Sou obrigado a voltar ao assunto. Todo ano é a mesma história, com crimes praticados a céu aberto sem que se tome alguma providência (mais uma repetição anual, tal como as chuvas, os alagamentos, os deslizamentos e as mortes consequentes, etc.). Refiro-me ao odioso trote violento. A humilhação causada aos novatos continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa questão?
Esse é um dos casos deste ano: ao menos cinco estudantes sofreram queimaduras durante um trote violento praticado pelos veteranos do curso de agronomia da Fama (Faculdade da Amazônia), localizada na cidade de Vilhena, em Rondônia. Os agressores usaram uma mistura de larvicida e creolina e a lançaram no corpo dos calouros. A ocorrência é do último dia 15.
Um dos problemas nos trotes está em que, na maior parte dos casos, os próprios calouros não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Há algumas mudanças na direção certa promovidas por Centros Acadêmicos, é verdade, mas é preciso avançar mais e para tanto, haveria de se deixar claro que os calouros não só não devem participar como devem denunciar os veteranos. Sei que a pressão psicológica é grande e o medo também. Por isso, cabe às autoridades intervir. No início do ano, as violações são feitas nas vias públicas aos olhos de todas as autoridades públicas! Ou nos campi, à vista dos responsáveis pelas escolas.
Uma possível explicação para a aquiescência dos calouros com as violações está em que, desde muito cedo, é incutida neles, enquanto estudantes, a necessidade de evoluírem até atingirem uma espécie de ápice com o ingresso na faculdade (e, claro, seu término). O gargalo do vestibular exerce uma pressão tão grande que não é raro que eles se sacrifiquem além de suas forças para ultrapassá-lo, acabando por adoecer.
De algum modo, essa forma de imposição adiciona-se ao já existente ingrediente da passagem do jovem (ou adolescente) para o mundo adulto com todas suas semelhanças com a jornada do herói. Esta, como diz Joseph Campbell, é mais profunda do que qualquer rebeldia e vai até o âmago do espírito humano, para depois retornar trazendo essa essência de vida e doá-la para a humanidade. Para o famoso mitólogo, a façanha do herói começa com alguém de quem foi usurpada alguma coisa ou que sente deslocado entre as experiências normais dos membros da sociedade. Daí, essa pessoa parte numa jornada que ultrapassa o usual para recuperar o que tinha sido perdido ou, então, - como é o caso - para descobrir seu lugar na sociedade. Normalmente, o herói perfaz-se num círculo que inicia com a partida e termina com o retorno. Essa jornada tem algo de uma busca espiritual e de uma evolução, na qual o jovem passa de uma posição de imaturidade psicológica para uma nova forma, adulta. É como se ele morresse e nascesse novamente. Trata-se de uma batalha, de uma luta para atingir um outro patamar de vida1.
Nas antigas sociedades, os rituais de passagem são celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de sua comunidade. Essa transição pode ser de um padrão social ou sexual para outro (uma mudança para um patamar superior). Ritualmente, reproduz o nascimento, a saída do bebê da barriga da mãe e a entrada para uma nova realidade. E, assim como no nascimento, o rito de passagem exige esforço e sacrifício. Esses ritos podem, inclusive, ter caráter religioso, como, por exemplo, no batismo. Os rituais das "cerimônias de iniciação têm sempre uma base mitológica e se relacionam à eliminação do ego infantil, quando vem à tona o adulto, seja menina ou menino"2. Tanto os meninos quanto as meninas experimentam mudanças fisiológicas muito intensas, que provocam uma mudança psicológica transfiguradora, ou seja, a passagem não é apenas fisiológica, é sobretudo mental. Os ritos de passagem seriam uma forma de resolver os conflitos entre a mente e o corpo.
Adicione-se que a independência é conquistada quando o jovem se desprende das garras dos pais. O primeiro passo para a independência é a oposição à ordem vigente e todo herói começa como um rebelde.
Nas sociedades da antiguidade, determinados momentos na vida de seus membros eram marcados por cerimônias, conhecidas como ritos de iniciação ou de passagem. Essas cerimônias, além de representarem uma transição particular para o indivíduo, significavam igualmente sua progressiva aceitação e participação na sociedade na qual estava inserido, tendo, portanto, um cunho individual e também coletivo.
Pois bem. O trote universitário tem todas as características de um ritual de passagem, no qual estão presentes os elementos característicos da transposição, da mudança de patamar, da entrada numa comunidade de nível superior, algo atingido com muito sacrifício e o ingresso representa a vitória do herói sobre os obstáculos. Esses elementos talvez sejam um dos grandes problemas para que se possa eliminar o abominável trote universitário.
E pior: nessa mazela brasileira, ao que tudo indica, esse ritual do trote não nasceu de nenhuma necessidade instintiva ou ancestral que fosse capaz de lavar a alma dos calouros para que eles entrassem puros no templo universitário. A tradição é muito mais "pobre" e acabou vingando por um vício, um defeito de povos de países colonizados e explorados: o da imitação, como já tive oportunidade de relatar nesta coluna e que repito a seguir.
Consta que o trote estudantil nasceu nas Universidades europeias na Idade Média. Tendo em vista o terrível baixo nível de higiene da época, por razões profiláticas, isto é, para evitar doenças e sua proliferação, raspava-se a cabeça dos alunos ingressantes (os calouros) e muitas vezes queimavam-se suas roupas. Essas questões, inicialmente higiênicas, muito provavelmente influenciadas pelo grau de brutalidade reinante, já no século XIV, nas Universidades de Bolonha, Paris e Heidelberg, haviam se transformado em rituais bárbaros claramente sadomasoquistas: os veteranos arrancavam pelos e cabelos dos calouros, que muitas vezes eram obrigados a ingerir urina e comer excrementos. (Fatos observados em Faculdades no Brasil dos séculos XX e XXI!).
Em Portugal, há relatos de trotes violentos no Século XVIII na Universidade de Coimbra. Tudo indica que os estudantes da elite brasileira que lá estudaram tenham importado a prática para o território nacional. A ignorância e a bestialidade do ritual fez sua primeira vítima fatal no ano de 1831, com a morte de um estudante da Faculdade de Direito de Olinda. Os trotes, assim como os crimes e as mortes continuaram por todo o século XX: em 1980, um calouro de um curso de jornalismo foi morto por traumatismo cranioencefálico em Mogi das Cruzes; em 1990, morreu de parada cardíaca um calouro do curso de direito em Goiás; em 1999, um calouro de medicina da USP morreu afogado em uma piscina etc. (um longo e tenebroso etc.).
O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressam nas faculdades. Mostra também uma contradição: os jovens que estudam em faculdades -- um restrito setor da elite brasileira - se mostram muito mal educados. Ao invés de agradecerem ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agem como bárbaros, arrogantes e sádicos.
Por fim, e para não deixar passar em branco, já que fui obrigado a voltar ao tema, apresento na sequência alguns dos delitos praticados nos trotes e também mostro a responsabilidade das escolas, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes.
Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro.
Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo, fazê-lo engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP).
Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP).
Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente.
Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim.
Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizá-la, mas não se deve esquecer que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros.
O CDC garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a instituição de ensino pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC.
Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e, nos primeiros dias de aula, distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro.
Apesar de tudo, é preciso lembrar que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. Poe isso, é preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas.
Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de Direito, medicina, sociologia, engenharia, etc. possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, mas que precisa ser combatida.
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1 O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990, pág. 131 e seguintes.
2 Idem, ibidem, pág. 147.