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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 7 de julho de 2016

O consumidor quer mesmo ser protegido?

Eu já citei anteriormente meu amigo Outrem Ego, fazendo uma ironia ao ver anunciada mais um Feirão da Casa Própria promovido pela Caixa Econômica Federal (CEF). Ele disse: "Sempre que vejo isso, me vem a imagem do marido que diz pra sua mulher num sábado à tarde: 'Querida, vamos dar uma saidinha? Vamos até o shopping, pois eu tenho que comprar uma gravata e você precisa daquela bolsa, lembra? Depois, na volta, já que estamos no caminho, nós aproveitamos e compramos um apartamento de três quartos porque este aqui com dois está pequeno demais'". Pode isso? O mais incrível é que pode. No início de junho passado, a CEF promoveu a 12ª edição do Feirão da Casa Própria em São Paulo, realizado no Pavilhão de Exposições do Anhembi. Conforme informou a Caixa, quase 33 mil pessoas visitaram o espaço. Estavam à disposição mais de 75 mil imóveis entre novos e usados. 91 construtoras estavam representadas e 1,2 mil funcionários do banco participaram do feirão. Ao todo, foram fechados 13,3 mil contratos em três dias de evento, o que gerou um movimento de R$ 2,9 bilhões1! Fica difícil tentar proteger o consumidor que não quer ser protegido. Aliás, esse é um bom exemplo de que excesso de proteção não ajuda em nada. Nossa legislação é protecionista; os órgãos de defesa do consumidor produzem proteção o tempo todo; o Poder Judiciário, na dúvida, como não poderia deixar de ser, decide a favor da parte vulnerável, isto é o consumidor; enfim, sobra proteção. Mas, não é que o consumidor age de maneira estranha e abre mão de todo esse aparato protecionista? Há motivos psicológicos, claro, e os fornecedores conhecem bem o perfil de seus clientes, mas alguns comportamentos dos consumidores são realmente fora da curva. A participação nesses 'feirões' parece-me um bom exemplo. Com efeito, o chamado "feirão da casa própria", promovido nos últimos anos, é um esquema de vendas que acabou vingando. A CEF promove, por intermédio de anúncios espalhados na mídia, um tipo de oferta que envolve o consumidor em seus temores, anseios e esperanças. Ademais, nessa questão, surge o problema da desinformação, pois o comprador está agindo contra as cautelas normais e necessárias que se exige nesse tipo de transação. E com a agravante de tirar mercado dos advogados. Comprar um imóvel sem o aconselhamento de um advogado é um erro grave! Tem razão o meu amigo: uma casa ou um apartamento não devem jamais ser comprados numa exposição de fim de semana, como se a pessoa estivesse comprando frutas na feira livre ou numa liquidação tipo queima de estoque de roupas ou sapatos. A casa própria é, para a grande maioria dos consumidores, o mais importante (e mais caro) negócio da vida inteira. É a realização de um sonho e, por isso, deve ser tratado com a reflexão e o carinho que merece. Indo numa dessas "promoções", o consumidor corre o risco de comprar um imóvel por impulso, sem qualquer avaliação objetiva, pois, quando chega ao local, sofre todo tipo de pressão e influência dos vendedores, cujo maior interesse é vender, fechar um bom negócio com polpudas comissões. Para o comprador, fica, às vezes, a frustração (mais uma e essa praticamente definitiva) de morar onde não tinha exatamente planejado e, ainda por cima, endividado pelo compromisso assumido de longo prazo (10, 15, 20 anos ou mais). Ora, sabe-se que, antes de se comprar um imóvel, é preciso conhecê-lo, examinando-o para ver se ele atende às necessidades e expectativas. Deve-se vistoriá-lo não só de dia, no horário marcado pelo corretor ou vendedor, mas também em outro período, procurando conhecer as condições da vizinhança à noite - barulhos, trânsito, etc. É importante conhecer a região para ver se ela oferece aquilo que o comprador precisa, como escolas, farmácias, supermercados, etc. Aliás, como disse, esse tipo de operação rouba mercado dos próprios advogados, que deveriam ser sempre consultados antes do fechamento desse negócio. Não só há necessidade da produção e exame de certidões forenses e do Cartório do Registro Imobiliário, como da avaliação de todas as peculiaridades daquela específica operação jurídica. Por exemplo, a compra de imóvel por empreitada ou preço de custo ou feita pelo Sistema Financeiro de Habitação, etc. envolve aspectos bem diferenciados. Em alguns casos é preciso inclusive checar se não há projeto para desapropriação do local: se o imóvel está localizado numa rua importante ou perto de estrada ou área de manancial, etc. É preciso saber, ainda, em alguns casos, se a área não é de proteção ambiental, etc. Lembro, naturalmente, que cada situação comporta componentes próprios de avaliação que devem ser levados em consideração, além das preliminares e genéricas que apresentei. As questões concretas e particulares devem, por isso, ser levadas a um advogado especialista. É uma pena. O capitalismo é muito selvagem, ganancioso e egoísta e o consumidor apresenta-se cada vez mais abertamente frágil em seus comportamentos e ações. __________ 1 Feirão da Caixa em São Paulo movimenta quase R$ 3 bilhões.
Aproveito este espaço para falar do resultado do Brexit que, certamente, tem impacto seríssimo não só na economia europeia como na do mundo todo. Ou seja, afeta de modo direto o capitalismo que conhecemos. E como falarei do processo democrático e dos britânicos, ninguém melhor que Winston Churchill para apontar algo da democracia: "Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos". Tendo em vista a catástrofe que foi o resultado do referendo/plebiscito1 no Reino Unido, que resultou na saída da União Europeia, não resisto em colocar alguns aspectos para reflexão. Eis a pergunta que não quer calar: com tanta gente cuidando do mesmo assunto, com tantos pensadores ingleses, escoceses, europeus etc., como é que foram organizar um plebiscito, cujo resultado seria tão importante, com a possibilidade de que a decisão pudesse se dar com tão pequena margem de votos e sem levar em consideração a participação percentual dos votantes em relação à população? E ainda por cima num turno só? Naturalmente, não se pode a priori prever o resultado de nenhum referendo popular, mas numa sociedade madura e racional, há que se prever as consequências de um ou outro resultado e como isso afetaria toda a população. E no presente caso, não só a população de nacionalidade britânica, mas também os estrangeiros que lá vivem e, por que nâo?, as consequências que envolveriam as demais comunidades. No mundo capitalista em que vivemos nenhuma nação pode agir - com o perdão do trocadilho - como se fosse uma ilha. Estamos todos conectados. Ora, o Reino Unido somente ingressou na União Europeia em 1973, muitos anos após o início da unificação feita pelo Tratado de Roma de 1957. E ingressou com suas exigências particulares, cujo fato mais evidente foi a manutenção de sua própria moeda, a Libra Esterlina. Havia muita desconfiança em relação à entrada dos britânicos no bloco. E para apaziguar os ânimos dos eurocéticos, o então primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson convocou um referendo sobre a adesão em 1975. E veja que interessante: a consulta obteve a aprovação de 67% dos votantes. Vitória expressiva, muito acima da margem do Brexit. Como é sabido, essa união foi benéfica para todos: Reino Unido e Europa unificada. Há os que não gostam? Sempre há. Mas, o fato é que pelo mundo afora e racionalmente falando, os melhores pensamentos jamais foram pela saída. Ok, tudo bem, vai se dizer, mas não é democrático perguntar para a população o que ela quer? Sim, talvez, mas com critérios inteligentes. Nem vou me aprofundar naquela famosa discussão sobre pena de morte e democracia. É muito conhecido o embate a respeito: se para ser contra a pena de morte, bastasse a democracia pelo sistema de consulta popular, a pena capital talvez ainda estivesse em vigor em muitos lugares, nos quais já foi devidamente abolida. Infelizmente, nem sempre perguntar à população gera resultados positivos, racionais e humanistas... Não é o caso do Brexit, certamente, mas a cautela impunha outra dimensão à consulta. A situação é tal que, em apenas três dias, mais de três milhões de pessoas já assinaram uma petição dirigida ao Parlamento Britânico pedindo a realização de um segundo referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia (UE). Os critérios propostos na petição são muito mais justos, racionais e, de certo modo, mais democráticos: o texto pede aos deputados para introduzirem uma norma que force a convocação de um segundo referendo e neste o cálculo para a saída ou permanência na UE deve ser o seguinte: mínimo de 60% dos votos, com uma participação de 75% do eleitorado. É incrível, mas não foi pensado nem mesmo num segundo turno, que pudesse convalidar o resultado de uma eleição tão fundamental para a economia global e para a vida de milhões de pessoas. A esperança está numa mensagem na página da internet da Câmara dos Comuns, que diz que a petição requerendo novo plebiscito será debatida, como todas as iniciativas de cidadãos que reúnam mais de 100.000 assinaturas. E, como diria Winston Churchill, que cito mais uma vez: "Não há mal nenhum em mudar de opinião. Contanto que seja para melhor". __________ 1 Estou usando os termos de forma indiscriminada, embora haja alguma diferença entre eles: como se sabe, o plebiscito é utilizado para consulta sobre tema que esteja numa fase anterior à elaboração de alguma lei proposta pelo governo ou parlamento. Referendo é uma consulta popular, no qual a população se manifesta sobre uma lei ou ato constituído, ou seja, é uma votação convocada para ratificar ou rejeitar o que já existe.
Nos últimos dias, o noticiário tem mostrado que o governo Temer, dentre as várias medidas a serem tomadas, está cogitando modificar o sistema de aposentadorias pública e privada. Não farei qualquer comentário de ordem política ou econômica a respeito, eis que há vários publicados e muito bem feitos, explicando o problema existente e a necessidade ou não da reforma a ser proposta, o que, evidentemente, afeta a expectativa de milhões de brasileiros. No entanto, li também que existe uma discussão em torno do "direito adquirido" dos que já estão no mercado de trabalho. É sobre isso que falo abaixo, pois a questão do direito adquirido e da expectativa do direito é bem conhecida até pelos estudantes do primeiro ano da Faculdade de Direito. Aliás, é tão simples que, peço licença ao leitor para transcrever trecho de meu livro Manual de Introdução ao Estudo do Direito, que explica o tema1. Eis: Direito adquirido, como o nome sugere, é o que já se incorporou definitivamente ao patrimônio e/ou à personalidade do sujeito de direito. Em outros termos, o direito torna-se adquirido por consequência concreta e direta da norma jurídica ou pela ocorrência, em conexão com a imputação normativa, de fato idôneo, que gera a incorporação ao patrimônio e/ou à personalidade do sujeito. Diz respeito, portanto, a uma ocorrência real e concreta, diante de norma jurídica vigente em dado momento histórico. Esse direito adquirido, uma vez incorporado ao patrimônio e/ou à personalidade, não pode ser atingido por norma jurídica nova. Por exemplo, uma lei garante aposentadoria por tempo de serviço ao trabalhador após 35 anos de serviços. Certo cidadão trabalhou 36 anos e ainda não se aposentou. Requerendo ou não a aposentadoria, ele tem direito adquirido de se aposentar, pois já se verificou concretamente a hipótese legal para a aquisição do direito: o trabalho exercido por 35 anos. Suponhamos que, após esse trabalhador ter adquirido o direito de se aposentar (que se incorporou à sua personalidade aos 35 anos de serviços), surja nova lei dizendo que a aposentadoria só será possível aos 40 anos de serviço efetivo. Nesse caso ele não seria atingido pela lei nova: pode simplesmente se aposentar. Todavia, uma coisa é o direito adquirido, outra diferente é a expectativa de direito. Esta é a mera possibilidade de aquisição de direito, que, dependendo da implementação de certas circunstâncias, ainda não se consumou. A expectativa, por mais legítima que possa ser, não tem garantia contra a lei nova. Tomemos o exemplo já citado, com a lei permitindo que o trabalhador se aposente após 35 anos de serviços. Suponhamos, agora, diferente: que o empregado tenha prestado serviços por 34 anos. Dir-se-á: ele ainda não pode aposentar-se, pois só terá direito (adquirido) de fazê-lo um ano depois (com 35 anos de trabalho). Digamos que surja nesse interregno de um ano que lhe falta, uma nova lei que estipula a concessão da aposentadoria após 40 anos de serviço efetivo. Nesse caso, tal trabalhador não poderá aposentar-se. Ele ainda não tinha direito adquirido quando surgiu a lei nova, mas tão somente expectativa de direito. De fato, o evento pode ser doloroso, mas a verdade é que esse trabalhador não tem proteção contra a lei nova (é por isso que em casos de alterações de leis desse tipo - aposentadoria adquirida por tempo de serviço - a boa técnica manda que se coloque a lei nova em vigor somente após alguns anos ou que a lei nova assegure certos direitos - proporcionais, por exemplo - para aqueles que ainda estavam na expectativa). Essa é pois, nua e crua, a situação jurídica. O imbróglio, claro, envolve expectativas, que são legítimas, daqueles que querem se aposentar. Para essas expectativas haverá muitas posições políticas, econômicas e sociais a serem apresentadas, estudadas e que, naturalmente, devem ser levadas em consideração. __________ 1 Manual de Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo: Saraiva, 13ª. edição, págs. 270/272.
quinta-feira, 2 de junho de 2016

A inveja como elemento de estagnação social

Rizzatto Nunes e Claudia Calmon Começamos contando uma piada: Três estudantes que estavam na mesma universidade, ao irem participar de uma excursão numa grande floresta, perderam-se do restante do grupo. De repente, um deles encontrou uma garrafa mágica, a abriu e dela saiu um gênio. Este disse aos três: "Eu sou um gênio e dou a cada um de vocês o direito de realizar um desejo. Vocês podem me pedir qualquer coisa". O primeiro, muito ambicioso e competitivo, disse: "Eu tenho um vizinho, o John, ele mora numa mansão incrível! Eu quero uma mansão maior que a dele". O segundo, do tipo solidário, disse: "Eu tenho um vizinho, o Henry. Ele mora num castelo maravilho. Eu quero um castelo igualzinho ao dele". O terceiro, invejoso, disse: "Eu tenho um vizinho, o Igor. Ele tem um porco. Eu quero que você mate o porco dele". Agora uma narrativa de quem sofreu os efeitos da inveja. Bernard Tapie, o famoso empresário francês, em seu livro autobiográfico intitulado "Ganhar", dentre várias narrativas interessantes sobre como vencer na vida, mostra como a inveja é anti-producente e sempre estimula a paralisia. E, a respeito dela, ele conta uma fábula. Vamos narrar com nossas palavras o que aprendemos dessa história. É mais ou menos assim: Havia duas irmãs, uma bacana, simpática, de vida normal com altos e baixos como todo mundo, e outra, invejosa, que vivia sofrendo. Certo dia, uma fada madrinha aparece para a invejosa e diz: "Vejo que você sofre. Pelos poderes que eu detenho posso te dar o que você quiser. Basta você pedir". A moça, então, pergunta: "O que você dará para minha irmã"? A fada responde: "Isso não é importante, pois para você eu darei o que quiser. Pode pedir. Pode pedir qualquer coisa. Pode ser um castelo, podem ser milhões em ouro; pode até ser um príncipe! É só pedir". A moça invejosa insiste: "Não! Primeiro eu preciso saber o que você dará para minha irmã"? "Ora, peça qualquer coisa, eu tenho o poder de te dar...", voltou a repetir a fada. Mas, não adiantou. A invejosa repetiu: "Não quero. Primeiro me diga o que dará para minha irmã." "Está bem", disse a fada, dando-se por vencida. "Para sua irmã eu vou dar o dobro do que você pedir". Então, a moça invejosa, pensou um pouco e depois fez o pedido: "Está bem. Eu quero que você me fure um olho". *** Resolvemos escrever este artigo por termos lido uma matéria que falava do "ódio aéreo" e que estava gerando problemas em voos e preocupação de companhias de aviação. Esse tal ódio seria o dos passageiros da classe econômica em relação aos da classe executiva1. Ódio? Sim, talvez alguns "odeiem" e sintam raiva. Mas, preferimos pensar na inveja, tema que trazemos hoje para reflexão. O efeito da inveja na sociedade nem sempre é facilmente identificado; às vezes, nem mesmo o invejoso percebe claramente o sentimento. Até atitudes de sarcasmo ou ironia podem ocultar a inveja. De todo modo, o que os pesquisadores mostram é que em locais nos quais as pessoas são invejosas, a sociedade fica estagnada, parada ou até mesmo anda para trás. Ao contrário dos meios competitivos, onde o movimento social é para a frente, em direção ao progresso. Quando pesquisamos a doutrina sobre a inveja, percebemos que alguns dizem que o invejoso quer possuir o que o outro possui. Mas, isso não é verdade. Quem diz isso não entende a inveja. O invejoso não quer o que o outro tem. Não! Querer o que outro tem está ligado à admiração e também à competição. Com efeito, a admiração é um sentimento positivo, pois faz crescer o admirado e o admirador. Queremos dizer: de algum modo, quando alguém admira o outro ou as obras e realizações do outro, este é enaltecido e elevado moralmente (e, muitas vezes, materialmente, quando, por exemplo, valorizam-se suas obras) e, de certo modo, o admirador também se enaltece, pois participa de alguma maneira do objeto admirado; guarda-o dentro de si, faz com que ele melhore sua alma, sua experiência de vida. Assim, a admiração e também os modelos competitivos estimulam os agentes sociais e impulsionam o movimento das sociedades; são elementos dinâmicos que dão vida e geram progresso. E não pensemos que competição diz respeito apenas aos esportes. Ela está em todos os lugares e se for bem administrada é bastante saudável: existe competição entre cientistas, pesquisadores, escritores, artistas, professores, médicos, advogados, engenheiros etc.. E a história da humanidade mostra como isso é muito bom com os casos de desenvolvimento e superação: um superando o outro, um ultrapassando o que o outro fez, melhorando suas invenções, aperfeiçoando sua arte, reorganizando as pesquisas do outro, aperfeiçoando seus produtos e serviços etc.. E isso é progresso. Já, como dizia Bertrand Russell, "o invejoso, em vez de sentir prazer com o que possui, sofre com o que os outros têm". Ele é, assim, negativo e inativo, passivo. Fica no sofrimento olhando o outro. E o mais importante: ele não quer ter o que o outro tem; nem igual nem melhor. O invejoso quer tirar o que o outro tem! Mas, como dito acima, nem sempre a inveja é facilmente identificável, porque o invejoso pode agir nas sombras, às escondidas, por meio de intrigas e fofocas. Ele aumenta, inventa, deturpa, sempre com o objetivo de diminuir a imagem do invejado ou tentando fazer com que o invejado perca o que possui, que pode ser uma propriedade, um cargo, um título honorífico, um namoro ou casamento sólido, a alegria no lar, a felicidade entre amigos, um emprego seguro, rentável ou que dê visibilidade, enfim, qualquer bem material ou imaterial que afete o invejoso. Portanto, a inveja é sempre negativa, é ação de diminuição de bens, posições, dignidades. O invejoso, como da anedota ou o da fábula narrada acima, prefere perder um olho para cegar o invejado do que enxergar melhor que ele. *Claudia Calmon é pedagoga, formada pela PUC/SP e fez cursos de especialização no Instituto Loris Malaguzzi em Reggio Emilia, Itália e com Howard Gardner em Harvard. __________ 1 Matéria publicada no Caderno de Turismo do jornal Folha de São Paulo de 6/5/2016.
Vira e mexe, especialmente quando vejo casos como o que eu narrarei abaixo (de uma deficiente visual que caiu nos trilhos dos trens do Metrô de São Paulo), eu me lembro de um caso que julguei no Tribunal de Justiça de São Paulo: ao analisar um recurso de apelação sob minha relatoria, a primeira coisa que li foi a alegação da ré - uma companhia de transportes - dizendo que não havia prova do dano moral sofrido pela autora. A ação havia sido julgada procedente com condenação em indenização por danos morais, sendo que os fatos e a responsabilidade da ré eram incontroversos. Com os autos em mãos, fui para as primeiras páginas, e me deparei com as fotos juntadas com a petição inicial. A autora havia perdido as duas pernas, dos joelhos para baixo! E a ré disse que a autora não havia feito prova do dano moral! Precisava? Como é que teve a coragem de dizer aquilo? Nós, claro, acabamos condenando a ré como litigante de má-fé. Pois bem. Há muito que se sabe que não se pode falar qualquer coisa num processo judicial. O papel aceita, porém quem lê, muitas vezes, sente-se ofendido. Lembro disso, mas, na verdade, quero colocar outra questão para reflexão e que envolve a situação existente antes mesmo do embate judicial, e que poderia ser muito salutar para a sociedade: o de que é preciso criar mecanismos para que empresas e também pessoas físicas assumam suas responsabilidades quando elas estão escancaradas. Às vezes, basta um pouco de coragem ou mesmo inteligência. Caro leitor, recentemente, a 38ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão da lavra do ilustre desembargador Achile Alesina, condenou a Companhia do Metropolitano de São Paulo e sua seguradora a pagarem R$20.000,00 a título de indenização por danos morais a uma passageira deficiente visual (Apelação 0188451-20.2011.8.26.0100, j. 30/3/2016, v.u.). A autora da ação é deficiente visual total desde seu nascimento. No dia 21/7/2011 utilizando o metrô para retornar à sua residência, desembarcou na estação Guilhermina. Ficou aguardando auxílio de um funcionário da empresa por 40 minutos sem ser atendida. Sua irmã a aguardava no piso superior. Não podendo mais esperar, ela resolveu tentar encontra-la. Infelizmente, acabou caindo nos trilhos dos trens e sofreu diversas contusões e hematomas. Foi socorrida pelos outros passageiros que passavam e acabou sendo levada para o hospital pela irmã. Esses fatos eram incontroversos nos autos e, certamente, eram de conhecimento da administração da Companhia do Metropolitano e também de sua seguradora. No entanto, condenadas as empresas em primeira instância, a seguradora recorreu alegando que não havia prova do dano moral sofrido pela autora! Pergunto: porque é que as grandes empresas prestadoras de serviços (de transportes ou de outro tipo) e suas seguradoras quando se deparam com um caso como esse em que não há qualquer dúvida da ocorrência decorrente da falha do serviço, pura e simplesmente não assumem sua responsabilidade legal de indenizar? Falhas nos serviços de massa oferecidas aos consumidores sempre existirão. Não é possível dar conta de todas as obrigações, cobrir todas as situações o tempo todo; alguma coisa sempre escapa, algum empregado se distrai ou o sistema não funciona, enfim, é por aí que os acidentes acontecem e os danos ocorrem. Foi por isso, aliás, que o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu a responsabilidade civil objetiva do prestador do serviço. Mas, ora, constatado o dano, não há porque se colocar contra o consumidor, que deve ser prontamente atendido e indenizado. E, havendo ação judicial, não há motivo para resistência, sob pena de parecer ofensivo e a oposição infundada demostrar má fé e também, muitas vezes, desprezo pela pessoa humana.
quinta-feira, 12 de maio de 2016

Cinema e direito do consumidor

Quando ainda estava no Brasil, meu amigo Outrem Ego foi ao teatro com a mulher. Como sempre, ele portava uma garrafa plástica com água. Quando foi entrar na sala, o segurança disse: "A garrafa de água não pode entrar. O senhor tem que jogar fora". Meu amigo não se abalou. Acostumado a lidar com questões sociais com muita elegância, ele disse ao segurança: "Está bem. Mas, por favor, anote aí o número de minha poltrona - e mostrou o ingresso para o segurança. Como eu sou diabético, tenho que beber água a toda hora. Como não posso levar a garrafa, daqui, mais ou menos, uma hora vou passar mal e, talvez, desmaiar". O segurança, então, permitiu que ele entrasse com a garrafa plástica. Não era verdade, mas funcionou. Conto esse caso porque uma matéria publicada aqui em Migalhas fez-me lembrar1. Com efeito, este poderoso rotativo noticiou que a Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex (Abraplex) ajuizou ADPF (398) no STF contra as decisões que têm considerado inválida a prática adotada pelas salas de exibição que impedem o ingresso de pessoas com alimentos e bebidas comprados em outros estabelecimentos. Segundo a Abraplex, as decisões, que têm aplicado jurisprudência do STJ sobre a matéria, estão causando lesão e restrição à livre iniciativa, "sem base legal específica e em descompasso com práticas adotadas mundialmente no mesmo setor econômico". Ora, ora, como já mostrei alhures, essa prática de impedir que o consumidor ingresse na sala de exposição do cinema com a pipoca comprada fora do local é abusiva; é uma espécie de operação casada ilegal às avessas2. Como se sabe, a chamada operação casada ou simplesmente venda casada é uma imposição feita pelo fornecedor ao consumidor. Ela se dá quando o vendedor exige do consumidor que, para ele comprar um produto, tem que obrigatoriamente adquirir outro (o mesmo se dá com os serviços). Algumas dessas operações são bem conhecidas. Dentre elas estão certas imposições feitas por bancos para abrir conta ou oferecer crédito, como, por exemplo, somente dar empréstimos se o consumidor fechar algum tipo de seguro (residencial ou de vida). Outro exemplo é o do comerciante que só serve a bebida no bar se o consumidor comprar um prato de acompanhamento, etc. No caso dos cinemas, há uma particularidade que deve ser levada em consideração primeiramente: o expositor pode, caso queira, impedir que o consumidor coma dentro de sua sala de exposição (penso que não pode, de modo algum, impedir que o consumidor porte garrafa plástica de água, bem essencial e pode ser necessário a critério do próprio consumidor). Se não quiser que se coma nas salas pode, assim, impedir que o consumidor ingresse com alimentos. Mas, se permite que o consumidor assista ao filme comendo a alimentação que ele próprio vende, não pode negar-se a deixar que o consumidor ingresse com o que adquiriu do lado de fora. Trata-se de uma prática abusiva casada às avessas, pois quer forçar o consumidor a comprar os produtos vendidos no local. Além do que, é antipático e improducente. A maior parte dos consumidores compra sua pipoca, doces, chocolates, sorvetes e refrigerantes ali mesmo porque é mais prático. Ademais, o argumento de que o abuso é praticado em outros lugares do mundo é pífio. No Brasil nós temos sim lei que proíbe a prática: o Código de Defesa do Consumidor (artigos 39, "caput" e incisos I e V e também art. 51, IV). Se em outros lugares abusam, vamos ensiná-los como se faz, não é? Aliás, já que estou tocando no assunto das salas de exposição dos cinemas, lembro também algo dito por meu amigo O. Ego. Ele disse que uma evolução das relações expositor-público, seria, de algum modo, dar o direito ao consumidor de receber o valor do ingresso de volta toda vez que o filme exibido for de má qualidade, pois há muita oferta enganosa e porcarias sendo exibidas: a pessoa só percebe que o filme não presta quando o assiste, "obviamente". E, de fato, sou obrigado a concordar, pois, por causa dele, fui obrigado a sofrer numa sala de exposições. Tudo começou quando ele me contou o seguinte: "Passei por uma experiência horrível. Minha filha queira ir ao cinema com uma amiga. Eu me propus a leva-las. Duas adolescentes e eu. Íamos assistir ao filme "Alvim e os esquilos 4". Mas, lá chegando, o horário não batia. Daí, elas viram um cartaz com o Zac Efron, astro juvenil, que fazia papel de neto, cujo avô era interpretado por Robert de Niro. Bem, topei. O título em Portugal era simpático: "Um avô muito a frente" (e enganoso...). Muito bem. Foi o pior filme que eu já assisti na minha vida! E, infelizmente, como levara uma amiga de minha filha, não consegui tirá-las da sala de projeção antes de terminar. Fui obrigado a ir até o fim com náuseas e até hoje ainda reflito no mal que o filme deve ter feito à minha filha (e aos demais adolescentes...)". Como ele sabe que gosto muito de filmes, pediu que eu assistisse e comentasse. Dei minha palavra e fui até o fim (é a primeira vez que faço isso num filme ruim. Nos demais, simplesmente levanto-me e vou embora). Ruim? Muito mais. O nome no Brasil já antecipava a catástrofe: "Tirando o atraso" (Do original "Dirty Grandpa"). Foi o pior filme que eu já assisti: sexista, homofóbico, racista, escatológico, imbecil, repleto de grosserias e perversões. Faltam adjetivos. Um lixo! Robert de Niro, em fim de carreira, levantando uns trocados para fazer aquilo. Uma vergonha! E o jovem Zac Efron que até prometia - é um bom cantor - está continuando muito mal a carreira. Eu nem sabia que se pudesse fazer algo tão estúpido! Bem, com esse resumo de terror, retorno à questão dos expositores e do direito do consumidor. Várias vezes o espectador devia ter o direito de dizer: "Quero meu dinheiro do ingresso de volta"! Seria o mínimo num filme execrável como este. Porque indo até o fim, é quase caso de indenização por danos morais. _________ 1 Migalhas 3.849. 2 Falo em operação casa "ilegal" porque existem operações casadas legais.
Vamos supor que a empresa que fornece energia elétrica se negue a cortar a energia de um determinado local que está cercado pela polícia. Esta fez o certo sob a acusação de que lá dentro estão bandidos fortemente armados. Na circunstância dessa negativa, pode o juiz determinar que toda a cidade fique sem luz por causa do descumprimento da ordem? Digamos que seja a distribuidora de água. Ela se nega a informar a quantidade de água que foi fornecida para certo lugar, onde larápios enchiam piscinas para cultivarem peixes exóticos preservados, cuja criação em cativeiro é proibida. Pode o juiz determinar que toda a cidade fique sem água até que a empresa conte? Suponhamos, agora, que uma companhia telefônica se negue a entregar os dados das chamadas telefônicas de integrantes de quadrilhas de traficantes para que se possa fazer o rastreamento das ligações e descobrir os criminosos da rede. Pode o juiz mandar desligar toda a rede de telefonia de uma determinada região, deixando milhões de pessoas sem telefone? Antigamente, diríamos: "Claro que não, Pedro Bó!" As três respostas às questões acima são mais que evidentes: só podem ser não. Do contrário, seria falta de bom senso, aliás, não haveria um mínimo de razão que justificasse a medida. Então, por que por mais de uma vez algum juiz resolve bloquear o WhatsApp? É bastante assustador que isso possa ocorrer! Desse jeito, qualquer dia desses, quando o Diretor de uma escola se negar a cumprir uma medida judicial, por exemplo, de entrega de diploma a um aluno, o juiz irá suspender as aulas de todos até que o documento seja expedido! A situação é bastante grave, pois são milhões de usuários que se utilizam do WhatsApp, inclusive, profissionalmente e no mundo todo. Cortar a ligação com o Brasil é como impedir que as pessoas do mundo todo entrem em contato com os brasileiros. Durma-se com um barulho desses! O país já não anda bem na fita em termos de imagem e desse jeito só fica pior... Decisões como essa que por conta de uma ou duas pessoas, retira o direito de milhões de outros usarem um serviço, sempre nos levam a pensar na polêmica questão da responsabilidade do magistrado por erro na decisão. Não estou, claro, falando da responsabilidade civil do Estado pelo erro Judiciário. Esta não se discute. Estou falando da responsabilidade do próprio prolator da decisão judicial, especialmente quando ela é estapafúrdia e viola os mais comezinhos princípios de direito. E, como se sabe a legislação permite a responsabilização apenas em caso de dolo. Para os consumidores do Brasil e do mundo, fica apenas o direito de abrir a boca e perguntar: "E eu, o que tenho a ver com isso?", "Se nada fiz, por que meu direito foi suprimido?" E não se pode ficar esperando que os tribunais reformem as esdrúxulas decisões de primeiro grau. Alguma coisa mais precisa ser feita. Caro leitor, desculpe o desabafo, mas está demais! *** PS.: Quando já tinha este artigo pronto, li uma matéria defendendo a decisão, sob o fundamento de que o uso do WhatsApp é de interesse "privado". Ora, faz muito tempo - pelo menos desde 1990 quando da edição do CDC - que se sabe que o interesse da coletividade de consumidores é público e não privado. Quando o direito de milhões de pessoas é atingido, evidentemente trata-se de uma enorme coletividade e, logo o interesse é público sim. Ademais, cortar o serviço de comunicação entre pessoas gera prejuízos diretos de vários tipos, inclusive no que diz respeito à segurança (alguém que não pode pedir ajuda ou socorro), saúde (alguém que não pode solicitar auxílio médico), profissionais e econômicos (pessoas que deixam de fazer seus negócios) e um longo etc. Nem preciso fazer referência à leis como, por exemplo, a do marco civil da internet, pois a situação como acima indiquei, é de simples bom senso.
Em tempos de ofensas verbais (e também físicas, com tapas e cusparadas), é preciso muito cuidado com o uso das palavras e das comunicações. Em termos de sociedade capitalista, sabe-se que há muito tempo os profissionais de marketing descobriram que, para vender produtos e serviços, a comunicação com seu público-alvo poderia ser feita de modo indireto, com subterfúgios, com imagens ao invés de palavras, com frases que não necessariamente falassem do produto nem do serviço a ser vendido, etc.. Do ponto de vista da mudança na forma de comunicação, poderíamos dizer, a grosso modo, que antigamente a oferta apontava para a coisa em si e, com o passar do tempo, foi buscando metáforas ou símbolos que pudessem agradar e atrair o consumidor para as compras. Por exemplo, antigamente um anúncio de tevê diria o seguinte a respeito de uma geladeira: "Nossa geladeira é linda, espaçosa, dura muito e mantém os produtos fresquinhos". Mais para a frente, o anúncio diria: "Se você tiver nossa geladeira em sua cozinha, irá brilhar e ser especial. Todo mundo admira quem tem uma geladeira como essa". A comunicação passou, digamos assim, de uma fase de apresentação concreta do bem a ser vendido para uma fase psicológica, social e até política da inserção do consumidor na sociedade. Cada vez mais, o marqueteiro passou a investigar os anseios, desejos e interesses do consumidor. Não esqueceu, claro, das necessidades de seu público-alvo, mas passou a chamar atenção de seu coração, de sua imaginação e também de sua própria imagem construída no meio social. Isso de algum modo afetou e afeta a comunicação feita pelas pessoas entre si e em relação aos fornecedores, às instituições, ao grupo social a que pertencem etc., e até em relação às pessoas com quem se digladiam ou de quem discordam. Algumas palavras e frases têm indicações expressas e outras, são metafóricas, mas carregadas de sentido (por exemplo, "cdf", "rolezeiro", "patricinha", "playboy", "mauricinho", "coxinha", "mortadela", "petralha", etc.). Mas, em todos os casos, quer nos expressos, quer nos indiretos, há grande chance de confusão e incompreensão não só de quem recebe a comunicação como também por quem a faz e dependendo do ambiente pode significar "bullying", ofensa à honra, etc. O grande escritor e semiólogo Umberto eco, recém-falecido, ensina que a vida é paradigma das palavras. A partir da ideia de que semiose é um processo de produção de significados, diz ele que "existe uma semiose natural exercida quase que instintivamente pelos humildes dotados de experiência, para os quais os vários aspectos da realidade, se interpretados com prudência e conhecimento dos casos da vida, apresentam-se como sintomas, índices" e que existe uma "semiose artificial da linguagem verbal, a qual se revela insuficiente para dar conta da realidade ou é usada explicitamente e com malícia para mascará-la, quase sempre com fins de poder"1. De todo modo, muitos termos, tomados ao pé da letra de forma descuidada, isto é, sem um estudo mais aprofundado, podem gerar equívocos importantes ou simplesmente engraçados. E em tempos de comunicação de massa via web/redes sociais, a possibilidade de emissão de mensagens (e palavras) enganadoras ou postadas de forma deliberadamente falsas podem divertir e/ou causar danos. Veja isto: há cerca de dois anos, a imprensa publicou e foi bastante replicada a informação de que um bispo, líder de uma igreja evangélica, acreditando no poder da língua inglesa - isto é, vivendo neste ambiente em que o inglês, ao menos aparentemente domina - fez uma pregação extraordinária para seus seguidores: ele proibiu que os fiéis de sua igreja consumissem a maionese da marca Hellmann's. Disse o bispo que, traduzindo o nome da maionese da língua inglesa para a portuguesa, o resultado seria 'homem do inferno', já que hell significa inferno e man, homem. Para reforçar seu ponto de vista, ele teria dito aos seguidores: "Você passaria o satanás no seu pão? Colocaria ele na sua salsicha ou comeria ele na sua salada com a sua família?". O problema do bispo é que, como se sabe, a colocação da apóstrofe após o nome e antes do ésse, significa que algo pertence ao nome vindo antes. E Helmmann é o nome do criador da maionese, Richard Helmann, um alemão que a inventou e começou a vendê-la em 19052. Além disso, como a palavra tem origem alemã, na pior das hipóteses poderia ser traduzida por homem da luz ou gente da luz (hell = claro, iluminado, luminoso e man = gente, alguém), muito ao contrário do que ele pregou. Depois foi demonstrado que a notícia era falsa: uma brincadeira. A verdade é que usada de forma direta ou metafórica, as palavras e as frases podem dizer muito sobre quem as pronuncia e também podem ser usadas para vender produtos e serviços ou, ainda, para enganar, manipular, agredir, injuriar, causar danos etc.. __________ 1 "Entre e mentira e a ironia". RJ: Editora Record, 2ª. Ed., 2006, págs. 30 e 31. 2 Retirei essa informação do site da Helmann's.
Como já contei, meu amigo Outrem Ego agora reside em Portugal. E, com a vivência diária, ele tem visto alguns casos envolvendo violação ao Direito do Consumidor, parecidos com os que também se vê por aqui. Caro leitor, eis um deles: Ele ouviu numa rádio local uma propaganda do Deutsche Bank com sede em Portugal. Ele conta: "O anúncio dizia mais ou menos isso: se você é cliente do Deutsche Bank consegue 1% de rendimento numa aplicação de noventa dias. E para quem ainda não é cliente, basta tornar-se, que o rendimento é de 1,25%". Ele achou que tivesse ouvido errado. O cliente recebe menos do que quem não é cliente? Resolveu, então, investigar e foi ao site do banco. E o que ele encontrou confirma a publicidade. Eis alguns trechos da proposta que está no site: "Ao lançarmos a campanha "Cash to Invest" estamos a dar oportunidade aos clientes, que transfiram "fresh Money" (novos recursos), de ganhar 1% desde que invistam a totalidade ou parte num ou mais dos produtos em campanha"." (...) "Veja como funciona para novos clientes: Para aderirem a esta campanha terão que abrir uma conta no Deutsche Bank. Todo o processo é semelhante ao dos atuais clientes, com a diferença que receberão 1,25% do valor investido. (...) "Voe rumo a esta campanha": "Montante mínimo a transferir de 25.000?; Para clientes atuais oferta de 1% do valor transferido que for investido; para novos Clientes a percentagem será 1,25%; Para atuais e novos clientes o prémio máximo é de 10.000?; Valor creditado num período até 3 meses após adesão à campanha"1. Bem, como disse a meu amigo, para dar uma opinião jurídica precisaria, primeiramente, investigar se, de fato, as legislações portuguesa e europeia permitem esse tipo de discriminação, que eu poderia intitular de "invertida", o que não me parece sensato. Todavia, posso comentar o assunto pensando na lógica jurídica ou na lógica (simplesmente) e, eventualmente, comparando a situação com o Direito do Consumidor brasileiro. Pois bem. Quando se aponta uma violação ao princípio da igualdade, como regra, ela diz respeito a uma discriminação odiosa, isto é, oferecem-se mais direitos a um que a outro quando ambos estão na mesma posição legal. Imaginemos que a pessoa seja cliente do banco há um, dois ou dez anos e que nesse tempo todo, na relação estabelecida, tenha dado algum ou muito rendimento ao agente financeiro com o pagamento de taxas, custas, juros etc. E, de repente, uma outra pessoa que jamais pisou numa agência do banco ou sequer entrou em seu site, recebe uma oferta de campanha na qual terá maiores benefícios que o cliente tradicional. Faz sentido? Trata-se de natural inversão das relações empresa-consumidor. Eu já afirmei nesta coluna, mais de uma vez, que o sistema de fidelização é válido (desde que livremente estabelecido) exatamente porque dá privilégios aos clientes antigos e tradicionais. Não há nenhum problema e nenhuma discriminação odiosa no fato da empresa privilegiar clientes antigos e com bom histórico de relacionamento em detrimento dos novos clientes, que ainda não estreitaram as relações. Isso porque, os clientes antigos geraram bastante receita para a empresa e daí ela pode favorecê-los em promoções, campanhas etc.. Mas, o inverso não é verdadeiro. A campanha do banco referido faz exatamente o oposto: privilegia aquele que nem ainda é cliente! É ilógico, fere o bom senso, viola o princípio da igualdade e as bases das relações entre a empresa e seus clientes. No Brasil, com base no Código de Defesa do Consumidor, penso que na existência de uma oferta desse tipo, os clientes antigos poderiam pleitear o recebimento da taxa de 1,25% oferecida aos não-clientes. E, claro, sei que, por aqui, existem empresas que fazem campanhas parecidas, às vezes camufladas, para atrair novos clientes, o que é naturalmente uma violação ao Direito dos Consumidores que já se relacionam com a empresa e que pode gerar demandas judiciais similares a que referi. __________ 1 Grupo Deutsche Bank.
Nos últimos dias, o noticiário mostrou que uma médica pediatra negou-se a atender uma criança porque sua mãe era filiada ao PT. E, comentando o assunto na rádio Band News na data de 31 de março, o âncora, Ricardo Boechat, disse que havia chegado ao conhecimento dele que, em uma escola privada, um professor, defensor do PT, ameaçara de morte um aluno que não pactuava de suas ideias. Aliás, infelizmente, vivemos um momento nas redes sociais em que o ódio está sendo disseminado abertamente e de forma apaixonada, sem que se leve em consideração a realidade dos fatos, triste realidade... Mas, caro leitor, eis o tema para reflexão: médicos que decidem se atendem ou não um paciente pela filiação partidária? Professores que perseguem alunos que não pensam como eles na posição política? Como disse meu amigo Outrem Ego, sempre atento às questões éticas, "se a moda pega, muito em breve teremos profissionais da saúde palmeirenses negando-se a atender doentes corintianos". Esses episódios fizeram-me lembrar da impagável série de tevê americana, M.A.S.H. exibida de 1972 a 1983. A premiada série era um aberto manifesto antibélico, que tinha como alvo a Guerra do Vietnã, mas que se passava numa guerra anterior, a da Coreia, igualmente violenta. Trata-se de uma sátira com episódios que faziam pensar. Eis um deles: os médicos, dentre eles um, interpretado pelo ator Alan Alda, estavam aguardando feridos numa cabana montada no meio da selva e tinham poucos equipamentos e apenas uma maca, que permitia fazer o atendimento de uma pessoa por vez. Eis que chegam ao mesmo tempo dois feridos: um compatriota americano e um soldado aliado sul-coreano. Surge um impasse: qual deles atender primeiro? Risco de morte havia para os dois e a demora poderia permitir o salvamento de apenas um. De forma irônica e trágica, os médicos, que eram todos americanos, passam, então, a discutir qual eles atenderiam em primeiro lugar. Perguntam se a nacionalidade era importante, se a idade contaria, etc., elementos que pudessem ajudar na solução. Para nós não importa muito qual foi a saída (que me lembre, os médicos decidiram atender o que chegou alguns segundos antes do outro); o importante era o dilema moral colocado (ou, no caso, seria um dilema jurídico, já que se tratava de aliados numa guerra?). Num outro episódio, um comandante do exército e um médico caminham pela mata quando são atacados por soldados inimigos. O comandante entrega uma arma ao médico e diz: "Atira!", mas ele se nega. Responde: "Se eu colocar uma bala em alguém, depois terei de remover". O comandante insiste e argumenta que é para salvar a vida deles próprios. Daí, o médico fecha os olhos, aponta na direção dos inimigos e grita "Cuidado, estou atirando..." Bem, tratava-se de ficção e sarcasmo. Porém, fazia-nos refletir. Pode mesmo um médico negar-se a fazer um atendimento, ainda que não seja de urgência, somente porque discorda da posição política do paciente? E um professor, pode avaliar (ou ameaçar, o que é pior) um aluno que não professe a mesma convicção ideológica? Sabemos que a defesa da neutralidade científica é um dilema antigo e que foi bem desenvolvido por Max Weber no início do século XX (ele defendia que o cientista há de ser neutro, que ele deve operar "objetivamente" seus instrumentos de pesquisa, não deixando que seus valores pessoais interfiram nos trabalhos de observação dos fatos) e também sabemos da dificuldade de sua implementação humana e real. Mas, como perguntou meu amigo O. Ego: "Se não se puder trabalhar com, ao menos, uma 'racionalidade objetiva e neutra' o mais possível, como é que se exercerá certas profissões? Em especial aquelas que exigem uma apuração e aplicação técnica, como a medicina, a biologia, as perícias em geral, e em muitos pontos a judicatura, assim como outras profissões jurídicas, e também a psiquiatria etc.? Como é que um juiz poderia julgar um processo em qualquer instância do Poder Judiciário desde a primeira até as Cortes Superiores? Como é que um delegado apuraria um crime ou um Membro do Ministério Público faria um acusação? Como um psicanalista ou um psiquiatra atenderia um paciente, um doente, um psicopata? Um médico não tem que cuidar do corpo da pessoa? De sua saúde e de sua doença? Uma discussão contratual posta em juízo não tem de ser examinada segundo as regras legais e não em função do que pensam as partes a respeito do momento político? E numa denúncia por furto ou roubo, o time de futebol do coração do acusado importa?" Objetei que tudo indica que uma neutralidade total, isto é, como queria Max Weber, a produção de uma ciência com total independência dos valores é impossível. E a própria palavra objetividade aponta para uma dificuldade adicional que é a de postular por uma análise pura, sem intermediários de um objeto científico, algo que parece fadado ao insucesso. As escolhas sempre são feitas antes ou durante a investigação. "Sim", disse ele, mas colocou a questão da técnica: "Não estou usando de retórica. Não! A questão é de atitude mental, racional e profissional. Quer se goste ou não do time para qual torce um doente, o médico tem de atende-lo de igual modo como aos demais. E o mesmo se dá com o professor em sala de aula etc.". De fato. Quanto a certos profissionais, como o médico, o psiquiatra, o perito, a magistrado, o delegado, etc., o que se espera é que sua conduta esteja corretamente ligada aos elementos técnicos de sua profissão, independente do fato dele gostar ou não do engajamento ou do pensamento político de seu cliente ou das pessoas envolvidas com seu mister, nem pelo fato delas serem mais importantes ou menos importantes socialmente. Trata-se de um limite imposto à consciência pela necessidade de exercício pleno e correto da profissão.
quinta-feira, 31 de março de 2016

A proteção da criança-consumidora

Aproveito a vitória obtida pelo Instituto Alana no STJ, no início deste mês, numa ação judicial visando a coibir a utilização de publicidade abusiva que tenha como público-alvo as crianças, para, mais uma vez, retornar a esse importante tema regulado pelo CDC há mais de 25 anos (o CDC, como se sabe, fez aniversário de 25 anos de sua entrada em vigor no último dia 11).Nós, adultos, em matéria de consumo, estamos praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de ilusão e controle. Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo que nos obriga a consumir, consumir e consumir é o da tomada de consciência do processo histórico, que se instituiu a partir das chamadas revoluções burguesa e industrial e que vem sendo oferecida como um projeto de liberdade. Falsa liberdade, na medida em que quase todo seu exercício resume-se a adquirir produtos e serviços, cuja escolha é limitada àquilo que é decidido unilateralmente pelos fornecedores.Vamos, pois, alguns de nós, lutando contra o poder impositivo do mercado e outros nem se dando conta desse aprisionamento. Muito bem. Pergunto: é esse o futuro que desejamos para nossas crianças? É esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indivíduos medem-se pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e não por aquilo que são? Claro que nem toda culpa é do mercado e, na medida em que os adultos são capazes de pensar, raciocinar e decidir, certamente eles são responsáveis por seus atos de compras (nesse aspecto, por exemplo, a web é boa auxiliar na descoberta de produtos e serviços que podem ou devem ser comprados, no aconselhamento para evitar consumo excessivo e sem sentido etc..). Porém, o modelo vigente exerce grande influência sobre as pessoas, de tal modo que grande parte delas acaba se alienando nas compras e acredita piamente no que vê na publicidade: a pressão é tão forte que atordoa o consumidor de tal modo que ele, jogado à própria individualidade, nem sempre sabe como agir. Vendo tevê, por exemplo, assiste-se ao mundo perfeito dos anúncios publicitários: o de bancos mostrando seus gerentes sempre sorrindo e oferecendo vantagens a seus clientes, enquanto na realidade estes são, às vezes, por eles enganados. Há, também, a propaganda de veículos maravilhosos, que nunca quebram; de serviços telefônicos excelentes etc.; enfim, um longo desfile de produtos e serviços muito diferentes do real. Há, pois, dois mundos: o da publicidade e o dos fatos.Naturalmente, repito, é incumbência dos adultos conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para tentar desvendar as enganações e discernir sobre o que é válido e verdadeiro. Mas, pergunto: e as crianças, como estão posicionadas nesta sociedade capitalista? Como é que elas recebem o espetacular assédio do marketing e suas armas?Com certeza, a limitação ou, até mesmo, o fim da publicidade de produtos e serviços dirigida às crianças seria recebida como uma dádiva pelos milhões de mães e pais que lutam duramente para a mantença de suas famílias e sofrem com o assédio dessas ofertas. Mas, enquanto isso não vem (se é que virá), cabe aos pais o dever de vigilância. É verdade que muitos desses pais já foram absorvidos por todas as formas de consumo e, inclusive, utilizam-se do próprio mercado para controlarem seus filhos, o que é uma pena. Não que seja simples. Ainda que os pais tenham o costume de limitar a exposição de seus filhos à tevê, basta um pouco para a percepção do ataque (uma verdadeira guerra de anúncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, mesmo que o filho tenha o uso de internet limitado, é suficiente também apenas algum tempo de navegação para estar sujeito a uma explosão de ofertas.E, se não bastasse isso, há toda a sedução do merchandising feito em programas de tevê, filmes de cinema, vídeo e até teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal, vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato é inevitável e não há mesmo nada de errado em frequentar shoppings, cinemas, teatros, viajar, assistir tevê etc. Isso tudo, digamos assim, no campo das ofertas lícitas. Mas, existe também uma enormidade de campanhas e anúncios enganosos e abusivos dirigidos diretamente às crianças.O problema da publicidade em geral dirigida às crianças e também da publicidade ilícita é que ela cria um jogo colocando as crianças (isto é, os filhos) contra os pais. Estes, inseridos nesta sociedade capitalista - e também eles, como acima referi, sujeitos aos estímulos, malandragens e manipulações do marketing - entram nesse jogo sem perceber e, muitas vezes, por se sentirem culpados. Alguns pais trabalham o dia inteiro e têm pouco tempo livre para dedicarem aos filhos; outros procuram propiciar aos filhos o que nunca tiveram - o que não é raro, porque a maior parte dos produtos e serviços existentes atualmente não existia na infância dos pais, e com a produção em massa muitos deles tornaram-se acessíveis. Pressionados pelos filhos, os pais compram e dão os produtos.Desse modo, as crianças vão sendo inseridas no mundo capitalista dos produtos desnecessários muito prematuramente e também vão perdendo a infância antes da hora. Como observa a educadora Claudia Freesz Calmon, com toda razão: a relação entre pais e filhos passa a ser intermediada por objetos - produtos adquiridos com sacrifício ou não. Se for com sacrifício, acresce-se à intermediação feita pelo objeto o sentimento de culpa. As crianças, de seu lado, aprendem a se relacionar pedindo coisas e os dois lados trocam muitas vezes a atenção e o carinho por produtos.Sei que cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos.Mas, lembrando a vitória judicial do Instituto Alana: cumprir o CDC, que está em vigor há mais de 25 anos, ajuda bastante!
As manifestações de rua por cidades de todo o Brasil no último domingo, enormes - as maiores de todas - e pacíficas, mostraram muitas coisas, bem o mal avaliadas pelos blogueiros espalhados nos vários veículos de comunicação e também pela web. Para não deixar passar em branco, quero fazer um curto comentário, mostrando a forte presença do capitalismo nos eventos ou, melhor, dos modos de expressão, apresentação e oferta do sistema capitalista. Como disse mais de uma vez nesta coluna, o capitalismo é uma ideologia "neutra" no sentido de que não se incomoda com nenhum modo de pensamento, desde que sua instrumentalização e/ou utilização possa gerar lucro. Os modelos de produção e oferta capitalistas estão nas igrejas, nas escolas, nos esportes "amadores", etc.. Na política e nas passeatas, faz tempo que aportou. Vejamos sua atuação na avenida Paulista em São Paulo. Alberto Saraiva, fundador e administrador das redes Habib's e Ragazzo, não só apoiou o movimento como esteve pessoalmente na manifestação, mas anoto um detalhe: ele também comemorou o fato de ter vendido, nada mais, nada menos que 22.500 coxinhas na região! Ele mesmo conta: "O movimento foi incrível na Ragazzo Express da Paulista. Testamos até um modelo novo de venda. Instalamos ali perto uma bicicleta com uma estufa com capacidade para 400 coxinhas. Tínhamos cinco sabores e cada uma custava 1,98 reais. Vendemos tudo. Entre a loja e a bike, vendemos 22.500 coxinhas. Coxinha é comigo mesmo! Rs"1. O caso do empresário Alberto Saraiva mostra como a inteligência e a estratégia são muito favoráveis ao modelo (e, no caso, também, a ironia). Vê-se aí o senso de oportunidade e o olhar atento para com aquilo que interessa, afeta e atende aos interesses dos consumidores e que fazem bem aos negócios. Outro ponto evidente foi a venda de camisetas, bonés, máscaras, bandeiras, etc., que já fazem parte das "tradições" em matéria de manifestação popular. Os fabricantes desses produtos são também bons observadores do mercado e pescadores de oportunidades. Mas, no que diz respeito à camisa da seleção brasileira de futebol, li um artigo dizendo que seu criador, o gaúcho Aldyr Schlee, não gostou de vê-la usada como símbolo. Ao ver seu uniforme pelas ruas do país no domingo, ele lamentou. Disse: "Infelizmente, ela está sendo usada apesar de todas as safadezas da CBF" (...) "O símbolo da corrupção está sendo usado em uma campanha contra a corrupção"2. Naturalmente, respeitando a opinião do criador do modelo de camisa, eu não vi assim. De fato, ao que consta não só a CBF como também a FIFA são organizações que há muito tempo andam fora da linha e, como está sendo apurado, seus dirigentes estão envolvidos em ações ilegais e corruptas. Mas, não só o Brasil e suas cores são maiores que a CBF, como a seleção de futebol é também um patrimônio nacional imaterial. Os dirigentes da CBF (e também da FIFA) vão passar, mas a seleção brasileira permanecerá com suas cores e inspiração. Não era um ato contra a CBF, daí, parece-me que o que valia mesmo eram as cores do Brasil. E que, obviamente, comprovam o que eu estou aqui tratando: o mercado sabe sim vender o que interessa aos consumidores. No caso, camisas da seleção canarinho e dos ídolos do futebol. Na realidade, penso que o modelo capitalista está colocado à disposição de qualquer pessoa que dele queira se utilizar. Tanto faz o que a pessoa pense ou qual sua posição ideológica, nem se é a favor ou contra o governo de plantão ou passado. O que importa é produzir, oferecer, vender e faturar. Se os políticos caem, sobem, mudam, renunciam, etc. não é relevante, desde que, claro, o regime econômico (capitalista) permaneça. __________ 1 Fonte: Veja São Paulo.   2 Fonte:  Band Esporte.
Por Rizzatto Nunes e Claudia Freesz Calmon1 No presente artigo, apresentamos alguns fatos para uma reflexão sobre a educação, a formação e a influência que se exerce numa sociedade como a atual, caracterizada por alta complexidade social e com ampla liberdade de expressão, e na qual existe uma incrível e enorme comunicação difusa, cruzada e multilateral. Dizem que o exemplo arrasta, isto é, serve de inspiração. E que os pais devem servir de exemplo. Num dos filmes de Woody Allen, ele sai do cinema com sua sobrinha e diz mais ou menos isso: "Não se preocupe com o que seu professor fala. Observe o que ele faz". De fato, é a ação o autêntico gesto do indivíduo, muito mais que suas palavras. Estas podem ser importantes e ter seu peso, mas, sem a ação respectiva, serão legítimas? Fortes o bastante para inspirar? Vejamos os pais. Nosso amigo Outrem Ego, estudioso do assunto, diz: "Educar é falar, instruir, indicar, orientar, etc. No entanto, será que adianta um longo discurso sem uma ação correspondente? Certo, há alguns limites. Pais que bebem álcool (moderadamente) podem proibir que seus filhos bebam até certa idade, justificando com a lei, a pouca idade e a imaturidade respectiva, etc.. Todavia, se pretendem que seus filhos não bebam refrigerantes, é melhor que também não bebam. Nem comprem. Pais que falam palavrões terão dificuldades em proibir que seus filhos também falem. Pais que usam iphone em restaurantes enquanto comem ou mesmo apenas enquanto estão lá sentados, também encontrarão dificuldades em bloquear o uso aos filhos. O mesmo em casa: os pais vão à mesa e levam seus iphones? Já perderam a batalha ou, quem sabe, nem estejam interessados". Será que os pais percebem isso? E trata-se de uma influência de mão única (dos pais na direção dos filhos)? Não se pode dar o oposto (dos filhos em relação aos pais)? E, mais: a influência não é exercida também de fora da família? Pela escola? Pelos colegas da escola? Pelos amigos? Pelo grupo social a qual se pertença? Pela religião professada? Pelo clube que se frequenta? Pelos filmes das tevês, enlatados ou não, e também do cinema? E o que dizer das músicas na atualidade com letras estapafúrdias? E até do clube pelo qual se torce? Enfim, não são múltiplas as possibilidades de influência? E tanto mais ainda, como nos últimos anos com as redes sociais e a internet? Há um antigo ditado que também pode ajudar nessa proposta de reflexão: "Diga-me com quem andas que te direi quem és". Sim, as companhias, os grupos são determinantes no aprendizado e também no reconhecimento dos comportamentos. Mas, será que é infalível? Determinante? Se uma pessoa anda com drogados, significa que está, do mesmo modo, envolvida com as drogas? Se anda com pessoas de mau caráter, tem ela também mau caráter? Se anda com ladrões, é ladra? Se a pessoa somente se cerca de pessoas medíocres, então ela é medíocre também? Se somente anda com perdedores, será também uma perdedora? Etc., e o inverso: é santa por andar com santos? Intelectual por conviver com intelectuais? Estudiosa por frequentar um círculo de estudiosos? Podemos até responder não a alguma dessas questões, mas como estabelece um outro ditado, espanhol: "No creo en brujas, pero que las hay, las hay"2. Ao que parece, isso sempre foi assim, com pessoas exercendo influência reciprocamente em qualquer idade e por qualquer tipo de ligação e do mesmo modo as instituições, enfim, uma rede complexa de comunicações que amoldam o indivíduo; além, claro, dos esquemas estudados e executados de propósito para iludir, controlar e alienar. Mas, e o caso do filho que detesta cigarro exatamente por que seu pai é um fumante inveterado? Ou daquele que nem chega perto de álcool por causa do pai alcoólatra? Seriam exceções ou isso é uma resposta confortadora? E agora, como estamos, com as chamadas redes sociais? Elas podem ser mesmo uma arma a favor da democracia, como dizem? Há essa esperança. Nosso amigo dá um palpite: "Não é incomum ver famílias 'reunidas' em volta da mesa, sem conversarem entre si, mas sintonizados no Facebook ou nos grupos do Whatsapp, e Instagram. Há esperança, mas, por enquanto, o que se vê é a ampliação de um processo de alienação". Humberto Eco, grande escritor e pensador polêmico, falecido recentemente, assim se expressou sobre o tema: "As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis"3. Será? É difícil, saber, não é mesmo? Em relação a pais e filhos, há situações insólitas. Perguntamos: como podem os pais educar os filhos se eles próprios ficam entretidos com os papos virtuais, enquanto cortam o bife no prato na hora da mesa, onde todos deviam estar comendo em harmonia e confraternização? Com seu viés antropológico, diz nosso amigo: "Por ora, o que se vê por todos os lugares: restaurantes, bares, escolas, shopping centers e em todos os cantos do mundo, é que as pessoas passam um largo tempo tirando fotos, lendo e postando bobagens virtualmente. Há, não só uma perda de tempo como uma construção simbólica perigosa que é a de que essas pessoas passam a aceitar e a acreditar no que recebem pela rede sem nenhuma reflexão, apenas porque 'vêm de seus amigos e conhecidos'". O problema com a influência exercida pelo meio em que se vive está em que ele é constante e imperceptível; age sub-repticiamente. No início e até um curto espaço de tempo, talvez não se consiga identificar seu funcionamento, mas após uma larga passagem, percebe-se que as pessoas ficam muito parecidas em pensamentos, ações e hábitos4. Por fim, deixamos mais algumas questões: os indivíduos, na sociedade da informação e da comunicação, estão mais conscientes de seu papel, de suas condutas, de seus direitos e obrigações? Estão sabendo, tentando e conseguindo se expressar melhor? Com tanta informação fornecida incessantemente, estão conseguindo decifrar o que tem realmente valor? O que, de fato, pode gerar uma melhor condição humana? __________ 1 Claudia Freesz Calmon é pedagoga, formada pela PUC/SP e fez cursos de especialização no Instituto Loris Malaguzzi em Reggio Emilia, Itália e com Howard Gardner em Harvard. 2 Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem! 3 10 frases para recordar a lucidez mordaz de Umberto Eco. 4 Há, claro, líderes que exercem autoridade sobre os demais indivíduos do grupo e que podem ser determinantes para a formação e para o comportamento, mas isso é um aspecto ligado ao poder que demanda outro tipo de análise. Aqui, como dissemos, estando tentando refletir sobre essa questão de comunicação difusa, cruzada e multilateral.
quinta-feira, 3 de março de 2016

Hollywood, sustentabilidade e consumo

Leonardo DiCaprio finalmente levou o Oscar de melhor ator. E, ao receber a estatueta, discursou a favor do meio ambiente. Disse: "O Regresso fala sobre a relação do homem com a natureza, um mundo que teve em 2015 o ano mais quente já registrado. Nossa produção teve que se mudar para a parte mais ao sul do planeta só para achar neve. A mudança climática é real. Está acontecendo agora"(...) "É a ameaça mais urgente à nossa espécie, e precisamos trabalhar coletivamente e parar de procrastinar. Precisamos apoiar os líderes do mundo todo que não falam pelos grandes poluidores e grandes corporações, mas que falam por toda a humanidade, pelos povos indígenas do mundo, pelas pessoas desamparadas que serão as mais afetadas por isso, pelos nossos netos, e por essas pessoas que tiveram suas vozes afogadas pela ganância política1". Aproveito a dica para voltar a um assunto que tratei aqui nesta coluna, fazendo algumas considerações a respeito de consumo e da sociedade capitalista. Sociedade esta que, para existir, utiliza-se de um modelo de exploração não só das reservas naturais do planeta, como de muitas das conquistas sociais existentes nos vários países que compõem o mundo, tais como garantia de emprego, limite de horas de trabalho, direito à aposentadoria com salário justo, direito à saúde gratuita, direito ao lazer, etc. Parece-me que é preciso mudar os hábitos de consumo. Para se ter uma ideia do que quero dizer, examine esses dados (que variam um pouco de acordo com a fonte, mas de todo modo indicam o problema). A produção e o consumo dos Estados Unidos da América2, com um número de consumidores que correspondem a aproximadamente 5% da população do planeta, contribuem com 36% das emissões de gases de efeito estufa e consomem 25% da energia mundial. Os países desenvolvidos em conjunto congregam um quinto da população mundial. Esta minoria, porém, consome 80% de todos os recursos naturais existentes. Esses dados mostram que é preciso mudar o foco, posto que, caso se perpetue o modelo de consumo dos dias que correm, não haverá salvação. Ao invés de se produzir mais e se consumir mais, a diminuição do consumo poderia ajudar a sustentar o planeta. Além disso e atrelado a isso, um outro elemento a favor seria o da educação para o consumo, de tal modo que os consumidores pudessem tomar consciência de seu efetivo papel como protagonistas da sociedade capitalista e também percebessem que o regime consumista no qual estão inseridos não faz bem nem a seu bolso nem a sua saúde nem a seu bem-estar e, claro, nem ao planeta. Como quero apenas fazer algumas colocações para a nossa reflexão, eu termino por aqui, mas, na sequência, apresento uma série de máximas do comediante americano George Carlin e também algumas que eu mesmo fiz, que dizem respeito ao modo de vida da sociedade em que vivemos. *** De George Carlin: - Nós bebemos demais, gastamos sem critérios. Dirigimos rápido demais, ficamos acordados até muito tarde, acordamos muito cansados, lemos muito pouco, assistimos TV demais e raramente estamos com Deus.- Multiplicamos nossos bens, mas reduzimos nossos valores.- Aprendemos a sobreviver, mas não a viver; adicionamos anos à nossa vida e não vida aos nossos anos.- Fomos e voltamos à Lua, mas temos dificuldade em cruzar a rua e encontrar um novo vizinho. Conquistamos o espaço, mas não o nosso próprio.- Fizemos muitas coisas maiores, mas pouquíssimas melhores. - Aprendemos a nos apressar e não, a esperar. - Estamos na era do 'fast-food' e da digestão lenta; do homem grande, de caráter pequeno; lucros acentuados e relações vazias. - Essa é a era das viagens rápidas, fraldas e moral descartáveis, das rapidinhas, dos cérebros ocos e das pílulas 'mágicas'. - Um momento de muita coisa na vitrine e muito pouco na dispensa. Minhas: - Estamos na era das fusões de empresas e dos desempregados em profusões. - Do acúmulo de cartões de crédito fácil e abundante e das dívidas impagáveis. - Das dezenas de pares de sapatos nos armários de casa e das crianças andando descalças nas ruas. - Nunca tivemos tanto acesso à informação, mas nosso conhecimento é paupérrimo. - As pessoas sabem muito sobre automóveis, mas pouco sobre arte. - Muitos consumidores tem noção dos preços das cervejas, mas desconhecem o valor da solidariedade. - Tira-se foto de tudo, mas, realmente, não se aprecia quase nada. __________ 1 Conforme: Oscar 2016: Leonardo DiCaprio faz discurso emocionado pelo meio ambiente. E é hora escutá-lo com muita atenção. 2 Dados de cerca de cinco anos atrás.
Sou obrigado a voltar ao assunto. Todo ano é a mesma história, com crimes praticados a céu aberto sem que se tome alguma providência (mais uma repetição anual, tal como as chuvas, os alagamentos, os deslizamentos e as mortes consequentes, etc.). Refiro-me ao odioso trote violento. A humilhação causada aos novatos continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa questão? Esse é um dos casos deste ano: ao menos cinco estudantes sofreram queimaduras durante um trote violento praticado pelos veteranos do curso de agronomia da Fama (Faculdade da Amazônia), localizada na cidade de Vilhena, em Rondônia. Os agressores usaram uma mistura de larvicida e creolina e a lançaram no corpo dos calouros. A ocorrência é do último dia 15. Um dos problemas nos trotes está em que, na maior parte dos casos, os próprios calouros não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Há algumas mudanças na direção certa promovidas por Centros Acadêmicos, é verdade, mas é preciso avançar mais e para tanto, haveria de se deixar claro que os calouros não só não devem participar como devem denunciar os veteranos. Sei que a pressão psicológica é grande e o medo também. Por isso, cabe às autoridades intervir. No início do ano, as violações são feitas nas vias públicas aos olhos de todas as autoridades públicas! Ou nos campi, à vista dos responsáveis pelas escolas. Uma possível explicação para a aquiescência dos calouros com as violações está em que, desde muito cedo, é incutida neles, enquanto estudantes, a necessidade de evoluírem até atingirem uma espécie de ápice com o ingresso na faculdade (e, claro, seu término). O gargalo do vestibular exerce uma pressão tão grande que não é raro que eles se sacrifiquem além de suas forças para ultrapassá-lo, acabando por adoecer. De algum modo, essa forma de imposição adiciona-se ao já existente ingrediente da passagem do jovem (ou adolescente) para o mundo adulto com todas suas semelhanças com a jornada do herói. Esta, como diz Joseph Campbell, é mais profunda do que qualquer rebeldia e vai até o âmago do espírito humano, para depois retornar trazendo essa essência de vida e doá-la para a humanidade. Para o famoso mitólogo, a façanha do herói começa com alguém de quem foi usurpada alguma coisa ou que sente deslocado entre as experiências normais dos membros da sociedade. Daí, essa pessoa parte numa jornada que ultrapassa o usual para recuperar o que tinha sido perdido ou, então, - como é o caso - para descobrir seu lugar na sociedade. Normalmente, o herói perfaz-se num círculo que inicia com a partida e termina com o retorno. Essa jornada tem algo de uma busca espiritual e de uma evolução, na qual o jovem passa de uma posição de imaturidade psicológica para uma nova forma, adulta. É como se ele morresse e nascesse novamente. Trata-se de uma batalha, de uma luta para atingir um outro patamar de vida1. Nas antigas sociedades, os rituais de passagem são celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de sua comunidade. Essa transição pode ser de um padrão social ou sexual para outro (uma mudança para um patamar superior). Ritualmente, reproduz o nascimento, a saída do bebê da barriga da mãe e a entrada para uma nova realidade. E, assim como no nascimento, o rito de passagem exige esforço e sacrifício. Esses ritos podem, inclusive, ter caráter religioso, como, por exemplo, no batismo. Os rituais das "cerimônias de iniciação têm sempre uma base mitológica e se relacionam à eliminação do ego infantil, quando vem à tona o adulto, seja menina ou menino"2. Tanto os meninos quanto as meninas experimentam mudanças fisiológicas muito intensas, que provocam uma mudança psicológica transfiguradora, ou seja, a passagem não é apenas fisiológica, é sobretudo mental. Os ritos de passagem seriam uma forma de resolver os conflitos entre a mente e o corpo. Adicione-se que a independência é conquistada quando o jovem se desprende das garras dos pais. O primeiro passo para a independência é a oposição à ordem vigente e todo herói começa como um rebelde. Nas sociedades da antiguidade, determinados momentos na vida de seus membros eram marcados por cerimônias, conhecidas como ritos de iniciação ou de passagem. Essas cerimônias, além de representarem uma transição particular para o indivíduo, significavam igualmente sua progressiva aceitação e participação na sociedade na qual estava inserido, tendo, portanto, um cunho individual e também coletivo. Pois bem. O trote universitário tem todas as características de um ritual de passagem, no qual estão presentes os elementos característicos da transposição, da mudança de patamar, da entrada numa comunidade de nível superior, algo atingido com muito sacrifício e o ingresso representa a vitória do herói sobre os obstáculos. Esses elementos talvez sejam um dos grandes problemas para que se possa eliminar o abominável trote universitário. E pior: nessa mazela brasileira, ao que tudo indica, esse ritual do trote não nasceu de nenhuma necessidade instintiva ou ancestral que fosse capaz de lavar a alma dos calouros para que eles entrassem puros no templo universitário. A tradição é muito mais "pobre" e acabou vingando por um vício, um defeito de povos de países colonizados e explorados: o da imitação, como já tive oportunidade de relatar nesta coluna e que repito a seguir. Consta que o trote estudantil nasceu nas Universidades europeias na Idade Média. Tendo em vista o terrível baixo nível de higiene da época, por razões profiláticas, isto é, para evitar doenças e sua proliferação, raspava-se a cabeça dos alunos ingressantes (os calouros) e muitas vezes queimavam-se suas roupas. Essas questões, inicialmente higiênicas, muito provavelmente influenciadas pelo grau de brutalidade reinante, já no século XIV, nas Universidades de Bolonha, Paris e Heidelberg, haviam se transformado em rituais bárbaros claramente sadomasoquistas: os veteranos arrancavam pelos e cabelos dos calouros, que muitas vezes eram obrigados a ingerir urina e comer excrementos. (Fatos observados em Faculdades no Brasil dos séculos XX e XXI!). Em Portugal, há relatos de trotes violentos no Século XVIII na Universidade de Coimbra. Tudo indica que os estudantes da elite brasileira que lá estudaram tenham importado a prática para o território nacional. A ignorância e a bestialidade do ritual fez sua primeira vítima fatal no ano de 1831, com a morte de um estudante da Faculdade de Direito de Olinda. Os trotes, assim como os crimes e as mortes continuaram por todo o século XX: em 1980, um calouro de um curso de jornalismo foi morto por traumatismo cranioencefálico em Mogi das Cruzes; em 1990, morreu de parada cardíaca um calouro do curso de direito em Goiás; em 1999, um calouro de medicina da USP morreu afogado em uma piscina etc. (um longo e tenebroso etc.). O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressam nas faculdades. Mostra também uma contradição: os jovens que estudam em faculdades -- um restrito setor da elite brasileira - se mostram muito mal educados. Ao invés de agradecerem ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agem como bárbaros, arrogantes e sádicos. Por fim, e para não deixar passar em branco, já que fui obrigado a voltar ao tema, apresento na sequência alguns dos delitos praticados nos trotes e também mostro a responsabilidade das escolas, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro. Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo, fazê-lo engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP). Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP). Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente. Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim. Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizá-la, mas não se deve esquecer que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. O CDC garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a instituição de ensino pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC. Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e, nos primeiros dias de aula, distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro. Apesar de tudo, é preciso lembrar que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. Poe isso, é preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas. Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de Direito, medicina, sociologia, engenharia, etc. possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, mas que precisa ser combatida. _________  1 O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990, pág. 131 e seguintes. 2 Idem, ibidem, pág. 147.
Querido leitor, meu amigo Outrem Ego mudou-se para Portugal. Foi-se agora no fim do ano passado; sua mulher e filhos já estavam por lá há algum tempo. Ele está, pelos vistos, como diz, começando a conhecer o lugar. Como ele é um investigador incansável e observador desconfiado, já me escreveu contando-me muitas coisas. Pois. Disse-me que está principalmente checando questões de consumo e de comportamento social. Ele me confidenciou que está em dúvida se o que ele tem visto nesses pouco mais de dois meses, é o suficiente para que tome uma decisão sobre comportamento para o consumo. Do que já me contou, eu também ainda não tomei partido, mas divido com você, leitor. Veja isto: O. Ego já foi avisando que não se tratava de piada: "Não é piada: há quinze dias, Bete e eu fomos a Sintra. Na hora do almoço. O local apinhado de turistas. Vimos ao longe um restaurante simpático, que ficava numa encosta com vista magnífica. Descemos as escadas animados. Chegamos à porta e encontramos a seguinte placa: 'Só funcionamos a partir das 18 horas'. Ou seja, o restaurante fecha para almoço... E nas ruas um monte de gente andando à procura de lugar para comer". Depois, ele fez a reflexão filosófica que não consegui responder. Disse: "Sabe, o ambiente por aqui é bucólico, às vezes parece parado no tempo. Tem-se a impressão de que está fora do círculo desenfreado do consumo. Mas, será que isso não é bom"? Nessa linha, ele falou-me de situações muito interessantes, que remetem a tempos mais tranquilos e de confiança. Veja. Perto da casa onde Bete e ele vivem com os filhos, há um mercadinho. Outrem Ego foi fazer algumas compras e na hora de pagar no caixa, havia um senhor, bem idoso, na frente dele. Esse senhor passou algumas frutas e perguntou à moça do caixa: "Quanto estou devendo?". Ela, então, pegou um caderno embaixo do balcão, bem surrado e que estava marcado com letras em cada folha. Procurou a letra ene e foi até "Nuno" em um sobrenome que ele não conseguiu decifrar. Estava tudo escrito a lápis. Depois, a atendente disse: "Com as compras de hoje, o senhor deve dezesseis euros". "Vou pagar tudo". Ela recebeu e riscou os valores que estavam anotados no caderno. Trata-se do famoso e, talvez, extinto, fiado, firmado nas barbas do bigode (sem ironia...). A palavra empenhada valendo para ambos ao lados. "Antiquado?", perguntei, mas meu amigo respondeu: "Não. Não me parece antiquado, parece-me evoluído. Sei que já existiu em outros lugares e que, talvez, ainda exista aqui e ali, mas veja... Sem burocracia nem desconfiança, é um trato válido e interessante e feito entre pessoas adultas e maduras. Um comércio e uma cidadania de alto nível". Concordei. Eis, pois, o dilema a ser resolvido: essa pressa e tecnologia do mundo capitalista é mesmo mais interessante que a calma e o movimento mais lento de outrora? Traz mais alegria? Mais bem estar? Mais felicidade? Será que a sociedade e o planeta precisam dessa velocidade para se desenvolver? Pergunto sobre outro ângulo: e o mundo melhorou por causa dessas mudanças? Há menos miséria? Menos violência? Menos guerras? Menos sofrimento? Não sei a resposta para a primeira leva de perguntas acima, mas sei as da segunda: nos últimos trinta, quarenta anos ao menos, o mundo não melhorou. Não sei se a culpa é da tecnologia e da velocidade implementadas, mas a esperança que o fim da Segunda Guerra Mundial trouxe às pessoas, continua sendo esperança, pois em termos numéricos é fácil ver que as respostas são que a miséria, a violência e o sofrimento aumentaram. São muito mais pessoas que sofrem e passam por privações. As guerras? Infelizmente, nunca deixaram de existir. Quer dizer, que o antiquado é bom? É melhor? Faz bem? Ficam aí as perguntas feitas por meu amigo Outrem Ego, com seu olhar curioso, na sua experiência lusitana.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Reflexões natalinas

Neste último artigo do ano, proponho, mais uma vez, um tema para reflexão. No fluxo intenso no qual a vida cotidiana passa, resolvi focar no tempo. Assim, pergunto, o que é o tempo? Alguma coisa que nos pertence? É alguma propriedade real da qual podemos dispor, talvez compartilhar? Se é algo que nos pertence, podemos dele abrir mão? Jogá-lo fora ou fixar um preço para vendê-lo? Não há dúvida de que os trabalhadores privados e públicos, os profissionais liberais e os próprios empresários, comerciantes, prestadores de serviços, etc. gastam seu tempo em troca de salários, subsídios, honorários. Mas, há como medir esse tempo? Por que os de uns valem mais do que os de outros? No artigo que aqui publiquei em 21/3/13, intitulado "A sociedade contemporânea é ladra de tempo; é ladra de vida", eu escrevi: "... tanto no papel de trabalhador como no de consumidor, cada vez mais a sociedade "produz" perda de tempo. Há um tempo "roubado"1 pela sociedade, um tempo sem qualquer utilidade objetiva. Olhando-se a sociedade atual, percebe-se que o capitalismo é um "ladrão de tempo". "Ladrão" de vida, portanto. Esse roubo se verifica tanto em relação ao inevitável trabalho (na maior parte, sem função lúdica e/ou prazer; apenas de troca de tempo e força de trabalho por salário) como do tempo reservado ao consumo. Isso envolve, em alguns lugares específicos, como o das grandes cidades, o roubo do tempo feito pela ineficiência dos serviços públicos como, por exemplo, o de transportes. Os congestionamentos são verdadeiros ladrões sem quaisquer escrúpulos. Essa perda é irreversível. O dia, as horas, os minutos passaram; não voltam mais. Não há como recuperá-los. Mas, essa perda de tempo não é muito consciente em várias situações. E, ademais, é preciso impedir que as pessoas tomem consciência dela. São vidas roubadas, jogadas fora impunemente. Não é bom que essas perdas aflorem na consciência, para que as pessoas não descubram sua própria inutilidade nesse desgaste insano e irreversível." Agora coloco: essa perda de tempo poderia ser medida em termos de preço? Se a resposta for sim, pergunto: pode uma pessoa exigir de outrem indenização pela perda de seu tempo? Por exemplo, pode processar a Prefeitura pela perda de tempo no trânsito? Ou, pode processar pessoas que causaram um acidente, interrompendo uma estrada e gerando a perda do tempo? Ou pela perda de tempo na fila do banco, na do hospital ou no do atendimento do posto do INSS? Ou ainda no atendimento telefônico ou nas repartições públicas? Como diria meu amigo Outrem Ego, "se o tempo tem preço, sua perda há de gerar indenização". Será? Era isso que gostaria de trazer. Desejo a todos um feliz Natal e um próspero Ano Novo e que todos consigam compartilhar um tempo gostoso e em paz com seus familiares e amigos. __________ 1 Usarei o verbo "roubar" em seu sentido leigo, não jurídico.
Tenho ouvido e lido tanta coisa a respeito da responsabilidade pelos danos causados na tragédia de Mariana, que resolvi também escrever sobre o assunto. Como se sabe, duas barragens da mineradora Samarco romperam-se na cidade mineira causando a morte de pessoas, destruindo moradias e demais bens de centenas de pessoas, etc. Os governos estadual e Federal responsabilizam a empresa pelo ocorrido, no que estão certos. Mas, é preciso dizer que há também, no caso, responsabilidade do Estado. É o que mostro na sequência. A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está-se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, está-se apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Por tudo o que se pode ver das matérias veiculadas sobre a tragédia, é flagrante a omissão do Poder Público, que não fiscalizou adequadamente o funcionamento da mineradora. Pelo que se pôde apurar até agora - conforme informado pela imprensa - nesse setor não há pessoal suficiente para fiscalizar a maior parte das empresas exploradoras, o que tráz grave risco para o meio ambiente e para as pessoas e seus bens. As vítimas sobreviventes podem pleitear pensão pelo período em que, convalescentes, tenham ficado impossibilitados de trabalhar. Do mesmo modo, os familiares que sejam, eventualmente, dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Além da pensão, no cômputo dos danos materiais, inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como medicamentos, honorários médicos, indenização pelas perdas dos imóveis e demais bens, serviços de transporte etc. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estada e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Quanto ao dano moral, as pessoas que sofreram perdas e também os familiares próximos às vítimas falecidas, podem pleitear indenização que, no caso, diz respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo. De todo modo, é bom lembrar que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às pessoas atingidas pela tragédia, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto. Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido ou o causado pelos danos físicos e psicológicos. Desse modo, essa indenização é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. E o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé ou com grave culpa, com intenção de causar o dano ou quando regularmente repete os mesmos erros etc. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor. Assim, havendo, no caso, ao que tudo indica, responsabilidade por omissão dos agentes públicos, estes deveriam, para fazer Justiça, indenizar as vítimas e, depois, por via de regresso buscar ressarcimento junto à empresa mineradora.
quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Os atos terroristas e o Direito do Consumidor

Após os recentes atentados terroristas em Paris, muitas pessoas cancelaram suas viagens para lá, não só por causa do eventual perigo como também porque muitas das principais atrações locais estão (ou estavam) fechadas, tais como a Torre Eiffel, o Museu do Louvre etc. Passagens aéreas e reservas nos hotéis foram canceladas. Eu ouvi, mais de uma vez, nas rádios, que as companhias aéreas estavam cobrando multas dos clientes que haviam cancelado as reservas, o que foi feito também pelos hotéis. Estes cobraram multas quando puderam ou simplesmente não devolveram as quantias que já haviam sido pagas. Incluo nesse rol de cancelamentos os passeios pré-agendados e pagos e todos os demais serviços que foram cancelados como consequência dos terríveis acontecimentos. Pergunto: esses fornecedores podem ou poderiam cobrar multas e negarem-se a devolver os valores pagos previamente? O tema, naturalmente, é o da responsabilidade civil e do inadimplemento contratual. Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração (não abordarei os casos de monopólio e até oligopólios, nos quais o risco de perda são muito pequenos, o que, claro, não elimina a responsabilidade de mesma base legal). O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz porque quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar, algo, aliás, inevitável, pois é impossível oferecer produtos e serviços em larga escala sem que algum problema surja. Decorre disso que, quem se estabelece deve, de antemão, bem calcular os potenciais danos que irá causar não só para buscar evitá-los, mas também para calcular suas perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão. O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral, a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, o administrador hoteleiro e os prestadores de serviços em geral estão enquadrados no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não coloca como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa)1. Admite-se apenas a excludente de responsabilidade do caso fortuito externo (o que vale, diga-se, para todos os setores da atividade empresarial). A força maior e o caso fortuito interno não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo fornecedor, nem por ele evitado. E não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. Mas, quando se trata de fortuito externo, está-se fazendo referência a um evento, caso fortuito ou força maior, que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. Cito o conhecido exemplo do vulcão. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser prevista. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto. E, também com um ataque terrorista. Desse modo, no caso dos ataques de Paris, por causa dessa excludente, as companhias aéreas não respondem pelos atrasos e cancelamentos forçados em função do fechamento dos aeroportos. Acontece que o fortuito externo atinge a relação jurídica de consumo nos dois polos: no do fornecedor e no do consumidor. Se é verdade que o fornecedor não pode ser responsabilizado por causa do evento, do mesmo modo o consumidor não pode ser apenado se não puder - ou desistir - usufruir do serviço encomendado previamente. Essa situação excepcional faz nascer um direito no polo de consumo. Os cancelamentos que envolveram e envolvem as estadias nos hotéis, flats, pousadas e demais ofertas de hospedagem, o transporte aéreo, e também o terrestre e marítimo, os traslados terrestres, os passeios previamente contratados, etc. não podem implicar em ônus para os consumidores. Repito para concluir: em função do fortuito externo, de um lado, os fornecedores não podem ser responsabilizados e, de outro, os consumidores também não podem ser prejudicados. __________ 1 O Código Civil (CC) de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade".Como já demonstrei aqui nesta coluna, não existe incoerência ou contradição entre O CDC e o CC. Isso porque, quando o CC fala em força maior, está referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o CDC afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o CDC quanto o CC mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos.
quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Direito ao sossego e falta de educação

Meu amigo Outrem Ego contou-me, há muito tempo, o seguinte caso (é da época em que ainda existiam locadoras): ele encomendara um filme em DVD para locação pelo telefone. Quanto chegou à locadora, junto com ele entrou um homem e na frente dele perguntou sobre o mesmo filme. A atendente disse que não havia nenhum, mas o homem viu a fita sob o balcão e apontou. Ela disse que estava reservado exatamente para outra pessoa e mostrou meu amigo. O homem ficou irritado e Outrem Ego vendo a cena, disse: "Pode entregar para ele, eu alugo outra hora". O homem então pegou o filme, se virou e foi embora sem agradecer e, aliás, sem nem olhar para a cara de meu amigo. Como diria meu amigo, "É mole?" De fato, a falta de educação é uma característica marcante de nossa sociedade. Não é incomum, infelizmente, que uma pessoa entre no elevador de um prédio, encontre o vizinho, o cumprimente e fique no vazio, aguardando uma resposta. Retorno, pois, ao assunto da má educação especificamente no que envolve o direito ao sossego. A falta de educação, de cortesia, e de respeito ao direito alheio no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais abertamente violado. A questão é tão absurda que há catalogados vários casos de violência e morte por causa da transgressão a esse sagrado direito, como tive oportunidade de aqui mesmo mostrar. Lembro que o direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito, que envolve uma série de transtornos que já foram avaliados e julgados pelo Poder Judiciário, que, por exemplo, considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente etc. Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente. Num caso em que se considerou excessivo o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação da planta pela Prefeitura e seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou que a quadra de esportes produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha aprovado sua construção. Aliás, lembro que os shows produzidos em estádios de futebol e que violam às escâncaras o direito ao sossego dos vizinhos são, como regra, autorizados pela Prefeitura local. Alguns shows, inclusive, varam a noite e a madrugada, numa incrível violação a céu aberto. Realço que, nesses casos, a própria Prefeitura é responsável pelos danos causados às pessoas. Disse acima que a legislação pátria é rica no tema. Muito bem. A Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo decreto-lei 24.645/1934 que dispõe que "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (lei 9.605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". Essa mesma lei ambiental pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 2003, garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Consigno que, para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras. A questão, portanto, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais. É isso! E durma-se com um barulho desses!
Começo contando uma piada: dois irmãos, um menino com 8 anos de idade e uma menina com 10, conversavam. O menino pergunta para a menina: - O que você vai pedir de presente no Dia das Crianças? - Eu vou pedir uma boneca Barbie, e você? - Eu vou pedir um O.B.!, responde o menino - O.B.?! O que é isso ? - Eu não sei. Mas, olha mana, na televisão dizem que com O.B. a gente pode ir à praia todos os dias, dá pra andar de bicicleta ou andar a cavalo, dançar, ir ao clube, correr. Dá pra fazer um montão de coisas legais. E sabe o que é o melhor? Sem que ninguém perceba! *** De fato, o poder da publicidade é incrível! Meu amigo Outrem Ego disse: "Eu sou um admirador da publicidade. Adoro as criativas, as que me divertem ou que me emocionam e ainda por cima conseguem mostrar o produto, o serviço e/ou a marca. Não gosto das machistas, das preconceituosas nem das mentirosas. E sempre espero que as pessoas pensem como eu percebendo a diferença entre elas". Depois de falar desse modo, me presenteou com uma revista, publicada pela Folha de São Paulo, a Top of Mind 2015, na qual são apresentadas as marcas mais lembradas pelos consumidores, por causa das campanhas milionárias feitas por agências nacionais e multinacionais. Ele disse: "Veja a página 65". Eu fui ver. Nela aparece o plano de saúde mais lembrado do Brasil. Você leitor, sabe qual é? Unimed! A Unimed do Brasil, que como consta das informações oferecidas na página 78 da revista, gerencia a marca Unimed junto a 351 cooperativas médicas. O nome Unimed soa bem aos ouvidos? Na página citada tem um slogan: "Cuidado é o que nos une. A lembrança é o que nos fortalece". Só esqueceram de contar para os 744 mil clientes da Unimed Paulistana que, recentemente, ficaram ao Deus-dará depois que a Agência Nacional de Saúde determinou que a operadora abandonasse sua carteira. Eu continuo com muita dificuldade de entender porque as empresas investem milhões em publicidade para atrair o consumidor para seus produtos e serviços e economizam na outra ponta, quando, inclusive já estão com o consumidor conquistado. O setor de atendimento - tirando exceções - continua muito ruim no país. Há toda uma preocupação com a ponta da oferta mas, em muitos casos, a ponta do atendimento é desprezada. O problema é generalizado e aparece em todos os setores da economia. É a falta de respostas para os problemas enfrentados pelo consumidores com os produtos adquiridos, é o atendimento descortês e ineficiente em setores de telefonia, tevê a cabo, fornecedores de energia e água, é o desprezo pela reclamação feita via telefone, com o consumidor perdendo muito tempo na espera, enfim, não há investimento nem a preocupação no cuidado e atenção para com o consumidor depois que ele foi conquistado. E se o consumidor por algum motivo (muitos bastante justos) fica inadimplente, em alguns casos ele se torna persona non grata. Está mais que na hora das empresas preocuparem-se com a manutenção de sua clientela. E mais: lembro que um consumidor inadimplente é ainda um consumidor em potencial. Basta que ele seja compreendido em seus problemas e, muitas vezes, ajudado para que consiga resolver a pendência e voltar a consumir. É muito bacana aparecer na mídia que mostra o sucesso da publicidade massiva e caríssima oferecida ao mercado. Parece mesmo interessante "ser lembrado" por causa dela. Mas, seria muito mais interessante, eficiente e barato, se a lembrança do consumidor viesse por causa da qualidade dos produtos e serviços adquiridos por ele e pela excelência do atendimento que ele recebeu antes e depois de adquiri-los.
Vem aí mais um dia das bruxas, que se tornou parte do calendário comercial e eu retorno ao tema. É lugar comum perguntar: o que é bom para os norte-americanos é bom para o resto do mundo? É bom para os brasileiros? Todos sabem que os gringos adoram impor seus produtos e serviços para os consumidores dos demais países e fazem isso muito bem, utilizando-se de várias técnicas, dentre as quais a da apresentação e entrega de seus projetos e modelos culturais, seus filmes, suas músicas, seus enlatados de tevê, sua língua.... Ok! (Ops...). Mas, no caso do Halloween, sou obrigado a reconhecer que eles não têm responsabilidade (ao menos diretamente). Fomos nós, brasileiros, que, de livre e espontânea vontade, importamos a "festividade macabra". Como já lembrei aqui neste espaço, no meu tempo de criança ou adolescente (há mais de quarenta anos) seria impensável um dia das bruxas no Brasil. Não sei quando começou. Mas, possivelmente há cerca de dez ou quinze anos, alguma escola de inglês deve ter feito a programação para seguir o ritual norte-americano. Depois, no ano seguinte mais um escola e mais outra etc.. Com a importação via tevê a cabo e também tevê aberta de, cada vez mais , filmes e mesmo programas jornalísticos que reproduzem a festa, aos poucos, os brasileiros foram se acostumando, como se ela também fizesse parte de nossa realidade. Daí, o "dia das bruxas" chegou às escolas de ensino fundamental; depois em baladas de adultos e, enfim, na atualidade, parece que ela tem a ver conosco. Atualmente, nas tevês a cabo, nos canais de programas infantis, são apresentados programas específicos somente sobre a festa. Evidentemente, o mercado, sempre de olho nas oportunidades, deu sua contribuição e eis que temos entre nós crescendo vigorosamente uma festa importada, sem qualquer fundamento cultural e mesmo sem sentido ritualístico. E as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma boa receita, vendem bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. Essa forma de domínio capitalista, no final do século XX e início do XXI, passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração, no que, claro, contam com a ativa participação dos consumidores. É verdade que algumas escolas, não conseguindo fugir do evento, estão começando a fazer atividades didáticas e lúdicas, sem o emporcalhamento de doces e guloseimas oferecidos em grandes quantidades e sem nenhuma função de educação ou saúde. Mas, é pouco, pois, infelizmente, tudo indica que o tal dia das bruxas, famoso nos EUA, instalou-se entre nós, de forma alegremente macabra (...). Meu amigo Outrem Ego enviou-me um texto que recebeu nos últimos dias da administração do condomínio onde ele tem uma casa de campo. É um convite para as crianças darem um passeio na "Trilha do Horror com o Expresso Zumbi" e com paradas nas casas dos condôminos para pedir doces. No final, aparece no texto escrito que o passeio será "mega divertido e assustador". Eu, mais uma vez, insisti com ele que nossas comemorações de Páscoa e Natal, por exemplo, também são importadas. Ele concordou, mas esperava que nos dias atuais fosse mais difícil que se implantasse entre nós algo sem ligação cultural ou base social apenas e tão somente visando às vendas de produtos. "No caso, venda de doces e porcarias". Bem, no caso das comidas, até o Natal mereceu uma adaptação. Por muitos anos - e ainda até hoje - nas comemorações natalícias, em pleno verão tropical e escaldante, são ingeridas comidas gordurosas, doces, frutos secos, nozes etc., alimentos típicos de lugares frios, de onde a festa foi importada. E o coitado do papai Noel é obrigado a trajar aquela roupa quente no calor de mais de 30 graus. O consolo é que, pelo menos, o Natal traz algum alento, especialmente para os que se lembram que nesta data é celebrado o nascimento de Jesus Cristo. Realmente, a conscientização a respeito do controle exercido pelo mercado ainda é pequena. O consumidor, considerado como tal, aos poucos, passou a reclamar e reivindicar direitos. Mas, ainda não consegue compreender exatamente porque participa de certos eventos ou gasta seu dinheiro adquirindo certos produtos e serviços. Essa questão do Halloween no Brasil oferece uma boa oportunidade para o exame de como as coisas são feitas, pois ainda estamos no seu nascedouro. Se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas, nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e para a obesidade infantil.
Meu amigo Outrem Ego conta que, certa vez, quando seu filho Waltinho tinha apenas 10 ou 11 anos de idade, pediu para que ele comprasse alguma coisa da qual ele (Waltinho) não precisava. Meu amigo respondeu: "Não dá. Eu não tenho dinheiro". O filho, então, disse: "Ah! Pai, usa o cartão"! Em nossa sociedade, vai-se comemorando o Dia das Crianças dando a elas produtos. Certamente, neste ano não será muito diferente com vendas de muita bugiganga, apesar da crise. Espero que coisas úteis também venham a ser oferecidas, mas não pretendo explorar esse ponto dos produtos e das vendas como manda o calendário. Quero aproveitar a data para, mais uma vez, propor uma reflexão sobre o tema do Dia das Crianças. Dessa vez, quero lembrar, desde logo, que criança é aquela que tem até apenas 11 anos de idade. De acordo com nosso sistema legal (ECA - lei 8.069/90, art. 2º "caput") a partir dos 12 anos a pessoa é já adolescente. Basta, pois, explicar ao jovem que não é o dia dele ou dela para não ter que presentar1. Sei que a questão das compras de produtos e serviços desnecessários ou supérfluos envolve muito mais os adultos que os menores (basta ver o problema do superendividamento das pessoas que não se controlam nas compras). Todavia, em datas comemorativas como esta, a posição dos maiores se agrava, pois eles têm muita dificuldade em dizer não. Os pais (e também os avós e demais parentes) poderiam - ou, melhor, deveriam - aproveitar essas ocasiões para refletirem sobre como querem que essas crianças não só recebam esses presentes quanto, também, que valor devam dar a eles. Claro que uma vez que se está decidido a dar o presente, o primeiro caminho é descobrir o que dar. Tem-se, portanto, que refletir sobre a qualidade do presente. Haverá coisas úteis e porcarias. Coisas indispensáveis e outras desnecessárias. O mercado, como sempre digo, saberá oferecer de tudo. Como já afirmei antes, cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Há ainda outro ponto importante: é preciso apresentar o custo das coisas. O preço de cada produto e a capacidade financeira que os pais têm para adquiri-los. É bastante salutar que os filhos saibam o peso que uma compra pode ter no orçamento doméstico. Caso contrário, a criança (e também o adolescente) poderá acreditar que na falta de dinheiro, basta usar o cartão de crédito... Bem, isso em relação à qualidade dos presentes. Agora, lembro da quantidade. Quantos presentes uma criança deve ganhar de uma só vez? Como se trata de uma data específica para a criança e essa às vezes tem muitas pessoas à volta para presenteá-la, é comum que ela acabe ganhando muitas coisas. Acontece que, é também comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem pela maior parte deles. A criança que ganha muita coisa numa só ocasião tende a desvalorizar tudo ou escolhe um e abandona o restante. A data é boa para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. A criança precisa aprender a valorizar o que ganha (Como o adulto aprende às duras penas. Sei que alguns nunca aprendem...). Isso, da quantidade excessiva, repete-se no Natal e é mais comum ainda na data do aniversário. Quando há festa de aniversário com muitos amiguinhos convidados, não é incomum que a criança aniversariante ganha 20 ou 30 presentes (literalmente). Faz algum sentido? Veja isso, meu caro leitor: um estudo recente realizado pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) com mães das 27 capitais brasileiras, que possuem filhos com idade entre 2 e 18 anos, revelou que 64,4% das entrevistadas não resistem aos apelos dos filhos quando eles pedem algum produto considerado desnecessário, como brinquedos, roupas e doces. O percentual é mais expressivo entre as mães das meninas (68,9%)2. O levantamento mostra ainda, que muitas vezes, nem é preciso que os filhos manifestem o desejo de ganhar um presente para recebê-lo: 59,6% das mães compram produtos não necessários para os filhos sem que eles peçam, apenas pelo prazer de vê-los usarem coisas que gostam. Infelizmente, é cada dia mais comum verificar que boa parte do endividamento das famílias está relacionada a compra de itens desnecessários para os pequenos. Há não só falta de critério como que uma espécie de questão emocional mal resolvida e capaz de influenciar fortemente o hábito inadequado de consumo. A pesquisa mostra, inclusive algumas distorções que demandam reflexão: 58,5% das mães afirmaram que costumam comprar roupas e calçados melhores para os seus filhos do que para si mesmas e 21,9% delas admitiu que os filhos têm um padrão de vida superior ao dos demais integrantes da família. E, enquanto somente 15,6% das mães disseram dar presentes apenas nas datas especiais, como aniversário, Dia das Crianças e Natal, 46,4% confessaram não adotar regras para presentear seus filhos. Para concluir, cito um último dado que comprova aquilo que muitos estudiosos têm referido em relação aos presentes dados aos menores: o estudo revela que 29,7% das mães consultadas disseram que, mesmo comprando a maioria dos produtos que os filhos pedem, eles nunca se dão por satisfeitos e sempre pedem mais. __________ 1 Eu estava quase afirmando que não existe Dia do Adolescente, mas meu amigo Google disse que há sim e que ele é comemorado no dia 21 de setembro. Porém, como não é famoso, deixo consignado aqui em nota de rodapé esperando que ninguém descubra...   2 Colhi em 4-10-15 neste endereço:  O estudo foi publicado em 24/9/2015.
Recentemente, proferi uma palestra num Congresso aqui em São Paulo. Foi-me pedido que eu discorresse sobre o tema da segurança jurídica, algo tão extenso quanto o próprio sistema jurídico existente e todas as suas formas de interpretação e aplicação e que, no Brasil, envolve também aspectos políticos, institucionais e culturais. Nós ainda dizemos que há leis que pegam e leis que não pegam. Pior: pensando sobre o assunto, verifico que o buraco (da insegurança jurídica) é muito fundo. Isso envolve, naturalmente, os direitos em geral e também os dos consumidores. Aliás, como ultimamente tenho tratado muito das questões que envolvem os entes públicos, quero deixar consignado que na sociedade capitalista em que vivemos consumidor e cidadão se confundem: a maior parte dos benefícios sociais que envolvem produtos e serviços são típicos de consumo, o que inclui segurança pública, transportes, saúde, meio ambiente, etc.. Começo, então, concedendo a palavra a meu amigo Outrem Ego. Ele conta um episódio dos anos noventa do século passado, que envolveu sua mulher e o tio dela, um juiz do Tribunal Austríaco, morador da cidade de Innsbruck, na região do Tirol na Áustria. Ele conta o seguinte: "Estávamos minha mulher, o tio dela e eu andando pelas ruas da charmosa cidade de Innsbruck. Era janeiro, inverno e havia nevado muito. Enquanto caminhávamos pela calçada, um pedaço de gelo caiu de cima de um prédio quase me atingindo na cabeça. Imediatamente, pedi a minha mulher, que fala alemão, que perguntasse ao tio dela de quem era a responsabilidade pelos danos acaso houvesse um acidente e eu me ferisse. Ele respondeu que a responsabilidade era do dono do imóvel e também da prefeitura municipal, que tem o dever de fiscalizar para que esse tipo de acidente não aconteça." "Em função da resposta, resolvi perguntar quanto tempo demoraria uma ação judicial contra a prefeitura de Innsbruck para que a pessoa pudesse ser indenizada. (quero dizer minha mulher falou com ele em alemão). Ele não entendeu a pergunta. Minha mulher reformulou e fez o questionamento novamente e, daí, ele disse que não havia necessidade de propositura de ação judicial. Bastava um pedido administrativo junto à prefeitura. Perguntamos, então, quanto tempo demorava para que a pessoa recebesse o reembolso dos valores dispendidos. Ele disse, um pouco constrangido: 'Infelizmente, nos dias atuais o serviço não anda muito bom. Eles demoram três ou quatro dias para pagar'". Toda vez que penso em precatórios, lembro-me dessa história contada por meu amigo há muitos anos. Por nossas terrinhas, não só a administração pública não cumpre suas obrigações pagando suas dívidas, como luta incessantemente na Justiça para não fazê-lo. E quando condenada, com trânsito em julgado, o credor é obrigado a ficar na fila dos precatórios na expectativa de receber aquilo a que tem direito de longa data. Lamentavelmente, mesmo com a edição de nossa democrática Constituição Federal (CF) de 1988, essa questão não foi bem cuidada. Veja-se que o artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) diz que "Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até 180 dias da promulgação da Constituição" (grifei). E, pior ainda: por intermédio da Emenda Constitucional 30 de 2000, foi acrescentado o art. 78 ao ADCT que dispõe: "Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos" (grifei). Isso tudo, sem falar no imbróglio da correção monetária e dos índices aplicáveis envolvidos numa discussão judicial sem fim, como bem mostrou este poderoso rotativo Migalhas em matéria publicada em 27/2/15 intitulada "Precatórios Federais: um calote judicial"1. Bem, não preciso mais prosseguir neste assunto. Falar em segurança jurídica diante de um quadro desses é muito difícil mesmo. A questão da segurança tem relação com a confiança, que as pessoas podem ou devem ter nas instituições, nas leis, nas demais pessoas, etc., e até em si mesmas. Confiança é, pois, um substantivo que funciona como um sentimento que gera segurança. Essa segurança, por sua vez se estabelece como uma base de convicção que alguém pode ter em relação à atitude de outrem (os cônjuges e namorados reciprocamente, os amigos entre si, pais e filhos, etc..) e em relação às leis e instituições (leis devem ser cumpridas; a Justiça deve ser feita, a democracia é o regime da participação popular, etc..). O inverso é verdadeiro: a falta de confiança gera insegurança e enfraquece as convicções que as pessoas possam ter: "Ele ou ela traiu minha confiança"; "Como confiar na lei que nunca é cumprida"? Um aspecto importante em relação à confiança é que ela se projeta para o futuro: a pessoa acredita que o outro em que ela confia se comportará de certo modo previsível em alto grau: "Tenho certeza que terei o apoio de meu pai"; "Certamente meu marido endossará minha decisão"; "Estou convicto que ele fará o que combinamos". Confiança e previsibilidade andam juntas, portanto. O problema é que essa segurança se estabelece pelas relações que advêm do passado: alguém só confia em alguém ou em alguma instituição se a experiência pregressa mostra que é possível confiar (e que vale a pena confiar). Este é, pois, o nosso drama, meu caro leitor: como será possível estabelecer segurança jurídica na sociedade, se nosso passado não é lá dos mais confiáveis? Pois, como dizia o impagável Nelson Rodrigues, "no Brasil, até o passado é imprevisível". *** Ainda voltarei a este assunto. __________ 1 Precatórios federais: um calote judicial.
Não sei se ao sair publicado este artigo a greve dos funcionários dos Correios ainda continua, mas, ainda que tenha acabado, penso valer a pena tratar do assunto, pois sempre demora algum tempo para o serviço retornar ao normal e até lá vários danos já terão sido causados. E, claro, não é a primeira vez que trato do tema nesta coluna, porém, como os fatos se repetem, me vejo obrigado a voltar a cuidar dos direitos dos consumidores e dos fornecedores nesse período de greve. Evidentemente, todo dano causado aos usuários é de responsabilidade primeira da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor: ela responde pelos vícios ou defeitos de seus serviços, o que inclui, naturalmente, a ausência destes. E não há necessidade de que seja apurada sua culpa, eis que a sua responsabilidade é objetiva e decorre da exploração da atividade empresarial desenvolvida e seu risco. O empreendedor público, privado ou de atividade privatizada explora o mercado de consumo e a própria exploração da atividade gera risco social, independentemente de sua vontade. É lógico que, por exemplo, quando uma correspondência entregue pelo consumidor aos serviços do correio não chega a seu destino no prazo ou simplesmente se extravia, essa falha não se dá por interesse da empresa. Ela não decorre da vontade dos administradores da ECT, mas da atividade em si, eis que falhas sempre existirão no sistema de leitura ótica, na incorreta observação do pessoal que faz seleção dos envelopes e pacotes, no transporte, etc. Portanto, o dano existirá, apesar da vontade em sentido contrário dos administradores e funcionários. A lei sabe disso. Ela sabe que, apesar do esforço do prestador do serviço, em algum momento, por evento imprevisto, o serviço falhará, causando danos ao consumidor. Naturalmente, a responsabilidade é a mesma na sua ausência, como a que ocorre no período de greve e que persistirá mesmo após seu fim por mais algum tempo até que o serviço se normalize. Por isso tudo, a lei estabeleceu a responsabilidade objetiva. Basta a constatação do serviço contratado e seu defeito para que possa ser pedida indenização. De fato, a ausência de um serviço como o dos Correios sempre gera danos em larga escala, atingindo fornecedores e consumidores. Para o funcionamento dos serviços massificados, como os de telefonia, tevês a cabo, cartões de crédito, empréstimos bancários etc. é fundamental o serviço dos Correios. Isto porque, é através dele que a maior parte dos milhões de faturas é entregue mensalmente para pagamento embora, atualmente, milhões de faturas e boletos estejam sendo entregues via web/internet. Entretanto, o não recebimento de uma fatura não retira a responsabilidade do consumidor em pagá-la no prazo se o credor manda as faturas pelo correio mas, simultaneamente, coloca à disposição do consumidor outro modo de quitar o débito. Cabe ao fornecedor entregar as faturas antes da data do vencimento. Todavia, com a paralisação dos serviços do correio, a entrega fica prejudicada. O fornecedor, então, tem que oferecer uma alternativa de pagamento ao consumidor. As segundas vias devem ser oferecidas via fax, e-mail, acesso ao site, por ligação telefônica etc. Se essas segundas opções são oferecidas, cabe ao consumidor utilizá-las para o pagamento da dívida. Aliás, é bom também lembrar que, mesmo quando os serviços dos correios não estão paralisados, isso não impede que alguma correspondência não seja entregue. Logo, até fora desse período crítico, pode acontecer de o consumidor não receber fatura para pagamento dentro do prazo ou simplesmente não recebê-la. Mas, de outro lado, se o consumidor não recebe a fatura para pagamento nem tem a sua disposição outro meio para fazê-lo, não se pode imputar a ele a responsabilidade pela quitação da dívida no prazo. Não tem sentido culpá-lo pelo que ele não fez. É risco do fornecedor entregar a fatura com tempo suficiente para pagamento, risco esse que não pode ser repassado ao consumidor. Todavia, como sempre digo, não é fácil para o consumidor, nessa questão, se proteger. Para eventualmente tentar não ser responsabilizado, o consumidor tem que provar que não recebeu a fatura, o que é muito difícil de fazer quando ela não é entregue. Dá para fazer a prova, por exemplo, se o consumidor avisou por escrito seu novo endereço para recebimento da fatura e ela foi enviada ao antigo ou quando o próprio correio coloca carimbo de entrega atrasada (Nesse caso, é a ECT quem deve ser responsabilizada pelo atraso). No entanto, afora esses tipos de exceções, o consumidor acaba sendo responsabilizado pelo atraso. Por isso é que se aconselha que o consumidor mantenha uma agenda com datas dos vencimentos de suas faturas regulares. Se, até a véspera do vencimento, ainda não recebeu alguma, então, ele pode e deve entrar em contato com o credor, solicitando segunda via. Essa é uma regra geral para o dia-a-dia de todos os consumidores que, evidentemente, nesse período de greve, deve ser imediatamente seguida. (Anoto que, para aquele que não faz esse tipo de controle, a saída é pegar as contas do mês anterior, ver as datas dos vencimentos e checar o prazo que existe para pagá-las). Atualmente, todos os grandes fornecedores mantêm Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) e/ou sites, nos quais é possível obter uma segunda via da fatura. Se o credor não tiver esse tipo de serviço, como já disse acima, ele é obrigado a dar outra alternativa para pagamento, como, por exemplo, envio do boleto via fax ou apresentação de dados bancários para depósito em conta (nº de conta corrente, banco e agência, número do CNPJ - se for pessoa jurídica - ou CPF - se for pessoa física). Repito: se o credor não der alternativa, o consumidor não pode ser responsabilizado pelo atraso. Uma boa atitude dos fornecedores - e é o que se espera - é a de não cobrar multas daqueles que, eventualmente, pagarem suas faturas fora do vencimento no período de greve, pois não se pode responsabilizar o consumidor que pretende pagar suas dívidas se ele não tem dificuldade em fazê-lo.
Em matéria de capitalismo, fala-se muito da iniciativa privada e, muitas vezes, esquece-se que os serviços públicos são também típicos de consumo (ainda que, doutrinariamente, possa haver divergências, tema que aqui não interessa). Infelizmente, os nossos são de qualidade e eficiência muito duvidosa. Hoje, retorno a eles, envolvendo-os em sua natureza político-democrática. *** Vivemos tempos bicudos no Brasil e no mundo. Está bastante difícil ler, ouvir e ver notícias. Eu não sou pessimista e ainda consigo enxergar os atos de bondade humana e de solidariedade, consigo ver o brilhantismo dos gênios e das invenções. Mas o mal pulula incrivelmente em todos os cantos do planeta. Sou daqueles que sempre acreditou que a liberdade gera responsabilidade e, se a consciência livre está baseada em valores morais relevantes - como os valores cristãos, por exemplo - então, talvez se possa salvar a humanidade. E, claro, um dos grandes problemas de administração humana sempre foi o dos regimes políticos. A democracia, ah!, essa é a única saída. Como diria Winston Churchill: "A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram imaginadas". Mas, para que uma democracia realmente funcione, para que seja legítima, há alguns requisitos. Cito um deles, o de que ninguém pode ser importunado pelo simples fato de estar caminhando por alguma rua a não ser que esteja cometendo alguma desordem, algum ato ilícito ou, quando muito, esteja em atitude suspeita (embora de semântica muito ampla e sujeita a todo tipo de interpretação subjetiva, a atitude suspeita é o máximo de permissão para uma intervenção do agente estatal). Vou, então, deixar para a reflexão dos leitores uma história narrada por meu amigo Outrem Ego há muito tempo (cerca de cinco anos, num domingo, dia das mães). São mais elementos para que nós possamos pensar nos serviços públicos que temos e na democracia que queremos. Eis a história que ele contou: "Os irmãos João e Maria viviam com sua mãe e estavam desempregados, com dificuldade de pagar o aluguel da casa em que moravam. Mas, de repente tudo mudou. Ele, professor de educação física, conseguiu emprego numa academia como personal trainer e ela numa loja. Foi bem no mês anterior ao dia das mães. Agradecendo aos céus, compraram um bonito presente para ela e naquele domingo comemorativo levaram-na para almoçar fora, o que não conseguiam fazer há alguns anos. Comeram num bom restaurante italiano. O prato foi talharini ao pesto, e como bebidas, água e suco. Quando voltavam para casa foram parados numa blitz policial, como se bandidos fossem. João, que dirigia o veículo, foi retirado do carro e seguiu-se o seguinte diálogo entre ele e o policial que o abordou. - O senhor tem que fazer o teste do bafômetro. - Por quê? -- perguntou ele, surpreso. - Porque sim. - Mas eu estava almoçando com minha mãe. Está vendo ali. Aquela é minha mãe... - Venha, o senhor tem que fazer o teste. - Acho que o senhor não está entendendo. Eu não bebi nada. Só suco de laranja. Aliás, eu não tomo bebida alcoólica. Sou professor de educação física e atleta. Eu não bebo. - Isso não interessa. - Como não interessa? Olhe para mim. Parece que bebi? Vai. Veja. Aposto que o senhor não consegue ficar tanto tempo em pé numa perna só como eu. Quer apostar? - Pare. O senhor está desacatando autoridade. - Como? Que absurdo. É o senhor que quer que eu assopre esse negócio, mas eu nem bebi. - Se o senhor não fizer o teste vai ser preso! - Preso? Preso por quê? Qual crime eu estou cometendo? (...) Muito bem. Como João era um homem de princípios, não cedeu e acabou preso. Vendo a prisão do filho, sua mãe desmaiou e teve de ser levada às pressas para o hospital. Maria colocou a mãe no banco de trás. Ela balbuciava alguma coisa. Maria dirigiu às pressas para um Pronto Socorro. Quando parou numa esquina, mais ou menos três quarteirões à frente da batida policial, dois jovens se aproximaram apontando uma arma e exigindo que ela entregasse a bolsa e a chave do carro. Ela, então, em prantos mostrou a mãe passando mal no banco de trás. Os bandidos viram a cena e resolveram levar apenas o dinheiro que Maria portava. E onde estava a polícia nessa hora? Parando cidadãos de bem que, depois de uma semana de trabalho para pagar impostos, saíram para almoçar com suas mães e talvez tenham bebido uma cervejinha ou não. (...) A mãe acabou sendo medicada e, após pagar fiança, o irmão foi solto. Na semana seguinte, o prédio em que viviam foi invadido por dez homens bem armados que fizeram um "arrastão" e lá ficaram por duas horas roubando tudo dos apartamentos. E onde estavam os policiais? (...) Não sei. Mas, eu os vi, alguns dias depois obrigando um idoso com cerca de setenta anos a colocar sua boca num aparelho medidor. Idoso, que depois de cumprir suas obrigações como pessoa de bem anos a fio neste país, que atravessou uma terrível ditadura e que finalmente havia chegado à democracia, após ter saído para jantar com amigos como sempre fizera por muitos anos sem causar nenhum dano a quem quer que seja, era abordado sem qualquer suspeita ou dado objetivo, como se bandido fosse." Meu amigo complementou: "Tudo isso seria irônico se não fosse trágico e real. Deixo a ironia para os bandidos que, no dia das mães, ficaram com dó daquela mãe doente no banco de trás do carro. É sempre bom lembrar que até bandido tem mãe. Mas, o respeito a elas não é oferecido por todos (...) Infelizmente, o Estado não está cumprindo sua função de oferecer segurança pública à população. Os assaltos à mão armada praticados contra motoristas nas esquinas, os sequestros e os sequestros-relâmpagos, os roubos de residências e o incrível número de assaltos feitos por bandos em prédios residenciais já se tornaram rotina. Em plena e suposta democracia, é triste ver a população brasileira sofrer, de uma lado, pelo medo e pela violência dos bandidos e, de outro, pelos abusos praticados pelos agentes do Estado." *** É isso, caro leitor, apenas mais um pedaço de lenha nesse imenso fogaréu chamado "democracia que temos" e 'serviços públicos que gostaríamos de ter'.
Hoje, 11 de setembro de 2015, a lei 8.078/90, isto é, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), completa 25 anos de existência. Como sempre tenho dito, a boa notícia é que o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, sempre lembrada tanto em setembro como em março (mês em que entrou em vigor; mês em que também se comemora o Dia Mundial dos Direitos dos Consumidores). Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. E, claro, com 25 anos de idade seria de se esperar que a lei fosse cumprida por todos o tempo todo. Não é bem assim, mas neste aniversário quero mostrar o lado bom. Com um início de vigência que, lembro-me bem, assustou empresários em geral, muitos publicitários e os grandes conglomerados em especial, aos poucos o CDC foi se firmando e deixando de ser o bicho-papão de que o acusavam injustamente. Ao que me consta, ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como, também, da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento melhor qualificado, enfim, a norma ajudou o mercado a amadurecer. Para ficarmos apenas com um exemplo: antes do CDC, a maior parte dos produtos não trazia estampada nas embalagens seu prazo de validade. Lembro-me bem que eu fiquei espantado com o curto prazo de validade de alguns produtos. Até água em garrafa ou em copo plástico tem curto prazo de vida sadia! Antes da lei 8.078/90, nós consumidores, muito provavelmente, tenhamos ingerido toneladas de produtos vencidos e sorvemos milhares de litros de bebidas ultrapassadas. (Ocorre-me um fato tão terrível quanto peculiar: sou da época dos refrigerantes em garrafa, e me vem à memória quantas vezes, quando garoto, retirei a tampinha e com a mão limpei as marcas de ferrugem que estavam na boca da garrafa, antes de beber o refrigerante... Das vezes que adoeci, sabe-se lá quantas não estavam relacionadas com produtos e bebidas deteriorados...) Pois bem, o susto dos empresários passou. A lei teve, como tem, muito boa eficácia - ou, como se costuma dizer no Brasil, é "uma lei que pegou". Não resta dúvida que as pessoas passaram a descobrir que tinham muitos direitos garantidos pelo CDC e resolveram exigi-los, não só por intermédio de ações judiciais quando foi preciso, mas também no dia a dia das compras fazendo exigências e reclamando. Essa consciência que o consumidor adquiriu fortaleceu o mercado. Ao mesmo tempo em que os consumidores passaram a ficar mais escolados em matéria de consumo, os empresários também. Muitos destes passaram a adotar a lei como elemento de marketing para atrair seus clientes, o que foi bem-vindo e, de fato, dá resultados. Essa é mais uma virtude da lei consumerista: deixou realçado que o bom fornecedor é aquele que desenvolve seu projeto de negócio, claro, visando o lucro, mas respeitando seus clientes. Como disse meu amigo Outrem Ego: "É quase tão simples como vender amendoim nas areias perto do mar". Ele explica: "Na praia, o vendedor de amendoins passa gritando e dando uma amostra de seu produto para os banhistas; caminha alguns metros repetindo esse gesto para depois voltar. Enquanto ele vai, os veranistas comem o amendoim recebido - e de graça! - e quando ele volta, quem gostou tem a oportunidade de comprar um pacotinho, momento em que o negócio é concretizado". "Desse simples modo de oferecer e vender o amendoim, pode-se extrair um dos melhores exemplos de como o empresário deve tratar o consumidor: em primeiro lugar o vendedor faz uma propaganda honesta, oferecendo de graça seu produto para que o consumidor experimente; depois ele somente vende para o consumidor que, de fato, quer comprar, uma vez que o produto foi previamente examinado, testado e aprovado". "Quanto ao consumidor que experimentou mas não comprou, ainda assim o negócio foi bem feito. O custo do amendoim oferecido gratuitamente faz parte do custo total do negócio, porém funciona sempre como investimento, pois, até para aquele que não comprou fica a lembrança da boa imagem que o vendedor construiu, respeitando inclusive seu desinteresse em adquirir o produto. Por conta disso, esse consumidor torna-se um cliente em potencial, podendo tornar-se um comprador em outra oportunidade". É verdade que não são todos os fornecedores que pautam sua conduta com base na lei nem no modelo do vendedor de amendoins citado por meu amigo. Sim, mas realço que na medida em que o tempo passa, os consumidores vão, de um jeito ou de outro, obrigando a uma mudança do padrão da produção, distribuição e oferta de produtos e serviços a favor da qualidade, do respeito e - por que não? - até de um preço menor em muitos casos. Ainda há muito a ser feito, inclusive, uma reforma com ampliação das regras existentes, como já aqui defendi, mas é importante lembrar que a lei 8.078/90, em 25 anos, trouxe, não só esperança de que possamos ter um mercado de consumo mais sadio e equilibrado como, realmente, alcançou muitas das metas sonhadas por seus autores.
Continuo hoje o artigo da semana passada, no qual comecei a mostrar aspectos da penalização de motoristas por conta de regras do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) que são eivadas de inconstitucionalidades. Lembro: os pontos para as infrações são colocados numa vala comum, independentemente de seu grau. Uma coisa é o motorista trafegar de forma perigosa, com o veículo sem condições de dirigibilidade, fazendo conversões proibidas, movimentando-se em velocidade excessiva, fazendo ultrapassagens perigosas, dirigindo embriagado, etc., outra, muito diferente, é ser pego trafegando no horário proibido pelo rodízio ou não ter colocado o cartão da zona azul ou, ainda, estacionar o veículo em local proibido. Vejamos outros fundamentos constitucionais que são violados. Como é sabido, o princípio da isonomia, assegurado na Constituição Federal (art. 5º, "caput" e inciso I) implica que, concretamente, ninguém possa ser tratado com desigualdade pela lei ou por seu agente aplicador. Não pode a lei, portanto, punir mais quem faz menos, sob pena de violar esse princípio constitucional. O mínimo que se pode esperar da norma nesse sentido é que, se ela pretende que se punam os infratores, que aquele que cometer o delito mais perigoso seja punido com mais rigor do que aquele que cometer o de menor gravidade. Acontece que, como vimos acima, o CTB colocou num mesmo patamar infratores perigosos e infratores sem nenhuma periculosidade. Isso foi feito pelo equivocado sistema de pontuação, que pretende punir o infrator que atinge uma escala de números (mais de 20 pontos), independentemente da qualidade das infrações. E esse aspecto viola princípio da igualdade. É inadmissível a lei dar a mesma pena a pessoas que cometem infrações tão diversas como as descritas acima. Aliás, é possível até que um infrator sem nenhuma periculosidade seja punido e o perigoso não seja, como mostrei. Antes de prosseguir, anoto que o fato de a infração relativa à zona azul ter pontuação 4 e a do excesso de velocidade ter 7 (ou seja, há mais pontos negativos para uma do que para outra) não modifica em nada o argumento. Isso porque não existe qualquer conexão lógica entre essas infrações. A natureza de cada infração é tão diferente que impede a comparação. Logo, não há relação entre o ponto negativo 4 de uma e o ponto negativo 7 de outra. Assim, não sendo - como não é - possível fazer analogia entre infrações tão diversas, elas não podem ser comparadas. A questão das punições do CTB é penal. Para o legislador penal ordinário existe um comando constitucional a ser observado na fixação da pena. É o chamado princípio da proporcionalidade. Ele funciona como parâmetro obrigatório para o legislador e apresenta três facetas: a) a pena deve ser graduada de acordo com a relevância do bem jurídico a ser tutelado; b) deve ser levada em conta a pessoa do infrator; c) deve ser considerado o caráter retributivo, isto é, a pena deve ter a mesma pujança da conduta violadora; deve ser fixada levando em conta esse paralelo: a relação existente entre a infração delituosa e a pena. O art. 5º, XLVI, da Carta Magna dispõe que: "a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos". Ora, conforme já expus, o CTB, ao fixar a pena de suspensão do direito de dirigir para os casos de infração de natureza meramente administrativa, está em total dissonância com o texto constitucional. E pior: não está de acordo com nenhum dos critérios caracterizadores do princípio constitucional da proporcionalidade. Vejamos os detalhes. Não resta dúvida de que se trata de pena administrativa de suspensão de direitos (suspensão do direito de dirigir), podendo ir até seu perdimento (perda da CNH). E essa pena: a) primeiramente, não tem graduação na relação com o bem jurídico tutelado. Com efeito, estacionar em local proibido, não colocar o talão da zona azul ou trafegar no horário proibido pelo rodízio não tem relevância jurídica suficiente que possa conduzir à suspensão ou perda do direito de dirigir; b) em segundo lugar, como a fixação é objetiva e abstrata, aplicada indistintamente a todo e qualquer motorista, não leva em consideração a pessoa do infrator. É bem possível (aliás, deve estar acontecendo e muito) que um cidadão que jamais tenha dirigido um veículo em excesso de velocidade, e que dirija há muitos e muitos anos sem nunca ter causado nenhum acidente, possa estar perdendo sua habilitação apenas e tão-somente porque teve de trafegar no horário proibido pelo rodízio ou porque se viu obrigado a estacionar em local proibido, ou, ainda, porque não tinha talão da zona azul ou simplesmente esqueceu-se de colocá-lo; c) em terceiro lugar, a suspensão do direito de dirigir ou o perdimento desse direito, nos casos que estou apontando, não seguem o critério da retribuição. É absolutamente desmedido suspender o direito de dirigir de quem não colocou no carro o talão da zona azul, ou estacionou em local proibido ou, ainda, trafegou no horário proibido pelo rodízio. A única retribuição jurídico-constitucional adequada nesses casos é a fixação de multa. Nada mais. Finalizo, portanto, deixando consignada minha posição em prol de tantos quantos já se sentiram injustiçados por terem o direito legítimo de dirigir seus veículos cassado por infrações meramente administrativas. Se quisermos realmente construir uma nação democrática precisamos ir a cada dia amoldando nosso sistema legal aos princípios e regras constitucionais de modo a evitar desigualdades e injustiças.
Meu amigo Outrem Ego inspirou-me a escrever este artigo. Disse-me ele: "Sou motorista habilitado há mais quarenta anos. Nunca sofri ou causei nenhum acidente - graças a Deus! - e nesses anos todos recebi algumas multas, todas por estacionamento proibido ou por ter furado o rodízio (foram duas vezes em que simplesmente me esqueci)". E continuou: "Sinto-me acuado. Acabei de receber duas notificações de multas por excesso de velocidade. Sabe de quanto? Uma, porque eu estava a 57 Km por hora numa via em que a velocidade máxima permitida era de 50 - e à noite sem ninguém por perto. Outra por trafegar a 48 Km por hora, quando o máximo permitido era apenas 40. Não consigo mais dirigir com tranquilidade pelas ruas de São Paulo, pois está muito difícil saber qual é a velocidade permitida, e em quais vias. Como tenho medo de perder minha carteira, tenho andado a 40 km por hora em quase todos os lugares e vou sempre preocupado...". Depois, arrematou: "Bem, quero dizer que ganhei mais uma preocupação, pois há os bandidos que assaltam os motoristas, os buracos das ruas que estragam nossos veículos, o trânsito infernal, os pedestres que literalmente pulam à frente fora da faixa, os motoqueiros que passam como bólidos entre os veículos num espaço minúsculo (será que eles não são multados?), enfim, mais um problema junto de uma série de outros. É assim mesmo que se constrói uma sociedade?". Como um dos assuntos do momento é criticar motoristas, inspirado por meu amigo, resolvi falar sobre mobilidade urbana, mas com um foco diferente. Ficarei, digamos assim, na contramão de direção: mostrarei algumas das violações praticadas contra os motoristas. Antes de mais nada, e para evitar confusão, coloco o óbvio: qualquer pessoa é a favor da punição a motoristas infratores, especialmente aqueles que colocam em risco a segurança e a vida dos demais (e de si mesmos). Por isso, é fundamental existirem leis que determinem o controle do trânsito, que fixem punições e estipulem critérios de aferição das infrações. No entanto, existem várias infrações ligadas ao uso de veículos que não acarretam nenhum tipo de perigo ou risco à comunidade ou às demais pessoas. Está entre essas infrações, por exemplo, estacionar em local proibido, estacionar nas chamadas "zonas azuis" sem a colocação do cartão, trafegar com o veículo no horário proibido nas cidades com sistema de rodízio, como a capital de São Paulo, etc. (É verdade que se pode objetar que o estacionamento em alguns locais pode gerar transtorno no trânsito, como, por exemplo, na av. Paulista. Nesse caso a infração seria mais grave que estacionar em outro local proibido de menos movimento. No entanto, nem assim se justificaria, como veremos, a aplicação da pena de suspensão ou perda do direito de dirigir. Bastaria guinchar o veículo e, na hipótese, aplicar uma multa maior que as demais. Isso sim seria adequado: multas diferentes para estacionamento em local proibido em ruas diferenciadas). Ora, ainda que se admita que infrações desse tipo possam gerar a imposição de uma multa pecuniária, nada justifica que se imponha a perda ou a suspensão do direito de o motorista continuar dirigindo por infrações dessa ordem. Aliás, ao contrário, como mostrarei, o Sistema Constitucional Brasileiro proíbe que uma lei possa impor penalidade desse tipo. Uma coisa é o motorista trafegar de forma perigosa, com o veículo sem condições de dirigibilidade, fazendo conversões proibidas, movimentando-se em velocidade excessiva, fazendo ultrapassagens perigosas, dirigindo embriagado etc., outra, muito diferente, é ser pego trafegando no horário proibido pelo rodízio ou não ter colocado o cartão da zona azul ou, ainda, estacionar o veículo em local proibido. É bem fácil perceber que no primeiro caso o motorista representa um perigo à incolumidade física das demais pessoas, podendo no segundo, quando muito, gerar transtornos de ordem administrativa ou queda na arrecadação da verba prevista para o estacionamento nas vias públicas. A punição em cada hipótese deve ser - só pode ser - muito diferente. O problema está em que o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estabeleceu uma confusão entre as duas formas de ação dos motoristas. Ao criar um sistema de pontuação, no qual são somados, na mesma vala comum, os dois tipos de infrações acabou gerando, concretamente, uma violação ao direito dos motoristas. Suponha-mos que alguém que sempre dirija de forma adequada e preventiva, nunca excedendo a velocidade, não fazendo ultrapassagens proibidas etc., mas que tenha que usar o automóvel para trabalhar, seja apanhado dirigindo, no período de um ano, por seis vezes, no horário proibido pelo rodízio. Ele somará 24 pontos (4 pontos de cada vez) e ficará sem a Carteira Nacional de Habilitação - CNH. No entanto, se, no mesmo período, outro motorista for multado por excesso de velocidade por duas vezes não sofrerá a mesma pena, pois terá somado apenas 14 pontos (7 de cada vez). O motorista perderá a habilitação se tiver, também, tantas autuações de zona azul e por estacionamento proibido quantas forem necessárias para atingir mais de 20 pontos. Os exemplos, claro, se multiplicam na exata medida das combinações de infrações e pontuações. O grave nisso tudo não é só a evidente injustiça concreta da situação em que se acabam colocando os cidadãos, mas também a distorção que o sistema gera, uma vez que acaba punindo o melhor motorista em detrimento do pior. Por isso, penso, este ponto da lei é inconstitucional. *** Há mais, mas temos de ir devagar. Continuarei na próxima semana.
quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Por uma advocacia preventiva

Em meus anos de professor da graduação, costumava contar para meus alunos a seguinte história: rolava uma festa; um médico e um advogado conhecidos conversavam animadamente. De repente, surge um outro convidado e se dirige ao médico: - Ah, doutor, que bom encontra-lo aqui. Como vai? - Bem, e você? Em resposta à pergunta do médico, o terceiro que chegara começa a falar de uma série de sintomas, colocando a mão no peito, no pescoço, na cabeça, etc. e, ao final da narrativa, pergunta: - O que eu faço, doutor? - Isso não é nada. Espere que eu te dou uma receita. Daí, o médico saca do bolso um talonário, prescreve um medicamento, assina e dá ao conhecido. Este agradece e se retira. Depois, o médico vira-se para o advogado e desabafa: - É sempre assim! Basta algum conhecido me encontrar numa festa que já fila uma consulta. O que você faz quando te consultam fora do escritório? - Ah, eu não me aborreço - diz sorridente. Dou a resposta e, no dia seguinte, mando uma fatura para a casa do consulente, cobrando meus honorários. - Boa! É isso que eu farei. Amanhã inicio minhas cobranças desse tipo de consulta. Mandarei uma nota para esse fulano. No dia seguinte, o médico recebe na sua casa uma fatura do advogado cobrando pela consulta que lhe fizera na véspera na festa... *** Sempre gostei dessa história, pois ela valoriza algo que nem sempre é valorizado pelas pessoas em geral e, às vezes, até pelos próprios consultores jurídicos: a opinião profissional. E a analogia com o médico e a medicina permite que pensemos uma das questões mais importantes para o exercício da advocacia: o papel da prevenção. Nos dias que correm, é, mais ou menos, lugar comum a ideia de que as pessoas (especialmente a partir de uma certa idade) devem consultar um médico regularmente. Mesmo como rotina, como se diz, essas consultas podem evitar danos maiores, podem detectar doenças e até em casos graves como o câncer, uma vez este descoberto no início, muitas vezes há boas chances de cura. E ainda que esse controle preventivo não seja feito por todos, atualmente, são milhares que o fazem. Com a advocacia, haveria de se dar o mesmo. É verdade que as pessoas jurídicas se utilizam, regularmente, de forma preventiva, dos serviços jurídicos, mas o mesmo não se dá de forma generalizada com as pessoas físicas. Estas buscam esses serviços mais como "pronto-socorro ou internação de urgência", depois que o problema surge. Seria muito bom que essa cultura fosse modificada, pois o trabalho do advogado é fundamental sempre; e se fosse buscado de forma preventiva, certamente muitos problemas seriam evitados. Fazer economia evitando conversar com um advogado não é uma boa estratégia. Fica, pois, aqui minha homenagem ao Dia do Advogado, que ocorreu nesta semana, na esperança de que, cada vez mais, as pessoas valorizem a consulta jurídica.