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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Por Rizzatto Nunes e Claudia Freesz Calmon1 No presente artigo, apresentamos alguns fatos para uma reflexão sobre a educação, a formação e a influência que se exerce numa sociedade como a atual, caracterizada por alta complexidade social e com ampla liberdade de expressão, e na qual existe uma incrível e enorme comunicação difusa, cruzada e multilateral. Dizem que o exemplo arrasta, isto é, serve de inspiração. E que os pais devem servir de exemplo. Num dos filmes de Woody Allen, ele sai do cinema com sua sobrinha e diz mais ou menos isso: "Não se preocupe com o que seu professor fala. Observe o que ele faz". De fato, é a ação o autêntico gesto do indivíduo, muito mais que suas palavras. Estas podem ser importantes e ter seu peso, mas, sem a ação respectiva, serão legítimas? Fortes o bastante para inspirar? Vejamos os pais. Nosso amigo Outrem Ego, estudioso do assunto, diz: "Educar é falar, instruir, indicar, orientar, etc. No entanto, será que adianta um longo discurso sem uma ação correspondente? Certo, há alguns limites. Pais que bebem álcool (moderadamente) podem proibir que seus filhos bebam até certa idade, justificando com a lei, a pouca idade e a imaturidade respectiva, etc.. Todavia, se pretendem que seus filhos não bebam refrigerantes, é melhor que também não bebam. Nem comprem. Pais que falam palavrões terão dificuldades em proibir que seus filhos também falem. Pais que usam iphone em restaurantes enquanto comem ou mesmo apenas enquanto estão lá sentados, também encontrarão dificuldades em bloquear o uso aos filhos. O mesmo em casa: os pais vão à mesa e levam seus iphones? Já perderam a batalha ou, quem sabe, nem estejam interessados". Será que os pais percebem isso? E trata-se de uma influência de mão única (dos pais na direção dos filhos)? Não se pode dar o oposto (dos filhos em relação aos pais)? E, mais: a influência não é exercida também de fora da família? Pela escola? Pelos colegas da escola? Pelos amigos? Pelo grupo social a qual se pertença? Pela religião professada? Pelo clube que se frequenta? Pelos filmes das tevês, enlatados ou não, e também do cinema? E o que dizer das músicas na atualidade com letras estapafúrdias? E até do clube pelo qual se torce? Enfim, não são múltiplas as possibilidades de influência? E tanto mais ainda, como nos últimos anos com as redes sociais e a internet? Há um antigo ditado que também pode ajudar nessa proposta de reflexão: "Diga-me com quem andas que te direi quem és". Sim, as companhias, os grupos são determinantes no aprendizado e também no reconhecimento dos comportamentos. Mas, será que é infalível? Determinante? Se uma pessoa anda com drogados, significa que está, do mesmo modo, envolvida com as drogas? Se anda com pessoas de mau caráter, tem ela também mau caráter? Se anda com ladrões, é ladra? Se a pessoa somente se cerca de pessoas medíocres, então ela é medíocre também? Se somente anda com perdedores, será também uma perdedora? Etc., e o inverso: é santa por andar com santos? Intelectual por conviver com intelectuais? Estudiosa por frequentar um círculo de estudiosos? Podemos até responder não a alguma dessas questões, mas como estabelece um outro ditado, espanhol: "No creo en brujas, pero que las hay, las hay"2. Ao que parece, isso sempre foi assim, com pessoas exercendo influência reciprocamente em qualquer idade e por qualquer tipo de ligação e do mesmo modo as instituições, enfim, uma rede complexa de comunicações que amoldam o indivíduo; além, claro, dos esquemas estudados e executados de propósito para iludir, controlar e alienar. Mas, e o caso do filho que detesta cigarro exatamente por que seu pai é um fumante inveterado? Ou daquele que nem chega perto de álcool por causa do pai alcoólatra? Seriam exceções ou isso é uma resposta confortadora? E agora, como estamos, com as chamadas redes sociais? Elas podem ser mesmo uma arma a favor da democracia, como dizem? Há essa esperança. Nosso amigo dá um palpite: "Não é incomum ver famílias 'reunidas' em volta da mesa, sem conversarem entre si, mas sintonizados no Facebook ou nos grupos do Whatsapp, e Instagram. Há esperança, mas, por enquanto, o que se vê é a ampliação de um processo de alienação". Humberto Eco, grande escritor e pensador polêmico, falecido recentemente, assim se expressou sobre o tema: "As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis"3. Será? É difícil, saber, não é mesmo? Em relação a pais e filhos, há situações insólitas. Perguntamos: como podem os pais educar os filhos se eles próprios ficam entretidos com os papos virtuais, enquanto cortam o bife no prato na hora da mesa, onde todos deviam estar comendo em harmonia e confraternização? Com seu viés antropológico, diz nosso amigo: "Por ora, o que se vê por todos os lugares: restaurantes, bares, escolas, shopping centers e em todos os cantos do mundo, é que as pessoas passam um largo tempo tirando fotos, lendo e postando bobagens virtualmente. Há, não só uma perda de tempo como uma construção simbólica perigosa que é a de que essas pessoas passam a aceitar e a acreditar no que recebem pela rede sem nenhuma reflexão, apenas porque 'vêm de seus amigos e conhecidos'". O problema com a influência exercida pelo meio em que se vive está em que ele é constante e imperceptível; age sub-repticiamente. No início e até um curto espaço de tempo, talvez não se consiga identificar seu funcionamento, mas após uma larga passagem, percebe-se que as pessoas ficam muito parecidas em pensamentos, ações e hábitos4. Por fim, deixamos mais algumas questões: os indivíduos, na sociedade da informação e da comunicação, estão mais conscientes de seu papel, de suas condutas, de seus direitos e obrigações? Estão sabendo, tentando e conseguindo se expressar melhor? Com tanta informação fornecida incessantemente, estão conseguindo decifrar o que tem realmente valor? O que, de fato, pode gerar uma melhor condição humana? __________ 1 Claudia Freesz Calmon é pedagoga, formada pela PUC/SP e fez cursos de especialização no Instituto Loris Malaguzzi em Reggio Emilia, Itália e com Howard Gardner em Harvard. 2 Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem! 3 10 frases para recordar a lucidez mordaz de Umberto Eco. 4 Há, claro, líderes que exercem autoridade sobre os demais indivíduos do grupo e que podem ser determinantes para a formação e para o comportamento, mas isso é um aspecto ligado ao poder que demanda outro tipo de análise. Aqui, como dissemos, estando tentando refletir sobre essa questão de comunicação difusa, cruzada e multilateral.
quinta-feira, 3 de março de 2016

Hollywood, sustentabilidade e consumo

Leonardo DiCaprio finalmente levou o Oscar de melhor ator. E, ao receber a estatueta, discursou a favor do meio ambiente. Disse: "O Regresso fala sobre a relação do homem com a natureza, um mundo que teve em 2015 o ano mais quente já registrado. Nossa produção teve que se mudar para a parte mais ao sul do planeta só para achar neve. A mudança climática é real. Está acontecendo agora"(...) "É a ameaça mais urgente à nossa espécie, e precisamos trabalhar coletivamente e parar de procrastinar. Precisamos apoiar os líderes do mundo todo que não falam pelos grandes poluidores e grandes corporações, mas que falam por toda a humanidade, pelos povos indígenas do mundo, pelas pessoas desamparadas que serão as mais afetadas por isso, pelos nossos netos, e por essas pessoas que tiveram suas vozes afogadas pela ganância política1". Aproveito a dica para voltar a um assunto que tratei aqui nesta coluna, fazendo algumas considerações a respeito de consumo e da sociedade capitalista. Sociedade esta que, para existir, utiliza-se de um modelo de exploração não só das reservas naturais do planeta, como de muitas das conquistas sociais existentes nos vários países que compõem o mundo, tais como garantia de emprego, limite de horas de trabalho, direito à aposentadoria com salário justo, direito à saúde gratuita, direito ao lazer, etc. Parece-me que é preciso mudar os hábitos de consumo. Para se ter uma ideia do que quero dizer, examine esses dados (que variam um pouco de acordo com a fonte, mas de todo modo indicam o problema). A produção e o consumo dos Estados Unidos da América2, com um número de consumidores que correspondem a aproximadamente 5% da população do planeta, contribuem com 36% das emissões de gases de efeito estufa e consomem 25% da energia mundial. Os países desenvolvidos em conjunto congregam um quinto da população mundial. Esta minoria, porém, consome 80% de todos os recursos naturais existentes. Esses dados mostram que é preciso mudar o foco, posto que, caso se perpetue o modelo de consumo dos dias que correm, não haverá salvação. Ao invés de se produzir mais e se consumir mais, a diminuição do consumo poderia ajudar a sustentar o planeta. Além disso e atrelado a isso, um outro elemento a favor seria o da educação para o consumo, de tal modo que os consumidores pudessem tomar consciência de seu efetivo papel como protagonistas da sociedade capitalista e também percebessem que o regime consumista no qual estão inseridos não faz bem nem a seu bolso nem a sua saúde nem a seu bem-estar e, claro, nem ao planeta. Como quero apenas fazer algumas colocações para a nossa reflexão, eu termino por aqui, mas, na sequência, apresento uma série de máximas do comediante americano George Carlin e também algumas que eu mesmo fiz, que dizem respeito ao modo de vida da sociedade em que vivemos. *** De George Carlin: - Nós bebemos demais, gastamos sem critérios. Dirigimos rápido demais, ficamos acordados até muito tarde, acordamos muito cansados, lemos muito pouco, assistimos TV demais e raramente estamos com Deus.- Multiplicamos nossos bens, mas reduzimos nossos valores.- Aprendemos a sobreviver, mas não a viver; adicionamos anos à nossa vida e não vida aos nossos anos.- Fomos e voltamos à Lua, mas temos dificuldade em cruzar a rua e encontrar um novo vizinho. Conquistamos o espaço, mas não o nosso próprio.- Fizemos muitas coisas maiores, mas pouquíssimas melhores. - Aprendemos a nos apressar e não, a esperar. - Estamos na era do 'fast-food' e da digestão lenta; do homem grande, de caráter pequeno; lucros acentuados e relações vazias. - Essa é a era das viagens rápidas, fraldas e moral descartáveis, das rapidinhas, dos cérebros ocos e das pílulas 'mágicas'. - Um momento de muita coisa na vitrine e muito pouco na dispensa. Minhas: - Estamos na era das fusões de empresas e dos desempregados em profusões. - Do acúmulo de cartões de crédito fácil e abundante e das dívidas impagáveis. - Das dezenas de pares de sapatos nos armários de casa e das crianças andando descalças nas ruas. - Nunca tivemos tanto acesso à informação, mas nosso conhecimento é paupérrimo. - As pessoas sabem muito sobre automóveis, mas pouco sobre arte. - Muitos consumidores tem noção dos preços das cervejas, mas desconhecem o valor da solidariedade. - Tira-se foto de tudo, mas, realmente, não se aprecia quase nada. __________ 1 Conforme: Oscar 2016: Leonardo DiCaprio faz discurso emocionado pelo meio ambiente. E é hora escutá-lo com muita atenção. 2 Dados de cerca de cinco anos atrás.
Sou obrigado a voltar ao assunto. Todo ano é a mesma história, com crimes praticados a céu aberto sem que se tome alguma providência (mais uma repetição anual, tal como as chuvas, os alagamentos, os deslizamentos e as mortes consequentes, etc.). Refiro-me ao odioso trote violento. A humilhação causada aos novatos continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa questão? Esse é um dos casos deste ano: ao menos cinco estudantes sofreram queimaduras durante um trote violento praticado pelos veteranos do curso de agronomia da Fama (Faculdade da Amazônia), localizada na cidade de Vilhena, em Rondônia. Os agressores usaram uma mistura de larvicida e creolina e a lançaram no corpo dos calouros. A ocorrência é do último dia 15. Um dos problemas nos trotes está em que, na maior parte dos casos, os próprios calouros não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Há algumas mudanças na direção certa promovidas por Centros Acadêmicos, é verdade, mas é preciso avançar mais e para tanto, haveria de se deixar claro que os calouros não só não devem participar como devem denunciar os veteranos. Sei que a pressão psicológica é grande e o medo também. Por isso, cabe às autoridades intervir. No início do ano, as violações são feitas nas vias públicas aos olhos de todas as autoridades públicas! Ou nos campi, à vista dos responsáveis pelas escolas. Uma possível explicação para a aquiescência dos calouros com as violações está em que, desde muito cedo, é incutida neles, enquanto estudantes, a necessidade de evoluírem até atingirem uma espécie de ápice com o ingresso na faculdade (e, claro, seu término). O gargalo do vestibular exerce uma pressão tão grande que não é raro que eles se sacrifiquem além de suas forças para ultrapassá-lo, acabando por adoecer. De algum modo, essa forma de imposição adiciona-se ao já existente ingrediente da passagem do jovem (ou adolescente) para o mundo adulto com todas suas semelhanças com a jornada do herói. Esta, como diz Joseph Campbell, é mais profunda do que qualquer rebeldia e vai até o âmago do espírito humano, para depois retornar trazendo essa essência de vida e doá-la para a humanidade. Para o famoso mitólogo, a façanha do herói começa com alguém de quem foi usurpada alguma coisa ou que sente deslocado entre as experiências normais dos membros da sociedade. Daí, essa pessoa parte numa jornada que ultrapassa o usual para recuperar o que tinha sido perdido ou, então, - como é o caso - para descobrir seu lugar na sociedade. Normalmente, o herói perfaz-se num círculo que inicia com a partida e termina com o retorno. Essa jornada tem algo de uma busca espiritual e de uma evolução, na qual o jovem passa de uma posição de imaturidade psicológica para uma nova forma, adulta. É como se ele morresse e nascesse novamente. Trata-se de uma batalha, de uma luta para atingir um outro patamar de vida1. Nas antigas sociedades, os rituais de passagem são celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de sua comunidade. Essa transição pode ser de um padrão social ou sexual para outro (uma mudança para um patamar superior). Ritualmente, reproduz o nascimento, a saída do bebê da barriga da mãe e a entrada para uma nova realidade. E, assim como no nascimento, o rito de passagem exige esforço e sacrifício. Esses ritos podem, inclusive, ter caráter religioso, como, por exemplo, no batismo. Os rituais das "cerimônias de iniciação têm sempre uma base mitológica e se relacionam à eliminação do ego infantil, quando vem à tona o adulto, seja menina ou menino"2. Tanto os meninos quanto as meninas experimentam mudanças fisiológicas muito intensas, que provocam uma mudança psicológica transfiguradora, ou seja, a passagem não é apenas fisiológica, é sobretudo mental. Os ritos de passagem seriam uma forma de resolver os conflitos entre a mente e o corpo. Adicione-se que a independência é conquistada quando o jovem se desprende das garras dos pais. O primeiro passo para a independência é a oposição à ordem vigente e todo herói começa como um rebelde. Nas sociedades da antiguidade, determinados momentos na vida de seus membros eram marcados por cerimônias, conhecidas como ritos de iniciação ou de passagem. Essas cerimônias, além de representarem uma transição particular para o indivíduo, significavam igualmente sua progressiva aceitação e participação na sociedade na qual estava inserido, tendo, portanto, um cunho individual e também coletivo. Pois bem. O trote universitário tem todas as características de um ritual de passagem, no qual estão presentes os elementos característicos da transposição, da mudança de patamar, da entrada numa comunidade de nível superior, algo atingido com muito sacrifício e o ingresso representa a vitória do herói sobre os obstáculos. Esses elementos talvez sejam um dos grandes problemas para que se possa eliminar o abominável trote universitário. E pior: nessa mazela brasileira, ao que tudo indica, esse ritual do trote não nasceu de nenhuma necessidade instintiva ou ancestral que fosse capaz de lavar a alma dos calouros para que eles entrassem puros no templo universitário. A tradição é muito mais "pobre" e acabou vingando por um vício, um defeito de povos de países colonizados e explorados: o da imitação, como já tive oportunidade de relatar nesta coluna e que repito a seguir. Consta que o trote estudantil nasceu nas Universidades europeias na Idade Média. Tendo em vista o terrível baixo nível de higiene da época, por razões profiláticas, isto é, para evitar doenças e sua proliferação, raspava-se a cabeça dos alunos ingressantes (os calouros) e muitas vezes queimavam-se suas roupas. Essas questões, inicialmente higiênicas, muito provavelmente influenciadas pelo grau de brutalidade reinante, já no século XIV, nas Universidades de Bolonha, Paris e Heidelberg, haviam se transformado em rituais bárbaros claramente sadomasoquistas: os veteranos arrancavam pelos e cabelos dos calouros, que muitas vezes eram obrigados a ingerir urina e comer excrementos. (Fatos observados em Faculdades no Brasil dos séculos XX e XXI!). Em Portugal, há relatos de trotes violentos no Século XVIII na Universidade de Coimbra. Tudo indica que os estudantes da elite brasileira que lá estudaram tenham importado a prática para o território nacional. A ignorância e a bestialidade do ritual fez sua primeira vítima fatal no ano de 1831, com a morte de um estudante da Faculdade de Direito de Olinda. Os trotes, assim como os crimes e as mortes continuaram por todo o século XX: em 1980, um calouro de um curso de jornalismo foi morto por traumatismo cranioencefálico em Mogi das Cruzes; em 1990, morreu de parada cardíaca um calouro do curso de direito em Goiás; em 1999, um calouro de medicina da USP morreu afogado em uma piscina etc. (um longo e tenebroso etc.). O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressam nas faculdades. Mostra também uma contradição: os jovens que estudam em faculdades -- um restrito setor da elite brasileira - se mostram muito mal educados. Ao invés de agradecerem ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agem como bárbaros, arrogantes e sádicos. Por fim, e para não deixar passar em branco, já que fui obrigado a voltar ao tema, apresento na sequência alguns dos delitos praticados nos trotes e também mostro a responsabilidade das escolas, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro. Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo, fazê-lo engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP). Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP). Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente. Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim. Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizá-la, mas não se deve esquecer que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. O CDC garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a instituição de ensino pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC. Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e, nos primeiros dias de aula, distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro. Apesar de tudo, é preciso lembrar que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. Poe isso, é preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas. Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de Direito, medicina, sociologia, engenharia, etc. possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, mas que precisa ser combatida. _________  1 O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990, pág. 131 e seguintes. 2 Idem, ibidem, pág. 147.
Querido leitor, meu amigo Outrem Ego mudou-se para Portugal. Foi-se agora no fim do ano passado; sua mulher e filhos já estavam por lá há algum tempo. Ele está, pelos vistos, como diz, começando a conhecer o lugar. Como ele é um investigador incansável e observador desconfiado, já me escreveu contando-me muitas coisas. Pois. Disse-me que está principalmente checando questões de consumo e de comportamento social. Ele me confidenciou que está em dúvida se o que ele tem visto nesses pouco mais de dois meses, é o suficiente para que tome uma decisão sobre comportamento para o consumo. Do que já me contou, eu também ainda não tomei partido, mas divido com você, leitor. Veja isto: O. Ego já foi avisando que não se tratava de piada: "Não é piada: há quinze dias, Bete e eu fomos a Sintra. Na hora do almoço. O local apinhado de turistas. Vimos ao longe um restaurante simpático, que ficava numa encosta com vista magnífica. Descemos as escadas animados. Chegamos à porta e encontramos a seguinte placa: 'Só funcionamos a partir das 18 horas'. Ou seja, o restaurante fecha para almoço... E nas ruas um monte de gente andando à procura de lugar para comer". Depois, ele fez a reflexão filosófica que não consegui responder. Disse: "Sabe, o ambiente por aqui é bucólico, às vezes parece parado no tempo. Tem-se a impressão de que está fora do círculo desenfreado do consumo. Mas, será que isso não é bom"? Nessa linha, ele falou-me de situações muito interessantes, que remetem a tempos mais tranquilos e de confiança. Veja. Perto da casa onde Bete e ele vivem com os filhos, há um mercadinho. Outrem Ego foi fazer algumas compras e na hora de pagar no caixa, havia um senhor, bem idoso, na frente dele. Esse senhor passou algumas frutas e perguntou à moça do caixa: "Quanto estou devendo?". Ela, então, pegou um caderno embaixo do balcão, bem surrado e que estava marcado com letras em cada folha. Procurou a letra ene e foi até "Nuno" em um sobrenome que ele não conseguiu decifrar. Estava tudo escrito a lápis. Depois, a atendente disse: "Com as compras de hoje, o senhor deve dezesseis euros". "Vou pagar tudo". Ela recebeu e riscou os valores que estavam anotados no caderno. Trata-se do famoso e, talvez, extinto, fiado, firmado nas barbas do bigode (sem ironia...). A palavra empenhada valendo para ambos ao lados. "Antiquado?", perguntei, mas meu amigo respondeu: "Não. Não me parece antiquado, parece-me evoluído. Sei que já existiu em outros lugares e que, talvez, ainda exista aqui e ali, mas veja... Sem burocracia nem desconfiança, é um trato válido e interessante e feito entre pessoas adultas e maduras. Um comércio e uma cidadania de alto nível". Concordei. Eis, pois, o dilema a ser resolvido: essa pressa e tecnologia do mundo capitalista é mesmo mais interessante que a calma e o movimento mais lento de outrora? Traz mais alegria? Mais bem estar? Mais felicidade? Será que a sociedade e o planeta precisam dessa velocidade para se desenvolver? Pergunto sobre outro ângulo: e o mundo melhorou por causa dessas mudanças? Há menos miséria? Menos violência? Menos guerras? Menos sofrimento? Não sei a resposta para a primeira leva de perguntas acima, mas sei as da segunda: nos últimos trinta, quarenta anos ao menos, o mundo não melhorou. Não sei se a culpa é da tecnologia e da velocidade implementadas, mas a esperança que o fim da Segunda Guerra Mundial trouxe às pessoas, continua sendo esperança, pois em termos numéricos é fácil ver que as respostas são que a miséria, a violência e o sofrimento aumentaram. São muito mais pessoas que sofrem e passam por privações. As guerras? Infelizmente, nunca deixaram de existir. Quer dizer, que o antiquado é bom? É melhor? Faz bem? Ficam aí as perguntas feitas por meu amigo Outrem Ego, com seu olhar curioso, na sua experiência lusitana.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Reflexões natalinas

Neste último artigo do ano, proponho, mais uma vez, um tema para reflexão. No fluxo intenso no qual a vida cotidiana passa, resolvi focar no tempo. Assim, pergunto, o que é o tempo? Alguma coisa que nos pertence? É alguma propriedade real da qual podemos dispor, talvez compartilhar? Se é algo que nos pertence, podemos dele abrir mão? Jogá-lo fora ou fixar um preço para vendê-lo? Não há dúvida de que os trabalhadores privados e públicos, os profissionais liberais e os próprios empresários, comerciantes, prestadores de serviços, etc. gastam seu tempo em troca de salários, subsídios, honorários. Mas, há como medir esse tempo? Por que os de uns valem mais do que os de outros? No artigo que aqui publiquei em 21/3/13, intitulado "A sociedade contemporânea é ladra de tempo; é ladra de vida", eu escrevi: "... tanto no papel de trabalhador como no de consumidor, cada vez mais a sociedade "produz" perda de tempo. Há um tempo "roubado"1 pela sociedade, um tempo sem qualquer utilidade objetiva. Olhando-se a sociedade atual, percebe-se que o capitalismo é um "ladrão de tempo". "Ladrão" de vida, portanto. Esse roubo se verifica tanto em relação ao inevitável trabalho (na maior parte, sem função lúdica e/ou prazer; apenas de troca de tempo e força de trabalho por salário) como do tempo reservado ao consumo. Isso envolve, em alguns lugares específicos, como o das grandes cidades, o roubo do tempo feito pela ineficiência dos serviços públicos como, por exemplo, o de transportes. Os congestionamentos são verdadeiros ladrões sem quaisquer escrúpulos. Essa perda é irreversível. O dia, as horas, os minutos passaram; não voltam mais. Não há como recuperá-los. Mas, essa perda de tempo não é muito consciente em várias situações. E, ademais, é preciso impedir que as pessoas tomem consciência dela. São vidas roubadas, jogadas fora impunemente. Não é bom que essas perdas aflorem na consciência, para que as pessoas não descubram sua própria inutilidade nesse desgaste insano e irreversível." Agora coloco: essa perda de tempo poderia ser medida em termos de preço? Se a resposta for sim, pergunto: pode uma pessoa exigir de outrem indenização pela perda de seu tempo? Por exemplo, pode processar a Prefeitura pela perda de tempo no trânsito? Ou, pode processar pessoas que causaram um acidente, interrompendo uma estrada e gerando a perda do tempo? Ou pela perda de tempo na fila do banco, na do hospital ou no do atendimento do posto do INSS? Ou ainda no atendimento telefônico ou nas repartições públicas? Como diria meu amigo Outrem Ego, "se o tempo tem preço, sua perda há de gerar indenização". Será? Era isso que gostaria de trazer. Desejo a todos um feliz Natal e um próspero Ano Novo e que todos consigam compartilhar um tempo gostoso e em paz com seus familiares e amigos. __________ 1 Usarei o verbo "roubar" em seu sentido leigo, não jurídico.
Tenho ouvido e lido tanta coisa a respeito da responsabilidade pelos danos causados na tragédia de Mariana, que resolvi também escrever sobre o assunto. Como se sabe, duas barragens da mineradora Samarco romperam-se na cidade mineira causando a morte de pessoas, destruindo moradias e demais bens de centenas de pessoas, etc. Os governos estadual e Federal responsabilizam a empresa pelo ocorrido, no que estão certos. Mas, é preciso dizer que há também, no caso, responsabilidade do Estado. É o que mostro na sequência. A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está-se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, está-se apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Por tudo o que se pode ver das matérias veiculadas sobre a tragédia, é flagrante a omissão do Poder Público, que não fiscalizou adequadamente o funcionamento da mineradora. Pelo que se pôde apurar até agora - conforme informado pela imprensa - nesse setor não há pessoal suficiente para fiscalizar a maior parte das empresas exploradoras, o que tráz grave risco para o meio ambiente e para as pessoas e seus bens. As vítimas sobreviventes podem pleitear pensão pelo período em que, convalescentes, tenham ficado impossibilitados de trabalhar. Do mesmo modo, os familiares que sejam, eventualmente, dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Além da pensão, no cômputo dos danos materiais, inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como medicamentos, honorários médicos, indenização pelas perdas dos imóveis e demais bens, serviços de transporte etc. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estada e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Quanto ao dano moral, as pessoas que sofreram perdas e também os familiares próximos às vítimas falecidas, podem pleitear indenização que, no caso, diz respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo. De todo modo, é bom lembrar que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às pessoas atingidas pela tragédia, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto. Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido ou o causado pelos danos físicos e psicológicos. Desse modo, essa indenização é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. E o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé ou com grave culpa, com intenção de causar o dano ou quando regularmente repete os mesmos erros etc. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor. Assim, havendo, no caso, ao que tudo indica, responsabilidade por omissão dos agentes públicos, estes deveriam, para fazer Justiça, indenizar as vítimas e, depois, por via de regresso buscar ressarcimento junto à empresa mineradora.
quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Os atos terroristas e o Direito do Consumidor

Após os recentes atentados terroristas em Paris, muitas pessoas cancelaram suas viagens para lá, não só por causa do eventual perigo como também porque muitas das principais atrações locais estão (ou estavam) fechadas, tais como a Torre Eiffel, o Museu do Louvre etc. Passagens aéreas e reservas nos hotéis foram canceladas. Eu ouvi, mais de uma vez, nas rádios, que as companhias aéreas estavam cobrando multas dos clientes que haviam cancelado as reservas, o que foi feito também pelos hotéis. Estes cobraram multas quando puderam ou simplesmente não devolveram as quantias que já haviam sido pagas. Incluo nesse rol de cancelamentos os passeios pré-agendados e pagos e todos os demais serviços que foram cancelados como consequência dos terríveis acontecimentos. Pergunto: esses fornecedores podem ou poderiam cobrar multas e negarem-se a devolver os valores pagos previamente? O tema, naturalmente, é o da responsabilidade civil e do inadimplemento contratual. Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração (não abordarei os casos de monopólio e até oligopólios, nos quais o risco de perda são muito pequenos, o que, claro, não elimina a responsabilidade de mesma base legal). O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz porque quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar, algo, aliás, inevitável, pois é impossível oferecer produtos e serviços em larga escala sem que algum problema surja. Decorre disso que, quem se estabelece deve, de antemão, bem calcular os potenciais danos que irá causar não só para buscar evitá-los, mas também para calcular suas perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão. O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral, a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, o administrador hoteleiro e os prestadores de serviços em geral estão enquadrados no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não coloca como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa)1. Admite-se apenas a excludente de responsabilidade do caso fortuito externo (o que vale, diga-se, para todos os setores da atividade empresarial). A força maior e o caso fortuito interno não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo fornecedor, nem por ele evitado. E não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. Mas, quando se trata de fortuito externo, está-se fazendo referência a um evento, caso fortuito ou força maior, que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. Cito o conhecido exemplo do vulcão. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser prevista. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto. E, também com um ataque terrorista. Desse modo, no caso dos ataques de Paris, por causa dessa excludente, as companhias aéreas não respondem pelos atrasos e cancelamentos forçados em função do fechamento dos aeroportos. Acontece que o fortuito externo atinge a relação jurídica de consumo nos dois polos: no do fornecedor e no do consumidor. Se é verdade que o fornecedor não pode ser responsabilizado por causa do evento, do mesmo modo o consumidor não pode ser apenado se não puder - ou desistir - usufruir do serviço encomendado previamente. Essa situação excepcional faz nascer um direito no polo de consumo. Os cancelamentos que envolveram e envolvem as estadias nos hotéis, flats, pousadas e demais ofertas de hospedagem, o transporte aéreo, e também o terrestre e marítimo, os traslados terrestres, os passeios previamente contratados, etc. não podem implicar em ônus para os consumidores. Repito para concluir: em função do fortuito externo, de um lado, os fornecedores não podem ser responsabilizados e, de outro, os consumidores também não podem ser prejudicados. __________ 1 O Código Civil (CC) de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade".Como já demonstrei aqui nesta coluna, não existe incoerência ou contradição entre O CDC e o CC. Isso porque, quando o CC fala em força maior, está referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o CDC afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o CDC quanto o CC mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos.
quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Direito ao sossego e falta de educação

Meu amigo Outrem Ego contou-me, há muito tempo, o seguinte caso (é da época em que ainda existiam locadoras): ele encomendara um filme em DVD para locação pelo telefone. Quanto chegou à locadora, junto com ele entrou um homem e na frente dele perguntou sobre o mesmo filme. A atendente disse que não havia nenhum, mas o homem viu a fita sob o balcão e apontou. Ela disse que estava reservado exatamente para outra pessoa e mostrou meu amigo. O homem ficou irritado e Outrem Ego vendo a cena, disse: "Pode entregar para ele, eu alugo outra hora". O homem então pegou o filme, se virou e foi embora sem agradecer e, aliás, sem nem olhar para a cara de meu amigo. Como diria meu amigo, "É mole?" De fato, a falta de educação é uma característica marcante de nossa sociedade. Não é incomum, infelizmente, que uma pessoa entre no elevador de um prédio, encontre o vizinho, o cumprimente e fique no vazio, aguardando uma resposta. Retorno, pois, ao assunto da má educação especificamente no que envolve o direito ao sossego. A falta de educação, de cortesia, e de respeito ao direito alheio no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais abertamente violado. A questão é tão absurda que há catalogados vários casos de violência e morte por causa da transgressão a esse sagrado direito, como tive oportunidade de aqui mesmo mostrar. Lembro que o direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito, que envolve uma série de transtornos que já foram avaliados e julgados pelo Poder Judiciário, que, por exemplo, considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente etc. Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente. Num caso em que se considerou excessivo o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação da planta pela Prefeitura e seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou que a quadra de esportes produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha aprovado sua construção. Aliás, lembro que os shows produzidos em estádios de futebol e que violam às escâncaras o direito ao sossego dos vizinhos são, como regra, autorizados pela Prefeitura local. Alguns shows, inclusive, varam a noite e a madrugada, numa incrível violação a céu aberto. Realço que, nesses casos, a própria Prefeitura é responsável pelos danos causados às pessoas. Disse acima que a legislação pátria é rica no tema. Muito bem. A Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo decreto-lei 24.645/1934 que dispõe que "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (lei 9.605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". Essa mesma lei ambiental pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 2003, garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Consigno que, para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras. A questão, portanto, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais. É isso! E durma-se com um barulho desses!
Começo contando uma piada: dois irmãos, um menino com 8 anos de idade e uma menina com 10, conversavam. O menino pergunta para a menina: - O que você vai pedir de presente no Dia das Crianças? - Eu vou pedir uma boneca Barbie, e você? - Eu vou pedir um O.B.!, responde o menino - O.B.?! O que é isso ? - Eu não sei. Mas, olha mana, na televisão dizem que com O.B. a gente pode ir à praia todos os dias, dá pra andar de bicicleta ou andar a cavalo, dançar, ir ao clube, correr. Dá pra fazer um montão de coisas legais. E sabe o que é o melhor? Sem que ninguém perceba! *** De fato, o poder da publicidade é incrível! Meu amigo Outrem Ego disse: "Eu sou um admirador da publicidade. Adoro as criativas, as que me divertem ou que me emocionam e ainda por cima conseguem mostrar o produto, o serviço e/ou a marca. Não gosto das machistas, das preconceituosas nem das mentirosas. E sempre espero que as pessoas pensem como eu percebendo a diferença entre elas". Depois de falar desse modo, me presenteou com uma revista, publicada pela Folha de São Paulo, a Top of Mind 2015, na qual são apresentadas as marcas mais lembradas pelos consumidores, por causa das campanhas milionárias feitas por agências nacionais e multinacionais. Ele disse: "Veja a página 65". Eu fui ver. Nela aparece o plano de saúde mais lembrado do Brasil. Você leitor, sabe qual é? Unimed! A Unimed do Brasil, que como consta das informações oferecidas na página 78 da revista, gerencia a marca Unimed junto a 351 cooperativas médicas. O nome Unimed soa bem aos ouvidos? Na página citada tem um slogan: "Cuidado é o que nos une. A lembrança é o que nos fortalece". Só esqueceram de contar para os 744 mil clientes da Unimed Paulistana que, recentemente, ficaram ao Deus-dará depois que a Agência Nacional de Saúde determinou que a operadora abandonasse sua carteira. Eu continuo com muita dificuldade de entender porque as empresas investem milhões em publicidade para atrair o consumidor para seus produtos e serviços e economizam na outra ponta, quando, inclusive já estão com o consumidor conquistado. O setor de atendimento - tirando exceções - continua muito ruim no país. Há toda uma preocupação com a ponta da oferta mas, em muitos casos, a ponta do atendimento é desprezada. O problema é generalizado e aparece em todos os setores da economia. É a falta de respostas para os problemas enfrentados pelo consumidores com os produtos adquiridos, é o atendimento descortês e ineficiente em setores de telefonia, tevê a cabo, fornecedores de energia e água, é o desprezo pela reclamação feita via telefone, com o consumidor perdendo muito tempo na espera, enfim, não há investimento nem a preocupação no cuidado e atenção para com o consumidor depois que ele foi conquistado. E se o consumidor por algum motivo (muitos bastante justos) fica inadimplente, em alguns casos ele se torna persona non grata. Está mais que na hora das empresas preocuparem-se com a manutenção de sua clientela. E mais: lembro que um consumidor inadimplente é ainda um consumidor em potencial. Basta que ele seja compreendido em seus problemas e, muitas vezes, ajudado para que consiga resolver a pendência e voltar a consumir. É muito bacana aparecer na mídia que mostra o sucesso da publicidade massiva e caríssima oferecida ao mercado. Parece mesmo interessante "ser lembrado" por causa dela. Mas, seria muito mais interessante, eficiente e barato, se a lembrança do consumidor viesse por causa da qualidade dos produtos e serviços adquiridos por ele e pela excelência do atendimento que ele recebeu antes e depois de adquiri-los.
Vem aí mais um dia das bruxas, que se tornou parte do calendário comercial e eu retorno ao tema. É lugar comum perguntar: o que é bom para os norte-americanos é bom para o resto do mundo? É bom para os brasileiros? Todos sabem que os gringos adoram impor seus produtos e serviços para os consumidores dos demais países e fazem isso muito bem, utilizando-se de várias técnicas, dentre as quais a da apresentação e entrega de seus projetos e modelos culturais, seus filmes, suas músicas, seus enlatados de tevê, sua língua.... Ok! (Ops...). Mas, no caso do Halloween, sou obrigado a reconhecer que eles não têm responsabilidade (ao menos diretamente). Fomos nós, brasileiros, que, de livre e espontânea vontade, importamos a "festividade macabra". Como já lembrei aqui neste espaço, no meu tempo de criança ou adolescente (há mais de quarenta anos) seria impensável um dia das bruxas no Brasil. Não sei quando começou. Mas, possivelmente há cerca de dez ou quinze anos, alguma escola de inglês deve ter feito a programação para seguir o ritual norte-americano. Depois, no ano seguinte mais um escola e mais outra etc.. Com a importação via tevê a cabo e também tevê aberta de, cada vez mais , filmes e mesmo programas jornalísticos que reproduzem a festa, aos poucos, os brasileiros foram se acostumando, como se ela também fizesse parte de nossa realidade. Daí, o "dia das bruxas" chegou às escolas de ensino fundamental; depois em baladas de adultos e, enfim, na atualidade, parece que ela tem a ver conosco. Atualmente, nas tevês a cabo, nos canais de programas infantis, são apresentados programas específicos somente sobre a festa. Evidentemente, o mercado, sempre de olho nas oportunidades, deu sua contribuição e eis que temos entre nós crescendo vigorosamente uma festa importada, sem qualquer fundamento cultural e mesmo sem sentido ritualístico. E as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma boa receita, vendem bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. Essa forma de domínio capitalista, no final do século XX e início do XXI, passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração, no que, claro, contam com a ativa participação dos consumidores. É verdade que algumas escolas, não conseguindo fugir do evento, estão começando a fazer atividades didáticas e lúdicas, sem o emporcalhamento de doces e guloseimas oferecidos em grandes quantidades e sem nenhuma função de educação ou saúde. Mas, é pouco, pois, infelizmente, tudo indica que o tal dia das bruxas, famoso nos EUA, instalou-se entre nós, de forma alegremente macabra (...). Meu amigo Outrem Ego enviou-me um texto que recebeu nos últimos dias da administração do condomínio onde ele tem uma casa de campo. É um convite para as crianças darem um passeio na "Trilha do Horror com o Expresso Zumbi" e com paradas nas casas dos condôminos para pedir doces. No final, aparece no texto escrito que o passeio será "mega divertido e assustador". Eu, mais uma vez, insisti com ele que nossas comemorações de Páscoa e Natal, por exemplo, também são importadas. Ele concordou, mas esperava que nos dias atuais fosse mais difícil que se implantasse entre nós algo sem ligação cultural ou base social apenas e tão somente visando às vendas de produtos. "No caso, venda de doces e porcarias". Bem, no caso das comidas, até o Natal mereceu uma adaptação. Por muitos anos - e ainda até hoje - nas comemorações natalícias, em pleno verão tropical e escaldante, são ingeridas comidas gordurosas, doces, frutos secos, nozes etc., alimentos típicos de lugares frios, de onde a festa foi importada. E o coitado do papai Noel é obrigado a trajar aquela roupa quente no calor de mais de 30 graus. O consolo é que, pelo menos, o Natal traz algum alento, especialmente para os que se lembram que nesta data é celebrado o nascimento de Jesus Cristo. Realmente, a conscientização a respeito do controle exercido pelo mercado ainda é pequena. O consumidor, considerado como tal, aos poucos, passou a reclamar e reivindicar direitos. Mas, ainda não consegue compreender exatamente porque participa de certos eventos ou gasta seu dinheiro adquirindo certos produtos e serviços. Essa questão do Halloween no Brasil oferece uma boa oportunidade para o exame de como as coisas são feitas, pois ainda estamos no seu nascedouro. Se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas, nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e para a obesidade infantil.
Meu amigo Outrem Ego conta que, certa vez, quando seu filho Waltinho tinha apenas 10 ou 11 anos de idade, pediu para que ele comprasse alguma coisa da qual ele (Waltinho) não precisava. Meu amigo respondeu: "Não dá. Eu não tenho dinheiro". O filho, então, disse: "Ah! Pai, usa o cartão"! Em nossa sociedade, vai-se comemorando o Dia das Crianças dando a elas produtos. Certamente, neste ano não será muito diferente com vendas de muita bugiganga, apesar da crise. Espero que coisas úteis também venham a ser oferecidas, mas não pretendo explorar esse ponto dos produtos e das vendas como manda o calendário. Quero aproveitar a data para, mais uma vez, propor uma reflexão sobre o tema do Dia das Crianças. Dessa vez, quero lembrar, desde logo, que criança é aquela que tem até apenas 11 anos de idade. De acordo com nosso sistema legal (ECA - lei 8.069/90, art. 2º "caput") a partir dos 12 anos a pessoa é já adolescente. Basta, pois, explicar ao jovem que não é o dia dele ou dela para não ter que presentar1. Sei que a questão das compras de produtos e serviços desnecessários ou supérfluos envolve muito mais os adultos que os menores (basta ver o problema do superendividamento das pessoas que não se controlam nas compras). Todavia, em datas comemorativas como esta, a posição dos maiores se agrava, pois eles têm muita dificuldade em dizer não. Os pais (e também os avós e demais parentes) poderiam - ou, melhor, deveriam - aproveitar essas ocasiões para refletirem sobre como querem que essas crianças não só recebam esses presentes quanto, também, que valor devam dar a eles. Claro que uma vez que se está decidido a dar o presente, o primeiro caminho é descobrir o que dar. Tem-se, portanto, que refletir sobre a qualidade do presente. Haverá coisas úteis e porcarias. Coisas indispensáveis e outras desnecessárias. O mercado, como sempre digo, saberá oferecer de tudo. Como já afirmei antes, cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Há ainda outro ponto importante: é preciso apresentar o custo das coisas. O preço de cada produto e a capacidade financeira que os pais têm para adquiri-los. É bastante salutar que os filhos saibam o peso que uma compra pode ter no orçamento doméstico. Caso contrário, a criança (e também o adolescente) poderá acreditar que na falta de dinheiro, basta usar o cartão de crédito... Bem, isso em relação à qualidade dos presentes. Agora, lembro da quantidade. Quantos presentes uma criança deve ganhar de uma só vez? Como se trata de uma data específica para a criança e essa às vezes tem muitas pessoas à volta para presenteá-la, é comum que ela acabe ganhando muitas coisas. Acontece que, é também comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem pela maior parte deles. A criança que ganha muita coisa numa só ocasião tende a desvalorizar tudo ou escolhe um e abandona o restante. A data é boa para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. A criança precisa aprender a valorizar o que ganha (Como o adulto aprende às duras penas. Sei que alguns nunca aprendem...). Isso, da quantidade excessiva, repete-se no Natal e é mais comum ainda na data do aniversário. Quando há festa de aniversário com muitos amiguinhos convidados, não é incomum que a criança aniversariante ganha 20 ou 30 presentes (literalmente). Faz algum sentido? Veja isso, meu caro leitor: um estudo recente realizado pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) com mães das 27 capitais brasileiras, que possuem filhos com idade entre 2 e 18 anos, revelou que 64,4% das entrevistadas não resistem aos apelos dos filhos quando eles pedem algum produto considerado desnecessário, como brinquedos, roupas e doces. O percentual é mais expressivo entre as mães das meninas (68,9%)2. O levantamento mostra ainda, que muitas vezes, nem é preciso que os filhos manifestem o desejo de ganhar um presente para recebê-lo: 59,6% das mães compram produtos não necessários para os filhos sem que eles peçam, apenas pelo prazer de vê-los usarem coisas que gostam. Infelizmente, é cada dia mais comum verificar que boa parte do endividamento das famílias está relacionada a compra de itens desnecessários para os pequenos. Há não só falta de critério como que uma espécie de questão emocional mal resolvida e capaz de influenciar fortemente o hábito inadequado de consumo. A pesquisa mostra, inclusive algumas distorções que demandam reflexão: 58,5% das mães afirmaram que costumam comprar roupas e calçados melhores para os seus filhos do que para si mesmas e 21,9% delas admitiu que os filhos têm um padrão de vida superior ao dos demais integrantes da família. E, enquanto somente 15,6% das mães disseram dar presentes apenas nas datas especiais, como aniversário, Dia das Crianças e Natal, 46,4% confessaram não adotar regras para presentear seus filhos. Para concluir, cito um último dado que comprova aquilo que muitos estudiosos têm referido em relação aos presentes dados aos menores: o estudo revela que 29,7% das mães consultadas disseram que, mesmo comprando a maioria dos produtos que os filhos pedem, eles nunca se dão por satisfeitos e sempre pedem mais. __________ 1 Eu estava quase afirmando que não existe Dia do Adolescente, mas meu amigo Google disse que há sim e que ele é comemorado no dia 21 de setembro. Porém, como não é famoso, deixo consignado aqui em nota de rodapé esperando que ninguém descubra...   2 Colhi em 4-10-15 neste endereço:  O estudo foi publicado em 24/9/2015.
Recentemente, proferi uma palestra num Congresso aqui em São Paulo. Foi-me pedido que eu discorresse sobre o tema da segurança jurídica, algo tão extenso quanto o próprio sistema jurídico existente e todas as suas formas de interpretação e aplicação e que, no Brasil, envolve também aspectos políticos, institucionais e culturais. Nós ainda dizemos que há leis que pegam e leis que não pegam. Pior: pensando sobre o assunto, verifico que o buraco (da insegurança jurídica) é muito fundo. Isso envolve, naturalmente, os direitos em geral e também os dos consumidores. Aliás, como ultimamente tenho tratado muito das questões que envolvem os entes públicos, quero deixar consignado que na sociedade capitalista em que vivemos consumidor e cidadão se confundem: a maior parte dos benefícios sociais que envolvem produtos e serviços são típicos de consumo, o que inclui segurança pública, transportes, saúde, meio ambiente, etc.. Começo, então, concedendo a palavra a meu amigo Outrem Ego. Ele conta um episódio dos anos noventa do século passado, que envolveu sua mulher e o tio dela, um juiz do Tribunal Austríaco, morador da cidade de Innsbruck, na região do Tirol na Áustria. Ele conta o seguinte: "Estávamos minha mulher, o tio dela e eu andando pelas ruas da charmosa cidade de Innsbruck. Era janeiro, inverno e havia nevado muito. Enquanto caminhávamos pela calçada, um pedaço de gelo caiu de cima de um prédio quase me atingindo na cabeça. Imediatamente, pedi a minha mulher, que fala alemão, que perguntasse ao tio dela de quem era a responsabilidade pelos danos acaso houvesse um acidente e eu me ferisse. Ele respondeu que a responsabilidade era do dono do imóvel e também da prefeitura municipal, que tem o dever de fiscalizar para que esse tipo de acidente não aconteça." "Em função da resposta, resolvi perguntar quanto tempo demoraria uma ação judicial contra a prefeitura de Innsbruck para que a pessoa pudesse ser indenizada. (quero dizer minha mulher falou com ele em alemão). Ele não entendeu a pergunta. Minha mulher reformulou e fez o questionamento novamente e, daí, ele disse que não havia necessidade de propositura de ação judicial. Bastava um pedido administrativo junto à prefeitura. Perguntamos, então, quanto tempo demorava para que a pessoa recebesse o reembolso dos valores dispendidos. Ele disse, um pouco constrangido: 'Infelizmente, nos dias atuais o serviço não anda muito bom. Eles demoram três ou quatro dias para pagar'". Toda vez que penso em precatórios, lembro-me dessa história contada por meu amigo há muitos anos. Por nossas terrinhas, não só a administração pública não cumpre suas obrigações pagando suas dívidas, como luta incessantemente na Justiça para não fazê-lo. E quando condenada, com trânsito em julgado, o credor é obrigado a ficar na fila dos precatórios na expectativa de receber aquilo a que tem direito de longa data. Lamentavelmente, mesmo com a edição de nossa democrática Constituição Federal (CF) de 1988, essa questão não foi bem cuidada. Veja-se que o artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) diz que "Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até 180 dias da promulgação da Constituição" (grifei). E, pior ainda: por intermédio da Emenda Constitucional 30 de 2000, foi acrescentado o art. 78 ao ADCT que dispõe: "Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos" (grifei). Isso tudo, sem falar no imbróglio da correção monetária e dos índices aplicáveis envolvidos numa discussão judicial sem fim, como bem mostrou este poderoso rotativo Migalhas em matéria publicada em 27/2/15 intitulada "Precatórios Federais: um calote judicial"1. Bem, não preciso mais prosseguir neste assunto. Falar em segurança jurídica diante de um quadro desses é muito difícil mesmo. A questão da segurança tem relação com a confiança, que as pessoas podem ou devem ter nas instituições, nas leis, nas demais pessoas, etc., e até em si mesmas. Confiança é, pois, um substantivo que funciona como um sentimento que gera segurança. Essa segurança, por sua vez se estabelece como uma base de convicção que alguém pode ter em relação à atitude de outrem (os cônjuges e namorados reciprocamente, os amigos entre si, pais e filhos, etc..) e em relação às leis e instituições (leis devem ser cumpridas; a Justiça deve ser feita, a democracia é o regime da participação popular, etc..). O inverso é verdadeiro: a falta de confiança gera insegurança e enfraquece as convicções que as pessoas possam ter: "Ele ou ela traiu minha confiança"; "Como confiar na lei que nunca é cumprida"? Um aspecto importante em relação à confiança é que ela se projeta para o futuro: a pessoa acredita que o outro em que ela confia se comportará de certo modo previsível em alto grau: "Tenho certeza que terei o apoio de meu pai"; "Certamente meu marido endossará minha decisão"; "Estou convicto que ele fará o que combinamos". Confiança e previsibilidade andam juntas, portanto. O problema é que essa segurança se estabelece pelas relações que advêm do passado: alguém só confia em alguém ou em alguma instituição se a experiência pregressa mostra que é possível confiar (e que vale a pena confiar). Este é, pois, o nosso drama, meu caro leitor: como será possível estabelecer segurança jurídica na sociedade, se nosso passado não é lá dos mais confiáveis? Pois, como dizia o impagável Nelson Rodrigues, "no Brasil, até o passado é imprevisível". *** Ainda voltarei a este assunto. __________ 1 Precatórios federais: um calote judicial.
Não sei se ao sair publicado este artigo a greve dos funcionários dos Correios ainda continua, mas, ainda que tenha acabado, penso valer a pena tratar do assunto, pois sempre demora algum tempo para o serviço retornar ao normal e até lá vários danos já terão sido causados. E, claro, não é a primeira vez que trato do tema nesta coluna, porém, como os fatos se repetem, me vejo obrigado a voltar a cuidar dos direitos dos consumidores e dos fornecedores nesse período de greve. Evidentemente, todo dano causado aos usuários é de responsabilidade primeira da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor: ela responde pelos vícios ou defeitos de seus serviços, o que inclui, naturalmente, a ausência destes. E não há necessidade de que seja apurada sua culpa, eis que a sua responsabilidade é objetiva e decorre da exploração da atividade empresarial desenvolvida e seu risco. O empreendedor público, privado ou de atividade privatizada explora o mercado de consumo e a própria exploração da atividade gera risco social, independentemente de sua vontade. É lógico que, por exemplo, quando uma correspondência entregue pelo consumidor aos serviços do correio não chega a seu destino no prazo ou simplesmente se extravia, essa falha não se dá por interesse da empresa. Ela não decorre da vontade dos administradores da ECT, mas da atividade em si, eis que falhas sempre existirão no sistema de leitura ótica, na incorreta observação do pessoal que faz seleção dos envelopes e pacotes, no transporte, etc. Portanto, o dano existirá, apesar da vontade em sentido contrário dos administradores e funcionários. A lei sabe disso. Ela sabe que, apesar do esforço do prestador do serviço, em algum momento, por evento imprevisto, o serviço falhará, causando danos ao consumidor. Naturalmente, a responsabilidade é a mesma na sua ausência, como a que ocorre no período de greve e que persistirá mesmo após seu fim por mais algum tempo até que o serviço se normalize. Por isso tudo, a lei estabeleceu a responsabilidade objetiva. Basta a constatação do serviço contratado e seu defeito para que possa ser pedida indenização. De fato, a ausência de um serviço como o dos Correios sempre gera danos em larga escala, atingindo fornecedores e consumidores. Para o funcionamento dos serviços massificados, como os de telefonia, tevês a cabo, cartões de crédito, empréstimos bancários etc. é fundamental o serviço dos Correios. Isto porque, é através dele que a maior parte dos milhões de faturas é entregue mensalmente para pagamento embora, atualmente, milhões de faturas e boletos estejam sendo entregues via web/internet. Entretanto, o não recebimento de uma fatura não retira a responsabilidade do consumidor em pagá-la no prazo se o credor manda as faturas pelo correio mas, simultaneamente, coloca à disposição do consumidor outro modo de quitar o débito. Cabe ao fornecedor entregar as faturas antes da data do vencimento. Todavia, com a paralisação dos serviços do correio, a entrega fica prejudicada. O fornecedor, então, tem que oferecer uma alternativa de pagamento ao consumidor. As segundas vias devem ser oferecidas via fax, e-mail, acesso ao site, por ligação telefônica etc. Se essas segundas opções são oferecidas, cabe ao consumidor utilizá-las para o pagamento da dívida. Aliás, é bom também lembrar que, mesmo quando os serviços dos correios não estão paralisados, isso não impede que alguma correspondência não seja entregue. Logo, até fora desse período crítico, pode acontecer de o consumidor não receber fatura para pagamento dentro do prazo ou simplesmente não recebê-la. Mas, de outro lado, se o consumidor não recebe a fatura para pagamento nem tem a sua disposição outro meio para fazê-lo, não se pode imputar a ele a responsabilidade pela quitação da dívida no prazo. Não tem sentido culpá-lo pelo que ele não fez. É risco do fornecedor entregar a fatura com tempo suficiente para pagamento, risco esse que não pode ser repassado ao consumidor. Todavia, como sempre digo, não é fácil para o consumidor, nessa questão, se proteger. Para eventualmente tentar não ser responsabilizado, o consumidor tem que provar que não recebeu a fatura, o que é muito difícil de fazer quando ela não é entregue. Dá para fazer a prova, por exemplo, se o consumidor avisou por escrito seu novo endereço para recebimento da fatura e ela foi enviada ao antigo ou quando o próprio correio coloca carimbo de entrega atrasada (Nesse caso, é a ECT quem deve ser responsabilizada pelo atraso). No entanto, afora esses tipos de exceções, o consumidor acaba sendo responsabilizado pelo atraso. Por isso é que se aconselha que o consumidor mantenha uma agenda com datas dos vencimentos de suas faturas regulares. Se, até a véspera do vencimento, ainda não recebeu alguma, então, ele pode e deve entrar em contato com o credor, solicitando segunda via. Essa é uma regra geral para o dia-a-dia de todos os consumidores que, evidentemente, nesse período de greve, deve ser imediatamente seguida. (Anoto que, para aquele que não faz esse tipo de controle, a saída é pegar as contas do mês anterior, ver as datas dos vencimentos e checar o prazo que existe para pagá-las). Atualmente, todos os grandes fornecedores mantêm Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) e/ou sites, nos quais é possível obter uma segunda via da fatura. Se o credor não tiver esse tipo de serviço, como já disse acima, ele é obrigado a dar outra alternativa para pagamento, como, por exemplo, envio do boleto via fax ou apresentação de dados bancários para depósito em conta (nº de conta corrente, banco e agência, número do CNPJ - se for pessoa jurídica - ou CPF - se for pessoa física). Repito: se o credor não der alternativa, o consumidor não pode ser responsabilizado pelo atraso. Uma boa atitude dos fornecedores - e é o que se espera - é a de não cobrar multas daqueles que, eventualmente, pagarem suas faturas fora do vencimento no período de greve, pois não se pode responsabilizar o consumidor que pretende pagar suas dívidas se ele não tem dificuldade em fazê-lo.
Em matéria de capitalismo, fala-se muito da iniciativa privada e, muitas vezes, esquece-se que os serviços públicos são também típicos de consumo (ainda que, doutrinariamente, possa haver divergências, tema que aqui não interessa). Infelizmente, os nossos são de qualidade e eficiência muito duvidosa. Hoje, retorno a eles, envolvendo-os em sua natureza político-democrática. *** Vivemos tempos bicudos no Brasil e no mundo. Está bastante difícil ler, ouvir e ver notícias. Eu não sou pessimista e ainda consigo enxergar os atos de bondade humana e de solidariedade, consigo ver o brilhantismo dos gênios e das invenções. Mas o mal pulula incrivelmente em todos os cantos do planeta. Sou daqueles que sempre acreditou que a liberdade gera responsabilidade e, se a consciência livre está baseada em valores morais relevantes - como os valores cristãos, por exemplo - então, talvez se possa salvar a humanidade. E, claro, um dos grandes problemas de administração humana sempre foi o dos regimes políticos. A democracia, ah!, essa é a única saída. Como diria Winston Churchill: "A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram imaginadas". Mas, para que uma democracia realmente funcione, para que seja legítima, há alguns requisitos. Cito um deles, o de que ninguém pode ser importunado pelo simples fato de estar caminhando por alguma rua a não ser que esteja cometendo alguma desordem, algum ato ilícito ou, quando muito, esteja em atitude suspeita (embora de semântica muito ampla e sujeita a todo tipo de interpretação subjetiva, a atitude suspeita é o máximo de permissão para uma intervenção do agente estatal). Vou, então, deixar para a reflexão dos leitores uma história narrada por meu amigo Outrem Ego há muito tempo (cerca de cinco anos, num domingo, dia das mães). São mais elementos para que nós possamos pensar nos serviços públicos que temos e na democracia que queremos. Eis a história que ele contou: "Os irmãos João e Maria viviam com sua mãe e estavam desempregados, com dificuldade de pagar o aluguel da casa em que moravam. Mas, de repente tudo mudou. Ele, professor de educação física, conseguiu emprego numa academia como personal trainer e ela numa loja. Foi bem no mês anterior ao dia das mães. Agradecendo aos céus, compraram um bonito presente para ela e naquele domingo comemorativo levaram-na para almoçar fora, o que não conseguiam fazer há alguns anos. Comeram num bom restaurante italiano. O prato foi talharini ao pesto, e como bebidas, água e suco. Quando voltavam para casa foram parados numa blitz policial, como se bandidos fossem. João, que dirigia o veículo, foi retirado do carro e seguiu-se o seguinte diálogo entre ele e o policial que o abordou. - O senhor tem que fazer o teste do bafômetro. - Por quê? -- perguntou ele, surpreso. - Porque sim. - Mas eu estava almoçando com minha mãe. Está vendo ali. Aquela é minha mãe... - Venha, o senhor tem que fazer o teste. - Acho que o senhor não está entendendo. Eu não bebi nada. Só suco de laranja. Aliás, eu não tomo bebida alcoólica. Sou professor de educação física e atleta. Eu não bebo. - Isso não interessa. - Como não interessa? Olhe para mim. Parece que bebi? Vai. Veja. Aposto que o senhor não consegue ficar tanto tempo em pé numa perna só como eu. Quer apostar? - Pare. O senhor está desacatando autoridade. - Como? Que absurdo. É o senhor que quer que eu assopre esse negócio, mas eu nem bebi. - Se o senhor não fizer o teste vai ser preso! - Preso? Preso por quê? Qual crime eu estou cometendo? (...) Muito bem. Como João era um homem de princípios, não cedeu e acabou preso. Vendo a prisão do filho, sua mãe desmaiou e teve de ser levada às pressas para o hospital. Maria colocou a mãe no banco de trás. Ela balbuciava alguma coisa. Maria dirigiu às pressas para um Pronto Socorro. Quando parou numa esquina, mais ou menos três quarteirões à frente da batida policial, dois jovens se aproximaram apontando uma arma e exigindo que ela entregasse a bolsa e a chave do carro. Ela, então, em prantos mostrou a mãe passando mal no banco de trás. Os bandidos viram a cena e resolveram levar apenas o dinheiro que Maria portava. E onde estava a polícia nessa hora? Parando cidadãos de bem que, depois de uma semana de trabalho para pagar impostos, saíram para almoçar com suas mães e talvez tenham bebido uma cervejinha ou não. (...) A mãe acabou sendo medicada e, após pagar fiança, o irmão foi solto. Na semana seguinte, o prédio em que viviam foi invadido por dez homens bem armados que fizeram um "arrastão" e lá ficaram por duas horas roubando tudo dos apartamentos. E onde estavam os policiais? (...) Não sei. Mas, eu os vi, alguns dias depois obrigando um idoso com cerca de setenta anos a colocar sua boca num aparelho medidor. Idoso, que depois de cumprir suas obrigações como pessoa de bem anos a fio neste país, que atravessou uma terrível ditadura e que finalmente havia chegado à democracia, após ter saído para jantar com amigos como sempre fizera por muitos anos sem causar nenhum dano a quem quer que seja, era abordado sem qualquer suspeita ou dado objetivo, como se bandido fosse." Meu amigo complementou: "Tudo isso seria irônico se não fosse trágico e real. Deixo a ironia para os bandidos que, no dia das mães, ficaram com dó daquela mãe doente no banco de trás do carro. É sempre bom lembrar que até bandido tem mãe. Mas, o respeito a elas não é oferecido por todos (...) Infelizmente, o Estado não está cumprindo sua função de oferecer segurança pública à população. Os assaltos à mão armada praticados contra motoristas nas esquinas, os sequestros e os sequestros-relâmpagos, os roubos de residências e o incrível número de assaltos feitos por bandos em prédios residenciais já se tornaram rotina. Em plena e suposta democracia, é triste ver a população brasileira sofrer, de uma lado, pelo medo e pela violência dos bandidos e, de outro, pelos abusos praticados pelos agentes do Estado." *** É isso, caro leitor, apenas mais um pedaço de lenha nesse imenso fogaréu chamado "democracia que temos" e 'serviços públicos que gostaríamos de ter'.
Hoje, 11 de setembro de 2015, a lei 8.078/90, isto é, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), completa 25 anos de existência. Como sempre tenho dito, a boa notícia é que o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, sempre lembrada tanto em setembro como em março (mês em que entrou em vigor; mês em que também se comemora o Dia Mundial dos Direitos dos Consumidores). Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. E, claro, com 25 anos de idade seria de se esperar que a lei fosse cumprida por todos o tempo todo. Não é bem assim, mas neste aniversário quero mostrar o lado bom. Com um início de vigência que, lembro-me bem, assustou empresários em geral, muitos publicitários e os grandes conglomerados em especial, aos poucos o CDC foi se firmando e deixando de ser o bicho-papão de que o acusavam injustamente. Ao que me consta, ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como, também, da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento melhor qualificado, enfim, a norma ajudou o mercado a amadurecer. Para ficarmos apenas com um exemplo: antes do CDC, a maior parte dos produtos não trazia estampada nas embalagens seu prazo de validade. Lembro-me bem que eu fiquei espantado com o curto prazo de validade de alguns produtos. Até água em garrafa ou em copo plástico tem curto prazo de vida sadia! Antes da lei 8.078/90, nós consumidores, muito provavelmente, tenhamos ingerido toneladas de produtos vencidos e sorvemos milhares de litros de bebidas ultrapassadas. (Ocorre-me um fato tão terrível quanto peculiar: sou da época dos refrigerantes em garrafa, e me vem à memória quantas vezes, quando garoto, retirei a tampinha e com a mão limpei as marcas de ferrugem que estavam na boca da garrafa, antes de beber o refrigerante... Das vezes que adoeci, sabe-se lá quantas não estavam relacionadas com produtos e bebidas deteriorados...) Pois bem, o susto dos empresários passou. A lei teve, como tem, muito boa eficácia - ou, como se costuma dizer no Brasil, é "uma lei que pegou". Não resta dúvida que as pessoas passaram a descobrir que tinham muitos direitos garantidos pelo CDC e resolveram exigi-los, não só por intermédio de ações judiciais quando foi preciso, mas também no dia a dia das compras fazendo exigências e reclamando. Essa consciência que o consumidor adquiriu fortaleceu o mercado. Ao mesmo tempo em que os consumidores passaram a ficar mais escolados em matéria de consumo, os empresários também. Muitos destes passaram a adotar a lei como elemento de marketing para atrair seus clientes, o que foi bem-vindo e, de fato, dá resultados. Essa é mais uma virtude da lei consumerista: deixou realçado que o bom fornecedor é aquele que desenvolve seu projeto de negócio, claro, visando o lucro, mas respeitando seus clientes. Como disse meu amigo Outrem Ego: "É quase tão simples como vender amendoim nas areias perto do mar". Ele explica: "Na praia, o vendedor de amendoins passa gritando e dando uma amostra de seu produto para os banhistas; caminha alguns metros repetindo esse gesto para depois voltar. Enquanto ele vai, os veranistas comem o amendoim recebido - e de graça! - e quando ele volta, quem gostou tem a oportunidade de comprar um pacotinho, momento em que o negócio é concretizado". "Desse simples modo de oferecer e vender o amendoim, pode-se extrair um dos melhores exemplos de como o empresário deve tratar o consumidor: em primeiro lugar o vendedor faz uma propaganda honesta, oferecendo de graça seu produto para que o consumidor experimente; depois ele somente vende para o consumidor que, de fato, quer comprar, uma vez que o produto foi previamente examinado, testado e aprovado". "Quanto ao consumidor que experimentou mas não comprou, ainda assim o negócio foi bem feito. O custo do amendoim oferecido gratuitamente faz parte do custo total do negócio, porém funciona sempre como investimento, pois, até para aquele que não comprou fica a lembrança da boa imagem que o vendedor construiu, respeitando inclusive seu desinteresse em adquirir o produto. Por conta disso, esse consumidor torna-se um cliente em potencial, podendo tornar-se um comprador em outra oportunidade". É verdade que não são todos os fornecedores que pautam sua conduta com base na lei nem no modelo do vendedor de amendoins citado por meu amigo. Sim, mas realço que na medida em que o tempo passa, os consumidores vão, de um jeito ou de outro, obrigando a uma mudança do padrão da produção, distribuição e oferta de produtos e serviços a favor da qualidade, do respeito e - por que não? - até de um preço menor em muitos casos. Ainda há muito a ser feito, inclusive, uma reforma com ampliação das regras existentes, como já aqui defendi, mas é importante lembrar que a lei 8.078/90, em 25 anos, trouxe, não só esperança de que possamos ter um mercado de consumo mais sadio e equilibrado como, realmente, alcançou muitas das metas sonhadas por seus autores.
Continuo hoje o artigo da semana passada, no qual comecei a mostrar aspectos da penalização de motoristas por conta de regras do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) que são eivadas de inconstitucionalidades. Lembro: os pontos para as infrações são colocados numa vala comum, independentemente de seu grau. Uma coisa é o motorista trafegar de forma perigosa, com o veículo sem condições de dirigibilidade, fazendo conversões proibidas, movimentando-se em velocidade excessiva, fazendo ultrapassagens perigosas, dirigindo embriagado, etc., outra, muito diferente, é ser pego trafegando no horário proibido pelo rodízio ou não ter colocado o cartão da zona azul ou, ainda, estacionar o veículo em local proibido. Vejamos outros fundamentos constitucionais que são violados. Como é sabido, o princípio da isonomia, assegurado na Constituição Federal (art. 5º, "caput" e inciso I) implica que, concretamente, ninguém possa ser tratado com desigualdade pela lei ou por seu agente aplicador. Não pode a lei, portanto, punir mais quem faz menos, sob pena de violar esse princípio constitucional. O mínimo que se pode esperar da norma nesse sentido é que, se ela pretende que se punam os infratores, que aquele que cometer o delito mais perigoso seja punido com mais rigor do que aquele que cometer o de menor gravidade. Acontece que, como vimos acima, o CTB colocou num mesmo patamar infratores perigosos e infratores sem nenhuma periculosidade. Isso foi feito pelo equivocado sistema de pontuação, que pretende punir o infrator que atinge uma escala de números (mais de 20 pontos), independentemente da qualidade das infrações. E esse aspecto viola princípio da igualdade. É inadmissível a lei dar a mesma pena a pessoas que cometem infrações tão diversas como as descritas acima. Aliás, é possível até que um infrator sem nenhuma periculosidade seja punido e o perigoso não seja, como mostrei. Antes de prosseguir, anoto que o fato de a infração relativa à zona azul ter pontuação 4 e a do excesso de velocidade ter 7 (ou seja, há mais pontos negativos para uma do que para outra) não modifica em nada o argumento. Isso porque não existe qualquer conexão lógica entre essas infrações. A natureza de cada infração é tão diferente que impede a comparação. Logo, não há relação entre o ponto negativo 4 de uma e o ponto negativo 7 de outra. Assim, não sendo - como não é - possível fazer analogia entre infrações tão diversas, elas não podem ser comparadas. A questão das punições do CTB é penal. Para o legislador penal ordinário existe um comando constitucional a ser observado na fixação da pena. É o chamado princípio da proporcionalidade. Ele funciona como parâmetro obrigatório para o legislador e apresenta três facetas: a) a pena deve ser graduada de acordo com a relevância do bem jurídico a ser tutelado; b) deve ser levada em conta a pessoa do infrator; c) deve ser considerado o caráter retributivo, isto é, a pena deve ter a mesma pujança da conduta violadora; deve ser fixada levando em conta esse paralelo: a relação existente entre a infração delituosa e a pena. O art. 5º, XLVI, da Carta Magna dispõe que: "a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos". Ora, conforme já expus, o CTB, ao fixar a pena de suspensão do direito de dirigir para os casos de infração de natureza meramente administrativa, está em total dissonância com o texto constitucional. E pior: não está de acordo com nenhum dos critérios caracterizadores do princípio constitucional da proporcionalidade. Vejamos os detalhes. Não resta dúvida de que se trata de pena administrativa de suspensão de direitos (suspensão do direito de dirigir), podendo ir até seu perdimento (perda da CNH). E essa pena: a) primeiramente, não tem graduação na relação com o bem jurídico tutelado. Com efeito, estacionar em local proibido, não colocar o talão da zona azul ou trafegar no horário proibido pelo rodízio não tem relevância jurídica suficiente que possa conduzir à suspensão ou perda do direito de dirigir; b) em segundo lugar, como a fixação é objetiva e abstrata, aplicada indistintamente a todo e qualquer motorista, não leva em consideração a pessoa do infrator. É bem possível (aliás, deve estar acontecendo e muito) que um cidadão que jamais tenha dirigido um veículo em excesso de velocidade, e que dirija há muitos e muitos anos sem nunca ter causado nenhum acidente, possa estar perdendo sua habilitação apenas e tão-somente porque teve de trafegar no horário proibido pelo rodízio ou porque se viu obrigado a estacionar em local proibido, ou, ainda, porque não tinha talão da zona azul ou simplesmente esqueceu-se de colocá-lo; c) em terceiro lugar, a suspensão do direito de dirigir ou o perdimento desse direito, nos casos que estou apontando, não seguem o critério da retribuição. É absolutamente desmedido suspender o direito de dirigir de quem não colocou no carro o talão da zona azul, ou estacionou em local proibido ou, ainda, trafegou no horário proibido pelo rodízio. A única retribuição jurídico-constitucional adequada nesses casos é a fixação de multa. Nada mais. Finalizo, portanto, deixando consignada minha posição em prol de tantos quantos já se sentiram injustiçados por terem o direito legítimo de dirigir seus veículos cassado por infrações meramente administrativas. Se quisermos realmente construir uma nação democrática precisamos ir a cada dia amoldando nosso sistema legal aos princípios e regras constitucionais de modo a evitar desigualdades e injustiças.
Meu amigo Outrem Ego inspirou-me a escrever este artigo. Disse-me ele: "Sou motorista habilitado há mais quarenta anos. Nunca sofri ou causei nenhum acidente - graças a Deus! - e nesses anos todos recebi algumas multas, todas por estacionamento proibido ou por ter furado o rodízio (foram duas vezes em que simplesmente me esqueci)". E continuou: "Sinto-me acuado. Acabei de receber duas notificações de multas por excesso de velocidade. Sabe de quanto? Uma, porque eu estava a 57 Km por hora numa via em que a velocidade máxima permitida era de 50 - e à noite sem ninguém por perto. Outra por trafegar a 48 Km por hora, quando o máximo permitido era apenas 40. Não consigo mais dirigir com tranquilidade pelas ruas de São Paulo, pois está muito difícil saber qual é a velocidade permitida, e em quais vias. Como tenho medo de perder minha carteira, tenho andado a 40 km por hora em quase todos os lugares e vou sempre preocupado...". Depois, arrematou: "Bem, quero dizer que ganhei mais uma preocupação, pois há os bandidos que assaltam os motoristas, os buracos das ruas que estragam nossos veículos, o trânsito infernal, os pedestres que literalmente pulam à frente fora da faixa, os motoqueiros que passam como bólidos entre os veículos num espaço minúsculo (será que eles não são multados?), enfim, mais um problema junto de uma série de outros. É assim mesmo que se constrói uma sociedade?". Como um dos assuntos do momento é criticar motoristas, inspirado por meu amigo, resolvi falar sobre mobilidade urbana, mas com um foco diferente. Ficarei, digamos assim, na contramão de direção: mostrarei algumas das violações praticadas contra os motoristas. Antes de mais nada, e para evitar confusão, coloco o óbvio: qualquer pessoa é a favor da punição a motoristas infratores, especialmente aqueles que colocam em risco a segurança e a vida dos demais (e de si mesmos). Por isso, é fundamental existirem leis que determinem o controle do trânsito, que fixem punições e estipulem critérios de aferição das infrações. No entanto, existem várias infrações ligadas ao uso de veículos que não acarretam nenhum tipo de perigo ou risco à comunidade ou às demais pessoas. Está entre essas infrações, por exemplo, estacionar em local proibido, estacionar nas chamadas "zonas azuis" sem a colocação do cartão, trafegar com o veículo no horário proibido nas cidades com sistema de rodízio, como a capital de São Paulo, etc. (É verdade que se pode objetar que o estacionamento em alguns locais pode gerar transtorno no trânsito, como, por exemplo, na av. Paulista. Nesse caso a infração seria mais grave que estacionar em outro local proibido de menos movimento. No entanto, nem assim se justificaria, como veremos, a aplicação da pena de suspensão ou perda do direito de dirigir. Bastaria guinchar o veículo e, na hipótese, aplicar uma multa maior que as demais. Isso sim seria adequado: multas diferentes para estacionamento em local proibido em ruas diferenciadas). Ora, ainda que se admita que infrações desse tipo possam gerar a imposição de uma multa pecuniária, nada justifica que se imponha a perda ou a suspensão do direito de o motorista continuar dirigindo por infrações dessa ordem. Aliás, ao contrário, como mostrarei, o Sistema Constitucional Brasileiro proíbe que uma lei possa impor penalidade desse tipo. Uma coisa é o motorista trafegar de forma perigosa, com o veículo sem condições de dirigibilidade, fazendo conversões proibidas, movimentando-se em velocidade excessiva, fazendo ultrapassagens perigosas, dirigindo embriagado etc., outra, muito diferente, é ser pego trafegando no horário proibido pelo rodízio ou não ter colocado o cartão da zona azul ou, ainda, estacionar o veículo em local proibido. É bem fácil perceber que no primeiro caso o motorista representa um perigo à incolumidade física das demais pessoas, podendo no segundo, quando muito, gerar transtornos de ordem administrativa ou queda na arrecadação da verba prevista para o estacionamento nas vias públicas. A punição em cada hipótese deve ser - só pode ser - muito diferente. O problema está em que o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estabeleceu uma confusão entre as duas formas de ação dos motoristas. Ao criar um sistema de pontuação, no qual são somados, na mesma vala comum, os dois tipos de infrações acabou gerando, concretamente, uma violação ao direito dos motoristas. Suponha-mos que alguém que sempre dirija de forma adequada e preventiva, nunca excedendo a velocidade, não fazendo ultrapassagens proibidas etc., mas que tenha que usar o automóvel para trabalhar, seja apanhado dirigindo, no período de um ano, por seis vezes, no horário proibido pelo rodízio. Ele somará 24 pontos (4 pontos de cada vez) e ficará sem a Carteira Nacional de Habilitação - CNH. No entanto, se, no mesmo período, outro motorista for multado por excesso de velocidade por duas vezes não sofrerá a mesma pena, pois terá somado apenas 14 pontos (7 de cada vez). O motorista perderá a habilitação se tiver, também, tantas autuações de zona azul e por estacionamento proibido quantas forem necessárias para atingir mais de 20 pontos. Os exemplos, claro, se multiplicam na exata medida das combinações de infrações e pontuações. O grave nisso tudo não é só a evidente injustiça concreta da situação em que se acabam colocando os cidadãos, mas também a distorção que o sistema gera, uma vez que acaba punindo o melhor motorista em detrimento do pior. Por isso, penso, este ponto da lei é inconstitucional. *** Há mais, mas temos de ir devagar. Continuarei na próxima semana.
quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Por uma advocacia preventiva

Em meus anos de professor da graduação, costumava contar para meus alunos a seguinte história: rolava uma festa; um médico e um advogado conhecidos conversavam animadamente. De repente, surge um outro convidado e se dirige ao médico: - Ah, doutor, que bom encontra-lo aqui. Como vai? - Bem, e você? Em resposta à pergunta do médico, o terceiro que chegara começa a falar de uma série de sintomas, colocando a mão no peito, no pescoço, na cabeça, etc. e, ao final da narrativa, pergunta: - O que eu faço, doutor? - Isso não é nada. Espere que eu te dou uma receita. Daí, o médico saca do bolso um talonário, prescreve um medicamento, assina e dá ao conhecido. Este agradece e se retira. Depois, o médico vira-se para o advogado e desabafa: - É sempre assim! Basta algum conhecido me encontrar numa festa que já fila uma consulta. O que você faz quando te consultam fora do escritório? - Ah, eu não me aborreço - diz sorridente. Dou a resposta e, no dia seguinte, mando uma fatura para a casa do consulente, cobrando meus honorários. - Boa! É isso que eu farei. Amanhã inicio minhas cobranças desse tipo de consulta. Mandarei uma nota para esse fulano. No dia seguinte, o médico recebe na sua casa uma fatura do advogado cobrando pela consulta que lhe fizera na véspera na festa... *** Sempre gostei dessa história, pois ela valoriza algo que nem sempre é valorizado pelas pessoas em geral e, às vezes, até pelos próprios consultores jurídicos: a opinião profissional. E a analogia com o médico e a medicina permite que pensemos uma das questões mais importantes para o exercício da advocacia: o papel da prevenção. Nos dias que correm, é, mais ou menos, lugar comum a ideia de que as pessoas (especialmente a partir de uma certa idade) devem consultar um médico regularmente. Mesmo como rotina, como se diz, essas consultas podem evitar danos maiores, podem detectar doenças e até em casos graves como o câncer, uma vez este descoberto no início, muitas vezes há boas chances de cura. E ainda que esse controle preventivo não seja feito por todos, atualmente, são milhares que o fazem. Com a advocacia, haveria de se dar o mesmo. É verdade que as pessoas jurídicas se utilizam, regularmente, de forma preventiva, dos serviços jurídicos, mas o mesmo não se dá de forma generalizada com as pessoas físicas. Estas buscam esses serviços mais como "pronto-socorro ou internação de urgência", depois que o problema surge. Seria muito bom que essa cultura fosse modificada, pois o trabalho do advogado é fundamental sempre; e se fosse buscado de forma preventiva, certamente muitos problemas seriam evitados. Fazer economia evitando conversar com um advogado não é uma boa estratégia. Fica, pois, aqui minha homenagem ao Dia do Advogado, que ocorreu nesta semana, na esperança de que, cada vez mais, as pessoas valorizem a consulta jurídica.
quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Como perder o cliente em algumas lições

O título completo do presente artigo deve ser "Como perder um cliente em algumas lições e ainda correr o risco de ser processado por ele". É disso que eu tratarei na sequência. Antes de iniciar, deixo consignado que, claro, há muito mais exemplos de como perder clientes do que apenas esses. Estou fazendo aqui uma escolha arbitrária, mas que, penso, seja o suficiente para apontar ações e comportamentos equivocados do atendimento ao cliente. Este artigo tem por base minhas reflexões, que não são recentes, a respeito das relações de consumo que, no passado, foram muito harmônicas (até início dos anos 60 do século XX), passaram por forte crise a partir do cálculo financista que tomou conta das relações (e que ainda tem muita importância e, em alguns setores, preponderância), mas que, aos poucos, vão sendo retomadas, especialmente com a tomada de consciência de que é preciso mudar os padrões de consumo. Consegue-se observar aqui e ali alterações no rumo do consumo consciente e sustentável e que envolve, de um lado, empresas que respeitam o consumidor e, de outro, consumidores mais conscientes de sua importância no mercado de consumo. Ou, em outras palavras, as relações harmônicas de consumo são o que há de mais moderno em termos de capitalismo. Meu foco: respeitar e ouvir o consumidor é não só inteligente e legal (no duplo sentido) como gera lucros ao garantir a manutenção dos clientes já conquistados e amplia a base existente. O inverso é também verdadeiro: o empresário (e também o profissional liberal) que não souber disso e não pautar suas ações nesse modelo só tem a perder: é atrasado, tacanha, sua imagem irá perdendo valor, sua base de clientela não crescerá, em muitos casos diminuirá, perderá receita e muitos quebrarão. Há vários caminhos para cuidar da questão do atendimento. Um deles é o de tratar o consumidor como um número e/ou como se todos os consumidores fossem iguais, tivessem os mesmos sentimentos e desejos, se reagissem da mesma forma em todas as circunstâncias. Mas não irei por aqui. Quero cuidar exatamente das hipóteses nas quais é possível trabalhar com standarts pré-concebidos, mas isso deve ser muito bem estudado e melhor ainda executado. Algumas medidas simples podem ajudar. Vou referir uma que é frequentemente esquecida pelos administradores: a da simpatia (ou se sua contra partida, a antipatia). A simpatia é um sentimento que gera uma identificação ou mesmo uma atração de uma pessoa à outra. Por intermédio dela, o indivíduo estabelece uma harmonia com o outro e, a partir disso, pode criar laços firmes e duradouros. Por isso, são sinônimos de simpatia a afeição e a afinidade. Ela gera uma espécie de atração para algo ou para alguém; ela desperta o interesse no outro ou no que ele (o outro) faz. Com a antipatia se dá o inverso: ela é um sentimento de repugnância e repulsa diante de alguém ou de alguma coisa. E, claro, gera desarmonia, discordância. Literalmente, antipatia é "contra-afeição". Tem origem no termo grego antipathéia?: anti (contra) e pathéia (afeição). A antipatia opera em vários níveis, desde uma sensação de mero desconforto até a total repulsa. E se a experiência com relações simpáticas deixam o sujeito mais à vontade para as novas relações simpáticas, as antipáticas anteriores funcionam para aumentar a rejeição das atuais. Chega uma hora em que a pessoa simplesmente cansa de aguentar os gestos antipáticos. Por falta de conhecimento, a simpatia nem sempre é considerada; e é algo modesto, fácil e inteligente de executar. O oposto também se dá: a antipatia aparece em várias resoluções e atos. A primeira conquista o consumidor, a outra pode alijá-lo da relação. Vejamos alguns exemplos de ações antipáticas. Começo relatando um caso envolvendo meu amigo Outrem Ego. Eis o que ele me contou. "Sou cliente de um canal de tevê a cabo há mais de dez anos. Sempre paguei a fatura religiosamente em dia, nesses dez longos anos. Nunca atrasei um dia sequer. Mas, olha o que aconteceu. No mês de janeiro deste ano, sai de férias com minha família. Não sei explicar o que houve, pois nunca vi a fatura daquele mês e simplesmente esqueci de pagar. Voltamos num fim de semana. A tevê à cabo não funcionava. Depois de algumas tentativas, liguei para eles e descobri que haviam cortado o sinal por causa do não pagamento daquela fatura". Depois de engolir a seco, ele concluiu: "Fiquei revoltado. Passei doze anos pagando a conta em dia. Cento e quarenta e quatro meses de pagamentos mensais corretamente. E olha que muitas vezes minha família e eu nem ligamos a tevê. Cento e quarenta e quatro meses em dia e nunca ligaram para dizer obrigado. Mas, bastou atrasar uma única fatura e eles cortaram o sinal. Malditos!" Caro leitor, meu amigo tem toda razão de ficar bravo. O que aconteceu com ele é o que eu chamo de antipatia e burrice ou, em termos mais jurídicos, incompetência na administração do negócio da prestação de serviço de longo prazo. Ora, em relações continuadas, especialmente naquelas em que o cliente paga mensalmente, o histórico do relacionamento é fundamental. Não tem sentido que a empresa não leve em consideração esse aspecto de fundamental importância existente entre ela e seus clientes. Num caso como o de Outrem Ego, antes de tomar a decisão de cortar o serviço é preciso saber se o cliente é fiel, se ele paga as contas em dia, há quanto tempo ele paga etc.. Sei que o sistema é de massa e automatizado, mas isso não impede que o computador seja preparado para medir a pontualidade e fidelidade de cada um dos clientes. Não há qualquer desculpa para a ação da empresa. Num caso como o de meu amigo, o sistema deveria, ao invés de determinar o corte do serviço, enviar uma segunda via ao cliente perguntando se ele havia esquecido de pagar ou, então, mandar um torpedo ou, ainda, ligar para ele. Somente depois de mais de uma tentativa é que deveriam decidir sobre o corte e ainda assim dando um aviso prévio claro. Esse exemplo é daqueles que permitem que eu mostre que o problema da relação de consumo não é sempre da aplicação da lei. No caso, a lei pode até estar do lado da empresa de tevê a cabo, mas a ação dela é tão lamentável e equivocada, que só faz mal. E faz mal, mesmo que o serviço seja restabelecido rapidamente. São empresas que erram primeiro para consertar depois. Erram conscientemente (ou por má administração, o que dá no mesmo). Pior: sem nenhum benefício financeiro, pois se o serviço fosse cortado apenas um mês depois ela não teria nenhum prejuízo. Incompetência pura e simples. Um outro exemplo muito conhecido é o das empresas e profissionais liberais que se esquecem que, do outro lado da linha telefônica ou do endereço de e-mail, pode se encontrar alguém muito interessado em (ou desesperado para) falar algo importante. Isso é particularmente grave quando essa pessoa que chama (ou grita, muitas vezes) usa expressões como "urgente", "muito urgente", "urgentíssimo", "grave", "gravíssimo", etc. E muitas vezes, o pedinte (ou reclamante) não usa essas expressões porque está com pressa e esquece. O fato é que, em todos os casos o retorno é que é importante. Um retorno rápido. Há casos até de amizades perdidas por falta de retorno. Imaginem-se as perdas quando se trata de um consumidor que necessita de algo urgente. Esse alerta vale tanto para grandes corporações que detêm muitos clientes como para pequenos escritórios de advocacia ou consultórios médicos. Não importa o tamanho: se grande, a estrutura deve poder dar conta dos retornos, se pequeno idem. Pode ser um consumidor que quer saber como resolver um problema com sua tevê a cabo ou um cliente (antigo ou novo) que recebeu uma intimação judicial ou, ainda, um paciente que precisa de um atendimento médico imediato. Veja, caro leitor, que eu não estou exagerando. Trata-se de um simples cuidado: o retorno de uma ligação ou de um e-mail para que o cliente existente ou em potencial fique satisfeito. O inverso é verdadeiro: ele se sentirá abandonado e irá procurar outro lugar para resolver seu problema. E para terminar, conto mais um, bastante singelo: o dos boletos relativos às relações constantes e duradouras, mas que contêm ameaças sem sentido. Mais uma vez, quem me contou foi meu amigo Outrem Ego. Ele me disse: "Veja que treco mais antipático esse do contador da minha mulher. Você sabe que ela tem uma microempresa e o contador dela é o mesmo desde o início dos negócios há quase dez anos. Todo mês, ele manda o boleto para ela pagar a prestação do serviço mensal. Já houve vezes em que ela esqueceu de pagar. Daí, ela liga lá e eles mandam novo boleto com novo prazo, sem qualquer dificuldade. Mas, veja só. Nos boletos consta: 'Após o vencimento vence juros de x% mais multa de 2%. Protestar no 10º dia de atraso'. Não é uma bobeira? Aposto que o contador jamais protestou um cliente sequer". De fato, nessas relações continuadas, nas quais predomina a confiança mútua, é muito antipático dizer que, se o cliente não pagar, será protestado. E, como disse meu amigo, não só é antipático como contraproducente. Protestar um cliente que paga mensalmente pelos serviços não parece boa estratégia de manutenção do negócio (Nota: os boletos podem ser emitidos sem esse tipo de alerta).
quinta-feira, 16 de julho de 2015

Como proteger a criança-consumidora?

Nesta semana em que se comemoram os 25 anos da edição do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, este poderoso rotativo Migalhas publicou matérias que envolvem o Estatuto, e dentre elas, um apanhado das várias opiniões que envolvem a questão da publicidade voltada às crianças. É desse tema que trato mais uma vez. Os adultos, em matéria de consumo, estão praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de controle. Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo que o faz consumir, consumir e consumir seria o da tomada de consciência de que existem outros caminhos para viver a vida, buscar a paz e ser feliz. Ele poderia - e pode - procurar um outro tipo de consumo, mais sustentável e racional. Mas, os adultos, ao que tudo indica, ainda ficarão muito tempo no modelo atual de consumo. Mas, claro, o adulto já foi criança. E uma das discussões mais aguerridas em matéria de oferta de produtos e serviços é a que envolve o público consumidor jovem. Parece não haver nenhuma chance de acordo (consenso jamais...) em torno da ideia da proteção dos menores na relação com o mercado. Como, de fato, os pequenos são hipervulneráveis, exigindo maior proteção legal que os adultos, ficou assente entre os consumeristas que existe latentemente uma espécie de ofensa para quase tudo aquilo que o marketing apresenta a esse específico público. Esse é um dos temas que sempre me preocupou; já escrevi bastante sobre ele e confesso: não consegui ainda formar uma opinião definitiva. Sou obrigado a dizer que se, de um lado, é evidente que os pequenos devem receber maior proteção legal (algo com o que todos concordam: aqui há consenso!), de outro, percebo que grande parte do problema não está nos fornecedores-anunciantes, mas nos pais e responsáveis pelos pequenos consumidores. Por exemplo, muito se fala que a publicidade influencia o desejo e interesse das crianças que, desprotegidas, passam a querer coisas que não precisariam possuir ou, então, a consumir alimentos que não são nutritivos, etc., o que de fato ocorre. Mas, pergunto: não se dá exatamente o mesmo com os adultos? Estes não compram produtos e mais produtos dos quais não precisam? Muitos deles, homens e mulheres, não são colecionadores de sapatos, canetas, gravatas, bolsas, camisas, ternos, etc.? Muitos não se endividam para adquirir produtos supérfluos? Uma enormidade de consumidores adultos não se empanturra de porcarias, doces, frituras, guloseimas de todo tipo? Muitos não se embebedam a torto e a direito? O drama, pois, é enorme. E a solução? Parece que ninguém diria que a solução é a proibição de fazer a oferta dos produtos e dos serviços. Uma saída parcial tem sido limitar a publicidade. Por exemplo, de cigarros e derivados e de bebidas com alto teor alcóolico. Mas não é que os adultos continuam fumando e bebendo muito... Não há, ao que parece, uma solução fácil e eu, particularmente, penso que, talvez, se deva mudar o foco. O fornecedor-anunciante, na medida em que fabrica produtos e presta serviços que estão dentro da lei, tem o direito de oferecê-los à venda visando cobrir seus custos (pagando os empregados, as taxas e impostos, os demais fornecedores da cadeia produtiva, etc.) e auferindo lucros. Para tanto, o sistema permite que ele faça publicidade. E, na medida em que esta, está de acordo com os requisitos legais e não ultrapasse os limites legalmente impostos (no Código de Defesa do Consumidor, por exemplo), não vejo como se possa impugná-la. Depois de muito refletir, de estudar uma série de campanhas publicitárias, de examinar a relação entres centenas de ofertas e os respectivos produtos e serviços e depois de, também, examinar detidamente o comportamento de centenas de consumidores (adultos) em relação a essas ofertas e ao direito que eles (consumidores) têm de comprar os produtos e serviços ou rejeitá-los, vejo que a responsabilidade é mesmo do consumidor adulto. Tirando os casos de compras compulsórias tais como de medicamentos, de aquisição de serviços obrigatórios como de médicos, hospitais e tudo o que é ligado à aquisição obrigatória, nos demais que envolvem o campo da liberdade sou obrigado a afirmar que o consumidor maior de idade compra porque quer. É possível objetar-se que há consumidores "alienados" que não sabem por que compram. Pode ser, mas daí o buraco é mais embaixo. Envolve educação e esclarecimento e uma avaliação psicológica e antropológica profunda da população em seus vários extratos sociais. O fato é este então: é o adulto que decide comprar para si e para seus filhos (ou para as crianças que estão sob sua responsabilidade momentânea: netos, sobrinhos, filhos de amigos, de vizinhos, etc.). Ora, grande parte dos adultos está inserida nesse processo coletivo de consumo independentemente de ter sido uma criança consumista. Já escrevi aqui mesmo nesta coluna que alguns pais procuram propiciar aos filhos o que nunca tiveram - o que não é raro, porque a maior parte dos produtos e serviços existentes atualmente não existiam na infância dos pais e com a produção em massa muitos deles tornaram-se acessíveis e não eram outrora. São adultos que, apesar de não terem tido uma infância de alto consumo, agora não só estão inseridos no sistema consumista como inserem os próprios filhos. Aliás, isso talvez até se justifique, pois alguns passaram necessidade e vontade na infância e agora querem compensar. (É de notar que muitos produtos tornaram-se mais acessíveis). E há pais que se endividam para comprar produtos para os filhos, muitos deles desnecessários. Esse é, então, o ponto: qual a culpa do fornecedor em relação à atitude dos adultos em relação ao seu próprio consumo e ao dos pequenos? Penso que devemos ter muita calma na resposta. No Brasil, fruto de uma mentalidade autoritária (antiga e enraizada) vivemos num largo horizonte de protecionismos vários. No que respeita ao consumidor - que é o que interessa aqui - eu também já tive oportunidade de demonstrar que nem sempre ele deseja a proteção. E digo mais: o consumidor adulto toma decisões a compra produtos e serviços sabendo muito bem o que faz ou simplesmente exercendo seu direito ao desejo. Se ele quer se endividar para fazer uma viagem à Europa, como impedir? Se ele gasta tudo o que tem para ir a estádios de futebol, depois de adquirir ingressos e camisetas caras, o que se pode fazer? Como culpar o banco por cobrar altas taxas de juros (como de fato são) se elas estão claramente estampadas nos contratos e o consumidor as conhece antecipadamente, mas mesmo assim efetua o negócio apenas e tão somente para trocar um automóvel seminovo e em bom funcionamento por um zero quilometro apenas por uma questão de status? Não se pode culpar o mercado por tudo. É incumbência do adulto conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para descobrir o que realmente ele precisa e pode adquirir. E quanto às crianças? Penso que cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade de vários produtos. Evidentemente, cabe aos pais dizer não. A criança pode até se frustrar, mas será por algo válido, uma boa experiência que ela levará consigo, pois na vida adulta ela perceberá que a frustração é um elemento comum no jogo social. Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e serviços. Qual deve ser a função do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve comprá-los sem exagero; que devemos entrar numa nova era, a do consumo sustentável, consciente. As crianças, se pudessem, agradeceriam as lições.
Escrevo este texto que envolve a sociedade de consumo no viés da atuação política dos consumidores-cidadãos e seus representantes eleitos. Como se sabe, o Congresso Nacional está às voltas com uma reforma política, cujos resultados não são lá muito animadores. Por exemplo, a tentativa de se adotar o voto facultativo foi derrotada.Também como se sabe, recentemente uma comitiva de Senadores brasileiros foi à Venezuela com o intuito de fazer uma visita aos prisioneiros políticos encarcerados pelo regime local. Não tecerei comentários a respeito desse tema que, aliás, foi bastante tratado e esclarecido pela imprensa nacional.Eu quero apenas aproveitar o episódio para apresentar uma reivindicação aos políticos brasileiros. Se, de fato, há uma preocupação com a democracia venezuelana (ou com a falta dela), o que, penso, é uma preocupação legítima até porque o país vizinho faz parte do Mercosul, então podemos aproveitar a oportunidade para melhorar a nossa própria democracia. Usando o exemplo que citei acima: por que não utilizarmos essa consciência para acabar com o voto obrigatório?Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos apenas um dos aspectos de nossa democracia, esse do fato do voto ser obrigatório entre nós.De todos os países do mundo, apenas 28 ainda adotam esse modelo, sendo 12 na América Latina e 7 na América do Sul1. E dentre os 15 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever2.Uma curiosidade: na Venezuela, o voto obrigatório foi abolido em 1993!Que tal, então, aproveitarmos essa energia e reformar nosso sistema eleitoral para melhor, implantando o voto facultativo? Eu já tratei antes deste assunto. Penso que, ao contrário do que dizem, o voto obrigatório é contrário à natural liberdade que se espera numa democracia e transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão.A obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. O sistema serve apenas para legitimar uma estrutura de poder antiga e que agora está em cheque no Brasil. Para se ter uma ideia, uma pesquisa do Instituto Datafolha realizada após as eleições de 2010 mostraram que, 20 dias após as eleições, 30% dos eleitores já não se lembravam em quem haviam votado3.Esses dados comprovam que milhões de brasileiros vão às urnas para se livrarem da obrigação de votar e para não perderem vários direitos retirados de quem não vota, como tirar passaporte, por exemplo.Por isso, sou daqueles que acreditam que o voto facultativo tem tudo de positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que, de fato, possa representar seus pensamentos, seus desejos, assim como do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso (sem partido) etc. Mas, o fim do voto obrigatório parece-me um bom começo.Agora um outro aspecto: como também já tive oportunidade de tratar, as democracias contemporâneas são formadas por cidadãos-consumidores. Isto é, uma característica marcante das sociedades capitalistas é que elas são formadas basicamente por consumidores. Os direitos dos cidadãos são exercidos em larga medida pela atuação enquanto consumidores, pois no cotidiano as ações são "vividas" pelo e para o consumo. Ademais, em relação ao Estado, está claro que ele é um agente prestador de serviços (além de produtor) e se comunica com os cidadãos do mesmo modo que as empresas privadas com seus clientes. Nesse sentido, é que se diz que o eleitor é um cliente do Estado. Como o regime é democrático e as autoridades são guindadas a seus cargos pelos votos dos eleitores, estes esperam, legitimamente, que as ações e tomadas de decisões daqueles de algum modo, então, estejam em consonância com suas necessidades, interesses e direitos. Os cidadãos-consumidores têm que se comunicar livremente com seus representantes. Se olharmos para uma série de reinvindicações feitas nos últimos meses, veremos que boa parte delas envolve direitos típicos dos consumidores, tais como transportes decentes, melhor atendimento médico e hospitalar, educação de boa qualidade e segurança pública. As manifestações apontam para algo muito bom: a tomada de consciência de que, na sociedade capitalista contemporânea, os cidadãos têm o direito de se manifestar livremente e podem exigir que se lhes entreguem produtos e serviços decentes a preços módicos e que a política seja executada de forma honesta e transparente. Por isso tudo, penso que a liberdade para o voto é um objetivo a ser alcançado.____________________1 Fonte: https://miltonribeiro.sul21.com.br/2014/08/05/o-voto-obrigatorio-no-mundo/2 Fonte: https://direito.folha.uol.com.br/blog/voto-obrigatrio-no-mundo3 Mesma Fonte anterior.
Parece fácil, mas não é. Muito se fala em qualidade no atendimento ao consumidor. Gastam-se milhões em pesquisas, mas ainda assim os órgãos de defesa do consumidor estão repletos de reclamações exatamente por causa do mau atendimento.De fato, um dos problemas de grandes empresas, que administram enorme parcela de clientes, é a qualidade do atendimento. Os financistas e outros administradores dos setores de atendimento têm muito a aprender e em alguns casos cometem erros incríveis, alguns com consequências sérias para a relação (a perda do cliente é uma delas, por exemplo), outros são apenas cômicos.Um dos focos de problemas é o da automatização do relacionamento, que é, muitas vezes, mal planejada e mal executada; as gafes cometidas são dos mais diversos tipos e, em muitos casos, geram prejuízos financeiros à empresa e/ou causam danos à sua imagem. Alguns são graves e acabam gerando reclamações e demandas judiciais e outros são apenas risíveis. Vamos a um exemplo do setor de comédias.Meu amigo Outrem Ego contou o seguinte: "N'outro dia, recebi uma correspondência de um banco que havia sido vendido e no qual tenho uma conta antiga. Na frente do envelope estava escrito: 'Comunicado importante'. Pensei: 'Nossa! Que agilidade! Já estão avisando os correntistas da venda do banco'. Mas, que nada. Abri e vi que se tratava de um outro assunto sem urgência e incrivelmente mal administrado. Li e dei uma bela risada, pois parecia pegadinha do programa do Gugu!"A correspondência trazia o seguinte:Primeiro parágrafo: "Prezado (a)... Por meio desta, informamos o estorno do valor de R$3,61 cobrado a título de Comissão de Manutenção de Limite de Crédito - CMLC, acrescido da atualização pela Selic desde a data de realização da cobrança."Sem problemas até aí. Mas, eis a surpresa do segundo parágrafo: "Para o recebimento dos valores acima especificados, solicitamos que compareça a qualquer agência do banco... portando este comunicado e um documento com foto." (grifado no original).R$3,61? Isso mesmo caro leitor! R$3,61 ou menos de 1 euro e pouco mais de 1 dólar. Olhando o envelope vê-se que ele foi postado em outro Estado da Federação. Só de uso do computador, gasto com energia, papel, tramite do documento, despesa com correio, trabalho dos funcionários etc., o gasto deve ter sido de mais de R$3,61. E, para receber a polpuda importância, meu amigo teria de se deslocar até uma agência bancária: se fosse de ônibus gastaria R$7,00 (ida e volta), de táxi, pior ainda e, de carro, com estacionamento também não daria.Pergunto: é falha de algum funcionário do banco ou a culpa é do computador?Mais uma pergunta: por que, simplesmente, não depositaram o valor na conta corrente de meu amigo?E não acabou. Terceiro parágrafo: "Colocamo-nos à disposição, por meio de nossos canais de atendimento, para esclarecer quaisquer dúvidas." (e seguem os números) Mais perda de tempo! E, abaixo, está escrito:"Para preenchimento da agência (em negrito no original) Eu__________________________, declaro ter recebido no dia ____________o valor acima informado, relativo ao estorno de Comissão de Manutenção de Limite de Crédito (CMLC), e dou a mais ampla, geral, irrevogável quitação da importância ora recebida, na forma do disposto no artigo 32º, caput e parágrafo único, do Código Civil, para nada mais cobrar ou reclamar, em Juízo ou fora dele, seja a que título for, com fundamento no pagamento ora efetuado pelo banco..., ficando consignado que a presente quitação abrange o principal e todos os acréscimos e/ou acessórios.____________________, ____/____/_________________________ Assinatura do cliente_____________________Funcionário do banco" (SIC!)"Só faltou pedirem para reconhecer firma! O irônico (e tragicômico) é que, como disse meu amigo, se ele fosse à agência receber o valor, depositaria no mesmo momento na sua conta corrente...Mas, disse-me que não iria receber, pois o custo é maior que o benefício. Ficamos pensando em como é que uma falha dessas pode acontecer e ele, sempre muito desconfiado, construiu outra teoria além dessa da constatação da incompetência explícita. Disse: "Veja bem, meu caro amigo.Se o banco tiver que devolver pequenas importâncias para muitos clientes e adotar esse método o que acontecerá é que a maior parte não irá buscar o dinheiro, assim como eu. Daí, eles faturam uma boa grana".Pode ser. Neste mundo em que vivemos, é possível pensar nisso. Mas, prefiro apostar na ineficiência do setor de atendimento, que costuma pecar pela qualidade quando envolve um grande contingente de clientes. Uma das grandes falhas desse setor é tratar o cliente como um ente abstrato, um número, esquecendo-se que ele existe realmente, que ele pensa, que ele tem direitos e interesses, que ele reage indo para o concorrente, etc.
Repito hoje uma história que já contei, propondo uma reflexão ainda sobre o tema da proteção legal. Começo perguntando se o consumidor quer mesmo ser protegido. Veja, caro leitor, o que aconteceu com meu amigo Outrem Ego há algum tempo. Ele morava num condomínio de casas numa cidade próxima da capital de São Paulo. Certo dia, viu numa revista um anúncio de uma liquidação que estava sendo feita por uma loja da qual ele era cliente há muitos anos. Era um estabelecimento no bairro de Moema, que vendia sapatos, bolsas, cintos etc.O. Ego falou com a esposa e, num sábado, dirigiram-se a São Paulo para fazer compras, indo diretamente àquela loja. Foram ele, a esposa e, também, a sogra e a cunhada, que por acaso faziam-lhes uma visita e, ainda, sua filha à época de colo, com pouco mais de um ano. "Quatro mulheres e eu", disse ele. Na viagem, eles gastaram quase duas horas. Lá chegando, ele, com a filha no colo, dirigiu-se ao andar superior, onde se encontravam os produtos masculinos e as demais mulheres ficaram na andar térreo examinando as ofertas de produtos femininos. Ele demorou a encontrar sapatos que servissem e, quando desceu, viu que a esposa e as demais já aguardavam do lado de fora à porta - a loja estava cheia demais e elas haviam resolvido ir a outro lugar; só esperavam por ele.Muito bem. Ele foi para a fila à frente dos caixas: era uma fila única em ziguezague. Na entrada da fila, havia um rapaz que fazia a triagem das compras. Meu amigo entregou sua sacola com um par de sapatos e um cinto. O funcionário passou sobre a etiqueta um leitor ótico e perguntou: "O senhor vai pagar com cheque ou cartão maestro?". Meu amigo respondeu: "Nenhum dos dois. Pagarei com meu cartão Mastercard". O rapaz, então, disse "Bom, o senhor não pode comprar porque só aceitamos cartão maestro ou cheque após consulta".Outrem Ego gosta de dizer: "Para exercer direitos é sempre muito importante não ficar nervoso, não levantar a voz, manter a calma... Não é bom gritar, pois fica parecendo que a gente não tem razão". Assim, depois da negativa do funcionário da loja, ele calmamente disse: "Olha, eu demorei duas horas para chegar aqui e, saiba você, que eu levarei este sapato e este cinto. Por favor, chame o gerente". O rapaz quis resistir e dizer não, mas a voz de meu amigo era tão calma e seu olhar tão penetrante que ele sequer ousou. Passados três ou quatro minutos, chegou uma senhora, se apresentando como gerente, bradando algo em tom de pouca amizade. Ele se apresentou e disse: "Minha senhora, recebi em minha casa, no interior, uma propaganda deste estabelecimento anunciando a liquidação. Decidi, então, vir até aqui com minha família para fazer compras. Esta aqui é minha filha!". A mulher, por enquanto, apenas olhava e ouvia. Ele continuou: "Olha, não havia no anúncio qualquer referência a que as compras somente poderiam ser pagas com cartão maestro ou cheque. Aliás, nem aqui na loja vejo isso anunciado. Mas, eu irei levar estas compras..."Foi bruscamente interrompido pela gerente: "Olha aqui, não quero saber de seus problemas. Aqui só recebemos cartão maestro ou cheque. Também posso aceitar dinheiro. Se o senhor tem um deles tudo bem, senão pode ir embora!".A mulher já havia perdido as estribeiras, mas O. Ego não se abalou. Com uma fala mansa, simplesmente disse: "Minha senhora, esta loja está violando o Código de Defesa do Consumidor por falta de informação, mas eu tenho a solução. Basta a senhora anotar meus dados, emitir uma duplicata em meu nome com vencimento à vista ou para segunda-feira, emitir um boleto ou me passar os dados da conta corrente da empresa para eu fazer a transferência via internet".A mulher ouviu e em seguida deu uma gargalhada histérica e falou: "De jeito nenhum. Pode ir andando...". Meu amigo, inabalável, disse: "Olha, o caso é de crime tipificado no artigo 66 da lei 8.078/90. Eu chamarei e a polícia e a senhora irá presa em flagrante..." e pegou o celular.Caro leitor, sabe o que aconteceu naquele exato momento? Com a discussão, Outrem Ego bloqueara a entrada dos caixas. Atrás dele formara-se uma extensa fila e as pessoas que estavam lá esperando começaram a protestar. Mas, adivinhem: começaram a protestar contra ele! Começaram a reclamar e alguns até o xingaram. Ele ainda tentou retrucar dizendo, agora já abalado, "eu estou lutando pelo direito de vocês!", mas não adiantou. Estava todo mundo contra ele, que desanimado jogou a toalha. A essa altura, sua esposa já havia entrado na loja e entregou para ele dinheiro suficiente para pagar as compras. Ele, bastante contrariado, pagou em dinheiro e foi embora.Não é incrível? Foram os próprios consumidores que impediram que o consumidor Outrem Ego exercesse seus direitos. E, claro, ele não só tinha razão como estava mesmo defendendo o direito de todos os consumidores, porque o abuso da loja, evidentemente, não era contra meu amigo, mas contra todos! (Não só abuso, como também má administração do negócio).Esse fenômeno, no Brasil, infelizmente, não é novo; é muito enraizado num individualismo que desconsidera o outro - um igual em direitos -, que é desprezado, com base no slogan "não é comigo". Um erro, naturalmente, mas bem profundo. Esse tipo de atitude é parente da má educação em geral, do descumprimento aberto das normas mais básicas de civilidade, que vai desde o não dar "bom dia" ou "até logo" dentro do elevador às pessoas que moram no mesmo prédio até o desrespeito abertamente praticado às faixas de pedestres por parte dos motoristas e também a travessia fora da faixa em qualquer lugar e a qualquer momento por parte dos pedestres, ou o excesso de ruído com músicas tocadas em alto volume e até altas horas incomodando os vizinhos sem nenhuma preocupação etc.Aliás, essa falta de civilidade, solidariedade e respeito ao próximo por parte de muitas pessoas, impede que a sociedade se organize na defesa de prerrogativas e garantias na luta por seus direitos. Na doutrina consumerista muito se discutiu sobre a proteção que a lei dá ao consumidor; se seria ou não excessiva. Eu sou daqueles que acreditam que a lei 8.078/90 buscou, com a proteção efetuada, reequilibrar as forças desiguais do mercado de consumo, mas admito, por exemplo, que pequenos fornecedores também precisariam de alguma proteção e muito esclarecimento (critica que faço à responsabilidade objetiva estabelecida de forma ampla e indiscriminadamente para as grandes corporações e ao mesmo tempo para os micro empresários). Admito também que pode sim o consumidor lesar o fornecedor, não só em atitudes francamente fraudulentas, como violando o princípio da boa fé objetiva estabelecido no sistema legal.E, acima disso, penso que uma proteção exacerbada não só não resolve como impede o amadurecimento e a autonomia. (Em matéria de educação infantil, por exemplo, isso é fundamental. Não basta proteger, é preciso dar autonomia para as decisões; é necessário que, aos poucos, a criança aprenda a resolver alguns dos problemas que aparecem, para que, quando adulto, saiba fazer o mesmo). Por isso, é que se compreende que em cada estabelecimento - também como manda a lei - haja um exemplar do CDC: algo irônico, porque certamente a maior parte dos consumidores e dos lojistas terá dificuldade de encontrar na lei qual a norma incidente numa eventual discussão, uma vez que o texto, apesar de claro, cuida de princípios, tem vários termos técnicos, é especifico para poucas situações concretas etc.
Como estudante de Direito, vivi muito tempo a ilusão de que o Estado pudesse, de fato, intervindo na sociedade, criar bem-estar social. Um Estado democrático, naturalmente, e no qual os agentes públicos representassem os interesses dos governados e também o que existisse do melhor no pensamento jurídico garantidor da dignidade da pessoa humana. Haveria de se implantar políticas e regras que beneficiassem a todos.Infelizmente, com o passar do tempo, minha ilusão foi se esvaindo. Estou cada vez mais convencido de que, muitas vezes, é o Estado (ainda que democrático) que se torna um entrave ao desenvolvimento das pessoas e da sociedade. A liberdade, por exemplo, esse direito natural e civil, que toda pessoa deveria poder gozar, tem sido limitada, violada, vilipendiada; o Estado democrático tornou-se centralizador, onipotente, opressor; ao invés de garantir a liberdade individual, ampliando e garantindo espaços para seu exercício ele, ao contrário, passou a estabelecer obstáculos, muitos deles ilegítimos quando não ilegais (ou inconstitucionais).Em vários fóruns e textos tem-se discutido esse papel que o Estado contemporâneo assumiu e esse exagero precisaria ser limitado. No mundo todo, os Estados têm agentes que causam danos à população, de maneira mais ou menos evidente. As diversas polícias, em muitos lugares, são uma catástrofe de ineficiência e abusos, o que se observa até em países do primeiro mundo como nos Estados Unidos de América, por exemplo. Esse braço repressor, muitas vezes mal dirigido e mal treinado, que se faz mostrar em fotos e vídeos, está também em vários outros setores da administração pública, de forma mais oculta dentro das mentes de seus agentes.A liberdade individual tem sido uma vítima constante dessa mentalidade centralizadora e das ações que a ela correspondem. Para nossa reflexão, apresentarei duas hipóteses: uma, digamos assim, no plano micro e outra no plano macro.Faço referência a uma citação de meu amigo Outrem Ego que já aqui indiquei: "Uma das claras diferenças entre uma democracia e uma ditadura é a de que nesta toda pessoa da sociedade civil é suspeita (de algo...); naquela, todo cidadão é inocente até prova (contundente) em contrário. Numa democracia, ninguém é suspeito até agir como tal".N'outro dia, ouvi o jornalista Ricardo Boechat contar que uma vez ele estava preso num congestionamento enorme e viu muitos motoristas serem assaltados exatamente porque estavam parados sem nada poderem fazer. Mais à frente, descobriu que o congestionamento era causado por uma blitz policial que fazia investigação da lei seca ou algo semelhante. Ele disse que não aguentou e foi falar para os policiais que por causa deles as pessoas estavam sendo assaltadas e acabou sendo admoestado por eles. Ou seja, a polícia que deveria dar segurança à população estava não só não exercendo sua função, como facilitando a vida dos meliantes. Aliás, como já perguntei aqui nesta coluna: se uma pessoa anda pela rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente e não está cometendo nenhum delito e nem apresenta uma atitude suspeita, qual o fundamento para ela ser abordada por um policial? De onde ele extrai esse direito?Não parece que as coisas estão fora do lugar? Pessoas de bem sendo abordadas a torto e a direito e, ao mesmo tempo, a violência e a insegurança correndo solta. E em todos os cantos do país.Agora, proponho que pensemos uma questão mais macro. O da implementação, no Brasil dos últimos anos, de uma política econômica que se supunha de inclusão social das populações mais carentes. Lembro o pensamento da filósofa (ou cientista política, como ela preferia) Hannah Arendt a respeito da aquisição de direitos nas sociedades democráticas, capitalistas e de massa. Ela dizia que o primeiro direito a ser instituído é o "direito a ter direitos". Ela via que em muitas sociedades, milhares de pessoas não tinham um mínimo de direitos garantidos.Pergunto: quais seriam esses direitos básicos a serem garantidos?Como é muito grande o poder simbólico e real das sociedades de consumo atuais, houve uma espécie de sedução para o consumo: a política implementada permitiu que as pessoas que não tinham direitos básicos passassem a ser consumidoras. O Estado, ao invés de oferecer e garantir direitos sociais fundamentais tais como educação, moradia, saneamento básico, atendimento hospitalar etc., ampliou o acesso a bens de consumo. Muitas pessoas que não têm onde morar ou habitam favelas e cortiços e/ou não têm empregos regulares, possuem televisores de 40 polegadas, aparelhos celulares e iphones, micro-ondas ou geladeiras modernas, computadores e até automóveis adquiridos com financiamentos de muitos anos. Se Hannah Arendt fosse viva talvez constatasse que, nesses casos, deu-se um salto: às pessoas que não tinham direitos, ofereceram-se produtos de consumo. Elas continuam sem as garantias básicas, mas podem assistir à novela das oito numa tevê de plasma.Pergunto novamente: não parece a você leitor que algo está fora de lugar?Claro que, quando se fala em liberdade, há que haver uma garantia mínima para seu exercício. E daí, a presença do Estado é fundamental. De nada adianta "ser livre para dormir debaixo da ponte", como se diz. O exercício de liberdade começa na garantia mínima do direito a ter direitos. É preciso que sejam oferecidas condições para que todas as pessoas possam usufruir dos benefícios sociais e também se realizar como indivíduos, fazendo escolhas dentro de um quadro regular.Não parece fácil e não é. Mas, pelo que se vê, nos tempos atuais, há um distanciamento muito grande entre Estado e sociedade; entre direitos estabelecidos constitucionalmente e a implementação de políticas que permitam sua eficácia. Não basta haver produção e consumo. É preciso também respeito aos direitos democraticamente estabelecidos e a criação de um espaço para que as pessoas, após beneficiarem-se de direitos sociais mínimos, decidam como e quando desejam ser consumidores.
Volto ao tema da obesidade, esta que é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o acúmulo excessivo de gordura no corpo que pode acarretar problemas graves de saúde como doenças cardiovasculares, hipertensão e diabetes. Segundo a OMS, a obesidade é considerada a mais importante desordem nutricional e é uma epidemia mundial. A incidência da doença é alta, tanto em países desenvolvidos, quanto nos emergentes e subdesenvolvidos. Nenhuma faixa etária está livre do problema. E, pior, nos últimos anos tem aumentando a incidência da doença nas primeiras faixas etárias, em crianças e adolescentes.Conforme explica a médica nutróloga Jussara Fialho Ferreira1, há alguns anos se dizia que a obesidade decorria da gula, da falta de força de vontade, de uma fraqueza de caráter ou, ainda, de algum distúrbio psicológico. Atualmente, a ciência reconhece que a obesidade tem múltiplas causas fisiológicas e psicológicas.Diz ela: "Sabe-se que existem pessoas que possuem genes predispostos ou não a prática de esportes ou que têm predisposição para comer muitos doces, por exemplo. Mas não é só isso que determina se uma pessoa será ou não obesa. Outro agravante é a hereditariedade. Se um dos pais for obeso, a chance de desenvolver o distúrbio é de 50%. Agora se ambos forem obesos a chance é de 80%"2.Além desses fatores genéticos, existe o fator ambiental. Este é caracterizado pelo desequilíbrio entre a ingestão de alimentos com alta densidade calórica e a queima insuficiente destas calorias. A psicóloga Angela Tamashiro diz que "as pessoas não são obesas porque querem ou desejam. Várias são as causas que geram a obesidade. Em 90% dos casos, a causa da obesidade está na utilização descontrolada da gordura..."3 Deixando de lado a questão da genética, vê-se que um ponto relevante para o exame desse problema é o da questão ambiental: obesidade causada pela ingestão imoderada de produtos calóricos, repletos de açucares e conservantes e outros ingredientes que fazem mal à saúde. Eu já tratei desse assunto antes, com ênfase na informação e na publicidade. Como elemento para nossa reflexão, proponho uma análise do tema sob outro prisma, que tem chamado cada vez mais a atenção: será que, com a quantidade de informações disponíveis (não só propriamente nas embalagens dos produtos, mas também nas matérias veiculadas pelas tevês, sites, blogs etc.), os consumidores ainda não sabem que gorduras, açucares, conservantes etc. consumidos em doses exageradas engordam e podem fazer mal à saúde?Muito se fala em ausência de informação ou má informação a respeito dos produtos ditos alimentícios que são fabricados e vendidos em todos os cantos do mundo, mas o que fazer se as informações são fornecidas de acordo com as regras vigentes e ainda assim o consumidor continua a ingerir os mesmos produtos? Não é caso de simples exercício de um direito subjetivo?Se o consumidor vai a uma festa na qual estão sendo servidos pastéis, coxinhas, empadinhas, camarões empanados etc. e resolve se empanturrar, a culpa é de quem?Não há dúvida de que a lei pode determinar que as informações nutricionais e que digam respeito à saúde do consumidor devam estar estampadas em embalagens, cartazes e na publicidade. Mas, na medida em que elas sejam fornecidas de acordo com o modelo legal, daí para frente a responsabilidade é de quem adquire e consome o produto. Naturalmente, quando a informação envolve crianças, o quadro é mais delicado, mas, neste caso, cabe aos pais a decisão sobre o que comprar e o que consumir. Algumas indústrias são acusadas de imporem seus produtos calóricos por intermédio de publicidade massiva e constante. Mas, veja-se o paradoxo: no setor massificado de planos de saúde, muitas empresas oferecem descontos nas mensalidades e até prêmios para os usuários que perderem peso e adotarem hábitos saudáveis de vida4. Isso comprova que é o próprio consumidor que escolhe seu modo de vida e seus hábitos alimentares, ainda que estes possam fazer mal à sua saúde. Nos dias que correm, há informação de sobra a respeito do problema e a ciência (com apoio ou não do mercado de consumo) tem colaborado fortemente para que, cada vez mais, as pessoas possam se cuidar. Vejamos o exemplo do cigarro: em grande parte do século XX, fumar era sinal de bom gosto e distinção. Nos filmes de Hollywood dos anos 40, 50, 60 e até 70, os personagens quase sempre estavam portando um cigarro, especialmente em situações sociais. Cigarro e glamour andavam juntos. E, não só em Hollywood, mas também no cinema europeu etc. Fumar era algo natural de se fazer.Muito bem. Na medida em que a ciência avançou, foi-se descobrindo os malefícios do tabaco e começou-se a catalogar as diversas doenças causadas por seu consumo, assim como um número enorme de mortes. O Estado, por sua vez, passou a fazer a contabilidade dos prejuízos ocasionados com as doenças e as mortes. Conclusão: muitos países passaram a proibir a publicidade de produtos fumígenos, os impostos sobre esses produtos foram aumentados, passou-se a proibir seu uso em locais fechados e públicos etc., tudo visando fazer cair seu consumo. Porém, com toda a informação disponível e mesmo com a intervenção do Estado mediante leis de controle, ainda assim não milhões as pessoas que fumam. E na mesma linha que as operadoras de planos de saúde tentam obter que seus usuários tenham hábitos alimentares saudáveis, nos Estados Unidos de América, há planos de saúde que utilizam incentivos financeiros para que seus clientes deixem de fumar5. Há, ao que parece, um grave problema de conscientização no polo de consumo. Cabe ao consumidor, caso queira, mudar seus hábitos alimentares e de qualidade de vida (praticando esportes, deixando de fumar etc.).____________________1 Apud Elisa Cortes, "Obesidade: nova epidemia mundial" in www.curiofisica.com.br, 29-9-2009. 2 Idem.3 Apud mesmo artigo.4 Ver matéria a respeito aqui. 5 Ver matéria a respeito aqui.
quinta-feira, 7 de maio de 2015

Uma reflexão sobre excesso de proteção

A respeito da superproteção na educação das crianças, conta-se a seguinte piada: uma família muito rica costumava se reunir para lautos jantares. Sempre se sentavam à mesa o avô, patriarca da família e a avó, a matriarca, seus dois filhos com as respectivas esposas e, numa mesa ao lado, os netos, todos muito mimados e excessivamente protegidos. Um desses netos era mudo. Certo dia, o avô comprou uma grande mesa retangular, ao redor da qual caberia toda a família, incluindo as crianças. Marcado o jantar, todos se acomodaram. De repente, o menino mudo levantou a mão e disse: "Pai, passa o pão." Silêncio e espanto geral! O pai exclamou: "Filho! Você fala!" "Sim", respondeu o menino com simplicidade. "E por que até hoje você nunca falou?" "Porque eu nunca precisei." Esse é o tema para nossa reflexão: excesso de proteção faz mal? Na educação infantil, parece haver consenso que sim. E em relação aos cidadãos, é bom o excesso de proteção? Ninguém duvida de que a proteção é salutar. A lei deve mesmo proteger os consumidores hipossuficientes, os menores de idade, as pessoas portadoras de deficiências, os idosos, as gestantes etc. Mas, até que ponto deve ir essa proteção?Veja, caro leitor, essa história narrada por meu amigo Outrem Ego: "Meu irmão, como você sabe, é juiz de Direito e professor universitário. Ele é doutor em Direito há muitos anos. Ele é juiz na capital e dava aulas numa faculdade de Direito na grande SP. Há dois anos, a escola, para reduzir custos, apresentou projeto para quem quisesse ser mandado embora. Como ele estava cansado das viagens, aceitou o pacote e saiu com alguns colegas.A escola fez os depósitos dos valores devidos em sua conta corrente e, marcada a homologação, ele deu uma pausa nos seus afazeres para comparecer ao Sindicato respectivo para assinatura do termo.Lá chegando, o funcionário do Sindicato encontrou uma pequena diferença de valor a favor de meu irmão e disse que, por isso, a homologação não poderia ser feita.Meu irmão disse que não se importava e que estava satisfeito com os valores recebidos. Mas, o funcionário foi irredutível: a homologação não seria feita.Meu irmão argumentou que sabia o que estava fazendo, afinal ele era doutor em Direito, professor de Direito, juiz de Direito!"É direito meu, minha prerrogativa e da qual eu abro mão!", bradou ele, mas não adiantou.Ele insistiu: disse que não poderia voltar n'outro dia, pois tinha mais o que fazer, o que no caso era julgar processos...Não deu certo. Depois de mais discussões, ele acabou concordando em escrever à mão no verso do termo uma ressalva confirmando que sabia que estava recebendo menos e que iria 'cobrar seus direitos'. Claro que ele nada fez, pois era prerrogativa da qual ele queria abrir mão!" Lendo essa história contada por meu amigo, pergunto: é isso, então? O Estado e/ou seus delegados e representantes e até os órgãos de classe e os sindicatos das diversas categorias sabem mais a respeito dos direitos instituídos que as próprias pessoas a quem supostamente pretendem proteger?Outrem Ego, depois de muito refletir ponderou algo nesses termos: "Em matéria de direito patrimonial, o montante a receber não pertence ao titular? Se sim, por que é que ele não poderia abrir mão? Se ele pode sacar o dinheiro a que tem direito na boca do caixa de um banco e, em seguida, entregá-lo para o primeiro que encontrar pelo caminho, por que não pode simplesmente dizer que não quer recebê-lo isentando o devedor do pagamento? Aliás, ele poderia sacar o dinheiro e, ato contínuo, depositar de volta na conta da empresa pagadora. Não se trata de uma proteção exagerada?" Sou obrigado a concordar com meu amigo. Proteção demais não parece fazer bem mesmo. Mas, quero, querido leitor, deixar algo claro para evitar confusão: não estou dizendo que não deva haver proteção. O problema está no excesso. Será que, do mesmo modo que as crianças superprotegidas têm dificuldade para amadurecer, não se está fazendo o mesmo com as pessoas em geral? Será que, com esse excesso de proteção, o cidadão, digamos assim, emudece? (para ficar com o exemplo da piada). Será que ele deixa de reivindicar, por ficar esperando que o defendam? Ou, pior, será que assim "protegido", ele nunca perceberá que poderia exercer seus direitos de outro modo?Deixo, pois, essas indagações para nossa reflexão.
Erupções vulcânicas como essa dos últimos dias do vulcão Calbuco no Chile não são comuns nem previsíveis. Muitas delas causam estragos no ambiente local, ao redor e a fumaça com cinzas que se expandem pelo ar acaba gerando problemas para o tráfego aéreo, impedindo viagens, fechando aeroportos, impedindo que as pessoas saiam a passeio e a negócios ou retornam para suas bases.Volto, então, ao tema da responsabilidade civil dos transportadores que não puderam prestar os serviços contratados em função desse problema ambiental. Faço, a seguir, minhas considerações. Para entendermos como a questão está colocada na legislação (no CDC e no CC) começo cuidando da questão do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão.Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no CDC foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo e nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração (não abordarei os casos de monopólio e até oligopólios, nos quais o risco de perda são muito pequenos, o que, claro, não elimina a responsabilidade de mesma base legal).O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz porque quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar, algo, aliás, inevitável, pois é impossível oferecer produtos e serviços em larga escala sem que algum problema surja.Decorre disso que, quem se estabelece deve, de antemão, bem calcular os potenciais danos que irá causar não só para buscar evitá-los, mas também para calcular suas perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão.O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral, a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não coloca como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que o CC/02 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade." Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o CC fala em força maior, está referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o CDC afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o CDC quanto o CC mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador, nem por ele evitado. Todavia, não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. O risco da atividade implica a obrigação imposta ao empresário para que ele faça um cálculo, da melhor forma possível, das várias possibilidades de ocorrências que possam afetar seu negócio. Certos fatos, necessariamente implicam agravamento do risco em função de sua latente possibilidade de ocorrência e, por isso, uma vez ocorrendo, não excluem o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o das tempestades e nevoeiros. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno - que, aliás, ocorre constantemente - é integrante típico do risco daquele negócio.Quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento, caso fortuito ou força maior, que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. E, é aqui que eu coloco o caso do vulcão. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser prevista. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto. Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas geradas pelas cinzas do vulcão e que impedem a navegação. Resguardados, claro, os direitos dos passageiros de remarcação de passagens sem a cobrança de multas ou o cancelamento da reserva com recebimento dos valores pagos. E, para terminar, tenho de falar dos passageiros que foram obrigados a mudar seus planos de viagens por causa do vulcão. Os cancelamentos envolveram e envolvem as estadias nos hotéis, flats, pousadas e demais ofertas de hospedagem, o transporte aéreo, e também o terrestre e marítimo a eles ligados, os traslados terrestres, os passeios previamente contratados etc. O evento fortuito externo atinge tanto os consumidores como os fornecedores. Se, de um lado, estes não podem ser responsabilizados, de outro, os consumidores também não podem ser prejudicados.Quando o empresário do setor hoteleiro se estabelece e passa a oferecer seus produtos, naturalmente, assume o risco de sofrer certas perdas advindas de cancelamentos legítimos e também de não efetuar vendas. Esse risco é inerente à própria atividade e deve fazer parte, como mostrei, do cálculo do risco/custo/benefício efetuado. Um evento como a erupção de um vulcão, repito, atinge indiscriminadamente a todos, não importa em que lado da relação de consumo a pessoa esteja.
Volto ao tema da obesidade infantil.Dados recentemente publicados mostram que existem no mundo mais de 42 milhões de crianças com excesso de peso e com menos de cinco anos de idade1. Realmente, o problema é grave e, como existem campanhas para que se implante a educação alimentar nas escolas o que, penso, é bem-vindo, indico ao final o endereço para a assinatura em um abaixo-assinado específico sobre o tema.Mas, gostaria de trazer um ponto para reflexão. O do papel dos pais.A Organização Panamericana de Saúde da Organização Mundial da Saúde (OPS/OMS) fez um chamado à indústria alimentícia para reduzir o sal em seus produtos, especialmente naqueles voltados para o público infantil2, o que é muito bom.Para se ter uma ideia desse problema, veja-se que a OMS recomenda a ingestão de, no máximo, dois gramas de sódio por dia, o que equivale a cinco gramas de sal. Para as crianças, esse valor deve ser ajustado para baixo, uma vez que, em geral, elas consomem menos calorias diárias que os adultos. Segundo a agência, nas Américas esse valor é superior aos cinco gramas: a taxa de consumo no Canadá, Chile e Estados Unidos é de oito, cinco e nove, respectivamente. E no Brasil são quase doze gramas de sal ingeridos por dia.Para tentar diminuir o consumo diário, o Ministério da Saúde firmou uma parceria com a Associação Brasileira das Indústrias Alimentares (ABIA) para reduzir o sódio em alimentos processados. A expectativa é retirar até 2020, mais de 28 mil toneladas de sódio do mercado brasileiro3.Muito bem. O slogan das campanhas é "Garantir hábitos alimentares na infância é importante para o desenvolvimento de adultos saudáveis, os pais devem privilegiar as refeições com alimentos frescos e evitar comidas industrializadas".Não resta dúvida que a boa a alimentação e a boa saúde na infância geram melhor qualidade do corpo adulto. O problema é o que fazer com os hábitos alimentares errados e viciados dos que são adultos e, especialmente, dos pais. Já tive oportunidade de dizer neste espaço que fico espantado com o desconhecimento de muitos consumidores sobre as propriedades e funções dos produtos alimentícios, a despeito de todas as informações que são lançadas via imprensa escrita, falada, nos portais da web etc.. Muitas pessoas continuam engordando mal (não há qualquer problema em estar acima do peso esperado para a idade, estatura, gênero, desde que se tenha saúde) com sérios problemas para sua qualidade de vida. E, por outro lado, é também sabido que é possível alimentar-se bem e com prazer sem qualquer prejuízo à saúde. Peguemos o exemplo dos alimentos de baixo teor nutritivo e repleto de ingredientes que fazem mal ao organismo como sódio, açúcares, gorduras, conservantes etc.. Parece existir informação suficiente sobre seus malefícios. É algo que deveria ser tranquilamente conhecido de todos os consumidores. Seu consumo excessivo deveria ser, realmente, evitado como algo óbvio. Não resta dúvida que a legislação pode fazer muito em benefício da saúde dos consumidores e, em especial, das crianças, restringindo, por exemplo, a venda de porcarias nas cantinas escolares, como aqui também já defendi. Mas, evidentemente, cabe aos adultos pais adotarem hábitos alimentares mais saudáveis para si e para seus filhos. E para saber o que são bons hábitos alimentares basta um click na web.Anoto que não há problema algum em comer um hambúrguer ou um belo churrasco ou, ainda coxinhas e pastéis, desde que não seja diariamente e que a alimentação do dia-a-dia seja balanceada, nutritiva e, claro, saudável. A ida a uma lanchonete para comer um cheeseburguer com batatas fritas pode ser um divertido momento de lazer sem causar danos à saúde, mas se for exatamente isso: um momento de lazer e não uma rotina calórica constante. E, para terminar, repito: nessa questão dos alimentos, os adultos também precisam ser (re) educados.____________________Para quem quiser assinar o abaixo-assinado que referi no início, segue o link:https://www.change.org/p/jamie-oliver-precisa-da-sua-ajuda-para-lutar-pela-educa%C3%A7%C3%A3o-alimentar-nas-escolas-foodrevolutionday?utm_source=action_alert&utm_medium=email&utm_campaign=281601&alert_id=HTTjaGSZSy_3gH0ejQOaUJk8FRDZDH9gD%2B8REwnvK%2F3%2F8lzxjyvhgM%3D____________________1 in https://criancaeconsumo.org.br/noticias/70-milhoes-de-criancas-devem-estar-acima-do-peso-em-2025-alerta-organizacao/. Os números são do ano de 2013.2 In https://criancaeconsumo.org.br/noticias/opsoms-exige-reducao-do-sal-e-o-fim-da-publicidade-de-alimentos-para-criancas/ 3 Idem anterior.
quinta-feira, 9 de abril de 2015

Da vida líquida para a vida gasosa

Meu amigo Outrem Ego viu que eu citei o sociólogo polonês Zygmunt Bauman na coluna da semana passada e, como conhece o trabalho por ele publicado, disse-me que andava com saudade das coisas sólidas de antigamente, que, aliás, não são tão antigas assim.No final do ano passado ele já reclamara do fechamento das locadoras de vídeos, que praticamente não mais existem: "Um dos passeios mais gostosos de fazer era ir sozinho ou com um amigo, o namorado, a namorada, o marido a esposa, os filhos ou até mesmo toda a família a uma locadora de vídeos para escolher um filme ou mais, para depois assistir em casa. Era agradável, lúdico, instrutivo. E interativo. Encontrávamos outras pessoas, trocávamos experiências e opiniões sobre os filmes já vistos, dávamos dicas e, diante de uma enorme quantidade de opções, escolhíamos com carinho e sem pressa"."Pressa", disse eu na oportunidade, "Essa pressa que, de tão rápida, tão fugaz, nos consome sem que percebamos..." Voltando ao sociólogo, meu amigo lembrou da questão da calma, do tempo de curtir a vida de maneira mais lenta: "Bateu uma nostalgia", disse e depois contou o seguinte:"Sabem, tornamo-nos uma sociedade de fotógrafos. Todo mundo tira foto o tempo todo de tudo, sem parar e, rapidamente... Sou de um tempo em que isso era muito diferente, gostoso, interessante e sólido - para usar a teoria do sociólogo. E, olha, amigo, esse tempo não vai muito longe. É de apenas mais ou menos uns trinta anos...".Ele fechou os olhos, como que retornando no tempo, e depois prosseguiu:"Lembro muito bem da primeira vez que minha mulher e eu fomos à Europa. Foi na década de oitenta. Um dos apetrechos mais importantes para levarmos na mala (de mão) era uma máquina fotográfica. E, naturalmente, junto dela alguns rolinhos de filmes contendo doze, vinte e quatro ou trinta e seis poses. Naquela viagem levamos dois rolos de cada. (Aliás, não era barato). Então, fazendo as contas, poderíamos tirar... Cento e quarenta e quatro fotos. Veja bem, viajamos quase trinta dias e podíamos tirar apenas um pouco mais de cem fotos, cerca de quatro ou cinco fotos por dia""Isso gerava uma responsabilidade: nós tínhamos que escolher o lugar para bater, deveríamos saber se valia a pena tirar naquele momento do dia ou da noite (com flash que se acoplava na máquina); teríamos que decidir se tirávamos de uma igreja ou de um museu etc. E não só: precisávamos caprichar para não cortar parte da paisagem e quando pedíamos para alguém tirar nossa foto juntos, torcíamos para que ele não cortasse nossas cabeças""A viagem enriquecia-se com as próprias fotos que exigia nossa concentração e gerava desde logo uma emoção. E quando voltávamos, então?""Lembro bem dessa primeira viagem e também de outras posteriores da mesma época. Levei os rolos à loja para fazer a revelação, que demorava alguns dias. Ficávamos na expectativa: será que saíram todas? Algumas ficaram escuras, opacas, tremidas? Será que queimaram? Afinal, cortaram ou não nossas cabeças?""Era algo que nos deixava um pouco tensos é verdade, mas não era desagradável, especialmente porque na maior parte das vezes as fotos saiam bem""E, claro, como iríamos aguardar algum tempo para ver as fotos e elas eram tão importantes, pois refletiam a viagem, os lugares conhecidos, as experiência vividas, nós convidávamos parentes e amigos para irem em casa ver. Depois, colocávamos tudo num álbum que, de vez em quando, folheávamos""Mas, hoje, os jovens nem sabem o que é isso. E a experiência da foto é efêmera e momentânea. Numa viagem de uma semana, a pessoa tira quinhentas fotos ou mais. Bate várias do mesmo lugar e da mesma pose. Tira, olha uma vez e nunca mais vê. Numa simples festa de aniversário em casa, as pessoas tiram centenas de fotos, muitas idênticas e cometem o mesmo pecado: olham uma vez, exatamente logo após tirar. Depois, esquecem. Sei que há pessoas que guardam algumas, mas é muito pouco em termos de experiência""Ah, sei, esqueci das redes sociais... Tira-se a foto, posta-se na rede e ela vai ser vista... Muitas de si mesmo! As redes estão repletas de fotos sem história, apenas do imediato... A solidez se foi meu caro amigo!"Tive que concordar com ele, eu que tenho a mesma experiência de fotos de uma época que se foi. E vejo-me obrigado a retornar a Zygmunt Bauman, que se tornou famoso em grande medida por apresentar ao público o seu conceito de "estado líquido" da sociedade contemporânea. Em obras como Modernidade Líquida (2000), Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos (2003) Vida líquida (2005), Medo líquido(2006) e Tempos líquidos: viver na idade da incerteza (2007), ele mostra a vida num tempo de incertezas, isto é, tempos de estados líquidos em oposição à solidez representada pelos estados de certeza, algo do passado. O autor mostra que nesta nossa sociedade moderna, isto é, líquida, as condições de atuação das pessoas - leia-se: de consumidores - mudam antes que suas formas se consolidem. Nada é feito para durar. Vingou uma espécie de vida temporária, vivida em condições de incerteza constante. De fato, na vida cotidiana percebe-se uma espécie de ânsia por devorar, suprimir, trocar, extinguir, modificar incessantemente. Tudo se fragmenta e se altera. Aquele friozinho na barriga para saber se uma foto tirada com tanto carinho saiu ou não, foi substituída por uma ansiedade que torna tudo imediato, que devora nossa paciência, nossa capacidade de espera.Meu amigo lembrou do micro-ondas: "É prático e quase todo mundo conhece, sabe usar e usa de fato. Pergunto: você já se pegou ansioso aguardando que passasse os dois minutos programados para aquecer alguma coisa? Não é incomum que nós marquemos um minuto e desliguemos alguns segundos antes. Será que nós perdemos a capacidade de esperar um minuto que seja?"Tive de concordar mais uma vez. Caro leitor, tentando ir além do que disse o pensador polonês, arrisco dizer que a sociedade capitalista chegou a, digamos, um estágio gasoso. Nem mais líquida é. A liquidez apesar de fluída, ainda é palpável. E o líquido de algum modo se amolda, como faz o rio que abraça suas margens, que toma a forma do objeto em que está, ainda que possa ser derramado e escorrer. A água se nos escapa por dentre os dedos, mas ainda podemos retê-la na pia, na banheira, no copo. Esse nosso estado atual parece gasoso, parece evaporar e desaparecer no ar atmosférico que com ele se confunde. Talvez forme imagens no céu, como nuvens que desenham animais ou plantas. Mas, essas imagens estão distante, são fugidias e logo desaparecem.É isso?Então, pergunto: por que há de ser tudo imediato, virtual e on line? Porque é que estamos correndo tanto? Tudo que temos é ilusório, passageiro?Talvez precisemos parar para pensar num novo modelo de curtir a vida. Num novo modo de sermos felizes. Num passo mais lento, com mais calma e mais concretamente.
quinta-feira, 2 de abril de 2015

A (in)segurança do consumidor no dia-a-dia

Certa feita, estávamos um amigo, grande jurista, e eu, aguardando num aeroporto para embarque em direção a um Congresso. Eu reclamava da má formação oferecida pelas escolas de Direito, das falhas dos concursos públicos para as várias carreiras jurídicas e de como, apesar da aparente dificuldade que eles oferecem, muitos dos aprovados não são capazes de bem interpretar o sistema legal, de compreender o fenômeno social e jurídico em sua complexidade e, enfim, de exercer o mister que lhe foram confiados com as habilidade exigidas para a profissão. Muitos dos concurseiros, estudiosos diuturnos das questões usualmente utilizadas, mostram-se capazes de ultrapassar o concurso público assumindo a carreira escolhida (ou na qual haviam conseguido entrar, pois tentam muitas em diferentes setores). Ele concordava comigo e citava vários exemplos terríveis de estudantes que ingressaram em carreiras públicas sem jamais terem trabalhado um único dia na vida. Saíam dos bancos escolares apenas como estudantes, iam para os cursinhos e ficavam por lá alguns anos. Daí, passavam no concurso e em breve estavam acusando, julgando etc. Mas, sem experiência alguma.De repente, ele me diz: "Sabe, estamos aqui falando da área jurídica por que a conhecemos mais ou menos bem, desde a faculdade de Direito até a vivência nas carreiras. Mas, algo me ocorreu... Pergunto a você: nós vamos embarcar daqui a pouco num avião. Será que a pessoa que faz a manutenção da aeronave foi boa estudante? Será que tem experiência? Será que entende bem do riscado? Ou, melhor, será que o engenheiro responsável entende mesmo do negócio? Quando alguém contrata um advogado, certamente, espera que o profissional saiba como agir. E se está aguardando um julgamento, acredita que o juiz saiba decidir e assim por diante. E, nós, pobres usuários das companhias aéreas? Com certeza esperamos que o avião esteja em perfeitas condições de voo, que o piloto e o copiloto estejam preparados para assumir o comando da aeronave, que estejam em boas condições de saúde etc." "Sim", respondi. "Isso vale para qualquer profissão. Se vamos ao dentista, aguardamos que entenda o que nossa boca mostra. E, no hospital, que o médico nos avalie corretamente"."Estamos seguros de que nosso avião alçará voo, viajara e descerá em condições adequadas?" - ele perguntou."Acho que nem pensamos nisso", conclui. Esse é o ponto da reflexão para hoje: quando embarcamos num avião, não pensamos em problemas (nem devemos pensar para não passarmos nervoso...). É pressuposto que tudo funcione bem. Inconscientemente, aceitamos que não só todos os envolvidos na atividade sejam profissionais gabaritados como estejam no gozo pleno de suas faculdades mentais e em perfeito estado de saúde, bem alimentados, com o sono em dia etc.O sociólogo polonês Zygmunt Bauman diz que vivemos tempos "líquidos": estamos na idade da incerteza, isto é, tempos de estados líquidos em oposição à solidez representada pelos estados de certeza. Como obter algum tipo de tranquilidade em qualquer setor? Em termos de segurança nos aeroportos, os fatos nos dizem que, ao que parece, alguém está cuidando do assunto. Em alguns lugares mais do que em outros, mas a verdade é que após o 11 de setembro, com o ataque às torres gêmeas de Nova York, em todo o mundo passou-se a cumprir rigorosos regimes de revistas de passageiros e controle dos transportes de bens. Será que os agentes de segurança entendem do assunto?Ironicamente, a queda do Airbus A320 da Germanwings no sul da França, no dia 24 de março, mostrou que foi uma das regras de segurança implantadas que permitiu a ação suicida e criminosa do copiloto (naturalmente, estou supondo para esta análise que, de fato, foi o copiloto alemão que deliberadamente derrubou a aeronave). Com a finalidade de impedir que terroristas invadam as cabines de pilotagem, foi determinada a colocação de portas blindadas para proteger a entrada e que ficasse assegurado que a porta somente pudesse ser aberta pelo lado de dentro (o comando de abertura fica na cabine).Vi que, rapidamente, muitas companhias aéreas já determinaram que ninguém fique sozinho na cabine. Haverá sempre dois. Se o piloto sai para ir ao banheiro, entra uma aeromoça ou um comissário de bordo. Pergunto: será que adianta? Se o copiloto estiver determinado a derrubar o avião e matar 150 pessoas, será que ele irá poupar o comissário?Muitas das regras de segurança não resistem a um plano elaborado por um simples terrorista iniciante. E ficam na aparência, tentando transmitir alguma tranquilidade aos usuários. Há muita discussão e insatisfação nesse tema. A questão dos líquidos, por exemplo. Muitos consumidores reclamam que não podem entrar no espaço interno de embarque carregando suas garrafas plásticas com água. Mas, lá dentro, podem comprá-las. E também não podem levar frasco contendo mais de 100 ml. Porém, podem portar mais de um. E, juntando algumas pessoas com alguns frascos abaixo de 100 ml é possível obter alguns litros etc. E será que é difícil que alguma pessoa má intencionada se infiltre entre os fornecedores de comida e bebidas dentro do local de embarque e entregue ao passageiro uma garrafa com líquido perigoso? Outra reclamação: não podem levar produtos pontiagudos, como uma tesourinha de cortar unhas, mas no jantar da área executiva são entregues garfos e facas. Há algum controle, mas a verdade é que até um inocente skate pode virar uma arma ou, então, um mais inocente ainda cinto de segurar as calças pode ser usado de forma fatal para a vida de alguém...Não vou referir aspectos explícitos de insegurança pública, especialmente porque no Brasil é simplesmente impossível andar nas ruas com tranquilidade. Fico apenas nesse da iniciativa privada, que envolve também muitos setores e que varia de país para país. Há perigos na guarda de bens nos hotéis, nos museus, nos restaurantes (evidente por aqui, onde, por exemplo, em restaurantes do tipo self-service, as pessoas são obrigadas a colocar comida no prato carregando a bolsa no ombro para evitar de serem furtadas!), nos transportes urbanos em geral, enfim, uma idade de incertezas e intranquilidade. E, infelizmente, do ponto de vista da segurança dos produtos e serviços (e também da qualidade e da eficiência) é impossível que qualquer empresa ou órgão público consiga atingir o topo da certeza da inevitabilidade do dano decorrente de algum vício ou defeito. Por mais que se esforcem, por mais que desenvolvam controles de qualidade e segurança, alguma coisa sempre escapa por ser da própria natureza do produto ou serviço (uma falha mecânica, um desgaste inesperado etc.) ou por envolver a natureza humana (pessoas que cometem seus erros ou suas loucuras...). Não há, pois, produto ou serviço sem vício ou defeito! Ou, como diz meu amigo Outrem Ego: "Até foguete da Nasa apresenta falhas... Para azar dos astronautas". Então, para concluir, percebe-se que, nesta nossa era da incerteza, oferecer segurança real para o consumidor é muito difícil. Esse é um dos desafios dos tempos atuais.