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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Por uma cidade de São Paulo linda e inspiradora

Assisti na tevê há cerca de dois dias um debate sobre as pichações na cidade de São Paulo. Ouvi com espanto um arquiteto e urbanista defende-las e dizendo que se tratava de uma forma de expressão política de pessoas que viviam na periferia da cidade. E que, então, a prefeitura não devia se preocupar com a limpeza, mas com a "inclusão" dos vândalos (confesso que, realmente, não consegui entender o que ele quis dizer com a inclusão desse tipo de pessoa). Porém, o destino não estava ao lado do urbanista. Logo na madrugada do dia seguinte (25 de janeiro) um pichador foi preso ao pintar um monumento de bronze em frente à Catedral da Sé, no centro da cidade. Quem era o pichador? Morador da periferia? Não. Trata-se do filho de um embaixador, que reside numa casa de luxo no Real Park1. A liberdade de expressão é uma garantia constitucional, mas chega a ser surpreendente o que se ouve em função dela. Nós que somos da área jurídica, acabamos sofrendo murros no estômago advindos de certas falas. Como é que alguém pode ser a favor de pichações? Tanto de prédios públicos quanto privados? Aquelas letras e rabiscos servem apenas para destruir o patrimônio de terceiros ou dos bens públicos e para deixar a cidade feia, suja. Anoto que não estou fazendo nenhuma consideração a respeito das pinturas feitas recentemente em paredes pela prefeitura que, ao que dizem, apagaram algumas obras, pois não tenho elementos para tanto. E, naturalmente, sou a favor dos murais, das pinturas artísticas e do grafitismo que estão espalhados pela cidade. Pichação é outra coisa: é pura e tão somente uma violação de propriedade alheia. Ademais, para fazer algum tipo de intervenção política é preciso seguir as regras, sem vilipêndio de patrimônio alheio e comunicando alguma coisa, transmitindo algum pensamento. Mas deixo o feio de lado - já há coisa ruim demais nos noticiários - para falar de coisas boas: São Paulo é uma cidade maravilhosa; tem os melhores serviços do país e que estão dentre os melhores do mundo; seus restaurantes só têm competidores em grandes metrópoles; a Cultura por aqui é excepcional; os centros de compras são incríveis; temos os melhores hospitais e temos universidades de ponta; e mais um longo etc. de qualidades. Sei que há outras cidades brasileiras belas e exemplares e que os brasileiros são mesmo batalhadores e trabalhadores. Mas, deixemos consignado em homenagem aos 463 anos da Capital Paulista: a população paulistana é trabalhadora de causar inspiração e inveja em todos os lugares do mundo e São Paulo é a locomotiva da nação. Em 2004, em homenagem aos 450 anos da cidade, publiquei um livro que está esgotado: "Aconteceu em Sampa". Lá coloquei algumas poesias em homenagem à nossa querida Sampa. Transcrevo a primeira delas aqui: Nosso amor Você dança com estranhosBriga com os amigosAquele bêbado cospe na sua esquinaVocê parece que nem liga, menina Que que há?O que você tem?Tá doente?Sente falta de alguém? Tá certo que está idosaMas, és bela e formosa Eu sei que às vezes se cansaNão, você não é mais criança Um dia a tempestadeN'outro a bonançaVai, vai minha cidadePerdoa quem te cansa Perdoa quem te sujaVocê, que é pura esperançaDo dia de amanhãSurgir verdeSair dos becos da amarguraDeixar pra lá a rua escuraE dar água a quem tem sede Vem, aquece quem te humilhaAbraça teus pernetasVocê, que sempre partilhaTeus leitos, tuas sarjetas Há os que se orgulham de tiHá os que te maltratamAcima de tudo, caia em siPois há os que te idolatram Seja plenaSeja belaSeja forte, serenaVerde-amarelaSeja infinita na janela,Olhes dentro, vai, tire a tampaVeja como te amam, Sampa __________________ 1 - Acesse aqui.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

O comportamento social entre dois mundos

Este início de ano no Brasil está sendo tão surreal (ou, talvez, apenas e tão somente "real"?) que não há como não tentar pensar um pouco no assunto. É verdade que muito material foi publicado e está disponível, embora as alternativas de solução para os problemas não sejam tão claras. Um dos aspectos que chamam a atenção é o do comportamento das pessoas, não só da ira daqueles que pedem mais sangue como  o de uma espécie de apatia que atinge uma outra parte. É sobre esse último aspecto do comportamento social que trago alguns pontos para nossa reflexão. Meu amigo Outrem Ego perguntou: "Diante da barbárie, o que fazer? O que dizer?" e disse que estava espantado com as reações: "A imagem de cabeças humanas sendo arrumadas em fileiras como se fossem vasos deveria chocar tanto que seria capaz de gerar uma comoção ou uma paralisia. Mas, não. O limite do possível ou do inacreditável esticou-se a tal ponto que parece que nada mais choca verdadeiramente". Ele observou que as pessoas reagem com ferocidade ou apatia, pois a vida continua e as alternativas de ação não são muito amplas nem conhecidas. Muitos pontos podem ser abordados. Vejamos aquele que envolve as comunicações dos dias que correm. Na sociedade capitalista contemporânea da imagem televisiva e do marketing de massas, tudo foi edulcorado com uma plasticidade que acabou por camuflar a realidade. Os fatos reais na época da comunicação global são percebidos quase que "literalmente" como virtuais. E também quase tudo se massificou, homogenizou-se e banalizou-se. Acostumamo-nos com a morte diária de pessoas por crimes que parecem impossíveis de ser evitados, por acidentes de trânsito causados por irresponsáveis, com a corrupção em amplos setores da sociedade,  a começar pelo poder político, com guerras sem fim no mundo afora, com imagens de atrocidades múltiplas, com a imigração em massa dos refugiados de guerra, com catástrofes climáticas em todos os lugares do globo, com adultos mendigando comida e dinheiro nas esquinas, com crianças abandonadas vivendo em sarjetas, com problemas de desemprego, miséria etc. Por outro lado, afora o noticiário escandaloso ou das tragédias humanas e ambientais, a mídia televisiva, ao mesmo tempo (e de forma paradoxal), mostra-nos uma realidade diferente. A publicidade, que a mantém, apresenta sem parar um mundo perfeito, com homens e mulheres lindos, produtos e serviços perfeitos, sonhos possíveis de serem realizados. Podemos frequentar as melhores escolas, os melhores restaurantes, os melhores estabelecimentos comerciais, os melhores shopping centers; podemos também ter contas nos melhores bancos, que nos propiciam as menores taxas de juros nos empréstimos, os maiores rendimentos nas aplicações, o melhor atendimento pessoal etc. Aliás, "todos" são os melhores, de tal modo que não há maus fornecedores. No mundo ideal da propaganda comercial (e também da propaganda política), tudo funciona. Vivemos, pois, entre dois mundos: o real, que nos atordoa com sua dura violência diária e o ideal, que nos oferece a esperança de uma vida melhor. E o que se observa em boa parte dos indivíduos é um enorme desânimo, uma espécie de letargia imposta pela impossibilidade de, de um lado, entender o mundo e, de outro, um "não saber o que fazer" para nele atuar visando à sua transformação para melhorá-lo. E, conforme dito por meu amigo, como, apesar de tudo, a vida continua, observando as pessoas divertindo-se em passeios, parques, teatros, restaurantes e lojas, parece que elas fazem o que querem. Consomem e são felizes, especialmente aqueles que detêm poder aquisitivo. Mas, há mazelas: olhando-se de perto algumas pessoas, descobre-se, muitas vezes, uma exagerada individualidade egoística, uma solidão, um afastamento entre as pessoas; há um crescimento enorme da intolerância; um endurecimento dos corações; um aumento do desprezo e um certo pouco-caso, como se nada fosse "conosco" ("não é comigo" e "não tenho nada a ver com isso"). Estabelece-se, assim, o também paradoxo da esperança prometida, sentida em conjunto com a esperança perdida. Queremos ser felizes, mas como só podemos realizar essa felicidade pela via do mercado, nos frustramos, pois a verdade é que, comprar, cada vez mais, bens materiais não preencherá o vazio de nossas almas. Quem procura felicidade no mercado morrerá frustrado. Trava-se uma luta surda e, às vezes, nem tão surda pelo emprego, pelo cargo, pela posse de objetos. Será mesmo que, como se diz, nesta sociedade do espetáculo tudo se assemelha? Confundimos o mundo das imagens televisivas e cinematográficas com as do mundo real? A violência das telas é apenas a continuidade da violência da vida concreta? Após olhar cabeças (humanas e reais) rolando, basta desligar a tevê ou o iphone e ir jantar? Ou dormir? Aliás, por falar em dormir, durma-se com um barulho desses.
No último dia 9, faleceu, aos 91 anos, Zygmunt Bauman, um dos maiores pensadores contemporâneos, que foi capaz de fazer uma leitura especial e profunda do comportamento das pessoas na sociedade dos séculos XX e XXI. Em homenagem ao grande professor polonês, radicado na Inglaterra, republico um artigo aqui apresentado em 9/4/15. Segue abaixo. *** Da modernidade líquida para a vida gasosa. Meu amigo Outrem Ego viu que eu citei o sociólogo polonês Zygmunt Bauman na coluna da semana passada e, como conhece o trabalho por ele publicado, disse-me que andava com saudade das coisas sólidas de antigamente, que, aliás, não são tão antigas assim. No final do ano passado ele já reclamara do fechamento das locadoras de vídeos, que praticamente não mais existem: "Um dos passeios mais gostosos de fazer era ir sozinho ou com um amigo, o namorado, a namorada, o marido a esposa, os filhos ou até mesmo toda a família a uma locadora de vídeos para escolher um filme ou mais, para depois assistir em casa. Era agradável, lúdico, instrutivo. E interativo. Encontrávamos outras pessoas, trocávamos experiências e opiniões sobre os filmes já vistos, dávamos dicas e, diante de uma enorme quantidade de opções, escolhíamos com carinho e sem pressa". "Pressa", disse eu na oportunidade, "Essa pressa que, de tão rápida, tão fugaz, nos consome sem que percebamos..." Voltando ao sociólogo, meu amigo lembrou da questão da calma, do tempo de curtir a vida de maneira mais lenta: "Bateu uma nostalgia", disse e depois contou o seguinte: "Sabem, tornamo-nos uma sociedade de fotógrafos. Todo mundo tira foto o tempo todo de tudo, sem parar e, rapidamente... Sou de um tempo em que isso era muito diferente, gostoso, interessante e sólido - para usar a teoria do sociólogo. E, olha, amigo, esse tempo não vai muito longe. É de apenas mais ou menos uns trinta anos...". Ele fechou os olhos, como que retornando no tempo, e depois prosseguiu: "Lembro muito bem da primeira vez que minha mulher e eu fomos à Europa. Foi na década de oitenta. Um dos apetrechos mais importantes para levarmos na mala (de mão) era uma máquina fotográfica. E, naturalmente, junto dela alguns rolinhos de filmes contendo doze, vinte e quatro ou trinta e seis poses. Naquela viagem levamos dois rolos de cada. (Aliás, não era barato). Então, fazendo as contas, poderíamos tirar... Cento e quarenta e quatro fotos. Veja bem, viajamos quase trinta dias e podíamos tirar apenas um pouco mais de cem fotos, cerca de quatro ou cinco fotos por dia". "Isso gerava uma responsabilidade: nós tínhamos que escolher o lugar para bater, deveríamos saber se valia a pena tirar naquele momento do dia ou da noite (com flash que se acoplava na máquina); teríamos que decidir se tirávamos de uma igreja ou de um museu etc. E não só: precisávamos caprichar para não cortar parte da paisagem e quando pedíamos para alguém tirar nossa foto juntos, torcíamos para que ele não cortasse nossas cabeças" "A viagem enriquecia-se com as próprias fotos que exigia nossa concentração e gerava desde logo uma emoção. E quando voltávamos, então?""Lembro bem dessa primeira viagem e também de outras posteriores da mesma época. Levei os rolos à loja para fazer a revelação, que demorava alguns dias. Ficávamos na expectativa: será que saíram todas? Algumas ficaram escuras, opacas, tremidas? Será que queimaram? Afinal, cortaram ou não nossas cabeças?" "Era algo que nos deixava um pouco tensos é verdade, mas não era desagradável, especialmente porque na maior parte das vezes as fotos saiam bem" "E, claro, como iríamos aguardar algum tempo para ver as fotos e elas eram tão importantes, pois refletiam a viagem, os lugares conhecidos, as experiência vividas, nós convidávamos parentes e amigos para irem em casa ver. Depois, colocávamos tudo num álbum que, de vez em quando, folheávamos" "Mas, hoje, os jovens nem sabem o que é isso. E a experiência da foto é efêmera e momentânea. Numa viagem de uma semana, a pessoa tira quinhentas fotos ou mais. Bate várias do mesmo lugar e da mesma pose. Tira, olha uma vez e nunca mais vê. Numa simples festa de aniversário em casa, as pessoas tiram centenas de fotos, muitas idênticas e cometem o mesmo pecado: olham uma vez, exatamente logo após tirar. Depois, esquecem. Sei que há pessoas que guardam algumas, mas é muito pouco em termos de experiência" "Ah, sei, esqueci das redes sociais... Tira-se a foto, posta-se na rede e ela vai ser vista... Muitas de si mesmo! As redes estão repletas de fotos sem história, apenas do imediato... A solidez se foi meu caro amigo!" Tive que concordar com ele, eu que tenho a mesma experiência de fotos de uma época que se foi. E vejo-me obrigado a retornar a Zygmunt Bauman, que se tornou famoso em grande medida por apresentar ao público o seu conceito de "estado líquido" da sociedade contemporânea. Em obras como Modernidade Líquida (2000), Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos (2003) Vida líquida (2005), Medo líquido(2006) e Tempos líquidos: viver na idade da incerteza (2007), ele mostra a vida num tempo de incertezas, isto é, tempos de estados líquidos em oposição à solidez representada pelos estados de certeza, algo do passado. O autor mostra que nesta nossa sociedade moderna, isto é, líquida, as condições de atuação das pessoas - leia-se: de consumidores - mudam antes que suas formas se consolidem. Nada é feito para durar. Vingou uma espécie de vida temporária, vivida em condições de incerteza constante. De fato, na vida cotidiana percebe-se uma espécie de ânsia por devorar, suprimir, trocar, extinguir, modificar incessantemente. Tudo se fragmenta e se altera. Aquele friozinho na barriga para saber se uma foto tirada com tanto carinho saiu ou não, foi substituída por uma ansiedade que torna tudo imediato, que devora nossa paciência, nossa capacidade de espera. Meu amigo lembrou do micro-ondas: "É prático e quase todo mundo conhece, sabe usar e usa de fato. Pergunto: você já se pegou ansioso aguardando que passasse os dois minutos programados para aquecer alguma coisa? Não é incomum que nós marquemos um minuto e desliguemos alguns segundos antes. Será que nós perdemos a capacidade de esperar um minuto que seja?" Tive de concordar mais uma vez. Caro leitor, tentando ir além do que disse o pensador polonês, arrisco dizer que a sociedade capitalista chegou a, digamos, um estágio gasoso. Nem mais líquida é. A liquidez apesar de fluída, ainda é palpável. E o líquido de algum modo se amolda, como faz o rio que abraça suas margens, que toma a forma do objeto em que está, ainda que possa ser derramado e escorrer. A água se nos escapa por dentre os dedos, mas ainda podemos retê-la na pia, na banheira, no copo. Esse nosso estado atual parece gasoso, parece evaporar e desaparecer no ar atmosférico que com ele se confunde. Talvez forme imagens no céu, como nuvens que desenham animais ou plantas. Mas, essas imagens estão distante, são fugidias e logo desaparecem. É isso? Então, pergunto: por que há de ser tudo imediato, virtual e on line? Porque é que estamos correndo tanto? Tudo que temos é ilusório, passageiro? Talvez precisemos parar para pensar num novo modelo de curtir a vida. Num novo modo de sermos felizes. Num passo mais lento, com mais calma e mais concretamente.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A amplitude da coisa julgada na Ação Coletiva

A questão da amplitude da coisa julgada na Ação Coletiva vem sendo discutida há muitos anos. No âmbito do Poder Judiciário, o entendimento era oscilante sobre o tema: ora aceitava a abrangência nacional, ora a restringia. A dúvida estabelecida a respeito da abrangência da coisa julgada na ação coletiva surgiu a partir da inusitada modificação do texto do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública (LACP - lei 7.347, de 24/7/85) que, a partir de setembro de 1997, passou a ter a seguinte redação: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova". Essa modificação legal, se aplicada, restringiria os efeitos da sentença coletiva aos limites territoriais do Tribunal que proferiu a sentença. Ou seja, uma decisão dada por um juiz no Estado de São Paulo, só valeria nesse Estado. Mas, no último dia 30 de novembro, foi publicada uma decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que definiu que a sentença de uma ação civil pública (ACP) tem abrangência nacional e não pode ser limitada ao Estado onde o processo foi julgado. Essa decisão atendeu a um recurso apresentado pelo Idec em uma ação sobre financiamento habitacional, que envolve as principais instituições financeiras do país1. Como já tive oportunidade de referir, a questão da amplitude da coisa julgada na Ação Coletiva tem relação direta com a extensão do dano: se este é nacional, a amplitude também é. Não teria nenhum sentido que, por exemplo, consumidores paulistas não sejam violados, mas se permita que o mesmo ato abusivo atinja consumidores de outros Estados-membros2. Os que pensam diferente argumentam que seria "inadmissível que sentença com trânsito em julgado de pequena comarca do interior desse imenso Brasil possa produzir efeitos sobre todo o território nacional". Mas, a meu ver, sem qualquer razão. Todos sabem que, por exemplo, mesmo a sentença de falência de uma empresa (grande ou pequena, não importa), proferida numa pequena cidade do interior do país, faz efeito em todo o território nacional. E mais: se uma indústria de medicamentos com sede numa pequena cidade comercializa remédio que gera a morte de pessoas, todos esperam que a sentença proferida pelo Juiz naquela pequena localidade possa impedir a comercialização em todo o país. Não teria sentido algum salvar a vida das pessoas numa cidade ou Estado e permitir conscientemente a morte de outras nos demais lugares. Isso feriria o princípio da racionalidade e da razoabilidade do sistema jurídico constitucional e, no caso, o superprincípio da dignidade da pessoa humana. A verdade é que, como bem decidiu o STJ, o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública não tem como vingar no sistema jurídico constitucional brasileiro, uma vez que está em plena contradição com as normas e princípios do Código de Defesa do Consumidor. Aliás, ele contradiz a própria estrutura da LACP, enquanto o Código de Defesa do Consumidor é firme, claro e coerente ao dizer que os efeitos são erga omnes e, pois, estendem-se a todo o território nacional, gerando conteúdo formal adequado e condizente com os princípios e normas constitucionais e para além dos limites de competência territorial do órgão prolator da decisão. __________ 1 Decisão.   2 Ver, por exemplo, meu Comentários a Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 8ª.edição, 2015, pág. 987 e segs.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

O comércio eletrônico e o Direito do Consumidor

Eu aproveito o embalo da última edição da Black Friday, para cuidar do comércio eletrônico, meio que certamente foi muito utilizado pelos consumidores para fazer as compras. Não tratarei de fraudes, pois os veículos de comunicação se encarregaram do assunto, assim como os órgãos públicos e as entidades privadas de defesa do consumidor. Aponto a seguir, para lembrar, as regras vigentes do CDC para as operações via web e também as do Decreto Presidencial que regulamentou o comércio eletrônico. O comércio eletrônico Com efeito, o decreto 7.962, de 15 de março de 2013, fixou uma série de regras para o comércio eletrônico. Direitos básicos que já estavam fixados no CDC O art. 1º do Decreto deixa claro que são direitos dos consumidores na contratação de compras via Internet: a)  O fornecimento de informações claras a respeito do produto, do serviço e do fornecedor; b)  O atendimento facilitado ao consumidor; e c)  O respeito ao direito de arrependimento. São determinações desnecessárias, eis que tudo isso e muito mais está estabelecido no CDC incontestavelmente. De todo modo, ajuda a fixar as determinações. A oferta eletrônica O art. 2º do Decreto determina que os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações: a) O nome empresarial e o número de inscrição do fornecedor no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda (CNPJ); b) O endereço físico e eletrônico e demais informações necessárias para sua localização e contato; c) As características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; d) A discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; e) As condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e f) Informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta. Garantia de atendimento facilitado ao consumidor O decreto determina que, para garantir o atendimento facilitado ao consumidor, o fornecedor deverá: a) apresentar um sumário do contrato antes da contratação, com as informações necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor, enfatizadas as cláusulas que limitem direitos. Não nos esqueçamos da regra do § 4º do art. 54 do CDC, que determina que as cláusulas que implicarem limitação do direito do consumidor devem ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão, e que o art. 46 diz que os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. b) fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e correção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da contratação; c) confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta; d) disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua conservação e reprodução, imediatamente após a contratação; e) manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato; f) confirmar imediatamente o recebimento das demandas do consumidor pelo mesmo meio empregado por ele; g) utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para tratamento de dados do consumidor. Anoto que o fornecedor tem cinco dias para encaminhar resposta ao consumidor sobre as demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato  Desistência do negócio: prazo de 7 dias O CDC estabeleceu o direito de desistência a favor do consumidor. A intenção da lei é proteger o consumidor nesse tipo de transação para evitar compras por impulso ou efetuadas sob forte influência da publicidade ou do pessoal do telemarketing sem que o produto esteja sendo visto de perto ou o serviço possa ser testado. Esse prazo garantido pela lei é de sete dias e chama-se prazo de reflexão. Se nesses sete dias o consumidor se arrepender da compra, pode desistir pura e simplesmente. O arrependimento não precisa ser justificado. Não é preciso dar qualquer satisfação. Basta desistir. A contagem do prazo dos sete dias inicia-se quando do recebimento do produto. Existem fornecedores que oferecem prazos maiores de arrependimento: dez, quinze e até trinta dias. Nesses casos, o prazo de reflexão fica automaticamente ampliado, conforme for a oferta. E, visando dar eficácia ao contido no art. 49, o decreto 7.962 referido trouxe para o sistema uma série de outras determinações específicas. Numa delas (art. 5º "caput"), reforça que o fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor. E n'outra (§ 1º do mesmo art. 5º) disciplina aquilo que já estava inserido como garantia no CDC: que o consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados. Uma boa novidade trazida pelo Decreto é a determinação de que o fornecedor envie ao consumidor a confirmação do recebimento da desistência imediatamente após a manifestação do arrependimento (§ 4º, art. 5º).  Forma de pagamento não interfere no prazo A forma de pagamento não tem nenhuma implicação com o direito de arrependimento. Não importa como o pagamento do preço será feito: à vista ou parcelado com cartão de crédito; a prazo através de boletos ou avisos bancários; por intermédio de cheque contra a entrega da mercadoria; no caixa do posto dos correios; após a prestação de serviço ou mensalmente, trimensalmente etc. Em todos esses casos ou em qualquer outro, a desistência se operará da mesma maneira.  Devolução do que foi pago Feita a desistência, qualquer importância que eventualmente já tenha sido paga (entrada, adiantamento, desconto do cheque, pagamento com cartão etc.) deve ser devolvida em valores atualizados. Se, por exemplo, foi feita a autorização para débitos parcelados no cartão de crédito e apenas o primeiro (do ato da compra) tenha sido lançado, este tem que ser devolvido em dinheiro ou lançado como crédito no cartão e os demais têm que ser cancelados pela vendedora junto à administradora do cartão de crédito. Por fim, lembro que a norma diz que o exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor (§ 2º do art. 5º); e que o exercício desse direito deve ser comunicado imediatamente pelo fornecedor à administradora do cartão de crédito, banco ou instituição financeira, para que: a) a transação não seja lançada na fatura ou conta do consumidor; ou b) que seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura ou conta já tenha sido realizado (§ 3º e incisos I e II do mesmo art. 5º).
Já tive oportunidade de lembrar que candidatos em eleições seguem o modelo típico da sociedade capitalista: são pensados e produzidos do mesmo modo que os produtos que os consumidores encontram nas prateleiras de supermercados e lojas de shopping centers. E o candidato é apresentado ao eleitor dentro da lógica da oferta e da publicidade à disposição dos partidos. Aliás, as campanhas contratam os melhores publicitários para montar a propaganda. Até a embalagem é bem estudada: cortes de cabelo, roupas, maquiagem, postura etc., tudo é muito bem arquitetado. E o que sai de dentro da embalagem? As falas. São planejadas, discutidas, ensaiadas, muito antes de serem pronunciadas, de tal modo que possam atingir os ouvidos, corações e mentes do público alvo (o eleitor). Assim, pronto o produto (candidato), ele é entregue ao mercado de consumo (público alvo, imprensa, organismos institucionais etc.) como algo a ser comprado num dia certo, o das eleições. São produtos caros, como se sabe. Por exemplo, a campanha da candidata democrata Hillary Clinton recebeu cerca de US$ 687 milhões (ou R$ 2,2 bilhões). No caso do candidato republicano, Donald Trump, sua campanha levantou cerca de US$ 307 milhões (R$ 982 milhões)1. Esse enorme montante foi gasto para promover os "produtos" candidatos. É mesmo possível comparar empresas com partidos políticos no que diz respeito a seus produtos. O modo como a oferta é feita, como disse, segue modelos muito parecidos até no que diz respeito à maquiagem das informações. Se bem que, devemos admitir, os empresários mentem muito menos que os políticos. Para sorte dos consumidores e do mercado, as promessas que envolvem os produtos e os serviços são muito mais sinceras que as promessas de campanhas. Para produtos e serviços, o Código de Defesa do Consumidor - e várias leis em outros lugares também - proíbe a publicidade enganosa e a abusiva. Quem sabe não ajudasse o eleitor a existência de uma lei similar para as campanhas políticas... Mas quero mostrar um paradoxo no caso da eleição presidencial norte-americana. Pelo que se percebe do noticiário, existe uma enorme torcida para que o presidente eleito, Donald Trump, desminta algumas de suas propostas de campanha. Ou seja, há uma esperança - um tanto estranha - de que ele tenha agido exatamente como os demais candidatos tradicionais e, no exercício do poder, deixe de cumprir o que prometeu. "Tomara que ele tenha mentido", é o pensamento que está por detrás dessa expectativa. Ou, como disse nosso ministro das Relações Exteriores, José Serra, a respeito: "Treino é treino, jogo é jogo"2. E, nas análises já feitas sobre a derrota da candidata democrata, uma indicação é a de que muitos americanos simplesmente deixaram de votar, isto é, não "compraram" os produtos que estavam sendo oferecidos, o que teria favorecido ao candidato republicano. Esse fenômeno também apareceu nas recentes eleições municipais no Brasil: o índice de abstenção e de votos nulos foi altíssimo, a mostrar o desinteresse dos eleitores. De fato, se o eleitor (ou o consumidor) não acredita na oferta nem gosta do produto, deixam de votar (ou comprar). A diferença nesse aspecto, no entanto, é que, quando o consumidor não compra um produto, este fica na prateleira e pode dar prejuízos para o fornecedor. Mas, quando o eleitor deixa de votar, o resultado pode surpreender, como se viu nas eleições presidenciais americanas, com consequências imprevisíveis para a sociedade. __________ 1 Quanto custam as eleições nos EUA e como elas se comparam com outros países.   2 'Treino é treino, jogo é jogo', diz Serra sobre eleição de Trump nos EUA.
quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Invasões, bom senso e democracia

Hoje fujo um pouco do tema do consumidor. Falarei de invasões (se bem que, se quisesse, eu poderia abordar a "invasão" como produto de consumo, na medida em que seus agentes seguem a ideia de organização unilateral, da oferta e da publicidade, com cartazes, slogans, etc., modelos típicos do capitalismo contemporâneo). Mas, sem entrar propriamente no mérito das invasões e ocupações especialmente nas escolas, falo delas a partir de uma invasão da qual participei como testemunha nos tempos da ditadura. Com efeito, no dia 22 de setembro de 1977, o prédio sede da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), na Rua Monte Alegre, nas Perdizes, foi invadido por policiais militares e também civis, chefiados pelo então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o coronel Erasmo Dias. Naquela ocasião organizava-se na PUC um encontro nacional dos estudantes visando restabelecer a UNE - União Nacional dos Estudantes, que estava proibida pelo regime militar. Durante a invasão, os policiais atacaram estudantes e professores com cassetetes e bombas de gás. Vários estudantes foram feridos, pisoteados e queimados. Quase mil estudantes foram presos e conduzidos em ônibus da prefeitura para o Batalhão Tobias de Aguiar e também para o DOPS - Departamento de Ordem Política e Social. Na manhã seguinte, o então cardeal-arcebispo e Grão-Chanceler da PUC/SP, Dom Paulo Evaristo Arns, ao saber dos fatos, fez uma manifestação que se tornou famosa: "Na PUC, só se entra prestando exame vestibular. E para ajudar o povo, não para destruir as coisas". Eu estava lá. Cursava o 3º ano do curso de Direito. Dez anos depois, precisamente no dia 22 de setembro de 1987, estudantes e professores organizaram no campus uma comemoração para lembrar dos difíceis momentos da ditadura e do dia da invasão. "Comemorar para não esquecer e para que não se repetisse jamais", era o que se dizia. Eu estava lá. Era um jovem professor de Direito. Dava aulas de Introdução ao Estudo do Direito para os alunos do 1º ano. Logo que cheguei e desci pela rampa que se inicia na rua Monte Alegre, dando acesso aos prédios, li numa faixa estendida algo como "Professor, não dê aulas hoje. Libere os alunos para participarem do evento que lembrará a invasão executada pela ditadura!" Pensei comigo mesmo: "Ok. Vou dispensar meus alunos". Fui até a sala de aulas e esperei que eles chegassem. Quando todos lá estavam eu disse que iria dispensá-los da aula para que eles pudessem participar do evento. Mas, disse também: "Se vocês quiserem, antes de irem à reunião, podemos falar aqui mesmo na sala, sobre a invasão e sobre o clima reinante naqueles dias, pois eu sou testemunha do que ocorreu. Sou um dos alunos que estavam na PUC naquele dia". Os alunos, então, concordaram que nós iríamos conversar um pouco sobre o assunto e depois eles seriam dispensados. Passados uns dez, quinze minutos, enquanto nós conversávamos, ouvimos vozes exaltadas no corredor em frente a porta da sala. Eram estudantes que estavam passando de sala em sala para descobrir "traidores" que estariam dando aulas. Um deles, o mais exaltado gritava "invade, invade. Vamos acabar com a aula desse professor fascista". O "professor fascista" era eu, que estava conversando com meus alunos exatamente sobre a invasão e os acontecimentos daquele período. Falávamos sobre o modo de ação dos invasores, que não pediram licença, que chutaram portas, gritaram, bateram, espancaram... Os estudantes do corredor pararam em frente a porta e a chutaram algumas vezes; aumentaram os gritos, mas dentre eles se podia ouvir um "comandante" que dizia "invade a sala, invade a sala!". Meus alunos e eu ouvíamos atônitos. Quando pensávamos no que fazer, um estudante que estava na frente abriu a porta e a empurrou com força. Ele olhou para mim e disse "fascista" e invadiu a sala seguido de mais alguns. Eu, por impulso o empurrei, porque ele invadira a sala. Ele foi para trás, ficou sob o batente da porta e disse para mim: "Vai pra assembleia seu idiota. Vocês estão aí à toa furando nossa paralisação". Eu respondi: "Nós estávamos discutindo invasões, tal qual esta aqui". Eles nos xingaram novamente e acabaram indo embora pelos corredores para "caçarem mais furadores da paralisação e fascistas". Alguns minutos depois nós deixamos a sala. Guardadas, naturalmente, as devidas proporções, o modo truculento e preconceituoso dos estudantes que nos xingaram, chutaram a porta e invadiram a sala, lembrou o modo como a invasão da PUC fora feita. Eles nos julgaram e condenaram, sem saber o que fazíamos, não pediram licença para entrar na sala e foram embora sem terem nos ouvido. Faltou apenas a violência, graças a Deus! Mas sempre pensei que a violência estava latente e poderia ter ocorrido. Deixo, pois, essas linhas para a reflexão do leitor e confesso que resolvi escrever este artigo após ler uma matéria que tratava das recentes ocupações de escolas, na qual foi descrita uma verdadeira invasão. Transcrevo, assim, para terminar um trecho dessa matéria: "'Não foi uma ocupação, foi uma invasão', criticou o aluno de Direito Gustavo Dal Cortino. 'Estávamos em aula, quando chegaram pessoas mascaradas, com atitude agressiva. Fomos obrigados a sair em fila indiana. E, já do lado de fora, chamados de fascistas, quando foram eles quem nos impediram o direito de ir e vir. Nos chamaram de playboys, sem sequer nos conhecer. Eu vim da escola pública, ando de ônibus. Eles ocuparam o prédio antes que pudéssemos votar qual nossa posição', completou"1. __________   1 Alunos ocupam prédio da UFPR; professores fazem cordão para evitar conflito.
No artigo de hoje, avalio alguns aspectos da ação de obrigação de fazer e não fazer no CDC. Com efeito, o art. 84 da lei consumerista regulou a medida nos seguintes termos: "Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1º A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. § 2º A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287 do Código de Processo Civil1). § 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu. § 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito. § 5º Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial". Tutela específica ou providências que assegurem o resultado prático equivalente A lei permite que, ao invés da tutela específica requerida, o magistrado determine providências que possam assegurar o resultado prático equivalente ao do adimplemento. Vale dizer, se a tutela específica requerida não puder ser concedida por impossibilidade do meio ou desaparecimento do bem pretendido, pode o juiz criar as condições que tenham o mesmo efeito real ao do adimplemento. Assim, por exemplo, se a ação foi proposta para impedir que determinado patrocinador veicule publicidade enganosa (obrigação de não fazer) e se descobre que o patrocinador está se ocultando para evitar a citação ou a intimação, pode, ou melhor, deve o magistrado, para cumprir a pretensão legal, intimar os veículos de comunicação proibindo-os de veicularem o anúncio enganoso. Com isso o juiz terá obtido o resultado praticado equivalente e eficiente. Veja-se que o § 5º expressamente permite que o juiz determine as medidas necessárias, quaisquer que sejam elas. O conteúdo do dispositivo é meramente exemplificativo, o que fica claro pelo esquema da proposição, que diz "medidas necessárias", ou seja, toda e qualquer medida que for necessária e "tais como", isto é, exemplificativamente, busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas e desfazimento de obra. Liminar A lei expressamente permite a concessão de medida liminar (§ 3º do art. 84), impondo a presença de dois requisitos: a) ser o fundamento da demanda relevante; e b) haver justificado receio de ineficácia do provimento final. A conjuntiva e do texto legal obriga a que ambos os requisitos estejam presentes para que a liminar seja concedida. Fundamento relevante É possível compreender o sentido de "fundamento relevante" comparando-o com o mais conhecido fumus boni iuris, a chamada "fumaça do bom direito". De fato, o que se pode entender por fundamento relevante da demanda? Ora, aquilo que o autor da ação narrar ao juiz como plausível, fundado em direito que foi, está ou pode ser violado e comprovar de início. Assim, por exemplo, se o autor da ação diz que foi negativado no Serviço de Proteção ao Crédito por dívida quitada, e faz prova juntando documento com a inicial, tem-se claro que a anotação é indevida e, portanto, o fundamento da demanda é relevante (dir-se-ia que há fumus boni iuris). Acontece o mesmo para a concessão preventiva da liminar, visando impor obrigação de não fazer: se o autor anexa correspondência do réu demonstrando na inicial que ele, autor, está sendo cobrado por dívida paga e que está sofrendo ameaça de negativação no Serviço de Proteção ao Crédito, o fundamento da demanda é relevante. Ineficácia do provimento final O sentido de ineficácia é - só pode ser - o de menos eficácia do que teria a decisão se não fosse concedida liminarmente. A norma não está querendo dizer ineficácia total da ação decisória, porque, claro, se depois de três anos o juiz determinar que seja retirado o nome do autor-consumidor do cadastro do Serviço de Proteção ao Crédito, a decisão terá eficácia, só que tão tardia que o dano já se terá produzido. Daí que o sentido de "receio de ineficácia do provimento final" tem mesmo o sentido amplo de retardamento da eficácia, permissão de alongamento do tempo do dano e assim por diante. O que a lei pretende é que o simples receio de diminuição da eficácia do provimento final seja, desde logo, motivo suficiente (somado ao fundamento relevante) para a concessão da medida liminar. Momento da concessão da liminar A lei permite que a concessão da liminar se produza em dois momentos: no despacho inicial ou após justificação prévia, citado o réu. Isso significa que, se no caso concreto, após exame da inicial, restar justo receio de que o fundamento da demanda, apesar de relevante, não esteja adequadamente demonstrado, o juiz deve ouvir o réu, antes de decidir pela concessão ou não da liminar. Vejamos um exemplo. Digamos que o autor da ação tenha uma dívida com um banco e alegue que está sofrendo cobrança indevida em função da aplicação de uma cláusula do contrato que é abusiva, mas informe ao juiz que não tem cópia do contrato. É natural que, nesse caso, o juiz mande citar o réu, determinando que ele traga aos autos a cópia do instrumento, e só depois do contrato juntado aos autos e ouvido o banco, decida o pedido liminar. Dependendo do contexto, pode o magistrado conceder a liminar e, em seguida, ouvir o réu. Posteriormente, a partir da ouvida do réu e do exame de outras provas, pode revogar a liminar. "Astreinte" O § 4º do art. 84 permite que o magistrado fixe multa diária para que o réu cumpra a determinação. Perdas e danos E o § 1º do art. 84 disciplina a possibilidade de apuração de perdas e danos. Note-se uma peculiaridade: a norma se utiliza de duas disjuntivas ou ("se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático"), e como ela liga uma prerrogativa (opção do autor) a duas impossibilidades de resultado efetivo, tem-se que, de fato, trata-se de apenas uma disjuntiva, no caso, excludente. Expliquemos. A disjuntiva é: a) opção do autor ou b) impossibilidade da obtenção da tutela específica ou da obtenção do resultado prático correspondente. É que as duas hipóteses de "b" são semelhantes e indiferentes entre si: basta que se possa obter uma para excluir a outra. Se a tutela específica for obtida, está resolvida a pendenga; ou se o resultado prático correspondente for atingido também. Já o caso da letra "a", exclui os da letra "b", porque opção do autor, é típico exercício de direito subjetivo conferido pela lei: é o próprio § 1º que confere ao titular a possibilidade do exercício da prerrogativa de, ao invés de pleitear o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, requerer desde logo a apuração de perdas e danos. Ou seja, a hipótese da letra "a" (opção do autor) exclui as hipóteses da letra "b" (impossibilidade da tutela específica ou obtenção do resultado prático correspondente), que entre si não se excluem. Assim, se o autor não pleitear desde logo a apuração das perdas e danos, o magistrado determinará a apuração de perdas e danos somente se for impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. __________ 1 A referência é ao Código de Processo Civil de 1973, revogado, o que em nada afeta o prescrito na norma.
quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A questão do consumidor colecionador

Hoje retorno a um assunto de que aqui já tratei, que me foi sugerido por meu amigo Outrem e que me parece bem atual. Com efeito, meu amigo contou que, certa vez, foi convidado para ir com outro amigo dele a um jantar na casa de um empresário. "Modo de dizer", disse ele. "É que o empresário era investidor de empresas falidas... Sei lá. Mas tinha muito dinheiro, pelo menos pelo que pude ver de sua casa e demais coisas e também do que ele falava". Pois bem. Conta meu amigo que, lá chegando, foram convidados para ir ao andar debaixo, numa espécie de subsolo, para conhecer a adega de vinhos. Suntuosa, muito bem equipada e com um estoque de centenas de garrafas, muitas delas raras adquiridas em leilões internacionais e, claro, caríssimas. Todas devidamente catalogadas pelo próprio proprietário que, com muito orgulho, mostrou-as dando ênfase em vários rótulos. O. Ego animou-se. Pensou: "Me dei bem. Hoje tomarei um vinho que jamais poderia tomar". Mas que nada. Feita a visita à adega, o anfitrião os levou para o andar térreo até outras três adegas dessas compradas em lojas de eletrodomésticos (embora das maiores e mais sofisticadas) e, abrindo uma das portas, escolheu duas garrafas de vinho e dali dirigiram-se à mesa para o jantar. Eram bons vinhos, mas nada que pudesse fazer frente aos raros e espetaculares da adega e que chegaram a passear nos sonhos de meu amigo. Depois, quando deu, ele perguntou ao amigo que o acompanhava: "Ele não bebe os vinhos lá debaixo?". "Não", respondeu o amigo, "É só para ver. Não para beber". Outrem Ego retrucou: "Ele nunca beberá? Nem em ocasiões especiais? Ou com pessoas especiais?". "Acho que não. Até porque, pela idade dele e com tantas garrafas armazenadas, para toma-las todas ele já deveria ter começado a fazê-lo há muito tempo. E essas que ele bebe, ele compra a toda hora". Quando meu amigo narrou o ocorrido, disse: "O sujeito compra um monte de vinhos só para olhar para os rótulos e garrafas? Ele as admira como se fossem troféus! Se ainda guardasse como investimento, se deixasse os vinhos envelhecerem e depois os vendesse... Ou, então, podia guardar as garrafas vazias junto das avaliações feitas após ter bebido o conteúdo!". Querido leitor, devo confessar que essa história fez-me lembrar de um artigo que eu li há muitos anos numa revista de avião e que teve forte impacto em mim. Era um pequeno texto desses que pedem que nós reflitamos sobre algo em nossas vidas e que, talvez, por falta de tempo, nós acabamos não dando tanta importância ou mesmo porque aceitamos sem querer as coisas como elas são, como elas se apresentam ou como são impostas, determinadas pelas circunstâncias sociais, etc. O texto dizia mais ou menos o seguinte. O escritor contava a estória de um homem, casado, que entrara no quarto do casal e abrira a gaveta da cômoda onde sua mulher guardava a lingerie. Ele remexeu nas peças, olhou no meio e por baixo e acabou encontrando uma caixinha, que estava embrulhada com papel de presente. Intrigado, a examinou, franziu a testa, forçou os olhos, pensou e após lembrar de algo disse para si mesmo: "Ah! É aquele bracelete de ouro que eu dei para ela há três anos. Ela gostou tanto que guardou dentro da caixinha, embrulhada com o mesmo papel que a moça da joalheria usou. Ela gostou tanto e teve tanto cuidado que nunca usou". Depois, desembrulhou o presente, abriu a caixa, pegou o bracelete e disse: "Hoje ela irá usar!". Dai, dirigiu-se à sala onde estavam outras pessoas, foi até o caixão onde jazia o corpo de sua mulher morta e colocou o bracelete em seu pulso. Depois disso, o autor do artigo perguntava ao leitor se ele tinha em casa alguma coisa comprada e nunca usada. Ele dizia que as coisas que nós possuímos, independentemente de preço ou valor, só faziam algum sentido se nós as usássemos, se déssemos a ela uma finalidade, uma utilidade. Ele perguntava se o leitor tinha em casa um faqueiro nunca usado, guardado dentro da própria caixa feita pelo fabricante, se tinha peças de porcelana mantidas num armário para um dia serem usadas num jantar nunca oferecido, se tinha roupas dentro do armário que não mais usava nem iria usar ou que nunca usara, etc. Ainda recordo da sensação que tive ao ler o artigo. Caiu-me uma ficha e eu lembrei que havia adquirido um faqueiro há muito tempo e que ele estava guardado dentro da caixa. Tomei a decisão na mesma hora. Assim que cheguei em casa, separei todos os talheres que eu tinha em uso, mas que já eram antigos (foi por isso que eu comprara o faqueiro). Dei de presente a quem precisava e coloquei em uso o faqueiro novinho, retirado de dentro da caixa. Esse artigo me tocou e eu depois fui, criticamente, me vigiando para deixar de ter em casa produtos nunca usados, o que eu faço até hoje, mas que, claro, não interessa referir. O que eu pretendo contando essas histórias é colocar a questão como reflexão nesta nossa sociedade capitalista, na qual muitos nada têm e também muitos esbanjam sobras ou colecionam objetos que não serão utilizados. Já houve quem chamasse a nossa sociedade de sociedade de colecionadores. Há, é verdade, uma tradição na coleção de objetos. Colecionam-se selos, moedas, joias etc. e que remontam a tempos antigos, como comprovam as exposições de museus. Mas, com o avanço da produção e reprodução cada vez mais precisa e mais barata, os modos de colecionar acabaram crescendo. Naturalmente, colecionam-se figurinhas até hoje, mas até isso é diferente de nosso romântico tempo de criança. Com a facilidade das compras e quantidade de ofertas, muitas pessoas passaram a colecionar uma série de objetos. Colecionam-se canetas, bolsas, sapatos, gravatas, ternos, vestidos, automóveis (!), etc. Claro que isso é problema de cada um. Quem pode acaba fazendo se lhe aprouver, mas que é estranho manter certas coleções é. Quero dizer, se for mesmo para estabelecer uma coleção autêntica, com catálogo e demonstração como num museu (não importando nem local nem tamanho) talvez se justifique. O problema, ao que parece, está mais relacionado ao que o autor disse no artigo. Muitas vezes, a pessoa guarda coisas, repetidas ou não, para nunca usar e daí ela perde a finalidade. Evidentemente, que há muitas coisas que se pode ter em casa para um dia usar de verdade. Se a pessoa mantém guardados livros, dvds, cds ela certamente poderá utilizá-los (sei que dvds e cds estão em fase de extinção, mas quem os têm pode usá-los). Aliás, esse é o exemplo típico de coleção que vale a pena ter. Livros, filmes, músicas. Mesmo que nós compremos um livro para apenas um dia no futuro lê-lo. Quem sabe, num dia de chuva, a pessoa olhe para o livro na estante e, finalmente, resolva lê-lo. Penso que, realmente, vale mesmo a pena tê-lo ali por perto. Mas, valerá guardar gravatas? Um homem precisa mesmo ter em seu armário vinte ou trinta gravatas (Ou mais)? Uma mulher trinta bolsas ou trinta sapatos (ou mais)? Aliás, como o design desses produtos varia com o tempo (quero dizer, com a moda imposta ao comportamento social, que muda com o passar do tempo), muitos deles ficarão sem utilidade e muitos sequer serão usados. É isso! Apenas uma exposição sobre uma questão que, talvez, permita uma reflexão sobre os nossos modos de consumo.
Como é sabido, a lei 12.414, de 9 de junho de 2011 introduziu no sistema jurídico consumerista o chamado cadastro positivo, para disciplinar a formação e consulta a bancos de dados que contenham informações dos pagamentos dos consumidores (pessoas físicas e jurídicas e entes despersonalizados1) para formar um histórico de crédito individual. A norma definiu uma série de itens fundamentais para o funcionamento e entendimento do cadastro, a saber: o banco de dados, o gestor, o cadastrado, a fonte, o consulente, a anotação, o histórico de crédito, e as informações a serem arquivadas. Os bancos de dados podem armazenar informações de adimplemento do consumidor cadastrado visando formar o histórico de crédito dele. A regra estabeleceu as características das informações, que são basicamente as mesmas que estão dispostas no § 1º do art. 43 do CDC. Elas devem ser objetivas, claras, verdadeiras e de fácil compreensão e hão de possibilitar a feitura da avaliação da situação econômica do cadastrado. Visando dar consistência às regras estabelecidas, a lei fixou a obrigação do gestor de, quando solicitado, fornecer ao cadastrado: a) todas as informações sobre ele constantes de seus arquivos, no momento da solicitação; b) a indicação das fontes relativas às informações de que trata a letra anterior, incluindo endereço e telefone para contato; c) a indicação dos gestores de bancos de dados com os quais as informações foram compartilhadas; d) a indicação de todos os consulentes que tiveram acesso a qualquer informação sobre ele nos 6 (seis) meses anteriores à solicitação; e e) uma cópia de texto contendo sumário dos seus direitos, definidos em lei ou em normas infralegais pertinentes à sua relação com bancos de dados, bem como a lista dos órgãos governamentais aos quais poderá ele recorrer, caso considere que esses direitos foram infringidos. Além disso, proíbe expressamente que o gestor estabeleça política, crie regras ou realize operações que impeçam, limitem ou dificultem o acesso do cadastrado às informações arquivadas. Diz também a lei que as informações disponibilizadas nos bancos de dados somente poderão ser utilizadas para a realização de análise de risco de crédito do cadastrado, para subsidiar a concessão ou extensão de crédito e a realização de venda a prazo ou, ainda, outras transações comerciais e empresariais que impliquem risco financeiro ao consulente. Por fim, diz que cabe ao gestor manter sistemas seguros de consulta por telefone ou por meio eletrônico, para dar aos consulentes as informações de adimplemento do cadastrado. Quanto à fonte, estão fixadas uma série de obrigações. A fonte deve: a) manter os registros adequados para demonstrar que a pessoa física, jurídica ou ente despersonalizado autorizou o envio e a anotação de informações em bancos de dados; b) comunicar os gestores de bancos de dados acerca de eventual exclusão ou revogação de autorização do cadastrado; c) verificar e confirmar, ou corrigir, em prazo não superior a 2 (dois) dias úteis, informação impugnada, sempre que solicitado por gestor de banco de dados ou diretamente pelo cadastrado; d) atualizar e corrigir informações enviadas aos gestores, em prazo não superior a 7 (sete) dias; e) manter os registros adequados para verificar informações enviadas aos gestores; e f) fornecer informações sobre o cadastrado, em bases não discriminatórias, a todos os gestores que as solicitarem, no mesmo formato e contendo as mesmas informações fornecidas a outros bancos de dados. Além disso, a lei proíbe expressamente que a fonte estabeleça política, regras ou realize operações que impeçam, limitem ou dificultem a transmissão a banco de dados de informações de cadastrados que tenham autorizado a anotação de seus dados. Sobre o compartilhamento das informações arquivadas, o mesmo só é permitido se autorizado expressamente pelo cadastrado, por meio de assinatura em instrumento específico ou em cláusula apartada. O gestor que receber informações por meio de compartilhamento equipara-se ao outro gestor, isto é, ao que anotou originariamente a informação, inclusive quanto à responsabilidade, que é, no caso, solidária por eventuais prejuízos causados e ao dever de receber e processar impugnações e realizar retificações. Já o gestor originário é responsável por manter atualizados os dados cadastrais nos demais bancos de dados, bem como por informar a solicitação de cancelamento do cadastro, sem quaisquer ônus para o cadastrado. O cancelamento do cadastro feito pelo gestor originário implica o cancelamento do cadastro em todos os bancos de dados que compartilharam informações. Desse modo, todos os bancos de dados ficam obrigados a proceder, individualmente, ao respectivo cancelamento. O gestor deve assegurar a identificação da pessoa que promover qualquer inscrição ou atualização de dados relacionados com o cadastrado, registrando a data desta ocorrência, bem como a identificação exata da fonte, do nome do agente que a efetuou e do equipamento ou terminal a partir do qual foi processada a ocorrência. É proibido ao gestor exigir exclusividade das fontes. Ademais, anoto que, desde que autorizados pelo cadastrado, os prestadores de serviços continuados de água, esgoto, eletricidade, gás e telecomunicações, dentre outros, poderão fornecer aos bancos de dados, informação sobre o adimplemento de suas obrigações financeiras. No entanto, ficou vedada, expressamente, a anotação de informação sobre serviço de telefonia móvel na modalidade pós-paga. E, quando solicitado pelo cliente, as instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil fornecerão aos bancos de dados indicados as informações relativas às suas operações de crédito. Essas informações somente podem compreender o histórico das operações de empréstimo e de financiamento realizadas. Por fim, anoto que o banco de dados, a fonte e o consulente são responsáveis objetiva e solidariamente pelos danos materiais e morais que causarem ao cadastrado. __________ 1 O legislador esqueceu do ente despersonalizado, mas, evidentemente, ele também tem os mesmos direitos à proteção legal.
quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O dia das crianças e o mercado de consumo

Em função da proximidade do dia das crianças, volto ao tema que aqui já abordei. Nos anos vinte do século passado, o deputado Federal Galdino do Valle Filho teve a ideia de homenagear as crianças, criando um dia para elas. A ideia vingou e, por intermédio do decreto 4867, de 5 de novembro de 1924, o presidente Arthur Bernardes oficializou o dia 12 de outubro como o Dia das Crianças. Todavia, a data ficou esquecida por muitos anos. Mas, veja, meu caro leitor, que significativo: em 1960 a fábrica de brinquedos Estrela fez uma promoção conjunta com a Johnson & Johnson para lançar a "Semana do Bebê Robusto" e, com isso, aumentar suas vendas. A estratégia de marketing deu certo. Logo depois, outras empresas lançaram-se no mesmo projeto, divulgando a semana da criança para aumentar suas vendas e, no ano seguinte, os fabricantes fizeram renascer a data do antigo decreto e o dia 12 de outubro passou a ser comemorado como o Dia das Crianças, isto é, o dia em que as crianças ganham presentes. E, claro, a semana em que o mercado de produtos para crianças fatura alto. Vai-se, portanto, comemorando esse dia comprando e dando produtos para as crianças. Certamente, neste ano, apesar da crise, não será diferente com vendas de tudo quanto é brinquedo e muita bugiganga. Espero que coisas úteis sejam oferecidas. Aproveito, então, a data para propor uma reflexão sobre o tema de um Dia para a criança. Na verdade, a ONU reconhece o dia 20 de novembro como o Dia Universal (ou Mundial) das Crianças, pois foi nessa data do ano de 1959 que foi publicada a Declaração Universal dos Direitos das Crianças. E, embora essa data seja também sempre lembrada entre nós, é o dia 12 de outubro que conta, pelo menos em termos de compras. Pensemos nisso. Dia 12 de outubro é feriado nacional desde 1980, dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira oficial do Brasil. E, como no dia 15 de outubro se comemora o Dia do Professor, acabou-se juntando uma data n'outra, e nesta nossa terra de Macunaíma, criou-se a Semana do Saco Cheio: foram os estudantes universitários que, por volta dos anos oitenta do século passado, inventaram mais uma semana para enforcar aulas. E não é que pegou? Atualmente, essa semana fica sem aulas em muitos colégios e universidades. Já faz parte do calendário escolar. Mais um filão para o mercado: dia de presentes, precedido de semana de compras; feriado, semana sem aulas, pacotes de viagens, hotéis, turismo enfim. O capitalismo agradece. Mas, retorno às crianças. Com efeito, cabe aos pais decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. O primeiro caminho é descobrir o que dar. Tem-se, portanto, que refletir sobre a qualidade do presente. Haverá coisas úteis e porcarias. Coisas indispensáveis e outras desnecessárias. O mercado saberá oferecer de tudo. O marketing sedutor, aliado ao sistema de crédito e parcelamento consegue convencer até quem não pode comprar a adquirir produtos e se endividar (ou aumentar ainda mais seu endividamento). Veja-se esse exemplo: algumas lojas vendem sapatos com salto alto para meninas de seis, cinco anos ou menos. Algo que devia literalmente ser proibido, não só porque faz mal para o corpo (como toda mulher sabe) como porque cria uma imagem adulta na criança, algo ridículo de se ver. Mas, quem compra o tal sapato? É um adulto. Aliás, existe toda uma enorme gama de produtos para meninas muito pequenas em idade, para que elas reproduzam a imagem das mulheres (suas mães ou outras mulheres), o que lhes rouba a já tão curta infância. Bem, isso em relação à qualidade. Agora, lembro da quantidade. Quantos presentes uma criança deve ganhar de uma só vez? Como se trata de uma data específica para a criança e esta, às vezes, tem muitas pessoas à volta para presenteá-la, é comum que ela acabe ganhando muitas coisas. Acontece que é também comum que as crianças que recebam muitos brinquedos logo se desinteressem da maior parte deles. A criança que ganha muita coisa numa só ocasião tende a desvalorizar tudo ou escolhe um e abandona o restante. É preciso, pois, aproveitar a data para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. Assim, a criança pode aprender a valorizar o que ganha (como o adulto aprende a duras penas).
Há muito tempo que, nas sociedades democráticas, os candidatos e partidos adotaram os modelos capitalistas de comunicação, fazendo ofertas e publicidades muito parecidas com as dos empresários. Aliás, os publicitários do setor cuidam e apresentam seus clientes, os candidatos, como típicos produtos. Alguns chegam a "elaborar" esse produto do início ao fim com formato próprio e, inclusive, embalagem adequada, com composição de "ingredientes", isto é, com apresentação do conteúdo e finalidade de função. Há de tudo. Por exemplo, vários candidatos são repaginados, atualizados e apresentados com atualizados cortes de cabelo, roupas modernas, inéditas formas de apresentação e novas falas envolvendo novas promessas. Pena que ainda não tenhamos, como faz o Código de Defesa do Consumidor, um sistema legal que proíba a oferta e a publicidade enganosa ou abusiva. "Faz parte do jogo", dirão alguns; "é assim mesmo a democracia", dirão outros. E, pelo que penso, esses dois grupos e todos os demais têm razão. Essa é a democracia que conhecemos. É época de eleições? Vamos ao show business, então. É época do espetáculo! Isso é tão verdadeiro que, daqui a pouco, (daqui a pouco mesmo, pois estou escrevendo este artigo às 19h do dia 26 de setembro), na maior democracia do mundo, será feito o primeiro debate entre os dois principais candidatos à presidência dos Estados Unidos da América: Hillary Clinton e Donald Trump. Caro leitor, não é um pouco assustador que uma figura como Trump, com propostas esquisitas, possa ser candidato com chances de assumir o comando da maior potência econômica e bélica do planeta? Como diria meu amigo Outrem Ego, "a eleição para presidente dos Estados Unidos é tão importante que deveria haver um modo de todos os habitantes da terra votarem"! Pois bem. Sei que eleições são importantes para o sistema democrático. Isso é o óbvio ululante. Mas, como as experiências nos vários países demonstram, os cidadãos não precisam necessariamente votar para viver numa sociedade democrática. Há outros meios de usufruir do regime democrático e também de colaborar com a sociedade ou de pressionar os governantes direta e indiretamente sem ter que ir às urnas. Falo, naturalmente, do atrasado modelo de obrigatoriedade do voto (E já que citei os EUA, consigno que não é porque o voto é facultativo por lá que surgem candidatos esquisitos e estranhos como o citado empresário. Ele estaria por lá ainda que o voto fosse obrigatório). E dentre as várias desvantagens que a obrigatoriedade trás, uma delas é a de gerar a ilusão de que basta ir às urnas a cada dois ou quatro anos para que tudo possa caminhar positivamente no país. Isso está longe de ser verdade. Penso que, ao contrário do que dizem, o voto obrigatório é contrário à natural liberdade que se espera numa democracia e transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão. A obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. Para se ter uma ideia, uma pesquisa divulgada na revista científica "Pesquisa FAPESP" (Estudos Eleitorais Brasileiros, 2014) mostra que, em 2002, cerca de dois meses após as eleições, mais de 26% dos eleitores não se lembravam mais em quem haviam votado nos cargos de deputado estadual/Federal; em 2006, este número pulou para mais de 43%; em 2010, ficou superior a 33%; e, em 2014, voltou para a casa dos mais de 40%1. Esses dados comprovam que milhões de brasileiros vão às urnas para se livrar da obrigação de votar e para não perder vários direitos retirados de quem não vota, como, por exemplo, tirar passaporte. Por isso, sou daqueles que acreditam que o voto facultativo tem tudo de positivo relacionado à democracia e à participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que, de fato, possa representar seus pensamentos, seus desejos, assim como do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso (sem partido) etc. Mas, o fim do voto obrigatório parece-me um bom começo. Adicionalmente, com o voto facultativo, talvez, tivéssemos uma mudança na qualidade de nossos candidatos e também no modo de sua apresentação. O leitor já deve ter se deparado com as situações esdrúxulas existentes, mas de todo modo, deixo aqui uma indicação: (este é apenas um vídeo; há vários no youtube e em todas as eleições). Que tal nos alinharmos com os países mais desenvolvidos? Veja esses dados que já aqui reproduzi antes: De todos os países do mundo, apenas 28 ainda adotam esse modelo, sendo 12 na América Latina e 7 na América do Sul2. E dentre os 15 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever3. __________  1 Fonte: Estadão. 2 Fonte: Milton Ribeiro. 3 Fonte: Folha de S. Paulo.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade objetiva dos fornecedores pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços (conf.arts. 12, 13 e 14). E ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade), tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Para que se possa compreender o porquê dessa ampla responsabilização, é preciso conhecer a teoria do risco do negócio ou da atividade, que é sua base. Na semana passada comecei a examinar o tema e termino no artigo de hoje. 5. O CDC controla o resultado da produção Como disse anteriormente, há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito. Por isso, nada mais adequado do que controlar, como fez o CDC, o resultado da produção viciada/defeituosa, cuidando de garantir ao consumidor o ressarcimento pelos prejuízos sofridos. Note-se que a questão do vício/defeito envolve o produto e o serviço em si, independentemente da figura do produtor (bem como de sua vontade ou atuação). São o produto e o serviço que causam diretamente o dano ao consumidor e não o fornecedor. Este só é considerado na medida em que é o responsável pelo ressarcimento dos prejuízos. Nesse ponto tenho, então, de colocar outro aspecto relevante, justificador da responsabilidade do fornecedor, no que respeita ao dever de indenizar: é o da origem do fundo capaz de pagar os prejuízos. 6. A receita e o patrimônio devem arcar com os prejuízos É a receita e o patrimônio do fabricante, produtor, prestador de serviço etc. que respondem pelo ônus da indenização relativa ao prejuízo sofrido pelo consumidor. O motivo, aliás, é simples: a receita e o patrimônio abarcam "todos" os produtos e serviços oferecidos. "Todos", isto é, tanto os produtos e serviços sem vício/defeito quanto aqueles que ingressaram no mercado viciados/defeituosos. Vejamos um exemplo numérico, usando o mesmo cálculo que fiz no item 4 (do artigo publicado na semana passada): vamos supor uma produção de 100.000 liquidificadores/mês e um vício/defeito no final do ciclo de produção de apenas 0,1%. O mercado receberá 100.000 liquidificadores e o produtor aferirá uma receita advinda de sua totalidade. Acontece que apenas 99.900 consumidores adquirirão efetivamente produtos em perfeito estado de funcionamento. Os outros 100 arcarão com o ônus de ter comprado os liquidificadores com vício/defeito. Nesse ponto, é preciso inserir outro princípio legal justificador do tratamento protecionista dos consumidores que adquiriram os produtos com problemas. É o princípio constitucional da igualdade. Não teria, nem tem cabimento, que os 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito e que pagaram por eles o mesmo preço dos demais 99.900 consumidores, não tivessem os mesmos direitos e garantias assegurados a estes últimos. Para igualá-los, é preciso que: a) recebam outro produto em condições perfeitas de funcionamento; b) aceitem o valor do preço de volta; c) ou, ainda, sejam ressarcidos de eventuais outros prejuízos sofridos. É dessa forma que se justifica a estipulação de uma responsabilidade objetiva do fornecedor. 7. Ausência de culpa E ainda existe um outro reforço dessa justificativa e que formatará por completo o quadro qualificado, que obrigou a que o sistema normativo adotasse a responsabilização objetiva. É o relacionado não só à dificuldade da demonstração da culpa do fornecedor, assim como ao fato de que, efetivamente, muitas vezes, ele não tem mesmo culpa de o produto ou serviço terem sido oferecidos com vício/defeito. Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria fatalmente lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como era no regime anterior). Aqueles 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores estragados, muito provavelmente, não conseguiriam demonstrar a culpa do fabricante. Explicando melhor: no regime de produção em série o fabricante, produtor, prestador de serviços etc. não podem ser considerados, como regra, negligentes, imprudentes ou imperitos. É que, o produtor contemporâneo, em especial aquele que produz em série, não age com culpa. Ao contrário, numa verificação de seu processo de fabricação, perceber-se-á que no ciclo de produção trabalham profissionais que avaliam a qualidade dos insumos adquiridos, técnicos que controlam cada detalhe dos componentes utilizados, engenheiros de qualidade que testam os produtos fabricados, enfim, no ciclo de produção como um todo não há, de fato, omissão (negligência), ação imprudente ou imperita. No entanto, pelas razões já expostas, haverá produtos e serviços viciados/defeituosos. Vê-se, só por isso, que, se o consumidor tivesse de demonstrar a culpa do produtor, não conseguiria. E, na sistemática anterior do vetusto Código Civil (art. 159), o consumidor tinha poucas chances de ressarcir-se dos prejuízos causados pelo produto ou pelo serviço. Além disso, ainda que culpa houvesse, sua prova como ônus para o consumidor levava ao insucesso, pois ele não tinha e não tem acesso ao sistema de produção e, também, a prova técnica posterior ao evento danoso tinha pouca possibilidade de demonstrar culpa. Poder-se-ia dizer que antes - por incrível que possa parecer - o risco do negócio era do consumidor. Era ele quem corria o risco de adquirir um produto ou um serviço, pagar seu preço (e, assim, ficar sem seu dinheiro) e não poder dele usufruir adequadamente ou, pior, sofrer algum dano. É extraordinário, mas esse sistema teve vigência até 10 de março de 1991, em flagrante injustiça e inversão lógica e natural das coisas. 8. O fato do produto e do serviço e o acidente de consumo Registro, por fim, e apenas corroborando tudo o que foi dito, que o CDC intitula a seção que cuida do tema como "Da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço", porque a norma, dentro do regramento da responsabilidade objetiva, é dirigida mesmo ao fato do produto ou serviço em si. É o "fato" do produto e do serviço causadores do dano o que importa. Costuma-se também falar em "acidente de consumo" para referir ao fato do produto ou do serviço. Algumas observações são necessárias a respeito disso. A expressão "acidente de consumo", muito embora largamente utilizada, pode confundir, porque haverá casos de defeito em que a palavra "acidente" não fica muito adequada. Assim, por exemplo, fazer lançamento equivocado no cadastro de devedores do Serviço de Proteção ao Crédito é defeito do serviço, gerando responsabilidade pelo pagamento de indenização por danos materiais, morais e à imagem. Porém, não se assemelha em nada a um "acidente"; comer algum alimento e depois sofrer intoxicação por bactéria que lá estava gera, da mesma maneira, dano, mas ainda assim não se assemelha propriamente a acidente. De outro lado, a lei fala em "fato" do produto. A palavra fato permite uma conexão com a ideia de acontecimento, o que implica, portanto, qualquer acontecimento. Lembro, de todo modo, que se tem usado tanto "fato" do produto e do serviço quanto "acidente de consumo" para definir o defeito. Porém, o mais adequado é guardar a expressão "acidente de consumo" para as hipóteses em que tenha ocorrido mesmo um acidente: queda de avião, batida do veículo por falha do freio, quebra da roda-gigante no parque de diversões, etc., e deixar fato ou defeito para as demais ocorrências danosas. Em qualquer hipótese, aplica-se a lei. O estabelecimento da responsabilidade de indenizar nasce, portanto, do nexo de causalidade existente entre o consumidor (lesado), o produto e/ou serviço e o dano efetivamente ocorrido. Fica, assim, demonstrada, a teoria - e a realidade - fundante da responsabilidade civil objetiva estatuída no CDC, assim como as amplas garantias indenizatórias em favor do consumidor que sofreu o dano - ou seus familiares ou, ainda, o consumidor equiparado e seus familiares.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade objetiva dos fornecedores pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços (conf.arts. 12, 13 e 14). E ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade), tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Para que se possa compreender o porquê dessa ampla responsabilização, é preciso conhecer a teoria do risco do negócio ou da atividade, que é sua base e que examino na sequência. 1. Os negócios implicam risco A Constituição Federal garante a livre iniciativa para a exploração da atividade econômica, em harmonia com uma série de princípios (CF, art. 170), iniciativa esta que é, de fato, de uma forma ou de outra, a alavanca da sociedade capitalista contemporânea. A exploração da atividade econômica tem uma série de características, e uma das principais é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa, a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades por parte do empresário é fundamental para o investimento. É claro que são muitas as variáveis em jogo, e que terão de ser avaliadas, tanto mais se existir uma autêntica competitividade no setor escolhido. Os insumos básicos para a produção, os meios de distribuição, a expectativa do consumidor em relação ao produto ou serviço a serem produzidos, a qualidade destes, o preço, os tributos etc. são preocupações constantes. Some-se o desenvolvimento de todos os aspectos que envolvem o marketing e em especial a possibilidade - e, praticamente, a necessidade - da exploração da publicidade, arma conhecida para o desenvolvimento dos negócios. 2. Risco/custo/benefício Esse aspecto do risco se incrementa na intrínseca relação com o custo. Esse binômio risco/custo (ao qual acrescento um outro: o do custo/benefício) é determinante na análise da viabilidade do negócio. A redução da margem de risco a baixos níveis (isto é, a aplicação máxima no estudo de todas as variáveis) eleva o custo a valores astronômicos, inviabilizando o projeto econômico. Em outras palavras, o custo, para ser suportável, tem de ser definido na relação com o benefício. Esse outro binômio custo/benefício tem de ser considerado. Descobrir o ponto de equilíbrio de quanto risco vale a pena correr a um menor custo possível, para aferir a maximização do benefício, é uma das chaves do negócio. Dentro dessa estratégia geral, como fruto da teoria do risco, um item específico é o que está intimamente ligado à sistemática normativa adotada pelo CDC. É aquele voltado à avaliação da qualidade do produto e do serviço, especialmente a adequação, finalidade, proteção à saúde, segurança e durabilidade. Tudo referendado e complementado pela informação. Em realidade, a palavra "qualidade" do produto ou do serviço pode ser o aspecto determinante, na medida em que não se pode compreender qualidade sem o respeito aos direitos básicos do consumidor. E nesse ponto da busca da qualidade surge, então, nova e particularmente, o problema do risco/custo/benefício, acrescido agora de outro aspecto considerado tanto na teoria do risco quanto pelo CDC: a produção em série1. 3. Produção em série Com a explosão da revolução industrial, a aglomeração de pessoas nos grandes centros urbanos e o inexorável aumento da complexidade social, exigia-se um modelo de produção que desse conta da sociedade que começava a surgir. A necessidade de oferecer cada vez mais produtos e serviços para um número sempre maior de pessoas fez com que a indústria passasse a produzir em grande quantidade. Mas o maior entrave para o crescimento da produção era o custo. A solução foi a produção em larga escala e em série que, a partir de modelos previamente concebidos, permitia a diminuição dos custos. Com isso, era possível fabricar mais bens para atingir um maior número de pessoas. O século XX inicia-se sob a égide desse modelo de produção: fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, com um menor custo de produção final, possibilitando a venda a menor preço individual, com o que maiores parcelas de consumidores passaram a ser beneficiadas. A partir da Segunda Guerra Mundial, esse projeto de produção capitalista passou a crescer numa velocidade jamais imaginada, fruto do incremento dos sistemas de automação, do surgimento da robótica, da telefonia por satélites, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação, etc. 4. Característica da produção em série: vício e defeito Muito bem. Em produções massificadas, seriadas, é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de problemas, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número enorme de consumidores. Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem de correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. Aliado a isso está o indelével fato de que produções desse tipo envolvem dezenas, centenas ou milhares de componentes físicos que se relacionam, operados por outra quantidade enorme de mãos que os manuseiam direta ou indiretamente. A falha é inexorável: por mais que o fornecedor queira, não consegue evitar que seus produtos ou serviços cheguem ao mercado sem vício/defeito. Mesmo nos setores mais desenvolvidos, em que as estatísticas apontam para vícios/defeitos de fabricação próximos de zero, o resultado final para o mercado será a distribuição de um número bastante elevado de produtos e serviços comprometidos. E isso se explica matematicamente: supondo um índice percentual de vício/defeito no final do ciclo de fabricação de apenas 0,1% (percentual raro, eis que, de fato, ele é mais elevado) aplicado sobre alta quantidade de produção, digamos, 100.000 unidades, ter-se-ia 100 produtos entregues ao mercado com vício/defeito. Logo, temos de lidar com esse fato inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito. Continua na próxima semana. __________ 1 Por causa disso, a responsabilidade objetiva tal como regulada remanesce como um grande problema, praticamente insolúvel, para aqueles que não produzem em série especialmente pequenos produtores, microprodutores e fabricantes pessoas físicas de produtos manufaturados e pequenos prestadores de serviços (pessoas físicas e jurídicas). A lei consumerista não abre exceção para tais fornecedores, que acabam tendo de arcar com o peso da responsabilidade objetiva, como se grandes fornecedores de produtos e serviços em série fossem.
Rizzatto Nunes e Claudia Calmon1 Vivemos numa sociedade altamente competitiva. O que se diz é que o capitalismo moderno introduziu, cada vez mais, esse modelo no comportamento das pessoas, e estas, de forma aberta ou sub-reptícia, competem sem cessar umas com as outras. De forma geral, isso é realmente um fato constatável nos diversos setores socais: no trabalho, na escola, nos esportes (naturalmente, diríamos aqui), etc.. Há pais que deixam seus filhos pequenos ganharem as competições que fazem entre si. Por exemplo, deixam que eles ganhem num jogo de baralho. Isso é bom? Está certo que, às vezes, os pais ganham e também perdem, mas perder sempre parece ruim. Muito bem, em tempos de Olimpíada, queremos fazer uma reflexão sobre o tema. Desde que o pedagogo e historiador francês Pierre de Frédy, mais conhecido como Barão de Coubertin, idealizou e fundou os jogos olímpicos da era moderna, surgiu uma oportunidade para que se pensasse em competições, nas quais nem sempre o vencedor é o que obtém o melhor resultado. Vejamos a abertura da Olimpíada Rio 2016: quem foi o encarregado da grande honra de acender a Pira Olímpica? Vanderlei Cordeiro de Lima, o atleta brasileiro que não venceu a maratona da Olimpíada de Atenas de 2004, por ter sido agarrado por um lunático quando estava muito a frente dos demais competidores. Por causa disso, Vanderlei terminou em terceiro lugar. Naquela oportunidade, por seu esforço esportivo, recebeu do COI-Comitê Olímpico Internacional a medalha Pierre de Coubertin, que somente é concedida para atletas que valorizam a competição olímpica mais do que a vitória, e que é considerada uma distinção elevadíssima atribuída pela entidade2. Será que, se Vanderlei tivesse ganhado a maratona, teria sido escolhido para acender a Pira Olímpica? Claro que somente os deuses gregos saberiam responder... Mas esse fato permite que façamos uma reflexão sobre a ideia de que "o que importa é competir". Essa frase foi dita em 1908 e incorporada como lema para os jogos olímpicos. Numa rápida gloogeada na web, é possível ver que ela é odiada por muitos e adorada por outros tantos. Os que a odeiam, parece-nos, levam seus termos ao pé da letra, esquecendo-se de seu sentido mais profundo. Há escolas que fazem jogos com crianças, nos quais todos ganham ou nos quais não haja perdedores e, com isso, acabam, naturalmente, desestimulando a competição. No entanto, em tais escolas as crianças, ainda em fase de formação, aprendem sobre colaboração, solidariedade e senso de equipe, afinal com a diversidade existente no ambiente escolar, certamente a criança sem o porte atlético necessário para vencer ou com dificuldades físicas, jamais seria escalada para participar do time e seria inevitavelmente excluída. Portanto, dentro das escolas, talvez seja até mais importante desenvolver nos estudantes outros valores que não o da competição. O problema está, parece-nos, no que seja uma competição sadia ou uma competição que leve ao aprendizado. Será que vale a pena ganhar a qualquer preço? Em competições esportivas, o adversário deve ser considerado um inimigo? Ora, não é verdade que é nas derrotas que se aprende? Uma criança que sempre vença, que não conheça o sabor da derrota, estará bem formada para enfrentar os desafios da vida adulta? Conseguirá administrar as frustrações que a vida lhe reserva? Será que existe mesmo alguém que vença sempre em qualquer situação? Ademais, em matéria de esportes, quando um atleta mostra que é melhor que o outro, não significa que o outro seja ruim. Não é porque um corredor como Usain Bolt seja imbatível nos 100 metros rasos, que o segundo, terceiro ou quarto sejam maus corredores. Significa apenas que ele é o mais rápido. E quem compete contra ele, tem um longo aprendizado de esforço. Ele é mais rápido, vai à frente, mas, com isso, leva com ele os demais, que também se superam e crescem. Nesse sentido, são todos vencedores e provam que vale sim a pena competir, ainda que já se saiba que seria difícil vencer. E no basquete, será que dá para ganhar do Dream Time? Talvez, mas ser derrotado pelos americanos será mesmo uma derrota? Há mais: temos que aprender a dar valor à experiência da derrota e ao necessário elemento do trabalho solidário. Nesta sociedade capitalista, tirando as exceções dos trabalhadores autônomos, qual empresa se sustentaria e seria bem sucedida sem a participação conjunta de seus vários empregados e colaboradores? Certo que se pode dizer que uns são melhores que outros, mas sem o trabalho em parceria tudo ruiria (Aliás, nos esportes coletivos isso fica evidente). O Chef de um restaurante é um artista criador, mas sem um bom preparador, sem um bom garçom e um bom maitre, seu restaurante fracassaria. Até para a preparação de um único atleta que vença uma batalha sozinho, é preciso que outros o auxiliem: técnicos e preparadores físicos, fisiologistas, nutricionistas, psicólogos e até meros ajudantes do dia a dia. Pensemos nas escolas: é comum existir competição entre os alunos, para ver quem tira a melhor nota ou quem é o melhor estudante ao final do ano ou do curso. Perguntamos: o melhor aluno de um curso, no qual competiu com seus colegas e venceu, será mesmo o melhor profissional? Será que nós só devemos nos consultar com o médico que tirou as melhores notas nos bancos escolares? E os demais? Aquele que chegou em segundo, terceiro e, quem sabe, o último: todos se formaram, obtiveram o diploma e tornaram-se aptos para o exercício da profissão. É assim que, por exemplo, procuramos um médico para nos atender? Ou um advogado? Logicamente, não estamos retirando o mérito dos que se saíram melhor nos bancos escolares, mas os demais também não serão bons profissionais? É apenas a vitória que determina ou foi a competição - mesmo sem a vitória - que forjou o profissional? E, há o inverso: quem é que pode garantir que o melhor aluno será o melhor profissional? Na área jurídica, temos, infelizmente, exemplos de maus profissionais que passaram em difíceis concursos públicos, às vezes muito bem colocados. Isso mostra que para se tornar um bom profissional, a pessoa deve possuir, além da formação acadêmica adequada, um conjunto de competências e inteligências, que envolve os aspectos psicológicos e emocionais, e que são condições para que ela realmente alcance um patamar elevado no seu mister. Vencer competições não é garantia segura de eficiência ou qualidade profissional posterior, e nem de sucesso na carreira ou na vida. __________1 Claudia Calmon é pedagoga, formada pela PUC/SP e fez cursos de especialização no Instituto Loris Malaguzzi em Reggio Emilia, Itália e com Howard Gardner em Harvard.2 Ela lhe foi entregue no Rio de Janeiro, em 7 de dezembro de 2004, numa cerimônia oficial em sua homenagem. Na mesma cerimônia, ele também foi escolhido como "Atleta Brasileiro do Ano de 2004'.
Os tumultos que se verificaram nos aeroportos brasileiros nos primeiros dias da entrada em vigor dos novos e mais rigorosos critérios de fiscalização das bagagens dos passageiros nos voos nacionais mostraram, mais uma vez, o despreparo para uma boa prestação de serviços públicos, e ainda uma incrível incompetência de planejamento (incompetência que não é privilégio do setor público, pois na iniciativa privada também ocorre). Eu já abordei, mais de uma vez, a necessidade de aprimoramento no setor de atendimento ao consumidor que, apesar de toda tecnologia à disposição (e, muitas vezes, por causa dela) não consegue dar conta de forma eficaz da demanda existente. Volto ao assunto, especialmente para cuidar desse episódio de má administração da Infraero (que envolve uma dessintonia com a ANAC) e para mostrar a responsabilidade civil em relação aos danos causados aos passageiros. Com efeito, dispõe o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) que "Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". Examinemos o sentido desses termos, excetuada a questão da essencialidade e da continuidade, que não afetam a análise do caso do mau atendimento prestado nos aeroportos. Em primeiro lugar, diga-se que essa disposição da norma decorre do princípio constitucional estampado no caput do art. 37. É o chamado princípio da eficiência1. Como explicam os Professores Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior: "O princípio da eficiência tem partes com as normas de 'boa administração', indicando que a Administração Pública, em todos os seus setores, deve concretizar atividade administrativa predisposta à extração do maior número possível de efeitos positivos ao administrado. Deve sopesar relação de custo-benefício, buscar a otimização de recursos, em suma, tem por obrigação dotar da maior eficácia possível todas as ações do Estado"2. Hely Lopes Meirelles disciplina que a eficiência é um dever imposto a todo e qualquer agente público no sentido de que ele realize suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. Diz o administrativista: "É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros"3. É fato que a lei designa outros adjetivos aos serviços prestados, além do relativo à eficiência: fala em adequado, seguro e contínuo (este último para os essenciais). Ora, adjetivos expõem a qualidade de alguma coisa, no caso o serviço público. Então, quando o princípio constitucional do art. 37 impõe que a Administração Pública forneça serviços eficientes, está especificando sua qualidade. Ou, em outros termos, o tão falado conceito de qualidade, do ponto de vista dos serviços públicos, está marcado pelo parâmetro constitucional da eficiência. E essa eficiência tem, como visto, ontologicamente a função de determinar que os serviços públicos ofereçam o "maior número possível de efeitos positivos" para o administrado. Isso significa que não basta haver adequação, nem estar à disposição das pessoas. O serviço tem que ser realmente eficiente; tem que cumprir sua finalidade na realidade concreta. E o significado de eficiência remete ao resultado: é eficiente aquilo que funciona. A eficiência é um plus necessário da adequação. O indivíduo recebe serviço público eficiente quando a necessidade para a qual ele foi criado é suprida concretamente. É isso que o princípio constitucional pretende. Assim, pode-se concluir com uma classificação das qualidades dos serviços públicos, nos quais o gênero é a eficiência, tudo o mais decorrendo dessa característica principal. Logo, adequação, segurança e continuidade (no caso dos serviços essenciais) são características ligadas à necessária eficiência dos serviços públicos. Realmente, o serviço público só é eficiente se for adequado (p. ex., coleta de lixo seletiva, quando o consumidor tem como separar por pacotes o tipo de material a ser jogado fora), se for seguro (p. ex., transporte de passageiros em veículos controlados, inspecionados, com todos os itens mecânicos, elétricos etc. checados: freios, válvulas, combustível etc.), e, ainda, se for contínuo (p. ex., a energia elétrica sem cessação de fornecimento, água e esgoto da mesma forma, gás etc.). Para uma classificação dos serviços públicos pelo aspecto da qualidade regulados pelo CDC, ter-se-ia, então, que dizer que no gênero eficiência estão os tipos adequado, seguro e contínuo. Pode acontecer de o serviço ser adequado, mas não ser seguro. Ou ser seguro e descontínuo. Ou ser inadequado apesar de contínuo etc. No primeiro caso, cite-se como exemplo o serviço de gás encanado sem controle de inspeção das tubulações e/ou válvulas. No segundo, cite-se o serviço de fornecimento de energia elétrica que é interrompido. No terceiro, aponte-se o fornecimento contínuo de água contendo bactérias. E, claro, como os serviços públicos hão de ser eficientes, as variáveis reais possíveis da junção dos tipos não são apenas as dicotômicas apresentadas (adequado-inseguro; seguro-descontínuo; inadequado-contínuo etc.), mas também podem ocorrer pela conexão das três características: adequado-inseguro-descontínuo; inadequado-seguro-contínuo; adequado-seguro-descontínuo etc. Foi isso o que ficou estabelecido na lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que disciplinou o regime de concessão e permissão dos serviços públicos, como decorrência do estabelecido no art. 175 da Constituição Federal. É que a Carta Magna dispõe que a lei deve regulamentar a obrigação da manutenção do serviço público de forma adequada. Leia-se a citada norma constitucional: "Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: (...) IV - a obrigação de manter serviço adequado". Os §§ 1º e 2º do art. 6º da Lei n. 8.987/95, então, dispõem: "Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. § 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. § 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço". Vê-se, portanto, que há ampla determinação para que os serviços públicos sejam eficientes, adequados, seguros e contínuos. Assim, concluo para deixar consignado que no presente caso do péssimo atendimento nos aeroportos, a hipótese é de vício do serviço e, dependendo do dano sofrido pelo consumidor, haverá também defeito. Tudo nos exatos termos do estabelecido nas regras dos arts. 14 e 20 do CDC. A responsabilidade é objetiva e, desse modo, o consumidor que sofreu algum tipo de lesão em função da má prestação desse serviço tem direito à indenização correspondente referente a, por exemplo, reembolso com diárias de hotéis, refeições, transportes, multas por remarcação de voos etc., e até indenização pela perda de negócios ou oportunidades. __________ 1 Para mais dados, consultar meu Comentários do Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 8ª. ed. 2015., Parte 1, item 5.11. 2 Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 235 3 Direito administrativo brasileiro, São Paulo: Saraiva, 13ª. ed, p. 90.
quarta-feira, 20 de julho de 2016

WhatsApp: de novo?

E não é que aconteceu de novo? Milhões de brasileiros lesados por uma decisão isolada de uma magistrada. E o país continua em queda vertiginosa em termos de imagem1... É difícil compreender a intenção de quem profere esse tipo de decisão. Eu pergunto: será que os argumentos lançados são feitos para criar um clima de autoconvencimento no irreal? No insustentável? A pessoa escreve, lê, não pensa em mais nada além do que está escrito (e que ela própria escreveu) e diz para si mesma: "É isso!" Eu, hoje, falei com a filha de meu amigo Outrem Ego, que tem apenas 13 anos de idade. Ela me disse: "Eu uso WhatsApp para falar com minhas amigas e meus amigos, mas também para estudar, repassar lições, avisar meus pais onde estou, e pedir ajuda quando preciso. O que eu fiz para merecer ficar sem o Whats?". É uma boa pergunta de uma adolescente. Há muito tempo que se sabe que os serviços de telefonia são essenciais. E, claramente, o serviço do WhatsApp também se tornou um. E com uma vantagem: é de graça! E o fato de ser gratuito garantiu que a comunicação possa ser feita por milhões de pessoas que jamais poderiam faze-lo pelo sistema tradicional de telefonia paga. Trata-se de um serviço privado com benefícios públicos que nunca o Estado propiciou. É pura e tão somente algo positivo, útil e essencial. Está certo, muitas das comunicações entre os usuários não são relevantes, mas e daí? Todas aquelas que são significativas - quer seja em maior ou menor número, não importa - são mais do que suficientes para que o serviço não possa ser interrompido. São pessoas que estão em viagem nos aeroportos, nas cidades pelo Brasil e pelo exterior, ou fazendo negócios nacional ou internacionalmente, ou trocando informações importantes, ou ainda cuidando da própria saúde ou de seus parentes, enfim, retirar a prerrogativa das pessoas exercerem esse direito fundamental de comunicação é de uma violência incrível, além, claro, de ilegal! Ou para ficarmos apenas com um dos exemplos que eu utilizei no artigo anterior: pensemos numa distribuidora de água. Ela se nega a informar a quantidade de água que foi fornecida para certo lugar, onde larápios enchiam piscinas para cultivarem peixes exóticos preservados, cuja criação em cativeiro é proibida. Pode o juiz determinar que toda a cidade fique sem água até que a empresa conte? É bastante assustador que coisas como o corte do serviço do WhatsApp possa ocorrer! Para repetir: o país já não anda bem na fita em termos de imagem e desse jeito só fica pior... _________ 1 Em maio p.p. eu publiquei outro artigo mostrando minha indignação e, certamente, a de milhões de brasileiros sobre o mesmo tema.
Já referi nesta coluna o conselho que os pais dão a seus filhos menores: "Nunca fale com estranhos!". Essa máxima, aliás, é universal e reconhecida como conselho necessário aos pequenos. No entanto, paradoxalmente, os pais, sem alternativa, deixam que os estranhos falem com seus filhos, crianças e adolescentes, todos os dias. Não só falem como também os assediem e tentem seduzi-los com promessas de aventuras e alegrias várias. Explico. Os menores, todos os dias, estão sujeitos aos anúncios publicitários, especialmente da tevê, mas também de outros veículos como a internet, as redes sociais, as revistas etc.. Os responsáveis por produzirem esses anúncios, por planejarem as ofertas, por bolarem promessas atraentes, são pessoas desconhecidas. Aliás, desconhecidas também dos adultos. E com intenções mais ou menos ocultas, contam estórias e apresentam uma série de fantasias para tentar convencer os pequenos a se interessarem por seus produtos e serviços e, com isso, pressionarem os pais a adquiri-los. Pergunto: por que é que os pais não gostam que seus filhos falem com um estranho? Ora, porque desconfiam que algo ruim pode acontecer, têm medo que esse terceiro tenha más intenções, que possa causar danos aos pequenos etc. Os pais sabem que, mesmo sorrindo ou estando bem vestido, o estranho pode estar escondendo algo maléfico por detrás da aparência. Pois bem. Muitos desses desconhecidos apresentam-se exatamente assim, travestidos de heróis, portando-se como amigos ou falando pela boca de personagens conhecidos e queridos. Quem são eles? São pessoas bem formadas: universitários, técnicos, marqueteiros, publicitários, que estudam horas a fio e que planejam o melhor modo de abordagem. E esse tipo de comunicação não atinge apenas os menores. Eu tenho insistido num ponto: o de que o debate a respeito da possibilidade da existência da publicidade dirigida aos menores é salutar não porque pode, eventualmente, gerar leis proibitivas e limites para os anunciantes. Ele é bem vindo, por que pode produzir uma conscientização naqueles que são igualmente responsáveis pelas compras: os pais. Sim, os pais se esquecem que, eles próprios, recebem o mesmo ou até um maior fluxo de sugestões pela via da comunicação mercadológica. "Desconhecidos" falam com eles, sem cessar, por todos os veículos existentes. E, muitas vezes, são eles mesmos, os adultos, que fazem a divulgação dos elementos ofertados, na medida em que mostram e falam sobre o compraram e se comportam como esperam os fornecedores. Sei que é difícil resistir, pois o mercado sempre dá um jeito de oferecer algo rápido, prático e nem sempre barato. A propósito, eu gosto de lembrar um exemplo singelo de um tipo de oferta que aparece como num passe de mágica, adivinhando o que o consumidor quer ou precisa. Aqui em São Paulo, capital, é muito comum (e, talvez, também seja em outros lugares). Veja, caro leitor: o dia está claro, céu limpo, aparentemente sem possibilidade de chuva. De repente, surgem as nuvens e começa a chover. As pessoas são pegas de surpresa e tem que se proteger das águas. Mas, não é que, misteriosamente, aparece nas ruas uma série de vendedores ambulantes oferecendo guarda-chuvas? Dou esse exemplo para elogiar, pois esses vendedores são úteis, necessários e aparecem na hora e no local em que o consumidor precisa. Guardadas as devidas proporções, é o que fazem as administradoras de cartões de crédito, oferecendo chance para as compras; ou, então, os bancos, que diretamente no caixa eletrônico oferecem empréstimo com liberação na hora! Não é mesmo fácil fugir do assédio de estranhos, por isso todo cuidado é pouco. Crianças e adolescentes estão sujeitos a abusos, mas os adultos também. É preciso muita cautela e reflexão antes de qualquer compra, pois não é sempre que a oferta diz respeito a alguns trocados para adquirir mais um guarda-chuva para uma garoa imprevista. Muitas vezes, ela significa um endividamento graúdo e com juros altíssimos!
quinta-feira, 7 de julho de 2016

O consumidor quer mesmo ser protegido?

Eu já citei anteriormente meu amigo Outrem Ego, fazendo uma ironia ao ver anunciada mais um Feirão da Casa Própria promovido pela Caixa Econômica Federal (CEF). Ele disse: "Sempre que vejo isso, me vem a imagem do marido que diz pra sua mulher num sábado à tarde: 'Querida, vamos dar uma saidinha? Vamos até o shopping, pois eu tenho que comprar uma gravata e você precisa daquela bolsa, lembra? Depois, na volta, já que estamos no caminho, nós aproveitamos e compramos um apartamento de três quartos porque este aqui com dois está pequeno demais'". Pode isso? O mais incrível é que pode. No início de junho passado, a CEF promoveu a 12ª edição do Feirão da Casa Própria em São Paulo, realizado no Pavilhão de Exposições do Anhembi. Conforme informou a Caixa, quase 33 mil pessoas visitaram o espaço. Estavam à disposição mais de 75 mil imóveis entre novos e usados. 91 construtoras estavam representadas e 1,2 mil funcionários do banco participaram do feirão. Ao todo, foram fechados 13,3 mil contratos em três dias de evento, o que gerou um movimento de R$ 2,9 bilhões1! Fica difícil tentar proteger o consumidor que não quer ser protegido. Aliás, esse é um bom exemplo de que excesso de proteção não ajuda em nada. Nossa legislação é protecionista; os órgãos de defesa do consumidor produzem proteção o tempo todo; o Poder Judiciário, na dúvida, como não poderia deixar de ser, decide a favor da parte vulnerável, isto é o consumidor; enfim, sobra proteção. Mas, não é que o consumidor age de maneira estranha e abre mão de todo esse aparato protecionista? Há motivos psicológicos, claro, e os fornecedores conhecem bem o perfil de seus clientes, mas alguns comportamentos dos consumidores são realmente fora da curva. A participação nesses 'feirões' parece-me um bom exemplo. Com efeito, o chamado "feirão da casa própria", promovido nos últimos anos, é um esquema de vendas que acabou vingando. A CEF promove, por intermédio de anúncios espalhados na mídia, um tipo de oferta que envolve o consumidor em seus temores, anseios e esperanças. Ademais, nessa questão, surge o problema da desinformação, pois o comprador está agindo contra as cautelas normais e necessárias que se exige nesse tipo de transação. E com a agravante de tirar mercado dos advogados. Comprar um imóvel sem o aconselhamento de um advogado é um erro grave! Tem razão o meu amigo: uma casa ou um apartamento não devem jamais ser comprados numa exposição de fim de semana, como se a pessoa estivesse comprando frutas na feira livre ou numa liquidação tipo queima de estoque de roupas ou sapatos. A casa própria é, para a grande maioria dos consumidores, o mais importante (e mais caro) negócio da vida inteira. É a realização de um sonho e, por isso, deve ser tratado com a reflexão e o carinho que merece. Indo numa dessas "promoções", o consumidor corre o risco de comprar um imóvel por impulso, sem qualquer avaliação objetiva, pois, quando chega ao local, sofre todo tipo de pressão e influência dos vendedores, cujo maior interesse é vender, fechar um bom negócio com polpudas comissões. Para o comprador, fica, às vezes, a frustração (mais uma e essa praticamente definitiva) de morar onde não tinha exatamente planejado e, ainda por cima, endividado pelo compromisso assumido de longo prazo (10, 15, 20 anos ou mais). Ora, sabe-se que, antes de se comprar um imóvel, é preciso conhecê-lo, examinando-o para ver se ele atende às necessidades e expectativas. Deve-se vistoriá-lo não só de dia, no horário marcado pelo corretor ou vendedor, mas também em outro período, procurando conhecer as condições da vizinhança à noite - barulhos, trânsito, etc. É importante conhecer a região para ver se ela oferece aquilo que o comprador precisa, como escolas, farmácias, supermercados, etc. Aliás, como disse, esse tipo de operação rouba mercado dos próprios advogados, que deveriam ser sempre consultados antes do fechamento desse negócio. Não só há necessidade da produção e exame de certidões forenses e do Cartório do Registro Imobiliário, como da avaliação de todas as peculiaridades daquela específica operação jurídica. Por exemplo, a compra de imóvel por empreitada ou preço de custo ou feita pelo Sistema Financeiro de Habitação, etc. envolve aspectos bem diferenciados. Em alguns casos é preciso inclusive checar se não há projeto para desapropriação do local: se o imóvel está localizado numa rua importante ou perto de estrada ou área de manancial, etc. É preciso saber, ainda, em alguns casos, se a área não é de proteção ambiental, etc. Lembro, naturalmente, que cada situação comporta componentes próprios de avaliação que devem ser levados em consideração, além das preliminares e genéricas que apresentei. As questões concretas e particulares devem, por isso, ser levadas a um advogado especialista. É uma pena. O capitalismo é muito selvagem, ganancioso e egoísta e o consumidor apresenta-se cada vez mais abertamente frágil em seus comportamentos e ações. __________ 1 Feirão da Caixa em São Paulo movimenta quase R$ 3 bilhões.
Aproveito este espaço para falar do resultado do Brexit que, certamente, tem impacto seríssimo não só na economia europeia como na do mundo todo. Ou seja, afeta de modo direto o capitalismo que conhecemos. E como falarei do processo democrático e dos britânicos, ninguém melhor que Winston Churchill para apontar algo da democracia: "Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos". Tendo em vista a catástrofe que foi o resultado do referendo/plebiscito1 no Reino Unido, que resultou na saída da União Europeia, não resisto em colocar alguns aspectos para reflexão. Eis a pergunta que não quer calar: com tanta gente cuidando do mesmo assunto, com tantos pensadores ingleses, escoceses, europeus etc., como é que foram organizar um plebiscito, cujo resultado seria tão importante, com a possibilidade de que a decisão pudesse se dar com tão pequena margem de votos e sem levar em consideração a participação percentual dos votantes em relação à população? E ainda por cima num turno só? Naturalmente, não se pode a priori prever o resultado de nenhum referendo popular, mas numa sociedade madura e racional, há que se prever as consequências de um ou outro resultado e como isso afetaria toda a população. E no presente caso, não só a população de nacionalidade britânica, mas também os estrangeiros que lá vivem e, por que nâo?, as consequências que envolveriam as demais comunidades. No mundo capitalista em que vivemos nenhuma nação pode agir - com o perdão do trocadilho - como se fosse uma ilha. Estamos todos conectados. Ora, o Reino Unido somente ingressou na União Europeia em 1973, muitos anos após o início da unificação feita pelo Tratado de Roma de 1957. E ingressou com suas exigências particulares, cujo fato mais evidente foi a manutenção de sua própria moeda, a Libra Esterlina. Havia muita desconfiança em relação à entrada dos britânicos no bloco. E para apaziguar os ânimos dos eurocéticos, o então primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson convocou um referendo sobre a adesão em 1975. E veja que interessante: a consulta obteve a aprovação de 67% dos votantes. Vitória expressiva, muito acima da margem do Brexit. Como é sabido, essa união foi benéfica para todos: Reino Unido e Europa unificada. Há os que não gostam? Sempre há. Mas, o fato é que pelo mundo afora e racionalmente falando, os melhores pensamentos jamais foram pela saída. Ok, tudo bem, vai se dizer, mas não é democrático perguntar para a população o que ela quer? Sim, talvez, mas com critérios inteligentes. Nem vou me aprofundar naquela famosa discussão sobre pena de morte e democracia. É muito conhecido o embate a respeito: se para ser contra a pena de morte, bastasse a democracia pelo sistema de consulta popular, a pena capital talvez ainda estivesse em vigor em muitos lugares, nos quais já foi devidamente abolida. Infelizmente, nem sempre perguntar à população gera resultados positivos, racionais e humanistas... Não é o caso do Brexit, certamente, mas a cautela impunha outra dimensão à consulta. A situação é tal que, em apenas três dias, mais de três milhões de pessoas já assinaram uma petição dirigida ao Parlamento Britânico pedindo a realização de um segundo referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia (UE). Os critérios propostos na petição são muito mais justos, racionais e, de certo modo, mais democráticos: o texto pede aos deputados para introduzirem uma norma que force a convocação de um segundo referendo e neste o cálculo para a saída ou permanência na UE deve ser o seguinte: mínimo de 60% dos votos, com uma participação de 75% do eleitorado. É incrível, mas não foi pensado nem mesmo num segundo turno, que pudesse convalidar o resultado de uma eleição tão fundamental para a economia global e para a vida de milhões de pessoas. A esperança está numa mensagem na página da internet da Câmara dos Comuns, que diz que a petição requerendo novo plebiscito será debatida, como todas as iniciativas de cidadãos que reúnam mais de 100.000 assinaturas. E, como diria Winston Churchill, que cito mais uma vez: "Não há mal nenhum em mudar de opinião. Contanto que seja para melhor". __________ 1 Estou usando os termos de forma indiscriminada, embora haja alguma diferença entre eles: como se sabe, o plebiscito é utilizado para consulta sobre tema que esteja numa fase anterior à elaboração de alguma lei proposta pelo governo ou parlamento. Referendo é uma consulta popular, no qual a população se manifesta sobre uma lei ou ato constituído, ou seja, é uma votação convocada para ratificar ou rejeitar o que já existe.
Nos últimos dias, o noticiário tem mostrado que o governo Temer, dentre as várias medidas a serem tomadas, está cogitando modificar o sistema de aposentadorias pública e privada. Não farei qualquer comentário de ordem política ou econômica a respeito, eis que há vários publicados e muito bem feitos, explicando o problema existente e a necessidade ou não da reforma a ser proposta, o que, evidentemente, afeta a expectativa de milhões de brasileiros. No entanto, li também que existe uma discussão em torno do "direito adquirido" dos que já estão no mercado de trabalho. É sobre isso que falo abaixo, pois a questão do direito adquirido e da expectativa do direito é bem conhecida até pelos estudantes do primeiro ano da Faculdade de Direito. Aliás, é tão simples que, peço licença ao leitor para transcrever trecho de meu livro Manual de Introdução ao Estudo do Direito, que explica o tema1. Eis: Direito adquirido, como o nome sugere, é o que já se incorporou definitivamente ao patrimônio e/ou à personalidade do sujeito de direito. Em outros termos, o direito torna-se adquirido por consequência concreta e direta da norma jurídica ou pela ocorrência, em conexão com a imputação normativa, de fato idôneo, que gera a incorporação ao patrimônio e/ou à personalidade do sujeito. Diz respeito, portanto, a uma ocorrência real e concreta, diante de norma jurídica vigente em dado momento histórico. Esse direito adquirido, uma vez incorporado ao patrimônio e/ou à personalidade, não pode ser atingido por norma jurídica nova. Por exemplo, uma lei garante aposentadoria por tempo de serviço ao trabalhador após 35 anos de serviços. Certo cidadão trabalhou 36 anos e ainda não se aposentou. Requerendo ou não a aposentadoria, ele tem direito adquirido de se aposentar, pois já se verificou concretamente a hipótese legal para a aquisição do direito: o trabalho exercido por 35 anos. Suponhamos que, após esse trabalhador ter adquirido o direito de se aposentar (que se incorporou à sua personalidade aos 35 anos de serviços), surja nova lei dizendo que a aposentadoria só será possível aos 40 anos de serviço efetivo. Nesse caso ele não seria atingido pela lei nova: pode simplesmente se aposentar. Todavia, uma coisa é o direito adquirido, outra diferente é a expectativa de direito. Esta é a mera possibilidade de aquisição de direito, que, dependendo da implementação de certas circunstâncias, ainda não se consumou. A expectativa, por mais legítima que possa ser, não tem garantia contra a lei nova. Tomemos o exemplo já citado, com a lei permitindo que o trabalhador se aposente após 35 anos de serviços. Suponhamos, agora, diferente: que o empregado tenha prestado serviços por 34 anos. Dir-se-á: ele ainda não pode aposentar-se, pois só terá direito (adquirido) de fazê-lo um ano depois (com 35 anos de trabalho). Digamos que surja nesse interregno de um ano que lhe falta, uma nova lei que estipula a concessão da aposentadoria após 40 anos de serviço efetivo. Nesse caso, tal trabalhador não poderá aposentar-se. Ele ainda não tinha direito adquirido quando surgiu a lei nova, mas tão somente expectativa de direito. De fato, o evento pode ser doloroso, mas a verdade é que esse trabalhador não tem proteção contra a lei nova (é por isso que em casos de alterações de leis desse tipo - aposentadoria adquirida por tempo de serviço - a boa técnica manda que se coloque a lei nova em vigor somente após alguns anos ou que a lei nova assegure certos direitos - proporcionais, por exemplo - para aqueles que ainda estavam na expectativa). Essa é pois, nua e crua, a situação jurídica. O imbróglio, claro, envolve expectativas, que são legítimas, daqueles que querem se aposentar. Para essas expectativas haverá muitas posições políticas, econômicas e sociais a serem apresentadas, estudadas e que, naturalmente, devem ser levadas em consideração. __________ 1 Manual de Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo: Saraiva, 13ª. edição, págs. 270/272.
quinta-feira, 2 de junho de 2016

A inveja como elemento de estagnação social

Rizzatto Nunes e Claudia Calmon Começamos contando uma piada: Três estudantes que estavam na mesma universidade, ao irem participar de uma excursão numa grande floresta, perderam-se do restante do grupo. De repente, um deles encontrou uma garrafa mágica, a abriu e dela saiu um gênio. Este disse aos três: "Eu sou um gênio e dou a cada um de vocês o direito de realizar um desejo. Vocês podem me pedir qualquer coisa". O primeiro, muito ambicioso e competitivo, disse: "Eu tenho um vizinho, o John, ele mora numa mansão incrível! Eu quero uma mansão maior que a dele". O segundo, do tipo solidário, disse: "Eu tenho um vizinho, o Henry. Ele mora num castelo maravilho. Eu quero um castelo igualzinho ao dele". O terceiro, invejoso, disse: "Eu tenho um vizinho, o Igor. Ele tem um porco. Eu quero que você mate o porco dele". Agora uma narrativa de quem sofreu os efeitos da inveja. Bernard Tapie, o famoso empresário francês, em seu livro autobiográfico intitulado "Ganhar", dentre várias narrativas interessantes sobre como vencer na vida, mostra como a inveja é anti-producente e sempre estimula a paralisia. E, a respeito dela, ele conta uma fábula. Vamos narrar com nossas palavras o que aprendemos dessa história. É mais ou menos assim: Havia duas irmãs, uma bacana, simpática, de vida normal com altos e baixos como todo mundo, e outra, invejosa, que vivia sofrendo. Certo dia, uma fada madrinha aparece para a invejosa e diz: "Vejo que você sofre. Pelos poderes que eu detenho posso te dar o que você quiser. Basta você pedir". A moça, então, pergunta: "O que você dará para minha irmã"? A fada responde: "Isso não é importante, pois para você eu darei o que quiser. Pode pedir. Pode pedir qualquer coisa. Pode ser um castelo, podem ser milhões em ouro; pode até ser um príncipe! É só pedir". A moça invejosa insiste: "Não! Primeiro eu preciso saber o que você dará para minha irmã"? "Ora, peça qualquer coisa, eu tenho o poder de te dar...", voltou a repetir a fada. Mas, não adiantou. A invejosa repetiu: "Não quero. Primeiro me diga o que dará para minha irmã." "Está bem", disse a fada, dando-se por vencida. "Para sua irmã eu vou dar o dobro do que você pedir". Então, a moça invejosa, pensou um pouco e depois fez o pedido: "Está bem. Eu quero que você me fure um olho". *** Resolvemos escrever este artigo por termos lido uma matéria que falava do "ódio aéreo" e que estava gerando problemas em voos e preocupação de companhias de aviação. Esse tal ódio seria o dos passageiros da classe econômica em relação aos da classe executiva1. Ódio? Sim, talvez alguns "odeiem" e sintam raiva. Mas, preferimos pensar na inveja, tema que trazemos hoje para reflexão. O efeito da inveja na sociedade nem sempre é facilmente identificado; às vezes, nem mesmo o invejoso percebe claramente o sentimento. Até atitudes de sarcasmo ou ironia podem ocultar a inveja. De todo modo, o que os pesquisadores mostram é que em locais nos quais as pessoas são invejosas, a sociedade fica estagnada, parada ou até mesmo anda para trás. Ao contrário dos meios competitivos, onde o movimento social é para a frente, em direção ao progresso. Quando pesquisamos a doutrina sobre a inveja, percebemos que alguns dizem que o invejoso quer possuir o que o outro possui. Mas, isso não é verdade. Quem diz isso não entende a inveja. O invejoso não quer o que o outro tem. Não! Querer o que outro tem está ligado à admiração e também à competição. Com efeito, a admiração é um sentimento positivo, pois faz crescer o admirado e o admirador. Queremos dizer: de algum modo, quando alguém admira o outro ou as obras e realizações do outro, este é enaltecido e elevado moralmente (e, muitas vezes, materialmente, quando, por exemplo, valorizam-se suas obras) e, de certo modo, o admirador também se enaltece, pois participa de alguma maneira do objeto admirado; guarda-o dentro de si, faz com que ele melhore sua alma, sua experiência de vida. Assim, a admiração e também os modelos competitivos estimulam os agentes sociais e impulsionam o movimento das sociedades; são elementos dinâmicos que dão vida e geram progresso. E não pensemos que competição diz respeito apenas aos esportes. Ela está em todos os lugares e se for bem administrada é bastante saudável: existe competição entre cientistas, pesquisadores, escritores, artistas, professores, médicos, advogados, engenheiros etc.. E a história da humanidade mostra como isso é muito bom com os casos de desenvolvimento e superação: um superando o outro, um ultrapassando o que o outro fez, melhorando suas invenções, aperfeiçoando sua arte, reorganizando as pesquisas do outro, aperfeiçoando seus produtos e serviços etc.. E isso é progresso. Já, como dizia Bertrand Russell, "o invejoso, em vez de sentir prazer com o que possui, sofre com o que os outros têm". Ele é, assim, negativo e inativo, passivo. Fica no sofrimento olhando o outro. E o mais importante: ele não quer ter o que o outro tem; nem igual nem melhor. O invejoso quer tirar o que o outro tem! Mas, como dito acima, nem sempre a inveja é facilmente identificável, porque o invejoso pode agir nas sombras, às escondidas, por meio de intrigas e fofocas. Ele aumenta, inventa, deturpa, sempre com o objetivo de diminuir a imagem do invejado ou tentando fazer com que o invejado perca o que possui, que pode ser uma propriedade, um cargo, um título honorífico, um namoro ou casamento sólido, a alegria no lar, a felicidade entre amigos, um emprego seguro, rentável ou que dê visibilidade, enfim, qualquer bem material ou imaterial que afete o invejoso. Portanto, a inveja é sempre negativa, é ação de diminuição de bens, posições, dignidades. O invejoso, como da anedota ou o da fábula narrada acima, prefere perder um olho para cegar o invejado do que enxergar melhor que ele. *Claudia Calmon é pedagoga, formada pela PUC/SP e fez cursos de especialização no Instituto Loris Malaguzzi em Reggio Emilia, Itália e com Howard Gardner em Harvard. __________ 1 Matéria publicada no Caderno de Turismo do jornal Folha de São Paulo de 6/5/2016.
Vira e mexe, especialmente quando vejo casos como o que eu narrarei abaixo (de uma deficiente visual que caiu nos trilhos dos trens do Metrô de São Paulo), eu me lembro de um caso que julguei no Tribunal de Justiça de São Paulo: ao analisar um recurso de apelação sob minha relatoria, a primeira coisa que li foi a alegação da ré - uma companhia de transportes - dizendo que não havia prova do dano moral sofrido pela autora. A ação havia sido julgada procedente com condenação em indenização por danos morais, sendo que os fatos e a responsabilidade da ré eram incontroversos. Com os autos em mãos, fui para as primeiras páginas, e me deparei com as fotos juntadas com a petição inicial. A autora havia perdido as duas pernas, dos joelhos para baixo! E a ré disse que a autora não havia feito prova do dano moral! Precisava? Como é que teve a coragem de dizer aquilo? Nós, claro, acabamos condenando a ré como litigante de má-fé. Pois bem. Há muito que se sabe que não se pode falar qualquer coisa num processo judicial. O papel aceita, porém quem lê, muitas vezes, sente-se ofendido. Lembro disso, mas, na verdade, quero colocar outra questão para reflexão e que envolve a situação existente antes mesmo do embate judicial, e que poderia ser muito salutar para a sociedade: o de que é preciso criar mecanismos para que empresas e também pessoas físicas assumam suas responsabilidades quando elas estão escancaradas. Às vezes, basta um pouco de coragem ou mesmo inteligência. Caro leitor, recentemente, a 38ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão da lavra do ilustre desembargador Achile Alesina, condenou a Companhia do Metropolitano de São Paulo e sua seguradora a pagarem R$20.000,00 a título de indenização por danos morais a uma passageira deficiente visual (Apelação 0188451-20.2011.8.26.0100, j. 30/3/2016, v.u.). A autora da ação é deficiente visual total desde seu nascimento. No dia 21/7/2011 utilizando o metrô para retornar à sua residência, desembarcou na estação Guilhermina. Ficou aguardando auxílio de um funcionário da empresa por 40 minutos sem ser atendida. Sua irmã a aguardava no piso superior. Não podendo mais esperar, ela resolveu tentar encontra-la. Infelizmente, acabou caindo nos trilhos dos trens e sofreu diversas contusões e hematomas. Foi socorrida pelos outros passageiros que passavam e acabou sendo levada para o hospital pela irmã. Esses fatos eram incontroversos nos autos e, certamente, eram de conhecimento da administração da Companhia do Metropolitano e também de sua seguradora. No entanto, condenadas as empresas em primeira instância, a seguradora recorreu alegando que não havia prova do dano moral sofrido pela autora! Pergunto: porque é que as grandes empresas prestadoras de serviços (de transportes ou de outro tipo) e suas seguradoras quando se deparam com um caso como esse em que não há qualquer dúvida da ocorrência decorrente da falha do serviço, pura e simplesmente não assumem sua responsabilidade legal de indenizar? Falhas nos serviços de massa oferecidas aos consumidores sempre existirão. Não é possível dar conta de todas as obrigações, cobrir todas as situações o tempo todo; alguma coisa sempre escapa, algum empregado se distrai ou o sistema não funciona, enfim, é por aí que os acidentes acontecem e os danos ocorrem. Foi por isso, aliás, que o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu a responsabilidade civil objetiva do prestador do serviço. Mas, ora, constatado o dano, não há porque se colocar contra o consumidor, que deve ser prontamente atendido e indenizado. E, havendo ação judicial, não há motivo para resistência, sob pena de parecer ofensivo e a oposição infundada demostrar má fé e também, muitas vezes, desprezo pela pessoa humana.
quinta-feira, 12 de maio de 2016

Cinema e direito do consumidor

Quando ainda estava no Brasil, meu amigo Outrem Ego foi ao teatro com a mulher. Como sempre, ele portava uma garrafa plástica com água. Quando foi entrar na sala, o segurança disse: "A garrafa de água não pode entrar. O senhor tem que jogar fora". Meu amigo não se abalou. Acostumado a lidar com questões sociais com muita elegância, ele disse ao segurança: "Está bem. Mas, por favor, anote aí o número de minha poltrona - e mostrou o ingresso para o segurança. Como eu sou diabético, tenho que beber água a toda hora. Como não posso levar a garrafa, daqui, mais ou menos, uma hora vou passar mal e, talvez, desmaiar". O segurança, então, permitiu que ele entrasse com a garrafa plástica. Não era verdade, mas funcionou. Conto esse caso porque uma matéria publicada aqui em Migalhas fez-me lembrar1. Com efeito, este poderoso rotativo noticiou que a Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex (Abraplex) ajuizou ADPF (398) no STF contra as decisões que têm considerado inválida a prática adotada pelas salas de exibição que impedem o ingresso de pessoas com alimentos e bebidas comprados em outros estabelecimentos. Segundo a Abraplex, as decisões, que têm aplicado jurisprudência do STJ sobre a matéria, estão causando lesão e restrição à livre iniciativa, "sem base legal específica e em descompasso com práticas adotadas mundialmente no mesmo setor econômico". Ora, ora, como já mostrei alhures, essa prática de impedir que o consumidor ingresse na sala de exposição do cinema com a pipoca comprada fora do local é abusiva; é uma espécie de operação casada ilegal às avessas2. Como se sabe, a chamada operação casada ou simplesmente venda casada é uma imposição feita pelo fornecedor ao consumidor. Ela se dá quando o vendedor exige do consumidor que, para ele comprar um produto, tem que obrigatoriamente adquirir outro (o mesmo se dá com os serviços). Algumas dessas operações são bem conhecidas. Dentre elas estão certas imposições feitas por bancos para abrir conta ou oferecer crédito, como, por exemplo, somente dar empréstimos se o consumidor fechar algum tipo de seguro (residencial ou de vida). Outro exemplo é o do comerciante que só serve a bebida no bar se o consumidor comprar um prato de acompanhamento, etc. No caso dos cinemas, há uma particularidade que deve ser levada em consideração primeiramente: o expositor pode, caso queira, impedir que o consumidor coma dentro de sua sala de exposição (penso que não pode, de modo algum, impedir que o consumidor porte garrafa plástica de água, bem essencial e pode ser necessário a critério do próprio consumidor). Se não quiser que se coma nas salas pode, assim, impedir que o consumidor ingresse com alimentos. Mas, se permite que o consumidor assista ao filme comendo a alimentação que ele próprio vende, não pode negar-se a deixar que o consumidor ingresse com o que adquiriu do lado de fora. Trata-se de uma prática abusiva casada às avessas, pois quer forçar o consumidor a comprar os produtos vendidos no local. Além do que, é antipático e improducente. A maior parte dos consumidores compra sua pipoca, doces, chocolates, sorvetes e refrigerantes ali mesmo porque é mais prático. Ademais, o argumento de que o abuso é praticado em outros lugares do mundo é pífio. No Brasil nós temos sim lei que proíbe a prática: o Código de Defesa do Consumidor (artigos 39, "caput" e incisos I e V e também art. 51, IV). Se em outros lugares abusam, vamos ensiná-los como se faz, não é? Aliás, já que estou tocando no assunto das salas de exposição dos cinemas, lembro também algo dito por meu amigo O. Ego. Ele disse que uma evolução das relações expositor-público, seria, de algum modo, dar o direito ao consumidor de receber o valor do ingresso de volta toda vez que o filme exibido for de má qualidade, pois há muita oferta enganosa e porcarias sendo exibidas: a pessoa só percebe que o filme não presta quando o assiste, "obviamente". E, de fato, sou obrigado a concordar, pois, por causa dele, fui obrigado a sofrer numa sala de exposições. Tudo começou quando ele me contou o seguinte: "Passei por uma experiência horrível. Minha filha queira ir ao cinema com uma amiga. Eu me propus a leva-las. Duas adolescentes e eu. Íamos assistir ao filme "Alvim e os esquilos 4". Mas, lá chegando, o horário não batia. Daí, elas viram um cartaz com o Zac Efron, astro juvenil, que fazia papel de neto, cujo avô era interpretado por Robert de Niro. Bem, topei. O título em Portugal era simpático: "Um avô muito a frente" (e enganoso...). Muito bem. Foi o pior filme que eu já assisti na minha vida! E, infelizmente, como levara uma amiga de minha filha, não consegui tirá-las da sala de projeção antes de terminar. Fui obrigado a ir até o fim com náuseas e até hoje ainda reflito no mal que o filme deve ter feito à minha filha (e aos demais adolescentes...)". Como ele sabe que gosto muito de filmes, pediu que eu assistisse e comentasse. Dei minha palavra e fui até o fim (é a primeira vez que faço isso num filme ruim. Nos demais, simplesmente levanto-me e vou embora). Ruim? Muito mais. O nome no Brasil já antecipava a catástrofe: "Tirando o atraso" (Do original "Dirty Grandpa"). Foi o pior filme que eu já assisti: sexista, homofóbico, racista, escatológico, imbecil, repleto de grosserias e perversões. Faltam adjetivos. Um lixo! Robert de Niro, em fim de carreira, levantando uns trocados para fazer aquilo. Uma vergonha! E o jovem Zac Efron que até prometia - é um bom cantor - está continuando muito mal a carreira. Eu nem sabia que se pudesse fazer algo tão estúpido! Bem, com esse resumo de terror, retorno à questão dos expositores e do direito do consumidor. Várias vezes o espectador devia ter o direito de dizer: "Quero meu dinheiro do ingresso de volta"! Seria o mínimo num filme execrável como este. Porque indo até o fim, é quase caso de indenização por danos morais. _________ 1 Migalhas 3.849. 2 Falo em operação casa "ilegal" porque existem operações casadas legais.
Vamos supor que a empresa que fornece energia elétrica se negue a cortar a energia de um determinado local que está cercado pela polícia. Esta fez o certo sob a acusação de que lá dentro estão bandidos fortemente armados. Na circunstância dessa negativa, pode o juiz determinar que toda a cidade fique sem luz por causa do descumprimento da ordem? Digamos que seja a distribuidora de água. Ela se nega a informar a quantidade de água que foi fornecida para certo lugar, onde larápios enchiam piscinas para cultivarem peixes exóticos preservados, cuja criação em cativeiro é proibida. Pode o juiz determinar que toda a cidade fique sem água até que a empresa conte? Suponhamos, agora, que uma companhia telefônica se negue a entregar os dados das chamadas telefônicas de integrantes de quadrilhas de traficantes para que se possa fazer o rastreamento das ligações e descobrir os criminosos da rede. Pode o juiz mandar desligar toda a rede de telefonia de uma determinada região, deixando milhões de pessoas sem telefone? Antigamente, diríamos: "Claro que não, Pedro Bó!" As três respostas às questões acima são mais que evidentes: só podem ser não. Do contrário, seria falta de bom senso, aliás, não haveria um mínimo de razão que justificasse a medida. Então, por que por mais de uma vez algum juiz resolve bloquear o WhatsApp? É bastante assustador que isso possa ocorrer! Desse jeito, qualquer dia desses, quando o Diretor de uma escola se negar a cumprir uma medida judicial, por exemplo, de entrega de diploma a um aluno, o juiz irá suspender as aulas de todos até que o documento seja expedido! A situação é bastante grave, pois são milhões de usuários que se utilizam do WhatsApp, inclusive, profissionalmente e no mundo todo. Cortar a ligação com o Brasil é como impedir que as pessoas do mundo todo entrem em contato com os brasileiros. Durma-se com um barulho desses! O país já não anda bem na fita em termos de imagem e desse jeito só fica pior... Decisões como essa que por conta de uma ou duas pessoas, retira o direito de milhões de outros usarem um serviço, sempre nos levam a pensar na polêmica questão da responsabilidade do magistrado por erro na decisão. Não estou, claro, falando da responsabilidade civil do Estado pelo erro Judiciário. Esta não se discute. Estou falando da responsabilidade do próprio prolator da decisão judicial, especialmente quando ela é estapafúrdia e viola os mais comezinhos princípios de direito. E, como se sabe a legislação permite a responsabilização apenas em caso de dolo. Para os consumidores do Brasil e do mundo, fica apenas o direito de abrir a boca e perguntar: "E eu, o que tenho a ver com isso?", "Se nada fiz, por que meu direito foi suprimido?" E não se pode ficar esperando que os tribunais reformem as esdrúxulas decisões de primeiro grau. Alguma coisa mais precisa ser feita. Caro leitor, desculpe o desabafo, mas está demais! *** PS.: Quando já tinha este artigo pronto, li uma matéria defendendo a decisão, sob o fundamento de que o uso do WhatsApp é de interesse "privado". Ora, faz muito tempo - pelo menos desde 1990 quando da edição do CDC - que se sabe que o interesse da coletividade de consumidores é público e não privado. Quando o direito de milhões de pessoas é atingido, evidentemente trata-se de uma enorme coletividade e, logo o interesse é público sim. Ademais, cortar o serviço de comunicação entre pessoas gera prejuízos diretos de vários tipos, inclusive no que diz respeito à segurança (alguém que não pode pedir ajuda ou socorro), saúde (alguém que não pode solicitar auxílio médico), profissionais e econômicos (pessoas que deixam de fazer seus negócios) e um longo etc. Nem preciso fazer referência à leis como, por exemplo, a do marco civil da internet, pois a situação como acima indiquei, é de simples bom senso.
Em tempos de ofensas verbais (e também físicas, com tapas e cusparadas), é preciso muito cuidado com o uso das palavras e das comunicações. Em termos de sociedade capitalista, sabe-se que há muito tempo os profissionais de marketing descobriram que, para vender produtos e serviços, a comunicação com seu público-alvo poderia ser feita de modo indireto, com subterfúgios, com imagens ao invés de palavras, com frases que não necessariamente falassem do produto nem do serviço a ser vendido, etc.. Do ponto de vista da mudança na forma de comunicação, poderíamos dizer, a grosso modo, que antigamente a oferta apontava para a coisa em si e, com o passar do tempo, foi buscando metáforas ou símbolos que pudessem agradar e atrair o consumidor para as compras. Por exemplo, antigamente um anúncio de tevê diria o seguinte a respeito de uma geladeira: "Nossa geladeira é linda, espaçosa, dura muito e mantém os produtos fresquinhos". Mais para a frente, o anúncio diria: "Se você tiver nossa geladeira em sua cozinha, irá brilhar e ser especial. Todo mundo admira quem tem uma geladeira como essa". A comunicação passou, digamos assim, de uma fase de apresentação concreta do bem a ser vendido para uma fase psicológica, social e até política da inserção do consumidor na sociedade. Cada vez mais, o marqueteiro passou a investigar os anseios, desejos e interesses do consumidor. Não esqueceu, claro, das necessidades de seu público-alvo, mas passou a chamar atenção de seu coração, de sua imaginação e também de sua própria imagem construída no meio social. Isso de algum modo afetou e afeta a comunicação feita pelas pessoas entre si e em relação aos fornecedores, às instituições, ao grupo social a que pertencem etc., e até em relação às pessoas com quem se digladiam ou de quem discordam. Algumas palavras e frases têm indicações expressas e outras, são metafóricas, mas carregadas de sentido (por exemplo, "cdf", "rolezeiro", "patricinha", "playboy", "mauricinho", "coxinha", "mortadela", "petralha", etc.). Mas, em todos os casos, quer nos expressos, quer nos indiretos, há grande chance de confusão e incompreensão não só de quem recebe a comunicação como também por quem a faz e dependendo do ambiente pode significar "bullying", ofensa à honra, etc. O grande escritor e semiólogo Umberto eco, recém-falecido, ensina que a vida é paradigma das palavras. A partir da ideia de que semiose é um processo de produção de significados, diz ele que "existe uma semiose natural exercida quase que instintivamente pelos humildes dotados de experiência, para os quais os vários aspectos da realidade, se interpretados com prudência e conhecimento dos casos da vida, apresentam-se como sintomas, índices" e que existe uma "semiose artificial da linguagem verbal, a qual se revela insuficiente para dar conta da realidade ou é usada explicitamente e com malícia para mascará-la, quase sempre com fins de poder"1. De todo modo, muitos termos, tomados ao pé da letra de forma descuidada, isto é, sem um estudo mais aprofundado, podem gerar equívocos importantes ou simplesmente engraçados. E em tempos de comunicação de massa via web/redes sociais, a possibilidade de emissão de mensagens (e palavras) enganadoras ou postadas de forma deliberadamente falsas podem divertir e/ou causar danos. Veja isto: há cerca de dois anos, a imprensa publicou e foi bastante replicada a informação de que um bispo, líder de uma igreja evangélica, acreditando no poder da língua inglesa - isto é, vivendo neste ambiente em que o inglês, ao menos aparentemente domina - fez uma pregação extraordinária para seus seguidores: ele proibiu que os fiéis de sua igreja consumissem a maionese da marca Hellmann's. Disse o bispo que, traduzindo o nome da maionese da língua inglesa para a portuguesa, o resultado seria 'homem do inferno', já que hell significa inferno e man, homem. Para reforçar seu ponto de vista, ele teria dito aos seguidores: "Você passaria o satanás no seu pão? Colocaria ele na sua salsicha ou comeria ele na sua salada com a sua família?". O problema do bispo é que, como se sabe, a colocação da apóstrofe após o nome e antes do ésse, significa que algo pertence ao nome vindo antes. E Helmmann é o nome do criador da maionese, Richard Helmann, um alemão que a inventou e começou a vendê-la em 19052. Além disso, como a palavra tem origem alemã, na pior das hipóteses poderia ser traduzida por homem da luz ou gente da luz (hell = claro, iluminado, luminoso e man = gente, alguém), muito ao contrário do que ele pregou. Depois foi demonstrado que a notícia era falsa: uma brincadeira. A verdade é que usada de forma direta ou metafórica, as palavras e as frases podem dizer muito sobre quem as pronuncia e também podem ser usadas para vender produtos e serviços ou, ainda, para enganar, manipular, agredir, injuriar, causar danos etc.. __________ 1 "Entre e mentira e a ironia". RJ: Editora Record, 2ª. Ed., 2006, págs. 30 e 31. 2 Retirei essa informação do site da Helmann's.
Como já contei, meu amigo Outrem Ego agora reside em Portugal. E, com a vivência diária, ele tem visto alguns casos envolvendo violação ao Direito do Consumidor, parecidos com os que também se vê por aqui. Caro leitor, eis um deles: Ele ouviu numa rádio local uma propaganda do Deutsche Bank com sede em Portugal. Ele conta: "O anúncio dizia mais ou menos isso: se você é cliente do Deutsche Bank consegue 1% de rendimento numa aplicação de noventa dias. E para quem ainda não é cliente, basta tornar-se, que o rendimento é de 1,25%". Ele achou que tivesse ouvido errado. O cliente recebe menos do que quem não é cliente? Resolveu, então, investigar e foi ao site do banco. E o que ele encontrou confirma a publicidade. Eis alguns trechos da proposta que está no site: "Ao lançarmos a campanha "Cash to Invest" estamos a dar oportunidade aos clientes, que transfiram "fresh Money" (novos recursos), de ganhar 1% desde que invistam a totalidade ou parte num ou mais dos produtos em campanha"." (...) "Veja como funciona para novos clientes: Para aderirem a esta campanha terão que abrir uma conta no Deutsche Bank. Todo o processo é semelhante ao dos atuais clientes, com a diferença que receberão 1,25% do valor investido. (...) "Voe rumo a esta campanha": "Montante mínimo a transferir de 25.000?; Para clientes atuais oferta de 1% do valor transferido que for investido; para novos Clientes a percentagem será 1,25%; Para atuais e novos clientes o prémio máximo é de 10.000?; Valor creditado num período até 3 meses após adesão à campanha"1. Bem, como disse a meu amigo, para dar uma opinião jurídica precisaria, primeiramente, investigar se, de fato, as legislações portuguesa e europeia permitem esse tipo de discriminação, que eu poderia intitular de "invertida", o que não me parece sensato. Todavia, posso comentar o assunto pensando na lógica jurídica ou na lógica (simplesmente) e, eventualmente, comparando a situação com o Direito do Consumidor brasileiro. Pois bem. Quando se aponta uma violação ao princípio da igualdade, como regra, ela diz respeito a uma discriminação odiosa, isto é, oferecem-se mais direitos a um que a outro quando ambos estão na mesma posição legal. Imaginemos que a pessoa seja cliente do banco há um, dois ou dez anos e que nesse tempo todo, na relação estabelecida, tenha dado algum ou muito rendimento ao agente financeiro com o pagamento de taxas, custas, juros etc. E, de repente, uma outra pessoa que jamais pisou numa agência do banco ou sequer entrou em seu site, recebe uma oferta de campanha na qual terá maiores benefícios que o cliente tradicional. Faz sentido? Trata-se de natural inversão das relações empresa-consumidor. Eu já afirmei nesta coluna, mais de uma vez, que o sistema de fidelização é válido (desde que livremente estabelecido) exatamente porque dá privilégios aos clientes antigos e tradicionais. Não há nenhum problema e nenhuma discriminação odiosa no fato da empresa privilegiar clientes antigos e com bom histórico de relacionamento em detrimento dos novos clientes, que ainda não estreitaram as relações. Isso porque, os clientes antigos geraram bastante receita para a empresa e daí ela pode favorecê-los em promoções, campanhas etc.. Mas, o inverso não é verdadeiro. A campanha do banco referido faz exatamente o oposto: privilegia aquele que nem ainda é cliente! É ilógico, fere o bom senso, viola o princípio da igualdade e as bases das relações entre a empresa e seus clientes. No Brasil, com base no Código de Defesa do Consumidor, penso que na existência de uma oferta desse tipo, os clientes antigos poderiam pleitear o recebimento da taxa de 1,25% oferecida aos não-clientes. E, claro, sei que, por aqui, existem empresas que fazem campanhas parecidas, às vezes camufladas, para atrair novos clientes, o que é naturalmente uma violação ao Direito dos Consumidores que já se relacionam com a empresa e que pode gerar demandas judiciais similares a que referi. __________ 1 Grupo Deutsche Bank.
Nos últimos dias, o noticiário mostrou que uma médica pediatra negou-se a atender uma criança porque sua mãe era filiada ao PT. E, comentando o assunto na rádio Band News na data de 31 de março, o âncora, Ricardo Boechat, disse que havia chegado ao conhecimento dele que, em uma escola privada, um professor, defensor do PT, ameaçara de morte um aluno que não pactuava de suas ideias. Aliás, infelizmente, vivemos um momento nas redes sociais em que o ódio está sendo disseminado abertamente e de forma apaixonada, sem que se leve em consideração a realidade dos fatos, triste realidade... Mas, caro leitor, eis o tema para reflexão: médicos que decidem se atendem ou não um paciente pela filiação partidária? Professores que perseguem alunos que não pensam como eles na posição política? Como disse meu amigo Outrem Ego, sempre atento às questões éticas, "se a moda pega, muito em breve teremos profissionais da saúde palmeirenses negando-se a atender doentes corintianos". Esses episódios fizeram-me lembrar da impagável série de tevê americana, M.A.S.H. exibida de 1972 a 1983. A premiada série era um aberto manifesto antibélico, que tinha como alvo a Guerra do Vietnã, mas que se passava numa guerra anterior, a da Coreia, igualmente violenta. Trata-se de uma sátira com episódios que faziam pensar. Eis um deles: os médicos, dentre eles um, interpretado pelo ator Alan Alda, estavam aguardando feridos numa cabana montada no meio da selva e tinham poucos equipamentos e apenas uma maca, que permitia fazer o atendimento de uma pessoa por vez. Eis que chegam ao mesmo tempo dois feridos: um compatriota americano e um soldado aliado sul-coreano. Surge um impasse: qual deles atender primeiro? Risco de morte havia para os dois e a demora poderia permitir o salvamento de apenas um. De forma irônica e trágica, os médicos, que eram todos americanos, passam, então, a discutir qual eles atenderiam em primeiro lugar. Perguntam se a nacionalidade era importante, se a idade contaria, etc., elementos que pudessem ajudar na solução. Para nós não importa muito qual foi a saída (que me lembre, os médicos decidiram atender o que chegou alguns segundos antes do outro); o importante era o dilema moral colocado (ou, no caso, seria um dilema jurídico, já que se tratava de aliados numa guerra?). Num outro episódio, um comandante do exército e um médico caminham pela mata quando são atacados por soldados inimigos. O comandante entrega uma arma ao médico e diz: "Atira!", mas ele se nega. Responde: "Se eu colocar uma bala em alguém, depois terei de remover". O comandante insiste e argumenta que é para salvar a vida deles próprios. Daí, o médico fecha os olhos, aponta na direção dos inimigos e grita "Cuidado, estou atirando..." Bem, tratava-se de ficção e sarcasmo. Porém, fazia-nos refletir. Pode mesmo um médico negar-se a fazer um atendimento, ainda que não seja de urgência, somente porque discorda da posição política do paciente? E um professor, pode avaliar (ou ameaçar, o que é pior) um aluno que não professe a mesma convicção ideológica? Sabemos que a defesa da neutralidade científica é um dilema antigo e que foi bem desenvolvido por Max Weber no início do século XX (ele defendia que o cientista há de ser neutro, que ele deve operar "objetivamente" seus instrumentos de pesquisa, não deixando que seus valores pessoais interfiram nos trabalhos de observação dos fatos) e também sabemos da dificuldade de sua implementação humana e real. Mas, como perguntou meu amigo O. Ego: "Se não se puder trabalhar com, ao menos, uma 'racionalidade objetiva e neutra' o mais possível, como é que se exercerá certas profissões? Em especial aquelas que exigem uma apuração e aplicação técnica, como a medicina, a biologia, as perícias em geral, e em muitos pontos a judicatura, assim como outras profissões jurídicas, e também a psiquiatria etc.? Como é que um juiz poderia julgar um processo em qualquer instância do Poder Judiciário desde a primeira até as Cortes Superiores? Como é que um delegado apuraria um crime ou um Membro do Ministério Público faria um acusação? Como um psicanalista ou um psiquiatra atenderia um paciente, um doente, um psicopata? Um médico não tem que cuidar do corpo da pessoa? De sua saúde e de sua doença? Uma discussão contratual posta em juízo não tem de ser examinada segundo as regras legais e não em função do que pensam as partes a respeito do momento político? E numa denúncia por furto ou roubo, o time de futebol do coração do acusado importa?" Objetei que tudo indica que uma neutralidade total, isto é, como queria Max Weber, a produção de uma ciência com total independência dos valores é impossível. E a própria palavra objetividade aponta para uma dificuldade adicional que é a de postular por uma análise pura, sem intermediários de um objeto científico, algo que parece fadado ao insucesso. As escolhas sempre são feitas antes ou durante a investigação. "Sim", disse ele, mas colocou a questão da técnica: "Não estou usando de retórica. Não! A questão é de atitude mental, racional e profissional. Quer se goste ou não do time para qual torce um doente, o médico tem de atende-lo de igual modo como aos demais. E o mesmo se dá com o professor em sala de aula etc.". De fato. Quanto a certos profissionais, como o médico, o psiquiatra, o perito, a magistrado, o delegado, etc., o que se espera é que sua conduta esteja corretamente ligada aos elementos técnicos de sua profissão, independente do fato dele gostar ou não do engajamento ou do pensamento político de seu cliente ou das pessoas envolvidas com seu mister, nem pelo fato delas serem mais importantes ou menos importantes socialmente. Trata-se de um limite imposto à consciência pela necessidade de exercício pleno e correto da profissão.
quinta-feira, 31 de março de 2016

A proteção da criança-consumidora

Aproveito a vitória obtida pelo Instituto Alana no STJ, no início deste mês, numa ação judicial visando a coibir a utilização de publicidade abusiva que tenha como público-alvo as crianças, para, mais uma vez, retornar a esse importante tema regulado pelo CDC há mais de 25 anos (o CDC, como se sabe, fez aniversário de 25 anos de sua entrada em vigor no último dia 11).Nós, adultos, em matéria de consumo, estamos praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de ilusão e controle. Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo que nos obriga a consumir, consumir e consumir é o da tomada de consciência do processo histórico, que se instituiu a partir das chamadas revoluções burguesa e industrial e que vem sendo oferecida como um projeto de liberdade. Falsa liberdade, na medida em que quase todo seu exercício resume-se a adquirir produtos e serviços, cuja escolha é limitada àquilo que é decidido unilateralmente pelos fornecedores.Vamos, pois, alguns de nós, lutando contra o poder impositivo do mercado e outros nem se dando conta desse aprisionamento. Muito bem. Pergunto: é esse o futuro que desejamos para nossas crianças? É esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indivíduos medem-se pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e não por aquilo que são? Claro que nem toda culpa é do mercado e, na medida em que os adultos são capazes de pensar, raciocinar e decidir, certamente eles são responsáveis por seus atos de compras (nesse aspecto, por exemplo, a web é boa auxiliar na descoberta de produtos e serviços que podem ou devem ser comprados, no aconselhamento para evitar consumo excessivo e sem sentido etc..). Porém, o modelo vigente exerce grande influência sobre as pessoas, de tal modo que grande parte delas acaba se alienando nas compras e acredita piamente no que vê na publicidade: a pressão é tão forte que atordoa o consumidor de tal modo que ele, jogado à própria individualidade, nem sempre sabe como agir. Vendo tevê, por exemplo, assiste-se ao mundo perfeito dos anúncios publicitários: o de bancos mostrando seus gerentes sempre sorrindo e oferecendo vantagens a seus clientes, enquanto na realidade estes são, às vezes, por eles enganados. Há, também, a propaganda de veículos maravilhosos, que nunca quebram; de serviços telefônicos excelentes etc.; enfim, um longo desfile de produtos e serviços muito diferentes do real. Há, pois, dois mundos: o da publicidade e o dos fatos.Naturalmente, repito, é incumbência dos adultos conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para tentar desvendar as enganações e discernir sobre o que é válido e verdadeiro. Mas, pergunto: e as crianças, como estão posicionadas nesta sociedade capitalista? Como é que elas recebem o espetacular assédio do marketing e suas armas?Com certeza, a limitação ou, até mesmo, o fim da publicidade de produtos e serviços dirigida às crianças seria recebida como uma dádiva pelos milhões de mães e pais que lutam duramente para a mantença de suas famílias e sofrem com o assédio dessas ofertas. Mas, enquanto isso não vem (se é que virá), cabe aos pais o dever de vigilância. É verdade que muitos desses pais já foram absorvidos por todas as formas de consumo e, inclusive, utilizam-se do próprio mercado para controlarem seus filhos, o que é uma pena. Não que seja simples. Ainda que os pais tenham o costume de limitar a exposição de seus filhos à tevê, basta um pouco para a percepção do ataque (uma verdadeira guerra de anúncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, mesmo que o filho tenha o uso de internet limitado, é suficiente também apenas algum tempo de navegação para estar sujeito a uma explosão de ofertas.E, se não bastasse isso, há toda a sedução do merchandising feito em programas de tevê, filmes de cinema, vídeo e até teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal, vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato é inevitável e não há mesmo nada de errado em frequentar shoppings, cinemas, teatros, viajar, assistir tevê etc. Isso tudo, digamos assim, no campo das ofertas lícitas. Mas, existe também uma enormidade de campanhas e anúncios enganosos e abusivos dirigidos diretamente às crianças.O problema da publicidade em geral dirigida às crianças e também da publicidade ilícita é que ela cria um jogo colocando as crianças (isto é, os filhos) contra os pais. Estes, inseridos nesta sociedade capitalista - e também eles, como acima referi, sujeitos aos estímulos, malandragens e manipulações do marketing - entram nesse jogo sem perceber e, muitas vezes, por se sentirem culpados. Alguns pais trabalham o dia inteiro e têm pouco tempo livre para dedicarem aos filhos; outros procuram propiciar aos filhos o que nunca tiveram - o que não é raro, porque a maior parte dos produtos e serviços existentes atualmente não existia na infância dos pais, e com a produção em massa muitos deles tornaram-se acessíveis. Pressionados pelos filhos, os pais compram e dão os produtos.Desse modo, as crianças vão sendo inseridas no mundo capitalista dos produtos desnecessários muito prematuramente e também vão perdendo a infância antes da hora. Como observa a educadora Claudia Freesz Calmon, com toda razão: a relação entre pais e filhos passa a ser intermediada por objetos - produtos adquiridos com sacrifício ou não. Se for com sacrifício, acresce-se à intermediação feita pelo objeto o sentimento de culpa. As crianças, de seu lado, aprendem a se relacionar pedindo coisas e os dois lados trocam muitas vezes a atenção e o carinho por produtos.Sei que cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos.Mas, lembrando a vitória judicial do Instituto Alana: cumprir o CDC, que está em vigor há mais de 25 anos, ajuda bastante!
As manifestações de rua por cidades de todo o Brasil no último domingo, enormes - as maiores de todas - e pacíficas, mostraram muitas coisas, bem o mal avaliadas pelos blogueiros espalhados nos vários veículos de comunicação e também pela web. Para não deixar passar em branco, quero fazer um curto comentário, mostrando a forte presença do capitalismo nos eventos ou, melhor, dos modos de expressão, apresentação e oferta do sistema capitalista. Como disse mais de uma vez nesta coluna, o capitalismo é uma ideologia "neutra" no sentido de que não se incomoda com nenhum modo de pensamento, desde que sua instrumentalização e/ou utilização possa gerar lucro. Os modelos de produção e oferta capitalistas estão nas igrejas, nas escolas, nos esportes "amadores", etc.. Na política e nas passeatas, faz tempo que aportou. Vejamos sua atuação na avenida Paulista em São Paulo. Alberto Saraiva, fundador e administrador das redes Habib's e Ragazzo, não só apoiou o movimento como esteve pessoalmente na manifestação, mas anoto um detalhe: ele também comemorou o fato de ter vendido, nada mais, nada menos que 22.500 coxinhas na região! Ele mesmo conta: "O movimento foi incrível na Ragazzo Express da Paulista. Testamos até um modelo novo de venda. Instalamos ali perto uma bicicleta com uma estufa com capacidade para 400 coxinhas. Tínhamos cinco sabores e cada uma custava 1,98 reais. Vendemos tudo. Entre a loja e a bike, vendemos 22.500 coxinhas. Coxinha é comigo mesmo! Rs"1. O caso do empresário Alberto Saraiva mostra como a inteligência e a estratégia são muito favoráveis ao modelo (e, no caso, também, a ironia). Vê-se aí o senso de oportunidade e o olhar atento para com aquilo que interessa, afeta e atende aos interesses dos consumidores e que fazem bem aos negócios. Outro ponto evidente foi a venda de camisetas, bonés, máscaras, bandeiras, etc., que já fazem parte das "tradições" em matéria de manifestação popular. Os fabricantes desses produtos são também bons observadores do mercado e pescadores de oportunidades. Mas, no que diz respeito à camisa da seleção brasileira de futebol, li um artigo dizendo que seu criador, o gaúcho Aldyr Schlee, não gostou de vê-la usada como símbolo. Ao ver seu uniforme pelas ruas do país no domingo, ele lamentou. Disse: "Infelizmente, ela está sendo usada apesar de todas as safadezas da CBF" (...) "O símbolo da corrupção está sendo usado em uma campanha contra a corrupção"2. Naturalmente, respeitando a opinião do criador do modelo de camisa, eu não vi assim. De fato, ao que consta não só a CBF como também a FIFA são organizações que há muito tempo andam fora da linha e, como está sendo apurado, seus dirigentes estão envolvidos em ações ilegais e corruptas. Mas, não só o Brasil e suas cores são maiores que a CBF, como a seleção de futebol é também um patrimônio nacional imaterial. Os dirigentes da CBF (e também da FIFA) vão passar, mas a seleção brasileira permanecerá com suas cores e inspiração. Não era um ato contra a CBF, daí, parece-me que o que valia mesmo eram as cores do Brasil. E que, obviamente, comprovam o que eu estou aqui tratando: o mercado sabe sim vender o que interessa aos consumidores. No caso, camisas da seleção canarinho e dos ídolos do futebol. Na realidade, penso que o modelo capitalista está colocado à disposição de qualquer pessoa que dele queira se utilizar. Tanto faz o que a pessoa pense ou qual sua posição ideológica, nem se é a favor ou contra o governo de plantão ou passado. O que importa é produzir, oferecer, vender e faturar. Se os políticos caem, sobem, mudam, renunciam, etc. não é relevante, desde que, claro, o regime econômico (capitalista) permaneça. __________ 1 Fonte: Veja São Paulo.   2 Fonte:  Band Esporte.