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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Como perder o cliente em algumas lições

O título completo do presente artigo deve ser "Como perder um cliente em algumas lições e ainda correr o risco de ser processado por ele". É disso que eu tratarei na sequência. Antes de iniciar, deixo consignado que, claro, há muito mais exemplos de como perder clientes do que apenas esses. Estou fazendo aqui uma escolha arbitrária, mas que, penso, seja o suficiente para apontar ações e comportamentos equivocados do atendimento ao cliente. Este artigo tem por base minhas reflexões, que não são recentes, a respeito das relações de consumo que, no passado, foram muito harmônicas (até início dos anos 60 do século XX), passaram por forte crise a partir do cálculo financista que tomou conta das relações (e que ainda tem muita importância e, em alguns setores, preponderância), mas que, aos poucos, vão sendo retomadas, especialmente com a tomada de consciência de que é preciso mudar os padrões de consumo. Consegue-se observar aqui e ali alterações no rumo do consumo consciente e sustentável e que envolve, de um lado, empresas que respeitam o consumidor e, de outro, consumidores mais conscientes de sua importância no mercado de consumo. Ou, em outras palavras, as relações harmônicas de consumo são o que há de mais moderno em termos de capitalismo. Meu foco: respeitar e ouvir o consumidor é não só inteligente e legal (no duplo sentido) como gera lucros ao garantir a manutenção dos clientes já conquistados e amplia a base existente. O inverso é também verdadeiro: o empresário (e também o profissional liberal) que não souber disso e não pautar suas ações nesse modelo só tem a perder: é atrasado, tacanha, sua imagem irá perdendo valor, sua base de clientela não crescerá, em muitos casos diminuirá, perderá receita e muitos quebrarão. Há vários caminhos para cuidar da questão do atendimento. Um deles é o de tratar o consumidor como um número e/ou como se todos os consumidores fossem iguais, tivessem os mesmos sentimentos e desejos, se reagissem da mesma forma em todas as circunstâncias. Mas não irei por aqui. Quero cuidar exatamente das hipóteses nas quais é possível trabalhar com standarts pré-concebidos, mas isso deve ser muito bem estudado e melhor ainda executado. Algumas medidas simples podem ajudar. Vou referir uma que é frequentemente esquecida pelos administradores: a da simpatia (ou se sua contra partida, a antipatia). A simpatia é um sentimento que gera uma identificação ou mesmo uma atração de uma pessoa à outra. Por intermédio dela, o indivíduo estabelece uma harmonia com o outro e, a partir disso, pode criar laços firmes e duradouros. Por isso, são sinônimos de simpatia a afeição e a afinidade. Ela gera uma espécie de atração para algo ou para alguém; ela desperta o interesse no outro ou no que ele (o outro) faz. Com a antipatia se dá o inverso: ela é um sentimento de repugnância e repulsa diante de alguém ou de alguma coisa. E, claro, gera desarmonia, discordância. Literalmente, antipatia é "contra-afeição". Tem origem no termo grego antipathéia?: anti (contra) e pathéia (afeição). A antipatia opera em vários níveis, desde uma sensação de mero desconforto até a total repulsa. E se a experiência com relações simpáticas deixam o sujeito mais à vontade para as novas relações simpáticas, as antipáticas anteriores funcionam para aumentar a rejeição das atuais. Chega uma hora em que a pessoa simplesmente cansa de aguentar os gestos antipáticos. Por falta de conhecimento, a simpatia nem sempre é considerada; e é algo modesto, fácil e inteligente de executar. O oposto também se dá: a antipatia aparece em várias resoluções e atos. A primeira conquista o consumidor, a outra pode alijá-lo da relação. Vejamos alguns exemplos de ações antipáticas. Começo relatando um caso envolvendo meu amigo Outrem Ego. Eis o que ele me contou. "Sou cliente de um canal de tevê a cabo há mais de dez anos. Sempre paguei a fatura religiosamente em dia, nesses dez longos anos. Nunca atrasei um dia sequer. Mas, olha o que aconteceu. No mês de janeiro deste ano, sai de férias com minha família. Não sei explicar o que houve, pois nunca vi a fatura daquele mês e simplesmente esqueci de pagar. Voltamos num fim de semana. A tevê à cabo não funcionava. Depois de algumas tentativas, liguei para eles e descobri que haviam cortado o sinal por causa do não pagamento daquela fatura". Depois de engolir a seco, ele concluiu: "Fiquei revoltado. Passei doze anos pagando a conta em dia. Cento e quarenta e quatro meses de pagamentos mensais corretamente. E olha que muitas vezes minha família e eu nem ligamos a tevê. Cento e quarenta e quatro meses em dia e nunca ligaram para dizer obrigado. Mas, bastou atrasar uma única fatura e eles cortaram o sinal. Malditos!" Caro leitor, meu amigo tem toda razão de ficar bravo. O que aconteceu com ele é o que eu chamo de antipatia e burrice ou, em termos mais jurídicos, incompetência na administração do negócio da prestação de serviço de longo prazo. Ora, em relações continuadas, especialmente naquelas em que o cliente paga mensalmente, o histórico do relacionamento é fundamental. Não tem sentido que a empresa não leve em consideração esse aspecto de fundamental importância existente entre ela e seus clientes. Num caso como o de Outrem Ego, antes de tomar a decisão de cortar o serviço é preciso saber se o cliente é fiel, se ele paga as contas em dia, há quanto tempo ele paga etc.. Sei que o sistema é de massa e automatizado, mas isso não impede que o computador seja preparado para medir a pontualidade e fidelidade de cada um dos clientes. Não há qualquer desculpa para a ação da empresa. Num caso como o de meu amigo, o sistema deveria, ao invés de determinar o corte do serviço, enviar uma segunda via ao cliente perguntando se ele havia esquecido de pagar ou, então, mandar um torpedo ou, ainda, ligar para ele. Somente depois de mais de uma tentativa é que deveriam decidir sobre o corte e ainda assim dando um aviso prévio claro. Esse exemplo é daqueles que permitem que eu mostre que o problema da relação de consumo não é sempre da aplicação da lei. No caso, a lei pode até estar do lado da empresa de tevê a cabo, mas a ação dela é tão lamentável e equivocada, que só faz mal. E faz mal, mesmo que o serviço seja restabelecido rapidamente. São empresas que erram primeiro para consertar depois. Erram conscientemente (ou por má administração, o que dá no mesmo). Pior: sem nenhum benefício financeiro, pois se o serviço fosse cortado apenas um mês depois ela não teria nenhum prejuízo. Incompetência pura e simples. Um outro exemplo muito conhecido é o das empresas e profissionais liberais que se esquecem que, do outro lado da linha telefônica ou do endereço de e-mail, pode se encontrar alguém muito interessado em (ou desesperado para) falar algo importante. Isso é particularmente grave quando essa pessoa que chama (ou grita, muitas vezes) usa expressões como "urgente", "muito urgente", "urgentíssimo", "grave", "gravíssimo", etc. E muitas vezes, o pedinte (ou reclamante) não usa essas expressões porque está com pressa e esquece. O fato é que, em todos os casos o retorno é que é importante. Um retorno rápido. Há casos até de amizades perdidas por falta de retorno. Imaginem-se as perdas quando se trata de um consumidor que necessita de algo urgente. Esse alerta vale tanto para grandes corporações que detêm muitos clientes como para pequenos escritórios de advocacia ou consultórios médicos. Não importa o tamanho: se grande, a estrutura deve poder dar conta dos retornos, se pequeno idem. Pode ser um consumidor que quer saber como resolver um problema com sua tevê a cabo ou um cliente (antigo ou novo) que recebeu uma intimação judicial ou, ainda, um paciente que precisa de um atendimento médico imediato. Veja, caro leitor, que eu não estou exagerando. Trata-se de um simples cuidado: o retorno de uma ligação ou de um e-mail para que o cliente existente ou em potencial fique satisfeito. O inverso é verdadeiro: ele se sentirá abandonado e irá procurar outro lugar para resolver seu problema. E para terminar, conto mais um, bastante singelo: o dos boletos relativos às relações constantes e duradouras, mas que contêm ameaças sem sentido. Mais uma vez, quem me contou foi meu amigo Outrem Ego. Ele me disse: "Veja que treco mais antipático esse do contador da minha mulher. Você sabe que ela tem uma microempresa e o contador dela é o mesmo desde o início dos negócios há quase dez anos. Todo mês, ele manda o boleto para ela pagar a prestação do serviço mensal. Já houve vezes em que ela esqueceu de pagar. Daí, ela liga lá e eles mandam novo boleto com novo prazo, sem qualquer dificuldade. Mas, veja só. Nos boletos consta: 'Após o vencimento vence juros de x% mais multa de 2%. Protestar no 10º dia de atraso'. Não é uma bobeira? Aposto que o contador jamais protestou um cliente sequer". De fato, nessas relações continuadas, nas quais predomina a confiança mútua, é muito antipático dizer que, se o cliente não pagar, será protestado. E, como disse meu amigo, não só é antipático como contraproducente. Protestar um cliente que paga mensalmente pelos serviços não parece boa estratégia de manutenção do negócio (Nota: os boletos podem ser emitidos sem esse tipo de alerta).
quinta-feira, 16 de julho de 2015

Como proteger a criança-consumidora?

Nesta semana em que se comemoram os 25 anos da edição do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, este poderoso rotativo Migalhas publicou matérias que envolvem o Estatuto, e dentre elas, um apanhado das várias opiniões que envolvem a questão da publicidade voltada às crianças. É desse tema que trato mais uma vez. Os adultos, em matéria de consumo, estão praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de controle. Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo que o faz consumir, consumir e consumir seria o da tomada de consciência de que existem outros caminhos para viver a vida, buscar a paz e ser feliz. Ele poderia - e pode - procurar um outro tipo de consumo, mais sustentável e racional. Mas, os adultos, ao que tudo indica, ainda ficarão muito tempo no modelo atual de consumo. Mas, claro, o adulto já foi criança. E uma das discussões mais aguerridas em matéria de oferta de produtos e serviços é a que envolve o público consumidor jovem. Parece não haver nenhuma chance de acordo (consenso jamais...) em torno da ideia da proteção dos menores na relação com o mercado. Como, de fato, os pequenos são hipervulneráveis, exigindo maior proteção legal que os adultos, ficou assente entre os consumeristas que existe latentemente uma espécie de ofensa para quase tudo aquilo que o marketing apresenta a esse específico público. Esse é um dos temas que sempre me preocupou; já escrevi bastante sobre ele e confesso: não consegui ainda formar uma opinião definitiva. Sou obrigado a dizer que se, de um lado, é evidente que os pequenos devem receber maior proteção legal (algo com o que todos concordam: aqui há consenso!), de outro, percebo que grande parte do problema não está nos fornecedores-anunciantes, mas nos pais e responsáveis pelos pequenos consumidores. Por exemplo, muito se fala que a publicidade influencia o desejo e interesse das crianças que, desprotegidas, passam a querer coisas que não precisariam possuir ou, então, a consumir alimentos que não são nutritivos, etc., o que de fato ocorre. Mas, pergunto: não se dá exatamente o mesmo com os adultos? Estes não compram produtos e mais produtos dos quais não precisam? Muitos deles, homens e mulheres, não são colecionadores de sapatos, canetas, gravatas, bolsas, camisas, ternos, etc.? Muitos não se endividam para adquirir produtos supérfluos? Uma enormidade de consumidores adultos não se empanturra de porcarias, doces, frituras, guloseimas de todo tipo? Muitos não se embebedam a torto e a direito? O drama, pois, é enorme. E a solução? Parece que ninguém diria que a solução é a proibição de fazer a oferta dos produtos e dos serviços. Uma saída parcial tem sido limitar a publicidade. Por exemplo, de cigarros e derivados e de bebidas com alto teor alcóolico. Mas não é que os adultos continuam fumando e bebendo muito... Não há, ao que parece, uma solução fácil e eu, particularmente, penso que, talvez, se deva mudar o foco. O fornecedor-anunciante, na medida em que fabrica produtos e presta serviços que estão dentro da lei, tem o direito de oferecê-los à venda visando cobrir seus custos (pagando os empregados, as taxas e impostos, os demais fornecedores da cadeia produtiva, etc.) e auferindo lucros. Para tanto, o sistema permite que ele faça publicidade. E, na medida em que esta, está de acordo com os requisitos legais e não ultrapasse os limites legalmente impostos (no Código de Defesa do Consumidor, por exemplo), não vejo como se possa impugná-la. Depois de muito refletir, de estudar uma série de campanhas publicitárias, de examinar a relação entres centenas de ofertas e os respectivos produtos e serviços e depois de, também, examinar detidamente o comportamento de centenas de consumidores (adultos) em relação a essas ofertas e ao direito que eles (consumidores) têm de comprar os produtos e serviços ou rejeitá-los, vejo que a responsabilidade é mesmo do consumidor adulto. Tirando os casos de compras compulsórias tais como de medicamentos, de aquisição de serviços obrigatórios como de médicos, hospitais e tudo o que é ligado à aquisição obrigatória, nos demais que envolvem o campo da liberdade sou obrigado a afirmar que o consumidor maior de idade compra porque quer. É possível objetar-se que há consumidores "alienados" que não sabem por que compram. Pode ser, mas daí o buraco é mais embaixo. Envolve educação e esclarecimento e uma avaliação psicológica e antropológica profunda da população em seus vários extratos sociais. O fato é este então: é o adulto que decide comprar para si e para seus filhos (ou para as crianças que estão sob sua responsabilidade momentânea: netos, sobrinhos, filhos de amigos, de vizinhos, etc.). Ora, grande parte dos adultos está inserida nesse processo coletivo de consumo independentemente de ter sido uma criança consumista. Já escrevi aqui mesmo nesta coluna que alguns pais procuram propiciar aos filhos o que nunca tiveram - o que não é raro, porque a maior parte dos produtos e serviços existentes atualmente não existiam na infância dos pais e com a produção em massa muitos deles tornaram-se acessíveis e não eram outrora. São adultos que, apesar de não terem tido uma infância de alto consumo, agora não só estão inseridos no sistema consumista como inserem os próprios filhos. Aliás, isso talvez até se justifique, pois alguns passaram necessidade e vontade na infância e agora querem compensar. (É de notar que muitos produtos tornaram-se mais acessíveis). E há pais que se endividam para comprar produtos para os filhos, muitos deles desnecessários. Esse é, então, o ponto: qual a culpa do fornecedor em relação à atitude dos adultos em relação ao seu próprio consumo e ao dos pequenos? Penso que devemos ter muita calma na resposta. No Brasil, fruto de uma mentalidade autoritária (antiga e enraizada) vivemos num largo horizonte de protecionismos vários. No que respeita ao consumidor - que é o que interessa aqui - eu também já tive oportunidade de demonstrar que nem sempre ele deseja a proteção. E digo mais: o consumidor adulto toma decisões a compra produtos e serviços sabendo muito bem o que faz ou simplesmente exercendo seu direito ao desejo. Se ele quer se endividar para fazer uma viagem à Europa, como impedir? Se ele gasta tudo o que tem para ir a estádios de futebol, depois de adquirir ingressos e camisetas caras, o que se pode fazer? Como culpar o banco por cobrar altas taxas de juros (como de fato são) se elas estão claramente estampadas nos contratos e o consumidor as conhece antecipadamente, mas mesmo assim efetua o negócio apenas e tão somente para trocar um automóvel seminovo e em bom funcionamento por um zero quilometro apenas por uma questão de status? Não se pode culpar o mercado por tudo. É incumbência do adulto conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para descobrir o que realmente ele precisa e pode adquirir. E quanto às crianças? Penso que cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade de vários produtos. Evidentemente, cabe aos pais dizer não. A criança pode até se frustrar, mas será por algo válido, uma boa experiência que ela levará consigo, pois na vida adulta ela perceberá que a frustração é um elemento comum no jogo social. Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e serviços. Qual deve ser a função do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve comprá-los sem exagero; que devemos entrar numa nova era, a do consumo sustentável, consciente. As crianças, se pudessem, agradeceriam as lições.
Escrevo este texto que envolve a sociedade de consumo no viés da atuação política dos consumidores-cidadãos e seus representantes eleitos. Como se sabe, o Congresso Nacional está às voltas com uma reforma política, cujos resultados não são lá muito animadores. Por exemplo, a tentativa de se adotar o voto facultativo foi derrotada.Também como se sabe, recentemente uma comitiva de Senadores brasileiros foi à Venezuela com o intuito de fazer uma visita aos prisioneiros políticos encarcerados pelo regime local. Não tecerei comentários a respeito desse tema que, aliás, foi bastante tratado e esclarecido pela imprensa nacional.Eu quero apenas aproveitar o episódio para apresentar uma reivindicação aos políticos brasileiros. Se, de fato, há uma preocupação com a democracia venezuelana (ou com a falta dela), o que, penso, é uma preocupação legítima até porque o país vizinho faz parte do Mercosul, então podemos aproveitar a oportunidade para melhorar a nossa própria democracia. Usando o exemplo que citei acima: por que não utilizarmos essa consciência para acabar com o voto obrigatório?Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos apenas um dos aspectos de nossa democracia, esse do fato do voto ser obrigatório entre nós.De todos os países do mundo, apenas 28 ainda adotam esse modelo, sendo 12 na América Latina e 7 na América do Sul1. E dentre os 15 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever2.Uma curiosidade: na Venezuela, o voto obrigatório foi abolido em 1993!Que tal, então, aproveitarmos essa energia e reformar nosso sistema eleitoral para melhor, implantando o voto facultativo? Eu já tratei antes deste assunto. Penso que, ao contrário do que dizem, o voto obrigatório é contrário à natural liberdade que se espera numa democracia e transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão.A obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. O sistema serve apenas para legitimar uma estrutura de poder antiga e que agora está em cheque no Brasil. Para se ter uma ideia, uma pesquisa do Instituto Datafolha realizada após as eleições de 2010 mostraram que, 20 dias após as eleições, 30% dos eleitores já não se lembravam em quem haviam votado3.Esses dados comprovam que milhões de brasileiros vão às urnas para se livrarem da obrigação de votar e para não perderem vários direitos retirados de quem não vota, como tirar passaporte, por exemplo.Por isso, sou daqueles que acreditam que o voto facultativo tem tudo de positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que, de fato, possa representar seus pensamentos, seus desejos, assim como do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso (sem partido) etc. Mas, o fim do voto obrigatório parece-me um bom começo.Agora um outro aspecto: como também já tive oportunidade de tratar, as democracias contemporâneas são formadas por cidadãos-consumidores. Isto é, uma característica marcante das sociedades capitalistas é que elas são formadas basicamente por consumidores. Os direitos dos cidadãos são exercidos em larga medida pela atuação enquanto consumidores, pois no cotidiano as ações são "vividas" pelo e para o consumo. Ademais, em relação ao Estado, está claro que ele é um agente prestador de serviços (além de produtor) e se comunica com os cidadãos do mesmo modo que as empresas privadas com seus clientes. Nesse sentido, é que se diz que o eleitor é um cliente do Estado. Como o regime é democrático e as autoridades são guindadas a seus cargos pelos votos dos eleitores, estes esperam, legitimamente, que as ações e tomadas de decisões daqueles de algum modo, então, estejam em consonância com suas necessidades, interesses e direitos. Os cidadãos-consumidores têm que se comunicar livremente com seus representantes. Se olharmos para uma série de reinvindicações feitas nos últimos meses, veremos que boa parte delas envolve direitos típicos dos consumidores, tais como transportes decentes, melhor atendimento médico e hospitalar, educação de boa qualidade e segurança pública. As manifestações apontam para algo muito bom: a tomada de consciência de que, na sociedade capitalista contemporânea, os cidadãos têm o direito de se manifestar livremente e podem exigir que se lhes entreguem produtos e serviços decentes a preços módicos e que a política seja executada de forma honesta e transparente. Por isso tudo, penso que a liberdade para o voto é um objetivo a ser alcançado.____________________1 Fonte: https://miltonribeiro.sul21.com.br/2014/08/05/o-voto-obrigatorio-no-mundo/2 Fonte: https://direito.folha.uol.com.br/blog/voto-obrigatrio-no-mundo3 Mesma Fonte anterior.
Parece fácil, mas não é. Muito se fala em qualidade no atendimento ao consumidor. Gastam-se milhões em pesquisas, mas ainda assim os órgãos de defesa do consumidor estão repletos de reclamações exatamente por causa do mau atendimento.De fato, um dos problemas de grandes empresas, que administram enorme parcela de clientes, é a qualidade do atendimento. Os financistas e outros administradores dos setores de atendimento têm muito a aprender e em alguns casos cometem erros incríveis, alguns com consequências sérias para a relação (a perda do cliente é uma delas, por exemplo), outros são apenas cômicos.Um dos focos de problemas é o da automatização do relacionamento, que é, muitas vezes, mal planejada e mal executada; as gafes cometidas são dos mais diversos tipos e, em muitos casos, geram prejuízos financeiros à empresa e/ou causam danos à sua imagem. Alguns são graves e acabam gerando reclamações e demandas judiciais e outros são apenas risíveis. Vamos a um exemplo do setor de comédias.Meu amigo Outrem Ego contou o seguinte: "N'outro dia, recebi uma correspondência de um banco que havia sido vendido e no qual tenho uma conta antiga. Na frente do envelope estava escrito: 'Comunicado importante'. Pensei: 'Nossa! Que agilidade! Já estão avisando os correntistas da venda do banco'. Mas, que nada. Abri e vi que se tratava de um outro assunto sem urgência e incrivelmente mal administrado. Li e dei uma bela risada, pois parecia pegadinha do programa do Gugu!"A correspondência trazia o seguinte:Primeiro parágrafo: "Prezado (a)... Por meio desta, informamos o estorno do valor de R$3,61 cobrado a título de Comissão de Manutenção de Limite de Crédito - CMLC, acrescido da atualização pela Selic desde a data de realização da cobrança."Sem problemas até aí. Mas, eis a surpresa do segundo parágrafo: "Para o recebimento dos valores acima especificados, solicitamos que compareça a qualquer agência do banco... portando este comunicado e um documento com foto." (grifado no original).R$3,61? Isso mesmo caro leitor! R$3,61 ou menos de 1 euro e pouco mais de 1 dólar. Olhando o envelope vê-se que ele foi postado em outro Estado da Federação. Só de uso do computador, gasto com energia, papel, tramite do documento, despesa com correio, trabalho dos funcionários etc., o gasto deve ter sido de mais de R$3,61. E, para receber a polpuda importância, meu amigo teria de se deslocar até uma agência bancária: se fosse de ônibus gastaria R$7,00 (ida e volta), de táxi, pior ainda e, de carro, com estacionamento também não daria.Pergunto: é falha de algum funcionário do banco ou a culpa é do computador?Mais uma pergunta: por que, simplesmente, não depositaram o valor na conta corrente de meu amigo?E não acabou. Terceiro parágrafo: "Colocamo-nos à disposição, por meio de nossos canais de atendimento, para esclarecer quaisquer dúvidas." (e seguem os números) Mais perda de tempo! E, abaixo, está escrito:"Para preenchimento da agência (em negrito no original) Eu__________________________, declaro ter recebido no dia ____________o valor acima informado, relativo ao estorno de Comissão de Manutenção de Limite de Crédito (CMLC), e dou a mais ampla, geral, irrevogável quitação da importância ora recebida, na forma do disposto no artigo 32º, caput e parágrafo único, do Código Civil, para nada mais cobrar ou reclamar, em Juízo ou fora dele, seja a que título for, com fundamento no pagamento ora efetuado pelo banco..., ficando consignado que a presente quitação abrange o principal e todos os acréscimos e/ou acessórios.____________________, ____/____/_________________________ Assinatura do cliente_____________________Funcionário do banco" (SIC!)"Só faltou pedirem para reconhecer firma! O irônico (e tragicômico) é que, como disse meu amigo, se ele fosse à agência receber o valor, depositaria no mesmo momento na sua conta corrente...Mas, disse-me que não iria receber, pois o custo é maior que o benefício. Ficamos pensando em como é que uma falha dessas pode acontecer e ele, sempre muito desconfiado, construiu outra teoria além dessa da constatação da incompetência explícita. Disse: "Veja bem, meu caro amigo.Se o banco tiver que devolver pequenas importâncias para muitos clientes e adotar esse método o que acontecerá é que a maior parte não irá buscar o dinheiro, assim como eu. Daí, eles faturam uma boa grana".Pode ser. Neste mundo em que vivemos, é possível pensar nisso. Mas, prefiro apostar na ineficiência do setor de atendimento, que costuma pecar pela qualidade quando envolve um grande contingente de clientes. Uma das grandes falhas desse setor é tratar o cliente como um ente abstrato, um número, esquecendo-se que ele existe realmente, que ele pensa, que ele tem direitos e interesses, que ele reage indo para o concorrente, etc.
Repito hoje uma história que já contei, propondo uma reflexão ainda sobre o tema da proteção legal. Começo perguntando se o consumidor quer mesmo ser protegido. Veja, caro leitor, o que aconteceu com meu amigo Outrem Ego há algum tempo. Ele morava num condomínio de casas numa cidade próxima da capital de São Paulo. Certo dia, viu numa revista um anúncio de uma liquidação que estava sendo feita por uma loja da qual ele era cliente há muitos anos. Era um estabelecimento no bairro de Moema, que vendia sapatos, bolsas, cintos etc.O. Ego falou com a esposa e, num sábado, dirigiram-se a São Paulo para fazer compras, indo diretamente àquela loja. Foram ele, a esposa e, também, a sogra e a cunhada, que por acaso faziam-lhes uma visita e, ainda, sua filha à época de colo, com pouco mais de um ano. "Quatro mulheres e eu", disse ele. Na viagem, eles gastaram quase duas horas. Lá chegando, ele, com a filha no colo, dirigiu-se ao andar superior, onde se encontravam os produtos masculinos e as demais mulheres ficaram na andar térreo examinando as ofertas de produtos femininos. Ele demorou a encontrar sapatos que servissem e, quando desceu, viu que a esposa e as demais já aguardavam do lado de fora à porta - a loja estava cheia demais e elas haviam resolvido ir a outro lugar; só esperavam por ele.Muito bem. Ele foi para a fila à frente dos caixas: era uma fila única em ziguezague. Na entrada da fila, havia um rapaz que fazia a triagem das compras. Meu amigo entregou sua sacola com um par de sapatos e um cinto. O funcionário passou sobre a etiqueta um leitor ótico e perguntou: "O senhor vai pagar com cheque ou cartão maestro?". Meu amigo respondeu: "Nenhum dos dois. Pagarei com meu cartão Mastercard". O rapaz, então, disse "Bom, o senhor não pode comprar porque só aceitamos cartão maestro ou cheque após consulta".Outrem Ego gosta de dizer: "Para exercer direitos é sempre muito importante não ficar nervoso, não levantar a voz, manter a calma... Não é bom gritar, pois fica parecendo que a gente não tem razão". Assim, depois da negativa do funcionário da loja, ele calmamente disse: "Olha, eu demorei duas horas para chegar aqui e, saiba você, que eu levarei este sapato e este cinto. Por favor, chame o gerente". O rapaz quis resistir e dizer não, mas a voz de meu amigo era tão calma e seu olhar tão penetrante que ele sequer ousou. Passados três ou quatro minutos, chegou uma senhora, se apresentando como gerente, bradando algo em tom de pouca amizade. Ele se apresentou e disse: "Minha senhora, recebi em minha casa, no interior, uma propaganda deste estabelecimento anunciando a liquidação. Decidi, então, vir até aqui com minha família para fazer compras. Esta aqui é minha filha!". A mulher, por enquanto, apenas olhava e ouvia. Ele continuou: "Olha, não havia no anúncio qualquer referência a que as compras somente poderiam ser pagas com cartão maestro ou cheque. Aliás, nem aqui na loja vejo isso anunciado. Mas, eu irei levar estas compras..."Foi bruscamente interrompido pela gerente: "Olha aqui, não quero saber de seus problemas. Aqui só recebemos cartão maestro ou cheque. Também posso aceitar dinheiro. Se o senhor tem um deles tudo bem, senão pode ir embora!".A mulher já havia perdido as estribeiras, mas O. Ego não se abalou. Com uma fala mansa, simplesmente disse: "Minha senhora, esta loja está violando o Código de Defesa do Consumidor por falta de informação, mas eu tenho a solução. Basta a senhora anotar meus dados, emitir uma duplicata em meu nome com vencimento à vista ou para segunda-feira, emitir um boleto ou me passar os dados da conta corrente da empresa para eu fazer a transferência via internet".A mulher ouviu e em seguida deu uma gargalhada histérica e falou: "De jeito nenhum. Pode ir andando...". Meu amigo, inabalável, disse: "Olha, o caso é de crime tipificado no artigo 66 da lei 8.078/90. Eu chamarei e a polícia e a senhora irá presa em flagrante..." e pegou o celular.Caro leitor, sabe o que aconteceu naquele exato momento? Com a discussão, Outrem Ego bloqueara a entrada dos caixas. Atrás dele formara-se uma extensa fila e as pessoas que estavam lá esperando começaram a protestar. Mas, adivinhem: começaram a protestar contra ele! Começaram a reclamar e alguns até o xingaram. Ele ainda tentou retrucar dizendo, agora já abalado, "eu estou lutando pelo direito de vocês!", mas não adiantou. Estava todo mundo contra ele, que desanimado jogou a toalha. A essa altura, sua esposa já havia entrado na loja e entregou para ele dinheiro suficiente para pagar as compras. Ele, bastante contrariado, pagou em dinheiro e foi embora.Não é incrível? Foram os próprios consumidores que impediram que o consumidor Outrem Ego exercesse seus direitos. E, claro, ele não só tinha razão como estava mesmo defendendo o direito de todos os consumidores, porque o abuso da loja, evidentemente, não era contra meu amigo, mas contra todos! (Não só abuso, como também má administração do negócio).Esse fenômeno, no Brasil, infelizmente, não é novo; é muito enraizado num individualismo que desconsidera o outro - um igual em direitos -, que é desprezado, com base no slogan "não é comigo". Um erro, naturalmente, mas bem profundo. Esse tipo de atitude é parente da má educação em geral, do descumprimento aberto das normas mais básicas de civilidade, que vai desde o não dar "bom dia" ou "até logo" dentro do elevador às pessoas que moram no mesmo prédio até o desrespeito abertamente praticado às faixas de pedestres por parte dos motoristas e também a travessia fora da faixa em qualquer lugar e a qualquer momento por parte dos pedestres, ou o excesso de ruído com músicas tocadas em alto volume e até altas horas incomodando os vizinhos sem nenhuma preocupação etc.Aliás, essa falta de civilidade, solidariedade e respeito ao próximo por parte de muitas pessoas, impede que a sociedade se organize na defesa de prerrogativas e garantias na luta por seus direitos. Na doutrina consumerista muito se discutiu sobre a proteção que a lei dá ao consumidor; se seria ou não excessiva. Eu sou daqueles que acreditam que a lei 8.078/90 buscou, com a proteção efetuada, reequilibrar as forças desiguais do mercado de consumo, mas admito, por exemplo, que pequenos fornecedores também precisariam de alguma proteção e muito esclarecimento (critica que faço à responsabilidade objetiva estabelecida de forma ampla e indiscriminadamente para as grandes corporações e ao mesmo tempo para os micro empresários). Admito também que pode sim o consumidor lesar o fornecedor, não só em atitudes francamente fraudulentas, como violando o princípio da boa fé objetiva estabelecido no sistema legal.E, acima disso, penso que uma proteção exacerbada não só não resolve como impede o amadurecimento e a autonomia. (Em matéria de educação infantil, por exemplo, isso é fundamental. Não basta proteger, é preciso dar autonomia para as decisões; é necessário que, aos poucos, a criança aprenda a resolver alguns dos problemas que aparecem, para que, quando adulto, saiba fazer o mesmo). Por isso, é que se compreende que em cada estabelecimento - também como manda a lei - haja um exemplar do CDC: algo irônico, porque certamente a maior parte dos consumidores e dos lojistas terá dificuldade de encontrar na lei qual a norma incidente numa eventual discussão, uma vez que o texto, apesar de claro, cuida de princípios, tem vários termos técnicos, é especifico para poucas situações concretas etc.
Como estudante de Direito, vivi muito tempo a ilusão de que o Estado pudesse, de fato, intervindo na sociedade, criar bem-estar social. Um Estado democrático, naturalmente, e no qual os agentes públicos representassem os interesses dos governados e também o que existisse do melhor no pensamento jurídico garantidor da dignidade da pessoa humana. Haveria de se implantar políticas e regras que beneficiassem a todos.Infelizmente, com o passar do tempo, minha ilusão foi se esvaindo. Estou cada vez mais convencido de que, muitas vezes, é o Estado (ainda que democrático) que se torna um entrave ao desenvolvimento das pessoas e da sociedade. A liberdade, por exemplo, esse direito natural e civil, que toda pessoa deveria poder gozar, tem sido limitada, violada, vilipendiada; o Estado democrático tornou-se centralizador, onipotente, opressor; ao invés de garantir a liberdade individual, ampliando e garantindo espaços para seu exercício ele, ao contrário, passou a estabelecer obstáculos, muitos deles ilegítimos quando não ilegais (ou inconstitucionais).Em vários fóruns e textos tem-se discutido esse papel que o Estado contemporâneo assumiu e esse exagero precisaria ser limitado. No mundo todo, os Estados têm agentes que causam danos à população, de maneira mais ou menos evidente. As diversas polícias, em muitos lugares, são uma catástrofe de ineficiência e abusos, o que se observa até em países do primeiro mundo como nos Estados Unidos de América, por exemplo. Esse braço repressor, muitas vezes mal dirigido e mal treinado, que se faz mostrar em fotos e vídeos, está também em vários outros setores da administração pública, de forma mais oculta dentro das mentes de seus agentes.A liberdade individual tem sido uma vítima constante dessa mentalidade centralizadora e das ações que a ela correspondem. Para nossa reflexão, apresentarei duas hipóteses: uma, digamos assim, no plano micro e outra no plano macro.Faço referência a uma citação de meu amigo Outrem Ego que já aqui indiquei: "Uma das claras diferenças entre uma democracia e uma ditadura é a de que nesta toda pessoa da sociedade civil é suspeita (de algo...); naquela, todo cidadão é inocente até prova (contundente) em contrário. Numa democracia, ninguém é suspeito até agir como tal".N'outro dia, ouvi o jornalista Ricardo Boechat contar que uma vez ele estava preso num congestionamento enorme e viu muitos motoristas serem assaltados exatamente porque estavam parados sem nada poderem fazer. Mais à frente, descobriu que o congestionamento era causado por uma blitz policial que fazia investigação da lei seca ou algo semelhante. Ele disse que não aguentou e foi falar para os policiais que por causa deles as pessoas estavam sendo assaltadas e acabou sendo admoestado por eles. Ou seja, a polícia que deveria dar segurança à população estava não só não exercendo sua função, como facilitando a vida dos meliantes. Aliás, como já perguntei aqui nesta coluna: se uma pessoa anda pela rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente e não está cometendo nenhum delito e nem apresenta uma atitude suspeita, qual o fundamento para ela ser abordada por um policial? De onde ele extrai esse direito?Não parece que as coisas estão fora do lugar? Pessoas de bem sendo abordadas a torto e a direito e, ao mesmo tempo, a violência e a insegurança correndo solta. E em todos os cantos do país.Agora, proponho que pensemos uma questão mais macro. O da implementação, no Brasil dos últimos anos, de uma política econômica que se supunha de inclusão social das populações mais carentes. Lembro o pensamento da filósofa (ou cientista política, como ela preferia) Hannah Arendt a respeito da aquisição de direitos nas sociedades democráticas, capitalistas e de massa. Ela dizia que o primeiro direito a ser instituído é o "direito a ter direitos". Ela via que em muitas sociedades, milhares de pessoas não tinham um mínimo de direitos garantidos.Pergunto: quais seriam esses direitos básicos a serem garantidos?Como é muito grande o poder simbólico e real das sociedades de consumo atuais, houve uma espécie de sedução para o consumo: a política implementada permitiu que as pessoas que não tinham direitos básicos passassem a ser consumidoras. O Estado, ao invés de oferecer e garantir direitos sociais fundamentais tais como educação, moradia, saneamento básico, atendimento hospitalar etc., ampliou o acesso a bens de consumo. Muitas pessoas que não têm onde morar ou habitam favelas e cortiços e/ou não têm empregos regulares, possuem televisores de 40 polegadas, aparelhos celulares e iphones, micro-ondas ou geladeiras modernas, computadores e até automóveis adquiridos com financiamentos de muitos anos. Se Hannah Arendt fosse viva talvez constatasse que, nesses casos, deu-se um salto: às pessoas que não tinham direitos, ofereceram-se produtos de consumo. Elas continuam sem as garantias básicas, mas podem assistir à novela das oito numa tevê de plasma.Pergunto novamente: não parece a você leitor que algo está fora de lugar?Claro que, quando se fala em liberdade, há que haver uma garantia mínima para seu exercício. E daí, a presença do Estado é fundamental. De nada adianta "ser livre para dormir debaixo da ponte", como se diz. O exercício de liberdade começa na garantia mínima do direito a ter direitos. É preciso que sejam oferecidas condições para que todas as pessoas possam usufruir dos benefícios sociais e também se realizar como indivíduos, fazendo escolhas dentro de um quadro regular.Não parece fácil e não é. Mas, pelo que se vê, nos tempos atuais, há um distanciamento muito grande entre Estado e sociedade; entre direitos estabelecidos constitucionalmente e a implementação de políticas que permitam sua eficácia. Não basta haver produção e consumo. É preciso também respeito aos direitos democraticamente estabelecidos e a criação de um espaço para que as pessoas, após beneficiarem-se de direitos sociais mínimos, decidam como e quando desejam ser consumidores.
Volto ao tema da obesidade, esta que é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o acúmulo excessivo de gordura no corpo que pode acarretar problemas graves de saúde como doenças cardiovasculares, hipertensão e diabetes. Segundo a OMS, a obesidade é considerada a mais importante desordem nutricional e é uma epidemia mundial. A incidência da doença é alta, tanto em países desenvolvidos, quanto nos emergentes e subdesenvolvidos. Nenhuma faixa etária está livre do problema. E, pior, nos últimos anos tem aumentando a incidência da doença nas primeiras faixas etárias, em crianças e adolescentes.Conforme explica a médica nutróloga Jussara Fialho Ferreira1, há alguns anos se dizia que a obesidade decorria da gula, da falta de força de vontade, de uma fraqueza de caráter ou, ainda, de algum distúrbio psicológico. Atualmente, a ciência reconhece que a obesidade tem múltiplas causas fisiológicas e psicológicas.Diz ela: "Sabe-se que existem pessoas que possuem genes predispostos ou não a prática de esportes ou que têm predisposição para comer muitos doces, por exemplo. Mas não é só isso que determina se uma pessoa será ou não obesa. Outro agravante é a hereditariedade. Se um dos pais for obeso, a chance de desenvolver o distúrbio é de 50%. Agora se ambos forem obesos a chance é de 80%"2.Além desses fatores genéticos, existe o fator ambiental. Este é caracterizado pelo desequilíbrio entre a ingestão de alimentos com alta densidade calórica e a queima insuficiente destas calorias. A psicóloga Angela Tamashiro diz que "as pessoas não são obesas porque querem ou desejam. Várias são as causas que geram a obesidade. Em 90% dos casos, a causa da obesidade está na utilização descontrolada da gordura..."3 Deixando de lado a questão da genética, vê-se que um ponto relevante para o exame desse problema é o da questão ambiental: obesidade causada pela ingestão imoderada de produtos calóricos, repletos de açucares e conservantes e outros ingredientes que fazem mal à saúde. Eu já tratei desse assunto antes, com ênfase na informação e na publicidade. Como elemento para nossa reflexão, proponho uma análise do tema sob outro prisma, que tem chamado cada vez mais a atenção: será que, com a quantidade de informações disponíveis (não só propriamente nas embalagens dos produtos, mas também nas matérias veiculadas pelas tevês, sites, blogs etc.), os consumidores ainda não sabem que gorduras, açucares, conservantes etc. consumidos em doses exageradas engordam e podem fazer mal à saúde?Muito se fala em ausência de informação ou má informação a respeito dos produtos ditos alimentícios que são fabricados e vendidos em todos os cantos do mundo, mas o que fazer se as informações são fornecidas de acordo com as regras vigentes e ainda assim o consumidor continua a ingerir os mesmos produtos? Não é caso de simples exercício de um direito subjetivo?Se o consumidor vai a uma festa na qual estão sendo servidos pastéis, coxinhas, empadinhas, camarões empanados etc. e resolve se empanturrar, a culpa é de quem?Não há dúvida de que a lei pode determinar que as informações nutricionais e que digam respeito à saúde do consumidor devam estar estampadas em embalagens, cartazes e na publicidade. Mas, na medida em que elas sejam fornecidas de acordo com o modelo legal, daí para frente a responsabilidade é de quem adquire e consome o produto. Naturalmente, quando a informação envolve crianças, o quadro é mais delicado, mas, neste caso, cabe aos pais a decisão sobre o que comprar e o que consumir. Algumas indústrias são acusadas de imporem seus produtos calóricos por intermédio de publicidade massiva e constante. Mas, veja-se o paradoxo: no setor massificado de planos de saúde, muitas empresas oferecem descontos nas mensalidades e até prêmios para os usuários que perderem peso e adotarem hábitos saudáveis de vida4. Isso comprova que é o próprio consumidor que escolhe seu modo de vida e seus hábitos alimentares, ainda que estes possam fazer mal à sua saúde. Nos dias que correm, há informação de sobra a respeito do problema e a ciência (com apoio ou não do mercado de consumo) tem colaborado fortemente para que, cada vez mais, as pessoas possam se cuidar. Vejamos o exemplo do cigarro: em grande parte do século XX, fumar era sinal de bom gosto e distinção. Nos filmes de Hollywood dos anos 40, 50, 60 e até 70, os personagens quase sempre estavam portando um cigarro, especialmente em situações sociais. Cigarro e glamour andavam juntos. E, não só em Hollywood, mas também no cinema europeu etc. Fumar era algo natural de se fazer.Muito bem. Na medida em que a ciência avançou, foi-se descobrindo os malefícios do tabaco e começou-se a catalogar as diversas doenças causadas por seu consumo, assim como um número enorme de mortes. O Estado, por sua vez, passou a fazer a contabilidade dos prejuízos ocasionados com as doenças e as mortes. Conclusão: muitos países passaram a proibir a publicidade de produtos fumígenos, os impostos sobre esses produtos foram aumentados, passou-se a proibir seu uso em locais fechados e públicos etc., tudo visando fazer cair seu consumo. Porém, com toda a informação disponível e mesmo com a intervenção do Estado mediante leis de controle, ainda assim não milhões as pessoas que fumam. E na mesma linha que as operadoras de planos de saúde tentam obter que seus usuários tenham hábitos alimentares saudáveis, nos Estados Unidos de América, há planos de saúde que utilizam incentivos financeiros para que seus clientes deixem de fumar5. Há, ao que parece, um grave problema de conscientização no polo de consumo. Cabe ao consumidor, caso queira, mudar seus hábitos alimentares e de qualidade de vida (praticando esportes, deixando de fumar etc.).____________________1 Apud Elisa Cortes, "Obesidade: nova epidemia mundial" in www.curiofisica.com.br, 29-9-2009. 2 Idem.3 Apud mesmo artigo.4 Ver matéria a respeito aqui. 5 Ver matéria a respeito aqui.
quinta-feira, 7 de maio de 2015

Uma reflexão sobre excesso de proteção

A respeito da superproteção na educação das crianças, conta-se a seguinte piada: uma família muito rica costumava se reunir para lautos jantares. Sempre se sentavam à mesa o avô, patriarca da família e a avó, a matriarca, seus dois filhos com as respectivas esposas e, numa mesa ao lado, os netos, todos muito mimados e excessivamente protegidos. Um desses netos era mudo. Certo dia, o avô comprou uma grande mesa retangular, ao redor da qual caberia toda a família, incluindo as crianças. Marcado o jantar, todos se acomodaram. De repente, o menino mudo levantou a mão e disse: "Pai, passa o pão." Silêncio e espanto geral! O pai exclamou: "Filho! Você fala!" "Sim", respondeu o menino com simplicidade. "E por que até hoje você nunca falou?" "Porque eu nunca precisei." Esse é o tema para nossa reflexão: excesso de proteção faz mal? Na educação infantil, parece haver consenso que sim. E em relação aos cidadãos, é bom o excesso de proteção? Ninguém duvida de que a proteção é salutar. A lei deve mesmo proteger os consumidores hipossuficientes, os menores de idade, as pessoas portadoras de deficiências, os idosos, as gestantes etc. Mas, até que ponto deve ir essa proteção?Veja, caro leitor, essa história narrada por meu amigo Outrem Ego: "Meu irmão, como você sabe, é juiz de Direito e professor universitário. Ele é doutor em Direito há muitos anos. Ele é juiz na capital e dava aulas numa faculdade de Direito na grande SP. Há dois anos, a escola, para reduzir custos, apresentou projeto para quem quisesse ser mandado embora. Como ele estava cansado das viagens, aceitou o pacote e saiu com alguns colegas.A escola fez os depósitos dos valores devidos em sua conta corrente e, marcada a homologação, ele deu uma pausa nos seus afazeres para comparecer ao Sindicato respectivo para assinatura do termo.Lá chegando, o funcionário do Sindicato encontrou uma pequena diferença de valor a favor de meu irmão e disse que, por isso, a homologação não poderia ser feita.Meu irmão disse que não se importava e que estava satisfeito com os valores recebidos. Mas, o funcionário foi irredutível: a homologação não seria feita.Meu irmão argumentou que sabia o que estava fazendo, afinal ele era doutor em Direito, professor de Direito, juiz de Direito!"É direito meu, minha prerrogativa e da qual eu abro mão!", bradou ele, mas não adiantou.Ele insistiu: disse que não poderia voltar n'outro dia, pois tinha mais o que fazer, o que no caso era julgar processos...Não deu certo. Depois de mais discussões, ele acabou concordando em escrever à mão no verso do termo uma ressalva confirmando que sabia que estava recebendo menos e que iria 'cobrar seus direitos'. Claro que ele nada fez, pois era prerrogativa da qual ele queria abrir mão!" Lendo essa história contada por meu amigo, pergunto: é isso, então? O Estado e/ou seus delegados e representantes e até os órgãos de classe e os sindicatos das diversas categorias sabem mais a respeito dos direitos instituídos que as próprias pessoas a quem supostamente pretendem proteger?Outrem Ego, depois de muito refletir ponderou algo nesses termos: "Em matéria de direito patrimonial, o montante a receber não pertence ao titular? Se sim, por que é que ele não poderia abrir mão? Se ele pode sacar o dinheiro a que tem direito na boca do caixa de um banco e, em seguida, entregá-lo para o primeiro que encontrar pelo caminho, por que não pode simplesmente dizer que não quer recebê-lo isentando o devedor do pagamento? Aliás, ele poderia sacar o dinheiro e, ato contínuo, depositar de volta na conta da empresa pagadora. Não se trata de uma proteção exagerada?" Sou obrigado a concordar com meu amigo. Proteção demais não parece fazer bem mesmo. Mas, quero, querido leitor, deixar algo claro para evitar confusão: não estou dizendo que não deva haver proteção. O problema está no excesso. Será que, do mesmo modo que as crianças superprotegidas têm dificuldade para amadurecer, não se está fazendo o mesmo com as pessoas em geral? Será que, com esse excesso de proteção, o cidadão, digamos assim, emudece? (para ficar com o exemplo da piada). Será que ele deixa de reivindicar, por ficar esperando que o defendam? Ou, pior, será que assim "protegido", ele nunca perceberá que poderia exercer seus direitos de outro modo?Deixo, pois, essas indagações para nossa reflexão.
Erupções vulcânicas como essa dos últimos dias do vulcão Calbuco no Chile não são comuns nem previsíveis. Muitas delas causam estragos no ambiente local, ao redor e a fumaça com cinzas que se expandem pelo ar acaba gerando problemas para o tráfego aéreo, impedindo viagens, fechando aeroportos, impedindo que as pessoas saiam a passeio e a negócios ou retornam para suas bases.Volto, então, ao tema da responsabilidade civil dos transportadores que não puderam prestar os serviços contratados em função desse problema ambiental. Faço, a seguir, minhas considerações. Para entendermos como a questão está colocada na legislação (no CDC e no CC) começo cuidando da questão do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão.Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no CDC foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo e nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração (não abordarei os casos de monopólio e até oligopólios, nos quais o risco de perda são muito pequenos, o que, claro, não elimina a responsabilidade de mesma base legal).O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz porque quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar, algo, aliás, inevitável, pois é impossível oferecer produtos e serviços em larga escala sem que algum problema surja.Decorre disso que, quem se estabelece deve, de antemão, bem calcular os potenciais danos que irá causar não só para buscar evitá-los, mas também para calcular suas perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão.O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral, a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não coloca como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que o CC/02 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade." Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o CC fala em força maior, está referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o CDC afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o CDC quanto o CC mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador, nem por ele evitado. Todavia, não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. O risco da atividade implica a obrigação imposta ao empresário para que ele faça um cálculo, da melhor forma possível, das várias possibilidades de ocorrências que possam afetar seu negócio. Certos fatos, necessariamente implicam agravamento do risco em função de sua latente possibilidade de ocorrência e, por isso, uma vez ocorrendo, não excluem o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o das tempestades e nevoeiros. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno - que, aliás, ocorre constantemente - é integrante típico do risco daquele negócio.Quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento, caso fortuito ou força maior, que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. E, é aqui que eu coloco o caso do vulcão. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser prevista. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto. Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas geradas pelas cinzas do vulcão e que impedem a navegação. Resguardados, claro, os direitos dos passageiros de remarcação de passagens sem a cobrança de multas ou o cancelamento da reserva com recebimento dos valores pagos. E, para terminar, tenho de falar dos passageiros que foram obrigados a mudar seus planos de viagens por causa do vulcão. Os cancelamentos envolveram e envolvem as estadias nos hotéis, flats, pousadas e demais ofertas de hospedagem, o transporte aéreo, e também o terrestre e marítimo a eles ligados, os traslados terrestres, os passeios previamente contratados etc. O evento fortuito externo atinge tanto os consumidores como os fornecedores. Se, de um lado, estes não podem ser responsabilizados, de outro, os consumidores também não podem ser prejudicados.Quando o empresário do setor hoteleiro se estabelece e passa a oferecer seus produtos, naturalmente, assume o risco de sofrer certas perdas advindas de cancelamentos legítimos e também de não efetuar vendas. Esse risco é inerente à própria atividade e deve fazer parte, como mostrei, do cálculo do risco/custo/benefício efetuado. Um evento como a erupção de um vulcão, repito, atinge indiscriminadamente a todos, não importa em que lado da relação de consumo a pessoa esteja.
Volto ao tema da obesidade infantil.Dados recentemente publicados mostram que existem no mundo mais de 42 milhões de crianças com excesso de peso e com menos de cinco anos de idade1. Realmente, o problema é grave e, como existem campanhas para que se implante a educação alimentar nas escolas o que, penso, é bem-vindo, indico ao final o endereço para a assinatura em um abaixo-assinado específico sobre o tema.Mas, gostaria de trazer um ponto para reflexão. O do papel dos pais.A Organização Panamericana de Saúde da Organização Mundial da Saúde (OPS/OMS) fez um chamado à indústria alimentícia para reduzir o sal em seus produtos, especialmente naqueles voltados para o público infantil2, o que é muito bom.Para se ter uma ideia desse problema, veja-se que a OMS recomenda a ingestão de, no máximo, dois gramas de sódio por dia, o que equivale a cinco gramas de sal. Para as crianças, esse valor deve ser ajustado para baixo, uma vez que, em geral, elas consomem menos calorias diárias que os adultos. Segundo a agência, nas Américas esse valor é superior aos cinco gramas: a taxa de consumo no Canadá, Chile e Estados Unidos é de oito, cinco e nove, respectivamente. E no Brasil são quase doze gramas de sal ingeridos por dia.Para tentar diminuir o consumo diário, o Ministério da Saúde firmou uma parceria com a Associação Brasileira das Indústrias Alimentares (ABIA) para reduzir o sódio em alimentos processados. A expectativa é retirar até 2020, mais de 28 mil toneladas de sódio do mercado brasileiro3.Muito bem. O slogan das campanhas é "Garantir hábitos alimentares na infância é importante para o desenvolvimento de adultos saudáveis, os pais devem privilegiar as refeições com alimentos frescos e evitar comidas industrializadas".Não resta dúvida que a boa a alimentação e a boa saúde na infância geram melhor qualidade do corpo adulto. O problema é o que fazer com os hábitos alimentares errados e viciados dos que são adultos e, especialmente, dos pais. Já tive oportunidade de dizer neste espaço que fico espantado com o desconhecimento de muitos consumidores sobre as propriedades e funções dos produtos alimentícios, a despeito de todas as informações que são lançadas via imprensa escrita, falada, nos portais da web etc.. Muitas pessoas continuam engordando mal (não há qualquer problema em estar acima do peso esperado para a idade, estatura, gênero, desde que se tenha saúde) com sérios problemas para sua qualidade de vida. E, por outro lado, é também sabido que é possível alimentar-se bem e com prazer sem qualquer prejuízo à saúde. Peguemos o exemplo dos alimentos de baixo teor nutritivo e repleto de ingredientes que fazem mal ao organismo como sódio, açúcares, gorduras, conservantes etc.. Parece existir informação suficiente sobre seus malefícios. É algo que deveria ser tranquilamente conhecido de todos os consumidores. Seu consumo excessivo deveria ser, realmente, evitado como algo óbvio. Não resta dúvida que a legislação pode fazer muito em benefício da saúde dos consumidores e, em especial, das crianças, restringindo, por exemplo, a venda de porcarias nas cantinas escolares, como aqui também já defendi. Mas, evidentemente, cabe aos adultos pais adotarem hábitos alimentares mais saudáveis para si e para seus filhos. E para saber o que são bons hábitos alimentares basta um click na web.Anoto que não há problema algum em comer um hambúrguer ou um belo churrasco ou, ainda coxinhas e pastéis, desde que não seja diariamente e que a alimentação do dia-a-dia seja balanceada, nutritiva e, claro, saudável. A ida a uma lanchonete para comer um cheeseburguer com batatas fritas pode ser um divertido momento de lazer sem causar danos à saúde, mas se for exatamente isso: um momento de lazer e não uma rotina calórica constante. E, para terminar, repito: nessa questão dos alimentos, os adultos também precisam ser (re) educados.____________________Para quem quiser assinar o abaixo-assinado que referi no início, segue o link:https://www.change.org/p/jamie-oliver-precisa-da-sua-ajuda-para-lutar-pela-educa%C3%A7%C3%A3o-alimentar-nas-escolas-foodrevolutionday?utm_source=action_alert&utm_medium=email&utm_campaign=281601&alert_id=HTTjaGSZSy_3gH0ejQOaUJk8FRDZDH9gD%2B8REwnvK%2F3%2F8lzxjyvhgM%3D____________________1 in https://criancaeconsumo.org.br/noticias/70-milhoes-de-criancas-devem-estar-acima-do-peso-em-2025-alerta-organizacao/. Os números são do ano de 2013.2 In https://criancaeconsumo.org.br/noticias/opsoms-exige-reducao-do-sal-e-o-fim-da-publicidade-de-alimentos-para-criancas/ 3 Idem anterior.
quinta-feira, 9 de abril de 2015

Da vida líquida para a vida gasosa

Meu amigo Outrem Ego viu que eu citei o sociólogo polonês Zygmunt Bauman na coluna da semana passada e, como conhece o trabalho por ele publicado, disse-me que andava com saudade das coisas sólidas de antigamente, que, aliás, não são tão antigas assim.No final do ano passado ele já reclamara do fechamento das locadoras de vídeos, que praticamente não mais existem: "Um dos passeios mais gostosos de fazer era ir sozinho ou com um amigo, o namorado, a namorada, o marido a esposa, os filhos ou até mesmo toda a família a uma locadora de vídeos para escolher um filme ou mais, para depois assistir em casa. Era agradável, lúdico, instrutivo. E interativo. Encontrávamos outras pessoas, trocávamos experiências e opiniões sobre os filmes já vistos, dávamos dicas e, diante de uma enorme quantidade de opções, escolhíamos com carinho e sem pressa"."Pressa", disse eu na oportunidade, "Essa pressa que, de tão rápida, tão fugaz, nos consome sem que percebamos..." Voltando ao sociólogo, meu amigo lembrou da questão da calma, do tempo de curtir a vida de maneira mais lenta: "Bateu uma nostalgia", disse e depois contou o seguinte:"Sabem, tornamo-nos uma sociedade de fotógrafos. Todo mundo tira foto o tempo todo de tudo, sem parar e, rapidamente... Sou de um tempo em que isso era muito diferente, gostoso, interessante e sólido - para usar a teoria do sociólogo. E, olha, amigo, esse tempo não vai muito longe. É de apenas mais ou menos uns trinta anos...".Ele fechou os olhos, como que retornando no tempo, e depois prosseguiu:"Lembro muito bem da primeira vez que minha mulher e eu fomos à Europa. Foi na década de oitenta. Um dos apetrechos mais importantes para levarmos na mala (de mão) era uma máquina fotográfica. E, naturalmente, junto dela alguns rolinhos de filmes contendo doze, vinte e quatro ou trinta e seis poses. Naquela viagem levamos dois rolos de cada. (Aliás, não era barato). Então, fazendo as contas, poderíamos tirar... Cento e quarenta e quatro fotos. Veja bem, viajamos quase trinta dias e podíamos tirar apenas um pouco mais de cem fotos, cerca de quatro ou cinco fotos por dia""Isso gerava uma responsabilidade: nós tínhamos que escolher o lugar para bater, deveríamos saber se valia a pena tirar naquele momento do dia ou da noite (com flash que se acoplava na máquina); teríamos que decidir se tirávamos de uma igreja ou de um museu etc. E não só: precisávamos caprichar para não cortar parte da paisagem e quando pedíamos para alguém tirar nossa foto juntos, torcíamos para que ele não cortasse nossas cabeças""A viagem enriquecia-se com as próprias fotos que exigia nossa concentração e gerava desde logo uma emoção. E quando voltávamos, então?""Lembro bem dessa primeira viagem e também de outras posteriores da mesma época. Levei os rolos à loja para fazer a revelação, que demorava alguns dias. Ficávamos na expectativa: será que saíram todas? Algumas ficaram escuras, opacas, tremidas? Será que queimaram? Afinal, cortaram ou não nossas cabeças?""Era algo que nos deixava um pouco tensos é verdade, mas não era desagradável, especialmente porque na maior parte das vezes as fotos saiam bem""E, claro, como iríamos aguardar algum tempo para ver as fotos e elas eram tão importantes, pois refletiam a viagem, os lugares conhecidos, as experiência vividas, nós convidávamos parentes e amigos para irem em casa ver. Depois, colocávamos tudo num álbum que, de vez em quando, folheávamos""Mas, hoje, os jovens nem sabem o que é isso. E a experiência da foto é efêmera e momentânea. Numa viagem de uma semana, a pessoa tira quinhentas fotos ou mais. Bate várias do mesmo lugar e da mesma pose. Tira, olha uma vez e nunca mais vê. Numa simples festa de aniversário em casa, as pessoas tiram centenas de fotos, muitas idênticas e cometem o mesmo pecado: olham uma vez, exatamente logo após tirar. Depois, esquecem. Sei que há pessoas que guardam algumas, mas é muito pouco em termos de experiência""Ah, sei, esqueci das redes sociais... Tira-se a foto, posta-se na rede e ela vai ser vista... Muitas de si mesmo! As redes estão repletas de fotos sem história, apenas do imediato... A solidez se foi meu caro amigo!"Tive que concordar com ele, eu que tenho a mesma experiência de fotos de uma época que se foi. E vejo-me obrigado a retornar a Zygmunt Bauman, que se tornou famoso em grande medida por apresentar ao público o seu conceito de "estado líquido" da sociedade contemporânea. Em obras como Modernidade Líquida (2000), Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos (2003) Vida líquida (2005), Medo líquido(2006) e Tempos líquidos: viver na idade da incerteza (2007), ele mostra a vida num tempo de incertezas, isto é, tempos de estados líquidos em oposição à solidez representada pelos estados de certeza, algo do passado. O autor mostra que nesta nossa sociedade moderna, isto é, líquida, as condições de atuação das pessoas - leia-se: de consumidores - mudam antes que suas formas se consolidem. Nada é feito para durar. Vingou uma espécie de vida temporária, vivida em condições de incerteza constante. De fato, na vida cotidiana percebe-se uma espécie de ânsia por devorar, suprimir, trocar, extinguir, modificar incessantemente. Tudo se fragmenta e se altera. Aquele friozinho na barriga para saber se uma foto tirada com tanto carinho saiu ou não, foi substituída por uma ansiedade que torna tudo imediato, que devora nossa paciência, nossa capacidade de espera.Meu amigo lembrou do micro-ondas: "É prático e quase todo mundo conhece, sabe usar e usa de fato. Pergunto: você já se pegou ansioso aguardando que passasse os dois minutos programados para aquecer alguma coisa? Não é incomum que nós marquemos um minuto e desliguemos alguns segundos antes. Será que nós perdemos a capacidade de esperar um minuto que seja?"Tive de concordar mais uma vez. Caro leitor, tentando ir além do que disse o pensador polonês, arrisco dizer que a sociedade capitalista chegou a, digamos, um estágio gasoso. Nem mais líquida é. A liquidez apesar de fluída, ainda é palpável. E o líquido de algum modo se amolda, como faz o rio que abraça suas margens, que toma a forma do objeto em que está, ainda que possa ser derramado e escorrer. A água se nos escapa por dentre os dedos, mas ainda podemos retê-la na pia, na banheira, no copo. Esse nosso estado atual parece gasoso, parece evaporar e desaparecer no ar atmosférico que com ele se confunde. Talvez forme imagens no céu, como nuvens que desenham animais ou plantas. Mas, essas imagens estão distante, são fugidias e logo desaparecem.É isso?Então, pergunto: por que há de ser tudo imediato, virtual e on line? Porque é que estamos correndo tanto? Tudo que temos é ilusório, passageiro?Talvez precisemos parar para pensar num novo modelo de curtir a vida. Num novo modo de sermos felizes. Num passo mais lento, com mais calma e mais concretamente.
quinta-feira, 2 de abril de 2015

A (in)segurança do consumidor no dia-a-dia

Certa feita, estávamos um amigo, grande jurista, e eu, aguardando num aeroporto para embarque em direção a um Congresso. Eu reclamava da má formação oferecida pelas escolas de Direito, das falhas dos concursos públicos para as várias carreiras jurídicas e de como, apesar da aparente dificuldade que eles oferecem, muitos dos aprovados não são capazes de bem interpretar o sistema legal, de compreender o fenômeno social e jurídico em sua complexidade e, enfim, de exercer o mister que lhe foram confiados com as habilidade exigidas para a profissão. Muitos dos concurseiros, estudiosos diuturnos das questões usualmente utilizadas, mostram-se capazes de ultrapassar o concurso público assumindo a carreira escolhida (ou na qual haviam conseguido entrar, pois tentam muitas em diferentes setores). Ele concordava comigo e citava vários exemplos terríveis de estudantes que ingressaram em carreiras públicas sem jamais terem trabalhado um único dia na vida. Saíam dos bancos escolares apenas como estudantes, iam para os cursinhos e ficavam por lá alguns anos. Daí, passavam no concurso e em breve estavam acusando, julgando etc. Mas, sem experiência alguma.De repente, ele me diz: "Sabe, estamos aqui falando da área jurídica por que a conhecemos mais ou menos bem, desde a faculdade de Direito até a vivência nas carreiras. Mas, algo me ocorreu... Pergunto a você: nós vamos embarcar daqui a pouco num avião. Será que a pessoa que faz a manutenção da aeronave foi boa estudante? Será que tem experiência? Será que entende bem do riscado? Ou, melhor, será que o engenheiro responsável entende mesmo do negócio? Quando alguém contrata um advogado, certamente, espera que o profissional saiba como agir. E se está aguardando um julgamento, acredita que o juiz saiba decidir e assim por diante. E, nós, pobres usuários das companhias aéreas? Com certeza esperamos que o avião esteja em perfeitas condições de voo, que o piloto e o copiloto estejam preparados para assumir o comando da aeronave, que estejam em boas condições de saúde etc." "Sim", respondi. "Isso vale para qualquer profissão. Se vamos ao dentista, aguardamos que entenda o que nossa boca mostra. E, no hospital, que o médico nos avalie corretamente"."Estamos seguros de que nosso avião alçará voo, viajara e descerá em condições adequadas?" - ele perguntou."Acho que nem pensamos nisso", conclui. Esse é o ponto da reflexão para hoje: quando embarcamos num avião, não pensamos em problemas (nem devemos pensar para não passarmos nervoso...). É pressuposto que tudo funcione bem. Inconscientemente, aceitamos que não só todos os envolvidos na atividade sejam profissionais gabaritados como estejam no gozo pleno de suas faculdades mentais e em perfeito estado de saúde, bem alimentados, com o sono em dia etc.O sociólogo polonês Zygmunt Bauman diz que vivemos tempos "líquidos": estamos na idade da incerteza, isto é, tempos de estados líquidos em oposição à solidez representada pelos estados de certeza. Como obter algum tipo de tranquilidade em qualquer setor? Em termos de segurança nos aeroportos, os fatos nos dizem que, ao que parece, alguém está cuidando do assunto. Em alguns lugares mais do que em outros, mas a verdade é que após o 11 de setembro, com o ataque às torres gêmeas de Nova York, em todo o mundo passou-se a cumprir rigorosos regimes de revistas de passageiros e controle dos transportes de bens. Será que os agentes de segurança entendem do assunto?Ironicamente, a queda do Airbus A320 da Germanwings no sul da França, no dia 24 de março, mostrou que foi uma das regras de segurança implantadas que permitiu a ação suicida e criminosa do copiloto (naturalmente, estou supondo para esta análise que, de fato, foi o copiloto alemão que deliberadamente derrubou a aeronave). Com a finalidade de impedir que terroristas invadam as cabines de pilotagem, foi determinada a colocação de portas blindadas para proteger a entrada e que ficasse assegurado que a porta somente pudesse ser aberta pelo lado de dentro (o comando de abertura fica na cabine).Vi que, rapidamente, muitas companhias aéreas já determinaram que ninguém fique sozinho na cabine. Haverá sempre dois. Se o piloto sai para ir ao banheiro, entra uma aeromoça ou um comissário de bordo. Pergunto: será que adianta? Se o copiloto estiver determinado a derrubar o avião e matar 150 pessoas, será que ele irá poupar o comissário?Muitas das regras de segurança não resistem a um plano elaborado por um simples terrorista iniciante. E ficam na aparência, tentando transmitir alguma tranquilidade aos usuários. Há muita discussão e insatisfação nesse tema. A questão dos líquidos, por exemplo. Muitos consumidores reclamam que não podem entrar no espaço interno de embarque carregando suas garrafas plásticas com água. Mas, lá dentro, podem comprá-las. E também não podem levar frasco contendo mais de 100 ml. Porém, podem portar mais de um. E, juntando algumas pessoas com alguns frascos abaixo de 100 ml é possível obter alguns litros etc. E será que é difícil que alguma pessoa má intencionada se infiltre entre os fornecedores de comida e bebidas dentro do local de embarque e entregue ao passageiro uma garrafa com líquido perigoso? Outra reclamação: não podem levar produtos pontiagudos, como uma tesourinha de cortar unhas, mas no jantar da área executiva são entregues garfos e facas. Há algum controle, mas a verdade é que até um inocente skate pode virar uma arma ou, então, um mais inocente ainda cinto de segurar as calças pode ser usado de forma fatal para a vida de alguém...Não vou referir aspectos explícitos de insegurança pública, especialmente porque no Brasil é simplesmente impossível andar nas ruas com tranquilidade. Fico apenas nesse da iniciativa privada, que envolve também muitos setores e que varia de país para país. Há perigos na guarda de bens nos hotéis, nos museus, nos restaurantes (evidente por aqui, onde, por exemplo, em restaurantes do tipo self-service, as pessoas são obrigadas a colocar comida no prato carregando a bolsa no ombro para evitar de serem furtadas!), nos transportes urbanos em geral, enfim, uma idade de incertezas e intranquilidade. E, infelizmente, do ponto de vista da segurança dos produtos e serviços (e também da qualidade e da eficiência) é impossível que qualquer empresa ou órgão público consiga atingir o topo da certeza da inevitabilidade do dano decorrente de algum vício ou defeito. Por mais que se esforcem, por mais que desenvolvam controles de qualidade e segurança, alguma coisa sempre escapa por ser da própria natureza do produto ou serviço (uma falha mecânica, um desgaste inesperado etc.) ou por envolver a natureza humana (pessoas que cometem seus erros ou suas loucuras...). Não há, pois, produto ou serviço sem vício ou defeito! Ou, como diz meu amigo Outrem Ego: "Até foguete da Nasa apresenta falhas... Para azar dos astronautas". Então, para concluir, percebe-se que, nesta nossa era da incerteza, oferecer segurança real para o consumidor é muito difícil. Esse é um dos desafios dos tempos atuais.
quinta-feira, 26 de março de 2015

Nem sempre o futuro é imprevisível e incerto

O herói grego é trágico porque pretende lutar contra as forças do destino e como, por mais que faça, não consegue vencê-lo, ao final dá-se a tragédia...Será possível vencer o destino? Nós costumamos descrever e aceitar certos acontecimentos como uma fatalidade, como algo inevitável, que havia mesmo de ocorrer, fizesse o que se fizesse. Não se faz greve ou passeatas contra as tempestades e catástrofes climáticas (embora se façam danças para que chova...). Não há movimentos sindicais contra tufões, furacões ou erupções vulcânicas. A natureza simplesmente se impõe. E o ser humano se protege como pode. Já contei aqui. Gabriel Garcia Marques, com a maestria de sempre, escreveu "Crônica de uma morte anunciada" mostrando essa faceta da inevitabilidade. O assassinato de Santiago Nasar pelos irmãos Vicario - para vingar a honra da irmã Angela - é conhecido de antemão pelos habitantes do local, mas ninguém faz nada para evitá-lo. O crime ocorre como uma fatalidade, mas das coisas humanas.Em relação à fatalidade dos eventos naturais, nós, aqui por nossas terras tupiniquins, o que fazemos? Será que todas as tragédias que advém das condições climáticas são inevitáveis? Vou melhorar as perguntas: o que fazem as autoridades constituídas em relação ao conhecido problema? Elas exercem seu mister a partir de decisões que envolvam prioridades? Escolhem as obras que devem fazer nas cidades pensando na proteção da população e de seus bens? Antes de prosseguir, devo lembrar que não estou me referindo a erupções vulcânicas imprevisíveis nem terremotos que só podem ser detectados minutos antes; estou falando de chuvas facilmente aguardadas no ciclo anual e de inundações recorrentes que poderiam ser evitadas se as obras públicas fossem efetuadas a contento. Apenas isso. Obras públicas e, claro, prioridades. Quem assistiu aos noticiários dos últimos dias ou leu as matérias publicadas sobre a cidade de São Paulo, viu e leu relatos de moradores dizendo que tudo se repete, ano após ano; solução existe, tanto que as promessas de obras são feitas, mas nunca executadas; até as instalações do São Paulo Futebol Clube no Morumbi sofrem todos os anos, sem que as promessas apresentadas sejam cumpridas etc. etc. (até o etc. se repete...).Como diz meu amigo Outrem Ego: "Assistindo aos estragos causados pelas chuvas dos últimos dias, com inundações, quedas de árvores, paredes, casas, perdas de bens e de vidas, fica claro que a prioridade não é a segurança das pessoas". Realmente. Há uma enorme diferença entre discurso e realidade, entre preferências e prioridades; não dá mais para ficar culpando São Pedro pelos estragos. Sabe, caro leitor, se eu quisesse, poderia deixar pronto um artigo escrito para usar todo início de ano cuidando das enchentes, dos desmoronamentos, dos mortos e feridos e do abandono anterior e posterior das ruas, cidades e pessoas, enfim do descaso das autoridades para com a população. Repetir sempre a mesma ladainha é - com o perdão da expressão - chover no molhado. Mas, que alternativa tenho eu? Isto é, que alternativa temos todos nós que, de alguma maneira, nos preocupamos com o direito das pessoas? Sou obrigado a vir nesta coluna mais uma vez falar dessa tragédia anunciada que, infelizmente, não apresenta nenhuma perspectiva de deixar de acontecer novamente nos próximos anos.Um outro dado bastante assustador, chama a atenção: aos poucos e até bem rapidamente, as desgraças desse tipo deixam o noticiário. O tempo melhora e as pessoas prejudicadas são esquecidas (voltarão, claro, no próximo ano...). As mortes desaparecem e quando muito ganham uma notinha de rodapé aqui e acolá. Às vítimas e seus parentes vai sobrando um certo abandono jornalístico, largados à sua própria condição solitária de dor; posteriormente, talvez recebam uma nota ou outra sobre o resultado de investigações e a respeito do andamento das ações judiciais de indenização. É que a vida continua, como dizem. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um apanhado dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado. Segue, assim, abaixo, um resumo dos direitos envolvidos, que já publiquei nesta coluna mais de uma vez.A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes, desmoronamentos, quedas de árvores etc. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização. Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir como, por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e também pela vítima. Pensão e outros danos materiais As vítimas sobreviventes podem pleitear pensão pelo período em que, convalescentes, tenham ficado impossibilitadas de trabalhar. Do mesmo modo, os familiares que sejam, eventualmente, dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Além da pensão, no cômputo dos danos materiais, inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como medicamentos, honorários médicos, serviços de transporte etc. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estada e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Danos morais Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que, no caso, dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo.De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às vítimas e seus familiares, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto.Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido ou o causado pelos danos físicos e psicológicos nas vítimas sobreviventes. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé ou com grave culpa, com intenção de causar o dano ou quando regularmente repete os mesmos erros etc. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor.
quinta-feira, 19 de março de 2015

Alvíssaras! Ou nem tanto?

Caro leitor, nesta coluna escrevo sobre capitalismo e consumo. Mas hoje não posso deixar de fazer um comentário sobre o assunto mais importante dos últimos dias: democracia, liberdade de expressão e política, que, de todo modo, estão ligadas ao nosso regime capitalista. Conforme já escrevi por aqui, nos dias que envolveram os movimentos populares de junho de 2013, em meio às manifestações de rua que reivindicavam um país melhor, a palavra "alvissareiro" podia ser vista pipocando aqui e ali. O termo "alvissareiro" tem origem na junção da palavra "alvíssara" com o sufixo '-eiro". Como adjetivo, refere-se à qualidade ou condição do que é promissor, do que promete ou dá esperanças, boas notícias, etc. Enfim, é algo que promete um futuro melhor. Enche-nos de esperança. Bem. No último fim de semana, a palavra me surgiu à mente de novo, por motivos óbvios. Com o tamanho das manifestações por todo o país, parece ser impossível ignorar o "grito das ruas". Alvíssaras! Meu amigo Outrem Ego, sempre otimista, mas, como ele diz, também realista, disse-me que não gostaria de ser estraga prazeres, mas que havia lembrado de nosso querido e famoso jurista Ruy Barbosa. Mais precisamente, do discurso por ele proferido no Senado Federal em 1914. Localizemos um pouco: naquele ano, realizou-se uma eleição presidencial direta. Votavam os homens com mais de 21 anos de idade e desde que não fossem analfabetos, religiosos ou militares. Estávamos, então, em plena República Velha, que durou de 1889 até 1930 e vivia-se a política do café com leite. Esta, que era imposta pelas oligarquias paulista e mineira, e que conseguiu eleger presidentes civis influenciados pelo setor agrário dos Estados de São Paulo, com sua grande produção de café e Minas Gerais, grande produtor de leite. Tornavam-se predominantes no poder representantes do Partido Republicano Paulista (PRP), e do Partido Republicano Mineiro (PRM), que controlavam as eleições e gozavam do apoio da elite agrária de outros Estados do Brasil. Eles articularam alianças para fazer prevalecer seus interesses e se revezarem na presidência da República. Para a eleição presidencial de 1914, todos os maiores partidos do país (PRP, PRM, PRR - Partido Republicano Rio-Grandense e PRF - Partido Republicano Fluminense) apoiaram um único candidato, o da chapa Venceslau Brás-Urbano Santos. Ruy, que lançara sua candidatura pelo Partido Republicano Liberal (PRL) na chapa junto de Alfredo Ellis, não a registrou oficialmente e, vendo que não teria chance, renunciou à candidatura em dezembro de 1913, quando fez o chamado "Manifesto à Nação" (Mesmo assim, sem estar registrado, obteve 47.782 votos - 8,22% dos votos). Isso tudo parece muito antigo e ligado a um panorama ultrapassado, afinal remonta ao início do século XX. Mas, deixemos que o Senador Ruy Barbosa diga o que pensava, no pronunciamento que fez no Senado Federal em 19141: "A falta de Justiça, srs. senadores, é o grande mal da nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre nação". "A injustiça, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas"."De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto". * * * Uma vez lembrei aqui nesta coluna que dizem que o Brasil é o país do futuro. Os pessimistas analisam a frase dizendo que acreditar nela é manter o país estagnado, pois como o futuro não existe, fica-se apenas esperando ele chegar sem nada fazer. Os otimistas, de outro lado, dizem que ela impulsiona a imaginação, ajudando o país a ir para a frente em busca de algo melhor. Os sinais apontam às vezes numa direção, às vezes n'outra. Neste momento, vivemos tempos alvissareiros (ou não?). O futuro dirá! __________ 1Colhido de "Discursos Parlamentares - Obras Completas - Vol. XLI - 1914 - TOMO III".
quinta-feira, 12 de março de 2015

O impeachment como produto de consumo

Como disse mais de uma vez nesta coluna, o capitalismo é uma ideologia "neutra" no sentido de que não se incomoda com nenhum modo de pensamento, desde que sua instrumentalização e/ou utilização possa gerar lucro. Os modelos de produção e oferta capitalistas estão nas igrejas, nas escolas, nos esportes "amadores", etc. Na política, faz tempo que aportou. Os candidatos foram transformados em produtos muito bem desenhados por seus marqueteiros; eles são apresentados numa embalagem vendável e que o cidadão-consumidor pode comprar pagando com seu voto nas urnas; a publicidade nas campanhas muitas vezes é enganosa (e até abusiva), embora não se possa enquadrá-la nas regras do Código de Defesa do Consumidor; as campanhas geram produtos massificados de todos os tipos: camisetas, chaveiros, santinhos, brindes, comícios, etc. E agora, o modelo capitalista chegou às manifestações de rua e aos pedidos de impeachment. Não sei se é uma boa notícia ou não, mas o fato é que chegou. Na época em que as manifestações de rua pediram a saída do presidente Collor (1992), a produção capitalista em relação ao tema, apesar de existente, não estava exatamente no mercado. Os produtos e movimentos foram bancados por entidades tradicionais como a OAB, a CUT, a UNE, etc. Eram elas que encomendavam camisetas, faixas, etc. O mesmo se deu num movimento similar do "Fora FHC" (de 1998). (Por falar em FHC, veja-se o poder do mercado e das redes sociais típicas: há alguns dias o ex-presidente Fernando Henrique brincou nas redes com um meme de si mesmo, na qual aparecia sorrindo, segurando uma nota de R$2,00 e um cartaz escrito "Foi FHC"1). Como eu disse, o impeachment virou produto de consumo. Em lojas virtuais e físicas é possível comprar uma série de produtos de linha intitulada "anti-Dilma" ou "Anti-PT". A loja virtual "Prol Art"2, por exemplo, oferece camisetas, bonés, chapéus, moletons e canecas. E deixa claro que os produtos são de qualidade para resistir, digamos, aos esforços de usá-los numa passeata: "Camisetas 100% algodão evita o mau cheiro causado pelo suor devido a composição em outros tipos de tecidos, nossa malha é penteada e o fio de sua trama é o 30.1 é o melhor tipo de tecido existente hoje no ramo têxtil no Brasil"3. Uma camiseta custa R$50,00 e é oferecida em várias cores e tamanhos. Mas, há produtos mais sofisticados. A grife Sergio K., com lojas em shoppings da capital de São Paulo e também em Campinas, Brasília e Belo Horizonte vende uma camiseta com a frase "Eu não tenho culpa. Votei no Aécio", que custa R$100,004. Alguém poderia perguntar: é isso mesmo? O capitalismo está dando sua força? Mas, teríamos de reperguntar: força para quem? Na realidade, penso que, o modelo capitalista está colocado à disposição de qualquer pessoa que dele queira se utilizar. Tanto faz o que a pessoa pense ou qual sua posição ideológica, nem se é a favor ou contra o governo de plantão ou passado. O que importa é produzir, oferecer, vender e faturar. Se os políticos caem, sobem, mudam, renunciam, etc. não é relevante, desde que, claro, o regime econômico (capitalista) permaneça. Meu caro, leitor, a realidade anda bastante confusa, com tudo o que está acontecendo no Brasil, com as denúncias de corrupção, a crise política, a estagnação da economia, a violência urbana endêmica, etc. e, ao que parece, a população encontra-se aturdida. Alguns pedem a volta da ditadura. Ainda não vi escrito em camisetas. Será que há no mercado? Para responder a pergunta, fiz uma busca na internet e o mais próximo que encontrei, foram camisetas do pessoal da "direita", como se intitulam5. E que, apesar de dizerem que não conhecem a ditadura militar brasileira, vendem camisetas com a seguinte estampa: "Vivemos uma ditadura de esquerda". Os proprietários dizem que não sabem nada da ditadura brasileira: "Não tenho muito conhecimento, na verdade, de ditadura militar. Talvez tenha que perguntar para alguém que estudou história"6. Mas, confessam que o que importa mesmo é faturar: "Antes de tudo, a gente quer é vender. Vai ter racista usando a nossa camiseta, homofóbicos e defensores da ditadura militar. Não quer dizer que acreditamos nisso. A palavra que nos norteia é a liberdade. Mas não podemos controlar quem compra os nossos produtos"7. Mas, então, com as manifestações pelas redes sociais, muita coisa vira moda. Será que pedir a ditadura é uma nova moda? Por que algumas pessoas pedem a volta da ditadura? Meu amigo Outrem Ego arriscou uma resposta, que eu gostaria de partilhar: "Alguns brasileiros pedem a ditadura", disse ele, "por que não sabem bem o que fazer. Estão desacorçoados com tanta corrupção e bandalheira, com tanta miséria, a violência, os problemas urbanos, a falta de saúde, etc. Ora, quanto não se poderia fazer de bom, se não houvesse desvios dos recursos públicos. Não sabemos como agir. Nem temos tradição em nos organizar. Resta-nos as eleições, mas nesta dá tudo no mesmo: a democracia brasileira está engessada; as eleições são obrigatórias; os candidatos são definidos pelos partidos que, por sua vez, são financiados pelos caixas dois, etc., num círculo vicioso sem fim. Daí, sem esperança, alguns pedem ditadura e outros suplicam para que surja um salvador da pátria que faça por eles o que eles não sabem fazer". Bem. Depois de ouvi-lo e, claro, rechaçar a ideia de ditadura, fui obrigado a lembra-lo que nosso último salvador da pátria foi retirado do poder num processo de impeachment em 1992! __________ 1Ver, por exemplo.   2Prolart.   3Idem anterior.   4Dados colhidos no jornal Estadão. 5Ver Carta Capital. 6Idem anterior. 7Idem.
Começo com um caso narrado, recentemente, por meu amigo Outrem Ego, que envolve relações de consumo de forma indireta (na questão da administração da segurança pública). Ele contou o seguinte: "Estava eu dirigindo meu automóvel ao lado de uma pista exclusiva e vermelha para bicicletas. Na rua pela qual eu seguia, mais à frente, a pista vermelha dava uma volta numa praça e somente ia encontrar novamente a rua onde eu estava, uns 200 metros adiante. Eu trafegava devagar junto dos demais e a meu lado ia um ciclista na pista. Quando chegamos à praça, ao invés dele seguir por sua pista exclusiva, ele simplesmente seguiu em frente pela avenida atrapalhando o trânsito e colocando em risco sua própria travessia. Eu não aguentei, abri a janela e disse: 'Ei, sua pista é lá' e apontei para a pista exclusiva. Mas ele, de forma muito cínica, olhou para mim, me mandou um beijinho com a mão, e disse: 'Quem é você?'. Nem preciso dizer que fiquei muito bravo". Eu já contei aqui, nesta coluna, que esse mesmo amigo meu, certa vez interrompeu uma fila para reclamar da atitude de funcionários de uma loja que lhe impediam de pagar suas compras. E que, com a discussão, ele bloqueara a entrada dos caixas. Atrás dele formara-se uma extensa fila e as pessoas que estavam lá esperando começaram a protestar. Lembram? Os demais começaram a protestar contra ele! Começaram a reclamar e alguns até o xingaram. Outrem Ego ainda tentou retrucar dizendo, um pouco abalado: "Eu estou lutando pelo direito de vocês!". Mas não adiantou. Estava todo mundo contra ele, que, desanimado, jogou a toalha. A essa altura, sua esposa havia entrado na loja e entregou para ele dinheiro suficiente para pagar as compras. Ele, bastante contrariado, pagou e foi embora. Agora, caro leitor, quero lembrar outro caso envolvendo ruas e trânsito que, aliás, nem preciso ilustrar com algum fato específico, pois todo mundo conhece: as faixas de trânsito. O desrespeito para elas está dos dois lados: automóveis que não param para pedestres e pedestres que insistem em atravessar fora da faixa (ainda que ela esteja próxima). E, para terminar os exemplos, lembro que, nos últimos dias, surgiu uma polêmica a respeito do direito da companhia que distribui água no Estado de São Paulo poder ou não impor multa àqueles consumidores que tivessem aumentado seu consumo no período de fevereiro de 2013 a janeiro de 2014, por causa da crise de falta d'água. Bem, independentemente do aspecto formal e legal da aplicação da multa, e também de quem seria a culpa pela escassez da água, o que chamava a atenção era o fato de que, num momento desses, ainda existem pessoas que, ao invés de pouparem, haviam aumentado o consumo, algumas delas esbanjando o produto essencial para lavar calçadas! (Não estou, obviamente, me referindo àquelas pessoas que tiveram aumento de consumo justificáveis nem àquelas que tiveram registrado aumento de consumo por passagem de ar pelos canos e pelo hidrômetro ao invés de água. Reconheço, também, que nesse caso da água, muitas pessoas têm feito uma economia elogiável). Pergunto: como explicar esses comportamentos? Há, naturalmente, vários caminhos. Podemos, por exemplo, abordar um aspecto estritamente jurídico: parece que algumas pessoas esquecem ou não sabem que nesta nossa era dos direitos existem, ao menos, duas mãos de direção: uma da garantia dos direitos e outra da correspondente obrigação. Especifico melhor para não parecer que estou me referindo apenas à estrutura que leva em conta o sujeito ativo e o sujeito passivo de um direito subjetivo: refiro-me ao fato de que o estabelecimento de uma prerrogativa composta num direito subjetivo, numa dada sociedade, impõe, muitas vezes, ao titular, certas obrigações simultâneas ou determinações específicas para seu legítimo exercício. Isso explicaria porque o ciclista, os pedestres e os motoristas estariam abusando de seu direito não seguindo a regra, mas não seria suficiente para explicar o comportamento das pessoas nos outros dois casos. Poderíamos dizer, claro, que cada um deles sugere uma explicação por um modo diferente. Concordo. Poderíamos. Pensemos, pois, em mais um: seria possível explicar o comportamento pela via da consciência, ou melhor, da falta de consciência do indivíduo em relação a seu papel na sociedade. Esse caminho nos leva a outro, que gostaria de lançar como hipótese para nossa reflexão: a de que esses comportamentos, e tantos outros, têm como base um problema de educação. Quero dizer, de falta de educação em geral e de falta de educação para o exercício da cidadania em particular. E, dentro do quadro daquilo que podemos apontar ser característica de uma pessoa educada, quero focar um aspecto: o da solidariedade, esse sentimento que nos leva a tomar consciência de nossa condição social; de que não somos uma ilha; de que pertencemos a uma sociedade de seres humanos iguais e diferentes ao mesmo tempo e que se relacionam sem cessar. A pessoa educada sabe que tem direitos, mas também sabe que seu direito termina onde começa o do outro. Sabe que não pode apenas exigir, sem contribuir em troca, como se tudo pertencesse apenas a ela mesma (e a seu grupo mais próximo de familiares e amigos). Ela, por ser educada, conhece exatamente o limite de seus direitos individuais e tem ciência da responsabilidade social que o exercício desses direitos acarreta. Na verdade, esse sentimento de solidariedade é o oposto de um outro, o do egoísmo. Sei que alguns classificam o egoísmo como algo instintivo, pertencente à natureza humana. Sem querer entrar nesse detalhe específico, que aqui não interessa, reconheço que na luta pela sobrevivência é mesmo possível identificar esse elemento do egoísmo como inerente ao ser humano em seu desenvolvimento pessoal e histórico. Mas, é exatamente aí que entra a educação. Por intermédio dela, a pessoa humana pode ir incorporando os valores mais elevados, dentre os quais o da solidariedade e, aos poucos, ir deixando de ser egoísta. (Anoto que estou tratando a educação em seu sentido lato; logo, refiro-me a todos os aspectos que podem ser chamados de educação formal ou não: vindos do grupo familiar, dos amigos, da religião, da escola, etc.). Nesta nossa sociedade na qual assistimos diuturnamente a demonstrações de selvageria e abusos de todo tipo, talvez esteja na hora de cultivarmos melhor nossa humanidade; é preciso, cada vez mais, que todos nós tomemos consciência de que nossa atitude no dia a dia, por mais individual que pareça, sempre afeta de um modo ou de outro toda a sociedade: diretamente aos que estão ao redor e indiretamente os que serão atingidos mais cedo ou mais tarde pela ação. E, para terminar, caro leitor, como estou me referindo à solidariedade, indico este vídeo, produzido por uma seguradora tailandesa. Vale a pena assistir até o fim. Tem apenas três minutos.
O século XXI exige uma mudança de paradigma das relações sociais em geral, na direção da solidariedade, da busca da igualdade, da concretização da Justiça etc. E, no que respeita às relações jurídicas de consumo, um dos lemas da atualidade é o da harmonização, esta que foi expressamente prevista no Código de Defesa do Consumidor como princípio (conf. caput e inciso III do art. 4º). A ideia de harmonização envolve alguns parâmetros (aos quais retornarei nesta coluna). Por ora, trato de um deles, o da boa-fé objetiva, que em outra oportunidade já abordei. O comportamento humano previsto na norma A hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação; os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do "status quo"; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas fórmulas gerais que sempre se repetem como "topói", isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto1. Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário. O modelo da boa-fé objetiva Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional. Mas, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver o problema estudado, ele lança mão de fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução da questão. Dentre as várias alternativas, chamo atenção para certos "standarts", tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "homem comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "Justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom senso", "senso comum", etc. É importante notar que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma inconsciente - intuitiva - um foro de legitimidade, eis que produzidos na realidade como um fato inexorável. E a boa-fé objetiva é um "topos" fundamental que, como disse, no Brasil, acabou por ser erigida a princípio no Código de Defesa do Consumidor. Anoto que, quando se fala em boa-fé objetiva tem-se que afastar o conteúdo da conhecida boa-fé subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Lembro os exemplos encontrados no direito civil pátrio, tais como o do art. 1.561, que cuida dos efeitos do casamento putativo, dos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, do art. 879, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido, etc. Sendo assim, a boa-fé subjetiva admite sua oposta: a má-fé subjetiva. Vale dizer, é possível verificar-se determinadas situações em que a pessoa age de modo subjetivamente mal intencionada, exatamente visando iludir a outra parte que, com ela, se relaciona. Fala-se, assim, em má-fé no sentido subjetivo ou o dolo de violar o direito da outra pessoa envolvida. Mas com a boa-fé objetiva é diferente: ela independe de constatação ou apuração do aspecto subjetivo (ignorância ou intenção), vez que erigida à verdadeira fórmula de conduta é capaz de, por si só, apontar o caminho para solução da pendência. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva dos contratantes. Em decorrência disso, pode-se, grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes envolvidas a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado na transação, realizando o interesse das partes. Em matéria de relações de consumo, o CDC estabeleceu expressamente a harmonia como um princípio (no caput do art. 4º e no seu inciso III). A pretendida harmonia das relações de consumo nasce dos princípios constitucionais da isonomia, da solidariedade e dos princípios gerais da atividade econômica e no contexto do CDC ela é amparada pelos princípios da boa-fé e equilíbrio (mesmo inciso III do art. 4º)2. Então, a lei pretende que haja entre fornecedor e consumidor um tipo de relação que seja justa na contrapartida existente entre ambos. Lembro que, a boa-fé objetiva é parâmetro também para o comportamento do consumidor, que deve agir sob a égide do mesmo modelo. E, tenho de admitir que, neste século XXI, muitas empresas têm se esforçado para manter o equilíbrio, buscando a harmonização, respeitando seus clientes e agindo na direção da boa-fé. Naturalmente, essa mudança de postura reflete a maior consciência do consumidor a respeito de seus direitos e também a ampliação do leque de oportunidades para reclamações que surgiram pelas redes sociais e sites de internet, além da força da concorrência (quando ela existe). Isso é verdade. Mas, há mais: aos poucos, começa a surgir uma consciência empresarial que percebe que vale a pena respeitar a lei; que isso é a favor, não contra. E que buscar a harmonização é fundamental para os negócios. A boa-fé objetiva é, pois, um paradigma de conduta fundamental para o atingimento da harmonização das relações de consumo. Por isso, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o Magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso (por qualquer das partes), deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado como adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standard, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas. __________ 1Ver a respeito da Tópica, Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, Brasília, UNB, 1980, "passim".   2E o Código Civil incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta aos contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 422 [ii] e no art. 113, que cuida da interpretação dos negócios jurídicos [ii]. Além disso, é importante apontar que a boa-fé objetiva é também fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e deve ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. Este equilíbrio - tipicamente caracterizado com um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto -, é verdade, não se apresenta como uma espécie de tipo ideal ou posição abstrata, mas, ao contrário, deve ser concretamente verificável em cada relação jurídica.
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O Estado brasileiro capitalista, mas até certo ponto

Retorno ao tema do modelo de administração do Estado, apenas para levantar alguns pontos que envolvem a prestação de serviços públicos nesta nossa sociedade dominada pelos modernos modelos de intervenção capitalista e buscar uma reflexão sobre os resultados obtidos. Como eu já disse uma vez, eu sou de um tempo em que a tecnologia ainda engatinhava e lembro muito bem que, quando assistia na tevê ao filme Jornada nas Estrelas ficava vidrado no aparelho tipo celular que os personagens da nave espacial U.S.S. Enterprise utilizavam para se comunicar. Era mesmo a antecipação pela ficção daquilo que se tornaria realidade. Star Trek, o nome original, é da década de 60 (estreou em 1966 nos EUA e em meados de setenta no Brasil). Quando a Motorola lançou, em 1996, um aparelho celular que se abria tal como o do Capitão Kirk, batizou-o com o nome de Star Tac (Eu tive um e milhões de outros consumidores também, em todo o mundo). A tecnologia avançou e em alguns casos até superou a ficção. Ainda não é possível fazer o teletransporte de pessoas (e, penso, nunca será), mas o mercado de consumo atual coloca à mão do consumidor muita coisa que ele sequer sonhava na segunda metade do século XX. É de conhecimento geral que o modelo de produção capitalista do século passado, com ênfase no pós-segunda guerra mundial, engendrou o maior desenvolvimento tecnológico de todos os tempos. Na segunda metade do século XX, pudemos assistir ao incrível incremento da tecnologia de ponta, do avanço das telecomunicações, da microinformática, do surgimento dos telefones celulares, da internet, enfim, a sociedade capitalista começava a alcançar a ficção científica. Aliás, prometia um conforto jamais imaginado (pena que ele não chegará para a maior parte da população mundial). Esse modo de exploração do mercado (leia-se da sociedade e do planeta) foi aos poucos tomando conta de todos os setores existentes. E, com sua grande mão invisível e também visível, absorveu praticamente todo o corpo social, acabando por imiscuir-se em setores antes imunes. Nada escapou. Lembro, a título de exemplo, o caso dos esportes ditos amadores: a Olimpíada é, atualmente, um enorme negócio. E, naturalmente, do futebol nem preciso referir, porque faz muito tempo que a organização, local ou internacional, tem como meta o faturamento. Aliás, a FIFA hoje funciona como uma grande empresa franqueadora e licenciadora de produtos e serviços. As próprias igrejas adotaram o modelo: hoje recebem dízimos mediante cheques pré-datados, cartões de crédito ou débito, têm programas de tevê, fazem marketing, vendem produtos pela internet, etc. O Estado contemporâneo, de sua parte, não poderia ficar imune ao modelo implementado. Ele também passou a ser um agente de produção capitalista - direta e indiretamente - e acabou por adotar os modos de exploração e controle existentes no mercado. Isso, evidentemente, no mundo inteiro. No Brasil, o fenômeno está presente em todas as esferas da Administração Pública, municipal, estadual, Federal, no âmbito das autarquias e empresas públicas, etc. Até aí, tudo bem. Não haveria, a princípio, nenhum problema em que a Administração Pública acompanhasse o desenvolvimento do mercado, melhorando sua prestação de serviços. O problema é que se constata que o Estado brasileiro, em todas as esferas, modernizou-se apenas em parte: na do marketing e na da cobrança. E, com muita eficiência. Aponto um exemplo: um cidadão dirige seu veículo pelas ruas da capital de São Paulo. É um dia útil e passa das 17 horas. Numa esquina, ele é flagrado por um radar, pois seu final de placas não pode trafegar naquele dia e horário por causa do rodízio. Algum tempo depois, ele recebe pelo correio em casa a multa e a foto de seu veículo com o número da placa. No mês seguinte, ele ingressa via internet na sua conta bancária. Acessa "pagamentos" e "licenciamento de veículos". Cadastra o seu colocando o número do Renavan. Clica, aparece o valor do IPVA, da multa em relação ao rodízio, do seguro obrigatório e de taxa do serviço de correio, pois ele receberá o documento do licenciamento em casa. Paga e tudo se resolve quase que num piscar de olhos, rapidamente, com o que há de mais eficiente e prático em matéria de serviços e sem sair de sua casa. Não é incrível? Não é muito eficiente? Realmente, funciona muito bem, sem qualquer entrave ou burocracia. E para quem faz declaração do imposto de renda? Os programas fornecidos pela Receita Federal são maravilhosos. É só baixar, ir preenchendo, que ele vai indicando todos os caminhos que devem ser seguidos. É possível fazer rascunho, corrigir, reformar dados, projetar valores de devoluções e impostos a serem pagos, adotar o modelo simplificado ou o completo num único clique. Feita a declaração e entregue via web, o recibo de entrega é emitido na hora, em segundos e se há imposto a recolher, o Darf pode ser impresso na hora e quitado em seguida, via bankline. E, se existir dívida anterior pendente, o contribuinte é informado no ato, podendo, também, emitir o Darf correspondente e pagar na hora. Enfim, tudo muito bem desenvolvido, com o que há de melhor em tecnologia e eficiência. E há mais, muito mais. Essa modernidade tecnológica interligada "on-line" permite que o cidadão pague uma conta de serviços, peça uma nota fiscal eletrônica e consiga um crédito para abater parte do valor de seu IPTU ou que peça a nota fiscal paulista e além de receber créditos participa de sorteios mensais de prêmios em dinheiro. São adoções pela administração pública dos típicos casos de ofertas feitas pela iniciativa privada, visando obter comportamentos do consumidor e vendas de seus produtos e serviços em troca de bônus, descontos e outros benefícios diretos e indiretos, participação em concursos, etc. Aliás, não é de agora que a Administração Pública se utiliza das técnicas de "marketing" com publicidade massiva para anunciar suas obras (inclusive com publicidade enganosa). Portanto, nem se discute que o Estado moderno copiou e adotou o modelo capitalista de atuação e funcionamento. Como diria George Orwell, esse Estado tipo "grande irmão" é muito bom para vigiar, controlar e cobrar. Em contrapartida, pergunto: onde está a eficiência do modelo capitalista quando se trata de dar à população o que ela precisa? Onde está a tecnologia quando de trata de proteger as pessoas e seu patrimônio? E para prestar serviços públicos de saúde, transporte adequado, segurança, etc.? Parênteses para anotar uma curiosidade e uma coincidência: enquanto pensava neste artigo, ouvi, no dia 9 de fevereiro, numa estação de rádio, após a leitura de um boletim informando vários problemas no tráfego paulistano, a reclamação de um jornalista contra a CET. Ele disse que acabara de entrar no twitter daquela Companhia de Trânsito e vira que a última informação havia sido lá postada três horas antes e era a seguinte: "Pedestre, atravesse na faixa". O jornalista ficou muito bravo com a ineficiência do serviço, que, aliás, funciona muito bem quando se trata de multar. Bem. Se o modelo é capitalista, nós podemos fazer uma ilação relacionada ao Direito do Consumidor no que respeita aos serviços e produtos oferecidos pelo Estado (Minha abordagem é, digamos assim, mais filosófica que jurídica. Não levo em consideração o fato de que alguns serviços e produtos oferecidos pelo Estado diretamente ou por intermédio de concessão ou autorização, pagos mediante taxas e preços, são típicos de consumo e regulados pelo Código de Defesa do Consumidor, enquanto outros, custeados via impostos, não são). Pensemos. O consumidor tem o dever de pagar o preço para adquirir um produto ou receber um serviço. Para a relação tornar-se válida, o produto deve atingir ao fim ao qual se destina funcionando adequadamente e o serviço idem, com eficiência e qualidade. Se o produto não funciona ou o serviço não é adequado, pode o consumidor reaver o preço pago. É esse o ponto. Se o Estado não presta o serviço adequadamente nem entrega um produto que funcione, pode o cidadão requerer o que pagou de volta? Sabe-se que no setor privado, a pressão do consumidor por qualidade e eficiência, fez as empresas melhorarem seus produtos e serviços. Mas, como fazer isso no setor público? E pior: na esfera privada a competição favorece o consumidor. Como resolver a equação, quando se trata de monopólio? A relação entre cidadãos e Estado nesses aspectos é, pois, muito injusta. De um lado, eficiência e modernidade para cobrar e, de outro, ineficiência e falta de qualidade na entrega dos produtos e dos serviços. Um caminho para que essa relação melhorasse, talvez fosse a tomada de consciência em relação a esse imbróglio, visando escapar do assédio do marketing estatal (marketing que na iniciativa privada também é muito eficaz). Às vezes, o problema está na nossa cara e nós não vemos. Infelizmente, a experiência mostra que as pessoas acabam se acostumando até com as coisas ruins. Meu amigo Outrem Ego contou que um dia, há muito tempo, quando sua filha era pequena, brincando com ela um jogo de adivinhação, sorteou uma carta e a pergunta era: "Aponte um lugar grande e repleto de buracos". Ele escreveu na sua ficha: "A lua". A filha escreveu no dela: " cidade de São Paulo".
Eu costumava dizer para meus alunos de graduação na faculdade que eles eram consumidores estranhos. Se o professor faltava, eles comemoravam ao invés de reclamarem. Eles pagavam por um serviço que não estavam recebendo e ainda assim não se incomodavam. Pensando nisso, resolvi escrever um artigo sobre esses vícios não muito aparentes nem tão ocultos que existem na prestação do serviço escolar. Focarei meu artigo no ensino básico (infantil, fundamental e médio). Como se sabe, o ensino escolar é típico produto de consumo, isto é, trata-se de prestação de serviços regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Levanto, pois, algumas questões para nossa reflexão, ligadas às escolas particulares e a respeito dos eventuais vícios ou defeitos existentes, mas nem sempre percebidos. Muito bem. Se perguntarmos para os pais por que eles colocam seus filhos em escolas particulares (a maior parte delas bastante caras) a resposta natural estará ligada à qualidade do ensino. "A escola pública não é boa", dirão. Muitos pais, inclusive, sacrificam-se para conseguir pagar as mensalidades. Na verdade, com o incremento cada vez maior do capitalismo de produtos e serviços essenciais que foram saindo das mãos do Estado e passando para a iniciativa privada, e com a queda da qualidade de ensino nas escolas públicas (agora refiro especialmente o Brasil, embora o mesmo fenômeno possa ser verificado em outros lugares), ao que assistimos nos últimos trinta, quarenta anos foi a transferência de vagas da escola pública para a privada e o incremento das escolas privadas, muitas delas, atualmente, empresas enormes e altamente lucrativas. Muitas delas adotaram o regime integral, oferecendo refeições e vários cursos extras como atividades para preencherem o espaço de tempo dos alunos, o que se coaduna com a falta de tempo dos pais, que trabalham o dia inteiro, de modo que se acabou fazendo um encaixe de interesses: os pais trabalham enquanto os filhos estudam, fazem esportes ou atividades artísticas, lúdicas etc., liberando os pais dessas preocupações. Coloco, então, uma questão básica em relação à lei: o que a escola particular oferece? Qual é sua oferta? Não responderei pensando na questão do marketing (muito bem desenhado por muitas delas). Respondo com o aspecto lógico: a escola presta serviços essenciais de educação. Os pais, quando colocam seu filho na escola particular, esperam que seu filho aprenda. Não é isso? Espera-se que sim. É obrigação da escola fazer com que o estudante aprenda. É para isso que ela existe e, como recebem boas remunerações para tanto, essa é sua contraprestação jurídica principal. Mais eis que, com o passar do tempo, algumas situações esquisitas em termos de cumprimento da oferta têm ocorrido. Por exemplo, em muitas escolas quando o aluno é matriculado ou no início do ano letivo, a secretaria fornece o nome e telefone de professores que dão aulas particulares. Isso! A escola, desde logo, está dizendo: "Eu ensino, mas não tanto assim. Por isso, segue uma relação para que seu filho receba um reforço no aprendizado". Rosely Sayão conta que existem professores particulares 24 horas!: "A qualquer hora e a qualquer dia, há pais que levam seus filhos para ter aulas. Os filhos chegam devidamente munidos com material escolar e ainda levam de brinde a cara feia e a briga com os pais, que ficam dentro do carro. Nem o domingo é respeitado"1. Na realidade, o mercado de aulas particulares cresceu tanto nos últimos anos que, atualmente, há dezenas de professores que vivem exclusivamente dessa atividade e, muitas vezes, os pais têm dificuldade de encontrar horários para encaixar seus filhos. Caro leitor, quer mais? São várias as franquias para aulas particulares, eufemisticamente intituladas de "aulas de reforço". Em 2013, uma rede de reforço escolar foi a vencedora na categoria microfranquias, do prêmio "As melhores franquias do Brasil", organizado pela Revista "Pequenas Empresas e Grandes Negócios", da Editora Globo. A rede utiliza atendimento personalizado para ajudar alunos com dificuldade de aprendizagem e já somava, naquele ano, em todo país, 70 unidades em operação e mais 20 em processo de implantação"2. Os pais pagam, então, uma mensalidade escolar caríssima e outra (às vezes, do mesmo valor) para que seu filho tenha de estudar em casa ou na sede de franquias com professores particulares. Pergunto para nossa reflexão: não deveria bastar estar na escola? Esta cobra tão caro para o quê mesmo? Não é caso de vício do serviço? Ou até defeito, tendo em vista a extensão dos danos? Vejamos, agora, outro aspecto: o da lição de casa. Nas escolas que oferecem serviços de ensino de tempo integral, se o aluno permanece nas instalações da escola o dia inteiro, tem sentido que ele chegue em casa e ainda tenha que fazer lição de casa? (Que o professor Gabriel Perissé chama de lixão de casa3) Ou passe os feriados e fins de semana fazendo lição? Será que a infância e adolescência não tem mais espaço para a convivência com os pais, amigos e demais familiares? Em atividades de lazer e mesmo culturais, mas fora do âmbito do conteúdo das disciplinas escolares? Essa convivência tão importante na formação dos jovens foi abandonada? Então, para que serve passar o dia na escola? Para que as mensalidades sejam mais caras, certamente. Seria mais um caso de vício na prestação do serviço? Façamos um resumo da prestação dos serviços. O fornecedor, uma escola, ou seja, uma empresa, oferece ensino para... ensinar aos alunos certos conteúdos ditados pelos órgãos governamentais e/ou decididos por ela e com métodos também criados e decididos por ela (escola). Para tanto, ela cobra certo valor mensal (a maioria das mensalidades tem preços bastante elevados). Estabelecida a relação jurídica de consumo, pelo contrato escolar, cabe aos pais pagar as mensalidades e ao prestador do serviço cumprir sua parte: ensinar os filhos matriculados! Pausa: antes que alguém, apressadamente, use um sofisma contra o que eu estou trazendo para reflexão, quero consignar que, evidentemente, não estou me referindo a alunos que tenham algum tipo de dificuldade própria de aprendizado. Faço uma abordagem relativamente ao número enorme dos alunos que não apresentam nenhum tipo de problema para estudar e incorporar conhecimento. Algumas vezes, a situação beira ao absurdo quando, por exemplo, grande parte dos alunos de uma determinada sala não consegue aprender. Para mim, como professor, quando numa sala 50% ou mais dos estudantes fica de recuperação, a falha é claramente do professor e da escola e não dos alunos! É esse o ponto: a escola não cumprir com a oferta; com seu dever de ensinar. Há muito mais problemas, é verdade, e que os pais devem conhecer. Há as vendas casadas de material escolar, livros, uniformes; as caras "viagens de estudos" a que os pais veem-se obrigados a aderir; o problema da alimentação nem sempre bem feita e as porcarias vendidas nas cantinas etc.. (Voltarei ao assunto). Hoje, como disse, trago elementos para nossa reflexão nos pontos abordados. Assim, para terminar, narro um caso ocorrido com meu amigo Outrem Ego e seu filho. Ele contou-me que, no ano passado, teve uma rusga com um professor da escola onde seu filho estuda. Trata-se de um colégio particular cuja mensalidade beira os R$3.000,00 mensais. O menino estava, à altura, no 6º ano (ensino fundamental) e até aquele momento nunca havia recebido nenhuma nota abaixo de 7. Aliás, preciso fazer parênteses aqui para dizer que meu amigo acompanha muito de perto os estudos de seus dois filhos. Muito bem. Recebido o boletim, apareceu uma nota 5 de geografia. Mas, O. Ego lembrou que o filho havia ido bem nas provas e, na principal, havia tirado 8. Estranhou, pois, a nota 5 e, na reunião trimestral feita com os pais, aguardou pacientemente na fila que se formara após o término do encontro, para conversar com dito cujo professor. Chegando sua vez disse: "Sou pai deste aluno e vim tentar descobrir por que ele ficou com a nota 5". O professor, então, abriu sua pasta, na qual apareciam as quatro salas dos 6ºs anos com o nome dos alunos. Ficou muito claro que o professor não fazia ideia de quem era o filho de meu amigo. Afinal, eram cerca de 120 alunos no total. O que o professor tinha para conversar com meu amigo, eram anotações a lápis feitas na frente do nome dos alunos de cada sala. Vou especificar: não eram anotações, eram apenas as letras S e N. O professor, então, encontrou o nome do menino, passou o dedo em horizontal sobre os esses e enes e disse: "Ele não entregou dois trabalhos de casa". "O quê?", disse meu amigo, levantando a voz, "Isso não é verdade! Acompanho todas as lições de casa de meu filho e posso lhe assegurar que ele nunca, jamais deixou de fazer alguma lição, de sua disciplina ou de outras matérias!". O professor, de forma bastante desinteressada, apenas disse: "Mas, é o que consta aqui". Outrem Ego, não se conteve e perguntou: "O senhor não conhece meu filho, não é? Nem sabe de quem se trata. Está apenas lendo seu nome nessa folha e verificando anotações muito pobres". "Eu conheço todos", disse, se defendendo o professor. "Ah! Conhece? Qual é a cor dos olhos de meu filho? Não sabe, não é? Nem a cor de seus cabelos? Nem se ele é alto, baixo, gordo ou magro. É muita gente para o senhor poder se lembrar...". O professor nada disse, porque certamente, não poderia saber quem era o filho dele, naquele universo de cento e vinte alunos. E olha que é um menino muito alto, cabelos negros longos sobre as orelhas, fácil de reconhecer e destacar. Será que os pais tem tido tempo de investigar se seus filhos estão recebendo por aquilo que eles estão pagando? O filho de meu amigo, quando este o levava para a escola, apontou para algumas nuvens no céu da manhã e disse: "Olha lá! São cumulonimbus". O. Ego viu as nuvens e ficou com os olhos vagando por elas. Daí, pensou: "Para que serve a uma criança de onze anos saber o nome das nuvens? Se, um dia, ele for ser meteorologista, aprenderá isso em cinco minutos". E torceu para que as nuvens fossem de chuva! __________ 1Folha de S. Paulo.   2Rede de reforço escolar ganha prêmio de microfranquia.   3Gabriel Perissé.
A simples existência da pena de morte em alguns países (inclusive do primeiro mundo, como nos Estados Unidos da América) é a prova de que falta muito para a humanidade se tornar efetivamente civilizada. Em pleno século XXI, a mera discussão a respeito da imposição da pena de morte, pelo menos nos países do ocidente, deveria soar ultrapassada e antiquada. A pena capital de há muito se mostrou incompatível com a dignidade atingida pela razão ético-jurídica universal. Vejo-me obrigado a abordar esse assunto em função da execução do brasileiro Marco Archer Cardoso Moreira, de 53 anos, morto por um pelotão de fuzilamento na Indonésia neste último sábado, dia 17 e dos comentários de muitas pessoas, que se manifestaram via redes sociais ou por inserções nos rodapés dos artigos publicados, defendendo a pena capital. São, certamente, pessoas desprovidas das necessárias informações básicas a respeito do tema. Anoto, em primeiro lugar, que qualquer tentativa de implantação da pena de morte onde ela foi abolida não passaria de simples exploração demagógica e política e também fruto de incompreensão do significado de Estado de Direito Democrático. Abordo, assim, na sequência, alguns elementos que envolvem o assunto e que já publiquei há muito tempo em uma obrai. 1. Direito e (pena de) morte Digo desde o início: o Direito é incompatível com a morte, ou precisamente com a pena de morte. O Direito postula pela vida, luta pela sua manutenção e dignidade. Onde não há vida não há Direito. Foram séculos de evolução - a bem da verdade, aos trancos e solavancos - para que o Direito se fosse depurando de mazelas que não lhe poderiam ser inerentes. O Direito extirpou os castigos físicos, a escravidão, a tortura, o racismo, dentre outras iniquidades (ainda que, de fato, tudo isso exista). Logo, estudar Direito é, desde logo, a priori conhecer certos princípios, e dentre estes está o da necessária garantia da vida humana, como condição básica da própria existência social. O Direito atual em sua melhor vertente, a mais humanitária, é fruto de uma razão que se foi educando e tomando consciência dos necessários pressupostos éticos que deveriam fundá-la. Essa racionalidade é o grande trunfo da Ciência do Direito, a grata contribuição que o pensamento jurídico nos trouxe. E a estatura da humanidade se mede pelo implemento dessa racionalidade, cada vez mais humanizada. Daí que o Estado, formado e edulcorado pelo Direito, há de ser escravo dessa mesma racionalidade, e, em sendo seu guardião, deve preservá-la como o prêmio conferido pela história. Matar alguém é ato bárbaro, ignóbil, mordaz. De per si viola a base da humanidade, já que a ninguém é dado tirar a vida de outrem. Então, por consequência, o Estado, legítimo representante da segurança das pessoas, não pode - por maior força de razão - ele mesmo praticar o ato ignóbil: não pode tirar a vida de alguém. 2. Pena de morte e sanção Não vou aqui abordar completamente o conceito de sanção, como elemento da norma capaz de auxiliar ou possibilitar o cumprimento da determinação normativa. Interessa-me apenas o fato de que a sanção é entendida como componente próprio da norma jurídica, e que no campo do direito penal está ligada à constatação do fato praticado, que se enquadra no tipo delituoso. Isto é, a sanção, para o interesse deste artigo, é entendida como a imputação de uma pena a alguém que cometeu um delito criminal, tipificado no Sistema Jurídico. Acompanhando o professor Miguel Reale, temos de dizer que, em "última análise, na e pela pena de morte, a pessoa é negada como tal, é convertida em coisa"ii. Na realidade quem "cumpre" a pena é o Estado. Evidencia-se, pois, nesse aspecto a contradição da função do Estado ao aplicar a pena de morte. Na sua execução, o Estado faz com o condenado o que (na maioria dos casos de condenação) ele fez com a vítima. Estado e condenado tornam-se iguais. Penso, em suma, que, analisada à luz de seus valores semânticos, o conceito de pena e o conceito de morte são entre si lógica e ontologicamente irreconciliáveis e que, assim sendo, 'pena de morte' é uma contradictio in terminis". 3. A motivação Vai-se dizer que o Estado tem um "bom" motivo para matar, enquanto um assassino não. Isto é, a morte decretada pelo Estado seria justa; a decretada pelo homicida não. Esse sofisma é bastante corrente, mas não resiste a uma avaliação crítica. Se se fosse buscar "motivos" para tirar a vida de alguém, por certo o Estado seria o que tem menos razões para fazê-lo. Nem vamos tratar do aspecto da justiça da decisão, porque é evidente que não se pode falar em tirar a vida de outrem de forma justa: é contradição própria. O Estado diante do assassino é aquele que tem o dever de conhecer - processual e materialmente - os fatos relativos ao crime. Depois de avaliá-lo, consistentemente deve proferir uma decisão racional. E a morte do criminoso é tudo, menos decisão racional. A pena de morte é a instituição da vingança pública, é pura irracionalidade. Sabe-se muito bem que o Direito se firmou contra a vingança, vingança privada que foi banida. E o foi porque sua irracionalidade evidente - apesar da legitimidade - punha em risco a própria organização social. Ora, não foi para transformar a vingança privada em pública que se a proibiu. O Direito é o império da razão. Fora dessa esfera é a barbárie. 4. O rebaixamento do Direito Quando o Estado aplica a pena de morte faz exatamente o mesmo que o assassino: simplesmente tira a vida de alguém. E os motivos não importam mais. São irrelevantes. Estado e homicida passam a se equivaler. O Direito fica rebaixado ao nível do infrator, assassino. Ambos passam a ter, como ponto comum, o desprezo pela vida humana. E o Direito e o Estado, que deviam ser exemplo de conduta para pessoas, passam a incentivar a raiva, a cólera, a torcida por vingança. É o estímulo à irracionalidade, que o Direito abandonou. O assassino é alguém que precisa ser retirado do meio social e punido. Mas como é que se poderia admitir que o Estado fizesse o mesmo que ele? É a pura selvageria, a volta a tempos imemoriais que o Direito deixou para trás por ter evoluído.Em se tratando de outros delitos que não o homicídio - como é o caso do brasileiro fuzilado, condenado por tráfico de drogas - o mergulho no obscurantismo é maior ainda. Sei que o medo diante do crime, muitas vezes, leva as pessoas a apoiarem penas severas e excessivas como a de morte, pois vivem a ilusão de que isso seria uma solução. No caso do tráfico de drogas, fica cada vez mais claro que as políticas de repressão simplesmente não dão certo e que a questão é antes de saúde pública que de criminalidade. Naturalmente, o tráfico pode ser reprimido, mas sem que o Estado, a sociedade e o Direito vivam no estágio atrasado da violação da dignidade humana. 5. A ilusão do plebiscito e da participação da população Outro argumento falacioso é aquele que diz que se deve deixar o povo decidir a respeito da pena de morte. Far-se-ia um plebiscito para ouvir a voz do povo. É importante colocar com todas as letras que há questões que não podem passar por plebiscito, o que não implica, de forma alguma, um ataque à democracia. Aliás, nem sequer um arranhão a atinge com o que diremos. Antes, o contrário, evitar a demagogia que se faz de vez em quando em torno do plebiscito é plenamente favorável ao desenvolvimento democrático. Com efeito, nas questões que envolvem a Ciência e os mais elevados valores éticos conquistados pela humanidade impõe-se, em vez de consulta, educar a população para mostrar o caminho correto. O público, usualmente vítima de manipulação de toda espécie, julga de maneira irracional, levado pelo sabor das emoções, e, claro, é impulsionado pela violenta realidade. Não pode ele, público, construir um critério racional para decidir adequadamente em questões como a pena de morte. O senso comum não é apto para pensar técnica, ética e racionalmente essa questão. É a Escola de Direito, o pensamento jurídico, que, extraindo da experiência histórica um rastro evolutivo, vai decidir sobre o tema. E isso já foi feito: "não" à pena de morte. De qualquer maneira, para elucidar de vez os meandros da falácia do plebiscito, vale a pena lembrar certos fatos e argumentos. Há questões que não podem ser submetidas a consulta popular. Cito o exemplo dado por Evandro Lins e Silva: "Ninguém indagará se o povo quer ou não quer determinado tipo de vacina, cuja aplicação a ciência demonstrou ser a maneira de prevenir doenças e epidemias"iii. Aliás, ao que parece não passa na cabeça de ninguém - político ou não - submeter a plebiscito a supressão de outras garantias conquistadas pelo Direito. Por exemplo, o direito à propriedade. Seria válido perguntar à população se ela quer extinguir o direito de propriedade imóvel, repartindo os atuais bens entre todos? Ou, então, a supressão de certos direitos humanitários e/ou religiosos conquistados por minorias? Seria válido? Claro que não. Como também não o é para a pena de morte. 6. Aspectos constitucionais A partir da Proclamação da República, nós, brasileiros, não temos nenhuma "tradição" constitucional na questão da pena de morte. Tirando dois episódios rápidos e que são exceção jamais utilizada, nossas Constituições Federais sempre a proibiram. O primeiro deles veio com a Carta Constitucional de 1937, que permitia a aplicação da pena de morte, possibilidade abolida com a Constituição democrática de 1946. De notar desde já que é no regime autoritário do Estado Novo de Getúlio Vargas que surge a pena de morte, e, com sua deposição e a consequente "reconstitucionalização do País" (conforme se intitulou o processo), a pena de morte novamente desapareceu. Aliás, lembre-se, então, de que a Constituição de 1946 (como a de 1988) nasceu de uma Assembleia Nacional Constituinte democraticamente eleita. Com o golpe militar de 1964 veio a Carta Constitucional imposta de 1967. Todavia, nesse primeiro momento do regime, foi mantida a tradição republicana de proibição da pena de morte. Contudo, o Ato Institucional n. 14, de 5 de setembro de 1969, alterou o § 11 do art. 150 da Carta de 1967 para admitir a pena de morte. E essa modificação acabou sendo acolhida pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, preservada que foi no § 11 do art. 153. E como consequência a chamada Lei de Segurança Nacional foi alterada para prever a pena de morte (Decreto-Lei n. 898, de 29-9-1969). Com a volta da democracia e eleição da nova Assembleia Constituinte, a Constituição democrática de 5 de outubro de 1988 aboliu definitivamente a pena de morte, tornando a regra absoluta, uma vez que constituída em cláusula pétrea (letra a do inciso XLVII do art. 5º c.c. o inciso IV do § 4º do art. 60 da Constituição Federal). Assim, ao menos no plano constitucional, o Brasil é daqueles que se realizou na correta direção da humanização de seu sistema legal. Esse é um dos mínimos estágios que todas as nações do planeta hão de atingir até, algum dia, chegarem à uma verdadeira civilização. ______________ i Em meu Manual de Filosofia do Direito (1ª edição de 2004). São Paulo: Saraiva, 6ª. Edição, 2015., Cap. VII, págs. 345 e segs. ii O Direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1992. Ensaio XII: "Pena de morte e mistério", pág. 284. iii Pena de morte. In Revista Forense, vol. 314, p. 220.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Um conto de Natal

Nesta época do ano, eu adoro rever filmes que festejam o Natal e seus milagres. Tenho alguns preferidos como, por exemplo, "O Milagre da Rua 34" (em qualquer versão) e "A felicidade não se compra" (de Frank Capra). Gosto também dos diversos contos de Natal, que, como esses filmes, fazem bem à mente e ao coração. No ano passado, meu amigo Outrem Ego, repassou um conto sobre o milagre, que eu resolvi modificar para criar um conto de Natal para dar de presente. E é esse o tema de minha última coluna do ano. Um conto de Natal para celebrar o milagre. Espero que o leitor goste. Desejo Feliz Natal a todos! *** E um milagre, quanto custa? Lucas era um menino muito atento e curioso e um dos melhores alunos de sua sala do 2º ano do ensino fundamental de uma excelente escola pública numa cidade do interior paulista. Ele estava muito animado com o fim das aulas que se anunciava para os próximos dias, pois teria mais tempo para brincar com seu irmão menor de apenas três anos de idade, Pedro. Sempre que havia chance, eles iam jogar futebol na quadra que existia no prédio onde moravam. Seu pai trabalhava como vendedor numa concessionária de veículos e sua mãe voltara a trabalhar como costureira. Sua avó materna ajudava a cuidar da casa e a tomar conta dos dois. Mas, naquele mês de dezembro, Lucas percebeu uma movimentação estranha e diferente em casa. Ao que lhe pareceu, seu pai havia perdido o emprego e estava nervoso atrás de outro. A mãe mostrava-se muito preocupada com o pagamento do aluguel do apartamento onde moravam. Para piorar o clima reinante, Pedrinho adoecera. Não podia mais jogar bola nem brincar mesmo dentro de casa. Sua avó vivia assustada para cá e para lá com seu irmãozinho. Os dois dormiam no mesmo quarto, mas na última semana, a cama dele fora colocada no quarto dos pais; ficou um pouco apertado, mas sua mãe havia dito que era importante por causa da doença. Numa noite, Lucas estava deitado e ouviu uma conversa na sala. Seus pais e sua avó conversavam e pareciam muito apreensivos. Ele, então resolveu sair na ponta dos pés para escutar a conversa no canto da parede do corredor. Os três estavam muito preocupados. A voz de sua mãe denunciava uma enorme aflição. Ele não compreendeu muito bem as expressões que ouvia nem os sentimentos manifestados, mas viu que se tratava de algum problema muito grave. Esticou a cabeça e espiou: quando viu que seu pai enxugava lágrimas nos olhos, voltou para seu quarto e chorou no travesseiro. No dia seguinte, à noite, Lucas parou atrás da porta do quarto dos pais para ouvir a conversa dos dois. Ouviu sua mãe chorando, sendo acudida pelo pai. Entre soluços, ela disse: _ Querido, você sabe, somente uma cirurgia pode salvar a vida do Pedrinho e nós não temos dinheiro para pagá-la. _ É... Desesperador... _ Numa época em que se pode comprar de tudo, em que se desperdiça tanto, nós não podemos pagar pela saúde de nosso filho. Pela vida de nosso filho! Somente um milagre pode salvá-lo! Lucas também ficou muito triste. Voltou para seu quarto e teve dificuldade para dormir. No dia seguinte, um domingo pela manhã, enquanto assistia tevê, viu um anúncio que dizia: "produto milagroso. Não é remédio. É produto natural que opera milagres. Emagreça sem aborrecimento". Lucas, sentiu algo que nunca havia sentido; nós diríamos que se tratava de um misto de ansiedade com esperança; e um ideia brotou em sua cabeça: "vou comprar um milagre para salvar meu irmãozinho". Foi até seu quarto, esvaziou seu porquinho-cofre e contou as moedas. Tinha vinte e dois reais. Colocou tudo numa pequena bolsa e começou a planejar o que fazer. Na segunda-feira, no intervalo de aulas, ele pegou a bolsinha com as moedas e foi até a enfermaria. Lá chegando, viu que a enfermeira abraçava fortemente um homem. Lucas parou na porta e esperou. Ouviu o homem e a enfermeira conversarem animadamente. Percebeu que eles eram irmãos. De repente, ela notou a presença dele e disse: _ Olá. Tudo bem? Você precisa de alguma coisa? _ Sim... Quer dizer, meu irmão precisa... O Pedrinho está muito doente. _ Ele estuda aqui na escola? _ Não. Ele ainda não vai para a escola. Só tem três anos. _ Então, acho que não posso fazer nada. Desculpe. _ Mas, a senhora sempre ajuda as crianças... E meu irmão precisa de um remédio que tem aqui... Uma vez, eu fiquei com febre e... Eu lembro, a senhora me deu umas gotas e disse: "pode tomar. É amargo, mas faz milagres. Você logo ficará bom". Fez-se um silêncio e se alguém olhasse o rosto da enfermeira, poderia claramente identificar o ponto de interrogação que ali pairava. O homem, então, interveio: _ Diga uma coisa. O que o seu irmão tem? _ Não sei direito... Mas, ouvi minha mãe dizer pro meu pai que ele tem um caroço crescendo dentro da cabeça. Meu pai falou que não tem dinheiro para pagar a operação. Ela falou que só um milagre pode salvar o Pedrinho. Eu quero comprar o milagre. Olha... Eu tenho dinheiro - e mostrou as moedas - E, um milagre, quanto custa? O homem deu um sorriso. Colocou Lucas numa cadeira, agachando-se para ficar na altura dos olhos dele e perguntou: _ Quanto dinheiro você tem? _ Vinte e dois reais. _ Nossa! Que coincidência! Vinte e dois reais é exatamente o preço de um milagre. Quem é que vem te buscar na escola? _ Hoje é minha mãe. _ Eu vou ficar aqui conversando com minha irmã, que eu não vejo faz tempo. Levantou-se e abraçou novamente a enfermeira. Depois voltou-se para Lucas e perguntou _ Você ainda tem aula hoje? _ Tenho. _ Então, vá estudar. Quando acabar a aula, você volta aqui. Nós dois iremos juntos até a saída encontrar sua mãe. Aquele homem era um neurocirurgião que morava na capital e trabalhava num dos maiores hospitais da cidade. Muito atarefado, fazia anos que devia uma visita à irmã. Naquela manhã, ele havia acabado de fazer uma surpresa para ela, chegando de repente, e dizendo que iria passar três ou quatro dias por lá. Após a aula, Lucas foi encontrá-lo. O médico foi, então, com ele e sua mãe para casa, onde a avó tomava conta de Pedrinho. Examinou-o e também aos exames. Depois, pediu licença para poder falar a sós com Lucas e foi com ele até o quarto. _ Temos um segredo - falou em voz baixa. _ Sim, sim - disse, animado, Lucas. _ Dê-me as moedas. Você acaba de comprar um milagre! Lucas as entregou ao médico. Este as colocou no bolso e disse: _ Este é nosso segredo. Não conte para ninguém, viu! Vem cá, me dá um abraço! E recebeu um abraço tão gostoso, que seus olhos científicos de cirurgião encheram-se de lágrimas. Na véspera do Natal, Pedrinho foi levado para a capital pelos pais e operado num centro cirúrgico especializado, no qual o médico trabalhava. Foi salvo! E tudo de graça! No dia de Natal, Lucas e sua avó receberam a notícia de que a operação fora um sucesso. Foi o melhor presente de Natal que eles poderiam ganhar. A avó proclamou: _ Um milagre o salvou... Isso não tem preço! Lucas olhou para a avó e deu um sorriso gostoso e bem aberto, sentindo uma enorme alegria com seu segredo bem guardado.
Qual pai ou mãe imaginaria que quando sua jovem filha ingressasse num curso tão procurado e prestigiado como o de Medicina da USP, ela estaria correndo risco de ser estuprada? No que diz respeito à Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), trata-se de mais uma crônica de uma tragédia anunciada, conforme relato abaixo na questão dos trotes violentos. Infelizmente, a descoberta de que alunas da FMUSP foram estupradas ou sofreram outros tipos de violência sexual é apenas a continuação de um panorama assustador de como as coisas acontecem nos campi. A constatação de que o machismo e a violência sexual que o acompanha é praticada por alguns, mas contam com a conivência de muitos outros, que não fazem a denúncia dos abusos, é estarrecedora. Além disso, a violência conta com a complacência dos responsáveis pela administração dos espaços universitários. Como é que poderemos ter profissionais de saúde dessa estirpe atendendo a população feminina ou masculina? Lembre-se que estudantes falam abertamente a favor de atitudes sexistas e violentas contra as mulheres, conforme têm mostrado as reportagens. Do ponto de vista legal e também ético, anoto que os administradores das universidades são responsáveis pela manutenção da ordem jurídica e moral nos locais de estudo e passou muito da hora de se tomar providências adequadas para evitar a violência, identificar os culpados e puni-los. Pelo que li do noticiário, percebi que os responsáveis titubeiam e muito na atitude a tomar. Na FMUSP, por exemplo, tiveram uma enorme dificuldade para aprovar uma medida óbvia: a da proibição de festas regadas a bebidas alcoólicas no campus! Já escrevi aqui nesta coluna, mais de uma vez, a respeito das agressões nas universidades. Agora, pelo que estamos vendo, parece-me que ela começa nos trotes violentos e prossegue com outros tipos de violência, como esse dos abusos sexuais e estupros. A humilhação causada aos novatos continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Lamentavelmente, no início do próximo ano letivo, assistiremos às mesmas cenas: crimes praticados a céu aberto sem que se tome alguma providência, tal como ocorre como as chuvas e seus alagamentos (embora, reconheça, que em alguns lugares, atualmente, as chuvas são altamente desejadas), os deslizamentos e as mortes consequentes, etc. Voltemos a FMUSP dos estupros para tratar de trotes: no dia 22 de fevereiro de 1999 Edison Tsung Chi Hsueh, calouro do curso de Medicina, de apenas 22 anos, foi encontrado morto, assassinado covardemente num ritual de trote sádico e violento. Mesmo após ter dito que não sabia nadar, ele foi atirado dentro de uma piscina e lá deixado para morrer afogado! Ninguém foi punido. O processo judicial foi arquivado por falta de provas contra os acusados1, e os causadores do crime, que não se conhece, graduaram-se e tornaram-se médicos! Um dos problemas nos trotes está em que, na maior parte dos casos, os próprios calouros não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. É mais um motivo para que os responsáveis pelos campi ajam abertamente a favor dos calouros e contra os selvagens veteranos. O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressavam nas faculdades. Mostra também uma contradição: os jovens ingressam na faculdade - um restrito setor da elite brasileira - e se mostram muito mal educados. Ao invés de agradecerem ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agem como bárbaros, arrogantes e sádicos. E pior: o mercado de consumo vem ano após ano reforçando a figura do calouro ultrajado como algo aceitável. O modelo é, infelizmente, realçado no imaginário do estudante pré-universitário pela publicidade de cursinhos e faculdades, que sempre mostram calouros felizes e violados (no mais das vezes com os cabelos raspados e pintados). Assim, o sistema capitalista vai colaborando para a manutenção das violações. Nunca é demais lembrar que aquilo que é repetido nos meios de comunicação como uma normalidade e que depois é confirmado pelos fatos públicos com naturalidade, acaba aparecendo como um comportamento correto e dentro da legalidade. Vê-se, pois, que no caso dos trotes ilegais, há uma junção de violência física, psicológica e também simbólica. Tudo muito lamentável. Por fim, já que fui obrigado a voltar ao tema, apresento na sequência alguns dos delitos praticados nos trotes e também mostro a responsabilidade das escolas, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que efetivamente restaram investigados nem às recentes denúncias de estupros e outros tipos de violência que estão sendo investigados. Lembrarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro. Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo, fazê-lo engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (artigo 140 do CP). Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP). Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente. Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão ou fingem que cuidam ou, então, dizem que não é problema delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim. Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizá-la, mas não se deve esquecer que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. O CDC garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a instituição de ensino pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC. Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e, nos primeiros dias de aula, distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro. Apesar de tudo, é preciso lembrar que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. Por isso, é preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas. Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de Direito, Medicina, Sociologia, Engenharia, etc. possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, mas que precisa ser combatida. _________ 1Ver matéria jornalística sobre o assunto.
Eu já tratei da oneomania, a doença das compras compulsivas, aqui nesta coluna. O foco foram os adultos, vítimas desse verdadeiro vício. Hoje resolvi voltar ao assunto, preocupado com esse tipo de comportamento ou algo parecido verificado nas crianças e adolescentes. Ninguém parece estar livre desse "vírus" típico da sociedade capitalista contemporânea. E, pior: um adolescente que não consegue controlar o impulso de comprar pode se tornar um adulto viciado. Essa é uma doença que se prolonga no tempo e, às vezes, é silenciosa: ela se instala, mas a própria pessoa ou as que estão a seu redor não conseguem perceber. Oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e também é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles. O comprador compulsivo é aquele que se satisfaz não com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ele pode literalmente adquirir qualquer coisa que lhe surja na frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra o satisfará. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, esse tipo de comprador é um consumidor típico e, portanto, frequenta os mesmos lugares que os demais. Daí, ele acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ele mesmo quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, cds, etc. e, com isso, não é raro que nem ele nem os que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ele é exagerado ou uma espécie de colecionador. No comportamento de crianças e adolescentes, já é possível identificar o mesmo padrão ou similar. Há meninas que possuem muitas bonecas, sapatos, tênis, roupas, acessórios e demais badulaques. O mesmo se dá com meninos com suas roupas, tênis, games, acessórios, etc. Claro que há de ser feita uma evidente objeção: as aquisições não são feitas com recursos dos jovens. São seus pais e responsáveis que autorizam ou aquiescem aos pleitos. Mas, esse acúmulo de produtos pode significar um sintoma de que a doença se instalou ou está em vias de. É mais uma preocupação que os adultos, responsáveis pelos menores, devem ter. (Infelizmente, se os adultos já foram infectados, a identificação pode se perder.). Essa espécie de "vírus" não surgiu do nada, nem de repente. Ele foi sendo incrementando paulatinamente com o crescimento do mercado capitalista de massa e seus instrumentos de expansão dos negócios. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. Como eu costumo dizer, parafraseando Descartes: "Consumo, logo existo". Somos uma sociedade de consumidores, na qual as pessoas são vistas, avaliadas, medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem adquirir. No século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois, se assim não fosse, seria impossível vender o que se fabrica. E, na atualidade, com o espetacular incremento da web/internet, não só as compras tornam-se instantâneas e feitas de dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias on-line (docs e teds), os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê a cabo, compras parceladas, etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele. Quanto aos menores, milhões deles são portadores de iphones, smartphones, laptops, etc., que facilitam a ida às compras virtuais; além disso, eles são levados a jogos e sistemas que se apresentam como gratuitos, mas que acabam oferecendo e vendendo alguma coisa. Tudo isso vai alienando o consumidor (jovem ou adulto) do que realmente ocorre e do que tem valor substancial. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um mais ou menos avisado, eis que as armadilhas estão muito bem engendradas. Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença. Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas de que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. Há pais que se endividam para comprar bugigangas para os filhos. É claro que, se o comprador com oneomania for uma pessoa de posses e puder gastar muito dinheiro, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize. Assim, um outro modo de identificação da doença está em verificar o excesso da compra de produtos, que jamais são usados. Por fim, anoto que, reconhecida a doença, uma terapia pode ajudar a resolver o problema. E, lembro que, além da psicoterapia, é bom saber que existem em várias cidades brasileiras grupos de autoajuda intitulado "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", e que acolhem e aconselham os doentes visando tratamento. Basta uma consulta à web/internet para ter acesso a essas instituições.
quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O corpo humano como produto de consumo

Meu amigo Outrem Ego, que às vezes não parece, mas é muito bem humorado, contou-me o seguinte: dia desses, foi convidado para um jantar. Ao chegar na casa de seu colega de trabalho, viu, sentadas, num grande sofá de couro, quatro mulheres muito parecidas. "Elas tinham a mesma cara. Quero dizer, os rostos eram idênticos: bocas a narizes iguais, testas esticadas, sem rugas, apesar da idade (por volta dos cinquenta anos). Todas pálidas. Perguntei ao anfitrião: 'são irmãs?'. 'Não!', respondeu ele, 'Elas têm o mesmo cirurgião plástico...'". No ano de 2013, pela primeira vez, o Brasil superou os Estados Unidos e se tornou líder mundial na realização de procedimentos cirúrgicos estéticos, de acordo com relatório divulgado pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps)1. Foram 1,49 milhão de cirurgias ou 12,9% do total mundial, que foi de 11,5 milhões. Isso não é pouca coisa, especialmente se considerarmos que a população norte americana é quase 60% maior que a brasileira2 e com uma renda per capita muito superior. Na categoria de procedimentos estéticos não-cirúrgicos, como a aplicação de toxina botulínica - mais conhecida pela marca Botox -, um composto aplicado para ajudar a suavizar marcas e linhas de expressão no rosto, os Estados Unidos lideravam o ranking com 21,4% dos 11.874.937 casos de 2013. O Brasil ficou em segundo lugar, com 5,5% do total. E, segundo o documento, as mulheres foram as que mais procuraram os médicos especialistas e passaram por algum processo estético (87,2%). Por esses dados, é possível ver o tamanho do mercado e a quantidade de dinheiro envolvido. O ramo da medicina estética foi um dos que mais cresceu e, certamente, teve um desenvolvimento técnico e científico extraordinário. Verdade que, muitas das cirurgias são necessárias e têm feito muito bem às pessoas. Mas, como sempre tem acontecido neste nosso "planeta do consumo", o mercado acabou, de um modo ou de outro, "impondo" metas e modelos para o corpo humano. Com efeito, o mercado conhece os desejos e os interesses dos consumidores e também sabe muito bem como criar "necessidades". Nesse tema do "modelo ideal" de um corpo humano feminino ou masculino, existe uma verdadeira enxurrada de informações chegando aos consumidores por todos os lados: via tevê com seus apresentadores e também pelos personagens de novelas, por intermédio do cinema, pelas passarelas de moda e anúncios publicitários, pelas revistas de moda, de futilidades, de fofocas e até de notícias - repletas de anúncios publicitários com corpos-modelo, etc., além de indicações de como o corpo humano há de ser. Como diz meu amigo: "Não é a realidade! Andando pelas ruas, passeando em shopping-centers ou em parques, enfim visitando o mundo concreto só muito raramente esses corpos desenhados, projetados e amoldados aparecem". Ele tem razão, inclusive porque a utilização cada vez mais dos sistemas de modelagem tipo photoshop proporcionam imagens desde logo diferentes do real. Ou, como ele contou: "Tenho um amiga que posou para uma revista. Quando saíram as fotos, ela exclamou: 'Nossa! não sabia que eu era tão bonita!'". Tudo isso poderia passar despercebido não fosse o efeito que causa na psiquê de muitas pessoas. Algumas que não se aceitam como são, outras que querem ficar parecidas com seus ídolos, aquelas que não aceitam envelhecer e até as que querem ficar parecidas com objetos de ficção! E, há também, como observou meu amigo no jantar a que compareceu, uma verdadeira "massificação" da estética facial com suas bocas, lábios, narizes, testas, etc. Recentemente, a Victoria's Secret (VS) colocou no mercado norte americano um anúncio publicitário que deu o que falar: numa foto com várias jovens mulheres trajando apenas calcinha e soutien da marca, havia escrito na frente: "The Perfect 'body'". Lançado o anúncio, logo depois, foi feita uma petição on line para que a marca pedisse desculpas por estar celebrando a ideia de um "corpo perfeito" mostrando apenas modelos muito magras, e que conseguiu milhares de assinaturas. Aproveitando o embalo, uma concorrente, a Dear Kate, fez um anúncio idêntico mostrando mulheres com seus corpos naturais muito diferentes das "angels" (como são conhecias as modelos da VS)3. Analisando-se o anúncio, pode-se até objetar que a marca não quisesse dizer que aquelas modelos tinham um corpo perfeito, pois a palavra "body" está entre aspas e poderia, então, estar fazendo referência à lingerie e não ao corpo. Pode ser. Mas, o caso serve para ilustrar toda a imposição de modelos de corpos femininos (e também masculinos) que declarando ou não, insinuam que aquilo sim é o corpo humano "adequado", "correto", "bonito", "perfeito". Como se existisse mesmo um corpo humano perfeito! O mau nisso tudo está em que, cada vez mais, fruto dessa avalanche de imagens produzidas por corpos desenhados, projetados e massificados num certo padrão, o corpo vai tomando o lugar da pessoa. O perigo é o de que se acabe dando mais importância ao corpo humano que a pessoa humana, algo que, em parte, já acontece. Eu, particularmente, não faço qualquer consideração de valor a respeito das pessoas que querem modificar sua aparência. Sendo maiores de idade, querendo fazer e podendo pagar o preço, trata-se de decisão de foro íntimo, mero exercício de direito subjetivo e privado de cada um. Não penso o mesmo em relação a certas posturas do mercado e também em relação aos "exageros" que, tudo indica, escondem problemas de ordem psíquica, que reclamariam um outro tipo de tratamento. Examinemos, pois, o incrível caso das pessoas que alteram seus corpos para ficarem parecidas com objetos de ficção. Citarei os mais famosos casos: os das mulheres que querem ficar parecidas (ou "iguais") com a boneca Barbie e os dos homens que querem ficar parecidos (ou "iguais") com o boneco Ken (o namorado da Barbie)4. Foi o desenvolvimento das técnicas de cirurgia plástica que permitiu que essas pessoas pudessem "sonhar" em se tornarem uma "coisa". Mas, pergunto: será que tudo o que pode, deve? Já tive oportunidade de comentar o problema das mulheres implantaram seios de silicone de mais de cinco litros em cada um5. Pode, porque é possível, mas não há fundamento ético capaz de basear operações desse tipo. A construção dessa imagem corporal artificial vinda de fora, como um projeto de design criado pelo mercado, não à toa tem gerado doenças relativas à alimentação. A magreza em excesso gerada pela bulimia e pela anorexia6 são eventos bem conhecidos neste particular. Pergunto, então: por que esses distúrbios alimentares são considerados doenças e cirurgias estéticas em excesso ou para fins estranhos não? O que se diz é que falta embasamento ético na atividade profissional de alguns cirurgiões plásticos. Do mesmo modo que eles deveriam se negar a efetuar operações de implantes de seios exageradamente volumosos, deveriam se negar também a tentar transformar seres humanos em bonecos! Sei que o dinheiro fala mais alto, mas é importante que nós saibamos que nem tudo é uma questão de preço e sim de valor. Ou como diria o Barão de Itararé: "A pessoa que se vende sempre recebe mais do que vale"7. Termino com as palavras de meu amigo: "Seria muito bom se algum dia, quando um cirurgião plástico fosse procurado por uma pretendente a Barbie ou um aspirante a Ken, que ele não só se negasse a fazê-lo como, desde logo, indicasse um psiquiatra ao candidato". __________ 1Brasil ultrapassa os EUA e se torna líder de cirurgias plásticas. 2Aproximadamente 321 milhões para 202 milhões. 3A matéria está neste endereço, onde, inclusive, podem ser vistas as fotos. 4Para quem quiser ver essas pessoas. 5O corpo humano, o mercado de consumo e a ética. 6Bulimia nervosa é um transtorno alimentar caracterizado por períodos de compulsão alimentar seguidos por comportamentos não saudáveis para perda de peso rápido como induzir vômito (90% dos casos), uso de laxantes, abuso de cafeína, uso de cocaína e/ou dietas inadequadas. A anorexia ou anorexia nervosa é uma disfunção alimentar, caracterizada por uma rígida e insuficiente dieta alimentar resultando em baixo peso corporal e estresse físico. A anorexia nervosa é uma doença complexa, envolvendo componentes psicológicos, fisiológicos e sociais. Uma pessoa com anorexia nervosa é chamada de anoréxica. 7Como se sabe, Barão de Itararé é o pseudônimo pelo qual se apresentava o jornalista e escritor Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, também conhecido por Apporelly.
É moda. Há médicos que se tornam famosos, passando a frequentar a mídia televisada e escrita, montam consultórios caríssimos bem decorados, em prédios e casas luxuosas, situadas em bairros nobres da cidade. Cobram muito caro por suas consultas. Era de se esperar que o atendimento fosse à altura de toda essa parafernália de apresentação. Afinal, com uma imagem dessas e cobrando preços altíssimos, o atendimento deveria ser cortês, respeitador, com, quem sabe, o oferecimento de cafés, chás, biscoitos e, por que não, chocolatinhos, porque nenhum consumidor é de ferro. Todavia, a experiência mostra que basta entrar em alguns desses consultórios para o serviço mostrar sua verdadeira face: "não vale quanto pesa". Cito um exemplo acontecido com meu amigo Outrem Ego. Ele resolveu marcar uma consulta com uma famosa dermatologista. Marcou com um mês de antecedência. Um mês! Poderia ter ido a outros médicos, mas como podia aguardar, agiu como um bom consumidor crente de que receberia o atendimento médico à altura da oferta e do preço. Ficou esperando pacientemente o dia chegar. Uma nota de ironia: na véspera do dia marcado, a secretaria da médica ligou para confirmar a consulta. Para não perder a hora, Outrem Ego chegou 30 minutos antes e ficou acomodado na lotada sala de espera da linda casa, ricamente decorada. Nota: havia manobristas à porta, mas nada de chocolatinhos, cafezinhos, bolachas, etc. Apenas e tão somente as surradas revistas de moda e fofocas que, não se sabe bem por que, os consultórios mantêm. (Meu amigo chamou a atenção para esse fato também: será que os médicos querem dizer alguma coisa aos clientes, colocando revistas tão ruins na sala de espera?). Muito bem. Meu amigo estava mais preparado: levara um livro para ler, acaso atrasasse "um pouco" (Como bom consumidor, ela estava dando um, digamos, crédito de tempo no atraso do atendimento para a "celebridade" médica). Sua consulta estava marcada para às 16h. Deu 16h e nada; meia hora depois nada ainda. Com quarenta e cinco minutos de atraso, Outrem Ego perdeu a concentração e não conseguia mais acompanhar a história do livro que lia. Às 17h, viu ser chamada uma mulher que estava já lá esperando quando ele chegou às 15h30. Resolveu, então, perguntar para a secretaria qual era o horário de consulta daquela mulher e ficou sabendo que era a das 14h. Ele ficou tonto, sentou-se um pouco, tentou organizar seu pensamento. Depois, levantou-se e foi embora. Muito bravo, ele me contou a história e eu disse que ele tinha sido violado em seus direitos. Mas, ele ainda usou comigo de uma retórica muito comum em consumidores-vítimas que procuram eliminar uma espécie de sentimento de culpa por terem sido maltratados. Disse: "É verdade, que pode alguém objetar que, se eu esperasse, seria atendido. Talvez. Quem sabe, após mais duas horas, ela me atenderia, mas desrespeito tem limites e, assim, fui-me. Indignado" (Esse argumento de vítima condescendente é comum. É uma espécie de síndrome de Estocolomo dos consumidores violados). E antes que surjam mais defensores do mau atendimento, apenas e tão somente porque é de médicos que estamos falando, não se está apontando situações de emergência ou de algum caso excepcional que exigiu a presença do médico que, por isso, não pode atender aos demais. A referência diz respeito ao modo de atendimento básico em consultórios regulares com consulta previamente marcada, sem qualquer embaraço justificável. Há, naturalmente, bons prestadores de serviços no setor, tanto médicos como hospitais e clínicas, mas o problema no atendimento aparece em todos os lados, não só nos consultórios particulares, como também nos hospitais privados e nos conhecidos "hospitais-butiques". Nem preciso referir o serviço público, que, tirando exceções, peca muito pelo mau atendimento. Para deixar, então, consignados certos aspectos básicos da relação cliente-médico e cliente-hospital/clínica, listo a seguir algumas regras e direitos vigentes. Obrigações do médico Tanto no consultório como no hospital, o médico tem obrigação de prestar um atendimento adequado e dentro dos parâmetros legais. O médico é um prestador de serviço e como tal deve fazê-lo de forma técnica compatível com sua especialidade, sem ações precipitadas ou omissões injustificadas. Receitas em letras legíveis É direito do consumidor receber receitas escritas de forma legível. Nada de "caligrafia de médico é assim mesmo". Não é nem um pouco engraçado ficar decifrando junto ao farmacêutico os "quase-hieróglifos" do médico para descobrir qual medicamento comprar e como tomá-lo ou, então, qual é o exame que foi prescrito. Além de sem graça, é ilegal, posto que é uma falha na informação. Esta deve ser clara, precisa, detalhada. Ademais, é evidente que a compra do remédio errado, bem como sua equivocada utilização, pode causar sérios danos ao consumidor. No consultório - Horário marcado No consultório, a hora marcada deve ser respeitada, a não ser que exista alguma justificativa de última hora (Por exemplo, o médico foi obrigado a ir fazer um atendimento de emergência). O atraso no atendimento, de maneira injustificada, viola o direito do consumidor, que, se tiver algum prejuízo por conta disso, pode pleitear indenização. Confidencialidade A consulta é confidencial e, resguardados os casos de doenças de notificação compulsória (epidemias, por exemplo) ou risco real para terceiros, o médico deve proteger as informações que recebe de seus clientes. Na violação desse sigilo, o consumidor pode pleitear indenização do médico e/ou hospital. Educação e respeito O médico e os demais profissionais devem tratar o consumidor com educação e respeito à sua dignidade como ser humano, jamais podendo usar expressões preconceituosas, nem referir-se ao paciente pelo nome de sua doença. Esse direito se estende ao acompanhante, aos familiares e, caso ocorra, ao falecido. No hospital Nos hospitais, os profissionais devem se apresentar devidamente identificados com crachá, no qual conste nome completo, profissão e cargo (médico, anestesista, enfermeiro etc.). O prontuário médico É direito do consumidor receber uma cópia do prontuário no consultório, no hospital ou na clínica. Quando não estiver consciente, a cópia do prontuário tem que ser entregue a seu responsável legal (geralmente um familiar próximo: cônjuge, filhos, pais etc.). O diagnóstico É direito do consumidor receber por escrito do médico (de forma legível, de preferência datilografado ou impresso via microcomputador) o relato do diagnóstico feito, bem como quais serão as condutas médicas a serem adotadas, com a descrição das etapas da doença pelas quais o paciente irá passar, os tratamentos que serão empreendidos, os riscos envolvidos etc., pois o paciente pode recusar os diagnósticos e tratamentos. Seu consentimento deve vir depois de ter recebido claras e totais informações sobre o caso em linguagem simples. O paciente pode dar o consentimento e depois, se quiser, pode revogá-lo. Doença grave Quando se trata de doença grave e/ou desconhecida, é direito do paciente saber da expectativa que se tem sobre o resultado do tratamento, além de ser esclarecido a respeito do diagnóstico e do tratamento, quando se tratar de pesquisa ou procedimento experimental, assim como, também, ser esclarecido dos riscos na relação com os benefícios. Testes obrigatórios É obrigação do médico/hospital/clínica fazer testes antialérgicos para uso de medicamentos que apresentem riscos quando ministrados (por exemplo, penicilina), bem como teste para verificação de diabetes, quando o procedimento ou o uso do medicamento trouxer riscos em função dessa doença. O material a ser utilizado É obrigação do médico/hospital/clínica utilizar-se de material esterilizado ou descartável, tudo dentro das mais estritas regras de segurança e higiene. Se for necessária a utilização de sangue, o paciente tem direito de conhecer sua procedência. O acompanhante Nas consultas e intervenções, o paciente pode ter presente um acompanhante e isso é válido para o parto; o pai, querendo, pode assistir. Orçamento prévio O paciente tem direito a receber um orçamento prévio do serviço que será prestado e dele devem constar: o valor dos honorários; o preço dos materiais a serem empregados; as condições de pagamento (ou seja: se é à vista, parcelado, com ou sem entrada etc.); as datas de início e término do serviço ou a previsão da necessidade de sua continuidade; e o prazo de validade do orçamento. Se o orçamento não falar do prazo de validade, ele valerá por dez dias. Após a sua aprovação, não pode ser alterado. Recibo dos pagamentos Todo pagamento deve ser feito contra a entrega de recibo. Este tem que ser discriminado, apresentando separadamente honorários médicos, honorários de outros profissionais, despesas de estada, uso de equipamentos, gastos com medicamentos etc. Direitos de todos: consumidor e seus familiares Todos os direitos do consumidor aqui narrados são extensivos aos familiares do paciente.
Em função das eleições realizadas recentemente e tendo em vista sua importância para o fortalecimento da democracia e, por que não dizer, para o desenvolvimento social e econômico do Brasil, trato mais uma vez de alguns pontos. Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, de fato, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos, inicialmente, um dos aspectos de nossa democracia, a do fato do voto ser obrigatório entre nós. De todos os países do mundo, apenas 24 ainda adotam esse modelo, sendo 13 na América Latina. E dentre os 15 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever. Os que são contra o voto obrigatório argumentam que ele transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa legítima democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão. Isso porque, como dizem, a obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. Para ser ter uma ideia, uma pesquisa do Instituto Datafolha realizada após as eleições de 2010 mostrou que, 20 dias após as eleições, 30% dos eleitores já nem se lembravam em quem haviam votado. Esses dados comprovam que milhões de brasileiros vão às urnas para se livrar da obrigação de votar e para não perder vários direitos retirados de quem não vota e, também, porque é mais fácil e prático votar do que justificar a ausência. Esse argumento, de outro lado, apresenta o voto facultativo como algo positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que de fato possa representar seus pensamentos, suas opiniões, assim como do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. (Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso - sem partido - etc. Mas, o fim do voto obrigatório, como dizem os que o defendem, seria um bom começo). Pensemos, também, num outro ponto do sistema eleitoral: como garantir que o candidato que receba nosso voto seja o eleito? No modelo vigente, sabe-se que a soma dos votos do partido é que define o número de candidatos eleitos, sendo que o eleitor, especialmente nas eleições para o legislativo municipal, estadual e Federal (deputados e senadores) vota mais no candidato que no partido. O cidadão vota num candidato que recebe muitos votos individualmente, mas como seu partido não consegue índice, ele fica de fora. E num outro partido onde há puxadores de votos, são eleitos candidatos desconhecidos e com votações medíocres. Desse modo, como se diz, a representação fica furada, pois os que receberam votos diretamente do eleitor acabam não sendo considerados. Afora o fato de que nosso regime democrático conta, atualmente, com 32 partidos políticos, um exagero que confunde. Agora, um outro aspecto: como já tive oportunidade de tratar, as democracias contemporâneas são formadas por cidadãos-consumidores. Isto é, uma característica marcante das sociedades capitalistas é que elas são formadas basicamente por consumidores. Os direitos dos cidadãos são exercidos em larga medida pela atuação enquanto consumidores, pois, no cotidiano, as ações são "vividas" pelo e para o consumo. Ademais, em relação ao Estado, está claro que ele é um agente prestador de serviços (além de produtor) e se comunica com os cidadãos do mesmo modo que as empresas privadas com seus clientes. Os candidatos, por exemplo, são apresentados como produtos muito bem projetados pelos marqueteiros. Nesse sentido, é que se diz que o eleitor é um cliente do Estado. Como o regime é democrático e as autoridades são guindadas a seus cargos pelos votos dos eleitores, estes esperam, legitimamente, que as ações e tomadas de decisões daqueles de algum modo, então, estejam em consonância com suas necessidades, interesses e direitos. Porém, a sociedade capitalista é formada por empresas que exploram, segundo as regras instituídas, o mercado existente. Esse mercado de consumo não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que a exploração é permitida. Como decorrência disso, o empresário tem responsabilidades a saldar para com a sociedade. Acontece que a empresa não tem relação com a democracia. Ainda que, em algumas delas, sejam apresentados ares de participação dos empregados, a verdade é que a estrutura organizacional da empresa é naturalmente autoritária. ("Manda quem pode. Obedece quem tem juízo"). As decisões são tomadas por um ou por poucos e não levam em consideração desejos ou interesses dos subalternos, a não ser na medida dos direitos instituídos e que aparecem como obstáculos - muitos deles a serem removidos pelas próprias decisões internas. A extinção de empregos, por exemplo, pode ser uma meta a ser buscada, não importando as consequências sociais que daí advirão. No capitalismo contemporâneo de "última geração", a eliminação de postos de trabalho tem sido uma característica marcante das fusões, incorporações, aquisições, etc. E, como também já frisei anteriormente, esse modelo autoritário expande-se para fora na direção dos consumidores. Estes não só não participam das decisões das empresas, como são solenemente por elas desprezados: na maioria dos casos, os consumidores são levados em consideração apenas e tão somente na possibilidade e capacidade que têm de comprar os produtos e serviços oferecidos gerando, assim, receitas e lucros. E, como se sabe, também fruto do capitalismo atual, o Estado, por sua vez, aos poucos foi abrindo mão do direito de explorar parte do mercado e pelo sistema das privatizações entregou para a iniciativa privada o direito de prestar uma série de serviços e também de entregar produtos, guardando para si o direito e o dever de continuar oferecendo serviços e produtos essenciais, tais como o de saúde e segurança pública e de controlar outros como o de transportes e de comunicações, assim como a educação, que pode ser explorada pela iniciativa privada e oferecida pelo Estado, etc. Esse quadro mostra, então, de um lado, como a sociedade capitalista contemporânea é autoritária, pois as pessoas vivem como consumidores e a estes não é dada liberdade de escolha na maior parte de suas compras, necessárias ou essenciais. Aliás, essa é uma marcante característica dos consumidores: a falta de liberdade. E, de outro lado, a dificuldade que os cidadãos-consumidores têm de se comunicar livremente com seus representantes. As manifestações de rua do ano de 2013 demonstram que o canal democrático de eleição de representantes, que possam atuar em nome dos cidadãos não tem funcionado adequadamente. E, chamo atenção para o fato de que boa parte das reivindicações das pessoas nas ruas brasileiras envolvia direitos típicos dos consumidores, tais como transportes decentes, melhor atendimento médico e hospitalar, educação de boa qualidade e segurança pública. De todo modo, enquanto o sistema eleitoral não muda, na direção de maior legitimidade e melhor forma de representação, o que se pode verificar é que estabeleceu-se a consciência de que, na sociedade capitalista contemporânea, os cidadãos têm o direito de se manifestar livremente e podem exigir que se lhes entreguem produtos e serviços decentes a preços módicos e que a política seja executada de forma honesta a transparente. E, com a penetração e eficácia das comunicações via web/internet e redes sociais, foram abertas vias para que as insatisfações dos cidadãos-consumidores possam ser ouvidas. As empresas privadas já estão, por exemplo, há certo tempo monitorando os sites de reclamações. Eles têm funcionado muitas vezes com ótima eficácia na resolução de problemas que os consumidores enfrentam sem ter que necessariamente recorrer aos canais oficiais, como os Procons e o Judiciário. Parece certo que, de um modo ou de outro, é preciso mesmo aprimorar o sistema político, que está inserido numa sociedade capitalista que o tempo todo busca a modernização, especialmente para que a representação seja efetiva.
Volto a tratar de um tema importante que possibilita o acesso à Justiça, o da assistência judiciária gratuita. Cuidarei especificamente dos consumidores, mas, naturalmente, a questão diz respeito a toda e qualquer pessoa que, sem condições financeiras, pretenda ir a juízo ou é ré em alguma ação judicial. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) garante como direito básico do consumidor o de acesso aos órgãos judiciários e administrativos (inciso VII do art. 6º) e um dos mais efetivos modos de assegurar esse direito é o da concessão da assistência judiciária gratuita, garantia pela lei 1060, importante diploma de 1950. Muitas decisões judiciais têm negado a chamada Justiça gratuita, sob o argumento de que cabe ao requerente provar insuficiência de recursos para poder obtê-la. Trata-se, segundo penso, de equívoco porque a lei de assistência judiciária (LAJ) como é conhecida a lei 1060/50, não faz essa exigência e o texto constitucional que cuida da questão não regula assistência judiciária gratuita, mas sim assistência jurídica integral, que é algo bem diverso. Assim, no presente artigo, pretendo solver a confusão que tem sido feita nos meios forenses relativamente a esses dois institutos fundamentais de exercício da cidadania e de salvaguarda do acesso à Justiça, a saber: o direito de assistência judiciária gratuita assegurado na LAJ e o direito de assistência jurídica integral e gratuita assegurado na Carta Magna (art. 5º, LXXIV). Vejamos. 1. A assistência judiciária Um dos grandes entraves para o exercício da cidadania é - sempre foi - o de ordem financeira, capaz de, por si só, impedir a pessoa de bater às portas do Judiciário para apresentar seu pleito. No Brasil, fruto de uma sustentação democrática bastante ampla, já nos idos de l950 foi editada a lei 1060 visando acabar com essa ordem de impedimento. Inicialmente, realço o seguinte: um dos pontos fortes dessa lei está exatamente na garantia do direito de isenção que pode a parte requerer, consistente em não arcar com as taxas, custas e despesas processuais, vale dizer, a lei cuida de isentar do pagamento do custo do processo a pessoa que necessite. E o que ela exige para o exercício dessa prerrogativa? Apenas e tão somente a simples afirmação em juízo de que a parte não tem condições de arcar com esse custo sem prejuízo de seu próprio sustento e/ou de sua família. Nada mais. O artigo 4º da LAJ é expresso nesse sentido, ao dispor que: "A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família". Veja-se que o legislador fez exigência bastante singela: basta a mera afirmação na própria peça processual. É verdade que a norma fala em petição inicial, mas a interpretação extensiva consensual e pacífica oferecida pela doutrina e pela jurisprudência deixa patente que o pleito pode ser feito na contestação, nos embargos etc. ou mesmo no curso do processo. A questão é induvidosa, inclusive no E. STJ: "Processual civil. Recurso especial. Assistência judiciária gratuita. Estado de pobreza. Prova. Desnecessidade. - A concessão dos benefícios da assistência judiciária gratuita não se condiciona à prova do estado de pobreza do requerente, mas tão-somente à mera afirmação desse estado, sendo irrelevante o fato de o pedido haver sido formulado na petição inicial ou no curso do processo" (STJ, REsp. 469.594/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.05.2003, DJ 30/6/2003, p. 243). "Para o benefício de assistência judiciária basta requerimento em que a parte afirme a sua pobreza, somente sendo afastada por prova inequívoca em contrário a cargo do impugnante" (AG 509.905, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 11.12.2006). "Assim sendo, esta Corte já firmou entendimento no sentido de que tem presunção legal de veracidade a declaração firmada pela parte, sob as penalidades da lei, de que o pagamento das custas e despesas processuais ensejará prejuízo do sustento próprio ou da família (...). 7- Recurso provido para, reformando o v. acórdão recorrido, conceder ao recorrente os benefícios da assistência judiciária gratuita" (REsp. 682.152/GO, 4ª Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 22/3/05, v.u., DJ 11/4/2005, p. 327). No mesmo sentido: REsp. 653.887/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 2ª Turma, DJ 6/3/2007. Lembro que, a garantia que está em jogo é a do acesso à Justiça e não a do direito do Estado arrecadar taxas. Ademais, para evitar que a pessoa que vai ao Judiciário sem pagar taxas acabe por lesar o erário público, o §1º do referido art. 4º fixa uma punição: "§ 1º . Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais" 2. A questão da prova da insuficiência de recursos Agora, pergunta-se: a parte não tem que provar a insuficiência de recursos? Esse é um dos temas que ainda gera decisões díspares. Isso porque é difícil ao magistrado admitir que alguma afirmação possa ser feita em Juízo sem a devida apresentação de prova correspondente. Acontece que, na hipótese, o legislador presume a prova da afirmação. Não significa dizer que a parte não tem que provar, mas que existe uma presunção legal de que ela está falando a verdade. Essa presunção é "juris tantum", podendo a parte contrária impugnar a concessão para desmontá-la, conforme estabelecido no "caput" do art. 7º da lei: "Art. 7º. A parte contrária poderá, em qualquer fase da lide, requerer a revogação dos benefícios de assistência, desde que prove a inexistência ou o desaparecimento dos requisitos essenciais à sua concessão" Portanto, não se trata de afirmação sem prova, mas de simples inversão do ônus da prova para a parte contrária, em função da presunção legal existente. De fato, não poderia ser de outro modo, pois caso assim não fosse, muitas demandas se perderiam, na medida em que antes de decidir o tema posto, o juiz teria que avaliar se a parte tinha ou não condições de arcar com as despesas. (Não se deve esquecer que a parte que mentir nesse ponto será condenada ao pagamento do décuplo das custas, conforme previsto no § 1º do art. 4º). De todo modo, apesar da permissão ampla a favor do requerente, o caput do art. 5º da lei permite que o juiz avalie o pleito até para indeferi-lo desde que haja elementos para tanto nos autos. Leia-se, verbis: "Art. 5º. O juiz, se não tiver fundadas razões para indeferir o pedido, deverá julgá-lo de plano, motivando ou não o deferimento dentro do prazo de setenta e duas horas" Isto é, se o magistrado, examinando as provas existentes nos autos, encontra elementos capazes de permitir a formação de um juízo a respeito da capacidade financeira da parte, pode, então, fundamentadamente, indeferir o pedido. Todavia, anoto: trata-se de incapacidade financeira e não econômica, como às vezes se verifica servir de equivocado argumento para a negativa da concessão. A parte pode muito bem ter patrimônio e, logo, capacidade econômica, mas estar impossibilitada de pagar um mínimo de taxas. A existência de patrimônio não é impedimento para a concessão do benefício. O que importa é a incapacidade financeira corrente de arcar com as despesas e custas processuais em prejuízo do próprio sustento e da família. A propósito e em complemento, anoto que também não é impedimento para a concessão do benefício, o fato da parte ter advogado próprio constituído nos autos, pois isso nada prova de sua capacidade financeira, na medida em que seu patrono pode fixar contrato de honorários para receber ao final do feito ou vinculado ao sucesso da demanda ou, ainda, tratar-se de advocacia pro bono. Aliás, trata-se de conduta expressamente autorizada pela lei 1.060/50 (artigo 5º, § 4º). E já se decidiu que "A circunstância da parte ser pobre na acepção jurídica do termo, não implica estar ela tolhida de escolher seu próprio advogado (RT 602/229)". Desse modo, reafirme-se que não precisa a parte fazer qualquer prova da insuficiência de recursos para arcar com as despesas processuais, pois a lei exige unicamente a declaração de pobreza específica para fins processuais. Ou seja, pela só declaração atestada na própria peça processual há indicação suficiente para se extrair da necessidade de seu deferimento, garantindo-se o acesso à justiça, garantia fundamental. Saliente-se, ademais, que não vinga a alegação, às vezes esposada em Juízo, de que a parte deve fornecer os documentos previstos no § 3º, do art. 4º, da lei 1.060/50, e isso porque tal diploma está revogado. O referido § 3º, do art. 4º foi acrescentado pela lei 6.654/79, que exigia a apresentação da carteira de trabalho e previdência social, quando do requerimento de assistência judiciária gratuita. Tal norma dispunha o seguinte: "§ 3º. A apresentação da carteira de trabalho e previdência social, devidamente legalizada, onde o juiz verificará a necessidade da parte, substituirá os atestados exigidos nos §§ 1º e 2º deste artigo" Acontece que, pela nova redação dos parágrafos 1º e 2º, do artigo 4º, dada pela lei 7.510/86, foram dispensados os atestados anteriormente exigidos nestes parágrafos, o que tornou implicitamente revogado o § 3º e sua exigência.1 Para terminar esse ponto, consigno também, que o pedido de concessão da justiça gratuita não preclui , podendo ser requerido a qualquer momento no processo quando a situação financeira da parte for insuficiente para honrar com o pagamento das custas sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família. 3. A confusão entre "assistência judiciária" e "assistência jurídica" Algumas decisões judiciais têm confundido "assistência judiciária" com "assistência jurídica", o que tem levado ao indeferimento do pedido de assistência judiciária, sob o argumento de que há uma exigência de ordem constitucional de comprovação de insuficiência de recursos ( conforme previsão do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal), extraindo-se daí a conclusão de que cabe à parte, demonstrar, documentalmente (através de comprovante de rendimento ou documento equivalente), a hipossuficiência alegada, pois o benefício é para quem realmente tem e demonstre a necessidade. Essa interpretação da norma constitucional, a nosso ver e com todo o respeito, é equivocada. Com efeito, dispõe o referido inciso LXXIV, do art. 5º, da Constituição Federal: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos." De uma simples leitura do texto e utilizando-se apenas e tão-somente da primeira das regras de interpretação, a gramatical, percebe-se que o comando lingüístico estampado no texto magno não se dirige a isenções de pagamento de taxas, custas e despesas processuais. A letra da lei expressamente trata de outro assunto: o da "assistência jurídica integral e gratuita" aos que, dela necessitando, requererem. Veja-se que a Constituição Federal utiliza o adjetivo "jurídico" e não o adjetivo "judiciário": aí reside a confusão. Não se perca de vista o fundamento de defesa democrática da cidadania trazido pela lei 1.060. Só por isso, deve-se, desde logo, prestar-se mais atenção no que disciplina a atual Constituição Federal em relação ao assunto, especialmente levando-se em consideração o fato de que ela inaugurou no país um vasto campo de defesa da cidadania e de acesso à justiça2. Ora, o que o legislador constituinte disciplinou foi uma determinação para que o Estado garanta assistência jurídica integral e gratuita a quem necessitar. É para esse tipo de serviço essencial que o cidadão deve comprovar insuficiência de recursos ___ e não para requerer a mera isenção de taxas, custas e despesas processuais. A doutrina define, sem sombra de dúvida, o que vem a ser a assistência jurídica integral e gratuita: "(...) Diferentemente da assistência judiciária prevista na constituição anterior, a assistência jurídica tem conceito mais abrangente e abarca a consultoria e atividade jurídica extrajudicial em geral. Agora, portanto, o Estado promoverá a assistência aos necessitados no que pertine a aspectos legais, prestando informações sobre comportamentos a serem seguidos diante de problemas jurídicos, e, ainda, propondo ações e defendendo o necessitado nas ações em face dele propostas."3 Percebe-se, pois, que é razoável exigir do cidadão a comprovação da insuficiência de recursos, mas somente quando se trate de assistência jurídica integral e gratuita (e não de simples assistência judiciária, diga-se mais uma vez), e isto por que: a) não se está falando apenas de ação judicial, mas de atos anteriores, de aconselhamento relativo ao comportamento que a pessoa deve ter diante do texto legal, de quais atitudes tomar, que caminhos seguir, de assinar ou não um contrato, fazer uma queixa, firmar uma quitação, notificar alguém etc., podendo chegar, claro, na ação judicial já encampada e patrocinada totalmente pelo Estado; b) se está tratando de entrega direta de serviço público, com prestação de serviço completo, o que exige do Estado aparelhamento específico ___ escritórios, advogados etc. ___ e custo adicional. 4. A recepção da lei 1060/50 pela Constituição Federal Examinando-se o texto constitucional e o da LAJ, não resta qualquer dúvida da recepção desta por aquela e sem qualquer risco de confusão ou injustiça. Na questão da exigência de comprovação de falta de recursos, inclusive, é importante anotar que em momento algum se está a dizer que a parte pode fraudar o sistema processual fazendo afirmação falsa. O que a LAJ faz é apenas, de um lado, garantir que a parte não tenha bloqueado o acesso ao Judiciário por uma exigência burocrática e, de outro, transferir para a parte contrária o ônus da demonstração da não veracidade da afirmação daquele que recebe o benefício da assistência judiciária gratuita. Em outras palavras, a lei 1.060/50 dá o direito subjetivo à pessoa de, mediante simples afirmação especial, pleitear os benefícios de assistência judiciária gratuita. Exercida essa prerrogativa, ao Juiz só cabe indeferi-la se tiver fundadas razões para tanto (art. 5º). Não tendo, nada pode fazer a não ser deferir o pleito. Daí, caberá à parte contrária ___ caso queira ___ impugnar a concessão, sendo dela o ônus da prova da inveracidade da afirmação. Se a parte contrária fizer tal prova, então, o beneficiário será condenado ao pagamento do décuplo das custas judiciais (§ 1º, do art. 4º). Vê-se, portanto, que não só a lei 1.060/50 foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, como está em plena sintonia com seus princípios, ao garantir acesso à justiça, de forma célere, imparcial, e fundada no devido processo legal.4 5. Conclusão Portanto, não há qualquer incompatibilidade entre a lei 1060/50 e o inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal, posto que esta norma regula a assistência jurídica integral e gratuita e para o exercício deste direito é exigida a comprovação da insuficiência de recursos. Quanto à assistência judiciária gratuita, relativa à isenção de taxas, custas e despesas processuais, basta a afirmação da insuficiência de recursos para a concessão do benefício. __________ [11Nesse sentido e por todos: Theotônio Negrão. Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor, 35ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, nota 7 ao art. 4º, p. 1.150. [22V. a respeito Nelson Nery Jr., "Princípios do Processo Civil na Constituição Federal", 5ª ed. rev. Ampl., São Paulo: RT, Seção III. 3Nelson Nery Jr, ob. cit., p. 77. 4Anote-se, em acréscimo, ainda que em rodapé, que a garantia constitucional do acesso à justiça não significa que o processo deva ser gratuito. No entanto, se a taxa judiciária for excessiva de modo a criar obstáculo ao acesso à justiça, tem-se entendido ser ela inconstitucional por ofender o princípio aqui estudado.(Conf. Nelson Nery Jr., ob. cit., p. 98)
quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Um presente para a reflexão no dia das crianças

Como estamos na semana do Dia das crianças, apresento, mais uma vez, um texto para reflexão sobre a relação de pais e filhos. Hoje abordarei a questão dos incentivos. Penso que praticamente todo mundo já ouviu dizer que há pais que prometem dar de presente um automóvel ao filho ou filha, acaso ele ou ela ingresse na Faculdade. Isso, quanto aos mais abonados. Os de menores posses prometem viagens ou outros presentes mais baratos. Isso também ocorre com os mais jovens que ganham alguma coisa em troca de boas notas como, por exemplo, a ida a um evento desejado pelo pequeno ou ao McDonald's. Ou, ao contrário, deixam de levá-los se as notas foram fracas. Pergunto, então, que tal oferecer, de uma vez por todas, e sem rodeios, dinheiro para que a criança ou adolescente tire boas notas ou leia um livro? Ao invés de automóvel, viagem, roupas ou acessórios, pagamento cash ou depósito em conta! Pode até parecer estranho, mas isso já acontece nos Estados Unidos da América e, como quase tudo que por lá se inventa, acaba, mais cedo ou mais tarde, desembarcando por aqui - nesse nosso país catequizado e que adora copiar o grande irmão norte americano -, faço algumas considerações para que pensemos a respeito. Michael J. Sandel, em livro que aqui já citei mais de uma vez1, conta que um amigo dele costumava pagar um dólar aos filhos pequenos toda vez que escreviam um bilhete de agradecimento. Ele revela que, geralmente, dava para perceber que os bilhetes haviam sido escritos sob pressão. Sandel levanta a hipótese de que, "pode acontecer que, depois de escrever muitos bilhetes, as crianças acabem apreendendo seu real significado e continuem manifestando gratidão ao receber alguma coisa, mesmo se não forem mais pagas para isso"2. No entanto, também é possível, observa ele, que aprendem a lição errada e encarem esses bilhetes como uma obrigação, como uma tarefa a ser desempenhada em troca de remuneração. Pior: esse modelo pode "corromper sua educação moral e tornar mais difícil para elas o aprendizado da virtude da gratidão".3 Sandel conta que, em várias partes dos Estados Unidos, o sistema escolar passou a tentar melhorar o desempenho acadêmico com a remuneração das crianças para estimulá-las a tirar boas notas ou obter boa pontuação em testes de avaliação. E que, cada vez mais, os incentivos financeiros são considerados um elemento-chave do melhor desempenho educacional, especialmente no caso de alunos de escolas em centros urbanos com resultados medíocres. Um professor de economia de Harvard, Roland G. Fryer Jr, colocou em prática essa ideia de incentivos destinando US$6,3 milhões a alunos de 261 escolas urbanas de produção predominantemente afro-americanos hispânica, provenientes de famílias de baixa renda. Diferentes esquemas de incentivos foram usados em diferentes cidades4. Vejamos alguns exemplos referidos por Sandel: "- Em Nova York, as escolas envolvidas pagavam US$ 25 a alunos da 4ª série que se saíssem bem em testes padronizados de avaliação. Os alunos da 7ª série podiam ganhar US$ 50 por teste. Esses ganhavam em media um total de US$ 231,55. - Em Washington, as escolas pagavam a alunos do ensino médio por comparecimento, bom comportamento e entrega dos trabalhos de casa. As crianças mais compenetradas podiam ganhar US$ 100 quinzenalmente. O aluno médio recebia cerca de US$ 40 nesse período e um total de US$ 532,85 ao longo do ano escolar. - Em Chicago, os alunos da 9ª série recebiam dinheiro pelas boas notas: US$50 por um A, US$ 35 por um B e US$20 por um C. O melhor aluno tinha uma arrecadação de US$ 1.875 durante o ano escolar. - Em Dallas, pagam US$ 2 aos alunos da 2ª série para cada livro que lerem. Para receber o dinheiro os alunos devem responder a um questionário computadorizado e provar que leram o livro."5 Michael Sandel observa que "esses pagamentos em dinheiro deram resultados variáveis. Em Nova York, a remuneração da garotada por boas notas nos testes em nada contribuía para melhorar seu desempenho acadêmico. O dinheiro em troca das boas notas em Chicago levou a melhores níveis de comparecimento, mas não melhorou os resultados dos testes padronizados. Em Washington, os pagamentos ajudaram alguns alunos (hispânicos, meninos e alunos com problemas comportamentais) a alcançar melhor desempenho de leitura. O dinheiro funcionou, sobretudo, com os alunos de 2ª. série em Dallas; as crianças que receberam US$ 2 por livro chegaram ao fim do ano com melhor nível de compreensão na leitura"6. Muito bem. Os economistas costumam dizer e sempre pretendem mostrar que as pessoas reagem a uma política de incentivos. Por que, então, não pagar para que uma criança ou um adolescente tire boas notas ou leia um livro? Embora certas crianças ou adolescentes possam sentir-se motivadas a ler livros pelo prazer da própria leitura e pelo aprendizado, com outras isso não acontece. Por que "não usar o dinheiro como um incentivo a mais?"7 Sandel responde do seguinte modo: "o mercado é um instrumento, mas não um instrumento inocente. O que começa como um mecanismo de mercado se torna norma de mercado. O motivo mais óbvio de preocupação é que o pagamento acostume as crianças a pensar na leitura de livros como uma forma de ganhar dinheiro e comprometa, sobrepuje ou corrompa o gosto da leitura pela leitura".8 Esses são apenas alguns exemplos de como o pensamento contemporâneo tem uma tendência enorme a reduzir tudo à oferta, preço, pagamento e em dinheiro. Talvez em alguns casos isso não seja um problema. O perigo é que, cada vez mais, os valores morais mais elevados acabem sendo substituídos pela simples ideia de troca de algo pelo dinheiro, gerando uma precificação do comportamento humano e fazendo com que as pessoas esquecem as virtudes e percam a generosidade (ou nunca conheçam o seu sentido). É isso. Algo para refletirmos nesse dia das crianças. __________ 1O que o dinheiro não compra - os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5ª. ed, 2013.   2Livro acima citado, p. 61. 3Idem, p. 62. 4"Financial Incentives and Student Achievemnent: Evidence from Randomized Trials" in Quarterly Journal of Economics, 126, nov. 2011. Apud Sandel, livro citado, p. 53. 5Idem, p. 54 6Idem, mesma p. 7Idem, p. 62 8Idem, mesma p.
Tenho lido várias matérias envolvendo a questão da cobrança e pagamento da taxa de corretagem na venda de imóveis feito por construtoras, assim como também da cobrança da taxa pelo "serviço de assessoria técnico-imobiliária", mais conhecida pela sigla SATI. Como se trata de uma questão típica de consumo e como há posições divergentes em torno do assunto, resolvi opinar. O imbróglio, como se sabe, envolve a cobrança feita pelas construtoras ao comprador do percentual pago ao corretor de imóveis que intermedeia a venda. O valor tem sido cobrado com ou sem aviso prévio e/ou com ou sem inserção no compromisso ou contrato de compra e venda. Além disso, a mesma sistemática de cobrança tem sido utilizada para exigir do comprador o pagamento de uma taxa pela tal assessoria SATI e, do mesmo modo, com ou sem aviso prévio e/ou com ou sem inserção no compromisso ou contrato de compra e venda. Os casos que envolvem cobrança de ambas as taxas sem aviso prévio e sem inserção em documentos de negociação eu deixarei de lado, dado o evidente abuso. Cuidarei dos demais, isto é, quando há prévio aviso e/ou inserção em documentos de negociação. Para tanto, farei um rápido apanhado das regras que envolvem o caso e vigentes no Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90-CDC). Contrato de Adesão Regulamentado expressamente no CDC, o chamado contrato de adesão tem esse nome pelo fato de que suas cláusulas são estipuladas unilateralmente pelo fornecedor, cabendo ao consumidor aquiescer a seus termos, aderindo a ele. Essa forma de contrato é típica das sociedades capitalistas, que gerou a utilização dos contratos-formulário, impressos com cláusulas prefixadas para regular a distribuição e venda dos produtos e serviços de massa. São contratos que acompanham a produção. Ambos - produção e contratos - são decididos unilateralmente e postos à disposição do consumidor, que, caso queira ou precise adquirir o produto ou o serviço oferecido, só tem como alternativa aderir às disposições pré-estipuladas. Daí não ter qualquer sentido falar-se em pacta sunt servanda, que pressupõe autonomia da vontade no contratar e no discutir o conteúdo das cláusulas. No contrato de adesão não há autonomia1. Ele está previsto no caput do artigo 54, que dispõe: "Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo." Cláusula abusiva Além disso, e também por causa disso, o CDC estabeleceu que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais abusivas, conforme retratado no seu artigo 51. Para aquilo que nos interessa, basta a leitura do inciso IV e do §1º da referida norma: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade; (...) § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual; III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso." Examinemos os pontos de relevo que afetam o tema em análise. A disposição da primeira parte do inciso IV aponta iniquidade, que é o oposto de equidade, literalmente2. Por isso é dispositivo redundante na proposição, que termina falando de equidade, algo que comentarei na sequência. Um dos conceitos estabelecidos na lei e que importa para o tema é o de desvantagem exagerada: é a própria norma do art. 51 que, no § 1º, define o conceito, ao regular o que entende por vantagem exagerada a favor do fornecedor. Anoto que a redação desse § 1º, desde logo, aponta seu caráter exemplificativo, por se utilizar da expressão "entre outros casos" e falar em presunção ("presume-se"). Trata-se de presunção relativa, que admite prova em contrário do fornecedor, que deve ser levada em consideração pelo magistrado no exame do caso concreto. Já a redação do inciso I do mesmo § 1º ensina que é exagerada a vantagem que ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence - nos vários subsistemas jurídicos. E como "sistema" de proteção ao consumidor há que entender todas as normas, além da lei 8.078, que atingem e regulam as relações de consumo, tais como a Lei de Economia Popular (lei 1.521/51), a Lei Delegada (lei 4/62), a lei dos Crimes Contra a Ordem Econômica (lei 8.137/90), a Lei de Plano e Seguro-Saúde (lei 9.656/98), dentre outras. E a onerosidade excessiva para o consumidor (inciso III) está ligada ao princípio da equivalência contratual, que há de ter vigência no cumprimento das regras contratuais. Importante também apontar que a segunda parte da regra do inciso IV diz que a cláusula é abusiva quando seja incompatível "com a boa-fé ou a equidade". O princípio da boa-fé, apesar de estar inserido no rol das cláusulas abusivas do art. 51, é verdadeira cláusula geral a ser observada em todos os contratos de consumo. Esse princípio vai exigir, portanto, sua verificação em todo e qualquer contrato, funcionando como determinação ao intérprete: "A aplicação da cláusula geral de boa-fé exige, do intérprete, uma nova postura, no sentido da substituição do raciocínio formalista, baseado na mera subsunção do fato à norma, pelo raciocínio teleológico ou finalístico na interpretação das normas jurídicas, com ênfase à finalidade que os postulados normativos procuram atingir"3 Dessa maneira, percebe-se que a cláusula geral de boa-fé permite que o juiz crie uma norma de conduta para o caso concreto, atendo-se sempre à realidade social, o que nos remete à questão da equidade, prevista na redação do final da norma. E, como a equidade é posta na condição de cláusula geral, funciona como princípio de igualdade contratual, determinando que o intérprete busque encontrar e manter as partes em equilíbrio na relação obrigacional estabelecida, com o fim de alcançar uma justiça contratual. Informação e oferta No presente assunto, há ainda uma questão que envolve a oferta e a informação que é, pelo que penso, um sofisma. Pergunto: para poder cobrar basta informar previamente? Respondo a seguir. Primeiramente, examinemos o que diz a Lei sobre a oferta. No regime da Lei 8078/90 toda oferta relativa a produtos e serviços vincula o fornecedor ofertante, obrigando-o ao cumprimento do que oferecer. É o que dispõe seu artigo 30, nesses termos: "Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado." Oferecida a mensagem, fica o fornecedor a ela vinculado, podendo o consumidor exigir seu cumprimento forçado nos termos do art. 354. Além disso, o caput do artigo 31 especifica quais e como devem ser as informações veiculadas, verbis: "Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidade, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores." No entanto, e respondendo à questão acima, digo que não é verdade que basta anunciar previamente para que a oferta tenha validade jurídica. Dou um exemplo simples: é muito comum que os estabelecimentos comerciais anunciem que não fazem trocas aos sábados. Trata-se de uma oferta negativa. Todavia, de há muito que se sabe que essa oferta é abusiva, pois há consumidores que somente podem comparecer ao estabelecimento aos sábados, tornando-as ilegítimas (além de claramente antipática). Dá-se o mesmo nas ofertas casadas ilegais. Não é por que elas estejam estabelecidas clara e previamente, que têm validade. (Na sequência abordo a questão da venda casada). Operação casada Há, ainda, nesse tema, uma outra prática ilegal relativa à venda casada, prática proibida pelo CDC, nesses termos: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;" Apesar disso, consigno, antes de prosseguir, que nem toda venda casada está proibida e até ao contrário: há várias permitidas e legítimas e algumas que somente podem ser oferecidas em conjunto. Dentre elas, cito o "pacote" de viagem oferecido por operadoras e agências de viagem e o comerciante que pode se negar a vender apenas a calça do terno, por motivos óbvios. Não é também proibido fazer ofertas do tipo "compre este e ganhe aquele". O mercado cria, desenvolve e oferece produtos e serviços que somente podem ser oferecidos em conjunto. Nesses casos, não há que se falar em operação casada, pois se trata de verdadeiros pacotes legais que não podem ser separados sem que haja uma violação de sua natureza. O que não pode o fornecedor fazer é impor a aquisição conjunta de produtos e serviços que tem características próprias de vendas isoladas, ainda que o preço global seja mais barato que a aquisição individual, sem oferecer a alternativa simultânea (ainda que mais cara) de aquisição isolada. A operação casada ilegal se dá quando o vendedor exige do consumidor que quer adquirir um produto que ele, obrigatoriamente, adquira outro que não precisaria (o mesmo se dá com os serviços). Algumas dessas operações são bem conhecidas. Dentre elas estão certas imposições feitas por bancos para abrir conta ou oferecer crédito, como, por exemplo, somente dar empréstimos se o consumidor fizer algum tipo de investimento. Conclusão provisória Por tudo quanto exposto até aqui, vê-se que a imposição de pagamento ao consumidor-comprador da taxa de corretagem e também da taxa SATI: a) viola o princípio da boa-fé objetiva, que determina a realização concreta da igualdade e equilíbrio (a justiça contratual); b) estando num contrato, trata-se de cláusula abusiva, nula de pleno direito, por implicar vantagem exagerada a favor do vendedor; c) oferecida como venda casada configura prática abusiva; d) ainda que informada previamente, não tem o condão de legitimar a cobrança. Custo da atividade pode ser repassado? Mas, antes de concluir, é preciso abordar outro ponto de vista: o daqueles que argumentam que o valor da taxa de corretagem, por fazer parte do custo da atividade da construtora, pode ser repassada ao consumidor-comprador. Esse foi o entendimento adotado, por exemplo, por Juizados Especiais de São Paulo5. No entanto, penso que o argumento não se sustenta, pelo seguinte: não é verdade que todo e qualquer custo pode ser repassado ao consumidor, de forma separada. Veja-se, por exemplo, o caso de um simples vendedor comissionado de uma loja de roupas. O estabelecimento comercial não pode cobrar o preço da camisa e acrescer o valor da comissão do vendedor, apesar disso ser custo de sua atividade. É apenas um exemplo de muitos outros, uma vez que, naturalmente, toda ação empresarial envolve uma série de custos típicos de cada uma e própria atividade. Na realidade, repassar o custo da corretagem ao consumidor-comprador é o mesmo que repassar ao preço de uma camisa a comissão do vendedor, como acima anotei. Trata-se de uma simples questão de formação do preço. O empresário pode fixá-lo em quanto quiser. Para tanto, ele usará como base seu custo de produção, tais como os salários dos empregados, os impostos em geral, o custo de aluguel e dos serviços necessários para o funcionamento do estabelecimento, tais como água, energia elétrica, gás etc., os juros que ele paga ao banco, quando toma empréstimo para capital de giro ou outro interesse, o preço de aquisição dos produtos quando se tratar de revenda, o preço dos insumos quando se trata de produção própria, etc. etc. Daí, quando uma construtora fixa o valor de um imóvel, já computou todos os custos da operação o que, obviamente, incluiu o custo da taxa de corretagem pela venda a ser feita, do mesmo modo como o lojista com seus vendedores, as administradoras de consórcios com seus operadores, as agências de viagens com seus agentes, as seguradoras com seus corretores etc. E incluiu também o custo das despesas com avaliações de documentos e assessoria financeira, a chamada taxa SATI. Os vendedores dizem que esse serviço é composto da análise da documentação do imóvel e dos compradores, de pesquisa feita perante os bancos, de orientação quanto a financiamento, de assessoria para assinatura dos contratos, etc. Ora, trata-se de serviço típico da própria atividade de venda do imóvel. Ele é prestado como forma de articular e possibilitar a venda ao consumidor, por intermédio dos representantes das construtoras e/ou vendedores, que aguardam os consumidores nos estandes ou mesmo nos escritórios. Do mesmo modo que a intermediação do corretor, esse tipo de serviço (feito diretamente pelo vendedor ou por terceiro) é típico da atividade e, seguindo o mesmo padrão acima apresentado, é parte integrante do custo do negócio. Envolve também o risco natural da operação a ser feita com o consumidor que se apresenta como comprador. Compõe, portanto, o custo básico embutido no preço do imóvel. Conclusão Muito bem. Dito isso, devo dizer, pelo que penso, conforme acima adiantei, que a taxa de corretagem não pode ser repassada ao consumidor-comprador nem por cláusula contratual nem por informação feita na oferta de venda. E, decorrente disso, não pode também ser imposta via operação casada. Penso que o destino é o mesmo em relação ao serviço de assessoria técnico-imobiliária (indicada pela sigla SATI). Jurisprudência O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem decidido nesse sentido. Cito como exemplo, e por todos, trechos de uma decisão da 7ª Câmara de Direito Privado6: "(...) a Apelante não teve liberdade sobre a contratação desses serviços (SATI e corretagem), tendo aparentemente sido informada do seu pagamento apenas após o fechamento do contrato de compra e venda do imóvel. A imposição das remunerações por esses serviços configura efetivamente "venda casada" (art. 39 I CDC) e também por essa razão devem os valores de SATI e corretagem serem reembolsados." "Concebendo-se "causa" como "a função econômico-social que caracteriza o tipo [contratual]" e que, "sendo diferente para cada tipo de negócio, serve para diferenciar um tipo de outro" (Maria Celina Bodin de Moraes, "A Causa do Contrato", civilistica.com, n. 4, ano 2, 2013, p. 8), entendo que as funções atribuídas ao SATI e a corretagem não se distinguem da mera representação da vendedora, descabendo remuneração autônoma." Quanto ao SATI, a vendedora diz, em contestação, que ele abrange "análise da documentação do imóvel, dos vendedores e dos compradores", "pesquisa junto aos bancos", "assessoria na assinatura do compromisso de venda e compra" e "orientação sobre as normas do SFH." "A prestadora do SATI, porém, encontrava-se no plantão de vendas a pedido da própria vendedora, circunstância que faz presumir que os documentos do imóvel e da vendedora já haviam sido analisados e que o verdadeiro interesse é da vendedora na análise dos documentos da compradora." "A pesquisa junto aos bancos igualmente interessa somente à vendedora, à medida que se torna credora da compradora. A 'assessoria na assinatura do compromisso de venda e compra' é o próprio objeto do negócio e equivale a tautologia, pois SATI é o acrônimo de serviço de assessoria técnica-imobiliária." "As orientações sobre o SFH tampouco justificam um negócio a parte, à medida que as regras do SFH são explicadas pelo próprio agente financiador, restando dispensável o serviço." "O SATI confunde-se, assim, com o mero atendimento de representantes da vendedora à compradora, não tendo causa distinta do negócio de compra e venda, o que solapa a causa de um negócio autônomo, com preço diferente." "Sobre a corretagem, pode-se dizer o mesmo. Da sua definição legal, depreende-se que a corretagem pressupõe a aproximação de partes do negócio. No caso dos autos, a Apelante vai ao encontro da vendedora, no plantão de vendas, o que dispensa a necessidade da corretagem e afasta a justificativa de cobrança de remuneração." No referido acórdão, o Relator Desembargador Luiz Antonio Costa enumera uma série de decisões das demais Câmaras da Primeira Subseção de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que consideram que a cobrança da SATI e da taxa de corretagem é abusiva e que transcrevo a seguir: "1ª Câm.: Apelação nº 0010430-78.2013.8.26.0576, Rel. Des. Claudio Godoy, j. em 14.01.2014; 2ª Câm.: Apelação nº 0011018-70.2011.8.26.0248, Rel. Des. José Carlos Ferreira Alves, j. em 21.01.2014; 3ª Câm.: Apelação nº 0025472-74.2012.8.26.0004, Rel. Des. Beretta da Silveira, j. em 21.01.2014; 4ª Câm.: Apelação nº 0001547-42.2008.8.26.0472, Rel. Des. Fábio Quadros, j. em 12.12.2013; 6ª Câm.: Apelação nº 0025273-51.2012.8.26.0554, Rel. Des. Fortes Barbosa. j. em 16.01.2014; 7ª Câm.: Apelação nº 0191817-04.2010.8.26.0100, Rel. Des. Walter Barone, j. em 30.10.2013; 8ª Câm.: Apelação nº 0036270-90.2013.8.26.0576, Rel. Des. Salles Rossi, j. em 18.12.2013; 9ª Câm.: Apelação nº 1007562-83.2013.8.26.0100, Rel. Des. Galdino Toledo Júnior, j. em 03.12.2013; 10ª Câm.: Apelação nº 0113205-18.2011.8.26.0100, Rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. em 26.11.2013." __________ 1Há, no CDC, uma sutil exceção, prevista na segunda parte da redação do inciso I do art. 51, que dispõe: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;". Para esses casos em que o consumidor seja uma pessoa jurídica, que disponha de departamento profissional - comercial, jurídico, financeiro etc. - que permita uma verdadeira negociação com o fornecedor em termos técnicos e jurídicos, pode ser firmado um típico contrato negociado com, inclusive, limitação da responsabilidade. Não comentarei esse ponto, pois não interessa ao tema deste artigo.   2"Iniquidade" vem do latim iniquatate, e "equidade" tem origem no latim aequitate (cf. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, cit., p. 948 e 675, respectivamente). 3Agathe Schmidt, Cláusula geral da boa-fé nas relações de consumo, Revista Direito do Consumidor, 17:156. 4"Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos." 5Conf. Migalhas de 27/8/14. 6Apelação 1035551-64.2013.8.26.0100 da comarca de São Paulo. Relator Desembargador Luiz Antonio Costa, j.19-8-2014, publ. 21-8-2014, v.u.
Na semana passada, à guisa de mostrar a experiência paradoxal vivida pelas pessoas em relação à violência eu disse, dentre outras coisas, que sua transformação numa espécie de produto, criado, embalado e vendido pelo mercado, aliado a trabalhos de marketing de primeira linha fazem dela algo recebido com naturalidade. E que, apresentada numa estética que a banaliza, gera uma espécie de entorpecimento, fazendo com que a morte não natural, causada por agressões de todo tipo, incluindo as guerras, não seja mais vista em todo seu drama. As pessoas acabam recebendo a informação sobre a violência e/ou assistindo-a em imagens, como se fosse um filme ou uma encenação ou, então, um simples produto, que pode ser consumido. Citei o entretenimento das lutas de vale-tudo, realmente violentas, e seu sistema de promoções com fotos de rostos retorcidos por socos; sangue escorrendo pelos narizes, bocas e bochechas; estrangulamentos, chutes e joelhadas; socos violentos diretos na cara etc. numa espécie de produto cuja violência explícita parece atrair o público alvo. Mas, no cinema, isso pode ser mostrado explicitamente com o argumento de que se trata de ficção. E, de fato, quando lá aparecem socos, pontapés, vítimas esfaqueadas, esquartejadas etc. é tudo truque. Não só em filmes como o do Diretor Tarantino, mas numa série de outros que explícita ou implicitamente vendem a violência como diversão. Morte, sangue, vísceras e muita crueldade fazem um enorme sucesso junto ao público. Sei que a violência, de um modo ou de outro, sempre esteve presente no cinema e na tevê, inclusive, nos desenhos animados, mas isso apenas confirma o processo de naturalização que foi se desenvolvendo. É como se a violência, via cinema, sofresse já um banho civilizatório. No mundo real, alguns atos de violência contra a pessoa chamam mais a atenção do que outros. Dizimar vilas matando homens, mulheres e crianças, mediante bombas lançadas de aviões ultra modernos com imagens transmitidas via tevê e/ou web passou a ser algo rotineiro. As imagens, às vezes, são muito parecidas com as de um verdadeiro vídeo game. De outro lado, usando esse mesmo modo de mostrar ao mundo a morte, recentemente, o autointitulado Estado Islâmico horrorizou a todos mostrando a execução por decapitação de jornalistas ocidentais. São tantas as cenas de violência que realmente as pessoas ficam atordoadas. Lembro que, no ocidente, em alguns lugares, a morte recebeu, de fato, essa embalagem civilizatória, se é que se pode dar esse nome a certas atrocidades cometidas em nome da lei. Refiro a execução de condenados à morte em alguns Estados norte-americanos. No mês de agosto passado, Joseph Wood, condenado por matar em 1989 sua ex-namorada e o pai dela, agonizou durante quase duas horas após receber uma injeção letal durante uma execução no Arizona, sudoeste dos Estados Unidos1. No caso da execução naquele Estado e em outros por lá, a morte "benévola" é planejada e executada mediante a aplicação de uma injeção contendo uma mistura de duas drogas: midazolam combinada com hidromorfona, um derivado da morfina. Mas, no caso referido, o coquetel falhou: Joseph Wood lutou para respirar por cerca de uma hora e quarenta minutos antes de ser declarado morto. A execução de sua pena de morte nos EUA não foi feita em praça pública, mas pôde ser assistida por pessoas convidadas. E, na sala, havia jornalistas que se horrorizaram com a crueldade da medida, denunciando-a rapidamente, gerando reação dos que são contra a pena de morte. Com isso, acabou vindo a público o trecho do voto dissidente do juiz que havia sido contra a execução via injeção com medicamentos: Alex Kozinski, que é Presidente do Tribunal de Recursos da Costa Oeste dos EUA, disse que usar drogas para matar é um grande erro, porque elas foram desenvolvidas para curar2. Para executar pessoas, os estados que mantêm a pena de morte deveriam usar instrumentos feitos especificamente para matar. Ironicamente, para este momento da história, o magistrado havia sugerido a guilhotina como mais eficaz e menos cruel: "A guilhotina é, provavelmente, o melhor instrumento, embora pareça inconsistente com o etos nacional"; "Se querem matar, devem abandonar esse caminho equivocado (do uso de drogas) e retornar a métodos de execução mais primitivos, mas infalíveis3", que não causariam sofrimento ao executado. "O uso de drogas, criadas para ajudar indivíduos com necessidades médicas, é um esforço equivocado para mascarar a brutalidade das execuções, para que pareçam um acontecimento tranquilo e sereno - como algo que qualquer um de nós pode experimentar em nossos momentos finais", escreveu Kozinski4. Mas não há nada que transforme uma execução em um ato tranquilo e sereno, ele diz. "Nem poderia haver. Assim, se nós, como uma sociedade, queremos realizar execuções, deveríamos estar prontos para enfrentar o fato de que o estado está cometendo uma brutalidade horrenda em nosso nome"5. É isso, então: a violência relativa ao ser humano acabou ganhando contornos civilizatórios e por causa de sua multiplicação e banalização, tornou-se um fato comum que, talvez, já não espante tanto, ainda que, de quando em vez, seja mostrada com algum ou muito escândalo pela mídia; em contrapartida, foi transformada em produto de consumo, vendida e comprada como um passa tempo, um momento de lazer. __________ 1Colhido em Folha de S.Paulo. 2Clique aqui. 3Conf. Mesma matéria da nota anterior 4Idem, nota anterior. 5Mesma nota.