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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Rizzatto Nunes e Rodrigo Ferrari-Nunes A questão não envolve exatamente o mercado de consumo, porém no primeiro artigo que publico neste ano, não poderia deixar de lado o tema do momento: o do julgamento pelo TRF4 do caso do ex-presidente Lula. E, por aquilo que se pode ver dos noticiários e das redes sociais, praticamente tudo já foi dito a respeito do assunto. Por isso, aproveito o episódio para focar num ponto um pouco diferente: o da posição dos estrangeiros em relação a nós brasileiros. Para tanto, o antropólogo Rodrigo e eu usaremos como base um texto publicado por um articulista do New York Times1, que tem o intuito de denegrir a imagem do Brasil. Podemos começar com uma pergunta de meu amigo Outrem Ego: "Pessoas falam de nós pelo mundo afora, mas será que eles nos entendem?". Para responder, lembramos Edward Said, que em sua obra clássica "Orientalismo"2, ensina que é sempre muito difícil julgar e conhecer um povo que não seja o nosso. Aliás, até o nosso próprio impõe dificuldades quando se busca compreendê-lo. Como mostra Said, muitas vezes esse povo estrangeiro, esse outro, é uma construção. Construção essa, feita por planejamentos estratégicos mal intencionados, com objetivos específicos não declarados, aplicadas aos meios de comunicação por supostos estudiosos, agentes governamentais, jornalistas especializados etc.. E mais: ainda que com boas intenções, a construção do "outro" faz-se muitas vezes a partir do conhecimento de si, das experiências pessoais e localizadas muito distante da vida e vivência do analisado. Essa construção, como dito, é feita pelos meios de comunicação em geral, o que envolve também as universidades e seus acadêmicos, a literatura, o cinema, etc.. Gera-se o preconceito, mas se vai muito além: cria-se uma imagem fixa que, muitas vezes, falseia completamente a realidade. Muito bem. Estamos no Brasil e como brasileiros que somos, temos todo direito de emitir nossas opiniões - garantidas constitucionalmente. E, em tempos de redes sociais, são feitos diariamente centenas e até milhares de pronunciamentos sobre diversos temas. Como se sabe, estamos na época da pós-verdade, o que significa que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Certo. Mas, isso não quer dizer que analistas, cientistas, articulistas especializados etc., possam falar "qualquer" coisa a respeito dos fatos e das pessoas. Quer sejam brasileiros ou estrangeiros. Como acima anunciado, sobre o episódio do julgamento do ex-presidente Lula, deixaremos de lado as falas dos brasileiros que expressam sua opinião. Estão apenas no uso do exercício de sua liberdade de expressão. Ora, a liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos. E essa garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que, para os gregos na antiguidade, era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação. Mas, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos (ou oferecer produtos e serviços no mercado), há um limite ético que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade e o respeito às garantias e aos direitos estabelecidos. Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim. Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos. Posto isto, vejamos agora, o que disse o articulista do jornal New York Times (NYT). Logo no início do artigo ele diz, textualmente: "O Brasil, o último país ocidental a abolir a escravatura, é uma democracia bem recente, tendo emergido da ditadura há umas três décadas"3. Como? A escravatura no Brasil foi abolida no ano de 1888, antes da instauração da República. Nos Estados Unidos da América ela aconteceu alguns anos antes, em 1863. Mas a perseguição aos negros por lá prosseguiu de forma violenta e cruel por quase todo o século XX. O jornalista do NYT não sabe disso? Não sabe ele do brutal racismo existente em seu próprio país, na sua sala de estar? Será que ele nem ouviu falar do "Experimento da Sífilis" em Tuskegee, bancado pelo governo americano de 1932 à 1972? Um experimento racista que transformou em cobaias humanas 600 homens negros durante 40 anos4! Em 1997, o presidente Bill Clinton pediu formalmente desculpa aos sobreviventes de Tuskegee, numa cerimônia na Casa Branca. E se o articulista tivesse lido - quem diria? - o jornal NYT de 25/7/1972 saberia da experiência5. Ou, falando de algo muito mais conhecido de todos: a Ku Klux Klan (KKK), organização norte americana racista, que surgiu no século XIX e que existe até hoje. Será que ninguém no NYT conhece a KKK? Nós nem deveríamos tratar desse assunto, mas como foi o articulista do prestigioso NYT que trouxe o tema, fazemos a citação e colocamos a pergunta: "Qual é a relação entre abolição da escravatura do século XIX com o julgamento de um processo pelo TRF4 em 24-1-2018?" Ele, como correspondente estrangeiro, devia guardar para si o sentimento que tem em relação ao Brasil. Teria que tratar de fatos. E sem distorções nem manipulações (ainda que absurdas como as que apresentou no início do artigo). De fato, será que quem escreve no NYT não precisa conhecer um mínimo de lógica? Adiantaria ler o restante do artigo, após um início como esse, ilógico, sem fundamento, e, como se diz, "sem pé nem cabeça"? Não! É pura perda de tempo. Mas, claro, foi citado por aqui. Aliás, muito do que se escreve e publica lá fora, chega até nós mais por causa de nosso complexo de vira-lata do que pelo conteúdo da informação. Lendo o artigo, ficamos com uma dúvida a respeito do NYT: "Será que o que se publica por lá é assim tão fraco?". Desse jeito, acabaremos até dando 'razão' ao presidente Donald Trump quando critica a imprensa local. __________ * Rodrigo Ferrari Nunes é doutor em Antropologia pela Universidade de Aberdeen na Escócia, onde é pesquisador Honorário, é mestre em Antropologia pela Universidade de British Columbia, e sócio fundador do Segredo da Música com Sandro Haick. __________ 1 NY Times. 2 Publicado entre nós pela Companhia de Bolso (Editora Schwarcz Ltda) São Paulo: 2007. 3 Endereço acima. Nossa tradução livre. 4 Estudo da Sífilis não Tratada de Tuskegee.  5 Observador.
Todo início de ano é a mesma coisa: chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileira. Acontece que, grande parte desses acontecimentos são previsíveis e, ao que tudo indica, infelizmente, repetir-se-á no ano que vem, assim como já aconteceu no ano passado, no anterior, no anterior etc.. Um longo etecetera de catástrofes, que poderiam ter sido evitadas. Já cuidei deste assunto por aqui, mas volto ao tema para deixar consignada a responsabilidade do Estado no caso. Na sequência, apresento um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado. A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando centenas de mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer, passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio. De nada adianta ficar simplesmente acusando as vítimas depois das ocorrências, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada e também nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Faço, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização. Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente, o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e também pela vítima. Pensão Os familiares que são dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Do mesmo modo, a vítima sobrevivente pode pleitear pensão pelo período em que, convalescente, tenha ficado impossibilitado de trabalhar. Outros danos materiais Além da pensão, no cômputo dos danos materiais inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como, no caso de desmoronamento da habitação, seu preço ou o custo para a construção de uma outra igual e todas as demais perdas efetivamente sofridas relacionadas ao evento. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estadia e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Danos morais Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que no caso dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo. De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às famílias das vítimas, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto. Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé, intenção de causar o dano, ou regularmente repete os mesmos erros. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor.
quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O corpo humano, o mercado de consumo e a ética

O corpo humano, dizem, é um templo recebido de Deus (ou da natureza) e que nós devemos respeitar. Fruto de admiração desde a antiguidade, passou a ser vendido pela sociedade capitalista contemporânea como um produto a ser alcançado na forma do belo. Isto é, a "beleza" virou produto de consumo. Há uma criação mercadológica e também cultural e, como decorrência dessas duas uma imposição social que a cada dia mais afeta as pessoas para que elas "pareçam" bonitas. Não como de fato são: a pressão é para que elas se pareçam com aquilo que o "mercado" diz que é belo. Há um quê de artificial nesse modo de se medir as pessoas. Aliás, não só artificial como fake (termo usual atualmente). E a utilização de modernas técnicas de manipulação de fotos, tais como o photoshop, permite a criação de imagens que nem sempre correspondem ao real. Muitas vezes, as próprias pessoas reproduzidas têm se surpreendido com sua (falsa) beleza. A verdade é que, de um jeito ou de outro, nesta sociedade em que o ter é mais importante que o ser, onde a aparência é mais importante que a essência, o que se percebe é que algumas pessoas são prisioneiras de seus símbolos: roupas de marca, joias, relógios preciosos, carros último tipo, o corpo idem. O que o mercado acaba vendendo é uma ilusão de segurança e felicidade nos símbolos oferecidos nas vitrines e em anúncios publicitários, e o que esse tipo de consumidor adquire é uma falsa ideia de si mesmo, muitas vezes gerando frustração e um vazio que o obriga à voltar às compras, às transformações etc. num círculo vicioso sem fim. O apelo pela beleza e pela estética é tamanho que, um dos aspetos mais evidentes dos avanços da ciência tecnológica é o da venda e reforma de partes do corpo humano. Quase como no filme de Frankenstein, existe a possibilidade da ficção virar realidade. Evidentemente, há muita coisa boa. O avanço da biologia e da medicina permitem os transplantes de órgãos que salvam muitas vidas, que devolvem funções de partes do corpo humano que estavam perdidas ou que dão a visão às pessoas etc. Há também o uso de vários tipos de próteses, as operações corretivas com ajuda de micro instrumentos e uma numerosa quantidade de procedimentos outrora impensáveis. Isso tudo é muito bom. Ao lado disso, porém, o mercado passou a oferecer toda sorte de cirurgias estéticas. Não só é possível deixar de usar óculos, fazendo uma fantástica, muito rápida e indolor operação oftálmica (que, aliás, é executada praticamente em série, uma atrás da outra), como homens e mulheres podem literalmente comprar partes do corpo humano, ou fazer trocas no próprio corpo com enxertos. A busca do corpo perfeito, da forma sempre esguia e jovem, esses produtos tão bem vendidos no mercado de consumo, fez surgir um enorme setor de reposição de "peças" humanas. É aquilo que eu intitulo de "fraquensteinização" do mercado. Naturalmente, não há nenhum mal em que as pessoas queiram fazer as correções que entenderem necessárias, desde que o façam conscientemente e com acompanhamento médico adequado. Podem querer fazer lipoaspiração para jogar fora as gorduras indesejáveis e difíceis de perder; ou desejar eliminar as papas dos olhos; as mulheres podem querer aumentar seus seios ou corrigi-los etc. É mero exercício do direito de cada consumidor. O mercado cuida desse assunto com alta prioridade e qualquer um pode ver. Basta ligar a tevê para perceber a quantidade de produtos e serviços ligados à forma e a beleza existentes. O marketing, por sua vez, em todas as suas vertentes, o tempo todo, mostra as pessoas de um modo que vai se impondo no imaginário e desejo dos consumidores. Nos filmes dos cinemas, nos canais de televisão, nas novelas etc são apresentados atrizes e atores magros e "sarados" com formas desenhadas, que depois os consumidores tentam "copiar" adquirindo os produtos e serviços oferecidos. Há também muita coisa esquisita. Já tive oportunidade de comentar aqui alguns casos e, recentemente, li numa matéria que a sueca Pixee Fox, que se auto intitula "desenho animado vivo" já fez mais de 100 procedimentos estéticos para ficar igual a desenhos animados. Ela, inclusive, removeu seis costelas para afinar brutalmente a cintura1. Nesse setor são, também famosos os candidatos e candidatas a ficarem iguais a boneca Barbie e ao boneco Ken. Até poder-se-ia garantir um eventual direito das pessoas fazerem esse tipo de intervenção, o que, penso, é questionável. Todavia, há algo mais grave, que é o do procedimento médico subjacente nessa questão: as excessivas intervenções são feitas por cirurgiões médicos, acompanhados de equipes com outros médicos anestesistas e seus assistentes. Pergunta-se: não há limite ético para um médico fazer tal operação? Não deveria ele se negar a fazê-la e aconselhar o interessado ou a interessada a procurar ajuda psicológica? A questão, para reflexão, está colocada. Parece-nos que as entidades de medicina responsáveis deveriam debater e cuidar desse tema. Não é só porque a ciência moderna e a incrível tecnologia que a acompanha seja capaz de construir corpos humanos com fantásticas próteses, enxertos e reformas, que se deve fazê-lo. Do ponto de vista ético, a possibilidade real de uma execução não significa necessariamente o direito de exercê-la. Não falo apenas desses exemplos de pessoas que querem ficar iguais a desenhos. Refiro a questão em sentido mais amplo, porque se for deixado que o mercado tome a decisão, com o alto faturamento que o segmento gera, o limite parece infinito. __________ 1 RedeTV.
quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Black Friday - aspectos práticos e legais

Volto ao tema e, como sempre ocorre nas mega promoções, lembro da história contada por meu amigo Outrem Ego. Num encontro de família, seu irmão chegou todo animado e disse: "Aproveitei uma baita liquidação e fiz uma economia de um mil reais em compras. Estava tudo com desconto de 50% nos preços. Se eu tivesse comprado antes teria gasto dois mil". A cunhada, esposa desse irmão, fez cara torta e falou para o marido: "Mas, a gente não precisa disso que você comprou". E meu amigo arrematou: "Mano querido, pelo que estou vendo, na verdade, você não economizou um mil reais; você gastou um mil reais!". É isso. Descontos são bons... Se precisamos do produto! Em outra importação feita dos EUA, chegamos a mais uma Black Friday apelidada por aqui, com muita razão, de Black Fraude. Não bastasse, portanto, aos consumidores adquirirem produtos sem precisar, eles ainda compram por preços regulares acreditando que estão mais baratos quando, de fato, não estão. Em matéria publicada no dia 19 de novembro p.p., a Folha de São Paulo apresentou pesquisa na qual foram acompanhados 6.875 itens por 15 dias em nove das maiores lojas de varejo que comercializam eletroeletrônicos. E descobriu o que, todo ano tem acontecido nessa promoção abrasileirada: falsos descontos1. A tática é antiga: aumenta-se o preço alguns dias antes e depois aplica-se um desconto para chegar no mesmo preço anterior (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais que por aqui se faz). Aumentar preço num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar no mesmo preço, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é publicidade enganosa, prevista no § 1º do artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), e também caracteriza o crime de publicidade enganosa prevista no art. 67 e o crime de informação falsa ou enganosa tipificada no art. 66, ambos também do CDC. De todo modo, como grande parte das vendas é feita via web, aponto a seguir, para lembrar, as regras vigentes para o comércio eletrônico. O comércio eletrônico O decreto presidencial 7.962, de 15 de março de 2013 fixou uma série de regras para o comércio eletrônico. Direitos básicos que já estavam fixados no CDC O art. 1º do decreto deixa claro que são direitos dos consumidores na contratação de compras via internet: a) O fornecimento de informações claras a respeito do produto, do serviço e do fornecedor; b) O atendimento facilitado ao consumidor; e c) O respeito ao direito de arrependimento. São determinações desnecessárias, eis que tudo isso e muito mais está estabelecido no CDC incontestavelmente. De todo modo, ajuda a fixar as determinações. A oferta eletrônica O art. 2º do decreto determina que os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações: a) O nome empresarial e o número de inscrição do fornecedor no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda (CNPJ); b) O endereço físico e eletrônico e demais informações necessárias para sua localização e contato; c) As características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; d) A discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; e) As condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e f) Informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta. Garantia de atendimento facilitado ao consumidor O decreto determina que, para garantir o atendimento facilitado ao consumidor, o fornecedor deverá: a) apresentar um sumário do contrato antes da contratação, com as informações necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor, enfatizadas as cláusulas que limitem direitos. Não nos esqueçamos da regra do § 4º do art. 54 do CDC, que determina que as cláusulas que implicarem limitação do direito do consumidor devem ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão, e que o art. 46 diz que os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. b) fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e correção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da contratação; c) confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta; d) disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua conservação e reprodução, imediatamente após a contratação; e) manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato; f) confirmar imediatamente o recebimento das demandas do consumidor pelo mesmo meio empregado por ele; g) utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para tratamento de dados do consumidor. Anoto que o fornecedor tem cinco dias para encaminhar resposta ao consumidor sobre as demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato  Desistência do negócio: prazo de 7 dias O CDC estabeleceu o direito de desistência a favor do consumidor. A intenção da lei é proteger o consumidor nesse tipo de transação para evitar compras por impulso ou efetuadas sob forte influência da publicidade ou do pessoal do telemarketing sem que o produto esteja sendo visto de perto ou o serviço possa ser testado. E, claro, no presente caso dessa suposta excelente promoção, pela pressão que a mídia e a publicidade exercem. Esse prazo garantido pela lei é de sete dias e chama-se prazo de reflexão. Se nesses sete dias o consumidor se arrepender da compra, pode desistir pura e simplesmente. O arrependimento não precisa ser justificado. Não é preciso dar qualquer satisfação do porquê da desistência. Basta desistir. A contagem do prazo dos sete dias inicia-se quando do recebimento do produto. Existem fornecedores que oferecem prazos maiores de arrependimento: dez, quinze e até trinta dias. Nesses casos, o prazo de reflexão fica automaticamente ampliado de sete para dez, quinze, trinta etc., conforme for a oferta. E, visando a dar eficácia ao contido no art. 49, o decreto 7.962 referido trouxe para o sistema uma série de outras determinações específicas. Numa delas (art. 5º "caput"), reforça que o fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor. E n'outra (§ 1º do mesmo art. 5º) disciplina aquilo que já estava inserido como garantia no CDC: que o consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados. Uma boa novidade trazida pelo decreto é a determinação de que o fornecedor envie ao consumidor a confirmação do recebimento da desistência imediatamente após a manifestação do arrependimento (§ 4º, art. 5º).  Forma de pagamento não interfere no prazo A forma de pagamento não tem nenhuma implicação com o direito de arrependimento. Não importa como o pagamento do preço será feito: à vista ou parcelado com cartão de crédito; a prazo através de boletos ou avisos bancários; através de cheque contra a entrega da mercadoria; no caixa do posto dos correios; após a prestação de serviço ou mensalmente, trimensalmente etc. Em todos esses casos ou em qualquer outro, a desistência operar-se-á da mesma maneira.  Devolução do que foi pago Feita a desistência, qualquer importância que eventualmente já tenha sido paga (entrada, adiantamento, desconto do cheque, pagamento com cartão etc.) deve ser devolvida em valores atualizados. Se, por exemplo, foi feita a autorização para débitos parcelados no cartão de crédito e apenas o primeiro (do ato da compra) tenha sido lançado, este tem que ser devolvido em dinheiro ou lançado como crédito no cartão e os demais têm que ser cancelados pela vendedora junto à administradora do cartão de crédito. Realço que sou daqueles que sempre defendeu essa posição, que inclusive acabou sendo adotada em decisões judiciais. E o decreto 7.962 citado pôs uma pá de cal numa eventual discussão que pudesse existir. Diz a norma que o exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor (§ 2º do art. 5º). E mais: que o exercício desse direito deve ser comunicado imediatamente pelo fornecedor à administradora do cartão de crédito, banco ou instituição financeira, para que: a) a transação não seja lançada na fatura ou conta do consumidor; ou b) que seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura ou conta já tenha sido realizado (§ 3º e incisos I e II do mesmo art. 5º). __________ 1 Comércio eleva desconto sem reduzir preço antes da Black Friday.
No dia 1º de novembro entrou em vigor nova regra que pune motorista que atinja os 20 pontos em sua carteira de habilitação com a suspensão do direito de dirigir por seis meses. Já tratei deste assunto por aqui e sou obrigado a retornar ao mesmo, agora estranhando que até hoje, nenhuma associação que defenda cidadãos brasileiros ou mesmo o Ministério Público, tenha movido ação judicial para declarar a inconstitucionalidade de parte do Código de Trânsito Brasileiro. Sei que existem muitos e graves problemas para nos preocuparmos, mas não é por causa disso que outros - aparentemente menos importantes (embora, pareçam-me, relevantes) - sejam deixados de lado. Como um dos assuntos preferidos de certas autoridades e da mídia é criticar motoristas, eu, com a devida licença da expressão, ficarei na contramão de direção: mostrarei algumas das violações praticadas contra os motoristas. Antes de mais nada, e para evitar confusão, coloco o óbvio: qualquer pessoa é a favor da punição a motoristas infratores, especialmente aqueles que colocam em risco a segurança e a vida dos demais (e de si mesmos). Por isso, é fundamental existirem leis que determinem o controle do trânsito, que fixem punições e estipulem critérios de aferição das infrações. No entanto, existem várias infrações ligadas ao uso de veículos que não acarretam nenhum tipo de perigo ou risco à comunidade ou às demais pessoas. Está entre essas infrações, por exemplo, estacionar em local proibido, estacionar nas chamadas "zonas azuis" sem a colocação do cartão ou uso de aplicativos, trafegar com o veículo no horário proibido nas cidades com sistema de rodízio, como a capital de São Paulo, etc. É verdade que se pode objetar que o estacionamento em alguns locais pode gerar transtorno no trânsito, como, por exemplo, na av. Paulista, em São Paulo. Nesse caso, a infração seria mais grave que estacionar em outro local proibido de menos movimento. No entanto, nem assim se justificaria, como veremos, a aplicação da pena de suspensão ou perda do direito de dirigir. Bastaria guinchar o veículo e, na hipótese, aplicar uma multa maior que as demais. Isso sim seria adequado: multas diferentes para estacionamento em local proibido em ruas diferenciadas. Ora, ainda que se admita que infrações desse tipo possam gerar a imposição de uma multa pecuniária, nada justifica que se imponha a perda ou a suspensão do direito de o motorista continuar dirigindo por infrações dessa ordem. Aliás, ao contrário, como mostrarei, o Sistema Constitucional Brasileiro proíbe que uma lei possa impor penalidade desse tipo. Uma coisa é o motorista trafegar de forma perigosa, com o veículo sem condições de dirigibilidade, fazendo conversões proibidas, movimentando-se em velocidade excessiva, fazendo ultrapassagens perigosas, dirigindo embriagado, etc., outra, muito diferente, é ser pego trafegando no horário proibido pelo rodízio ou não ter colocado o cartão da zona azul ou, ainda, estacionar o veículo em local proibido. É bem fácil perceber que no primeiro caso o motorista representa um perigo à incolumidade física das demais pessoas, podendo no segundo, quando muito, gerar transtornos de ordem administrativa ou queda na arrecadação da verba prevista para o estacionamento nas vias públicas. A punição em cada hipótese deve ser - só pode ser - muito diferente. O problema está em que as normas de trânsito estabeleceram uma confusão entre as duas formas de ação dos motoristas. Ao criar um sistema de pontuação, no qual são somados, na mesma vala comum, os dois tipos de infrações, acabou gerando, concretamente, uma violação ao direito dos motoristas. Suponhamos que alguém que sempre dirija de forma adequada e preventiva, nunca excedendo a velocidade, não fazendo ultrapassagens proibidas etc., mas que tenha que usar o automóvel para trabalhar, seja apanhado dirigindo, no período de um ano, por cinco vezes, no horário proibido pelo rodízio. Ele somará 20 pontos (4 pontos de cada vez) e ficará sem a Carteira Nacional de Habilitação - CNH. No entanto, se, no mesmo período, outro motorista for multado por excesso de velocidade por duas vezes com pontuação gravíssima não sofrerá a mesma pena, pois terá somado apenas 14 pontos (7 de cada vez). O motorista perderá a habilitação se tiver, também, tantas autuações de zona azul e por estacionamento proibido quantas forem necessárias para atingir os 20 pontos ou mais. Os exemplos, claro, se multiplicam na exata medida das combinações de infrações e pontuações. O grave nisso tudo não é só a evidente injustiça concreta da situação em que se acabam colocando os cidadãos, mas também a distorção que o sistema gera, uma vez que acaba punindo o melhor motorista em detrimento do pior. Por isso, penso, este ponto da lei é inconstitucional. Como é sabido, o princípio da isonomia, assegurado na Constituição Federal (art. 5º, "caput" e inciso I) implica que, concretamente, ninguém possa ser tratado com desigualdade pela lei ou por seu agente aplicador. Não pode a lei, portanto, punir mais quem faz menos, sob pena de violar esse princípio constitucional. O mínimo que se pode esperar da norma nesse sentido é que, se ela pretende que se punam os infratores, que aquele que cometer o delito mais perigoso seja punido com mais rigor do que aquele que cometer o de menor gravidade. Acontece que, como vimos acima, a lei colocou num mesmo patamar infratores perigosos e infratores sem nenhuma periculosidade. E esse aspecto viola o princípio da igualdade. Aliás, é possível até que um infrator sem nenhuma periculosidade seja punido e o perigoso não seja, como mostrei. Antes de prosseguir, anoto que o fato de a infração relativa à zona azul ter pontuação 4 e, por exemplo, outra por excesso de velocidade ter 7 (ou seja, há mais pontos negativos para uma do que para outra) não modifica em nada o argumento. Isso porque não existe qualquer conexão lógica entre essas infrações. A natureza de cada infração é tão diferente que impede a comparação. Logo, não há relação entre o ponto negativo 4 de uma e o ponto negativo 7 de outra. Assim, não sendo - como não é - possível fazer analogia entre infrações tão diversas, elas não podem ser comparadas. A questão das punições do CTB é penal. Para o legislador penal ordinário existe um comando constitucional a ser observado na fixação da pena. É o chamado princípio da proporcionalidade. Ele funciona como parâmetro obrigatório para o legislador e apresenta três facetas: a) a pena deve ser graduada de acordo com a relevância do bem jurídico a ser tutelado; b) deve ser levada em conta a pessoa do infrator; c) deve ser considerado o caráter retributivo, isto é, a pena deve ter a mesma pujança da conduta violadora; deve ser fixada levando em conta esse paralelo: a relação existente entre a infração delituosa e a pena. O art. 5º, XLVI, da Carta Magna dispõe que: "a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos". Ora, conforme expus, as normas de trânsito, ao fixar a pena de suspensão do direito de dirigir para os casos de infração de natureza meramente administrativa, está em total dissonância com o texto constitucional. E pior: não está de acordo com nenhum dos critérios caracterizadores do princípio constitucional da proporcionalidade. Vejamos os detalhes. Não resta dúvida de que se trata de pena administrativa de suspensão de direitos (suspensão do direito de dirigir), podendo ir até seu perdimento (perda da CNH). E essa pena: a) primeiramente, não tem graduação na relação com o bem jurídico tutelado. Com efeito, estacionar em local proibido, não colocar o talão da zona azul ou trafegar no horário proibido pelo rodízio não tem relevância jurídica suficiente que possa conduzir à suspensão ou perda do direito de dirigir; b) em segundo lugar, como a fixação é objetiva e abstrata, aplicada indistintamente a todo e qualquer motorista, não leva em consideração a pessoa do infrator. É bem possível (aliás, deve estar acontecendo e muito) que um cidadão que jamais tenha dirigido um veículo em excesso de velocidade e/ou de forma perigosa, e que dirija há muitos e muitos anos sem nunca ter causado nenhum acidente, possa estar perdendo sua habilitação apenas e tão-somente porque teve de trafegar no horário proibido pelo rodízio ou porque se viu obrigado a estacionar em local proibido, ou, ainda, porque não tinha talão da zona azul (ou iphone) ou simplesmente esqueceu-se de colocá-lo; c) em terceiro lugar, a suspensão do direito de dirigir ou o perdimento desse direito, nos casos que estou apontando, não seguem o critério da retribuição. É absolutamente desmedido suspender o direito de dirigir de quem não colocou no carro o talão da zona azul ou estacionou em local proibido ou, ainda, trafegou no horário proibido pelo rodízio. A única retribuição jurídico-constitucional adequada nesses casos é a fixação de multa. Nada mais. Finalizo, portanto, deixando consignada minha posição em prol de tantos quantos já se sentiram injustiçados por terem o direito legítimo de dirigir seus veículos cassado por infrações meramente administrativas. Se quisermos realmente construir uma nação democrática precisamos ir a cada dia amoldando nosso sistema legal aos princípios e regras constitucionais de modo a evitar desigualdades e injustiças.
No mês de outubro é comemorado o Dia das Crianças e já há alguns anos é também o mês do Halloween no Brasil. Como estamos ainda em outubro, volto aos temas. É lugar comum o conselho que os pais dão a seus filhos menores: "Nunca fale com estranhos!". Essa máxima, aliás, é universal e reconhecida como conselho necessário aos pequenos. No entanto, paradoxalmente, muitos pais deixam todos os dias que estranhos falem com seus filhos, crianças e adolescentes. Não só falem como também os assediem e tentem seduzi-los com promessas de aventuras e alegrias várias. Explico. Os menores, todos os dias, estão sujeitos aos anúncios publicitários, especialmente da tevê, mas também de outros veículos como a internet, as revistas, etc. Os responsáveis por produzirem esses anúncios, por planejarem as ofertas, por bolarem promessas atraentes, são pessoas desconhecidas. Aliás, desconhecidas também dos adultos. Essas pessoas estranhas, com intenções mais ou menos ocultas, contam estórias e apresentam uma série de fantasias para tentar convencer os pequenos a se interessarem por seus produtos e serviços e, com isso, pressionarem os pais a adquiri-los. Pergunto novamente: por que é que os pais não gostam que seus filhos falem com estranhos? Ora, porque desconfiam que algo ruim pode acontecer, têm medo que esse desconhecido tenha más intenções, que possa causar danos aos filhos, etc. Os pais sabem que, mesmo sorrindo ou estando bem vestido, o estranho pode estar escondendo algo maléfico por detrás da aparência. Pois bem. Muitos desses desconhecidos, que entram livremente em casa via televisão ou pelos outros meios para falar com as crianças e adolescentes, apresentam-se exatamente assim, travestidos de heróis, portando-se como amigos ou falando pela boca de personagens conhecidos e queridos. Quem são eles? Sim, são pessoas desconhecidas, mas bem formadas: universitários, técnicos, marqueteiros, publicitários, que estudam horas a fio e que planejam o melhor modo de ataque. Da mesma maneira que um estranho numa esquina, bem vestido, sorrindo e oferecendo guloseimas, eles podem causar muitos danos aos pequenos ainda que surjam assim virtualmente. Claro que os eventuais danos são de diversas ordens, mas hoje realço aqueles relativos à saúde dos pequenos, especialmente porque vem aí mais um (incrível!) dia do Halloween no Brasil. São as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma gorda receita, vendendo bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. Se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas, nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e para a obesidade infantil. Essa obesidade é uma pandemia. Atinge crianças e adolescentes em todas as partes do mundo. É responsável por várias doenças e muitas mortes. O fato é que, essa forma de domínio capitalista, no final do século XX e início do XXI, passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração, no que, claro, contam com a ativa participação dos consumidores. E, no caso de crianças e adolescentes, as próprias escolas, nesse ritmo, estimulam a má alimentação: as cantinas estão repletas de guloseimas recheadas de gorduras vazias e excesso de açúcar, frituras e outras porcarias repletas de calorias e de baixo valor nutritivo. Para terminar, anoto que, atualmente, inclusive, algumas escolas oferecem gratuitamente balas, pirulitos e até sorvetes para seus alunos. Um verdadeiro absurdo feito para viciar. Cabe aos pais ficarem atentos e reclamar. As crianças e adolescentes, vítimas desse processo industrial pernicioso, se pudessem e soubessem, agradeceriam.
Prezado leitor, como você pôde ler no noticiário dos últimos dias, ficou comprovado que aquela história inventada pela ANAC de que a liberação da cobrança das bagagens despachadas geraria diminuição no preço das passagens era mais uma das conversas moles para boi dormir, inventada pela agência. Parece brincadeira, mas, como estamos no Brasil, o fato é que essas agências que deveriam proteger o direito dos consumidores e cidadãos em geral, normalmente fazem o jogo das empresas e, mais ainda, o daquelas da pior espécie, que insistem em não respeitar seus clientes. Infelizmente, neste setor das companhias aéreas, a prestação dos serviços, a cada dia que passa, vai decaindo: a qualidade decresce e o preço cresce. Ou seja, tudo o que não se deveria esperar de um sistema capitalista moderno. Este é, sem dúvida, um setor que exige forte regulamentação. Não é o que vem sendo feito pela ANAC, que, na resolução 400 de 13/1/2016, diminuiu as garantias oferecidas aos consumidores. Estamos andando na contramão dos direitos dos usuários desse serviço. Cada dia que passa, o setor está mais desregulamentado ou mal regulado, e os abusos são praticados abertamente. É mesmo uma vergonha que se faça isso abertamente, sem que o consumidor possa se proteger. Como se sabe, esse setor do transporte aéreo de passageiros é um daqueles em que o consumidor está numa situação de extrema vulnerabilidade: ele fica literalmente nas mãos do transportador que decide como será sua viagem, se adequada ou inadequada, livre de problemas ou cheia de transtornos. Qualquer pessoa que viaje entende muito bem do que falo: nunca se sabe se dará tudo certo. Quer seja uma viagem de negócios ou de lazer, sempre se está numa expectativa incerta. Atrasos e falta de informações são muito comuns. Ao consumidor só resta torcer para que tudo dê certo. E já que toquei no assunto, cuido dos atrasos. Há, é verdade, atrasos honestos, tais como aqueles que envolvem eventos climáticos, acidentes ou problemas mecânicos com aeronaves ou, ainda, eventuais entraves com o tráfego aéreo envolvendo outras aeronaves. Mas não esqueçamos de que há os atrasos programados: os que envolvem voos em que as aeronaves estão com pouca ocupação. Nesta hipótese, um voo é cancelado para que um outro, posterior, saia lotado e para o qual os passageiros foram realocados. Nesse tema, lembro que, independentemente, do motivo, sempre que o atraso for superior a 4 horas, o consumidor pode pleitear indenização por danos morais. A citada resolução garante assistência material ao passageiro e o faz do seguinte modo: "Art. 27. A assistência material consiste em satisfazer as necessidades do passageiro e deverá ser oferecida gratuitamente pelo transportador, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, nos seguintes termos: I - superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação; II - superior a 2 (duas) horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; e III - superior a 4 (quatro) horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta." O que interessa aqui são os atrasos superiores a 4 horas. Neste caso, a jurisprudência pátria é pacífica em garantir indenização por danos morais aos passageiros que amargaram essa espera. Importante consignar que, nas decisões judiciais, o atraso em período menor do que 4 horas é considerado mero aborrecimento. Logo não cabe pedir indenização. Mas acima das 4 horas o pleito é viável. Lembro, também, que a responsabilidade das companhias aéreas é objetiva, como decorrência da incidência do Código de Defesa do Consumidor, especificamente o artigo 14 da lei. Alegações de que o atraso superior a 4 horas deu-se por problemas climáticos ou por ausência de piloto, do copiloto ou de membros da equipe de bordo, ou, ainda, problemas mecânicos ou de segurança da aeronave etc. não excluem a responsabilidade, pois são hipóteses de fortuito interno (previsíveis dentro da análise do risco da atividade). As exceções são as relacionadas aos fortuitos externos (e não previsíveis), tais como um terremoto ou a eclosão de um vulcão. Desse modo, na medida em que o atraso se dê por período superior a 4 horas, existe nexo de causalidade, que pode gerar, então, a condenação ao pagamento de indenização por danos morais. Não existe, claro, um valor definido, mas a pesquisa jurisprudencial mostra que as indenizações variam, dependendo daquilo que o consumidor demonstrar em juízo e que envolve o dano efetivamente sofrido, o real tempo de atraso e espera após as 4 horas e as condições de atendimento oferecido pela cia aérea (as informações, a alimentação, a hospedagem, o transporte, etc.). Por fim, anoto que é relevante, para o aumento do valor da indenização, e tem sido levado em conta nas decisões judiciais, a demonstração da perda de compromissos profissionais ou familiares.
Como é sabido, a lei 8.078/90 foi intitulada Código de Defesa do Consumidor (CDC) não só porque ela própria o estabelece (art. 1º), mas principalmente porque a Constituição Federal assim o determina (ADCT, art. 481). E, de fato, o consumidor, por ser a parte vulnerável do mercado de consumo, merece ser protegido, do mesmo como o são outras pessoas com fragilidade similar, tal como crianças e adolescentes, idosos, etc.. Mas agora pergunto: o fato de a lei ser protetiva significa dizer que o consumidor tem sempre razão? A resposta é, evidentemente, negativa. O CDC é erigido sobre os alicerces da boa-fé objetiva que, aliás, aparece explicitamente em seu corpo normativo (art. 4º, III e art. 51, IV). Essa boa-fé chamada objetiva é diversa da subjetiva. A boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença acerca de uma situação pela qual o detentor do direito acredita na sua legitimidade porque desconhece a verdadeira situação. Nesse sentido, a boa-fé pode ser encontrada em vários preceitos do Código Civil, como por exemplo no art. 1.561, quando trata dos efeitos do casamento putativo, nos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, etc.. A boa-fé objetiva, por sua vez, pode ser definida como uma boa regra de conduta, isto é, como a imposição de um dever para as partes agirem conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não o equilíbrio econômico, mas aquele das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, normalmente, há um desequilíbrio de forças. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou mesmo do consumidor. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa a garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes. Ora, o princípio da boa-fé objetiva é bilateral: devem respeitá-lo tanto o fornecedor como o consumidor. De modo que pode haver violação do princípio, inclusive, por parte daquele que a lei protege. Com efeito, a lei pretende que haja entre fornecedor e consumidor um tipo de relação que seja justa na contrapartida existente entre ambos. Desse modo, a boa-fé objetiva é parâmetro também para o comportamento do consumidor, que deve agir sob a égide do mesmo modelo. Elucido com um exemplo extraído de meus livros: o do caso do erro na oferta. O art. 30 do CDC estabelece que a oferta vincula o fornecedor e integra o contrato a ser firmado. É o fenômeno da vinculação. Oferecida a mensagem, fica o fornecedor a ela vinculado, podendo o consumidor exigir seu cumprimento forçado nos termos do art. 35. Se o fornecedor quiser voltar atrás na oferta não poderá fazê-lo, até porque, como de resto decorre da estrutura do CDC, a oferta tem caráter objetivo. Feita, a própria mensagem que a veicula é o elemento comprobatório de sua existência e vinculação. Mas, então, pode-se perguntar: não haveria erro escusável? Não pode o fornecedor voltar atrás na oferta se agiu em erro ao veiculá-la? A resposta é, em regra, não; porém, há uma exceção: é de se aceitar o erro como escusa do cumprimento da oferta, se a mensagem, ela própria, deixar patente o erro, pois caso contrário o fornecedor sempre poderia alegar que agiu em erro para negar-se a cumprir a oferta. Eis o exemplo: vamos supor que uma loja que venda eletrodomésticos resolva fazer uma oferta especial para vender televisores 20 polegadas em cores. Digamos que o preço regular dessa TV, no mercado, seja R$ 600,00. A promoção será anunciada no domingo em dois jornais de grande circulação: será oferecida a venda de 100 aparelhos de TV pelo preço de R$ 500,00 (ou o equivalente a 20% de desconto sobre o preço regular). Acontece que, por erro de digitação num dos veículos, o anúncio saiu errado. No jornal A, a TV é anunciada por R$ 450,00, e no B por somente R$ 5,00 (cinco reais!). Será difícil para o fornecedor recusar-se ao cumprimento da oferta firmada no anúncio do jornal A, porquanto é bem plausível uma promoção daquele tipo (25% de desconto sobre o preço regular). Mas, quanto ao anúncio do jornal B, pode o fornecedor recusar a oferta, porque o erro é grosseiro, flagrante. A oferta é evidentemente falha, contrariando qualquer padrão regular e usual de preço de venda do produto daquele tipo. Se o consumidor quiser adquirir a TV por apenas R$5,00 é ele quem estará violando o princípio da boa-fé objetiva e, também, violando o equilíbrio almejado na relação contratual. Não poderia, pois, na hipótese, exigir a venda do produto naquelas condições. *** PS.: Naturalmente, existem muitas situações nas quais o consumidor pode não ter razão. Afinal, cada caso é um caso. Neste artigo, eu quis apenas tratar de uma conduta que envolve a boa-fé objetiva. __________ 1 Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.
Abraham Lincoln disse: "Às vezes, é melhor ficar calado e deixar que as pessoas pensem que você é um imbecil, do que falar a acabar de vez com a dúvida". Nos últimos dias, travou-se na imprensa e nas redes sociais uma boa discussão a respeito de liberdade de expressão, especialmente por conta do episódio da exposição promovida pelo Banco Santander em Porto Alegre, que foi encerrada antecipadamente em função de protestos contra as obras lá expostas. Um pouco antes, um conhecido cantor sertanejo, que se diz estudioso da história, disse e insistiu que não houve ditadura no Brasil no período de 1964 a 1985. Foi um "militarismo vigiado" disse ele. Sabe-se lá o que isso quer dizer... Como disse meu amigo Outrem Ego a respeito da fala do cantor popular: "Quando li a patacoada, estava de bom humor e logo lembrei de Bill Clinton que, quando estava em campanha para a presidência dos EUA, foi acusado de ter fumado maconha e se defendeu dizendo: 'Fumei, mas não traguei'. E depois já na Casa Branca, pego dessa vez num flagra de sexo oral, negou que aquilo fosse sexo: 'Eu não tive relações sexuais com esta mulher, a senhorita Lewinsky'". "São fatos relatados sob outra ótica", ironizou. Mas meu amigo nem sempre está de bom humor. Certa vez ele, demonstrando seu ceticismo pela humanidade, disse: "A liberdade de expressão é um princípio que garante que a pessoa possa mostrar sua ignorância, arrogância e desrespeito pelo outro explicitamente". De fato, o papel aceita muita coisa e os microfones também. Falar e escrever é bastante fácil, seja asneira ou não. E a liberdade de expressão, direito fundamental, nem sempre é bem compreendida em suas limitações legais no Brasil. Não vou cuidar da incrível fala do cantor sertanejo, que não merece comentários nem do caso da exposição, pois muito já se falou sobre este assunto que, penso, está esgotado. Mas, num dos comentários sobre liberdade de expressão, vi que algum desses comentaristas defendia abertamente a publicidade machista de cerveja, sob o pretexto de que se tratava de liberdade de expressão. Ora, a liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos. Todavia, esse direito, entre nós, não só não é absoluto, como sua garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que, para os gregos na antiguidade, era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação. Mas, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos ou oferecer produtos e serviços no mercado, há um limite ético que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade e o respeito às garantias e direitos estabelecidos. Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim. Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos. Em nosso sistema jurídico temos leis que controlam, em alguns setores, a liberdade de expressão na sua realidade objetiva. Veja-se, por exemplo, a imposição para que a testemunha, ao depor em juízo, fale a verdade. Do mesmo modo, os advogados e as partes têm o dever de lealdade processual, proibindo-se que intencionalmente a verdade dos fatos seja alterada, adulterada, diminuída, aumentada etc. Esse dever de lealdade ___ em todas as esferas: administrativa, civil e criminal ___ é a ética fundamental da verdade imposta a todos. O mesmo se dá no regime de produção capitalista. Com base nos princípios éticos e normativos da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) regulou expressamente a informação e a publicidade enganosa e abusiva (art. 371), proibindo-as e tipificando-as como crime (arts. 67 e 682). No que diz respeito, pois, às relações jurídicas de consumo, a informação e a apresentação dos produtos e serviços, assim como os anúncios publicitários não podem faltar com a verdade daquilo que oferecem ou anunciam, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para de maneira confusa ou ambígua iludir o destinatário do anúncio: o consumidor. A lei quer a verdade objetiva e comprovada e, por isso, determina que o fornecedor mantenha comprovação dos dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem. Aproveito esse ponto para eliminar uma confusão corrente quando se trata de criação e verdade em matéria de relações de consumo: Não existe uma ampla garantia para a liberdade de criação e expressão em matéria de publicidade. O artista goza de uma garantia constitucional de criação para sua obra de arte, mas o publicitário não. Um anúncio publicitário é, em si, um produto realizado pelo publicitário ou coletivamente pelos empregados da agência. Sua razão de existir funda-se em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender. Dessa maneira, vê-se que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção. Ora, como a produção primária de produtos e serviços tem limites precisos na lei, por mais força de razão o anúncio que dela fala. Repito: a liberdade de criação e expressão da publicidade está limitada à ética que dá sustentação à lei. Por isso, não só não pode oferecer uma opinião (elemento subjetivo) como deve sempre falar e apresentar a verdade objetiva do produto e do serviço e suas maneiras de uso, consumo, suas limitações, seus riscos para o consumidor etc. Evidentemente, todas as frases, imagens, sons etc. do anúncio publicitário sofrem a mesma limitação. Naturalmente, a publicidade abusiva que envolva elementos discriminatórios, racistas, machistas há de ser expurgada. E, ao contrário do que defendeu o articulista, uma grande parte dos anúncios de cerveja é sim evidentemente machista. Só não vê quem não quer. __________ 1 "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança." 2 "Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena Detenção de três meses a um ano e multa. Parágrafo único. (Vetado). Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança: Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa: Parágrafo único. (Vetado)."
quinta-feira, 14 de setembro de 2017

A questão da execução injusta

Cuido hoje de um tema que envolve não só direito do consumidor como os outros demais setores jurídicos. Começo lembrando que o termo "execução injusta" foi construído pela doutrina1. Trata-se de procedimento de execução iniciado e efetivado por ordem do suposto credor que tem, ao final do processo, decisão definitiva contra sua pretensão. Para cuidar do tema, usarei dois casos de execução como exemplo: a) uma execução do título extrajudicial com penhora de um imóvel e b) uma execução de astreintes levada a efeito pelo credor provisório. Na primeira, vamos supor que os embargos tenham sido rejeitados, com recurso sem efeito suspensivo em superior instância. O imóvel, avaliado em R$2 milhões é levado à praça e arrematado por 70% do preço. O executado perde o bem, enquanto aguarda a(s) decisão(ões) das Cortes Superiores. Na segunda, digamos que, numa ação visando obrigação de fazer, seja fixada uma multa diária para que a obrigação imputada ao réu seja cumprida e que este deixe passar bastante tempo antes de cumprir a ordem, gerando muitos dias-multa em função do descumprimento da medida. E imaginemos que o réu, nesse tempo de espera e descumprimento, tenha buscado as instâncias superiores visando a modificação do julgado, mas ainda sem sucesso. Nesse ínterim, somados os dias-multa, o autor da ação faz penhora dos valores na conta bancária do réu e, assim que possível, efetua o levantamento da importância. Naturalmente, em ambas as hipóteses, a execução é feita por conta e risco do autor, pois, ainda que ele tenha a seu favor uma decisão judicial, esta é provisória, somente tornando-se definitiva após o transito em julgado. Assim, eventual dano ocasionado ao Réu pelo tempo de espera para a confirmação da decisão ou sua reforma é de responsabilidade do exequente. Esse é o sentido de execução injusta, matéria regulada no art. 520, I e II do CPC, nesses termos: "Art. 520 - O cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime: I - corre por iniciativa e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido; II - fica sem efeito, sobrevindo decisão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidando-se eventuais prejuízos nos mesmos autos;" Trata-se de responsabilidade objetiva do suposto credor. Por isso, havendo modificação do julgado que permitiu a execução provisória, ele arcará com todo prejuízo causado à parte contrária. Como já ensinava Chiovenda: "A lei confere a ação executória anormal ao particular a seu risco e perigo, quer dizer, fazendo-o juiz responsável da existência efetiva de seu direito à prestação: se se apurar que esse direito inexiste, ele obriga-se pelos danos. Recai num círculo vicioso a afirmação de que não se pode obrigar pelos danos aquele que se serve de um direito seu, porquanto esse direito de demandar não é absoluto, mas limitado justamente ao risco que o autor vitorioso assume. E é mais justo que suporte o dano aquela das duas partes que provocou, para vantagem própria, a medida finalmente injustificada, desde que a outra nada fez para acarretar a si própria esse dano e nada era obrigada a fazer para evitá-lo"2. E a indenização pelas perdas e danos há, evidentemente, de ser plena, sendo despicienda qualquer discussão acerca da existência ou inexistência de culpa. Nesse sentido expõe Araken de Assis: "A execução provisória constitui um direito do exequente e, enquanto se desenvolve, processa-se válida e regularmente. Sucede que também produz, no plano do direito material, resultados danosos. Logo, o exequente indenizará por ato ilícito, e a noção de culpa pouco contribuiria na definição dessa responsabilidade"3. A situação caracteriza abuso do direito, previsto no artigo 187 do Código Civil4, ou seja, ato ilícito, regulado pelos preceitos da responsabilidade civil extracontratual. Incide, pois, na hipótese, o artigo 927 do Código Civil: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Consequentemente, a mora corre desde o primeiro momento da pratica executiva danosa, nos termos do artigo 398 do Código Civil, que estabelece: "Art. 398. Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou". Tema pacificado na jurisprudência, inclusive pela Súmula nº 54 do STJ: "Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual". Essa Súmula é de 1992, mas tem sido reiteradamente aplicada, como se vê de recente julgado da terceira Turma do STJ: "Havendo ato ilícito, a mora ocorre no exato momento do cometimento do ato, razão pela qual, a partir daí, começam a incidir os juros moratórios, nos termos do art. 398 do CC"5. Logo, os juros moratórios devem ser computados a partir da data do primeiro ato danoso cometido pela execução injusta. Antes de analisar os exemplos acima trazidos, consigno, ainda, que o fato do Autor da ação oferecer caução (ou cumprir a determinação judicial de oferecê-la) não modifica sua obrigação de indenizar o Réu. Apenas garante que o valor a que o Autor for condenado será coberto total ou parcialmente pela garantia oferecida. Fiquemos, agora, com os casos exemplares que acima propus para pensarmos nos resultados. No primeiro, se os Tribunais Superiores derem ganho de causa ao Réu, acolhendo os embargos à execução por falta de título executivo hábil, o Autor terá que pagar indenização plena. Na impossibilidade de devolução do imóvel, terá que entregar em dinheiro o preço correspondente ao mesmo. Anoto: o preço, isto é, o valor real de mercado e não aquele dado como lance vencedor no leilão (70%). Isto porque a perda foi de 100% do imóvel e a indenização há de ser integral. Além disso, sobre o valor incidirá correção monetária integral e juros de mora de 1% ao mês, calculados a partir da data do início do dano e, ainda, a importância relativa aos lucros cessantes, tais como valor mensal de aluguel ou, se o imóvel for rural, o valor mensal do arrendamento ou das perdas com produção etc. Além, naturalmente, de todas as despesas judiciais, extrajudiciais e honorários de advogado. No segundo caso, digamos que o suposto credor tenha feito penhora de dinheiro depositado na conta do executado e o tenha levantado em certa data. Uma vez derrotado em sua pretensão, terá que recompor completamente as perdas e danos causados. No cálculo do valor a ser restituído/indenizado deverá ser incluída a correção monetária integral e os juros de mora de 1% ao mês calculados desde a data do início do dano mais custas, demais despesas e honorários de advogado. Além disso, tem direito aquele que foi executado injustamente, a receber o valor relativo às perdas financeiras dos investimentos que não puderam ser feitos como, por exemplo, aplicações em CDI ou CDB e demais perdas diretas, tais como os valores pagos a título de garantias oferecidas ao banco, seguro-fiança, eventuais juros e despesas incorridas com empréstimos feitos para o pagamento do valor executado etc.. Tudo a permitir a integral recomposição financeira das perdas ocasionadas. Aliás, neste caso, o cálculo das perdas e danos é bastante simples e fácil de demonstrar, eis que envolve datas conhecidas e taxas oficiais publicadas, além de outras relativas aos investimentos bancários (que podem ser calculados pela média de mercado) e as pagas a título de seguro-fiança, eventuais empréstimos etc.. A modalidade de liquidação há de ser aquela que se mostrar mais conveniente às hipóteses, aplicando-se as regras dos artigos 509 a 512 do CPC. __________ 1 Por exemplo, utilizam a expressão "execução injusta": Donaldo Armelin. O processo de execução e a reforma do código de processo civil. Reforma do código de processo civil. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.) - São Paulo: Saraiva, 1996, p. 684 e Leonardo Greco. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, v. 2, p. 49-50. 2 Giuseppe Chiovenda, Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 270. São Paulo: Saraiva, 1965. 3 Araken de Assis. Manual da execução. 14ª edição rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2012, p. 392. 4 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 5 REsp 1.556.118/ES - 3ª T. - Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino - j. 13/12/2016 - DJe 19/12/2016.
quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Educar o consumidor para salvar o planeta

Num recente artigo meu, apresentei dados sobre a destruição do planeta causada pelo consumo dos recursos naturais renováveis. Na atualidade, tirando o presidente Donald Trump e seus asseclas, que pensam diferente, está claro que o sistema de consumo está causando danos severos ao meio ambiente. A pergunta que eu faço é: de quem é a responsabilidade por essa catástrofe, do sistema capitalista ou do consumidor? Dos fornecedores ou dos hábitos de consumo? Aliás, seria possível separar um do outro? Vale a pena observar alguns fatos, para se ter uma ideia do problema, como já mostrei também por aqui. Eis alguns dados (que variam um pouco de acordo com a fonte, mas que, de todo modo, servem de indicação): a produção e o consumo dos Estados Unidos da América, com um número de consumidores que correspondem a aproximadamente 5% da população do planeta, contribuem com 36% das emissões de gases de efeito estufa e consomem 25% da energia mundial. No que se refere aos países desenvolvidos, estes congregam um quinto da população mundial. Esta minoria, porém, consome 80% de todos os recursos naturais existentes. Logo, ao contrário do que se propaga, a globalização é uma ilusão, pois não dá para "globalizar" o padrão de consumo dos EUA e dos demais países desenvolvidos. Precisaríamos de vários planetas para tanto. Esses dados mostram que é preciso mudar o foco, posto que, caso se perpetue o modelo de consumo dos dias que correm, não haverá salvação. Ao invés de se produzir mais e se consumir mais, a diminuição do consumo é que, talvez, pudesse ajudar a sustentar o planeta. Uma educação para o consumo poderia ajudar a resolver essa equação. Ela existe, mas ainda é muito incipiente e, paradoxalmente, é promovida por empresas que estão descobrindo o nicho do consumo consciente, especialmente trabalhando com produtos recicláveis. De fato, talvez os consumidores pudessem tomar consciência de seu efetivo papel como protagonistas da sociedade capitalista e também percebessem que o regime consumista no qual estão inseridos não faz bem nem a seu bolso nem a sua saúde nem a seu bem-estar e nem ao planeta. Como quero apenas fazer algumas colocações para a nossa reflexão, eu termino por aqui, deixando, na sequência, mais uma vez, uma série de máximas do comediante americano George Carlin e também algumas que eu mesmo fiz, que dizem respeito ao modo de vida da sociedade em que vivemos. De George Carlin: Nós bebemos demais, gastamos sem critérios. Dirigimosrápido demais, ficamos acordados até muito tarde,acordamos muito cansados, lemos muito pouco, assistimos TVdemais e raramente estamos com Deus.Multiplicamos nossos bens, mas reduzimos nossos valores.Aprendemos a sobreviver, mas não a viver; adicionamos anosà nossa vida e não vida aos nossos anos.Fomos e voltamos à Lua, mas temos dificuldade em cruzar arua e encontrar um novo vizinho. Conquistamos o espaço, masnão o nosso próprio.Fizemos muitas coisas maiores, mas pouquíssimas melhores.Aprendemos a nos apressar e não, a esperar.Construímos mais computadores para armazenar maisinformações, produzir mais cópias do que nunca, mas noscomunicamos cada vez menos.Estamos na era do 'fast-food' e da digestão lenta;do homem grande, de caráter pequeno; lucros acentuados erelações vazias.Essa é a era de dois empregos, vários divórcios, casaschiques e lares despedaçados.Essa é a era das viagens rápidas, fraldas e moraldescartáveis, das rapidinhas, dos cérebros ocos e daspílulas 'mágicas'. Um momento de muita coisa na vitrine e muito pouco nadispensa. Acrescento: Estamos na era das fusões de empresas e dos desempregados em profusões. Do acúmulo de cartões de crédito fácil e abundante e das dívidas impagáveis. Das dezenas de pares de sapatos nos armários de casa e das crianças andando descalças nas ruas. Nunca tivemos tanto acesso à informação, mas nosso conhecimento é paupérrimo. As pessoas sabem muito sobre automóveis, mas pouco sobre arte. Muitos consumidores têm noção dos preços das cervejas, mas desconhecem o valor da solidariedade. Tira-se foto de tudo, mas, realmente, não se aprecia quase nada.
quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O direito de não ser perturbado

Sou obrigado a voltar ao assunto, na medida em que ele não sai do noticiário. E, infelizmente, o que se constata é que o individualismo imperante adora fazer barulho desde que seja na casa dos outros. Parece mesmo que nós não aprendemos que o direito de um termina onde começa o de outro. E aqui na cidade de São Paulo, vivemos alguns paradoxos: enquanto o PSIU - Programa de Silêncio Urbano da prefeitura de São Paulo diz que "fiscaliza estabelecimentos comerciais, indústrias, instituições de ensino, templos religiosos, bailes funk/pancadões e assemelhados"1, com base na lei municipal 16.402, de 23 de março de 2016, regulamentada pelo decreto 57.443/16, ela própria autoriza que feiras realizadas em praças e parques executem músicas e shows que incomodam os moradores ao redor. Essa situação paradoxal parece estimular o padrão individualista e egoísta ao extremo, e isso acaba por ser leniente em relação às demais violações; mais cedo ou mais tarde, voltam-se para o próprio violador. Pois bem. O direito de não ser perturbado, mais conhecido como direito ao sossego, que é correlato do direito de vizinhança, nasce naturalmente da garantia constitucional do direito à intimidade e privacidade prevista no inciso X do art. 5º da Constituição Federal. Do mesmo modo que a intimidade e a privacidade, o direito ao sossego é um direito de negação, de interdição da ação dos outros. Trata-se, pois, da imposição de um limite físico, visando garantir a tranquilidade das pessoas. O direito ao silêncio é um direito sagrado não só por ser exercício pleno da intimidade e privacidade, mas também por compor a sadia qualidade de vida, garantida, do mesmo modo, no texto constitucional (artigo 6º). Ele é instituído como prerrogativa a todo indivíduo, que pode, por isso, impor que o outro cesse o ruído ou o barulho. Falei de Constituição Federal, mas o tema em análise e a atitude dos barulhentos nos remetem a tempos mais remotos. Jesus Cristo já tinha alertado para que façamos aos outros o que queremos que eles nos façam2. Todavia, parece que na sociedade capitalista brasileira, na qual se pode verificar uma falta de educação bastante ampla aliada a um baixo nível de civilização, o lema "o outro que se dane" ou "os incomodados que se mudem" está tornando-se lugar comum. Uma pena. Quem sabe se de, de fato, como diz meu amigo Outrem Ego, o barulho pudesse ser transferido para a casa dos barulhentos ou de seus parentes, a ficha caísse! *** PS.: O direito ao silêncio é um assunto de que já tratei em minhas colunas. Como se sabe, temos leis claras a respeito e o Poder Judiciário tem decidido a favor do direito de não ser perturbado. Apresento, assim, na sequência, mais uma vez as principais normas vigentes e a posição do Judiciário em alguns casos. Com efeito, a Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". A lei de Crimes Ambientais (lei 9605/98), por sua vez, pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o Código Civil Brasileiro garante o direito ao sossego no seu art. 1.277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Consigno que, para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de caráter moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras. A questão, portanto, ao contrário do que sempre é mostrado nos noticiários, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais. O Judiciário, por sua vez, considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente ou ao vivo em praças públicas etc.. __________ 1 PSIU no combate à poluição sonora. 2 Em Mateus 7:12.
quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O planeta está sendo consumido

No dia 2 de agosto p.p., os seres humanos consumiram o total de recursos que o planeta terra pode renovar em um ano. O cálculo é feito anualmente pela ONG Global Footprint Network1. No ano passado este fatídico dia chegou 24 horas depois, em 3 agosto. O diagnóstico é feito pelo exame das emissões de gases do efeito estufa e também pelos recursos consumidos pela pesca, pela pecuária, pelos cultivos, pelas construções e pela utilização da água. Para satisfazer nossas necessidades, hoje deveríamos contar com o equivalente a 1,7 planeta, declararam os representantes da ONG2. Sem consultar dados, eu gostaria de complementar os cálculos, lembrando que o consumo no planeta é desequilibrado. Se a forma de consumo dos países desenvolvidos se estendesse a todos os cantos da terra, certamente, a devastação seria muito maior. Isto é, mesmo com um índice de consumo muito menor em países emergentes, o planeta está sendo destruído. Muito bem. O que se diz é que o modelo capitalista implementado especialmente a partir da segunda metade do século XX e que se tornou devastador mais ao final é o responsável: a chamada vida para o consumo contribuiu e contribui sobremaneira para essa destruição. E para que nós possamos ter uma ideia do que foi a implementação desse modelo, eu vou me utilizar de um texto que é bem conhecido, mas que permite que nós possamos entender como esse consumo do planeta foi sendo efetivado. Houve um momento no século passado no qual ainda tínhamos esperança de que o planeta pudesse ser preservado. Foram anos em que: a) O leite, as cervejas, os refrigerantes eram vendidos em garrafas de vidro. Essas garrafas eram devolvidas às lojas. Estas as mandavam de volta aos fabricantes, que as lavavam e esterilizavam antes de cada reuso. Essas garrafas eram assim usadas várias vezes para a mesma finalidade: transportar líquidos. Ainda não se usavam garrafas plásticas que demoram séculos para serem degradadas; b) As fraldas dos bebês eram lavadas, pois ainda não havia fraldas descartáveis; c) A secagem das roupas era feita em varais unicamente com energia solar e eólica e não em máquinas secadoras elétricas; d) Por falar em roupas, os filhos menores usavam as roupas que tinham sido de seus irmãos mais velhos, e não tinham necessidade de adquirir roupas novas a toda hora; e) E por falar em energia elétrica, naquela época as pessoas possuíam apenas um aparelho de tevê em casa, e não um em cada ambiente do lar; alguns tem até na cozinha!; f) Aliás, eram tevês de 14 ou 20 polegadas e não equipamentos do tamanho de uma tela de cinema... e que são descartadas e trocadas por novos com telas planas, finas, etc. a cada 3 ou 4 anos...; g) Naquela época, havia só uma tomada em cada quarto, e não um quadro de tomadas em cada parede para alimentar uma dúzia de aparelhos; h) E, na cozinha, as pessoas faziam muitas atividades físicas, cortando, lavando, espremendo, pois ainda não havia máquinas de lavar pratos e demais utensílios, batedeiras e trituradeiras elétricas de tudo quanto é tipo; i) E quando se fosse enviar algo frágil pelo correio, usavam-se jornais velhos como proteção, e não plástico bolha ou pellets de plástico que também não se degradam rapidamente; j) Não havia tantas escadas rolantes. As pessoas subiam mais escadas. E também andavam mais a pé e não utilizavam automóveis apenas para ir à padaria da esquina. k) E por falar em automóvel e localização, as pessoas não precisavam do serviço do GPS para receber sinais de satélite no espaço e conseguir encontrar a pizzaria mais próxima.l) Naqueles tempos, não se usava motor a gasolina para cortar o gramado: era utilizado um cortador de grama que exigia músculos. O exercício era extraordinário, e não se precisava ir a uma academia para se exercitar usando esteiras elétricas; E, claro, um longo etc. de desperdícios. __________ 1 Retirei os dados do UOL. 2 Idem nota anterior.
quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Sintomas e reflexões

Eu devo confessar que não sou do tipo pessimista. Aliás, acredito que, sabendo olhar a gente consegue encontrar algo de bom. Mas, que o Brasil é um grande desafio a essa tentativa de encontro, ah! isso é mesmo. Não é de agora, claro, e infelizmente. Trata-se de uma espécie de destino insólito que tem origens muito antigas e enraizadas em nossa estrutura patrimonialista. Mas, com a implantação da democracia e das garantias de liberdades aos indivíduos, esperar-se-ia que ao menos as leis editadas fossem cumpridas por todos: Estado e pessoas. Dedico-me, neste espaço, a cuidar em larga medida do consumidor. Permito-me, no entanto, algumas digressões mais amplas, especialmente porque na sociedade capitalista o cidadão se confunde com o consumidor. Aliás, no nosso sistema, o consumidor foi elevado à figura constitucional. Nosso texto fala de pessoa física, pessoa jurídica e também de consumidor expressamente. Não quero tratar das mazelas de que tanto cuidam os meios de comunicação (e também as redes sociais). Vou partir de uma específica matéria para apontar alguns sintomas que, pelo que parece, acabam dando sustentação a tanto abuso neste nosso querido país. Li que as cantoras sertanejas Simone e Simaria tiveram seu show encerrado pela polícia, na madrugada do último sábado, 29, em Miami, na Flórida (EUA). A apresentação acontecia no River Yacht Club, quando o som foi desligado pela polícia 15 minutos antes do horário previsto para o final do show, que era 2h. O fato teria deixado o público que lotou o local revoltado e tanto as redes sociais como os principais veículos de comunicação no país deram destaque à notícia. O que aconteceu de fato? Um vizinho reclamou do barulho, pois queria exercer seu legítimo direito de dormir1. Chamou a polícia local, os policiais cumpriram sua função e puseram ordem na casa: desligaram o som! Ou seja, cumpriram a lei! Lei que garante o silêncio, como temos também entre nós2. Esse fato me fez lembrar um outro narrado por uma aluna em sala de aula. Ela havia ido aos Estados Unidos da América com os pais. Precisando fazer um telefonema, seu pai parou o veículo numa rua em frente a uma loja para poder usar um telefone público. Quando fazia a ligação, uma pessoa que trabalhava na loja saiu e, dirigindo-se à ele, disse que não poderia ficar com o veículo ali e apontou para a placa de proibido parar, que estava bem em frente. O pai fingiu que não ouviu, mas a moça passou a falar em seu ouvido, atrapalhando a ligação. Ele acabou desistindo e foi embora. Minha aluna estava indignada. Disse: "Que absurdo. O que ela tinha a ver com aquilo? Ela nem era da polícia de trânsito!". Houve certo debate na sala, pois muitos concordaram com a aluna. Mas, nem todos. Afinal, é somente a polícia que pode fazer cumprir a lei? Lembro-me de alguém ter feito uma analogia falando: "Se numa praça pública é proibido pisar no gramado e alguém pisa, os demais devem ficar quietos?" Sem querer fazer estatística a partir de situações particulares, gostaria de continuar nessa toada pensando em sintomas. A lei vale para todos ou não? E quem deve cuidar de seu cumprimento, apenas as autoridades? Vivemos num país em que se fala que há leis que pegam e leis que não pegam. Pode isso? Onde residiria o problema? Seria na educação? Não posso falar em termos estatísticos, mas há sintomas que nos fazem pensar. Meu amigo Outrem Ego vive reclamando da má educação dos vizinhos de seu prédio. "Há pessoas que simplesmente entram no elevador e se recusam a dar bom dia ou boa noite" diz ele. E ele também me contou o seguinte: foi a uma reunião na escola de sua filha. Era geral, no anfiteatro, com todos os pais. Marcada para as 19 horas, ele chegou 18:40 e havia uma fila para entrar. Numa mesa, era pedida identificação e entregue um material para leitura. A fila era grande, com umas vinte pessoas. Todos iam para o mesmo lugar e na mesma reunião. De repente, surgiu um pai, viu a fila e, devagarzinho, foi lá na frente da mesa. Ficou parado ao lado e, alguns segundos depois, furou a fila e entrou no anfiteatro. Meu amigo apenas olhou e sentiu um aperto no peito. Pensou: "Não vai dar certo... Este país está perdido". Acho que ele exagerou na generalização, mas que é mais um sintoma é. Ele disse que nem ficou tão espantado quando, naquele mesmo dia, ao comentar o assunto com um outro pai de aluno, este lhe contou algo muito, muito pior. Disse ele que, numa festa de quinze anos, na casa de um garoto, foi servida cerveja aos presentes, incluindo os adolescentes. Pode isso? Ah, isso não pode. Mas, daí o sintoma aponta para uma doença maior.Meu amigo, que viaja muito, diz que não é incomum que, na sala de espera para o embarque, com poucos lugares e muitos passageiros, alguns deles sentem numa cadeira e coloquem sua bagagem de mão na cadeira ao lado, ocupando o lugar que estava vago em detrimento dos que chegam e não têm onde sentar. Ou, no exemplo do barulho, com o que iniciei este artigo: muitos não se preocupam em ouvir som alto ou fazer festas ruidosas até tarde, incomodando os vizinhos. Há mesmo pessoas que agem como se a lei somente valesse para os outros. Algumas normas não funcionam para elas próprias, só para terceiros. Trata-se de um individualismo que gera um isolacionismo, útil para os detentores do poder. Como eu disse, não gosto de generalizar, mas são sintomas que nos fazem pensar. __________ 1 Brazil News. 2 Já escrevi mais de uma vez sobre o tema do Direito ao sossego por aqui.
quinta-feira, 6 de julho de 2017

Seres humanos existem ou não para o Estado?

O filme "Eu, Daniel Blake" tem muitas virtudes e, além de ser emocionante, humano e cativante, impressiona por uma série de fatores. Um deles chama muito a atenção: o filme passa-se nos dias atuais na Inglaterra, na cidade de Newcastle1. Assistindo ao filme, uma pergunta fica martelando: é isso mesmo? Na toda poderosa e rica Inglaterra, um cidadão britânico é tratado pelas autoridades como se nem existisse? A estupidez da burocracia dos comandos normativos e informatizados consegue mesmo fazer com que os funcionários públicos robotizados ignorem que à sua frente são pessoas reais que se apresentam? E os setores de atendimento tanto pessoal quanto via telefone são piores ainda, não só no tempo de espera, como na ausência de respostas e soluções satisfatórias. Ele, Daniel Blake, um carpinteiro de Newcastle, sofre um infarto e fica impedido de voltar ao trabalho, mas ao tentar receber seu auxílio-desemprego junto ao governo, recebe a resposta de uma funcionária incompetente de uma empresa terceirizada, de que deve voltar a trabalhar. Isso, apesar dos laudos médicos proibirem-no de fazê-lo. A película mostra um Estado cínico que finge oferecer benefícios a quem precisa e a quem tem direito por ter contribuído a vida toda como trabalhador, mas que não se importa muito com pessoas reais como Blake, que se nega a cumprir determinações burocráticas e esdrúxulas. E, pior, tudo está informatizado, mas nem todos os cidadãos sabem como se dirigir ao Estado via web, um dos problemas adicionais do personagem. Aliás, os funcionários públicos do atendimento são muito parecidos com os próprios computadores, que não conhecem regras que não sejam as que foram programadas previamente. No filme, a exceção são os funcionários que distribuem cesta básica, talvez porque comida é ainda... comida e pessoas com fome são ainda... pessoas. Mas anoto que a fila para receber a cesta era infernal... Esse roteiro lembra algum país que o leitor conhece? A Inglaterra ficou assim mesmo? Pobre por lá é também um estorvo? A parceria entre o público e o privado tem sempre que produzir coisas ruins? Em entrevista ao El Pais, o Diretor afirmou: "As grandes corporações dominam a economia e isso cria uma grande leva de pessoas pobres. O Estado deve apoiá-las, mas não quer ou não tem recursos. Por isso cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo direito ou chegou tarde a uma entrevista"2. De fato, é isso que o filme nos mostra. Há, é verdade, pessoas que se incomodam, além dos funcionários públicos desumanos, mas quem vence é o sistema com seus funcionários-robôs insensíveis. Um mal do capitalismo? Da Europa? Do mundo? Deixarei o Brasil de lado. Já sabemos muito das coisas ruins que existem por aqui. Penso que as empresas podem construir relações afetivas e bons atendimentos apesar do capitalismo selvagem e agressivo e também que o Estado pode melhorar na sua relação com as pessoas. Mas isso somente ocorre se as pessoas forem tratadas como seres humanos e por seres humanos que compreendam que as interações devem ser humanas! Regras são bem-vindas, mas, como já dizia Aristóteles há cerca de 2.400 anos, como uma das características da lei é sua generalidade, ela não pode prever todas as particularidades das situações do dia a dia. O aplicador, quer seja um juiz ou um funcionário público, tem que estar atento às situações e, por isso, deve agir com bom senso. A Justiça do caso concreto (isto é, a equidade) é uma virtude importante do aplicador da lei que, com prudência, consegue encontrar um modo de sanar a lacuna natural do sistema legal abstrato. Infelizmente, talvez a estupidez seja uma característica mais comum que a compreensão e a decisão sábia, justa. E, às vezes, seria preciso tão pouco. Fico ainda na Europa. Cito um caso de menor importância, mas que ainda assim simboliza o mesmo problema, guardadas as devidas proporções: A esposa de meu amigo Outrem Ego foi admoestada por um policial de trânsito em Lisboa. Nada grave, mas conto assim mesmo. Tentava ela estacionar numa rua, mas havia passado a placa que estava na calçada e não sabia, ao certo, se podia ou não. Quando manobrava avistou um Policial de Trânsito. Abriu a janela e perguntou: "Olá, bom dia. Por favor, pode me informar se posso parar o veículo aqui?". Recebeu, de volta, uma cara feia e a seguir uma pergunta de forma estúpida: "Tu tens carta de condução?" Ela disse: "Sim". "E o que aprendeste na escola de condução? Não sabes ler placas? Venha, saia do veículo agora". Ela obedeceu. O Policial a levou alguns metros para trás e mostrou uma placa e disse rispidamente: "Vá! Diga, o que aquela placa ali quer dizer?". E apontou para a placa de proibido estacionar. Não bastava dizer que era proibido? Claro que os exemplos se multiplicam pelo mundo afora e nem preciso ilustrar com os casos brasileiros, pois o leitor sabe muito bem que os serviços públicos por aqui são muito ruins e os privados também (ainda que nos privados haja ilhas de excelência, embora a preços altos). Mas, chama a atenção que, em pleno século XXI, nós ainda não conseguimos serviços públicos e privados adequados oferecidos por pessoas educadas. A má educação é mato! E, como o filme mostrou, desculpando-me pelo trocadilho e pelo spoiler, também mata! __________ 1 Do Diretor Ken Loach e que venceu a Palma de Ouro em Cannes em 2016. 2 Conferir em Carta Capital.
Como o leitor deve ter visto, pois foi amplamente divulgado, entre os dias 8 e 13 de junho passados, a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado de São Paulo (Procon-SP) executou uma fiscalização em restaurantes da cidade de São Paulo. Em 7 deles, as equipes encontraram produtos vencidos. Parece pouco, não é? Só que não: o número de restaurantes fiscalizados foi de apenas 23! Ora, são praticamente 30% dos avaliados. E todos restaurantes de primeira linha1. Além do problema com os produtos vencidos, outros 6 restaurantes mantinham na cozinha produtos abertos sem informação da data de abertura, infringindo determinação da vigilância sanitária2. E entre os que apresentaram problemas com a validade, 2 também foram flagrados quanto a essa mesma irregularidade. Muito bem, as autuações foram feitas e as defesas serão apresentadas. Eventuais multas somente serão impostas após o exame das defesas. Mas, como disse meu amigo Outrem Ego, quando leu as matérias publicadas nos jornais: "A julgar pelas falas dos responsáveis pelos estabelecimentos, a alternativa que nós temos é comer em casa mesmo". Ele se referia a alguns depoimentos. Cito: Ao jornal Estado, a proprietária de um dos restaurantes contestou o resultado da fiscalização dizendo: "Estou aqui há 15 anos e nunca recebi uma autuação desse gênero. Sabemos que não somos perfeitos, que há falhas, que tudo deveria estar etiquetado, mas uma coisa muito distinta é dizer que servíamos comida imprópria para consumo. Era uma comida que daria para o meu filho, sem dúvidas"3. E continuou: "Posso falar com muita segurança que zelamos pelo que servimos. A fiscalização coloca em jogo todo o cuidado e carinho que temos", completou. Ela se disse "entristecida" com a operação. "Como cidadã, me entristece ver o meu dinheiro aplicado nisso, sabendo que há outros problemas mais graves para serem tratados". Outros estabelecimentos deram algumas desculpas, mas admitiram em parte as falhas. E um deles também disse: "os produtos fora da validade encontrados não seriam preparados para os clientes. Eles tinham sido deixados por um representante que queria apresentar seu produto e foram doados, ainda dentro do prazo de validade, aos funcionários, que se esqueceram de levar para casa. Temos uma nutricionista que visita a casa diariamente e preza pela qualidade de todos os ingredientes servidos aos nossos clientes4." Muito bem, caro leitor, a pergunta que faço é a seguinte: como consumidores que somos e que nos vemos obrigados a almoçar, jantar, lanchar fora de casa a trabalho ou lazer, sozinhos ou acompanhados de amigos e familiares (o que inclui idosos e crianças), podemos ficar tranquilos em relação à qualidade dos produtos que ingerimos? Como também disse meu amigo: "Minha mulher e eu tomamos um cuidado enorme com produtos guardados em casa e só os consumimos e os entregamos a nossos filhos se estiverem dentro do prazo de validade. Aliás, não é exatamente para isso que servem os prazos de validade?" Sem dúvida. Mas, o caso mostra que é bem capaz que estejamos pagando mais caro para ingerir produtos vencidos. Esse assunto sempre vem à tona quando envolve esse tipo de fiscalização. Porém, o que realmente preocupa e que eu gostaria de colocar, é o dos números. São Paulo tem milhares de restaurantes. Não sei se a amostragem feita a partir da fiscalização do Procon serve como elemento estatístico, mas pode dar uma ideia. Se 30% dos restaurantes estão irregulares, então, a quantidade de produtos que podem causar mal à saúde vendidos diariamente apenas na capital paulista é extraordinária. Sem qualquer pretensão numérica e apenas fazendo um jogo, pode-se dizer que um consumidor comum acaba ingerindo produtos fora do prazo de validade em 3 de cada 10 restaurantes visitados. É muito! Caberia não só ao Procon, mas também aos demais órgãos de vigilância sanitária exercer a fiscalização com muito mais constância para que possamos saber quais os estabelecimentos confiáveis. O que assusta a mim como consumidor e que, penso, deve assustar o leitor, é o fato irretorquível de que existem restaurantes que nos entregam produtos deteriorados. Isso é inadmissível! Não há qualquer desculpa possível! E, por fim, para ficar com uma posição que eu entendo ser fundamental: poder-se-ia fiscalizar todos para punir os infratores e também para tornar público o nome dos estabelecimentos que cumprem todas as regras de higiene, segurança, e de guarda e manuseio dos alimentos. Seria um bom quadro para examinarmos via internet antes de marcarmos para jantar com nossos amigos e familiares5. __________ 1 No site do Procon há detalhes do trabalho realizado. 2 Ver nota anterior e a seguinte reportagem. 3 Ver nota anterior. 4 Ver nota anterior. 5 No site do Procon (ver nota 1 acima) estão os nomes de todos os estabelecimentos visitados, inclusive os aprovados. Falta, como disse, visitar muitos mais!
quinta-feira, 8 de junho de 2017

O automóvel é um produto fora da lei?

Vivemos um momento de conflitos e indefinições no que diz respeito às garantias e direitos estabelecidos não só no Brasil, como em vários outros países. É uma época em que as opiniões estão em toda parte, divididas ou unificadas, muitas delas contraditórias em relação às outras, embora tratem do mesmo objeto. Bem, não serei eu a engrossar esse caldo um pouco indigesto. Mas, gostaria de retornar a um tema que gera um certo embate e que tem relação direta com mercado de consumo e leis de proteção ao consumidor. Isso, naturalmente, como um convite à reflexão de um assunto um pouco fora da política (falo "um pouco fora" porque numa sociedade democrática falar de leis, em algum sentido, é também falar de política). Cuidarei dos veículos automotores e do excesso de velocidade e o farei pela via do direito do consumidor, a partir de um paradoxo e também de um problema de lógica do sistema legal: levarei em consideração o fato de que um automóvel não passa de um produto controlado e regulado pela legislação. Muito bem. Dizem os artigos 8º "caput" e 10 "caput" do Código de Defesa do Consumidor: "Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito". "Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança". Por uma série de normas e procedimentos, as autoridades responsáveis nos respectivos setores regulam a produção dos bens de consumo, visando não só assegurar sua qualidade, adequação, durabilidade etc., como os vários aspectos que envolvem a segurança para evitar que os consumidores possam sofrer danos com seu uso. A questão que coloco, então, envolve conforme antecipei um dos paradoxos da sociedade capitalista, assim como aponta para um problema de implementação efetiva dos elementos lógicos que deveriam dar base ao sistema jurídico. Explico: Se a velocidade máxima permitida para tráfego por rodovias no Brasil - não só no Brasil, mas é o que nos interessa - é de 120km por hora, como é que se pode permitir que a indústria automobilística produza e venda veículos que alcancem velocidades muito superiores a isso? (Grifei o muito porque, efetivamente, na atualidade qualquer automóvel consegue atingir velocidades de 150, 180, 200 Km por hora e mais). São essas, portanto, as perguntas: se a velocidade máxima permitida é de 120km/hora, a lei não deveria simplesmente proibir a produção de veículos que pudessem atingir velocidades superiores? E mais, ainda que sem norma específica, ao vender tais veículos, a indústria não estaria infringindo as normas de segurança fixadas no CDC, conforme se pode ler nos artigos 8º e 10 que acima transcrevi? (Faço um parêntese para lembrar algo conhecido de todos. mas que não posso abordar para não fugir do assunto. Os veículos estão, como apontei, preparados para infrigirem a lei e, além disso, algumas montadoras fazem anúncios publicitários oferecendo seus produtos realçando exatamente essa "qualidade", mostrando automóveis com muita potência e capazes de atingir altas velocidades e até mesmo em tempo recorde! E isso para seduzir seus potenciais compradores!). Deixo, assim, postas essas questões para reflexão dos leitores, lembrando, como gosto sempre de fazer, que para nós da área jurídica o que importa é o rigor do argumento, a lógica que lhe dá sustentação, assim como seu uso harmônico e coerente em relação ao sistema jurídico e sua teleológica razoabilidade. No entanto, prosseguindo no mesmo tema, trago ainda outro ponto que envolve o mesmo aspecto e que também está regulado no CDC. Enquanto não se proíbe a fabricação desses verdadeiros carros de corrida, resta perguntar e responder uma questão relativa a responsabilidade pelos acidentes ocasionados pelos verdadeiros bólidos dirigidos em velocidades acima do máximo permitido. Com efeito, dispõe o art. 12 do CDC: "Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos". É regra que trata da responsabilidade civil objetiva em caso de acidente de consumo. O CDC é bastante restrito quanto às excludentes de responsabilidade (na verdade, excludentes do nexo de causalidade) capazes de isentarem os fornecedores indicados. Para nossa análise, o que interessa é o previsto no inciso II do parágrafo 1º e o inciso III do parágrafo 3º do mesmo artigo. Leiamos os dois parágrafos: "§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em circulação." "§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro". O problema é excesso de velocidade. Esta pode se dar de duas formas: a) a norma de trânsito proíbe transitar acima de 60km/hora ou 70km/hora etc e o motorista supera essas velocidades, por exemplo, transitando a 100km/hora e causa acidente; b) independentemente do limite estabelecido ou que seja o máximo de 120km/hora, o motorista trafega a 150km/hora, 180km/hora ou mais. Pergunto: se o fabricante somente não responde quando comprove a culpa exclusiva do consumidor e, se este, assumindo os riscos e agindo com culpa, desenvolve velocidade muito acima do permitido e causa o acidente, não estar-se-ia diante de um caso de não exclusão da responsabilidade porque a culpa não seria exclusiva, mas concorrente, uma vez que o produto em si é a causa primária que permite a infração e o acidente correspondente? Veja-se que o legislador utilizou-se do advérbio "só" no "caput" do art. 12 do CDC para deixar claro que a excludente somente se verifica naquelas hipóteses e, por isso, quando se refere a ato do consumidor, exige a prova de sua culpa exclusiva. Assim, quando o consumidor trafega acima do permitido, mas dentro do possível admitido pelo sistema legal (por exemplo, a 100km/hora), se causar acidente sua culpa é exclusiva, pois infringiu sozinho a lei. Ademais, nesse caso, a hipótese do inciso II do § 1º também socorre o fabricante, eis que o veículo está sendo usado dentro dos riscos que razoavelmente dele se esperam. O problema se dá quando o consumidor ultrapassa o máximo permitido de 120km/hora. Sua culpa, nesse caso, é exclusiva ou concorrente? O embaraço surge aqui, pois se a indústria vende veículos que são capazes de superar - e em muito - o máximo da velocidade permitida (e, de certo modo, alguns anúncios publicitários e matérias especializadas de tevê, jornais e revistas até estimulam o movimento em alta velocidade) quando o consumidor (culpado, evidentemente) trafega a mais de 120km/hora, a culpa não seria concorrente? E, nesse caso, o fabricante seria também responsável pelos danos? Quando fiz esse tipo de questionamento em sala de aula, surgiram comparações com armas tais como facas e revólveres. Disseram: se o consumidor usa a faca para matar ao invés de utilizá-la na cozinha ou o revolver também para matar ao invés de para se proteger, então age com culpa exclusiva. O fabricante não tem nenhuma relação com a ocorrência. Verdade. Mas, a diferença é que a faca é feita para cortar e o revólver para atirar. Com esses objetos o defeito se dá se eles não cumprirem o fim ao qual se destinam (cortar e atirar). Com o automóvel é diferente: ele nasce infrator, pois está apto a ir além do permitido legalmente. Poder-se-ia querer lançar toda culpa no consumidor em função da possiblidade real do meio. Entrega-se a ele um veículo que facilmente atinge velocidades excessivas, mas ao mesmo tempo se erige um comando legal (e moral) que deve agir em sua consciência para impedir que ele acelere mais quando atinja o limite máximo. Tubo bem. Mas, quando ele passa do limite o faz porque o meio permite e quem o fabricou é que, nesse ponto passa a agir com ele. Daí a concorrência de culpas. São essas minhas considerações e, pois, minha contribuição para um debate sobre essa questão do excesso de velocidade, desta feita pela via do Direito do Consumidor.
Meu amigo Outrem Ego trabalhou num grande banco estrangeiro, que tem agências no mundo todo. Há muitos anos, no início da década de oitenta, ele fez um curso sobre concessão de crédito de massa e sua cobrança (isto é, cobrança de créditos do varejo; também de massa, portanto, e no qual se incluem dívidas de cartões de crédito). Foi um excelente aprendizado, como ele diz, e cujo modelo acabou sendo implantado em todo o planeta. Das várias coisas que ele contou, uma sobre cartões de crédito é bastante interessante. "O professor", disse ele, "perguntou a nós, alunos, quais eram as prioridades do consumidor no que dizia respeito ao pagamento de suas dívidas: 'Quando ele recebe seu salário no fim do mês, o que ele escolhe pagar em primeiro lugar?'. Nós respondemos que, logicamente, pela ordem de importância: medicamentos, alimentação, serviços públicos essenciais como energia elétrica, água e gás, escola do filhos, aluguel da casa etc." Meu amigo prosseguiu: "O professor, então disse: 'É isso mesmo! O consumidor estabelece uma escala de prioridades. Ele, consciente ou inconscientemente, constrói uma pirâmide de prioridades. No topo estão os itens de primeira necessidade e na medida em que se desce a montanha vão aparecendo os débitos menos necessários ou menos urgentes. É natural, portanto, que os débitos com os bancos estejam na base da pirâmide. Ele paga todo mundo apenas se tiver dinheiro para tanto'." Outrem Ego disse que, na sequência, o professor apresentou o pulo do gato: "Nós, que trabalhamos nos bancos, temos de dar um jeito de inverter a pirâmide. Temos de colocar no topo nossos créditos. E dá para fazer: basta conseguir colocar o cartão de crédito em todas as operações existentes. No comércio, na indústria, na prestação de serviços, o que inclui médicos e hospitais, e até nas escolas, nos serviços públicos etc. Como o cartão será o instrumento mais importante do poder de compra do consumidor, a primeira coisa que ele deverá fazer quando receber seu salário será pagar sua fatura. Estaremos no topo da pirâmide." É isso! Atualmente, já se pode pagar quase tudo com cartão de crédito. Existe uma verdadeira invasão de cartões, uma superexposição ao cartão de crédito; inclusive, os grandes estabelecimentos comerciais se utilizam de seu próprio cartão. Quem ainda não cansou de ouvir o caixa dizer: "Você tem cartão de crédito X?". Aliás, não é incomum, o consumidor possuir mais 4, 5, 6 ou mais cartões. De fato, tendo em vista sua praticidade, o cartão de crédito talvez seja o exemplo mais representativo da evolução das formas de pagamento na sociedade de consumo. O pagamento em moeda corrente e mesmo através do cheque foi sendo substituído pelo chamado "dinheiro de plástico". E isso por uma série de facilidades que ele oferece, além daquelas apresentadas pelo professor americano. O cartão poupa o consumidor das complicadas tarefas de assinar contratos para obtenção do crédito; idas e vindas aos bancos; permite compra sem dinheiro, enquanto este está em alguma aplicação financeira ou ainda não chegou; colabora com o controle do orçamento doméstico, uma vez que o extrato aponta todas as compras feitas; além de uma série de outros benefícios e serviços oferecidos pelos administradores (seguros automáticos, saque de dinheiro etc.). Tudo isso, é claro, aliado à enorme facilidade que é ter no bolso apenas um pequeno documento de plástico, substituindo papel moeda, talão de cheques, etc. Como no Brasil os juros cobrados pelos administradores dos cartões são muito elevados, nem todas essas vantagens estão implementadas. O consumidor acaba fugindo do financiamento - aliás, deve fazê-lo para não correr o risco de se endividar1 --, e o cartão de crédito acaba funcionando mais como um cartão de compra. E, ademais, por isso mesmo, o cartão tem também sido usado na função de débito, firmando-se cada vez mais como um instrumento de compra e não de financiamento. Mas, sem dúvida, não dá para viver sem eles. __________ 1 O lado negativo do uso excessivo do cartão de crédito é exatamente este: o consumidor acaba se perdendo nas aquisições à prazo, se descontrola e se endivida ou, pior, se superendivida.
Está difícil tratar de qualquer assunto que não seja algo ligado a delações, a manifestações, à corrupção, à crise política enfim. Mas, apesar de tudo, as pessoas continuam a viver suas vidas com as dificuldades inerentes e com mais ou menos perspectivas de que as coisas melhorem. Como nesses últimos dois dias, vi que está sendo anunciado, por publicidade massiva, que aproxima-se mais um "Feirão da Casa Própria" promovido pela Caixa Econômica Federal (CEF), resolvi voltar a esse assunto, que já tive oportunidade de aqui tratar. Também aqui nesta coluna, afirmei que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem: a esperança de, passando um creme, ficar com a pele mais bonita ou mais saudável; de, usando um novo xampu, ficar com os cabelos mais sedosos; a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita ou de fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; pagar prêmios de seguros para garantir o próprio futuro e, também, o da família; poupar de forma adequada para conseguir chegar nesse futuro e ter tempo ainda de gozar a vida etc etc. O mercado oferece o futuro de uma vida melhor. E, sabemos que o consumidor tem pressa. Aliás, foi o próprio mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não há tempo para nada; nem se pode perder tempo algum. Recebe-se à vista e paga-se a prazo, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o dia das mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem que entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel -- criadas e continuam pagando as prestações de seu financiamento. Como é que diz mesmo a propaganda?: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável... Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. O consumidor, desprotegido, é transparente, fácil presa desse tipo de iniciativa. Por ocasião de uma dessas promoções de venda de imóveis, meu amigo Outrem disse: "Sempre que vejo isso, me vem a imagem do marido que diz pra sua mulher num sábado à tarde: 'Querida, vamos dar uma saidinha? Vamos até o shopping, pois eu preciso comprar uma gravata e vou te comprar uma bolsa. Depois, na volta, já que estamos no caminho, nós aproveitamos e compramos um apartamento de três quartos porque este aqui com dois está pequeno demais'". É mesmo desanimador. O chamado "Feirão da Casa Própria", promovido nos últimos anos, é um esquema de vendas que acabou vingando. A CEF gasta milhões de reais em anúncios espalhados na mídia, num tipo de oferta que envolve o consumidor em seus temores, anseios e esperanças. Ademais, nessa questão, surge o problema da desinformação, pois o comprador está agindo contra as cautelas normais e necessárias que se exige nesse tipo de transação. Tem razão o meu amigo: uma casa ou um apartamento não devem jamais ser comprados numa exposição de fim de semana, como se a pessoa estivesse comprando frutas na feira livre ou numa liquidação tipo queima de estoque de roupas ou sapatos. A casa própria é, para a grande maioria dos consumidores, o mais importante (e mais caro) negócio da vida inteira. É a realização de um sonho e, por isso, deve ser tratado com a reflexão e o carinho que merece. Indo numa dessas "promoções", o consumidor corre o risco de comprar um imóvel por impulso, sem qualquer avaliação objetiva, pois, quando chega ao local, sofre todo tipo de pressão e influência dos vendedores, cujo maior interesse é vender, fechar um bom negócio com polpudas comissões. Para o comprador, fica, às vezes, a frustração (mais uma e essa praticamente definitiva) de morar onde não tinha exatamente planejado e, ainda por cima, endividado pelo compromisso assumido de longo prazo (10, 15, 20 anos ou mais). Ora, é fato conhecido que, antes de se comprar um imóvel, é preciso conhecê-lo, examinando-o para ver se ele atende às necessidades e expectativas. Deve-se vistoriá-lo não só de dia, no horário marcado pelo corretor ou vendedor, mas também em outro período, procurando conhecer as condições da vizinhança à noite - barulhos, trânsito, feira livre, etc. É importante conhecer a região para ver se ela oferece aquilo que o comprador precisa, como escolas, farmácias, supermercados, etc. Aliás, esse tipo de operação rouba mercado dos advogados, que deveriam ser sempre consultados antes do fechamento desse negócio. Não só há necessidade da produção e exame de certidões forenses e do Cartório do Registro Imobiliário, como da avaliação de todas as peculiaridades daquela específica operação jurídica. Por exemplo, a compra de imóvel por empreitada ou preço de custo ou feita pelo Sistema Financeiro de Habitação etc. envolve aspectos bem diferenciados. Em alguns casos é preciso inclusive checar se não há projeto para desapropriação do local: se o imóvel está localizado numa rua importante ou perto de estrada ou área de manancial etc. É preciso saber, ainda, em alguns casos, se a área não é de proteção ambiental, etc. Lembro, naturalmente, que cada situação comporta componentes próprios de avaliação que devem ser levados em consideração, além das preliminares e genéricas que apresentei. As questões concretas e particulares devem, por isso, ser levadas a um advogado especialista que, como já disse, deve intervir em contratos de compra e venda desse tipo. É uma pena. O capitalismo é selvagem, ganancioso e egoísta e o consumidor - vítima frágil do modelo - jogado a própria sorte, apresenta-se cada vez mais desesperado, correndo atrás do futuro de bem-estar decorrente da aquisição de produtos e serviços que não chega (quero dizer, pelo menos não chega para muitos milhões de consumidores).
quinta-feira, 18 de maio de 2017

O WhatsApp e o Código de Defesa do Consumidor

No início deste mês de maio, o serviço do WhatsApp ficou fora do ar por bastante tempo e em vários lugares do mundo, gerando pânico de abandono e sentimento de falta de alternativa. Por causa da repercussão, foram publicadas algumas matérias cuidando de eventuais prejuízos, inclusive com opiniões jurídicas a respeito do tema. Li que se aplicariam ao caso as regras do Código de Defesa do Consumidor. Mas, como se diz na linguagem whatsappiana, sqn. Explico. Há muito tempo que se sabe que os serviços de telefonia são essenciais. E, claramente, o serviço do WhatsApp também se tornou um. E com uma vantagem: é de graça! E o fato de ser gratuito garantiu que a comunicação possa ser feita por milhões de pessoas que jamais poderiam fazê-lo pelo sistema tradicional de telefonia paga. Trata-se de um serviço privado com benefícios públicos que nunca o Estado propiciou. É pura e tão somente algo positivo, útil e essencial. A questão colocada diz respeito à hipótese de incidência ou não do Código de Defesa do Consumidor na relação existente entre os usuários e o serviço. Como antecipei acima, alguns correram para afirmar a aplicação, o que geraria certos direitos, especialmente por causa da responsabilidade civil prevista na lei consumerista, que é objetiva (independe de apuração de culpa, portanto). Mas, não é o que está na lei. Com efeito, o § 2º do art. 3º do CDC, ao regular os serviços, assim dispõe: "Art. 3º ... § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista." (grifei) Os serviços de caráter trabalhista estão excluídos e também os sem remuneração. Temos, pois, que compreender o sentido de "remuneração" lá inserido, o que exige alguns cuidados. Antes de mais nada, consigne-se que praticamente nada é gratuito no mercado de consumo. Tudo tem, na pior das hipóteses, um custo1, e este acaba, direta ou indiretamente, sendo repassado ao consumidor. Assim, se, por exemplo, um restaurante não cobra pelo cafezinho, por certo seu custo já está embutido no preço cobrado pelos demais produtos. Logo, quando a lei fala em "remuneração" não está necessariamente se referindo ao preço cobrado. Deve-se entender o aspecto "remuneração" no sentido estrito de qualquer tipo de cobrança ou repasse, direto ou indireto. É preciso algum tipo de organização para entender o alcance da norma. Para estar diante de um serviço prestado sem remuneração, será necessário que, de fato, o prestador do serviço não tenha, de maneira alguma, se ressarcido de seus custos diretamente do consumidor ou que, em função da natureza da prestação do serviço, não tenha, nem indiretamente, cobrado o preço ou coberto os custos. Por exemplo, o médico que atenda uma pessoa que está passando mal na rua e nada cobre por isso, enquadra-se na hipótese legal de não recebimento de remuneração. Já o estacionamento de um shopping, no qual não se cobre pela guarda do veículo, disfarça o custo, que é cobrado de forma embutida e indireta no preço das mercadorias. Por isso é que se pode e se deve classificar remuneração como repasse de custos direta ou indiretamente cobrados. No que respeita à cobrança indireta, inclusive, destaque-se que ela pode nem estar ligada ao consumidor beneficiário da suposta "gratuidade": no caso do cafezinho grátis, pode-se entender que seu custo está embutido na refeição haurida pelo próprio consumidor que dele se beneficiou, mas no do estacionamento grátis no shopping, o beneficiário pode não adquirir qualquer produto e, ainda assim, tem-se que falar em custo. Neste caso, é outro consumidor que paga, ou melhor, são todos os outros consumidores que compram algo que pagam. Vamos ampliar o exemplo do médico. Suponhamos que se trate de uma consulta gratuita e de atendimento numa clínica privada pertencente ao médico. Certamente haverá custos envolvidos, mas desde que nada seja cobrado direta ou indiretamente do consumidor atendido, o serviço será puro sem remuneração. É assim, num outro exemplo, que sempre funcionaram os serviços da tevê aberta. O consumidor nada paga para assistir e elas se remuneram pela publicidade (aliás, se remuneram muito bem). Mas, o serviço é direta e indiretamente gratuito. É exatamente a hipótese do serviço de WhatsApp: ele é diretamente gratuito e também indiretamente, porque não é pago por nenhum usuário. Ainda que, eventualmente, o serviço possa aferir alguma renda com terceiros por intermédio de publicidade, continuará sendo gratuito para o usuário. Penso, pois, que se trata de serviço sem remuneração. Logo, não incide o CDC na relação estabelecida. __________ 1 O mínimo de custo seria ao menos a perda do tempo ou de oportunidade.
quinta-feira, 4 de maio de 2017

Pós-verdade, democracia e consumo

Todo ano, a Oxford Dictionaries, departamento da universidade de Oxford, na Inglaterra, elege uma palavra como a principal do ano para a língua inglesa. No ano passado, foi escolhido o substantivo "pós-verdade" ("post-truth"). E a própria instituição definiu o termo como um substantivo que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais. Notícias falsas, boatos e mentiras sempre existiram, mas, em tempos de redes sociais, a proliferação ganhou contornos extraordinários. De todo modo, esse fenômeno da pós-verdade aponta um aspecto humano específico: as pessoas acreditam naquilo em que querem acreditar. Deve ter sido sempre assim, mas agora veio à tona: a opinião é mais importante que os fatos. Não refiro aquele tipo de opinião dirigida, mal-intencionada, falsificadora e manipuladora. Esta, apesar de falsa, é, se posso dizer, consciente. O problema é a opinião "sincera" que contradiz a realidade. Claro que sempre se pode argumentar com Nietzche, afirmando que tanto faz porque "não há fatos, apenas interpretações ou versões". A questão é simples: as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Para o consumidor, isso é um problema e gera ilusões, e para o cidadão também. Tomemos alguns fatos recentes. No dia 28, houve ou não greve geral? Greve houve, mas geral? Certamente, o leitor encontrou opiniões nos dois sentidos. E houve vandalismo? Bem, as imagens parecem ter deixado claro que sim. Vimos barricadas, pneus queimados, trancamento de vias. Ou não? É, eu sei que em matéria de política, fica parecido com as paixões do futebol: a mesma bola que um torcedor viu que entrou no gol, o do time adversário tem certeza que não passou da linha... E nas questões de consumo? Aqui o campo é muito amplo. Vejamos a recente decisão judicial que liberou as companhias aéreas para a cobrança de bagagens. Pelas regras até então vigentes, os passageiros tinham o direito de despachar itens com até 23 quilos em voos nacionais e dois volumes de 32 quilos cada um em viagens internacionais sem pagar taxas extras. Segundo a ANAC, a medida de liberação do peso das bagagens gerará concorrência entre as companhias áreas, barateando o preço das passagens. Quem acredita? Pode até ser, mas para tanto é necessário que haja concorrência. Quando mais de uma empresa opera o mesmo trajeto, é possível, mas somente se a demanda for abaixo da oferta. O pior é que, em vários trajetos nacionais e internacionais, os voos são oferecidos por apenas uma empresa. Ou seja: não há concorrência! Por que ela iria baixar o preço mesmo?1 E a agência reguladora disse que a medida é importante porque é assim que funciona nos demais países. É mesmo? Vou repetir o que já disse mais de uma vez: não é porque algo é praticado em outros países que deve ser aqui implantado. Nem sempre é o melhor para o consumidor. E este é um bom exemplo disso. Nosso modelo é favorável aos viajantes. Mas, troco de assunto ainda no campo do capitalismo: há anúncios enganosos? Sem dúvida. Há ofertas sedutoras e que induzem ao consumo? Também. Do ponto de vista legal, o primeiro é diferente do segundo. Consumidor enganado pode desfazer o negócio, pedir indenização, etc.. Mas, aquele que apenas aceita uma oferta sedutora, não. Este está mais para o exercício de uma pós-verdade que de uma manipulação. Lembro um exemplo conhecido: o da oferta de crédito facilitado. O consumidor se endivida por conta própria. Compra produtos de que não precisa. Gasta em supérfluos. Faz porque quer. E acredita no que quer acreditar. (Estou, naturalmente, excluindo os casos de necessidade, nos quais o consumidor é levado ao endividamento por situações extremas: doenças, acidentes, desemprego, etc.) E, claro, nas redes sociais há de tudo. A partir delas, muitas pessoas fazem suas escolhas não necessariamente porque o que ouvem, leem ou assistem traz alguma verdade objetiva estampada, mas porque dentro delas bate com um sentimento ou uma ideia preconcebida. Se a opinião já está formada, o que está fora no mundo dos fatos deve se amoldar à essa opinião e não o contrário. É esse o mundo da pós-verdade, repleto de subjetivismos que pode ser perigoso tanto individual quanto coletivamente. __________ 1 No meu artigo de 16/3/2017 dou vários exemplos de trajetos operados por uma única empresa aérea.
quinta-feira, 27 de abril de 2017

Cobrança, abuso e liberdade

Meu amigo Outrem Ego contou a seguinte história: João da Silva perdeu o emprego e, com o valor da indenização e do FGTS, tentou empreender. Mas não deu certo. Seu pequeno negócio naufragou e ele ainda ficou com dívidas em dois bancos. Chateado, andava à procura de novo emprego enquanto sofria o assédio dos cobradores. Seu irmão, José da Silva, um executivo bem colocado, tentava arrumar-lhe alguma coisa. Porém, João andava tão cabisbaixo, que bastava chegar nas entrevistas para ser rejeitado. Visando dar algum ânimo ao irmão, José propôs fazerem os dois juntos uma viagem ao exterior por alguns dias. Iriam à Portugal visitar parentes. Quem sabe, isso fizesse bem. No entanto, João não podia ir, pois seu passaporte fora tomado pela Justiça a pedido do banco credor. Perguntou meu amigo: "É mesmo possível isto? Qual o crime que ele cometeu?" *** Antes de cuidar do assunto trazido por meu amigo, como vou tratar de devedores, quero, desde logo, deixar consignado que existe mais de um tipo deles. Há os atingidos pelo desemprego; há os iludidos pelas ofertas do sistema financeiro capitalista; há os que padecem das finanças por problemas de saúde e doença; há os simplesmente desorganizados, enfim, muitos tipos podem ser designados. E, claro, há os caloteiros recalcitrantes, os picaretas armadores de esquemas, etc. Para fins da análise deste artigo, importa saber que o devedor não é considerado criminoso apenas pelo fato de sê-lo. Convido, pois, o leitor a esta reflexão. Uma das boas novidades trazidas para o sistema jurídico nacional pelo Código de Defesa do Consumidor, com vigência a partir de 11 de março de 1991, foi o da proibição da cobrança abusiva, inclusive, tipificando-a como crime1. As histórias de abusos eram tantas que sempre se usa o exemplo da banda de música tocando na porta de um devedor para constrange-lo. Foi, sem dúvida, um avanço democrático, que já havia começado em 1990, com a edição da lei 8009/90, que fixou a impenhorabilidade do bem de família2. E o novo CPC traz uma lista de bens impenhoráveis, ainda que com algumas modificações e exceções, que não cabe aqui comentar, mas que deixa patente o elemento de garantias que o sistema oferece ao devedor. Não se pode penhorar, por exemplo, o salário até o montante de 50 salários mínimos mensais, o dinheiro depositado na poupança até 40 salários mínimos, os instrumentos necessários ao exercício da profissão etc. (Conforme estabelecido nos arts. 832 e 833 do NCPC). Um ponto de destaque: ser devedor não é ser criminoso. Aliás, em tempos de capitalismo massificado com crédito fácil para compras nem sempre necessárias, tornar-se devedor é lugar comum. Já que toquei no assunto do crime, é sempre bom colocar para que não se esqueça que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (Constituição Federal, art. 5º, inciso XXIX). Trago esse tema e essas normas em função do questionamento de meu amigo e também porque, em mais de uma decisão judicial, foi aplicada uma pena não prevista expressamente em lei ao devedor. A mais recente, foi indicada neste rotativo Migalhas3: a pedido do credor, o magistrado determinou a apreensão do passaporte do devedor, para evitar que ele possa viajar ao exterior. Repito: trata-se da aplicação de uma pena não prevista em lei. Não há no sistema jurídico nacional a hipótese de aplicação de ofício pelo Juiz de sanções punitivas atípicas. E, do mesmo modo, se a pretensão era coercitiva, faltou proporcionalidade e razoabilidade. Veja-se que na mesma decisão, está escrito que "não se trata de impedir a pessoa de ir e vir, porque esse direito persiste, mas de impedir a pessoa de viajar ao exterior até que efetue o pagamento da dívida..." Ora, há impedimento sim, pois a pessoa atingida fica prisioneira do território brasileiro. E se um amigo, um filho, uma mãe, um pai, resolvem levar esse devedor para o exterior, custeando a viagem, não podem? E mais: e se esse devedor, que tentou a vida no Brasil, mas não deu certo, tanto que se afundou em dívidas, quiser tentar uma nova vida num país estrangeiro? Não pode? Aliás, como fizeram centenas de imigrantes que aqui chegaram. Qual será a saída para esse devedor? Fugir e pedir asilo político? A lei, certamente, assegura que se possa tomar o dinheiro e alguns bens do devedor para que a dívida seja liquidada, mas mesmo quanto aos bens há limites, como visto acima. Ora, tolher a liberdade do devedor é muito grave. Numa sociedade democrática, a liberdade é um dos maiores bens que o cidadão possui. Para que ela possa ser suprimida, somente por expressa e típica definição legal. Ademais, se a lei garante que nem mesmo certos bens (bem de família, por exemplo,) e mesmo valores monetários (investimento na poupança, salário) podem ser tomados pelo Poder Judiciário para o pagamento de dívidas, por muito mais força de razão não se pode tolher a liberdade do devedor, nem lhe retirar certos direitos constitucionais e legais, como o de possuir passaporte. Pode-se até criticar o legislador e o sistema jurídico, dizendo que ele protege demais o devedor, mas não é o magistrado quem pode decidir sobre isto. Cabe apenas ao legislador. E, como muito bem disse o desembargador Marcos Ramos, da 30ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao anular uma decisão que determinava a apreensão do passaporte e da carteira de habilitação de um devedor: "Em que pese a nova sistemática trazida pelo art. 139, IV, do CPC/2015, deve-se considerar que a base estrutural do ordenamento jurídico é a Constituição Federal, que em seu art. 5º, XV, consagra o direito de ir e vir. Ademais, o art. 8º, do CPC/2015, também preceitua que ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz não atentará apenas para a eficiência do processo, mas também aos fins sociais e às exigências do bem comum, devendo ainda resguardar e promover a dignidade da pessoa humana, observando a proporcionalidade, a razoabilidade e a legalidade. Por tais motivos, concedo a liminar pleiteada"4. Será que voltaremos a tempos ancestrais, no qual o devedor, pagava com seu trabalho duas dívidas? Ele tornar-se-ia escravo de seu credor? Como disse meu amigo: "Desse modo, retroagiríamos para o período em que a cobrança era abusiva, chantagista e violadora da vida pessoal dos devedores e de forma piorada. É possível imaginar as cartas e avisos de cobrança: 'Pague sua dívida, sob pena de negativação nos órgãos de proteção ao crédito e tomada de medidas judiciais com a apreensão de seu passaporte e sua carteira de habilitação'". Claro que, para tanto, ter-se-ia que mudar a Constituição Federal e a lei ordinária. Mas, que essas decisões ainda que isoladas assustam, isso sim. __________ 1 Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer: Pena Detenção de três meses a um ano e multa. 2 Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados. 3 Justiça determina apreensão de passaporte em razão de dívida não quitada. 4 Habeas Corpus Processo 2183713-85.2016.8.26.0000 Relator: DES. MARCOS RAMOS, decisão de 9-9-2016.
Nunca se voou tanto. Nunca os consumidores deixaram tantos milhões de reais, dólares, euros ou o que o valha nos cofres das companhias aéreas. Conclusão: as empresas estão faturando alto. Mais dinheiro em caixa, mais lucro, mais dividendos distribuídos para os acionistas, maiores bônus entregues aos executivos do alto escalão e mais benefícios aos consumidores e melhor qualidade dos serviços prestados... Opa! É melhor parar por aqui porque na frase anterior nem tudo é verdadeiro, isto é, o último trecho é falso. Por aqui parece que a ANAC é uma das que acredita que o último trecho é verdadeiro... Com tanto dinheiro ganho seria de esperar mais benefícios distribuídos aos consumidores e melhor qualidade dos serviços prestados. Infelizmente, por incrível que pareça, está acontecendo o oposto: quanto mais ganham as cias aéreas piores ficam os seus serviços. É o novo sistema do século XXI: o capitalismo de ponta cabeça. Recentemente, graças a uma filmagem feita por um passageiro, o mundo todo pode ver como age uma dessas empresas aéreas, no episódio protagonizado pelos representantes da United Airlines com a ajuda da polícia norte-americana. Noticiou-se que, por causa de overbooking, os funcionários da United sortearam alguns passageiros que deveriam deixar a aeronave (não deve ser a verdade, pois os passageiros já estavam acomodados na aeronave; o problema de overbooking se dá no embarque...). Muito bem. Um dos sorteados, um médico, recusou-se a sair, dizendo que precisava estar na cidade de Louisville na manhã do dia seguinte para fazer atendimento em um hospital1. Arrastado por policiais e retirado à força, o homem se feriu e ficou com o rosto ensanguentado. (Assista ao vídeo aqui). Após o incidente, em nota, o CEO da United Airlines, Oscar Munoz, pediu desculpas dizendo o seguinte: "Esse é um evento entristecedor para nós aqui na United. Eu peço desculpas por ter que reacomodar esses clientes. Nosso time está se movendo com senso de urgência para trabalhar com as autoridades e conduzir nossa própria avaliação sobre o que ocorreu. Também estamos contatando esse passageiro para falar diretamente com ele e encaminhar e resolver essa situação2." Acontece que a nota era falsa. Num e-mail interno vazado para a imprensa ele elogia a atitude dos funcionários, dizendo que estes agiram de maneira correta3. Daí, o CEO trouxe a público um novo pedido de desculpas. Eu não vou gastar este espaço nem tomar o tempo do leitor para referir essa segunda nota, que não tem nenhuma credibilidade. O evento com o passageiro é terrível, mas o vazamento do e-mail interno é mais ainda, pois deixa claro como as coisas se passam em empresas que não respeitam seus clientes, o que acontece, geralmente, nos casos em que elas não precisam respeitar. O sistema capitalista mundial (quero dizer, ocidental) até fins dos anos oitenta do século passado se orgulhava do primor com que tratava seus clientes. As companhias aéreas davam bons exemplos, assim como operadoras de cartões de crédito e bancos e várias outras grandes empresas dos setores massificados. Havia competição séria e luta severa por fatias do mercado consumidor. Por isso, parte do lucro - às vezes grande parte - era investido na busca da satisfação dos clientes não só para o atingimento da fidelização como para a conquista dos novos. Os consumidores eram bem tratados e até mesmo bajulados. Com o surgimento das junções de empresas, fusões, aquisições etc. criou-se oligopólios e enormes grupos que atuam em conjunto dominando todo ou quase todo o mercado de sua área de atuação. Além disso, com a administração dessas gigantescas corporações cada vez mais "financeira" que produtiva, a preocupação com a qualidade se esvaiu. O capitalismo mudou: o consumidor se tornou apenas um número (ou um nome num painel, num banco de dados ou algo semelhante) que pode gerar um certa receita monetária, mas cujos direitos, interesses e necessidades não têm tanta importância. Os consumidores são tratados como marionetes, que hipnotizados, devem obedecer ao comando do marketing e da publicidade. É feito de tudo para que eles acreditem nas fantasias veiculadas. Anúncios publicitários mentem, gerentes de bancos mentem, recepcionistas de empresas de planos de saúde mentem, atendentes em aeroportos mentem etc. (uma longa lista). É fato que as mentiras, às vezes, fazem parte do sistema engendrado pelos chefes e patrões, mas nem por isso deixam de ser mentiras e muita conversa pra boi dormir. O overbooking e todos os benefícios excluídos do atual serviço prestado pelas companhias aéreas são uma clara demonstração desse novo modelo capitalista, que despreza o consumidor e que só pensa no ganho financeiro. Os atuais administradores não estão preocupados com seus clientes, especialmente nos setores de baixa competividade e naqueles em que o consumidor não tem escolha. A qualidade cai, mas gera alguma economia financeira que, na escala, representa maior faturamento e com isso surge o desprezo ao consumidor. A esperança são os empresários que contrários à esse modelo, passaram a respeitar os consumidores. Mas em alguns setores, em que não há competitividade - como se dá em parte no setor aéreo - fica mais difícil uma mudança. __________ 1 Passageiro é retirado à força de voo com overbooking. 2 Passageiro é retirado à força de voo com overbooking. 3 Após despencar na bolsa, CEO da United se desculpa novamente.
Ésquilo, o famoso dramaturgo da Grécia antiga, disse que "na guerra, a verdade é a primeira vítima". Adaptando a frase para a sociedade de consumo, podemos dizer que em matéria de comunicação, quando surge um problema, a informação verdadeira é a primeira, a segunda e todas as demais vítimas. Adaptando melhor ainda, podemos ver que, de fato, a vítima é o consumidor, que não só não sabe bem o que está acontecendo como fica confuso sobre o que fazer, como agir, etc. Peguemos o setor aéreo (que, ao contrário do que pretende a ANAC, não precisa de proteção, pois sabe muito bem o que quer e como fazer). Basta surgir um atraso, para que a desinformação grasse no aeroporto ou, simplesmente, não seja fornecida. Claro que, se surgir um pane aérea em pleno voo e o piloto tiver que fazer um pouso não programado, nem sempre vale a pena contar tudo para os passageiros. Mas, neste caso, a situação de segurança assim o exige. Já em solo, para atraso e cancelamentos, não há qualquer motivo para não se contar a verdade. Não é incomum, aliás, atrasos propositais para cancelamento de voos com poucos passageiros e seu agrupamento em outro voo da mesma companhia aérea em outro horário. Aqui, naturalmente, a verdade já morreu. Vejamos agora a questão da carne, recentemente tornada um escândalo de proporções mundiais a partir do Brasil. O dr. Drauzio Varella assim escreveu: "'Doutor, o senhor viu que esses caras colocam papelão e ácido ascórbico na salsicha', disse o taxista que me trouxe de Cumbica. Há quatro dias, fora do país, eu estava a par do teor das declarações feitas por um delegado da Polícia Federal, mas desconhecia as repercussões populares da denúncia. Consegui explicar que o ácido ascórbico não era uma substância corrosiva, mas a prosaica vitamina C. Quanto ao papelão nos embutidos, minha descrença não foi suficiente para convencê-lo". E, realmente, um alarme por se ter falado que havia vitamina C nas carnes? E quanto ao papelão? Circula pela internet um vídeo que mostra um consumidor abrindo um embutido de carne e dentro dele encontra uma embalagem do próprio produto triturado junto. Trata-se de um produto de uma grande indústria. Pergunto, isso pode acontecer? Poder, pode, mas em produções industriais desse nível a hipótese é de falha rara e excepcional do maquinário ou sabotagem (às vezes de algum empregado). É evidente que o produtor jamais faria algo assim de propósito. É vício típico do produto feito em escala industrial, massificado e reproduzido na série. Não é à toa que o Código de Defesa do Consumidor diz que, nesses casos, a responsabilidade do fabricante é objetiva. Quanto à verdade da informação sobre o risco à saúde, retorno ao artigo do dr. Drauzio Varella. Diz ele: "No caso da carne, a queda imediata nas vendas aconteceu sem que ninguém se dignasse a fazer a pergunta mais elementar numa situação como essa: 'Alguém ficou doente?' 'Alguém engasgou com o papelão ou teve o esôfago corroído pelo ácido ascórbico?'' Se uma pessoa ao menos tivesse se intoxicado ou perdido a vida, a Polícia Federal teria mantido em sigilo a investigação por dois anos, sem agir para evitar outras vítimas?"2 Paradoxalmente, numa época em que a informação brota de forma viral por todos os poros da comunicação (mais digital que analógica), está difícil identificar a informação que é verdadeira. E o consumidor, ressabiado, muitas vezes fica paralisado esperando o tempo passar e sem saber o que fazer. __________  1 Carne enfraquecida. 2 Mesmo local.
quinta-feira, 30 de março de 2017

À procura da inteligência

Meu amigo Outrem Ego propôs que pensássemos se havia mesmo inteligência nesta nossa sociedade capitalista e democrática. Ele disse: "Com tanto desenvolvimento das comunicações e com tanto avanço na tecnologia de ponta, que conectou bilhões de pessoas, nós acabamos por acreditar que há alguma inteligência por aí. Mas há mesmo? Para o mal, parece que sim". Bem, o que posso dizer é que, por aquilo que eu penso, a resposta depende do ponto de vista. Nenhum de nós parece inteligente o suficiente para compreender tudo o que se passa. Porém, isso não impede que pensemos em alguns aspectos. Vejamos a democracia. Em países com democracias consolidadas de forma secular, o último ano deu exemplos de equívocos na sua formatação e na maneira da população participar. Peguemos o Brexit. Tendo em vista a catástrofe que foi o resultado do referendo/plebiscito1 no Reino Unido, que resultou na saída da União Europeia, pergunto: com tanta gente cuidando do mesmo assunto, com tantos pensadores ingleses, escoceses, europeus, etc., como é que foram organizar um plebiscito, cujo resultado seria tão importante, com a possibilidade de que a decisão pudesse se dar com tão pequena margem de votos e sem levar em consideração a participação percentual dos votantes em relação à população? E ainda por cima num turno só? Dos 46,5 milhões de eleitores, apenas compareceram às urnas 72,2% (33,5 milhões). Desses, 51,9% votaram pela saída do bloco europeu e 48,1% pela permanência. Feitas as contas, o resultado é que apenas 17,4 milhões de eleitores ou seja, 37,47% do total, votaram a favor da saída. "Ampla" minoria, portanto (e ainda por cima, segundo pesquisas, foram os mais velhos que votaram, deixando essa herança para os mais jovens). Nos Estados Unidos da América do Norte, Donald Trump foi eleito, mas quem recebeu mais votos foi Hillary Clinton. A candidata democrata teve mais de 2 milhões de votos acima do que o candidato republicano: 64,2 milhões contra 62,22. Isso tudo é esquisito mesmo. Temos aviões supersônicos, espaçonaves que frequentam planetas distantes, bombas nucleares espetaculares (e perigosíssimas), mas não conseguimos combater simples mosquitos que picam e matam as pessoas (Sei que não é tão fácil combater esses "bichinhos". É que estou apresentando pontos de vista). Como disse meu amigo: "Os automóveis podem rodar facilmente a 200, 250, 300 km por hora. Mas, é proibido andar a mais de 120". Sim, são os paradoxos colocados ao consumidor. Houve avanços. Você leitor, deve lembrar que, antigamente, era permitido fumar dentro dos aviões. Mas, claro, apenas em parte das poltronas. Por exemplo, da de número 20 até a número 40. Nas demais, não podia. Só esqueciam de dizer para a fumaça que ela ficasse alojada nos mesmos compartimentos... Era o mesmo em restaurantes... E o irmão de meu amigo, que é engenheiro, teve sua carteira de habilitação suspensa por ter furado o rodízio algumas vezes no período de um ano. Chateado, cumpriu o ritual exigido para poder dirigir novamente. Quando foi ao posto do Detran, gostou do que viu: tudo se deu de forma organizada e rápida. Mas, não é que o funcionário fez com que ele escrevesse um texto a mão, a partir de um ditado? Ele perguntou: "Para quê isso?". "Para provar que o senhor saber ler e escrever". "Mas eu sou engenheiro. E, na verdade, tenho carteira de habilitação há 20 anos". Não adiantou, teve que escrever o ditado. Paradoxos, incoerência, falta de bom senso. Se olharmos bem, encontraremos muitos exemplos em todo lado. É um bom exercício de observação. Com tanta coisa ruim pelo mundo afora - e, claro, muito piores do que esses aspectos acima -, realmente, podemos ficar em dúvida sobre a inteligência humana. __________ 1 Estou usando os termos de forma indiscriminada, embora haja alguma diferença entre eles: como se sabe, o plebiscito é utilizado para consulta sobre tema que esteja numa fase anterior à elaboração de alguma lei proposta pelo governo ou parlamento. Referendo é uma consulta popular, no qual a população se manifesta sobre uma lei ou ato constituído, ou seja, é uma votação convocada para ratificar ou rejeitar o que já existe. 2 EUA: Contagem de votos fechada. Hillary Clinton com mais dois milhões que Trump.
quinta-feira, 16 de março de 2017

O peso do consumidor e as estripulias da ANAC

Meu amigo Outrem Ego veio com esta: "Do jeito como as coisas estão correndo, brevemente este será o diálogo que se travará num balcão de companhia aérea para o despacho de embarque: - Bom dia! Por favor, seu ticket...Vai viajar para onde? - Eu e minha esposa vamos para Paris. Eis nossos tickets. - Muito bem, Sr. João, pode subir na balança... Ah, o senhor pesa 90 quilos. Então, não tem direito a franquia de bagagem... Agora, a senhora dona Clara, pode subir. Sim, 60 quilos. A senhora tem direito a uma mala com vinte quilos. Dona Clara, então, virou-se para o marido e falou: - Viu João, como vale a pena fazer regime!" Meu amigo propôs uma discussão. Disse: "Uma família viajando junta, digamos, um casal e dois adolescentes com 13 e 14 anos, pesa (em regra) muito menos que quatro adultos, mas paga o mesmo preço das passagens. Se é o peso o que importa, deveria pagar menos ou ter mais franquia de quilos nas bagagens". Parece justo, mas é deste modo que as pessoas devem ser consideradas? Muitas empresas - aquelas que prestam um mau atendimento - já consideram o consumidor apenas um número. Com esse andar da carruagem, o consumidor será considerado literalmente um peso (E para aquelas outras empresas que prestam um péssimo atendimento no pós-venda, o consumidor é considerado um estorvo!). Agora o fato da odiosa discriminação: a própria natureza determinaria quanto vale uma pessoa dependendo da altura, do peso dos ossos, da condição de saúde etc.! E não é que a ANAC conseguiu estragar algo que havia de bom no mercado brasileiro relativamente às bagagens nas viagens aéreas. Vou repetir o que já disse mais de uma vez: não é porque algo é praticado em outros países que deve ser aqui implantado. Nem sempre é o melhor para o consumidor. E este é um bom exemplo disso. Nosso modelo é favorável aos viajantes. Pelas regras vigentes até o dia 14 deste mês de março, os passageiros têm o direito de despachar itens com até 23 quilos em voos nacionais e dois volumes de 32 quilos cada um em viagens internacionais sem pagar taxas extras1. Segundo a agência reguladora, a medida de liberação do peso das bagagens gerará concorrência entre as companhias áreas, barateando o preço das passagens. Pode ser, mas para tanto é necessário que haja concorrência. Quando mais de uma empresa opera o mesmo trajeto, é possível, mas somente se a demanda for abaixo da oferta. O pior é que, em vários trajetos nacionais e internacionais, os voos são oferecidos por apenas uma empresa. Ou seja: não há concorrência! Por que ela iria baixar o preço mesmo? Dou alguns exemplos: (estou fazendo "de cabeça", mas não devo errar muito): a) para Lisboa diretamente, somente a TAP (e recentemente a AZUL, que é do mesmo grupo) é que operam: b) Para Roma, a Alitalia: c) para Atlanta, a Delta; d) Dallas, a American Airlines; etc. Isso tanto é verdade que a TAP já anunciou no último dia 9 a redução do número de malas e dos pesos. Mas, claro, sem qualquer diminuição do preço de suas passagens... Indagada pela Revista Veja a respeito a Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal em São Paulo contra as novas medidas, a ANAC, em nota, disse que não comenta casos em tramitação e que "fez 28 reuniões com instituições representativas da sociedade, entre as quais entidades de defesa do consumidor; seis reuniões com parlamentares federais; três audiências no Senado; seis reuniões intergovernamentais; uma consulta pública em 2014; e duas audiências públicas, uma em 2013 e outra em 2016, para finalizar o texto das novas regras - que recebeu mais de 1.500 sugestões da sociedade"2. Espanta o número de sugestões com um resultado, ao menos no ponto das bagagens, tão controverso. Atualmente, as companhias aéreas cobram para reservar assentos, colocam preços diferentes dependendo do local da poltrona na mesma classe econômica, cobram por alimentos, impõem altas multas para remarcação de voos, enfim, sabe-se lá onde isso irá parar. Como disse meu amigo Outrem Ego: "Eis um slogan das futuras propagandas das companhias aéreas: 'Consumidor: vale quanto pesa. Vale mais quem pesa menos'." __________ 1 Enquanto escrevia este artigo, foi concedida liminar nos autos da ACP promovida pelo MP Federal de São Paulo suspendendo a medida da ANAC.   2 Ministério Público entra na Justiça contra cobrança por bagagens (revista Veja).
quinta-feira, 9 de março de 2017

A esperança como produto de consumo

No artigo anterior, cuidei da felicidade como produto de consumo. Hoje, falo da esperança. É fato conhecido que muitos consumidores jamais poderão adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo. Por mais que o sistema financeiro consiga, cada vez mais, oferecer crédito para uma ampla camada da população, muitos objetos do desejo dos consumidores continuam e continuarão inacessíveis. Há muito a ser dito a respeito disso, mas pensemos num elemento psíquico. Os bens de difícil aquisição, alimentam, de fato, a frustração do consumidor, que sonha mas não adquire o bem desejado ou tem muita dificuldade em conseguir fazê-lo. Aliás, há aqueles que entendem que a frustração é boa para o mercado, pois, como o consumidor não consegue preencher seu "espaço interior" adquirindo mercadorias, nunca para de comprar, na tentativa - vã - de apaziguar sua alma. Além disso, como esse consumidor - já frustrado ou que ainda se frustrará - é um ser humano, tem, dentro de si, uma coisa chamada esperança. Daí, vive a ilusão da possibilidade de um dia realizar seu sonho - qualquer que seja ele: alguns mais difíceis como, por exemplo, da aquisição da casa própria perfeita; outros nem tanto, como comprar certos automóveis ou empreender lindas viagens. Mas o fato é que, de frustração em frustração, o consumidor vai preenchendo o vazio de sua esperança; se olhar para trás, verá o quanto não conseguiu obter. Acontece que, a esperança é forte e a ilusão também. Por isso, ele acredita na sorte e participa de todo tipo de jogos para ganhar prêmios (estes ironicamente chamados de ("jogos de azar"): loterias, cassinos (quando e onde há), entra em concursos de todo tipo, adora promoções, sorteios, etc.. Isto é, o consumidor é presa fácil das ofertas que prometem uma vida melhor e, de preferência, obtida rápida e facilmente. Visto desse modo, é possível afirmar que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem nos vários tipos de produtos e serviços oferecidos: a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita; ou a de fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos e muitos outros, conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; a esperança de garantir o próprio futuro e, também, o da família pagando prêmios de seguros; e a de chegar nesse futuro, se aposentar e ter tempo ainda de gozar a vida, poupando de forma adequada; etc. etc. Realmente, o mercado oferece o futuro de uma vida melhor. Mas, como disse acima, o consumidor tem pressa. E nunca teve tanta como nos dias que correm. E foi o mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não há tempo para nada; nem se pode perder tempo algum. Recebe-se à vista e paga-se a crédito, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o Dia das Mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao Dia das Mães do ano seguinte, quando, então, tem de entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que já nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel - criadas e continua pagando as prestações de seu financiamento. Como é que diz mesmo a propaganda?: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável. Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. Claro que nem tudo é responsabilidade do fornecedor. Afinal, o consumidor compra por que quer e exercendo sua liberdade para tanto. Pergunto: Será que o consumidor precisa adquirir muitos bens para ser feliz? E a que preço? O capitalismo não esconde suas intenções: produz e quer vender. O consumidor, cada vez mais, está sintonizado com o sistema, vivendo a esperança de um futuro de bem-estar que decorre da aquisição de produtos e serviços. Como diz meu amigo Outrem Ego: "Será que não chegou a hora do consumidor ter menos pressa e pesquisar para descobrir melhores alternativas para uma vida mais tranquila e feliz, sem ter que ficar comprando produtos e serviços sem parar?".
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

A felicidade como produto de consumo

Nunca é demais retornar ao tema da felicidade, algo que, como já referi, o mercado oferece abertamente. Nos anúncios publicitários, por exemplo: "Pão de açúcar, lugar de gente feliz" . Nos nomes de produtos e nas promoções como a dos brindes no Mc Lanche Feliz ou do Mc Dia Feliz do Mc Donald's. O mercado oferece também a paixão, que, claro, leva à felicidade: "Grandes paixões a gente nunca explica. Apenas sente. Seja sócio Premiere FC e viva a emoção de ver as conquistas do melhor time do Brasil: o seu!" etc. Examinando-se os anúncios publicitários, como regra, o que se vê são pessoas bem sucedidas, sempre sorridentes, alegres, cantando, se abraçando, passeando, dançando, enfim, felizes. E não é para isso que os produtos e serviços são oferecidos? Para que as pessoas se sintam bem, se satisfaçam, atinjam seus sonhos, cheguem ao patamar desejado, isto é, se sintam felizes? Para a insatisfação com o corpo, partes postiças; para as rugas, cremes miraculosos; para as gordurinhas indesejadas cintas e roupas adequadas ou academias repletas de promessas ou, ainda, dietas que adornam a esperança; tudo, naturalmente, para que, no final das contas, nós consumidores atinjamos um excelente patamar de vida. Férias? É o momento de suprema felicidade. Quer emoção? Paixão? Não perca as finais do campeonato de futebol e sinta-se sublime. Pacotes de viagem, hotéis, lugares paradisíacos ou simplesmente indispensáveis (Paris, por exemplo, ou Nova York). Desfrutar os momentos de lazer, passeando à beça e conhecendo muitos lugares ou simplesmente não fazendo nada etc.; mais uma vez, para quê? Ora, sermos felizes. Se nós fossemos capazes de conseguir olhar por trás dos bens adquiridos, para além dos serviços, por debaixo das embalagens, para dentro da química dos alimentos e dos cosméticos, se pudéssemos ver realmente como as coisas são, numa espécie de raio X mágico que enxergasse o espírito dos produtos e dos serviços, certamente encontraríamos um anjo (!) sorridente que nos entregaria a chave da porta de entrada da cidade feliz; um lugar onde poderíamos, afinal, respirar sossegados e em paz, essa que talvez seja a irmã da felicidade. Mas, será que esse anjo existe? Ou se trata de mais uma ilusão oferecida pelo mercado? O modelo de produção muito bem engendrado foi capaz de, aos poucos, encontrar e preencher certos espaços vazios encontrados na alma humana. As pessoas foram muito bem estudadas em seus anseios, suas dificuldades, seus desejos, suas necessidades, seus comportamentos etc. Além disso, a vida social foi esmiuçada e acabou por ser penetrada pelo modelo de produção capitalista. Desse modo, aos poucos, o mercado foi avançando no meio social e penetrando no coração das pessoas. Os espaços encontrados foram sendo preenchidos pelos produtos e serviços oferecidos no mercado. Atualmente, o poder do mercado é tamanho que praticamente nada se lhe escapa. Como já demonstrei em vários artigos meus aqui publicados, o modelo de produção acabou se imiscuindo em praticamente todas as esferas sociais, afetando relações pessoais, de emprego e sociais das mais gerais, o sistema educacional, os esportes etc. e também a própria relação dos indivíduos entre si. Pergunto: será que o que se esconde por detrás dessa enorme profusão de produtos e serviços é uma promessa de encontro da felicidade? Ou, dito de outro modo, será que o sucesso do mercado de consumo no atual modelo capitalista ocorre porque, no fundo, o que se está oferecendo, ainda que não declaradamente, é a felicidade? É possível ilustrar esse processo de oferta e também o quanto os fornecedores conhecem a alma do consumidor com vários exemplos, mas ficarei apenas com um, que aqui já citei e que é muito peculiar: o dos videntes, médiuns, leitores de búzios etc., que prometem resolver, dentre outros, os problemas amorosos dos consumidores-consulentes. Fazendo uma pesquisa, descobri uma série de anúncios desse tipo de serviço em jornais e revistas. Caro leitor, veja esse publicado numa revista: "Amor perdido. Trago de volta quem você ama, melhor que era antes". E há muitos casos de oferta para o encontro do amor verdadeiro, para a salvação do casamento etc. Se essas ofertas existem é sinal de que há um público consumidor interessado nelas. Isso demonstra que, realmente, o mercado conhece profundamente o consumidor em suas dificuldades, necessidades, anseios, desejos, sonhos etc. Mostra, também, que por trás das ofertas - não só nestas como em muitas outras - existe uma promessa de encontro da felicidade. Do ponto de vista do consumismo, isto é, das compras exageradas de produtos e serviços, muitas delas desnecessárias, isso talvez explique um círculo vicioso contínuo e interminável: o consumidor vai ao mercado procurar a felicidade e compra, para tanto, sapatos, relógios, roupas, viagens, consultas em videntes etc., mas, como nem sempre consegue ser feliz por esse meio, continua comprando na esperança vã de atingi-la.
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A vida privada, a intimidade, o segredo e o sigilo

Já tratei deste assunto aqui nesta coluna e num texto bem longo, dividido em quatro partes. Mas, tendo em vista o debate surgido nos últimos dias a respeito do tema por conta do episódio que envolveu um hacker e a primeira dama Marcela Temer, resolvi apresentar alguns dos aspectos envolvidos para a reflexão dos leitores, focado no segredo e no sigilo. Segue. O segredo Um dos componentes do direito à intimidade é o segredo. O segredo é também um direito subjetivo. Quem não os tem? Ele está por todos os lados, inclusive, como direito não só da pessoa física como da jurídica e se apresenta de vários modos. Há, claro, o segredo humano, a base de todos os demais, este que cada um dos indivíduos tem, independentemente de origem ou idade: mesmo crianças, que ainda não compreendem bem as relações de comunicação, mantêm segredos. Com efeito, o ser humano guarda segredos desde cedo, numa tenra idade. As crianças e adolescentes têm os seus e, claro, os adultos em profusão. Podem ser inocentes ou terríveis. A revelação de um segredo pode não ter qualquer consequência, como pode ser devastadora. O fato é que as pessoas, como regra, os respeitam. Guardar segredo não tem, por exemplo, relação com amor, fidelidade ou confiança. Os filhos podem manter muitos segredos resguardados dos pais e estes daqueles, sem que a relação de amor e confiança entre eles se abale um centímetro. O mesmo pode ser dar na situação amorosa dos casais: manter segredos não implica traições (a não ser, claro, que a traição seja o segredo...). Enfim, é pacífico que as pessoas guardam segredos individualmente ou em duplas, grupos, amigos, parentes etc., como é pacífico que eles devem ser respeitados. Muitos dos segredos individuais são repartidos entre amigos e parentes. Por ser de interesse mútuo ou por não suportar guarda-lo sozinho, a pessoa o divide com alguém de sua confiança (e aqui começa a morar o perigo...). Há também segredos de ordem profissional: o sigilo profissional é, ao mesmo tempo, um direito (do confidente e do profissional - psicólogo, psiquiatra, médico, advogado, padre etc. ) e uma obrigação, pois o profissional não pode dele abrir mão, mesmo que a pedido do juiz num processo instaurado. Há segredos que são comerciais e industriais e ninguém duvida que eles não podem ser revelados. Eles traduzem-se nas fórmulas, práticas, procedimentos e instrumentos de negócios, no design, padrões etc. São também as informações confidenciais. Esses segredos podem pertencer a pessoa física ou a pessoa jurídica e estão salvaguardados da bisbilhotice alheia, limitados que estão no círculo concêntrico da intimidade. Segredo e sigilo Os termos segredo e sigilo são usados como sinônimos, mas de fato, embora imbricados, têm conotações um pouco diversas. Ambos traduzem aquilo que não pode ser exposto publicamente, aquilo que não pode ser comunicado. Mas o sigilo indica um dever legal, uma determinação para que o segredo seja mantido e que é conhecido como regra em várias profissões: na advocacia, na psiquiatria e na psicanálise, na medicina e até na confissão que é feita ao religioso (padre, bispo etc.). O jornalista, por exemplo, deve resguardar o sigilo de fonte quando as circunstâncias o exigirem. Entre nós, está estabelecido o sigilo fiscal e o sigilo bancário. Há também o sigilo das telecomunicações e o sigilo das correspondências. Enfim, uma enorme gama de situações de segredos resguardada pelas leis. Na sequência, abordarei algumas delas, mas desde logo anoto que é consensual que esse tipo de sigilo deve ser resguardado, não podendo ninguém violá-los. Aliás, não parece que exista alguém defendendo suas violações. Interesse público e segredo A chave para a resolução de alguns dos problemas existentes é a da busca do interesse público. A divulgação de informações deve ter por suporte esse interesse. Porém, existem fatos que devem ser mantidos em segredo, exatamente por causa do interesse público. Há situações que naturalmente nascem bloqueadas. Vejamos alguns exemplos: nas licitações públicas para venda de companhias estatais, deve ser guardado segredo das ofertas dos interessados; nos vários tipos de concursos públicos para ingressos nos cargos estatais ou para ingresso no quadro da Ordem dos Advogados, ou na Magistratura, no Ministério Público e em todas as carreiras públicas em todos os níveis, as questões não podem se tornar públicas antecipadamente (óbvio!); o mesmo se dá no Enad, nos vestibulares etc.; acaso o Ministro da Fazenda e seus subordinados resolvam baixar medidas que afetarão o câmbio ou a bolsa de valores, tais resoluções devem ser guardadas até que possam ser levadas a público; há um longo etc. de situações que devem permanecer em segredo. O fato é que o interesse público exige o segredo, algo que não é contestado. Sigilo profissional O sigilo profissional se impõe a certas pessoas que exercem atividades, que em função de suas especificidades e competências, possibilitam o conhecimento de fatos que envolvem a esfera íntima e privada de outras pessoas (em alguns casos, como dos advogados, esses fatos dizem respeito a pessoas físicas e também jurídicas). Essas informações privadas são, como regra, fornecidas pelo próprio interessado (cliente, paciente, fonte) para que a relação profissional possa ter andamento. Pode se tratar de um cliente acusado de um crime, que deve revelar fatos para seu advogado; pode ser um paciente fazendo suas confissões no consultório do psiquiatra ou alguém confessando seus pecados a um padre; pode ser, também, um cliente recebendo diagnóstico de seu médico ou um jornalista colhendo informações de interesse público de uma fonte não revelada (e que ele promete resguardar) etc. No Brasil, o sigilo profissional nasce no texto constitucional: "É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional" (inciso XIV do art. 5º da Constituição Federal - CF). E é garantido em várias normas relacionadas às profissões específicas. Cito, a título de exemplo, o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que regula o tema nos artigos 25 a 27; refiro também o Código de Ética Médica, que normatiza a questão nos artigos 73 a 79. De maneira mais ampla o Código Civil também regula o sigilo no inciso I do artigo 229, dispondo que "Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo". E, na mesma linha, o Código Penal no seu artigo 154 já dispunha: "Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa". Sigilo bancário O sigilo bancário é decorrente da garantia da inviolabilidade da vida privada e da intimidade tanto das pessoas físicas como das pessoas jurídicas, garantida no art. 5º, inciso X da CF. Ele está ligado à comunicação privada feita pelos clientes com as instituições financeiras. Daí que esse direito ao segredo dos dados existentes na instituição financeira decorre de dois direitos fundamentais: o do direito à vida privada e intimidade e o do dever de sigilo profissional, conforme visto no item anterior, eis que o banqueiro ou administrador está de posse dos dados em função de sua atividade profissional. Além disso, A lei Complementar nº 105 de 10 de janeiro de 2001 estabelece para as instituições financeiras o sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados. Sigilo fiscal O segredo aqui diz respeito às informações fiscais prestadas pelos contribuintes à Fazenda Pública. É sigilo que se impõe também pela garantia de vida privada e intimidade das pessoas físicas e jurídicas (Conf. inciso X do art. 5º da CF). Há, pois, proibição de divulgação dos dados registrados, eis que as informações fornecidas pelo contribuinte ao Estado diretamente ou a seus agentes são de foro íntimo, uma vez que envolvem não só seus dados cadastrais como uma detalhada descrição do patrimônio, suas receitas, seus ganhos e suas perdas, seus investimentos etc. O Código Tributário Nacional, por sua vez, impõe o sigilo: "Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades". E o Código Penal dispõe: "Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: I - permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; II - se utiliza, indevidamente, do acesso restrito." Sigilo de correspondência e das telecomunicações O sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas é direito fundamental, garantido no inciso XII do art. 5º da CF: "É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" Veja-se que o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e de dados não pode ser quebrado nem por ordem judicial para fins de investigação criminal ou instrução processual. A CF abre exceção apenas na decretação do Estado de Sítio (art. 139, III). E o Código Penal estipula: "Art. 151 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa". Sigilo de domicílio, segredos comerciais, industriais etc. Há, ainda, uma série de situações protegidas pela legislação constitucional e infraconstitucional, tais como a inviolabilidade do domicílio, os segredos industriais e de comércio, de marca, de projetos etc., como acima já apresentei. Na Consolidação das Leis do Trabalho, por exemplo, é motivo de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho a violação do segredo da empresa pelo empregado. Enfim, há vários outros sigilos impostos, mas penso que o que já referi é suficiente para demonstrar que não é tudo que pode ser levado a conhecimento do público, independentemente do fato pertencer ao campo do público ou do privado. Além disso, como visto, em algumas situações o interesse público impõe o segredo.
No dia 27 de janeiro passado, fez quatro anos da tragédia da boate Kiss na cidade de Santa Maria, que matou 242 pessoas e deixou outras doentes e com sequelas até hoje. Como sempre acontece, logo após a desgraça, autoridades e políticos vieram a público para dizer que tudo mudaria, novas normas seriam aprovadas e que algo assim não voltaria a acontecer. Mas o noticiário da imprensa dos últimos dias demonstrou que, de fato, pouca coisa mudou. No máximo, o que se viu foram alguns donos de boates mais preocupados com segurança - especialmente em relação ao fogo. Lei nenhuma foi alterada ou promulgada. Como já tive oportunidade de referir, um modo de proteger os frequentadores desse tipo de estabelecimento é fazendo algumas alterações no Código de Defesa do Consumidor - CDC. Isso porque as normas atualmente vigentes não dão conta de protegê-los. Um dos grandes problemas da questão, é o da aglomeração de pessoas e da dificuldade de deixar o local de forma rápida e segura. Enquanto for permitido o uso de comandas e o controle na saída somente após o pagamento do consumo, de nada irá adiantar uma fiscalização prévia contra incêndios. No dia de funcionamento regular, continuará havendo uma única saída ou mesmo mais de uma; todavia, sempre bloqueada, aguardando os pagamentos pelos usuários-consumidores. Lembro que, no evento de Santa Maria, ficou demonstrado que se as normas já existentes tivessem sido cumpridas, a tragédia poderia ter sido evitada, mas desde que a saída fosse facilitada. Não sei dizer se em todo lugar existe esse tipo de restrição na saída. No entanto, é evidente que a dificuldade imposta para a saída que coloca os consumidores em filas estreitas, está ligada ao interesse do faturamento. O empresário tem mesmo direito de receber, mas nunca, por causa disso, abrindo mão de manter o sistema de segurança funcionando rigorosamente. E há, ainda, uma outra pergunta: será mesmo legal criar filas infernais e desconfortáveis para cobrar o consumo de centenas de pessoas ao mesmo tempo, impedindo que elas deixem o estabelecimento comercial na hora em que quiserem sair? Tem cabimento obrigar a que se fique 20, 30 minutos ou mais esperando para poder deixar o local? No caso da boate Kiss, as reportagens apresentaram na época do acidente o depoimento de uma jovem que disse que foi impedida por seguranças de deixar o local porque ela antes deveria pagar a consumação. E o lugar estava em chamas! Realmente, as filas enfrentadas por consumidores para sair de muitas boates são terríveis e tomam muito tempo. E, infelizmente, as regras vigentes do CDC não impedem o uso das comandas e a multiplicação perigosa das filas. Por isso, insisto que é o caso de se aprovar uma norma que proíba especificamente que boates e similares se utilizem desse método abusivo contra seus clientes. Basta a inserção de novos incisos no art. 39 do CDC. Esse modo de cobrança não é utilizado em vários lugares do planeta. Em algumas boates do Canadá e Estados Unidos, por exemplo, quem compra bebida ou comida paga na hora e sai do local quando bem entender, sem mais delongas. Desse modo, não só se respeita o consumidor, como adicionalmente cria-se uma condição de segurança: o dono do estabelecimento sempre deixará destrancadas saídas de emergência, eis que não ficará com medo de que seus devedores deixem o estabelecimento. Se eles forem embora não haverá problema, pois já pagaram. É uma forma de usar a lógica do mercado capitalista a favor do consumidor para garantir sua incolumidade física1. Daí que pode e deve não só a autoridade administrativa, mas também a autoridade policial, determinar o esvaziamento da boate, clube ou congênere sempre que verificar que ele esteja com lotação acima de sua capacidade e/ou sem condições de segurança adequadas. Em função disso, apresento mais uma vez minha sugestão: a da introdução de um outro inciso no artigo 39 do CDC, para permitir o controle da capacidade e lotação do estabelecimento pelo próprio consumidor. Eis, pois, abaixo minha proposta que, penso, tem tudo de benéfica aos consumidores e não prejudica os negócios e interesses dos empresários do setor. Lembro que a alteração pode ser feita pelo Legislativo ou pela presidência da República, por intermédio de Medida Provisória. ***** Eis minha proposta: Projeto de Lei ou Medida Provisória (Para ficar claro, transcrevo o "caput" do art. 39) Art. 1º - O art. 39 da Lei nº 8.078, de 1990 que "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências", passa a vigorar com a seguinte redação e o parágrafo único de seu artigo 39 fica renumerado para parágrafo 1º: Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: XIV - Utilizar em boates, clubes e estabelecimentos similares, cartões de controle de consumo, tais como comandas, cartões ou fichas de consumação, cartões magnéticos etc. XV - Restringir em boates, clubes e estabelecimentos similares ou de qualquer modo impedir ou dificultar a saída do consumidor no momento em que este desejar. XVI - Permitir o ingresso em boates, clubes e estabelecimentos similares de um número maior de consumidores que o fixado pela autoridade administrativa como máximo. Parágrafo 2º - A cobrança do consumo em boates, clubes e estabelecimentos similares, conforme regrado no inciso XIV será feita no ato da entrega do produto. Parágrafo 3º - Para fins de controle pelo consumidor, na hipótese do inciso XVI, o número máximo de pessoas permitidas no local, conforme determinado pela autoridade administrativa, será afixado em cartaz visível e iluminado na entrada do estabelecimento, seguido do número do telefone da autoridade de fiscalização e da Delegacia de Polícia locais. Os caracteres serão ostensivos e o tamanho da fonte não será inferior ao corpo 72 do tipo conhecido como "Times new roman". __________ 1 Seria um reforço ao próprio Código Penal, que define o crime de perigo nesses termos: "Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais".