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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 20 de março de 2025

O Dia Mundial do Consumidor

Hoje dou uma pausa na análise dos direitos básicos do consumidor previstos no artigo 6º do CDC, para lembrar do dia mundial do consumidor, celebrado no último sábado, dia 15 de março. Foi nesse dia, há mais de 60 anos (em 1962), que o então Presidente norte americano John Kennedy enviou ao Congresso uma mensagem na qual defendia os direitos dos consumidores, tais como o direito à segurança, à informação e à escolha e o direito de ser ouvido. E no último 11 de março, o nosso Código de Defesa do Consumidor (CDC) fez 34 anos de sua entrada em vigor (o que se deu em 11/3/1991). De lá pra cá os consumidores passaram a ser mais respeitados. Todavia, como sempre aconteceu, infelizmente, as empresas e até setores inteiros, ainda conseguem dar um jeito de retirar direitos dos consumidores e, também, violar esses direitos. Veja-se, por exemplo, o setor aéreo que passou a cobrar quase tudo que está atrelado à uma viagem: passagem e data de compra, assento e localização, bagagem, tamanho e peso, direito a cancelamento, alimentação etc.; já as operadoras de planos de saúde conseguem  abusar abertamente de seus clientes; na Europa, em vários lugares, se a pessoa não tem cartão de crédito/débito acaba por ter dificuldade de fazer compras, pois o papel-moeda não é aceito (não dá nem para comprar uma  garrafa de água!) etc. Enfim, a luta pelos direitos dos consumidores exige vigilância o tempo todo. De todo modo, eu aproveito  essas datas para lembrar, mais uma vez, algumas virtudes de nossa famosa lei consumerista.  Os autores do anteprojeto apresentado pelo então Deputado Geraldo Alckmin, que  fez nascer o CDC,  pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Trata-se de uma lei tão importante que fez com que nós, conhecidos importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu, e ainda serve, de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, nele inspiradas.  Não resta dúvida de que o CDC representa um bom momento de atuação de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como seu texto foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e, também, em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea, o exercício da cidadania confunde-se com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Anoto, também, que a proteção aos consumidores não está apenas relacionada às pequenas questões de varejo. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nos esportes em geral, nas diversões públicas,  em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como cursos, livros, filmes etc.;  as compras via web/internet; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; as matrículas e os cursos realizados em escolas particulares de todos os níveis de ensino;  a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos;  a aquisição de imóveis e da tão sonhada casa própria e um interminável etc. Está tudo regulado pela lei 8078/90. E quero realçar algo importante: o CDC não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário ou nenhuma empresária; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege a parte vulnerável que é a pessoa consumidora, em função do modo de produção estabelecido. Ademais, leis que protegem o consumidor são a favor do mercado e não contra. Basta olhar para a sociedade da América do Norte e verificar que a proteção lá existente há mais tempo ajudou em muito o crescimento do mercado. Como já disse aqui, o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, uma data sempre lembrada. Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. De todo modo, apesar da longeva vigência e forte proteção, ainda há abusos em várias situações. Mas, repito, dá orgulho saber que o CDC é uma lei que impactou positivamente as relações jurídicas de consumo e colocou o Brasil na linha de frente do que existe de mais moderno em termos de leis de proteção aos consumidores.
Para finalizar o exame dos direitos básicos do consumidor previstos no art. 6º do CDC, cuido agora da inversão do ônus da prova. Com efeito, dispõe o inciso VIII do citado art. 6º o seguinte: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...)VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;" Já tive oportunidade de deixar consignado que o CDC constitui-se num sistema autônomo e próprio, sendo fonte primária (dentro do sistema da Constituição) para o intérprete. Dessa forma, no que respeita à questão da produção das provas no processo civil, o CDC é o ponto de partida, aplicando-se a seguir, de forma complementar, as regras do Código de Processo Civil (arts. 369 a 484). Para entender, então, a produção das provas em casos que envolvam as relações de consumo é necessário levar em conta toda a principiologia da lei 8.078, que pressupõe, entre outros princípios e normas, a vulnerabilidade do consumidor, sua hipossuficiência (especialmente técnica e de informação, mas também econômica), o plano geral da responsabilização do fornecedor, que é de natureza objetiva etc. Ao lado disso, têm-se, na lei consumerista, as determinações próprias que tratam da questão da prova. Na realidade, é a vulnerabilidade reconhecida no inciso I do art. 4º que principalmente justifica a proteção do consumidor nesse aspecto. A primeira situação envolvendo provas na lei consumerista é a relacionada à responsabilidade civil objetiva do fornecedor pelo fato do produto e do serviço (arts. 12 a 14), bem como à responsabilidade pelo vício do produto e do serviço (arts. 18 a 20, 21, 23 e 24) e que se espraia por todo o sistema normado da lei 8.078/90. Veja-se que, haverá, por exemplo, necessidade de o consumidor provar o nexo de causalidade entre o produto, o evento danoso e o dano, para pleitear a indenização por acidente de consumo. E a produção dessa prova preliminar necessária se fará pelas regras do Código de Processo Civil, a partir dos princípios e regras estabelecidos no CDC. Todavia, também essa prova, como qualquer outra que tiver de ser produzida, deverá guiar-se pelo que está estabelecido no art. 6º, VIII, do CDC (e também no art. 38, no caso específico da publicidade). Além de tudo o que disse acima, consigne-se que em matéria de produção de prova o legislador, ao dispor que é direito básico do consumidor a inversão do ônus da prova, o fez para que, no processo civil, concretamente instaurado, o juiz observasse a regra. E a observância de tal regra ficou destinada à decisão do juiz, segundo seu critério e sempre que se verificasse a verossimilhança das alegações do consumidor ou sua hipossuficiência. Para entender o sentido do pretendido pela lei consumerista é preciso primeiro compreender o significado do substantivo "critério", bem como o do uso da conjunção alternativa ou. O substantivo "critério" há de ser avaliado pelo valor semântico comum, que já permite a compreensão de sua amplitude. Diga-se, inicialmente, que agir com critério não tem nada de subjetivo. "Critério"1 é aquilo que serve de base de comparação, julgamento ou apreciação; é o princípio que permite distinguir o erro da verdade ou, em última instância, aquilo que permite medir o discernimento ou a prudência de quem age sob esse parâmetro. No processo civil, como é sabido, o juiz não age com discricionariedade (que é medida pela conveniência e oportunidade da decisão). Age sempre dentro da legalidade, fundando sua decisão em bases objetivas. O que a lei processual lhe outorga são certas concessões, como acontece, v. g., na fixação de prazos judiciais na hipótese do art. 762 ou do art. 9703, ambos do Código de Processo Civil. Assim, na hipótese do art. 6º, VIII, do CDC, cabe ao juiz decidir pela inversão do ônus da prova se for verossímil a alegação ou hipossuficiente o consumidor. Vale dizer, deverá o magistrado determinar a inversão. E esta se dará pela decisão entre duas alternativas: verossimilhança das alegações ou hipossuficiência. Presente uma das duas, está o magistrado obrigado a inverter o ônus da prova. 1 Aurélio Buarque de Holanda, Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2 Art. 76. Verificada a incapacidade processual ou a irregularidade da representação da parte, o juiz suspenderá o processo e designará prazo razoável para que seja sanado o vício. 3 Art. 970. O relator ordenará a citação do réu, designando-lhe prazo nunca inferior a 15 dias nem superior a 30 dias para, querendo, apresentar resposta, ao fim do qual, com ou sem contestação, observar-se-á, no que couber, o procedimento comum.
Hoje continuo no exame do previsto nos incisos XI e XII, com a segunda parte da análise do conceito de mínimo existencial: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(...)XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;       XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;" No artigo anterior, terminamos dizendo que, com a evolução do pensamento jurídico e da fixação de uma ampla garantia para os direitos humanos, consolidou-se a orientação de que os Estados implementem em seus sistemas legais uma série de direitos, a partir de um mínimo existencial. Isso aparece em termos internacionais nos documentos da ONU e, no caso brasileiro, está fixado no texto constitucional. Com efeito, o art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) dispõe, verbis: "1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços so-ciais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social". Posteriormente, em 1966, a ONU editou o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que assegurou como norma internacional a proteção contra a fome1 e, também, a educação como um direito social básico2. A ideia de um mínimo existencial garantido a todos os seres humanos é base de uma civilização que evolui. A realidade em todos os lugares do mundo mostra que há muito a realizar nessa direção, mas podemos dizer que, do ponto de vista jurídico, os textos legais estão bem-posicionados. Trata-se, na verdade, da tentativa de garantir ao ser humano um "mínimo vital" de qualidade de vida, o qual lhe permita viver com dignidade, tendo a oportunidade de exercer a sua liberdade no meio social em que vive. Esse mínimo existencial tem, portanto, relação direta com a dignidade de pessoa humana e, também, com o próprio Estado Democrático de Direito. No caso brasileiro, ele está contemplado na Constituição Federal, gerando um dever ao Estado para sua implementação concreta. No atual diploma constitucional, pensamos que o principal direito constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana3. É ela, a dignidade, o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. Coloque-se, então, desde já, que, após a soberania, aparece no texto constitucional a dignidade como fundamento da República brasileira: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:I - a soberania;II - a cidadania;III - a dignidade da pessoa humana". E esse fundamento funciona como princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional. E, para tratar do assunto, o professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo usou a expressão "mínimo vital"4. Diz o professor que, para começar a respeitar a dignidade da pessoa humana, tem-se de assegurar concretamente os direitos sociais previstos no art. 6º da Carta Magna, que, por sua vez, está atrelado ao caput do art. 225. Tais normas dispõem: "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição"."Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações." De fato, não há como falar em dignidade se esse mínimo não estiver garantido e implementado concretamente na vida das pessoas. Como é que se poderia imaginar que qualquer pessoa teria sua dignidade garantida se não lhe fossem asseguradas saúde e educação? Se não lhe fosse garantida sadia qualidade de vida, como é que se poderia afirmar sua dignidade? A dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato de ser pessoa. Se - como se diz - é difícil a fixação semântica do sentido de dignidade, isso não implica que ela possa ser violada. Como dito, ela é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais. Ainda que não seja definida, é visível sua violação, quando ocorre. Ou, em outros termos, se não se define a dignidade, isso não impede que na prática social se possam apontar as violações reais que contra ela se realizem. Retorno, agora, às normas introduzidas expressamente no CDC a respeito do tema. Como se trata de evitar o superendividamento, visando garantir o mínimo existencial, as situações concretas de cada consumidor exigirão um exame detalhado e cauteloso dos fatos que envolveram, envolvem e/ou envolverão ele e seu credor ou credores. Digo isso porque haverá situações em que, apesar de dívidas, limites existenciais, problemas pessoais e sociais etc., o consumidor somente poderá (ou poderia) modificar sua situação para melhor obtendo empréstimo. Muitas vezes, somente fazendo dívidas, a pessoa consegue sair da situação ruim em que se encontra. É verdade que o decreto 11.150/22 cuidou do refinanciamento de dívidas e dos novos empréstimos, desde que preservado o mínimo existencial. É o que está estabelecido no art. 5º: "A preservação ou o não comprometimento do mínimo existencial de que trata o caput do art. 3º não será considerado impedimento para a concessão de operação de crédito que tenha como objetivo substituir outra operação ou operações anteriormente contratadas, desde que se preste a melhorar as condições do consumidor.§ 1º O disposto no caput se aplica à substituição das operações contratadas:I - na mesma instituição financeira; ouII - em outras instituições financeiras.§ 2º As contratações em outras instituições financeiras de que trata o inciso II do § 1º ocorrerão exclusivamente por meio da sistemática da portabilidade de crédito regulamentada pelo Conselho Monetário Nacional". Mas ainda é pouco, pois existem milhares de pessoas que não conseguem sair da difícil situação financeira em que se encontram apenas e tão somente repactuando suas dívidas. Seria preciso que o Estado agisse diretamente, oferecendo ajuda e subsídios capazes, não só de preservar o mínimo existencial, como também algum tipo de incremento de renda ou novo empréstimo subsidiado. 1 Art. 11, parágrafo 2º: "§ 2. Os Estados-partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para: 1. Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais. 2. Assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios". 2 Art. 13, parágrafo 1º: "§ 1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz". 3 Consultar a respeito, o meu Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. 4 O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2000, passim.
Continuo examinando os princípios da lei 8.078/90 (CDC - Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos. Nos artigos anteriores, vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC. Hoje continuo no exame do previsto nos incisos XI e XII, com a análise do conceito de mínimo existencial:  "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(...)XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;        XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;" O conceito de "mínimo existencial" aparece em cinco hipóteses na reforma: as dos incisos XI e XII do art. 6º, a do § 1º do art. 54-A, a do caput do art. 104-A e do § 1º do art. 104-C. Em todos os casos o legislador colocou "nos termos da regulamentação" após o termo "mínimo existencial". O decreto 11.150/22 regulamentou "a preservação e o não comprometimento do mínimo existencial para fins de prevenção, tratamento e conciliação, administrativa ou judicial, de situações de superendividamento em dívidas de consumo" (art. 1º) e definiu que o superendividamento é "a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial" (art. 2º, caput), sendo que as dívidas de consumo são "os compromissos financeiros assumidos pelo consumidor pessoa natural para a aquisição ou a utilização de produto ou serviço como destinatário final" (parágrafo único do art. 2º). E foi no art. 3º, caput, que o decreto, com a alteração trazida pelo decreto 11.567/23, definiu o valor do mínimo existencial, nestes termos: "No âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a R$ 600,00". Esse valor é considerado como base mensal, conforme disposto no § 1º do art. 3º: "A apuração da preservação ou do não comprometimento do mínimo existencial de que trata o caput será realizada considerando a base mensal, por meio da contraposição entre a renda total mensal do consumidor e as parcelas das suas dívidas vencidas e a vencer no mesmo mês". E o patamar de R$ 600,00 será atualizado pelo Conselho Monetário Nacional (§ 3º do mesmo art.). O decreto 11.150/22 estabeleceu que o mínimo existencial é garantido no que diz respeito às dívidas oriundas de relação de consumo, conforme o caput do art. 4º: "Não serão computados na aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial as dívidas e os limites de créditos não afetos ao consumo". No entanto, em contradição, o parágrafo único desse mesmo artigo exclui da aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial, as seguintes operações (algumas delas típicas de consumo): "I - as parcelas das dívidas:a) relativas a financiamento e refinanciamento imobiliário;b) decorrentes de empréstimos e financiamentos com garantias reais;c) decorrentes de contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval;d) decorrentes de operações de crédito rural;e) contratadas para o financiamento da atividade empreendedora ou produtiva, inclusive aquelas subsidiadas pelo BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social;f) anteriormente renegociadas na forma do disposto no capítulo V do título III da lei 8.078, de 1990;g) de tributos e despesas condominiais vinculadas a imóveis e móveis de propriedade do consumidor;h) decorrentes de operação de crédito consignado regido por lei específica; ei) decorrentes de operações de crédito com antecipação, desconto e cessão, inclusive fiduciária, de saldos financeiros, de créditos e de direitos constituídos ou a constituir, inclusive por meio de endosso ou empenho de títulos ou outros instrumentos representativos;II - os limites de crédito não utilizados associados a conta de pagamento pós-paga; eIII - os limites disponíveis não utilizados de cheque especial e de linhas de crédito pré-aprovadas". Isso, de fato, representa um avanço, mas nessa questão do mínimo existencial no Brasil, ainda há muito o que fazer para poder ajudar as consumidoras e os consumidores, que estão endividados, a saírem da difícil situação em que se encontram e poderem retornar a um patamar digno de vida e consumo. Ante a isso, com a evolução do pensamento jurídico e da fixação de uma ampla garantia para os direitos humanos, consolidou-se a orientação de que os Estados implementem em seus sistemas legais uma série de direitos, a partir de um mínimo existencial. Isso aparece em termos internacionais nos documentos da ONU e, no caso brasileiro, está fixado no texto constitucional.
Continuo examinando os princípios da lei 8.078/90 (CDC - Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos. Nos artigos anteriores, vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC. Vamos agora aos incisos VII a XII: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(...)"VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;"VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;IX - (Vetado);X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral;XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;       XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;" A proteção de acesso aos órgãos administrativos e judiciais para prevenção e garantia de seus direitos enquanto consumidores é ampla, o que implica abono e isenção de taxas e custas, nomeação de procuradores para defendê-los, atendimento preferencial etc. O inciso VIII do art. 6º cuida da inversão dos ônus da prova a favor do consumidor. Esse tema será abordado em separado, após o exame dos demas incisos do art. 6º. Por sua vez, o inciso X do art. 6º,  estabeleceu a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos como decorrência do princípio maior da eficiência previsto na Constituição Federal. O legislador constitucional acresceu ao elemento obrigatório da adequação do serviço público o da eficiência. Isso significa que não basta haver adequação, nem estar à disposição das pessoas. O serviço tem de ser realmente eficiente; tem de cumprir sua finalidade na realidade concreta. O significado de eficiência remete ao resultado: é eficiente aquilo que funciona. A eficiência é um plus necessário da adequação. O indivíduo recebe serviço público eficiente quando a necessidade para a qual este foi criado é suprida concretamente. É isso o que o princípio constitucional pretende. E é isso o que dispõe a lei 8.0781. A lei 14.181/21 introduziu no CDC uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Foram várias as modificações. De início alterou o CDC para incluir na política das relações de consumo o fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores (inciso IX do art. 4º) e também para incrementar ações contra o superendividamento, visando evitar a exclusão social do consumidor (inciso X do art. 4º). Além disso, determinou que fossem instituídos mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural (inciso VI do art. 5º) e que sejam criados núcleos específicos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento (inciso VII do art. 5º). Por fim, estabeleceu como direito básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas (inciso XI do art. 6º), assim como a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito (inciso XII do art. 6º). No próximo artigo, cuidarei do conceito de mínimo existencial. 1 O art. 22 do CDC cuida especificamente desse tema, que estudaremos em outra oportunidade:"Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código."
Continuo examinando os princípios da lei 8.078/90 (CDC - Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos. Nos artigos anteriores, vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC. Vamos agora ao inciso VI: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(...)"VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;" Realço no contexto da garantia estabelecida no inciso VI do art. 6º, alguns aspectos: O valor da indenização por danos materiais há de ser tal que possibilite a reabilitação integral do dano (emergente ou dos lucros cessantes), de forma que está proibido o tarifamento. Mas, se dúvidas ainda persistiam, o preceito do CDC as espancou definitivamente. Com efeito, a utilização do adjetivo "efetivo", ligado à prevenção (e depois à reparação) do dano, tem o sentido de manter estável, permanente, fixo, o patrimônio do consumidor1. Ora, se o patrimônio do consumidor é, digamos, avaliado em R$ 10.000,00 antes de o dano surgir, e a norma quer que ele se previna de modo a mantê-lo nesse mesmo patamar, o tarifamento está proibido, porque este implicaria a diminuição do patrimônio caso houvesse dano. A prevenção ao dano material ou moral significa que está garantido ao consumidor o direito de ir a juízo requerer medidas cautelares com pedido de liminar a fim de evitá-lo. E, dando especificidade a essa garantia, a lei 8.078 firmou regras processuais importantes nos arts. 83 e 84: "Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela." "Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1º A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.§ 2º A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287 do CPC).§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.§ 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.§ 5º Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial." De todo modo, havendo dano material representado por perdas emergentes ou relativas a lucros cessantes, ou dano moral, sua reparação tem de ser integral. Acertadamente, a norma deixou consignado que a prevenção e a reparação dos danos não dizem respeito apenas aos direitos dos consumidores individuais, mas também aos coletivos e aos difusos, ao que, por necessária ligação, é de se referir a garantia aos direitos individuais homogêneos2. 1 "Efetivo": que se manifesta por um efeito real, permanente, estável, fixo (Aurélio Buarque de Holanda, Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, cit., p. 620). 2 A definição de direito difuso, coletivo e individual homogêneo está prevista no parágrafo único do art. 81.
Continuo examinando os princípios da lei 8.078/90 (CDC - Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos. Vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;(...)         Examino agora as cláusulas contratuais que estabelecem prestações desproporcionais. As garantias instituídas no inciso V do art. 6º trazem implícito o princípio da conservação do contrato de consumo. É que a instituição do direito à modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais e do direito à revisão de cláusulas em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas tem na sua teleologia o sentido de conservação do pacto. A lei quer modificar e rever as cláusulas, mas manter o contrato em vigência. O princípio do inciso V do art. 6º volta como norma de declaração de nulidade da cláusula desproporcional no art. 51 (inciso IV e § 1º), mas a nulidade não significa que o contrato será extinto. Como essa regra garante a modificação do contrato, pelo princípio da conservação o magistrado que reconhecer a nulidade deve fazer a integração das demais cláusulas e do sentido estabelecido no contrato em função de seu objeto, no esforço de mantê-lo em vigor. Esse princípio da conservação, que é implícito na hipótese da regra do inciso V do art. 6º, está explicitado no § 2º do art. 51. A garantia de revisão das cláusulas contratuais em razão dos fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas tem, também, fundamento nos outros princípios instituídos no CDC: boa-fé e equilíbrio (art. 4º, III), vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I), que decorre do princípio maior constitucional da isonomia (art. 5º, caput, da CF). Entenda-se, então, claramente o sentido de revisão trazido pela lei consumerista. Não se trata da cláusula rebus sic stantibus, mas, sim, de revisão pura, decorrente de fatos posteriores ao pacto, independentemente de ter havido ou não previsão ou possibilidade de previsão dos acontecimentos. Explique-se bem. A teoria da imprevisão prevista na regra da cláusula rebus sic stantibus tem como pressuposto o fato de que, na oportunidade da assinatura do contrato, as partes não tinham condições de prever aqueles acontecimentos, que acabaram surgindo. Por isso se fala em imprevisão. A alteração do contrato em época futura tem como base certos fatos que no passado, quando do fechamento do negócio, as partes não tinham condições de prever. Já na sistemática do CDC, não há necessidade desse exercício todo. Para que se faça a revisão do contrato basta que, após ter ele sido firmado, surjam fatos que o tornem excessivamente oneroso. Não se pergunta, nem interessa saber, se, na data de seu fechamento, as partes podiam ou não prever os acontecimentos futuros. Basta ter havido alteração substancial capaz de tornar o contrato excessivo para o consumidor. Esse princípio, que é fundamental, tem por base as características da relação de consumo, fruto da proposta do fornecedor, que assume integralmente o risco de seu negócio e que detém o conhecimento técnico para implementá-lo e oferecê-lo no mercado. Além disso, o princípio decorre de uma das características do contrato, que é típico de adesão, e, claro, fundado naqueles princípios apresentados acima.
Ainda estou examinando os princípios da lei 8078/90 - CDC e os direitos básicos lá estabelecidos. Vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;   IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; (...) Continuo no exame das práticas abusivas. Como eu dizia no artigo anterior, a teoria do abuso do direito ganhou força e passou a preponderar. Assim, pode-se definir o abuso do direito como o resultado do excesso de exercício de um direito, capaz de causar dano a outrem. Ou, em outras palavras, o abuso do direito se caracteriza pelo uso irregular e desviante do direito em seu exercício, por parte do titular. Na realidade, a doutrina do abuso do direito tem sido muito importante, especialmente pela influência que exerceu e exerce sobre os legisladores. Muitas normas jurídicas acabaram por incorporar em seus diplomas legais as práticas abusivas, para proibi-las. Aliás, ainda que não abertamente, o próprio CC/16 já admitia de forma indireta a possibilidade da existência do abuso do direito. Isto porque, no art. 160, I, havia o reconhecimento de que o exercício regular de um direito não constitui ato ilícito. Leia-se seu teor: "Art. 160. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido". Logo, a contrario sensu, o exercício irregular - isto é, abusivo - poderia caracterizar-se como ilícito no sistema do CC/16. O CC/02, em seu art. 187, trouxe expressamente a proibição ao abuso de direito, dispondo que "também comete ao ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". E o art. 188, I, repetiu a regra do vetusto código: "Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido". Antes do novo CC, o CDC proibiu explicitamente o abuso do direito, ao nulificar as cláusulas contratuais abusivas, tornando-as ilícitas. A legislação brasileira, adotando a doutrina do abuso do direito, acabou por regular uma série de ações e condutas que outrora eram tidas como meras práticas abusivas, tornando-as ilícitas. E o exemplo mais atual disso são as normas do CDC que proíbem o abuso e nulificam as cláusulas contratuais abusivas. Assim, a proibição das práticas abusivas é absoluta, e o contexto normativo da lei consumerista apresenta rol exemplificativo delas nos arts. 39, 40, 41 etc. Por fim, na esteira da proibição das práticas abusivas, no mesmo inciso IV do art. 6º, como não poderia deixar de ser, a lei 8.078 veda a elaboração de cláusulas contratuais abusivas. Nessa linha de conduta, então, o CDC tacha de nulas todas as cláusulas abusivas (arts. 51 a 53).
Continuo examinando os princípios da lei 8078/90 (CDC) e os direitos básicos lá estabelecidos. Vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços,       asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com   especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos  incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;    IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais  coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas  no fornecimento de produtos e serviços; V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações  desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem   excessivamente onerosas; (...)" Examino agora a publicidade enganosa ou abusiva e as práticas abusivas. O princípio da proteção contra publicidade enganosa ou abusiva previsto no inciso IV do art. 6º nasce como expressão do princípio maior estampado no texto constitucional relativo à publicidade. Ele é também decorrente de toda a lógica do sistema da lei 8.078. É que, pelos princípios já analisados, sabe-se que há um controle efetivo dos produtos e serviços no que diz respeito à qualidade, adequação e segurança. A informação a respeito das características, qualidade, funcionamento, preço etc. é elemento essencial dos produtos e serviços. Os contratos têm de ser apresentados previamente ao consumidor de forma clara. Ora, produção e publicidade não se confundem. Ainda que se saiba que a publicidade representa a "produção" realizada pelo publicitário, agência etc., sua razão de existir funda-se em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender. Dessa maneira, é de ver que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção. Já tivemos oportunidade de verificar que a exploração de qualquer atividade tem fundamento na Constituição Federal, que estabelece limites para harmonizá-la com as demais garantias fundamentais. Vimos - e veremos ainda mais - que a lei 8.078, como decorrência do comando constitucional, detalha bastante o controle dessa produção. E se, então, a própria exploração e a produção primária são limitadas, por mais força de razão pode e deve haver controle da atividade publicitária, que, como eu disse, é instrumental, ligada àquela de origem, porquanto serve como "meio de fala" dos produtos e serviços: A publicidade anuncia, descreve, oferece, divulga, propaga etc. Assim, como a atividade de exploração primária do mercado, visando a produção, tem limites estabelecidos, a publicidade que dela fala (da produção) deve ser restringida. Aqui, nesses princípios, a lei aponta o controle da publicidade enganosa e abusiva, e este é exercido por meio das normas estabelecidas no CDC, nos arts. 36 a 38, nos tipos penais dos arts. 67 a 69, bem como, de forma indireta, em outros dispositivos, tal como o art. 30. Quanto à norma do inciso IV do mesmo art. 6º ve-se que ela proíbe incondicionalmente as práticas e as cláusulas abusivas. A ideia da abusividade tem relação com a doutrina do abuso do direito. Foi a constatação de que o titular de um direito subjetivo pode dele abusar no seu exercício que acabou por levar o legislador a tipificar certas ações como abusivas. Com efeito, avalio a doutrina do abuso do direito. Preliminarmente, anoto que a expressão é abuso "do" direito e não abuso "de" direito, porquanto se abusa de certo direito que se tem. O uso do "do" como contração da preposição "de" e do artigo "o" é designativo do direito do qual se abusa. Muito atacada, aos poucos a teoria do abuso do direito foi-se firmando, sendo hoje aceita pela doutrina e pela jurisprudência. Anteriormente dizia-se que a expressão "abuso do direito" era logomáquica, isto é, continha palavreado inútil, pois, se se tem direito, não se tem abuso. Este seria já o não direito, o antidireito ou o ato ilícito. Logo, abuso não seria direito, e, em contrapartida, quem tem direito exerce-o, e não pode estar abusando ao exercê-lo. Acontece que a prática real do exercício dos vários direitos subjetivos acabou por demonstrar que, em alguns casos, não havia ato ilícito, mas era o próprio exercício do direito em si que se caracterizava como abusivo. A teoria do abuso do direito, então, ganhou força e passou a preponderar. *** Continua na próxima semana. *Para acompanhar o conteúdo do professor nas redes sociais acesse: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4. 
Continuo examinando os princípios da lei 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos. Vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;   IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; (...)         Com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência (na data de 3 de janeiro de 2016, lei 13.146, de 6-8-2015), o art. 6º do CDC ganhou um parágrafo único, assim disposto: "Parágrafo único. A informação de que trata o inciso III do caput deste artigo deve ser acessível à pessoa com deficiência, observado o disposto em regulamento." Como é possível ver do final da proposição, a regra depende de regulamentação para ter vigência. Ao que consta, o objetivo da norma é obrigar os fornecedores a oferecerem informações cabais também ao consumidor com deficiência. O regulamento terá que lidar com uma enormidade de situações que nem sempre serão de fácil solução, como, por exemplo, a do fornecimento de informações em embalagens de produtos industrializados e que tenham pouco espaço disponível para inserção dos dados. Já existe dificuldade e até descumprimento da norma existente no CDC: em alguns casos, os dados estão impressos em tipos tão miúdos que para lê-los o consumidor tem que usar lupa! Claro que, nesta hipótese, a lei não está sendo respeitada. Quanto ao novo regramento que advirá, uma solução será oferecer a informação em Braile num formulário anexado a algumas embalagens (não haverá necessidade de estar em todas); outra saída será oferecer as informações via web no site do fornecedor por via sonora. Aliás, oferecer as informações por sistema de som via web é uma alternativa para muitas situações e trará um plus de benefícios a muitos consumidores que, mesmo não se enquadrando na condição do Estatuto, têm alguma dificuldade para obter o dado, como na hipótese do uso da lupa acima citada. O Estatuto postergou, portanto, a entrada em vigor dessa norma que cuida das informações sobre produtos e serviços no que respeita ao consumidor com deficiência. Entretanto, seu artigo 69 também cuidou desse aspecto, o que pode gerar alguma dúvida sobre a vigência da determinação. Leiamos, inicialmente, o que ficou estabelecido: "Art. 69. O poder público deve assegurar a disponibilidade de informações corretas e claras sobre os diferentes produtos e serviços ofertados, por quaisquer meios de comunicação empregados, inclusive em ambiente virtual, contendo a especificação correta de quantidade, qualidade, características, composição e preço, bem como sobre os eventuais riscos à saúde e à segurança do consumidor com deficiência, em caso de sua utilização, aplicando-se, no que couber, os arts. 30 a 41 da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. § 1º Os canais de comercialização virtual e os anúncios publicitários veiculados na imprensa escrita, na internet, no rádio, na televisão e nos demais veículos de comunicação abertos ou por assinatura devem disponibilizar, conforme a compatibilidade do meio, os recursos de acessibilidade de que trata o art. 67 desta Lei, a expensas do fornecedor do produto ou do serviço, sem prejuízo da observância do disposto nos arts. 36 a 38 da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. § 2º Os fornecedores devem disponibilizar, mediante solicitação, exemplares de bulas, prospectos, textos ou qualquer outro tipo de material de divulgação em formato acessível." É preciso, pois, fazer uma interpretação sistemática desse dispositivo na sua conexão com o CDC. Tendo em vista que a própria lei 13.146 complementou a lei consumerista para incluir uma norma específica no art. 6º, cuidando das informações a serem oferecidas ao consumidor com deficiência e dizendo que ela depende de regulamentação, penso que somente após o surgimento efetivo da regulamentação desse dispositivo poder-se-á dizer que os fornecedores estão sujeitos às designações previstas no art. 69 referido. Caso contrário, ficaria sem sentido a inclusão do parágrafo único do art. 6º do CDC.  Ademais, é razoável que esse tipo de dispositivo deva ser regulamentado, o que permitirá melhor compreensão por aqueles que devem cumprir as determinações. Além disso, e acima de tudo, anoto que a norma do art. 69 é dirigida ao Poder Público, enquanto a do parágrafo único do art. 6º do CDC é imposta aos fornecedores. Logo, conclui-se que, após a regulamentação, os fornecedores estarão obrigados a cumprir as determinações, cabendo ao Poder Público, por sua vez, a incumbência de exercer eficaz fiscalização a respeito. + + + Continua na próxima semana *Para acompanhar o conteúdo do professor nas redes sociais acesse: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4. 
quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Black Friday: aspectos legais e dicas

Chegamos à mais uma edição da Black Friday. Como se sabe, o termo foi criado pelo varejo nos Estados Unidos para nomear a ação de vendas anual, que acontece sempre na última sexta-feira de novembro após o feriado de Ação de Graças. Por lá, todo ano, o volume de vendas é muito alto, pois os descontos são realmente verdadeiros e os fornecedores norte americanos querem se livrar do estoque antigo e, no lugar, colocar as novas mercadorias para as vendas do período natalino que se inicia.   Mas, como não poderia deixar de ser, por aqui, nem tudo é desconto verdadeiro. Todo ano, os veículos de comunicação apontam dezenas de denúncias contra as enganações perpetradas por muitos comerciantes, que usam uma tática antiga: aumentar o preço na véspera ou alguns dias antes e depois aplicar um desconto para chegar no mesmo preço anterior (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais). Aumentar preço num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar no mesmo preço, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é, como se sabe, publicidade enganosa prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC): "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços." Além disso, o ato caracteriza o crime de publicidade enganosa: "Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena: Detenção de três meses a um ano e multa."  E ainda o crime de informação falsa ou enganosa, este tanto na forma dolosa como culposa: "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa. § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena: Detenção de um a seis meses ou multa." Naturalmente, descontos são bons... Se precisamos do produto ou do serviço! Apesar de tudo, é possível conseguir e encontrar produtos com bons descontos e preços baixos na Black Friday. Nos anos anteriores, as vendas via web/internet/aplicativos cresceram enormemente. E é preciso tomar muito cuidado. Cada vez mais os hackers e os sites falsos estarão presentes nesse tipo de transação. Por isso, listo algumas cautelas que o consumidor deve tomar nessas compras, não só agora na Black Friday mas sempre que fizer aquisições via web/internet/aplicativos. Seguem itens obrigatórios fixados pelo Decreto Presidencial nº 7.962/2013 e, também, dicas usuais para esse tipo de compra. Com efeito, o consumidor deve:  a. Conhecer e investigar o site por intermédio do qual pretende comprar. Primeiramente, examinando o endereço na web. Do lado esquerdo deve haver um cadeado e o endereço deve iniciar com https://. Do site deve constar o nome empresarial, o CPF (se o vendedor for pessoa física) ou o CNPJ; o endereço físico completo, o endereço eletrônico e os dados para contato;  b. Verificar se o site está em alguma lista de restrições dos órgãos de defesa do consumidor, como, por exemplo os Procons locais ou o consumidor.gov.br;  c. Checar via web os preços praticados anteriormente, para tentar descobrir se realmente está sendo oferecido desconto;  d. Comparar preços nos diversos sites de vendas para os mesmos produtos, levando em consideração os acréscimos por fretes e seguros e, também, as formas de pagamento;  e. Evitar de fazer as compras por intermédio de celulares ou computadores de terceiros e/ou desconhecidos;  f. Manter o sistema operacional do computador e/ou do smartphone atualizado;  g. Certificar-se de que os dispositivos tenham antivírus;  h. Ativar o serviço que informa via SMS a respeito das transações financeiras efetuadas.  Outra boa dica é a de fazer pesquisa em sites de proteção ao consumidor como, por exemplo, o ReclameAqui para checar reclamações e respostas do fornecedor.  Lembramos, ainda, que as ofertas devem  apresentar: as características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; a discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou de seguros; as condições integrais da oferta, incluídas as modalidades de pagamento, a forma e o prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta.  Por fim, e como se sabe, para as compras feitas via web/internet/aplicativos, o consumidor tem o prazo de 7 dias para se arrepender, cancelar a compra e/ou devolver o produto e receber o que pagou de volta (art. 49, CDC). E o artigo 5º do Decreto Presidencial citado estabeleceu procedimento específico sobre o tema:  "Art. 5º O fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor. § 1º O consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados. § 2º O exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor. § 3º O exercício do direito de arrependimento será comunicado imediatamente pelo fornecedor à instituição financeira ou à administradora do cartão de crédito ou similar, para que: I - a transação não seja lançada na fatura do consumidor; ou II - seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura já tenha sido realizado. § 4º O fornecedor deve enviar ao consumidor confirmação imediata do recebimento da manifestação de arrependimento."  __________ Siga minhas redes sociais:  *Para acompanhar o conteúdo do professor nas redes sociais acesse: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4. 
Continuo examinando os princípios da lei 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos.  Vimos que o artigo 4º, inciso III  do CDC dispõe: "Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:        (...) III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;"  Faltou comentar a questão do equilíbrio.  Trata-se de outro princípio que pretende, concretamente, a realização do princípio magno da justiça (art. 3º, I, da CF). Relações jurídicas equilibradas implicam a solução do tratamento equitativo. No CDC, o equilíbrio aparece no plano contratual, na norma do inciso IV do art. 51, bem como no inciso III do § 1º do mesmo art. 51.  Examinemos, agora, algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC:  "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com  especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;   IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; (...)      O inc. II do art. 6º garante  igualdade nas contratações. É o asseguramento expresso do princípio da igualdade estampado no texto constitucional (art. 5º, caput, da CF).  Pela norma instituída nesse inciso fica estabelecido que o fornecedor não pode diferenciar os consumidores entre si. Ele está obrigado a oferecer as mesmas condições a todos os consumidores. Admitir-se-á apenas que se estabeleçam certos privilégios aos consumidores que necessitam de proteção especial, como, por exemplo, idosos, gestantes e crianças, exatamente em respeito à aplicação concreta do princípio da isonomia.  O dever de informar é princípio fundamental na lei 8.078, aparecendo inicialmente no inciso III do art. 6º, e, junto ao princípio da transparência estampado no caput do art. 4º, traz uma nova formatação aos produtos e serviços oferecidos no mercado.  Com efeito, na sistemática implantada pelo CDC, o fornecedor está obrigado a prestar todas as informações acerca do produto e do serviço, suas características, qualidades, riscos, preços etc., de maneira clara e precisa, não se admitindo falhas ou omissões.1  Trata-se de um dever exigido mesmo antes do início de qualquer relação. A informação passou a ser componente necessário do produto e do serviço, que não podem ser oferecidos no mercado sem ela.  O princípio da transparência, como vimos, está já previsto no caput do art. 4º, e traduz a obrigação de o fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do contrato que está sendo apresentado2.  Assim, da soma dos princípios, compostos de dois deveres - o da transparência e o da informação -, fica estabelecida a obrigação de o fornecedor dar cabal informação sobre seus produtos e serviços oferecidos e colocados no mercado, bem como das cláusulas contratuais por ele estipuladas.   *** Continua na próxima semana  Siga minhas redes sociais: *Para acompanhar o conteúdo do professor nas redes sociais acesse: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.  __________ 1 Esse princípio volta no art. 31, mais detalhado. Leia-se: "A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores" 2 E que aparece como norma expressa do art. 46:   "Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance."
Continuo examinando os princípios da lei 8078/90 (CDC) e os direitos básicos lá estabelecidos. Vimos que o art. 4º, inciso III  do CDC dispõe: "Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:        (...) III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;" Examinemos, agora, a boa-fé. Com efeito, o princípio da boa-fé estampado no art. 4º da lei consumerista tem como função viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica, compatibilizando interesses aparentemente contraditórios, como a proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico. Com isso, tem-se que a boa-fé não serve somente para a defesa da partem mais fraca, mas sim como fundamento para orientar a interpretação garantidora da ordem econômica, que, como vimos, tem na harmonia dos princípios constitucionais do art. 170 sua razão de ser. Mas, não é só isso. Hodiernamente há de se levar em conta o princípio da boa-fé objetiva no papel que ele desempenha na construção do próprio sistema jurídico, assim como na aplicação efetiva dos demais princípios e normas jurídicas, todos suporte do modelo da sociedade capitalista contemporânea. Com efeito, a hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise da norma e seu drama, no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação; os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do status quo; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas. Realmente, são várias as teorias que pretendem dar conta do fenômeno produzido no seio social enquanto ação humana ou comportamento humano na sua correlação com as normas em geral e jurídica em particular. Pois bem. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas fórmulas gerais que sempre se repetem como topói, isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto1. Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário2. Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional. Acontece que, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver racionalmente o problema estudado, ele lança mão dessas fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução do problema. Dentre as várias alternativas, chamamos atenção aqui para standards, tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "pessoa comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom-senso", "senso comum" etc. É importante notar que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas aqui como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, pois sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma incons-ciente - intuitiva -, um foro de legitimidade, uma vez que produzidos na realidade como um fato inexorável. Pois bem. O standard da boa-fé objetiva é um desses topos fundamentais que, inserido no contexto linguístico dos operadores do direito, estudiosos da sociedade capitalista contemporânea, no Brasil, por ser erigido a princípio na lei 8.078/90, foi adotado pelo atual CC e vem sendo reconhecido como elemento da base do próprio sistema jurídico constitucional. Examine-se, pois, o funcionamento da boa-fé objetiva: o intérprete lança mão dela, utilizando-a como um modelo, um standard (um topos) a ser adotado na verificação do caso em si. Isto é, qualquer situação jurídica estabelecida para ser validamente legítima, de acordo com o sistema jurídico, deve poder ser submetida à verificação da boa-fé objetiva que lhe é subjacente, de maneira que todas as partes envolvidas (quer seja credora, devedora, interveniente, ofertante, adquirente, estipulante etc.) devem-na respeitar. A boa-fé objetiva é, assim, uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal (justa), disposta como um tipo ao qual o caso concreto deve se amoldar. Ela aponta, pois, para um comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes, a fim de garantir o respeito ao direito da outra. Ela é um modelo principiológico que visa garantir a ação e/ou conduta sem qualquer abuso ou nenhum tipo de obstrução ou, ainda, lesão à outra parte ou partes envolvidas na relação, tudo de modo a gerar uma atitude cooperativa que seja capaz de realizar o intento da relação jurídica legitimamente estabelecida. Desse modo, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o magistrado ou a magistrada encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso, deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele ou ela deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado para que aquele caso concreto pudesse estar adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standart, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas. *** Continua na próxima semana * Para acompanhar o conteúdo do professor nas redes sociais acesse: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4. ________ 1 V., a respeito da Tópica, Theodor Viehweg, Tópica e jurisprudência, Brasília: UNB, 1980, passim. 2 Como diz Tércio Sampaio Ferraz Jr. ao apresentar o funcionamento da tópica material: A tópica material, diz ele, proporciona, às partes, "um repertório de 'pontos de vista' que elas podem assumir (ou criar), no intuito de persuadir (ou dissuadir) o receptor da sua ação linguística. Os partícipes do discurso judicial, ao desejar influenciar o decurso do diálogo-contra (persuasivo), precisam produzir uma impressão convincente e confiante; as suas ações linguísticas devem ser dignas de crédito" (Direito, retórica e comunicação. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 87).
Continuo examinando os princípios da lei 8078/90 (CDC) e os direitos básicos lá estabelecidos. Com efeito, dispõe o inciso o art. 4º, inciso III  do CDC: "Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:        (...) III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da CF/88), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;" O inciso III do art. 4º do CDC aponta a harmonização dos interesses dos partícipes das relações de consumo, que, como vimos antes, tem fundamento nos princípios maiores da isonomia e solidariedade. Essa harmonização nasce, então, fundada na boa-fé e no equilíbrio. Vejamos, na sequência, esses dois outros princípios. Comecemos pela boa-fé. A boa-fé estampada no inciso III referido é princípio da lei 8.078. Retornará no art. 51 como cláusula geral (inciso IV). A que a lei consumerista incorpora é a chamada boa-fé objetiva, diversa da subjetiva. A boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Nesse sentido, a boa-fé pode ser encontrada em vários preceitos do Código Civil, como, por exemplo, no art. 1.567, quando trata dos efeitos do casamento putativo1, nos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé2, no art. 879, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido etc.3. Já a boa-fé objetiva, que é a que está presente no CDC, pode ser definida, grosso modo, como sendo uma regra de conduta, isto é, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de se estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não o equilíbrio econômico, como pretendem alguns, mas o equilíbrio das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, como regra, há um desequilíbrio de forças. Daí que, para chegar a um equilíbrio real, o intérprete deve fazer uma análise global do contrato, de uma cláusula em relação às demais4. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou mesmo do consumidor. Deste modo, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes. A boa-fé objetiva é uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal. Toda vez que no caso concreto, por exemplo, o magistrado tiver de avaliar o caso para identificar algum tipo de abuso, deve levar em consideração essa condição ideal a priori, na qual as partes respeitam-se mutuamente, de forma adequada e justa. *** Continua na próxima semana * Para acompanhar o conteúdo do professor nas redes sociais acesse: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4. _______ 1 Código Civil: "Art. 1.561. Embora anulável, ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos civis até ao dia da sentença anulatória. § 1º Se um só dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão. § 2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão". 2 Código Civil: "Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa. Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção. Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente" 3 "Art. 879. Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos. Parágrafo único. Se o imóvel foi alienado por título gratuito, ou se, alienado por título oneroso, o terceiro adquirente agiu de má-fé, cabe ao que pagou por erro o direito de reivindicação." 4 O novo Código Civil também incorporou a boa-fé objetiva como base para as relações contratuais, como se pode ver do art. 422: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé" e do art. 113: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".
quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Halloween: Festa importada e com bugigangas

Como hoje é 31 de outubro, dia de Halloween, eu interrompo a análise dos princípios da lei 8078/90 (CDC) e os direitos básicos lá estabelecidos, para cuidar dessa festa na relação com os consumidores, especialmente crianças e adolescentes. Pois bem. É lugar comum perguntar: o que é bom para os norte-americanos é bom para o resto do mundo? É bom para os brasileiros? Todos sabem que os norte-americanos adoram impor seus produtos e serviços para os consumidores dos demais países e fazem isso muito bem, utilizando-se de várias técnicas, dentre as quais a da apresentação e entrega de seus projetos e modelos culturais, seus filmes, suas músicas, seus enlatados de tevê, sua língua.... Ok! (Ops...). Mas, no caso do Halloween, sou obrigado a reconhecer que eles não têm essa responsabilidade (ao menos diretamente). Fomos nós, brasileiros e brasileiras, que, de livre e espontânea vontade, importamos a "festividade macabra". Como já lembrei aqui neste espaço, no meu tempo de criança ou adolescente (há cerca de cinquenta e cinco anos), seria impensável um dia das bruxas no Brasil. Não sei quando começou. Mas, possivelmente, há cerca de vinte anos, mais ou menos,  alguma escola de inglês deve ter feito a programação para seguir o ritual dos EUA. Depois, no ano seguinte mais uma escola e mais outra etc. Com  a importação via tevê a cabo e também tevê aberta de, cada vez mais, filmes e mesmo programas jornalísticos que reproduzem a festa, aos poucos, as pessoas por aqui foram se acostumando, como se a festividade também fizesse parte de nossa realidade. Daí, o "dia das bruxas" chegou às escolas de ensino fundamental; depois em baladas de adultos e,  enfim, na atualidade, parece que ela tem a ver conosco. Nas tevês a cabo, na internet, nos canais de programas infantis, são apresentados programas específicos somente sobre a festa. Evidentemente, o mercado, sempre de olho nas oportunidades, deu sua contribuição e eis que temos entre nós crescendo vigorosamente uma festa importada, sem qualquer fundamento cultural e mesmo sem sentido ritualístico.   E as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma boa receita, vendem bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. Essa forma de domínio capitalista, no final do século XX e início do XXI,  passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração, no que, claro, contam com a ativa participação dos consumidores e consumidoras. É verdade que algumas escolas, não conseguindo fugir do evento, começaram a fazer atividades didáticas e lúdicas, sem o emporcalhamento de doces e guloseimas oferecidos em grandes quantidades e sem nenhuma função de educação ou saúde. Mas, é pouco, pois, infelizmente, tudo indica que o tal dia das bruxas, famoso nos EUA, instalou-se entre nós, de forma alegremente macabra (...).                          Lembro do texto recebido por meu amigo Outrem Ego, da administração do condomínio onde ele tem uma casa de campo. Era um convite intitulado "Gostosuras ou travessuras" para as crianças darem um passeio com paradas nas casas dos condôminos e lá pedirem doces. E estava escrito que no final do passeio haveria "a baladinha e o labirinto do terror". Eu, naquela oportunidade, insisti com ele que nossas comemorações de Páscoa e Natal, por exemplo, também são importadas. Ele concordou, mas esperava que nos dias atuais fosse mais difícil que se implantasse entre nós algo sem ligação cultural ou base social apenas e tão somente visando às vendas de produtos. "No caso, venda de doces e porcarias". Bem, no caso das comidas, até o Natal mereceu uma adaptação. Por muitos anos - e ainda até hoje - nas comemorações natalícias, em pleno verão tropical e escaldante, são ingeridas comidas gordurosas, doces etc., alimentos típicos de lugares frios, de onde a festa foi importada. E o coitado do Papai Noel é obrigado a trajar aquela roupa quente no calor de mais de 30 graus. O consolo é que, pelo menos, o Natal traz algum alento, especialmente para os que se lembram que nesta data é celebrado o nascimento de Jesus Cristo. Realmente, a conscientização a respeito do controle exercido pelo mercado ainda é pequena. O consumidor e a consumidora, considerados como tal, aos poucos, passaram a reclamar e a reivindicar direitos. Mas, ainda não consegue compreender exatamente por que participa de certos eventos ou gasta seu dinheiro adquirindo produtos e serviços. Essa questão do Halloween no Brasil oferece uma boa oportunidade para o exame de como as coisas são feitas. Se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas nem as crianças-vítimas ou seus pais e mães sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras. *** * Para acompanhar o conteúdo do professor nas redes sociais acesse: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.
Continuo examinando os princípios da lei 8078/90 (CDC) e os direitos básicos lá estabelecidos. Com efeito, dispõe o art. 4º, incisos  I, II e VI do CDC: "Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:        I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: a) por iniciativa direta; b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas; c) pela presença do Estado no mercado de consumo; d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade,       segurança, durabilidade e desempenho. (...) VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;" O inciso I do art. 4º reconhece: o consumidor é vulnerável. Tal reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida na CF/88. Significa que o consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico. O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção não se está apenas referindo aos aspectos técnicos e administrativos para a fabricação e distribuição de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas também ao elemento fundamental da decisão: é o fornecedor que escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido. É por isso que, quando se fala em "escolha" do consumidor, ela já nasce reduzida. O consumidor só pode optar por aquilo que existe e foi oferecido no mercado. E essa oferta foi decidida unilateralmente pelo fornecedor, visando seus interesses empresariais, que são, por evidente, os da obtenção de lucro. O segundo aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, por via de regra, o fornecedor tem em relação ao consumidor. É fato que haverá consumidores individuais com boa capacidade econômica e, às vezes, até superior à de pequenos fornecedores. Mas essa é a exceção da regra geral. O inciso II do art. 4º autoriza a intervenção direta do Estado para proteger efetivamente o consumidor, não só visando assegurar-lhe acesso aos produtos e serviços essenciais como para garantir qualidade e adequação dos produtos e serviços (segurança, durabilidade, desempenho). E volta no inciso VI deste mesmo art. 4º, pelo qual se verifica a estreita consonância com os maiores princípios constitucionais, especialmente os da dignidade da pessoa humana, isonomia e princípios gerais da atividade econômica. *** Continua na próxima semana. * Para acompanhar o conteúdo do professor nas redes sociais acesse: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.
No artigo de hoje, começo a examinar os princípios da lei 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos. Tem-se dito que se a lei 8.078/90 se tivesse limitado a seus primeiros sete artigos, ainda assim o consumidor poderia receber uma ampla proteção, pois eles refletem concretamente os princípios constitucionais de proteção ao consumidor e bastaria aos intérpretes compreender seus significados.  Isso é verdade, mas, além disso, as normas posteriormente estipuladas no CDC concretizam mais ainda esses princípios e direitos básicos. Vejamos, então, quais são esses princípios legais e direitos básicos fundamentais. A dignidade da pessoa humana - e do consumidor - é garantia fundamental que ilumina todos os demais princípios e normas que, então, a ela devem respeito, dentro do sistema constitucional soberano brasileiro. A dignidade garantida no caput do art. 4º do CDC, assim, está ligada diretamente àquela maior, estampada no texto constitucional. Proteção à vida, saúde e segurança são direitos que nascem atrelados ao princípio maior da dignidade, uma vez que a dignidade da pessoa humana pressupõe um piso vital mínimo. O CDC repete o princípio no art. 4º, caput, para assegurar expressamente a sadia qualidade de vida com a saúde do consumidor e sua segurança, no inciso I do art. 6º. Percebe-se então, que, consequentemente, a regra do caput do art. 4º descreve um quadro amplo de asseguramento de condições morais e materiais para o consumidor. Quando se refere à melhoria de qualidade de vida, está apontando não só o conforto material, resultado do direito de aquisição de produtos e serviços, especialmente os essenciais (serviços públicos de transporte, água e eletricidade, gás, os medicamentos e mesmo imóveis etc.), mas também o desfrute de prazeres ligados ao lazer (garantido no texto constitucional - art. 6º, caput) e ao bem-estar moral ou psicológico. A lei 8.078/90 estabelece, logo no seu art. 1º, seu caráter protecionista e de interesse social. Uma das questões básicas que justificam a existência da lei, indo até a intervenção do Estado no domínio econômico, é a da necessidade de proteção do consumidor em relação a aquisição de certos produtos e serviços. Assim, por exemplo, nos casos de medicamentos únicos para doenças graves, nos serviços públicos, no suprimento de alimentos básicos etc., justifica-se a intervenção direta para garantir o suprimento ao consumidor. Até no aumento exagerado de preços isso pode acontecer, desde que se trate de caso de necessidade. Esse princípio da garantia do suprimento das necessidades do consumidor está em consonância com o princípio maior básico que lhe dá sentido, que é o da liberdade de agir e escolher, garantido no texto constitucional (art. 1º, III, art. 3º, I, art. 5º, caput, entre outros). Além disso, o princípio da transparência, expresso no caput do art. 4º do CDC, se traduz na obrigação do fornecedor de dar ao consumidor a oportunidade de conhecer os produtos e serviços que são oferecidos e, também, gerará no contrato a obrigação de propiciar-lhe o conhecimento prévio de seu conteúdo. O princípio da transparência é complementado pelo princípio do dever de informar, previsto no inciso III do art. 6º, e a obrigação de apresentar previamente o conteúdo do contrato está regrada no art. 46. Outro princípio do caput do art. 4º aparece também no inciso III deste mesmo artigo. A harmonia das relações de consumo nasce dos princípios constitucionais da isonomia, da solidariedade e dos princípios gerais da atividade econômica. A harmonia será explicitada, no contexto da lei 8.078, pelos outros princípios da boa-fé e equilíbrio, que aparecem no inciso III do art. 4º, conforme adiante apresentaremos.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no CDC - Código de Defesa do Consumidor. Agora, terminando a avaliação do conceito de serviço. Anteriormente, vimos que há ampla determinação para que os serviços públicos sejam eficientes, adequados, seguros e contínuos. Analisemos agora o caráter de essencialidade desses serviços. Com efeito, o aspecto da essencialidade do serviço, na determinação da norma do caput art. 22 do CDC, tem de ser contínuo: "Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos." Há que distinguir dois aspectos: o que se pode entender por essencial e o que pretende a norma quando designa que esse serviço essencial tem de ser contínuo. Comecemos pelo sentido de "essencial". Em medida amplíssima todo serviço público, exatamente pelo fato de sê-lo (público), somente pode ser essencial. Não poderia a sociedade funcionar sem um mínimo de segurança pública, sem a existência dos serviços do Poder Judiciário, sem serviço de saúde etc. Nesse sentido então é que se diz que todo serviço público é essencial. Assim, também o são os serviços de fornecimento de energia elétrica, de água e esgoto, de coleta de lixo, de telefonia etc. Mas, então, é de perguntar: se todo serviço público é essencial, por que é que a norma estipulou que somente nos essenciais eles são contínuos? Para solucionar o problema, devem-se apontar dois aspectos: O caráter não essencial de alguns serviços; O aspecto de urgência. Existem determinados serviços, entre os quais apontamos aqueles de ordem burocrática, que, de per si, não se revestem de essencialidade. São serviços auxiliares que: Servem para que a máquina estatal funcione; Fornecem documentos solicitados pelo administrado (p. ex., certidões). Se se fosse levantar algum caráter de essencialidade nesses serviços, só muito indiretamente poder-se-ia fazê-lo. Claro que existirão até mesmo emissões de documentos cujo serviço de expedição se reveste de essencialidade, e não estamos olvidando isso. Por exemplo, o pedido de certidão para obter a soltura de alguém preso ilegalmente. É o caso concreto, então, nessas hipóteses especiais, que designará a essencialidade do serviço requerido. O outro aspecto, sim, é relevante. Há no serviço considerado essencial uma perspectiva real e concreta de urgência, isto é, necessidade concreta e efetiva de sua prestação. O serviço de fornecimento de água para uma residência não habitada não se reveste dessa urgência. Contudo, o fornecimento de água para uma família é essencial e absolutamente urgente, uma vez que as pessoas precisam de água para sobreviver. Essa é a preocupação da norma. O serviço público essencial revestido, também, do caráter de urgente, não pode ser descontinuado. E no sistema jurídico brasileiro há lei ordinária que define exatamente esse serviço público essencial e urgente. Trata-se da lei de greve - lei 7.783, de 28/6/89. Como essa norma obriga os sindicatos, trabalhadores e empregadores a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, acabou definindo o que entende por essencial. A regra está no art. 10, que dispõe, verbis: "Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais: tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e hospitalar; distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; funerários; transporte coletivo; captação e tratamento de esgoto e lixo; telecomunicações; guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; processamento de dados ligados a serviços essenciais; controle de tráfego aéreo e navegação aérea;  compensação bancária. atividades médico-periciais relacionadas com o regime geral de previdência social e a assistência social;             atividades médico-periciais relacionadas com a caracterização do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial da pessoa com deficiência, por meio da integração de equipes multiprofissionais e interdisciplinares, para fins de reconhecimento de direitos previstos em lei, em especial na lei 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência);           outras prestações médico-periciais da carreira de Perito Médico Federal indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.      atividades portuárias."  __________ Disponível aqui. 
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no CDC - Código de Defesa do Consumidor, ainda no exame do conceito de serviço. Na semana passada, examinávamos os serviços públicos. Dissemos que para uma classificação dos serviços públicos pelo aspecto da qualidade regulados pelo CDC, ter-se-ia, então, de dizer que no gênero eficiência estão os tipos adequado, seguro e contínuo. Pode acontecer de o serviço ser adequado, mas não ser seguro. Ou ser seguro e descontínuo. Ou ser inadequado apesar de contínuo etc. No primeiro caso, cite-se como exemplo o serviço de gás encanado sem controle de inspeção das tubulações e/ou válvulas. No segundo cite-se o serviço de fornecimento de energia elétrica que é interrompido. No terceiro aponte-se o fornecimento contínuo de água contendo bactérias. Em todos esses casos há vício do serviço e, dependendo do dano sofrido pelo consumidor, haverá também defeito. Tudo nos exatos termos do estabelecido nas regras dos arts. 14 e 20 da lei 8.078/90: "Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I. o modo de seu fornecimento; II. resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III. época em que foi fornecido. § 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas. § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro." "Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível; a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; o abatimento proporcional do preço. § 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor. § 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade." E, claro, como os serviços públicos hão de ser eficientes, as variáveis reais possíveis da junção dos tipos não são apenas as dicotômicas apresentadas (adequado-inseguro; seguro-descontínuo; inadequado-contínuo etc.), mas também podem ocorrer pela conexão das três características: adequado-inseguro-descontínuo; inadequado-seguro-contínuo; adequado-seguro descontínuo etc. Foi isso o que ficou estabelecido na lei 8.987, de 13/2/95, que disciplinou o regime de concessão e permissão dos serviços públicos, como decorrência do estabelecido no art. 175 da CF/88. É que a Carta Magna dispõe que a lei deve regulamentar a obrigação da manutenção do serviço público de forma adequada. Leia-se a citada norma constitucional:  "Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; os direitos dos usuários; política tarifária; a obrigação de manter serviço adequado". Os §§ 1º e 2º do art. 6º da lei 8.987/95, então, dispõem: "Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. § 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. § 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço". Vê-se, portanto, que há ampla determinação para que os serviços públicos sejam eficientes, adequados, seguros e contínuos.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no CDC - Código de Defesa do Consumidor, ainda no exame do conceito de serviço. Na semana passada, terminamos lembrando que no art. 22, o CDC estabelece a obrigatoriedade de que os serviços prestados sejam "adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". Continuemos o exame da norma. Em primeiro lugar diga-se que essa disposição da norma decorre do princípio constitucional estampado no caput do art. 37. É o chamado princípio da eficiência, que comentamos no início do presente livro. É verdade que tal princípio somente passou a integrar explicitamente o corpo constitucional com a edição da Emenda 19, de 4 de junho de 1998, data posterior à edição da lei 8.078/90. Mas a emenda citada apenas tornou explícito o princípio outrora implícito em nosso sistema constitucional, como explicam os Professores Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior: "O princípio da eficiência tem partes com as normas de 'boa administração', indicando que a Administração Pública, em todos os seus setores, deve concretizar atividade administrativa predisposta à extração do maior número possível de efeitos positivos ao administrado. Deve sopesar relação de custo-benefício, buscar a otimização de recursos, em suma, tem por obrigação dotar da maior eficácia possível todas as ações do estado"1. Hely Lopes Meirelles disciplina que a eficiência é um dever imposto a todo e qualquer agente público no sentido de que ele realize suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. Diz o administrativista: "É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros"2. É fato que a lei designa outros adjetivos aos serviços prestados, além do relativo à eficiência: fala em adequado, seguro e contínuo (este último para os essenciais, tipo de serviço que ainda comentaremos). Ora, adjetivos expõem a qualidade de alguma coisa, no caso o serviço público. Então, quando o princípio constitucional do art. 37 impõe que a Administração Pública forneça serviços eficientes, está especificando sua qualidade. Ou, em outros termos, o tão falado conceito de qualidade, do ponto de vista dos serviços públicos, está marcado pelo parâmetro constitucional da eficiência. E essa eficiência tem ontologicamente a função de determinar que os serviços públicos ofereçam o "maior número possível de efeitos positivos" para o administrado. Isso significa que não basta haver adequação, nem estar à disposição das pessoas. O serviço tem de ser realmente eficiente; tem de cumprir sua finalidade na realidade concreta. O significado de eficiência remete ao resultado: é eficiente aquilo que funciona. A eficiência é um plus necessário da adequação. O indivíduo recebe serviço público eficiente quando a necessidade para a qual ele foi criado é suprida concretamente. É isso que o princípio constitucional pretende. Assim, pode-se concluir com uma classificação das qualidades dos serviços públicos, nos quais o gênero é a eficiência, tudo o mais decorrendo dessa característica principal. Logo, adequação, segurança e continuidade (no caso dos serviços essenciais) são características ligadas à necessária eficiência que devem ter os serviços públicos. Realmente, o serviço público só é eficiente se for adequado (p. ex., coleta de lixo seletiva, quando o consumidor tem como separar por pacotes o tipo de material a ser jogado fora), se for seguro (p. ex., transporte de passageiros em veículos controlados, inspecionados, com todos os itens mecânicos, elétricos etc. checados: freios, válvulas, combustível etc.), e, ainda, se for contínuo (p. ex., a energia elétrica sem cessação de fornecimento, água e esgoto da mesma forma, gás etc.3). Para uma classificação dos serviços públicos pelo aspecto da qualidade regulados pelo CDC, ter-se-ia, então, de dizer que no gênero eficiência estão os tipos adequado, seguro e contínuo. *** Continua na próxima semana. ________ 1 Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 235. 2 Direito administrativo brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2012, p. 90. 3 Na sequência trataremos do aspecto da continuidade do serviço essencial.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no CDC, ainda no exame do conceito de serviço. Note-se, quanto aos serviços, que eles são privados e, também, públicos, por disposição do caput do art. 22 do CDC: "Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos." O CDC, no art. 3º incluiu no rol dos fornecedores a pessoa jurídica pública (e, claro, por via de consequência, todos aqueles que em nome dela - direta ou indiretamente - prestam serviços públicos), bem como, ao definir "serviço" no § 2º do mesmo artigo, dispôs que é qualquer atividade fornecida ao mercado de consumo, excetuando apenas os serviços sem remuneração ou custo e os decorrentes das relações de caráter trabalhista. No art. 22, a lei consumerista regrou especificamente os serviços públicos essenciais e sua existência, por si só, foi de fundamental importância para impedir que os prestadores de serviços públicos pudessem construir "teorias" para tentar dizer que não estariam submetidos às normas do CDC.  Aliás, mesmo com a expressa redação do art. 22, ainda assim há prestadores de serviços públicos que lutaram na justiça "fundamentados" no argumento de que não estão submetidos às regras da lei 8.078/90.  Para ficar só com um exemplo, veja-se o caso da decisão da 3ª câmara civil do TJSP no agravo de instrumento interposto pela Sabesp - Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo. Nas razões do recurso do feito, que envolve a discussão a respeito de valores cobrados pelo fornecimento de água e esgoto (que o consumidor alega foram cobrados exorbitantemente), a empresa fornecedora fundamenta sua resignação "na não subordinação da relação jurídica subjacente àquela legislação especial (o CDC)". O tribunal, de maneira acertada, rejeitou a resistência da Sabesp: "indiscutível que a situação versada, mesmo envolvendo prestação de serviços públicos, se insere no conceito de relação jurídica de consumo. Resulta evidente subordinar-se ela, portanto, ao sistema do Código de Defesa do Consumidor" 1. E a previsão do serviço, envolve serviço público prestado direta ou indiretamente. Com efeito, diz a norma: "órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento", vale dizer, toda e qualquer empresa pública ou privada que por via de contratação com a administração pública forneça serviços públicos, assim como, também, as autarquias, fundações e sociedades de economia mista. O que caracteriza a pessoa jurídica responsável na relação jurídica de consumo estabelecida é o serviço público que ela está oferecendo e/ou prestando. No mesmo artigo a lei estabelece a obrigatoriedade de que os serviços prestados sejam "adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". É o que examinaremos na próxima semana. __________ 1 AI 181.264-1/0, rel. Des. J. Roberto Bedran, j. 9-2-1993, v. u., RTJE 132/94.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda no exame do conceito de serviço.  Serviço é, tipicamente, atividade. Esta é ação humana que tem em vista uma finalidade. Ora, toda ação se esgota tão logo praticada. A ação se exerce em si mesma. Daí somente poderia existir serviço não durável. Seria uma espécie de contradição falar em serviço que dura. Todavia, o mercado acabou criando os chamados serviços tidos como duráveis, tais como os contínuos (p. ex., os serviços de convênio de saúde, os serviços educacionais regulares em geral etc.). Com isso, o CDC, incorporando essa invenção, tratou de definir, também, os serviços como duráveis e não duráveis, no que andou bem.  A hipótese dessa divisão, da mesma forma que quanto aos produtos, está tratada no art. 26, I e II. Mas, para encontrar o verdadeiro sentido da durabilidade e não durabilidade do serviço, será preciso ampliar o significado de serviço não durável. Assim, serviços não duráveis serão aqueles que, de fato, exercem-se uma vez prestados, tais como, por exemplo, os serviços de transporte, de diversões públicas, de hospedagem etc.  E os serviços duráveis serão aqueles que: a) tiverem continuidade no tempo em decorrência de uma estipulação contratual. São exemplos a prestação dos serviços escolares, os chamados planos de saúde etc., bem como todo e qualquer serviço que no contrato seja estabelecido como contínuo; b) embora típicos de não durabilidade e sem estabelecimento contratual de continuidade, deixarem como resultado um produto. Por exemplo, a pintura de uma casa, a instalação de um carpete, o serviço de buffet, a colocação de um boxe, os serviços de assistência técnica e de consertos (o conserto de um veículo) etc. Nesses casos, embora se possa destacar o serviço do produto deixado (o que gera diferenciais no aspecto de responsabilidade), o produto faz parte do serviço - às vezes até com ele se confundindo, como acontece, por exemplo, com a pintura de uma parede.  É preciso dizer que modernamente o serviço passou a ter uma importância excepcional no mercado. Os profissionais de marketing, por exemplo, dão hoje prevalência ao aspecto do atendimento ao consumidor no que respeita à oferta de produtos e serviços em geral. Ora, atendimento ao consumidor é prestação de serviços. Temos de lembrar, então, que qualquer venda de produto implica a simultânea prestação de serviço. O inverso não é verdadeiro: há serviços sem produtos. Assim, por exemplo, para vender um par de sapatos, o lojista tem de, ao mesmo tempo, prestar serviços: vai atender o consumidor, trazer os sapatos por ele escolhidos, colocá-los nos seus pés para que os experimente, dizer como pode ser feito o pagamento, passar o cartão de crédito na maquineta etc. Já na prestação do serviço de consulta médica, por exemplo, há apenas serviço.  Indo à leitura da redação do § 2º do art. 3º, tem-se ainda de tratar do aspecto da "remuneração" lá inserido e da exclusão do serviço de caráter trabalhista. Comecemos por este último, que não demanda qualquer dificuldade. A lei pura e simplesmente exclui de sua abrangência os serviços de caráter trabalhista, no que está certa, pois a relação instaurada nesse âmbito tem conotação diversa da instaurada nas relações de consumo. Já o aspecto da remuneração merece comentários mais cuidadosos.  O CDC define serviço como aquela atividade fornecida mediante "remuneração".  Antes de mais nada, consigne-se que praticamente nada é gratuito no mercado de consumo. Tudo tem, na pior das hipóteses, um custo, e este acaba, direta ou indiretamente, sendo repassado ao consumidor. Assim, se, por exemplo, um restaurante não cobra pelo cafezinho, por certo seu custo já está embutido no preço cobrado pelos demais produtos.  Logo, quando a lei fala em "remuneração" não está necessariamente se referindo a preço ou preço cobrado. Deve-se entender o aspecto "remuneração" no sentido estrito de qualquer tipo de cobrança ou repasse, direto ou indireto.  É preciso algum tipo de organização para entender o alcance da norma. Para estar diante de um serviço prestado sem remuneração, será necessário que, de fato, o prestador do serviço não tenha, de maneira alguma, se ressarcido de seus custos, ou que, em função da natureza da prestação do serviço, não tenha cobrado o preço. Por exemplo, o médico que atenda uma pessoa que está passando mal na rua e nada cobre por isso enquadra-se na hipótese legal de não recebimento de remuneração. Já o estacionamento de um shopping, no qual não se cobre pela guarda do veículo, disfarça o custo, que é cobrado de forma embutida no preço das mercadorias.  Por isso é que se pode e se deve classificar remuneração como repasse de custos direta ou indiretamente cobrados. No que respeita à cobrança indireta, inclusive, destaque-se que ela pode nem estar ligada ao consumidor beneficiário da suposta "gratuidade". No caso do cafezinho grátis, pode-se entender que seu custo está embutido na refeição haurida pelo próprio consumidor que dele se beneficiou. No do estacionamento grátis no shopping, o beneficiário pode não adquirir qualquer produto e ainda assim tem-se de falar em custo. Nesse caso é outro consumidor que paga, ou melhor, são todos os outros consumidores que pagam. *** Continua na próxima semana.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), agora no exame do conceito de serviço. O CDC definiu serviço no § 2º do art. 3º1 e buscou apresentá-lo de forma a mais completa possível. Porém, na mesma linha de princípios por nós já apresentada, é importante lembrar que a enumeração é exemplificativa, realçada pelo uso do pronome "qualquer". Dessa maneira, como bem a lei o diz, serviço é qualquer atividade fornecida ou, melhor dizendo, prestada no mercado de consumo.2 A norma faz uma enumeração específica, que tem razão de ser. Coloca expressamente os serviços de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, antecedidos do advérbio "inclusive". Tal designação não significa que existia alguma dúvida a respeito da natureza dos serviços desse tipo. Antes demonstra que o legislador foi precavido, em especial, no caso, preocupado com que os bancos, financeiras e empresas de seguro conseguissem, de alguma forma, escapar do âmbito de aplicação do CDC. Ninguém duvida que esse setor da economia presta serviços ao consumidor e que a natureza dessa prestação se estabelece tipicamente numa relação de consumo. Foi um reforço acautelatório do legislador, que, aliás, demonstrou-se depois, era mesmo necessário. Apesar da clareza do texto legal, que coloca, com todas as letras, que os bancos prestam serviços aos consumidores, houve tentativa judicial de se obter declaração em sentido oposto. Chegou-se, então, ao inusitado: O Poder Judiciário teve de declarar exatamente aquilo que a lei já dizia, isto é, que os bancos prestam serviços. Já em 1995 o STJ reconhecia a incidência do CDC e, depois de muita disputa, editou em 2004 a Súmula 297 com o seguinte teor: "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras". É importante aproveitar o episódio para lembrar que os países cujo capitalismo é dito como dos mais avançados têm leis de proteção ao consumidor. A propósito, lembre-se que o CDC brasileiro é fundamental para o desenvolvimento do próprio regime capitalista estabelecido expressamente no art. 1º da Constituição da República. Na verdade, ficou a convicção de que os agentes financeiros deveriam, ao invés de lamentar, comemorar o resultado da demanda. É que, em primeiro lugar - repita-se -, a lei 8.078/90 não é contra nenhum empresário. Ao contrário, ela está a favor exatamente daqueles que respeitam seus clientes. Em segundo lugar, ela é uma lei que cria a possibilidade de competição, pois a livre concorrência estabelecida no sistema constitucional brasileiro - garantia constitucional dos princípios gerais da atividade econômica: Art. 170, IV - gera a alternativa de, respeitando os direitos dos consumidores, obter novos clientes. Lembre-se também que o CDC está em pleno vigor há muitos anos com eficácia e muita eficiência, tendo influenciado diretamente a modernização das relações jurídicas estabelecidas no polo de consumo. E mais: É uma lei brasileira respeitada no exterior, tendo servido de inspiração para a criação e modificação de outras leis similares em alguns países. É, efetivamente, um produto nacional que enche de orgulho os brasileiros. *** Continua na próxima semana. ___________ 1 "Art. 3º (...) § 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista." 2 Os chamados serviços essenciais têm, também, regulação complementar no art. 22 do CDC.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda no exame do conceito de produto.  No artigo anterior, dissemos que um prato de papelão para comer um doce ou um copo de papelão para beber algo são exemplos de produtos "descartáveis". Usados, joga-se-os fora.  E levantamos um problema: o produto descartável, do ponto de vista da garantia legal, segue os mesmos parâmetros fixados para os produtos "duráveis" ou "não duráveis"? O prazo para reclamação contra vícios num e noutro caso é diferente. Qual deles seguir?  Voltaremos a esse assunto quando tratarmos dos vícios dos produtos e das garantias conferidas pela lei.  Mas, consignamos que, em nossa opinião, como a norma não cuida de produto "descartável" e como o produto "não durável" tem características diversas (como veremos na sequência), entendemos que tal produto deve ser tratado como durável, aplicando-se-lhe todos os parâmetros e garantias estabelecidos no CDC.  Pois bem. O produto "não durável" é aquele que se acaba com o uso. Como o próprio nome também diz, não tem durabilidade. Usado, ele se extingue ou, pelo menos, vai-se extinguindo. Estão nessa condição os alimentos, os remédios, os cosméticos etc. Note-se que se fala em extinção imediata, como é o caso de uma bebida, pela ingestão ou extinção consumativa sequencial, como é o caso do sabonete: este se vai extinguindo enquanto é usado1.  Estão nessas condições também os chamados produtos in natura, ou seja, os que não passam pelo sistema de industrialização, tais como o simples empacotamento, engarrafamento, encaixotamento etc., ou mesmo transformação industrial por cozimento, fritura, mistura e o decorrente de processo de armazenamento em potes, latas, sacos etc.  O produto in natura, assim, é aquele que vai ao mercado consumidor diretamente do sítio ou fazenda, local de pesca, produção agrícola ou pecuária, em suas hortas, pomares, pastos, granjas etc. São os produtos hortifrutigranjeiros, os grãos, cereais, vegetais em geral, legumes, verduras, carnes, aves, peixes etc.2  A não durabilidade vai ocorrer também com os demais produtos alimentícios embalados, enlatados, engarrafados etc. O fato de todo o produto não se extinguir de uma só vez não lhe tira a condição de "não durável". O que caracteriza essa qualificação é sua maneira de extinção "enquanto" é utilizado3.  É exatamente daí que surge a diferença específica do produto durável descartável. Enquanto este permanece quase tal como era após utilizado, o produto "não durável" perde totalmente sua existência com o uso ou, ao menos, vai perdendo-a aos poucos com sua utilização.  E mais: quando examinarmos nos  próximos artigos os serviços, veremos que a lei faz referência àqueles "sem remuneração". Lembremos, por isso, neste ponto, a questão do produto gratuito ou a chamada "amostra grátis".  Há uma única referência à "amostra grátis", no CDC: a constante do parágrafo único do art. 39 e apenas para liberar o consumidor de qualquer pagamento. A amostra grátis diz respeito não só ao produto mas também ao serviço, posto que é sanção imposta ao fornecedor que descumpre as regras estabelecidas.  Para o que aqui importa, refira-se que o produto entregue como amostra grátis está submetido a todas as exigências legais de qualidade, garantia, durabilidade, proteção contra vícios, defeitos etc.  *** Continua na próxima semana. __________ 1 O conceito remete a parte do significado de bem consumível do Código Civil (art. 86): "Art. 86. São consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria substância, sendo também considerados tais os destinados à alienação."   2 Os produtos ditos in natura não perdem essa característica quando são vendidos embalados em sacos plásticos após serem limpos, lavados e selecionados. O § 5º do art. 18 do CDC se refere expressamente a produto in natura.: "Art. 18 (...) § 5° No caso de fornecimento de produtos in natura, será responsável perante o consumidor o fornecedor imediato, exceto quando identificado claramente seu produtor." 3 Os serviços, como mostraremos em outro artigo, seguem disposição similar.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda no exame do conceito de produto. Outra novidade da lei consumerista, no que se refere aos produtos, é quanto a sua durabilidade. A divisão dos produtos em duráveis e não duráveis já era de há muito conhecida do mercado (o CDC tratou, também, de dar o adjetivo aos serviços, como mostrarei em outro artigo). O Direito só agora, tardiamente, incorporou tal divisão. Os conceitos de durável e não durável aparecem na seção que trata da decadência e da prescrição, mais especificamente no art. 26, I e II.1 Produto durável é aquele que, como o próprio nome diz, não se extingue com o uso. Ele dura, leva tempo para se desgastar. Pode - e deve - ser utilizado muitas vezes. Contudo, é preciso chamar a atenção para o aspecto de "durabilidade" do bem durável. Nenhum produto é eterno. Todos tendem a um fim material. Até mesmo um imóvel construído se desgasta (o terreno é uma exceção, uma vez que dura na própria disposição do planeta, apesar de que pode, também, sofrear erosões e outros excepcionais desgastes e até "desaparecer" numa inundação etc.). A duração de um imóvel, enquanto tal, comporta arrumações, reformas, reconstruções etc.; com idêntica razão, então, é claro que um terno se desgaste, uma geladeira se desgaste, um automóvel se desgaste etc. Assim, é compreensível que qualquer produto durável acabe, com o tempo, perdendo sua função, isto é, deixe de atender à finalidade à qual se destina ou, pelo menos, tenha diminuída sua capacidade de funcionamento, sua eficiência. Por exemplo, o tubo do aparelho do televisor não funciona mais ou, então, as imagens transmitidas pelo tubo têm cores fracas. Nesses casos de desgaste natural não se pode falar em vício do produto. Não há proteção legal contra o desgaste, a não ser que o próprio fabricante tenha assumido certo prazo de funcionamento (conforme permite o CDC: arts. 30, 31, 37, 50 etc.). A norma protege o produto durável, em certo prazo, por vício (arts. 18, 26, II, e 50), para garantir sua finalidade e qualidade. Hodiernamente utiliza-se a expressão "produto descartável". "Descartável" não deve ser confundido com "não durável", que tem características diversas daquele termo. Um produto "descartável" (termo não definido em lei) é o "durável" de baixa durabilidade, ou que somente pode ser utilizado uma vez. É uma invenção do mercado contemporâneo, que acaba aproximando o produto "durável" em sua forma de desgaste ao produto "não durável" em sua forma de extinção. Um prato de papelão para comer um doce ou um copo de papelão para beber algo são exemplos de produtos "descartáveis". Usados, joga-se-os fora. Surge, então, um problema: O produto descartável, do ponto de vista da garantia legal, segue os mesmos parâmetros fixados para os produtos "duráveis" ou "não duráveis"? O prazo para reclamação contra vícios num e noutro caso é diferente. Qual deles seguir? Voltaremos a esse assunto quando tratarmos dos vícios dos produtos e das garantias conferidas pela lei. Por ora, diga-se que, em nossa opinião, como a norma não cuida de produto "descartável" e como o produto "não durável" tem características diversas (como veremos na próxima semana), entendemos que tal produto deve ser entendido como durável, aplicando-se-lhe todos os parâmetros e garantias estabelecidos no CDC. *** Continua na próxima semana. _________ 1 Na legislação civil a classificação apresentada é de coisas fungíveis e consumíveis: Código Civil: "Art. 85. São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. Art. 86. São consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria substância, sendo também considerados tais os destinados à alienação".
Hoje suspendo o exame da relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), como vinha fazendo, para tratar de alguns aspectos envolvendo queda de aeronaves. Isso por conta do terrível acidente ocorrido em Vinhedo. O noticiário, inclusive aqui no nosso querido Migalhas, já cuidou dos aspectos jurídicos envolvendo as vítimas e seus familiares. Vou, então, lembrar dos direitos que envolvem os terceiros atingidos em solo pela aeronave. De todo modo, antes de mais nada, quero consignar que o ponto de partida do direito ao ressarcimento dos danos sofridos pelo consumidor e do dever de indenizar do agente responsável pelo produto ou pelo serviço é o fato do produto ou do serviço causador do acidente de consumo. E a responsabilidade civil do agente é objetiva, oriunda do risco de sua atividade econômica. Lembro que, quando o CDC estabelece o dever de indenizar, quer que tal indenização seja ampla na medida de suas consequências. Os danos indenizáveis são, assim, os de ordem material e os de natureza moral, os estéticos e os relativos à imagem. Como se sabe, a composição da indenização do dano material compreende os danos emergentes, isto é, a perda patrimonial efetivamente já ocorrida e os chamados "lucros cessantes", que compreendem tudo aquilo que a pessoa lesada deixou de auferir como renda líquida, em virtude do dano. No primeiro caso, apura-se o valor real da perda e manda-se pagar em dinheiro a quantia apurada. No segundo, calcula-se quanto a pessoa lesada deixou de faturar e determina-se seu pagamento. Nessa hipótese, encontra-se a fixação das pensões pela perda de capacidade para o trabalho, pela morte do parente que mantinha e sustentava a família etc. O dano moral, como se sabe, é aquele que afeta a paz interior da pessoa lesada; atinge seu sentimento, o decoro, o ego, a honra, enfim, tudo aquilo que não tem valor econômico, mas causa dor e sofrimento. E, pois, a dor física e/ou psicológica sentida pelo indivíduo. A indenização por dano moral tem caráter satisfativo-punitivo e deve ser fixada segundo certos critérios objetivos. De maneira assemelhada deve-se apurar a indenização relativa ao dano estético e à imagem. Ora, é bem possível - fatal e desafortunadamente - que produtos e serviços causem danos de ordem patrimonial de monta, quer emergentes, quer oriundos de lucros cessantes. Danos físicos irreparáveis e até a morte do consumidor ocorrem e devem ser indenizados. No caso de morte, os parentes é que serão indenizados. Não é preciso ir muito longe para pensar nos exemplos. Um simples acidente de automóvel, ocasionado por defeito no freio, pode gerar toda sorte de dano; a ingestão de um remédio mal produzido; o consumo de alimentos deteriorados; o serviço hospitalar mal realizado; o acidente de transporte: O mero extravio de bagagens numa viagem aérea e, fatal e infelizmente, a queda de um avião causando a morte dos passageiros; enfim, potencialmente, os acidentes de consumo estão à volta de todas as pessoas. Na definição ampla de consumidor, o art. 17 do CDC inclui as vítimas de acidente de consumo. É o chamado consumidor equiparado. Com a criação pelo CDC da figura do consumidor equiparado, resolveu-se qualquer problema que poderia existir em termos de descoberta do instituto jurídico aplicável no caso de acidente de consumo envolvendo pessoas diversas do próprio consumidor diretamente interessado. Em outros termos, ocorrendo acidente de consumo, o consumidor diretamente afetado tem direito à ampla indenização pelos danos ocasionados. Todas as outras pessoas que foram atingidas pelo evento têm o mesmo direito. No caso do acidente em Vinhedo, as pessoas que tiveram seus bens atingidos em terra são consideradas consumidoras equiparadas. Importante levantar aqui outra questão de alto relevo envolvendo dois tipos de terceiros: Os familiares e/ou dependentes do consumidor diretamente atingido e que por conta do acidente de consumo tenha falecido; Os familiares e/ou dependentes do terceiro - consumidor equiparado - envolvido no acidente de consumo e que por causa do evento danoso tenha falecido. Em ambos os casos, os familiares e/ou dependentes dos consumidores vítimas do acidente - quer sejam consumidores diretos, quer sejam equiparados - têm direito a indenização de natureza material e moral.1 Isso porque a amplitude da lei consumerista no que respeita à indenização devida ao consumidor, garantindo de um lado sua esfera patrimonial, alcança seus sucessores e pessoas com interesse jurídico na questão, e, assegurando de outro a recomposição dos danos de natureza moral, no caso de falecimento, abrange aqueles que estão a padecer a dor da perda. __________ 1 Em caso de falecimento não há que se falar em dano estético. Quanto à imagem, também, parece-nos inaplicável a hipótese. Somente numa situação muito especial poder-se-ia encontrar esse tipo de dano com a morte.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Hoje com o conceito de produto.  O CDC definiu produto no § 1º do art.3º  e, de maneira adequada, seguindo o conceito contemporâneo, em vez de falar em bem ou coisa, como fazia o Código Civil de 1916 e, também, o de 20021, emprega o termo "produto" (e depois vai falar em "serviço").: "Art. 3º (...) § 1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial."  Esse conceito de produto é universal nos dias atuais e está estreitamente ligado à ideia do bem, resultado da produção no mercado de consumo das sociedades capitalistas contemporâneas. É vantajoso seu uso, pois o conceito passou a valer no meio jurídico e já era usado por todos os demais agentes do mercado (econômico, financeiro, de comunicações etc.).  Na definição de produto, o legislador coloca "qualquer bem", e designa este como "móvel ou imóvel", e ainda "material ou imaterial". Da necessidade de interpretação sistemática do CDC nascerá também a hipótese de fixação do produto como durável e não durável, por previsão do art. 26 (acontecerá o mesmo no que tange aos serviços). Então vejamos.  A utilização dos vocábulos "móvel" e "imóvel" nos remete ao conceito tradicional advindo do direito civil. O sentido é o mesmo: "Código Civil: "Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente. "Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais: I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram; II - o direito à sucessão aberta.  Art. 81. Não perdem o caráter de imóveis: I - as edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local; II - os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem.  Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.  Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais: I - as energias que tenham valor econômico; II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. Art. 84. Os materiais destinados a alguma construção, enquanto não forem empregados, conservam sua qualidade de móveis; readquirem essa qualidade os provenientes da demolição de algum prédio".  No que respeita ao aspecto da materialidade do produto, vimos que ele pode ser material ou imaterial.  Mas, por conta do fato de o CDC ter definido produto como imaterial, é de perguntar que tipo de bem é esse que poderia ser oferecido no mercado de consumo. Afinal, o que seria um produto imaterial que o fornecedor poderia vender e o consumidor adquirir?  Diga-se, em primeiro lugar, que a preocupação da lei é garantir que a relação jurídica de consumo esteja assegurada para toda e qualquer compra e venda realizada. Por isso fixou conceitos os mais genéricos possíveis ("produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial"). Isso é que é importante. A pretensão é que nada se lhe escape.  Assim, a designação "produto" é utilizada, por exemplo, nas atividades bancárias (mútuo, aplicação em renda fixa, caução de títulos etc.). Tais "produtos" encaixam-se, então, na definição de bens imateriais2.  *** Continua na próxima semana __________ 1 Código de 1916, arts. 43 e s.; Código de 2002, arts. 79 e s. 2 São produtos, claro, que sempre estão acompanhados de serviços. Aliás, como acontece com qualquer produto.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda no exame do conceito de fornecedor. Já tivemos oportunidade de dizer que a pessoa jurídica pode ser consumidora, ao examinarmos o conceito de consumidor estabelecido no caput do art. 2º. Lá a norma apenas faz referência à "pessoa jurídica" sem qualificá-la. Já no caput do art. 3º, como a lei trata de adjetivar a pessoa jurídica como "pública ou privada, nacional ou estrangeira", poder-se-ia indagar se no art. 2º não se estaria falando menos ou até o contrário, ou, em outros termos: Se no caput do art. 3º a norma não estaria, de alguma maneira, cuidando apenas daquelas pessoas jurídicas indicadas. Na realidade, a resposta é bastante simples. Tanto no caso do conceito de consumidor quanto no de fornecedor, a referência é a "toda pessoa jurídica", independentemente de sua condição ou personalidade jurídica. Isto é, toda e qualquer pessoa jurídica. O legislador poderia muito bem ter escrito no caput do art. 3º apenas a expressão "pessoa jurídica" que o resultado teria sido o mesmo. Não resta dúvida de que toda pessoa jurídica pode ser consumidora e, evidentemente, por maior força de razão, é fornecedora. Ao que parece, o legislador, um tanto quanto inseguro, tratou a pessoa jurídica como consumidora sem se importar muito com o resultado de sua determinação, e quis garantir-se de que, no caso do fornecedor, nenhuma pessoa jurídica escapasse de se enquadrar na hipótese legal. Assim, tem-se de definir como fornecedor toda e qualquer pessoa jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. A referência à pessoa jurídica estrangeira tem relevo na hipótese da pessoa jurídica admitida como estrangeira em território nacional e que, nessa qualidade, presta serviços ou vende produtos. Por exemplo, a companhia aérea que aqui faz escala ou a companhia teatral estrangeira que vem ao país para apresentações. Haverá em ambos os exemplos prestação de serviços, e pode haver venda de produtos: A empresa aérea que vende presentes a bordo; a companhia teatral que vende pequenos objetos: camisetas, bichos de pelúcia etc. Ao lado da pessoa jurídica, a lei coloca a pessoa física e o ente despersonalizado. A colocação do termo "ente despersonalizado" leva-nos a pensar primeiramente na massa falida, o que é adequado. Importante notar que, apesar de uma pessoa jurídica falir, existirão no mercado produtos e, eventualmente, resultados dos serviços que ela ofereceu e efetivou, que continuarão sob a proteção da lei consumerista. Por exemplo, a quebra de um fabricante de televisores não deve eliminar - nem pode - a garantia do funcionamento dos aparelhos: Garantia contratual ou legal. Há, também, a hipótese da quebra da pessoa jurídica com a continuidade das atividades, o que não gerará, então, a solução de continuidade do fornecimento de produtos e serviços. Além disso, é de enquadrar no conceito de ente despersonalizado as chamadas "pessoas jurídicas de fato": Aquelas que, sem constituir uma pessoa jurídica, desenvolvem, de fato, atividade industrial, comercial, de prestação de serviços etc. A figura do "camelô"1 está aí inserida. O CDC não poderia deixar de incluir tais "pessoas" pelo simples fato de que elas formam um bom número de fornecedores, que suprem de maneira relevante o mercado de consumo. No que respeita à pessoa física, tem-se, em primeiro lugar, a figura do profissional liberal como prestador de serviço e que não escapou da égide da lei 8.078. Apesar da proteção recebida da lei (o profissional liberal não responde por responsabilidade objetiva, mas por culpa - cf. o § 4º do art. 14), não há dúvida de que o profissional liberal é fornecedor. Há, ainda, outra situação em que a pessoa física será identificada como fornecedora. É aquela em que desenvolve atividade eventual ou rotineira de venda de produtos, sem ter-se estabelecido como pessoa jurídica. Por exemplo, o estudante que, para pagar a mensalidade da escola, compra joias para revender entre os colegas, ou o cidadão que compra e vende automóveis - um na sequência do outro - para auferir lucro. É verdade que em tais hipóteses poder-se-ia objetar que o caso é de "ente despersonalizado", uma vez que se trata de "comerciantes de fato". Do ponto de vista prático, a objeção não traz nenhum resultado, porque em ambos os casos identifica-se o fornecedor, e isso é o que realmente interessa. Porém, diga-se que a pessoa física que vende produtos, especialmente aquela que o faz de forma eventual, não é exatamente comerciante de fato e muito menos sociedade de fato. Um "camelô" constitui-se como verdadeira "sociedade de fato". Tem local ("sede") de atendimento, horário de funcionamento, até empregados etc. O aluno que vende joias não passa de pessoa física que desenvolve, de maneira rústica e eventual, uma atividade comercial, visando auferir certo lucro. Situa-se, então, entre a pessoa física que nada vende e a sociedade de fato. Mas, para fins de aplicação do CDC, essa pessoa física é fornecedora. E, também, será fornecedora a pessoa física que presta serviços mesmo sem ser caracterizada como profissional liberal, tal como o eletricista, o encanador etc. Finalmente, apresente-se desde já uma distinção feita pelo CDC, mas que diz respeito ao conceito de fornecedor. Este é gênero do qual o fabricante, o produtor, o construtor, o importador e o comerciante são espécies. Quando a lei consumerista quer que todos sejam obrigados e/ou responsabilizados, usa o termo "fornecedor". Quando quer designar algum ente específico, utiliza-se de termo designativo particular: fabricante, produtor, comerciante etc. *** Continua na próxima semana. _________ 1 É verdade que há "camelôs" constituídos em pessoas jurídicas. Nesse caso, obviamente, enquadram-se como fornecedores regulares do tipo pessoa jurídica.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Hoje cuido do conceito de fornecedor. O conceito de fornecedor está definido no caput do art. 3º do CDC.1 A leitura pura e simples desse caput já é capaz de nos dar um panorama da extensão das pessoas enumeradas como fornecedoras. Na realidade são todas pessoas capazes, físicas ou jurídicas, além dos entes desprovidos de personalidade. Não há exclusão alguma do tipo de pessoa jurídica, já que o CDC é genérico e busca atingir todo e qualquer modelo. São fornecedores as pessoas jurídicas públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, com sede ou não no país, as sociedades anônimas, as por quotas de responsabilidade limitada, as sociedades civis, com ou sem fins lucrativos, as fundações, as sociedades de economia mista, as empresas públicas, as autarquias, os órgãos da Administração direta etc. O uso do termo "atividade" está ligado a seu sentido tradicional. Têm-se, então, atividade típica e atividade eventual. Assim, o comerciante estabelecido regularmente exerce a atividade típica descrita em seu estatuto. Mas é possível que o mesmo comerciante exerça uma atividade atípica, quando, por exemplo, age, de fato, em situação diversa da prevista, o que pode dar-se de maneira rotineira ou eventual. E a pessoa física vai exercer atividade atípica ou eventual quando praticar atos do comércio ou indústria. Por exemplo, uma estudante que, para pagar seus estudos, compra e depois revende artigos de vestuário entre suas colegas e seus colegas, exerce atividade que a põe como fornecedora para o CDC. Se essa compra e venda for apenas em determinada e específica época, por exemplo, no período de festas natalinas, ainda assim ela é fornecedora, porque, apesar de eventual, trata-se de atividade comercial. É importante centrar a atenção no conceito de atividade, porque, de um lado, ele designará se num dos polos da relação jurídica está o fornecedor, com o que se poderá definir se há ou não relação de consumo (para tanto, terá de existir no outro polo o consumidor). E isto porque será possível que a relação de venda de um produto, ainda que feita por um comerciante, não implique estar-se diante de uma relação de consumo regulada pelo CDC. Por exemplo, se uma loja de roupas vende seu computador usado para poder adquirir um novo, ainda que se possa descobrir no comprador um "destinatário final", não se tem relação de consumo, porque essa loja não é considerada fornecedora. A simples venda de ativos sem caráter de atividade regular ou eventual não transforma a relação firmada em relação jurídica de consumo. Será um ato jurídico regulado pela legislação comum civil ou comercial. O mesmo se dá quando a pessoa física vende seu automóvel usado. Independentemente de quem o adquira, não se pode falar em relação de consumo, pois falta a figura do fornecedor. No exemplo a situação é daquelas reguladas pelo direito comum civil, inclusive quanto a garantias, vícios etc. É por isso que a definição da relação de consumo é fundamental para se descobrir se é aplicável ou não o CDC. Agora, é evidente que, conforme dissemos, basta que a venda tenha como base a atividade regular ou eventual para que surja a relação de consumo. Usando os mesmos exemplos, define-se como relação de consumo a venda do computador pela loja de roupas, se tal estabelecimento imprime uma regularidade a esse tipo de venda, visando a obtenção de lucro. Da mesma maneira, haverá relação de consumo se a pessoa física compra automóveis para revender, fazendo disso uma atividade regular. Claro que, em casos assim, em eventual discussão judicial provocada pelo consumidor, haverá problemas de prova da atividade regular (ou eventual). Mas essa é uma questão processual, que não desfigura a definição do direito material ora tratado. *** Continua na próxima semana. __________ 1 "Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços."
Ainda avalio a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Hoje cuido da coletividade de pessoas, das vítimas do evento danoso e das pessoas expostas às práticas comerciais. Continuando nossa análise da definição de consumidor, temos agora de avaliar o parágrafo único do art. 2º e depois os arts. 17 e 29, todos do Código de Defesa do Consumidor (CDC). O parágrafo único do art. 2º amplia a definição, dada no caput, de consumidor que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, nos moldes já apresentados, equiparando a ele a coletividade de pessoas, mesmo que não possam ser identificadas e desde que tenham, de alguma maneira, participado da relação de consumo. A norma do parágrafo único do art. 2º pretende garantir a coletividade de pessoas que possam ser, de alguma maneira, afetadas pela relação de consumo. Na realidade, a hipótese dessa norma diz respeito apenas ao atingimento da coletividade, indeterminável ou não, mas sem sofrer danos, já que neste caso o art. 17 - examinado na sequência - enquadra a questão. Dessa maneira, a norma do parágrafo único permite o enquadramento de universalidade ou conjunto de pessoas, mesmo que não se constituam em pessoa jurídica. Por exemplo, a massa falida pode figurar na relação de consumo como consumidora ao adquirir produtos, ou, então, o condomínio, quando contrata serviços. É essa regra que dá legitimidade para a propositura de ações coletivas para a defesa dos direitos coletivos e difusos, previstas no Título III da lei consumerista (arts. 81 a 107), e particularmente pela definição de direitos coletivos (inciso II do parágrafo único do art. 81) e direitos difusos (inciso III do parágrafo único do art. 81) e na apresentação das pessoas legitimadas para proporem as ações (art. 82). Com isso, pode-se dizer que a completa designação do amplo sentido da definição de consumidor começa no caput do art. 2º, passa por seu parágrafo único, segue até o 17 e termina no 29. É o que ainda veremos. Com efeito, a dicção do art. 17 deixa patente a equiparação do consumidor às vítimas do acidente de consumo que, mesmo não tendo sido ainda consumidoras diretas, foram atingidas pelo evento danoso. Exatamente a seção na qual o art. 17 está inserido é a que cuida da responsabilidade civil objetiva, pelo fato do produto ou do serviço causador do acidente de consumo. Assim, por exemplo, na queda de um avião, todos os passageiros (consumidores do serviço) são atingidos pelo evento danoso (acidente de consumo) originado no fato do serviço da prestação do transporte aéreo. Se o avião cai em área residencial, atingindo a integridade física ou o patrimônio de outras pessoas (que não tinham participado da relação de consumo), estas são, então, equiparadas ao consumidor, recebendo todas as garantias legais instituídas no CDC. No capítulo V do CDC, que trata das práticas comerciais, o legislador inseriu o art. 29, para equiparar ao consumidor todas as pessoas, mesmo as que não puderem ser identificadas, que estão expostas às práticas comerciais. A leitura adequada do art. 29 permite, inclusive, uma afirmação muito simples e clara: não se trata de equiparação eventual a consumidor das pessoas que foram expostas às práticas. É mais do que isso. O que a lei diz é que, uma vez existindo qualquer prática comercial, toda a coletividade de pessoas já está exposta a ela, ainda que em nenhum momento se possa identificar um único consumidor real que pretenda insurgir-se contra tal prática. Dessa forma, por exemplo, se um fornecedor faz publicidade enganosa e se ninguém jamais reclama concretamente contra ela, ainda assim isso não significa que o anúncio não seja enganoso, nem que não se possa - por exemplo, o Ministério Público - ir contra ele. O órgão de defesa do consumidor, agindo com base na legitimidade conferida pelos arts. 81 e s. do CDC, pode tomar toda e qualquer medida judicial que entender necessária para impedir a continuidade da transmissão do anúncio enganoso, para punir o anunciante etc., independentemente do aparecimento real de um consumidor contrariado. Trata-se, portanto, praticamente de uma espécie de conceito difuso de consumidor, tendo em vista que desde já e desde sempre todas as pessoas são consumidoras por estarem potencialmente expostas a toda e qualquer prática comercial. É, como dissemos de início, o aspecto mais abstrato da definição, que, partindo do elemento mais concreto - daquele que adquire ou utiliza o produto ou o serviço como destinatário final -, acaba fixando de forma objetiva que se respeite o consumidor potencial. Daí ter-se de dizer que o consumidor protegido pela norma do art. 29 é uma potencialidade. Nem sequer precisa existir. *** Continua na próxima semana.