado se mostra, abre as portas de sua casa, seu sorriso, seu corpo, sua intimidade (muitas vezes em momentos muito constragedores). Por isso, algumas pessoas ficam pensando como aquele reporter que tentou entrevistar meu amigo Outrem Ego: "Quem é você para não se mostrar? Quem é você para não ser visto em sua intimidade e em sua vida privada?". Daí a se concluir que ninguém está a salvo dessa invasão é um pulo! Pergunto, então: o que ocorreu, a partir do incremento das comunicações e do consumismo? O modelo de violação tipo paparazzi tornou-se lugar comum. A vida alheia, qualquer que seja ela e especialmente a vida privada alheia de celebridades, políticos, artistas e demais pessoas públicas virou produto de consumo e como tal é oferecido, vendido, comprado, olhado, arquivado, passado e repassado. É um produto de alta rentabilidade e com um público enorme de potenciais consumidores e em todas as classes sociais. A vida privada é um produto como outro qualquer e como tal é pensado e estudado antes de ir ao mercado; é planejado dentro de uma perspectiva de marketing, visando atingir determinado público alvo; é negociado à vista ou à prazo e visa lucro. Aliás, de fato, gera altas receitas e dá grandes lucros. Assim, pergunto mais: se a vida privada é um produto, como de fato é, quem é que pode estar a salvo da invasão? Lembro que a vida das pessoas, uma vez devassada, pode render um preço elevado. Claro que, com o crescimento do mercado, a vida privada tipo paparazzo ganhou uma companheira, que é a vida privada oferecida pela própria pessoa exposta. Nesta, naturalmente, não há violação, mas permanece o produto: vida privada planejada e oferecida pela pessoa dona da imagem sozinha ou cercada de parceiros comerciais. Repito: é um produto bem conhecido e rentável. Por exemplo, fotos de bebês recém-nascidos, filhos de celebridades rendem milhares (e até milhões) de dólares para os felizes papai e mamãe. __________1"A civilização do espetáculo", Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, pág. 140. 2Necedade: extrema ignorância ou estupidez. 3Idem, mesma pág. 4No original: "Rear window", produção de 1954. Posteriormente, em 1984, Brian de Palma fez uma homenagem a Hitchcock e também se inspirou no "Janela indiscreta" para fazer seu filme "Dublê de corpo" (No original: "Body Double"). 5Philippe Marion, "Clichés de paparazzi em campagne", Louvain-la-neuve, outubro de 1997 apud Ignacio Ramonet, A Tirania da Comunicação. Petropolis: Vozes, 5ª. Edição, 2010, pág. 11. Grifos no original. 6Ignacio Romanet, obra citada, pág. 10, grifei.
Trato deste assunto mais uma vez pela importância que ele tem não por sua existência no Brasil, mas porque demonstra os modos de controle que o mercado exerce sobre os consumidores em geral, bem como a dificuldade que existe para a tomada de consciência da possibilidade de libertação das amarras tão bem engendradas pelo capitalismo contemporâneo. Pois bem. Vem aí mais um dia das bruxas. Ao que parece, já é parte do calendário comercial e, o pior de tudo, é que muitas escolas aderiram! Halloween no Brasil? São as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma gorda receita, vendendo bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. É verdade que algumas escolas, não conseguindo fugir do evento, estão começando a fazer atividades didáticas e lúdicas, sem o emporcalhamento de doces e guloseimas oferecidos em grandes quantidades e sem nenhuma função de educação ou saúde. Mas, é pouco, pois, infelizmente, tudo indica que o tal dia das bruxas, famoso nos Estados Unidos, instalou-se entre nós, alegre (ou macabro) e impunemente. Tive oportunidade de mostrar que Ignácio Ramonet, no livro Guerras do Século XXI (Petrópolis: Vozes,2003), diz que o novo sistema de controle dos grandes países poderosos não é mais o de territórios, mas o de mercados. Aliás, são as grandes corporações que controlam as forças internas desses países desenvolvidos pela via do mercado, de modo que elas e esses países visam por esse meio (o do mercado) ao controle dos mercados (e das sociedades) do mundo inteiro. Essa forma de domínio, no final do século XX e início do XXI, passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração. Pensemos a questão do Halloween no Brasil. O que, afinal de contas, as crianças brasileiras têm a ver com essa festa pagã? Nada. Trata-se de uma importação sem qualquer fundamento ou justificativa local. É agora apenas algo que o mercado deseja. Para se ter uma ideia do que está em jogo, nos Estados Unidos, a festa do terror, das bruxas e dos fantasmas já se tornou o segundo maior momento de faturamento do mercado, perdendo apenas para o Natal. Lembro da reclamação de meu amigo Outrem Ego: já há quatro anos no fim de outubro, ele estava na casa de parentes num condomínio fechado do interior de São Paulo, quando bateram à porta crianças fantasiadas de bruxas, caveiras, duendes e o que o valha. A porta foi aberta e eles disseram: "travessuras ou gostosuras". E lá foram os parentes de meu amigo entregar saquinhos que tinham previamente preparado com doces, balas e chocolates. E depois daquelas crianças vieram muitas outras. "Uma grande bobagem", reclamou. Na época, depois dele me contar o episódio, eu, brincando, objetei que também tínhamos a Páscoa e mais ainda o Natal, este que, por muitos anos - e ainda até hoje - faz, por exemplo, com que comamos, em pleno calor tropical, comidas gordas, doces, frutos secos, nozes etc., alimentos típicos de lugares frios, de onde a festa foi importada. "É verdade", disse ele. "Mas, isso se deu em outros tempos. Eu pensava que atualmente nós pudéssemos lutar contra esse tipo de imposição; que poderíamos resistir". "E neste ano", disse meu amigo, "foi pior". "Eu estava, no dia 26 passado, um sábado, coincidentemente na casa do mesmo parente, quando surgiram novamente as crianças. Tocaram a campainha, eu atendi e vieram três meninas com idade entre sete e nove anos pedindo doces. Como eu não tinha, disse-lhes e elas foram embora, não sem antes jogarem papéis picados e uma espécie de serragem que traziam num saquinho sobre meu automóvel. Elas avisaram que fariam travessuras... Mas, sabe o que é pior mesmo: é o fato de que não era dia 31 de outubro, o dia do tal do Halloween. Foi como se aquelas crianças estivessem comemorando o Natal no dia 20 de dezembro. Bem, como a festa não tem sentido, tanto faz né"? Realmente, a conscientização a respeito do controle exercido pelo mercado, algo que vem se esboçando desde fins do século XX, ainda é pequena. O consumidor, considerado como tal - o que ficou bem estabelecido a partir da mensagem enviada ao Congresso Americano em 15-3-1962 pelo então Presidente John Kennedy - pôde começar a se perceber como alvo dos fornecedores em geral e até do próprio Estado produtor. E, assim, aos poucos, passou a reclamar e reivindicar direitos. Passou a poder resistir às tentações e determinações unilaterais. Mas, ainda não consegue fazê-lo em larga escala. Aliás, essa questão do Halloween no Brasil oferece uma boa oportunidade para o exame de como as coisas são feitas. É que estamos ainda no nascedouro de uma imposição mercadológica. No meu tempo de criança ou adolescente (há quarenta anos) seria impensável um dia das bruxas no Brasil. Não sei quando começou. Mas, possivelmente há cerca de dez ou quinze anos, alguma escola de inglês deve ter feito a programação para seguir o ritual norte americano. Depois, no ano seguinte mais um escola e mais outra etc. Com a importação via tevê à cabo e também tevê aberta de cada vez mais enlatados americanos que reproduzem a festa (Basta ficar com o exemplo famoso do grande filme de Steve Spielberg, ET, no qual o evento é retratado), aos poucos, os brasileiros foram se acostumando com a festa, como se ela também fizesse parte de nossa realidade. Daí, mais um ano, e a festa foi feita em escolas; depois em baladas de adultos e, enfim, chegou o momento em que parece que ela tem a ver conosco. Atualmente, nas tevês a cabo, nos canais de programas infantis, são apresentados programas específicos somente sobre a festa. Evidentemente, o mercado, sempre de olho nas oportunidades, deu sua contribuição e eis que temos entre nós crescendo vigorosamente uma festa importada, sem qualquer fundamento cultural e mesmo sem sentido ritualístico. Dá para resistir? No Estado de São Paulo e também na capital, há leis oficializando o dia 31 de outubro como o Dia do Saci, como uma tentativa de se opor ao Dia das Bruxas, uma vez que o Saci é tipicamente Nacional, pertencendo a nosso folclore e tradições. Há também na Câmara Federal projeto de lei para instituir o Dia Nacional do Saci. São, penso, tentativas válidas. Mas, é pouco. A resistência real e que poderia funcionar deve vir do próprio consumidor, especialmente os pais, que podem explicar aos menores o que é a festa e porque não participar dos eventos. As escolas devem fazer o mesmo e, claro, os pais poderiam pressioná-las a não produzirem esse tipo de comemoração. Repito o que disse acima: se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas, nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e a obesidade infantil. O que conseguimos observar, é que cada vez mais nossa cultura (e a sociedade brasileira) vai cedendo espaço àquilo que não nos pertence. Aos poucos e continuamente, vamos preenchendo nossos espaços com tradições de outros povos - como já fizemos e muito -- e que, nesse caso, sequer é algo relevante, pois se trata de uma evidente imposição do mercado oportunista que, como já disse, só pensa em faturar. O processo é lento, mas constante. Aqueles que atuam no mercado são espertos o suficiente para entender um pouco a alma do consumidor e acabam descobrindo a necessidade de preencher os espaços existentes no lar, no convívio doméstico, na relação entre pais e filhos. Daí, na presente hipótese, oferecem, com essa estranha comemoração, mais uma boa desculpa de ocupação desse tempo, que fica, como quase sempre, intermediado pelo dinheiro gasto. É o consumismo enlatado e alienante, esteja ou não de acordo com nossas tradições e nossas leis.
Os consumeristas mais responsáveis têm insistido muito, e com razão, que é preciso modificar os hábitos de consumo. No que diz respeito às crianças, há oportunidades muitos eficazes e que podem, simultaneamente, servir como elemento de educação em sua ampla formulação: pessoal, social, ambiental, etc. Aproveito a data do dia das crianças para fazer uma reflexão e uma indicação. Primeiro, a reflexão. Meu amigo Outrem Ego contou que sua prima, uma professora, andava reclamando de que seu filho, um adolescente de 14 anos,  ganhou um ipad, mas não consegue se interessar pela história do Brasil apresentada nas aulas da escola. E que a irmã dele, com 12 anos, tem um iphone, mas diz que é uma chatice fazer cálculos matemáticos. Além disso, as duas crianças não saem da frente da tela do computador. Gastam a maior parte do tempo livre em jogos eletrônicos. É, de fato, nos dias atuais, como já tive oportunidade de referir, o mercado de consumo é um forte inimigo das relações entre pais e filhos. Mas, como sempre gosto de lembrar, os pais têm também boa parcela de responsabilidade na questão. Não á fácil mesmo lutar contra o mercado e tudo que o cerca, mas com alguma imaginação, pesquisa e criatividade é possível obter bons resultados com coisas simples - e baratas! Uma maneira muito boa de interação é a utilização de jogos, alguns milenares.  Ao invés de deixar o filho por horas a fio e solitariamente na frente da tela, é útil chama-lo a participar de jogos muito conhecidos e interessantes. Os jogos de baralho, por exemplo, são divertidos, clamam por inteligência e cálculos e propiciam experiências de interações pessoais bastante agradáveis.  Dominó, damas, xadrez são outros exemplos que têm a mesma função e qualidade. O jogo de pega-varetas é ótimo para a atenção, o controle e o equilíbrio e integra a família. E sabe o que esses jogos têm também em comum? O preço e a durabilidade. São baratos e duram muito tempo. Não é à toa que o mercado não goste muito deles e nem os estimule. Para não se desprezar totalmente o mercado, anoto que há sim alguns produtos que conseguem cumprir essa função de interação, divertimento e aprendizado. São, por exemplo, os que devem ser jogados em grupo, com propostas de desafios, estratégias, perguntas e respostas, adivinhações, etc. Basta uma pesquisa na web ou nas lojas para encontrar esses produtos, sempre lembrando que é preciso observar a idade para a qual eles foram projetados. Claro que não há qualquer problema em assistir filmes na tevê ou vídeo com os filhos e também brincar com eles na web, mas é preciso realçar que alguns desses jogos básicos e antigos geram um modo de interação muito superior e, como disse, alguns são muito baratos e têm alta durabilidade. Agora, a indicação. O Instituto Alana, que, dentre suas atividades, luta pelos direitos das crianças e dos adolescentes, tem um programa intitulado "Troca de brinquedos". No seu site, o Instituto ensina como montar uma Feira de Troca de Brinquedos, algo que pode ser muito salutar para as crianças, para os adolescentes e também para seus pais. Como diz o Alana, essas Feiras "são uma maneira engajada e divertida de repensar a forma como consumimos, envolvendo adultos e crianças na prática desta reflexão". Como funciona?  Escreve o Alana: "A feira de troca de brinquedos pode acontecer em locais diferentes: um parque, uma escola, um condomínio, uma ONG, uma igreja, uma praça do bairro. O importante é que o lugar escolhido seja amplo e agradável, que permita às crianças não apenas trocar os brinquedos, mas também experimentá-los enquanto brincam durante o evento".  Diz mais: "Ao realizar a feira em um parque ou uma praça, tenha em mente que outras crianças que estiverem ao redor podem querer participar e não terão brinquedos para trocar. Fique atento: talvez seja necessária a mediação de um adulto para que a criança que não levou brinquedos seja sempre bem-vinda. Os outros locais sugeridos têm o ambiente controlado, uma vez que as crianças que ali chegaram foram pelo mesmo motivo: a troca".  Um alerta importante: "As Feiras são realizadas exclusivamente para troca - não devendo haver compra ou venda de produtos. Esses eventos são um exercício de desapego e podem contribuir para a formação de valores menos materialistas em tempos de consumo sem reflexão".  Realmente. Esse tipo de empreitada tem o efeito didático de ajudar a colocar um freio no consumismo, pois ensina para as crianças que se divertir com e a partir de brinquedos não implica necessariamente ir a mais uma loja ou shopping fazer compras. E, penso que uma das questões mais importantes que aparece num mercado de trocas é o enriquecimento das crianças e adolescentes para a vida adulta, repleta de desafios. Um garoto chega com seu carrinho para fazer a troca, porque desistiu dele. Não quer mais com ele brincar. Na feira, depois de olhar as ofertas, decide por um jogo e oferece seu carrinho em troca, mas o outro garoto que está se desfazendo do jogo não gostou do carrinho.  Pode ser que haja necessidade de intervenção de um adulto para que a negociação seja concluída e até que ela se dê numa triangulação com outra criança. Mas, a experiência é válida. Aliás, no site do Alana, há dicas para agir em situações como essa e em outras. Quem estiver interessado em promover uma dessas feiras, pode acessar o site do Alana para descobrir como fazer. Que tal, então, oferecer para os pequenos diversão familiar e barata, ficando próximo deles e/ou também propiciar novas experiências enriquecedoras?
quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O consumidor atordoado e a comunicação social

Meu amigo Outrem Ego tem várias teorias a respeito do funcionamento do mercado em nossa sociedade capitalista. Uma delas diz respeito ao jogo das contradições e paradoxos. "É proposital", diz ele. "Muitos dos mecanismos de comunicação implantados servem apenas para nos confundir e atordoar. Cansados, nós acabamos fazendo o que eles querem. E muitas vezes, o próprio Estado contribui para tanto". Ele dá alguns exemplos. Veja este das pastas de dentes e seus anúncios: a Colgate diz que seu creme dental é "A marca nº 1 em recomendação dos dentistas". A Sensodyne diz que "Nove entre dez dentistas recomendam Sensodyne". A Oral B, por sua vez, para falar de sua pasta de dentes, diz que ela é "A mais usada pelos dentistas". Ou seja, segundos esses fabricantes, os dentistas preferem Colgate, recomendam Sensodyne, mas somente usam Oral B. Daí, com razão, indaga meu amigo: "Afinal, trata-se de publicidade enganosa? Ou será que eles gostam de nos confundir? Ou, então, os dentistas é que são muito atrapalhados?" Realmente. Examinemos, agora, um outro caso, de maior complexidade e que tem consequências mais graves: o das bebidas alcóolicas. A lei Federal 9.294/96, como se sabe, fixou restrições ao uso e à publicidade de produtos fumígeros, bebidas alcóolicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas e em seu art. 4º definiu: "Somente será permitida a propaganda comercial de bebidas alcoólicas nas emissoras de rádio e televisão entre as vinte e uma e as seis horas"1. Essa lei, no entanto, no parágrafo único de seu artigo 1º, definiu que, para seus efeitos, as bebidas alcoólicas são "as bebidas potáveis com teor alcoólico superior a treze graus Gay Lussac". Ora, essa limitação deixou de fora do âmbito da lei muitos vinhos (que têm teor alcóolico abaixo dos 13 graus) e todas as cervejas, cujo teor alcóolico varia, como regra, de 2,5 e 5 graus apenas. E é aqui no caso das cervejas que morava, como mora, o perigo. Desde que eu era menor de idade, nós sabíamos que cerveja era bebida alcóolica. Mas, o que podemos fazer se o legislador diz que não? Claro, vai se dizer que a cerveja não é bebida alcoólica apenas para fins de publicidade na tevê. Sim, sim, bom argumento. Logo, cerveja é e também não é bebida alcóolica... Vejamos agora a lei penal. O art. 63, inciso I da lei das Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688/1941) dispõe: "Art. 63. Servir bebidas alcoólicas: I - a menor de dezoito anos; (...) Pena - prisão simples, de dois meses a um ano, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis". Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - lei 8.069/1990), disciplina matéria relacionada ao tema. No artigo 81, proíbe a venda de bebidas alcóolicas a menores: "Art. 81. É proibida a venda à criança ou ao adolescente de: (...) II - bebidas alcoólicas;" E, no art. 243 tipifica um crime, nesses termos: "Art. 243. Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida: Pena - detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave" Embora não seja o foco deste meu artigo, anoto que, para aqueles que pensam que convivem tranquilamente esses dois diplomas legais nesse ponto, há várias decisões judiciais entendendo que servir bebida alcoólica à menor de idade é contravenção penal, não incidindo na espécie o crime do art. 243 do ECA2, pois "a distinção estabelecida no art. 81 do ECA das categorias 'bebida alcoólica' e `produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica' exclui aquela do objeto material previsto no delito disposto no art. 243 da lei 8.069 /90"3. E mesmo deixando de lado a questão estritamente jurídica, há de se convir que, para que uma bebida alcoólica possa causar dependência física ou psíquica, não basta tomar uma lata de cerveja ou um copo de vinho. A maior parte das pessoas convivem socialmente e muito bem com esse tipo de bebida sem se tornar "dependente". Mas, voltemos ao ponto que aqui me interessa: o da publicidade. A Ambev lançou o movimento + ID: uma campanha publicitária para estimular que os vendedores de bebidas alcoólicas peçam o documento de identidade para os consumidores. O ícone está presente em várias peças e ações do "Programa Ambev de Consumo Responsável". Como diz a empresa: "Lembrar que bebida alcoólica não é para menor de idade. Esta é a função do Movimento +ID". É importante notar que se trata de publicidade de cerveja. Aliás, a publicidade ao mesmo tempo fala da cerveja e da limitação, não deixando de fazer o anúncio da cerveja. As imagens são bonitas, as pessoas idem (aliás, jovens de bem com a vida, divertindo-se como sempre) e chega um rapaz pedindo uma cerveja, momento em que o atendente pede o documento de identidade. Naturalmente, ninguém pode ser contra uma campanha que esclareça o que diz a lei... Quero dizer, junto com meu amigo Outrem Ego, mas o que diz mesmo a lei? Se a própria Ambev reconhece que cerveja é bebida alcoólica, então, deveria deixar de fazer anúncios entre as 21 horas e as 6 horas da manhã. Ou não? Esse tipo de "campanha" de engajamento tráz várias vantagens de imagem para as empresas. De um lado, dão um ar de respeito e interesse social por parte delas. De outro - como nesse caso do movimento +ID - ajudam a promover os produtos. Belas imagens que devem fazer os garotos de 17 anos ficarem torcendo para chegarem logo aos 18... Como perguntou meu amigo O. Ego: "Não seria muito mais producente e de interesse social simplesmente não fazer mais publicidade de cerveja no horário em que a maioria dos menores e adolescentes assiste à tevê?". Realmente. Ou como diz a psicóloga Ilana Pinsky "qualquer pessoa que já tenha assistido a alguma propaganda de álcool na televisão brasileira, verifica a agressiva utilização da sexualidade nas propagandas, especialmente no caso da cerveja. Também é fácil verificar que os (muito) jovens são certamente alvos das propagandas, com temas evidentemente voltados a eles (ex: desenhos animados, festas rave, etc.). Além disso, as indústrias têm desenvolvido produtos voltados a essa faixa etária (os produtos "ice", destilados misturados com refrigerantes ou sucos), e oferecido patrocínio a festas exclusivamente desse público-alvo (ex.: Skol Beats). Mas tão importante como as estratégias descritas acima, é a utilização do Brasil e de símbolos nacionais para a venda de álcool. Um exemplo bem recente e evidente dessa técnica ocorreu durante [a realização] Copa Mundial de Futebol, com a criação de uma tartaruga de desenho animado associada a uma marca de cerveja que foi denominada a "torcedora símbolo da seleção brasileira". Algumas marcas de cachaça também têm se utilizado de características fortemente brasileiras, como o samba, para vender seus produtos4". Realmente. E, a propósito. Se a indústria cervejeira quisesse mesmo proteger os jovens de suas bebidas alcoólicas não contrataria seus ídolos para promovê-las, tais como Ronaldo (Brahma), Romário (Kaiser), Junior (Antártica), Cafu (Brahma), Gerson (Vila Rica). Nem fariam propagandas sexistas utilizando mulheres como objeto na maior parte dos comerciais, o que, além de tudo, colabora para a manutenção do preconceito machista reinante na sociedade (o que também comprova, como eu já disse mais de uma vez, a falta de imaginação dos realizadores). Engana-me que eu gosto! Nem entrarei neste artigo na questão do álcool e direção de veículos. Certamente, para os bafômetros cerveja é sim bebida alcoólica. Então, se todo mundo sabe que para ser bebida alcoólica, basta ter algum teor alcoólico, como pode uma lei dizer que não? Daí, se pode concluir que, segundo os fabricantes de cerveja, sua bebida é alcoólica. Porém, para a lei Federal não é. Os fabricantes querem proteger os menores, mas fazem anúncios publicitários massivos nos horários em que os menores assistem tevê. Assim, indago, parafraseando meu amigo Outrem Ego: "Afinal, trata-se de publicidade enganosa? Ou será que eles gostam de nos confundir? Ou, então, os fabricantes de cervejas e os legisladores é que são muito atrapalhados?".__________ 1Referida norma decorre dos termos do § 4º do art. 220 da Constituição Federal (CF), combinado com o § 3º, inciso II do mesmo dispositivo. Transcrevo-os a seguir: "Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (...) § 3º - Compete à lei federal: (...) II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. § 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso". 2Ementa: Apelação Criminal. Condenação. Fornecimento de bebida alcoólica a menor (Art. 243, ECA ).(...) De ofício. Desclassificação do tipo penal. Artigo 63, I, da Lei das Contravencões Penais. Precedentes. Nulidade de sentença. Remessa dos autos ao Juizado Especial. 2. A jurisprudência é pacífica no sentido de que a contravenção penal tipificada no artigo 63 , inciso I , do Decreto-Lei nº 3.688 /41, afasta a incidência da especialidade do Estatuto da Criança e do Adolescente , no que diz respeito ao crime do artigo 243 . Isto porque, diante de um simples cotejo entre os citados artigos, e ainda do artigo 81 , inciso II , do ECA , nota-se que o Estatuto prevê distintas nomenclaturas para o que se poderia entender por bebida. Naquele (artigo 243), a previsão é a de que produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ao passo que neste (artigo 81), a proibição de venda recai sobre bebidas alcoólicas. 3. A analogia in malan partem não é admitida pelo Direito Penal, restando impossível que se dê sentido ao crime do artigo 243 , do ECA , em análise ao artigo 81, II, do mesmo diploma legal. É por tal motivo e porque a contravenção penal mostra-se mais específica, que a desclassificação é medida que se impõe. (...). Recurso não conhecido, sentença anulada de ofício e determinação de remessa dos autos ao Juizado Especial.... (TJ-PR - 8589368 PR 858936-8 (Acórdão) Data de publicação: 29/3/2012). No mesmo sentido há várias decisões do mesmo Tribunal de Justiça e de Tribunais de outros Estados. 3Conf. Acórdão TJ/PR - Apelação Crime ACR 7043632 PR 0704363-2 - Data de publicação: 24/02/2011 .4In: artigo escrito em 14/4/2013; consultado em 30/9/2013.
Não é a primeira vez que trato do tema nesta coluna, mas, como os fatos se repetem, eu também me vejo obrigado a voltar a cuidar dos direitos dos consumidores nesse período de greve dos funcionários dos correios e dos empregados dos bancos. Evidentemente, todo dano causado aos usuários é de responsabilidade primeira da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor: ela responde pelos vícios ou defeitos de seus serviços, o que inclui, naturalmente, a ausência destes. E não há necessidade de que seja apurada sua culpa, eis que a sua responsabilidade é objetiva e decorre da exploração da atividade empresarial desenvolvida e seu risco. O empreendedor público, privado ou de atividade privatizada explora o mercado de consumo e a própria exploração da atividade gera risco social, independentemente de sua vontade. É lógico que, por exemplo, quando uma correspondência entregue pelo consumidor aos serviços do correio não chega a seu destino no prazo ou simplesmente se extravia, essa falha não se dá por interesse da empresa. Ela não decorre da vontade dos administradores da ECT, mas da atividade em si, eis que falhas sempre existirão no sistema de leitura ótica, na incorreta observação do pessoal que faz seleção dos envelopes e pacotes, no transporte etc. Portanto, o dano existirá, apesar da vontade em sentido contrário dos administradores e funcionários. A lei sabe disso. Ela sabe que, apesar do esforço do prestador do serviço, em algum momento, por evento imprevisto, o serviço falhará, causando danos ao consumidor. Naturalmente, a responsabilidade é a mesma na sua ausência, como a que ocorre no período de greve e que persistirá mesmo após seu fim por mais algum tempo até que o serviço se normalize. Por isso tudo, a lei estabeleceu a responsabilidade objetiva. Basta a constatação do serviço contratado e seu defeito para que possa ser pedida indenização. De fato, a ausência de um serviço como o dos correios sempre gera danos em larga escala, atingindo fornecedores e consumidores. Para o funcionamento dos serviços massificados, como os de telefonia, tevês a cabo, cartões de crédito, empréstimos bancários, etc. é fundamental o serviço dos correios. Isto porque, é através dele que a maior parte dos milhões de faturas é entregue mensalmente para pagamento. Entretanto, o não recebimento de uma fatura não retira a responsabilidade do consumidor em pagá-la no prazo se o credor manda as faturas pelo correio mas, simultaneamente, coloca à disposição do consumidor outro modo de quitar o débito. Cabe ao fornecedor entregar as faturas antes da data do vencimento. Todavia, com a paralisação dos serviços do correio, a entrega fica prejudicada. O fornecedor, então, tem que oferecer uma alternativa de pagamento ao consumidor. As segundas vias devem ser oferecidas via fax, e-mail, acesso ao site, por ligação telefônica, etc. Se essas segundas opções são oferecidas, cabe ao consumidor utilizá-las para o pagamento da dívida. Aliás, é bom também lembrar que mesmo quando os serviços dos correios não estão paralisados, isso não impede que alguma correspondência não seja entregue. Logo, até fora desse período crítico, pode acontecer de o consumidor não receber fatura para pagamento dentro do prazo ou simplesmente não recebê-la. Mas, de outro lado, se o consumidor não recebe a fatura para pagamento nem tem à sua disposição outro meio para fazê-lo, não se pode imputar a ele a responsabilidade pela quitação da dívida no prazo. Não tem sentido culpá-lo pelo que ele não fez. É risco do fornecedor entregar a fatura com tempo suficiente para pagamento, risco esse que não pode ser repassado ao consumidor. Todavia, como sempre digo, não é fácil para o consumidor, nessa questão, se proteger. Para eventualmente tentar não ser responsabilizado, o consumidor tem que provar que não recebeu a fatura, o que é muito difícil de fazer quando ela não é entregue. Dá para fazer a prova, por exemplo, se o consumidor avisou por escrito seu novo endereço para recebimento da fatura e ela foi enviada ao antigo ou quando o próprio correio coloca carimbo de entrega atrasada (Nesse caso, é a ECT quem deve ser responsabilizada pelo atraso). No entanto, afora esses tipos de exceções, o consumidor acaba sendo responsabilizado pelo atraso. Por isso, é que se aconselha que o consumidor mantenha uma agenda com datas dos vencimentos de suas faturas regulares. Se, até a véspera do vencimento, ainda não recebeu alguma, então, ele pode e deve entrar em contato com o credor, solicitando segunda via. Essa é uma regra geral para o dia a dia de todos os consumidores que, evidentemente, nesse período de greve, deve ser imediatamente seguida. (Anoto que, para aquele que não faz esse tipo de controle, a saída é pegar as contas do mês anterior, ver as datas dos vencimentos e checar o prazo que existe para pagá-las). Atualmente, todos os grandes fornecedores mantêm Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) e/ou sites, nos quais é possível obter uma segunda via da fatura. Se o credor não tiver esse tipo de serviço, como já disse acima, ele é obrigado a dar outra alternativa para pagamento, como, por exemplo, envio do boleto via fax ou apresentação de dados bancários para depósito em conta (número de conta corrente, banco e agência, número do CNPJ - se for pessoa jurídica - ou CPF - se for pessoa física). Repito: se o credor não der alternativa, o consumidor não pode ser responsabilizado pelo atraso. Para piorar o quadro, está em curso outra greve, esta no sistema bancário. Apesar das opções que, no caso, os consumidores têm - mas não todos - de pagamentos via web e casas lotéricas, valem as mesmas regras de proteção ao consumidor que acima transcrevi. O que se espera, é que os fornecedores não cobrem multas daqueles que, eventualmente, pagarem suas faturas fora do vencimento no período de greve, pois não se pode responsabilizar o consumidor que pretende pagar suas dívidas se ele não tem como fazê-lo.
Algumas semanas atrás, em meio às manifestações de rua que reivindicavam um país melhor, a palavra "alvissareiro" podia ser vista pipocando aqui e ali. O termo "alvissareiro" tem origem na junção da palavra "alvíssara" com o sufixo "-eiró". Como adjetivo, refere-se à qualidade ou condição do que é promissor, do que promete ou dá esperanças, boas notícias, etc. Como se sabe, como adjetivo, ela anuncia boas novas, o que é auspicioso, promissor. Enfim, é algo que promete um futuro melhor. Enche-nos de esperança. Bem. Na semana passada, a palavra me surgiu à mente de novo. É que li que as Medidas Provisórias só poderão tratar do seu assunto principal e não mais de temas acessórios, cumprindo, na verdade, a legislação já vigente (LC 95). Os líderes partidários e o presidente da Câmara, deputado Henrique Eduardo Alves, decidiram no dia 10 p. p. que a Medida Provisória só poderá tratar do seu assunto principal e não mais de temas acessórios. Eu já tive oportunidade de tratar dessa questão, que deveria simplesmente nem existir, pois a lei é clara a respeito. Lembremos os pontos principais, com exemplos do direito do consumidor. Com efeito, "acostumou-se" por aqui a produzir leis com um objetivo expresso e declarado e, aproveitando a oportunidade, colocar em vigor normas cuidando de assunto diverso (e muito diverso!). Em matéria de direito do consumidor, tal conduta já foi adotada mais de uma vez. A doutrina e também algumas decisões judiciais têm deixado claro que a prática é inconstitucional por violação à LC 95 de 26/2/1998. Sem entrar na discussão sobre a existência ou não de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, eis que não interessa especificamente para a solução do problema nem a modifica, fico apenas com uma das posições possíveis que é a de que, a partir de 5 de outubro de 1988, quando entrou em vigor a nova Carta Constitucional, não há mais que se falar em hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, isto é, a lei complementar não determina as condições de validade da lei ordinária. No entanto, apesar de não ser condicionante em função do conteúdo, ao menos uma lei complementar, a citada LC 95, exerce controle no modo de produção das demais leis, por se tratar de norma geral dirigida ao próprio legislador. O texto constitucional dá mais, digamos assim, "peso" normativo à lei complementar, reservando para ela temas legislativos de relevo. As leis complementares têm como função tratar de certas matérias que a Constituição Federal entende devam ser reguladas por normas, cuja aprovação exija controle mais rígido dos parlamentares. Por isso, o quorum legislativo exigido para sua aprovação é especial; é o da maioria absoluta (CF, art. 69: "As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta"). E as matérias para as quais é feita essa exigência de votação aparecem taxativamente no texto constitucional. Por exemplo, o art. 93, que trata do Estatuto da Magistratura; o art. 131, que disciplina a Advocacia Geral da União; o art. 192, que cuida do sistema financeiro nacional, etc. Portanto, o que diferencia a lei complementar da ordinária é a matéria específica e o quorum qualificado de aprovação para as leis complementares e não exatamente uma posição hierárquica. Remanesce, também, uma dúvida, às vezes apontada pela doutrina, em relação ao tema da hierarquia, por conta da existência de uma específica LC, a suso apontada de 95, que dispõe sobre a elaboração e consolidação das leis. E, em função do conteúdo dessa norma, argumenta-se que ela teria que ser hierarquicamente superior às leis ordinárias, para que estas a pudessem obedecer. Penso que esse argumento é inconsistente. Em primeiro lugar, se isso fosse verdade, ao menos um tipo de norma não precisaria obedecê-la: exatamente as demais leis complementares, que estão no mesmo patamar, mas não é isso que se espera, conforme veremos. Em segundo lugar, não é o conteúdo da norma que define sua hierarquia, mas sua posição jurídico-política aceita historicamente pelos operadores do direito e em geral por toda a sociedade. A citada LC 95 é norma de organização. Diz como o próprio legislador deve produzir um texto de lei, separando-o por capítulos, artigos, parágrafos etc. De fato, haverá conflitos - como há - entre essa norma complementar e outras normas do sistema, na medida em que o legislador não a siga à risca. No entanto, a solução do conflito, se puder ser dada, não se fará pela via da hierarquia, mas sim pela da solução interpretativa sistêmica. O intérprete terá de verificar se o sistema, dando qualificação especial de conteúdo à lei complementar, traz solução capaz de adequar os dois tipos de norma. Não se trata, portanto, de um problema de hierarquia, mas de diálogo. É caso do já conhecido diálogo das fontes, tema bastante atual e necessário ao exame dos novos modelos jurídicos vigentes no mundo contemporâneo, como ensina com muita precisão em suas obras a Profª. Cláudia Lima Marques. Ora, a lei complementar 95 é verdadeira lei geral de elaboração e consolidação das leis. Veja o que diz seu art. 1º e parágrafo único: "Art. 1º - A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta lei complementar. Parágrafo único. As disposições desta lei complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo". E uma das importantes funções e, talvez, a principal, é aquela estabelecida no art. 7º. Extrai-se da teleologia desse artigo o claro intuito de impedir uma prática escusa que consiste em se aprovar uma lei, cuidando de determinado assunto e, "escondido" entre seus artigos, colocar-se outro tema totalmente desconectado do objeto da norma editada. O texto do art. 7º é preciso nesse sentido: "Art. 7º - O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa". Antes de prosseguir, chamo atenção para o fato de que, como acima pode ser lido, é o art. 1º de qualquer lei que indica seu objeto e seu âmbito de aplicação. É importante atentar para esse ponto. Vejamos em exemplo na área do direito do consumidor: o caso da Medida Provisória 1.963-17, de 30 de março de 2000, sucessivamente reeditada até a Medida Provisória 2.170-36 de 23 de agosto de 2001. Ela, de forma mascarada, acabou por permitir a capitalização de juros, o que, como se sabe, com o alto índice percentual praticado, é um desastre para todos aqueles que tomam dinheiro emprestado. Vejam o que diz o art. 1º dessa MP: "Art. 1º - Os recursos financeiros de todas as fontes de receitas da União e de suas autarquias e fundações públicas, inclusive fundos por elas administrados, serão depositados e movimentados exclusivamente por intermédio dos mecanismos da conta única do Tesouro Nacional, na forma regulamentada pelo Poder Executivo". Mas, eis que, de repente, no art. 5º "caput" constou: "Art. 5º -  Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano" Esse modo de criação legislativa ao que se diz, visa, se não enganar os destinatários, ao menos ocultar da população e retirar do debate aberto questões de relevo. Na verdade, esse tipo de produção legislativa põe à mostra o poder de pressão dos grupos de interesse que atuam nos bastidores do sistema. Deu-se o mesmo com a Medida Provisória 1.925/99, que foi convertida na lei 10.931/2004. Esta institui o "regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação" (art. 1º). Essa lei, com esse objeto, também de forma sub-reptícia, nos arts. 26 e s., criou a cédula de crédito bancário, um título de crédito a ser utilizado por instituições financeiras em operações de crédito, ou seja, um novo objeto diferente daquele instituído por ela. É verdade que o art. 18 da LC 95 diz que "eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento". Mas, claro, essa não é a hipótese das normas apresentadas. Entende-se por inexatidão formal mero erro que seja incapaz de desnaturar a norma, como, por exemplo, um parágrafo estar numerado erradamente ou artigos com números repetidos, etc. A notícia que citei no início deste artigo é mesmo, portanto, alvissareira. Há que se acabar com essas normas feitas de contrabando. Aliás, cumprindo regra fixada paradoxalmente pelo próprio Poder Legislativo num momento de alta sabedoria (Ao editar a LC 95!). Dizem que o Brasil é o país do futuro. Os pessimistas analisam a frase dizendo que acreditar nela é manter o país estagnado, pois como o futuro não existe, fica-se apenas esperando ele chegar sem nada fazer. Os otimistas, de outro lado, dizem que ela impulsiona a imaginação, ajudando o país a ir para a frente em busca de algo melhor. Os sinais apontam às vezes numa direção, às vezes n'outra. Neste momento, vivemos tempos alvissareiros (ou não?). O futuro dirá!
quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O direito de sonhar

Ontem o Código de Defesa do Consumidor fez 23 anos de existência, editado em 11/9/1990. Foi uma luta aprová-lo, mas ele acabou surgindo, tardiamente, mas veio. Nasceu no século XX, muitos anos atrasado. Para ser ter um ideia do tempo, nos Estados Unidos - o país que lidera o capitalismo contemporâneo - a proteção ao consumidor havia começado em 1890 com a lei Sherman, que é a lei antitruste americana. Isto é, exatamente um século antes do nosso CDC, numa sociedade que se construía como sociedade capitalista de massa, surgia uma lei de proteção ao consumidor. É verdade que, mesmo lá, a consciência social e cultural da defesa do consumidor ganhou fôlego maior a partir dos anos 1960, especialmente com o surgimento das associações dos consumidores com Ralf Nader. Ou seja, o verdadeiro movimento consumerista (como se costuma chamar) começou para valer na segunda metade do século XX. Mas é importante atentarmos para essa preocupação existente já no século XIX com a questão do mercado de consumo, no país mais poderoso do mundo. Por outro lado, como se sabe, nossa lei consumerista, apesar de tardia - e em parte por causa disso - acabou incorporando várias normas modernas protecionistas e isso gerou resultados altamente positivos a favor dos consumidores e do próprio mercado produtor. O CDC foi um sonho que se realizou e que dá frutos diariamente. Ele gerou mais igualdade, trouxe harmonia às relações jurídicas, fez com que o resultado das transações fosse mais honesto, enfim, é um marco da evolução jurídica no país. Naturalmente, falta muito, até por que uma única lei não poderia resolver todas as mazelas sociais perpetradas pelo capitalismo da última geração globalizada e dominada por empresários com monstruoso poder de fogo. Mas, os consumeristas sonham ainda mais e lutam para implementar os objetivos de conseguir obter um sociedade mais humana e justa. Pensando no tema, lembrei do texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano sobre o direito de sonhar, que ele intitula mais poeticamente de direito ao delírio. Trata-se de um maravilhoso texto extraído de um de seus livros. Não fala só de capitalismo, mas como este, de algum modo, está no centro de quase tudo, eu o transcrevo abaixo para nosso deleite. Vale a pena lê-lo. Quem quiser assistir ao próprio escritor declamando a poesia, pode acessar: clique aqui. (É muito bonito!) Eis: O direito ao delírio1 Por Eduardo Galeano Que tal se delirarmos por um tempinho? Que tal se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia para imaginar outro mundo possível?O ar estará limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das humanas paixões.Nas ruas os automóveis serão esmagados pelos cães. As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelos supermercados, nem serão também assistidas pelo televisor.O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas.Será incorporado aos códigos penais o delito de estupidez, que cometem os que vivem para ter ou para ganhar, em vez de viver por viver e só. Assim como canta o pássaro, sem saber que canta, e como brinca a criança, sem saber que brinca.Em nenhum país irão presos os rapazes que se neguem a cumprir o serviço militar, mas os que queiram cumpri-lo.Ninguém viverá para trabalhar, mas todos nós trabalharemos para viver. Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo; nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas.Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram que as fervam vivas.Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos. Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas. A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude e ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo. A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento nem por fortuna se converterá o canalha em um virtuoso cavalheiro. A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio.Porque a comida e a comunicação são direitos humanos.Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.A educação não será o privilégio daqueles que possam pagá-la, e a polícia não será a maldição de quem não pode comprá-la.A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, bem grudadinhas, costas contra costas.Na Argentina, as loucas da "Praça de Maio" serão um exemplo de saúde mental,porque elas se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória. A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das Tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará festejar o corpo. A Igreja também proclamará outro mandamento que Deus havia esquecido: "Amarás a natureza da qual fazes parte". Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma. Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de muito, muito esperar e eles se perderam de muito, muito procurar. Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido quando tenham nascido e tenham vivido onde tenham vivido, sem que importe nenhum pouquinho as fronteiras do mapa nem do tempo. Seremos imperfeitos porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégio dos deuses.Mas neste mundo, neste mundo desajeitado e fodido, seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última. __________ 1É trecho do livro "Patas Arriba": Buenos Aires, dezembro de 1998, ps. 222/224. O trecho do livro traduzido para o português pode ser encontrado na web. Este eu extraí do vídeo citado acima.
Estou espantado - ou melhor, continuo espantado - com o desconhecimento de muitos consumidores sobre as propriedades e funções dos produtos alimentícios, a despeito de todas as informações que são lançadas via imprensa escrita, falada, nos portais da internet, etc. Enquanto isso, as pessoas continuam engordando mal (não há qualquer  problema em estar acima do peso esperado para a idade, estatura, gênero, desde que se tenha saúde) com sérios problemas para sua qualidade de vida. E, por outro lado, é também sabido que é possível alimentar-se bem e com prazer sem qualquer prejuízo à saúde. Muito bem. Na semana passada foi publicada uma pesquisa que mostrou que, em 2012, 51% da população brasileira estava acima do peso1. Os dados apresentados demonstram que a taxa de sobrepeso vem crescendo constantemente, ano a ano. Em 2006, o percentual dos mais gordos era de 43%. Já em 2011 passou a 48,5% e chegou à maioria agora em 2012. A pesquisa mostrou mais ou menos o óbvio: que a dieta alimentar inadequada é a causa principal do  problema. Constatou-se o consumo exagerado de gorduras e refrigerantes. Em  função da publicação da pesquisa, o Ministério da Saúde anunciou que tem projetos para combater os maus hábitos,  construindo polos com academias para incentivar a prática de exercícios e um programa de orientação nutricional para alunos da rede pública, além de acordos com a indústria para reduzir o teor de sódio nos alimentos. São ações bem-vindas, mas ainda é pouco. E falta conscientização dos consumidores, pois  pelo que se pode constatar, nesse assunto dos maus hábitos alimentares,  um dos grandes vilões é o próprio consumidor. O mercado está repleto de produtos alimentícios que "não alimentam" de verdade e engordam brutalmente, de anúncios publicitários que incitam a aquisição desses produtos e, infelizmente, milhões de consumidores estão acostumados a ingeri-los e até defendem  esse tipo de consumo. A pesquisa está centrada na população adulta, mas é sabido de todos que o problema do sobrepeso e também da obesidade começa bem mais cedo, na infância. Aliás, já mostrei aqui nesta coluna que a obesidade infantil é uma epidemia mundial2. Há, contudo, boas notícias. Na mesma semana passada, foi aprovado no Senado Federal o projeto apresentado pelo senador Paulo Paim (406 de 2005) que proíbe a venda em escolas públicas e privadas de bebidas com baixo valor nutricional, como o refrigerante, e de alimentos com alto teor de gordura e sódio, como os salgados. O projeto segue agora para a Câmara dos deputados. Esse tema dos alimentos de baixo teor nutritivo e repleto de ingredientes  que fazem mal ao organismo,  como sódio, açúcares, gorduras, conservantes, etc. deveria ser tranquilamente conhecido de todos os consumidores. Seu consumo excessivo deveria ser, realmente, evitado como algo óbvio. Mas, não é. Basta um único exemplo: o do incrível consumo de refrigerantes. São muitas as matérias científicas e jornalísticas que mostram os malefícios da ingestão desse tipo de bebida. E pelo que se pode ver, o correto é simplesmente deixar de tomá-la, pois ela somente faz mal. Como disse o pediatra e nutrólogo Fábio Ancona Lopes "Não há uma indicação de quantidade recomendada, simplesmente, porque ela não deve fazer parte do cardápio nem da rotina das crianças. Quanto menos ingerir, melhor"3. Um dos problemas  ligados aos produtos alimentícios a serem evitados é o da publicidade. Cito também e apenas um exemplo atual: o de um anúncio coca-cola que está sendo impugnado pelo site de abaixo-assinados change.org4. Diz a petição: "Pedimos a remoção imediata da campanha publicitária 'Energia Positiva' que está sendo veiculada pela Coca-Cola no Brasil em comerciais de televisão, cinema, outdoors, pontos de venda e plataforma online. Esta campanha foi proibida por órgãos do México e do Reino Unido por ser considerada enganosa e trazer riscos à saúde. A campanha transmite informações erradas aos consumidores, pois promove o consumo maior de calorias para ser gasto com diferentes atividades físicas, e ainda não deixa claro que esse produto contém sódio e outros aditivos químicos que podem acarretar em problemas de saúde. Este tipo de publicidade contribui para agravar a epidemia atual de sobrepeso e obesidade que a população brasileira está sofrendo"5. O outro é o do costume que já está incorporado ao cotidiano de hábitos alimentares. Se para os adultos é difícil largar o vício, para as crianças é pior ainda. Não é simples bolar estratégias para evitar esse tipo de consumo com os atrativos do mercado. Como mostrou a matéria publicada pela jornalista Sheila Fernandes, proibir a bebida talvez não seja a maneira mais eficaz de brecar o consumo exagerado. O hábito de beber refrigerante está enraizado na educação nutricional do dia a dia. A conscientização dos  pais é um caminho inicial a seguir: "As crianças aprendem por imitação. Elas gravam tudo e gostam de se comportar como os pais, ou seja, se os adultos consomem muito refrigerante, é bem provável que a criança também venha a consumir, por isso a educação nutricional desde cedo é importante", afirma Maria Edna de Melo, endocrinologista e diretora da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica)6. E ainda outro problema é o da influência do meio circundante: amigos, escolas, festas etc.. Nas festas infantis,  há uma enorme oferta de produtos da pior qualidade nutricional, como frituras, salgadinhos, doces, bolos, balas, refrigerantes e sucos adoçados etc.. É como se os pais entregassem seus filhos para experiências nutricionais sinistras. Os amigos, por sua vez, podem ajudar no exemplo de má nutrição, na medida em que os pais não têm como controlar os demais pais. Por isso é que a proibição de vendas de guloseimas e demais porcarias na cantinas das escolas está por demais atrasada. Alguns Estados brasileiros  têm legislação sobre o assunto, mas há que  se implantar a medida urgentemente em todo o país. Uma outra boa notícia: algumas escolas já adotam a oferta de produtos de alto valor nutritivo e baixam regras para evitar que seus alunos ingiram porcarias. Proíbem, por exemplo, que os pais enviem para o lanche doces, salgadinhos, refrigerantes etc. No entanto, você leitor, sabe o que muitas vezes acontece nessas escolas? Os pais reclamam! Isso, os pais podem ser um entrave para que os filhos se alimentem bem. Eu li, recentemente, na internet o relato de uma mãe protestando contra uma escola, porque esta estava proibindo que ela - mãe - mandasse guloseimas açucaradas e gorduras vazias na lancheira de seu filho. Ela, que se dizia  indignada, afirmou: "Quem manda no lanche do meu filho, sou eu". E justificou sua opinião com o argumento de que se tratava de um direito individual e que a proibição seria invasão de privacidade. Certamente, ela se esqueceu de que uma escola não é um lugar privado, mas público e que seu filho tem, diariamente, relação com seus demais colegas e amigos de sala e de toda a escola. Fiquei a pensar, o que ela diria - se não gostasse que se filho ingerisse porcarias - se o filho chegasse em casa com a boca repleta de chicletes que havia ganho dos amiguinhos ou se negasse a jantar porque estava empanturrado dos salgadinhos e refrigerantes que havia recebido de seu melhor amigo. Lembre-se que, como eu disse, se a escola é pública, o ambiente do lanche é o local de maior contato e divisão entre os alunos.  É lá que eles conversam, fofocam, disputam, trocam, ficam à vontade, enfim, se divertem. A proibição de venda de porcarias em cantinas é algo a favor da saúde das crianças e adolescentes. Serviria de exemplo, as educaria e também educaria e ajudaria aos pais, que ainda estão perdidos nesse assunto. Sei que há atualmente um problema invertido: o daqueles pais conscientes em relação à questão alimentar e dos menores submetidos  a  dietas  corretas por decisão dos pais ou intervenção médica. Como mostrei no meu artigo anterior sobre o assunto, o depoimento da Endocrinologista Pediátrica Dra. Soraya Cristina Sant'Ana,  me parece suficiente para esclarecer alguns dos pontos principais da questão. Diz ela: "Minhas crianças vivem esta batalha diariamente, pois muitas realizam consultas periódicas por obesidade, diabetes, colesterol ou triglicérides elevados. E não há nada mais frustrante do que nos depararmos com piora da obesidade e dos exames, após o empenho de toda família pela melhora da saúde da criança; e depois de uma conversa minuciosa, descobrirmos que apesar de todo esforço da família, a criança não melhorou porque continuou comendo guloseimas, escondido na escola. Ou então ouvir o choro de um garoto de 9 anos que chega a ser torturado com as guloseimas que seus amigos compram na cantina, ele conta que os outros meninos sabem que ele não pode comer guloseimas, então, de propósito eles compram e ficam passando os doces em seu nariz, para provocá-lo. Então, eu sei sim o quanto esta batalha contra a má alimentação é árdua e só está começando. E que, se não houver o apoio das escolas,  dificilmente atingiremos o sucesso!". Os produtores irão colaborar? De livre e espontânea vontade, duvido muito. Há que se legislar para se restringir a venda de alguns produtos em certos pontos (como as cantinas em escolas), fiscalizar e controlar as informações que são oferecidas, assim como o mecanismo do marketing e da publicidade. Naturalmente, cabe aos consumidores adultos adotar  um hábito alimentar mais saudável para si e para seus filhos menores. __________ 1Publicado, por exemplo, e por todos em www.g1.globo.com/bem-estar de 27/8/2013.   2Em novembro de 2012.   3Extraído da reportagem de Sheila Fernandes, de 12/8/2013).   4Do anúncio consta uma garrafa de Coca-Cola com o sinal de igual ao lado escrito a seguir: "123 calorias de energia positiva".   5In   6Extraído da matéria citada.  
Como o noticiário dos últimos dias (Talvez, para ser mais preciso, deveria dizer  "das últimas semanas") não para de falar de médicos, então, eu também resolvi voltar ao assunto e na ótica do direito do consumidor. E para começar com um assunto de última hora, antes de cuidar dos direitos dos consumidores em relação aos médicos e hospitais, devo dizer que fiquei perplexo com a declaração do presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, dr. João Batista Gomes Soares. Relativamente aos serviços que os médicos cubanos virão prestar  no Brasil, ele declarou: "Vou orientar meus médicos a não socorrerem(sic) erros dos colegas cubanos".  Jamais pensei que um representante da classe médica pudesse aconselhar que,  diante de uma falha de um colega, aquele que pudesse corrigi-la não o devesse fazer. São as vidas das pessoas que estão em jogo, ou não? É isso? Vendo um erro médico, seu colega deve fechar os olhos? Essa é uma afirmativa que viola as leis, as pessoas, o bom senso e até o juramento de Hipócrates, que, certamente, dr. João fez. Assim, como, ao que parece, o bom senso não está na ordem do dia e o esquecimento pode estar em voga, lembro na sequência alguns dos direitos e obrigações que envolvem o atendimento médico e hospitalar: os aplicáveis à relação médico-paciente no consultório e no hospital, assim como à relação paciente-hospital/clínica. Naturalmente, o respeito ao Código de Defesa do Consumidor e demais normas aplicáveis vale para os médicos brasileiros e para os estrangeiros que aqui estiverem trabalhando. Daí que,  de fato, o problema da comunicação entre o profissional e o paciente é algo que deve ser realçado e deve ser um dos primeiros entraves a serem superados. Às vezes,  até o médico brasileiro não se faz entender porque,  ao invés de utilizar uma linguagem direta e inteligível, adota jargões científicos que o cliente/paciente não compreende, gerando, só por causa disso, falha no serviço e até sérios danos. Vejamos, então, um panorama geral. Tanto no consultório como no hospital, o médico tem obrigação de prestar um atendimento adequado e dentro dos parâmetros legais. O médico é um prestador de serviço e,  como tal, deve fazê-lo de forma técnica compatível com sua especialidade, sem ações precipitadas ou omissões injustificadas. E, sem pressa. Ele deve gastar o tempo que for necessário para concluir o atendimento. Evidentemente, qualquer comunicação feita pelo médico ao paciente e/ou seu familiar, responsável ou acompanhante há de ser feita em português, em linguagem comum de forma clara e compreensível. Repito: não importa a nacionalidade do médico; mesmo o brasileiro deve fazer a comunicação nos termos da lei. É também por isso que tem o consumidor o direito de receber receitas escritas de forma legível. Nada de "caligrafia de médico é assim mesmo". Não é nem um pouco engraçado ficar decifrando junto ao farmacêutico os "quase-hieróglifos" do médico para descobrir qual medicamento comprar e como tomá-lo. Além de sem graça, é ilegal, posto que é uma falha na informação. Esta deve ser clara, precisa, detalhada. Ademais, é evidente que a compra do remédio errado, bem como sua equivocada utilização, pode causar sérios danos ao consumidor. A consulta é confidencial e,  resguardados os casos de doenças de notificação compulsória (epidemias, por exemplo) ou risco real para terceiros, o médico deve proteger as informações que recebe de seus clientes. Na violação desse sigilo, o consumidor pode pleitear indenização do médico e/ou hospital. O médico e os demais profissionais devem tratar o consumidor com educação e respeito a sua dignidade como ser humano, jamais podendo usar expressões preconceituosas, nem se referir ao paciente pelo nome de sua doença. Esse direito se estende ao acompanhante, aos familiares e, caso ocorra, ao falecido. Nos hospitais, os profissionais devem se apresentar devidamente identificados com crachá, no qual conste nome completo, profissão e cargo (médico, anestesista, enfermeiro, etc.). Quanto ao prontuário, é direito do consumidor receber uma cópia, quer seja no consultório, quer seja no hospital ou clínica. Quando não estiver consciente, a cópia do prontuário tem que ser entregue a seu responsável legal (geralmente um familiar próximo: cônjuge, filhos, pais, etc.). É direito do consumidor receber por escrito do médico (de forma legível, de preferência datilografado ou impresso via microcomputador) o relato do diagnóstico feito, bem como quais serão as condutas médicas a serem adotadas, com a descrição das etapas da doença pelas quais o paciente irá passar, os tratamentos que serão empreendidos, os riscos envolvidos, etc., pois o paciente pode recusar os diagnósticos e tratamentos. Seu consentimento deve vir depois de ter recebido claras e totais informações sobre o caso em linguagem simples. Ademais, o paciente pode dar o consentimento e depois, se quiser, pode revogá-lo. Quando se tratar de doença grave e/ou desconhecida, é direito do paciente saber da expectativa que se tem sobre o resultado do tratamento, além de ser esclarecido a respeito do diagnóstico e do tratamento, quando se tratar de pesquisa ou procedimento experimental, assim como, também, ser esclarecido dos riscos na relação com os benefícios. É obrigação do médico/hospital/clínica fazer testes antialérgicos para uso de medicamentos que apresentem riscos quando ministrados (por exemplo, penicilina), bem como teste para verificação de diabetes, quando o procedimento ou o uso do medicamento trouxer riscos em função dessa doença. É obrigação do médico/hospital/clínica utilizar-se de material esterilizado ou descartável, tudo dentro das mais estritas regras de segurança e higiene. Se for necessária a utilização de sangue, o paciente tem direito de conhecer a procedência do sangue que irá receber. Nas consultas e intervenções o paciente pode ter presente um acompanhante e isso é válido para o parto; o pai, querendo, pode assistir. O paciente tem direito a receber um orçamento prévio do serviço que será prestado e dele devem constar: o valor dos honorários; o preço dos materiais a serem empregados; as condições de pagamento (ou seja: se é à vista, parcelado, com ou sem entrada, etc.); as datas de início e término do serviço ou a previsão da necessidade de sua continuidade; e o prazo de validade do orçamento. Se o orçamento não falar do prazo de validade, ele valerá por dez dias. Após a sua aprovação, não pode ser alterado. Em casos de internação de urgência, realço que a lei 12.653, de 28/5/2012 tipificou o crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial1 para coibir os abusos praticados pelos hospitais. Por fim, lembro que todos os direitos do consumidor aqui narrados são extensivos aos familiares do paciente. __________ 1A lei acrescentou o art. 135-A ao Código Penal: Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial  Art. 135-A.  Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial:   Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Parágrafo único.  A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte. 
quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A sociedade do espetáculo

Algumas semanas atrás, ouvi numa rádio da capital de São Paulo uma matéria que se apresentou do seguinte modo. Tratava-se de uma reportagem que anunciava um evento que estava para se iniciar num teatro. O que desde logo chamou minha atenção foi que a repórter entrou no ar demonstrando uma ansiedade enorme. Ela falava com grande euforia realçando com muita expectativa o que estava prestes a ocorrer. Narrou que havia centenas de jornalistas no local do evento. Ela disse mais ou menos o seguinte: "Olha, estou aqui no teatro... Aguardando o início do credenciamento dos jornalistas. Já estão aqui mais de quinhentos. São aguardados cerca de mil de todo o mundo. Há um clima de expectativa muito grande. Eu tentei descobrir alguma coisa sobre o lançamento, mas não consegui. Ninguém conseguiu. É segredo de Estado. Está guardado a sete chaves. Daqui a pouco, vamos adentrar no teatro e vamos nos posicionar. Todos querem pegar um bom lugar..." Bem. Eu também fiquei ligado e bateu-me até um certo anseio. Seria o anúncio da descoberta da cura do câncer? Ou a apresentação por cientistas brasileiros da vacina que eliminaria o vírus HIV? Ou, quem sabe, por esses acertos do destino, o governo brasileiro teria conseguido que a paz pudesse ser enfim selada entre palestinos e israelenses que habitam a faixa de Gaza? Fiquei aguardando, pois o que viria era algo muito importante. Passados alguns intervalos comerciais, a repórter voltou e anunciou do que se tratava: o lançamento do novo iPhone da Apple! À parte a excelente jogada de marketing, o que se vê é uma das características do jornalismo contemporâneo, a do espetáculo. Aliás, essa é também uma característica da sociedade de consumidores em que vivemos, na qual a velocidade e a superficialidade são marcas importantes e na qual a diversão a qualquer preço impregna quase tudo. No último livro de Mario Vargas Llosa, "A civilização do espetáculo"1, o tema é explorado em várias vertentes. De fato, esse fenômeno observável não começou agora. Como mostra o escritor peruano, já em 1967, Guy Debord lançava em Paris um livro no qual apontava a existência de uma "sociedade do espetáculo"2. Nele o autor classifica de "espetáculo" aquilo que Karl Marx chamou de "alienação", especialmente aquela do fetichismo dos produtos, mediante o qual as pessoas dão mais importância aos bens materiais que aos seres humanos em todas suas dimensões. As pessoas passam, então, a ser valorizadas pelos bens que possuem e não por seus atos de benevolência ou sua inteligência. Esse fetichismo da mercadoria no estágio do capitalismo avançado atinge tanta importância que substitui na vida dos consumidores outros interesses legítimos de ordem cultural, intelectual ou política, tornando-se o centro de suas preocupações. Esse modo de viver torna-se uma obsessão. O consumo constante de produtos e de serviços, muitas vezes supérfluos e inúteis impostos pelo marketing, pelas modas, pela publicidade massiva, vai assim esvaziando a vida interior das pessoas em relação às outras preocupações sociais ou simplesmente humanas. Como mostra Vargas Llosa a respeito do livro de Debord, uma de suas afirmações feitas naquela época ("O consumidor real torna-se um consumidor de ilusões") é mais que confirmada nos anos posteriores3. A consequência disso é a futilização que domina a sociedade de consumidores. A multiplicação das ofertas de produtos e serviços gera uma falsa sensação de liberdade de escolha, pois as trocas existentes entre dinheiro (do consumidor) e produtos e serviços (dos fornecedores) é feita segundo a imposição do modelo de produção capitalista e segundo os interesses dos produtores e do sistema econômico subjacente, que se encarrega de oferecer crédito para aqueles que, por ventura, não tenham dinheiro para adquirir os bens. Não se trata, pois, de liberdade de escolha, mas de necessidade de aquisição, num processo de representação de uma vida encenada para o consumo e pelo consumo. Vejamos um exemplo bastante significativo desse modelo: a dos produtos culturais que passam a ser enxergados como de consumo, numa substituição que gera um tipo de ilusão muito interessante no que diz respeito ao comportamento dos consumidores e que é muito bem explorada pela indústria de turismo. Os anúncios publicitários do tipo "Conheça a Europa em 15 dias" confirma o diagnóstico. A enorme quantidade de pessoas que visitam os museus da Europa todos os dias também comprova esse comportamento. É, na verdade, mais um modismo (solidificado e tornado permanente) e um modo de aquisição pelos consumidores. O que é adquirido é uma ilusão de que se está recebendo alguma vivência ou alguma cultura. Certamente, não é possível obter a experiência de "conhecer" a Europa com toda sua riqueza distribuída em dezenas de cidades, com suas populações de vidas diversificadas com suas histórias e tradições em apenas alguns dias, como também não se pode compreender nem conhecer a riqueza das obras do Louvre num único dia de visita. Como diz o escritor peruano Nobel de Literatura, "... essas visitas de multidões a grandes museus e monumentos históricos clássicos não representam um interesse genuíno pela 'alta cultura', mas mero esnobismo, visto que a visita a tais lugares faz parte das obrigações do perfeito turista pós-moderno4". Ao que eu acrescento o seguinte. Não se trata somente de esnobismo de alguns consumidores, mas também de um processo de alienação no qual o consumidor se vê obrigado a entrar para poder pertencer a um grupo, o daqueles que "conhecem" a Europa, suas cidades, seus museus. Trata-se de um produto de consumo muito bem vendido, dentro da ideia de identificação que homogeneíza os consumidores, que passam a ser enxergados como tal. Há os que possuem carrões, os que moram em mansões, os que conhecem a Europa, que foram ao Louvre e os que possuem o iphone último tipo. É pelo processo de identificação com aquilo que os demais possuem que os consumidores acabam por adquirir os produtos e serviços que os outros adquirem para com isso pertencerem a algum segmento. Para com isso poderem ser reconhecidos de algum modo. É o fenômeno da identificação, uma outra característica da sociedade de massas. É isso. São pistas para, pelo menos, tentarmos entender como é que uma jornalista apresenta na rádio o lançamento de um produto tecnológico banal com mais ansiedade e temor do que o assassinato de uma família inteira! __________ 1Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. 2O titulo de seu livro é: "La societé du Spetacle", citado por Mario Vargas Llosa na obra referida, os. 20 e 21. 3Idem, ibidem, p. 22. 4Obra citada, p. 25.