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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Hoje continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda com o conceito de consumidor. Para deixar clara a questão que envolve o conceito, vou apresentar um caso exemplar que, penso, bem elucida os vários pontos envolvidos.  Suponhamos que um professor esteja dirigindo-se ao prédio de uma faculdade para dar aula no curso de especialização em Direito do Consumidor. Digamos que ao chegar ao prédio ele constate que esqueceu de levar caneta. Como sempre, ele usa caneta durante as exposições para fazer marcações e, na parte do seminário, para anotar as questões dos alunos. Portanto, antes de ir para a sala, deve adquirir uma caneta. Vamos supor, então, que, ao chegar à papelaria, ele se encontre com um aluno do mesmo curso que também estava em busca de uma caneta. Este por outro motivo: Para anotar a aula. E que na papelaria haja para vender apenas um estojo com duas canetas esferográficas iguais. Constatando o problema, o professor e o aluno resolvem comprar o estojo e dividir o preço ao meio: 50% para cada um; uma caneta para cada um. Note-se que as tais duas canetas foram fabricadas no mesmo dia, hora e minuto, na linha de montagem do mesmo fabricante, tendo a mesma classificação seriada: São idênticas. Vamos supor também que ambas, exatamente por serem idênticas, produzidas na mesma série, tenham as mesmas características e, no caso, o mesmo vício de fabricação: Se ficarem na posição vertical por mais de dez minutos a tinta vai sair pelo bico. Bem. O professor e o aluno compraram as canetas, cada um pegou a sua e foram juntos para a sala. Veja-se claramente: Até aquele momento, ali na papelaria, eram, o professor e o aluno, dois consumidores típicos. Porém, ao ingressarem na sala, toma o professor a posição atrás da mesa e o aluno se acomoda numa das cadeiras da sala. No momento em que ingressaram na sala, a caneta do professor tornou-se bem de produção; a do aluno, bem de consumo. Na verdade, desde o início a caneta do professor era bem de produção (foi para isso que ele a adquiriu) e a do aluno, de consumo. O professor aparece lá como prestador do serviço, dando aula, e o aluno, como consumidor-aluno, assistindo. Digamos que no intervalo o professor coloque a caneta no bolso de seu paletó e o aluno, faz o mesmo com sua caneta no seu paletó. Dez minutos depois as canetas vazam, manchando e inutilizando os paletós de ambos. De onde se extrairia o princípio lógico ou jurídico a garantir ao aluno como consumidor o direito de pleitear indenização, com base na responsabilidade civil objetiva do fabricante (art. 12 do CDC), e ao professor apenas o direito de pleitear indenização, mas fundado nas normas do Código Civil, que não dá a mesma proteção? Isso não só seria ilógico como feriria o princípio de isonomia constitucional; além do mais, não está de acordo com o sistema do CDC. Na realidade, o exemplo singelo que aqui relatamos tem a virtude de elucidar a questão: A lei 8.078 regula o polo de consumo, isto é, pretende controlar os produtos e serviços oferecidos, postos à disposição, distribuídos e vendidos no mercado de consumo e que foram produzidos para serem vendidos, independentemente do uso que se vá deles fazer. Quer se utilize o produto (ou o serviço) para fins de consumo (a caneta do aluno), quer para fins de produção (a caneta idêntica do professor), a relação estabelecida na compra foi de consumo, aplicando-se integralmente ao caso as regras do CDC. Dessa maneira, repita-se, toda vez que o produto e/ou o serviço puderem ser utilizados como bem de consumo, incide na relação as regras do CDC.  *** Continua na próxima semana.
Hoje continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda com o conceito de consumidor.  No artigo anterior apontávamos o problema do exemplo que envolvia uma usina produtora de álcool e uma montadora de veículos.  Quanto a montadora de veículos, apontamos o prédio utilizado para a montagem do veículo. Perguntamos: nesse caso, a montadora é "destinatária final" do prédio e, portanto, consumidora?  E a situação da usina parece diversa porque, diferentemente da montadora, que envia as peças com o automóvel para o consumidor, na produção do álcool, este vai para o consumidor, mas a usina fica.  Mas não serão simplesmente a usina e o prédio "bens de produção", e, assim, não se pode querer aplicar ali a lei consumerista?  Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinaremos, detalhadamente, as situações envolvidas.  Um dos problemas está em que o CDC não fala em bens de produção ou de consumo. Limitou-se a dizer "consumidor" como "destinatário final" e a definir o fornecedor (art. 3º). Há meios, porém, de solucionar a pendência.  Antes de tentar responder, analisemos um outro exemplo, o de uma pessoa que pretende constituir-se como despachante. Para isso vai a uma loja e compra um laptop, que utilizará para o exercício de seu trabalho. É o despachante "destinatário final" do laptop e, portanto, consumidor?  Poderíamos responder no caso do álcool que o usineiro é "destinatário final" da usina e assim aquela relação estaria protegida pelo Código. Da mesma maneira, a montadora seria "consumidora" do prédio utilizado para montagem de veículos. E, assim, resolvido estaria o caso do despachante, que é "destinatário final" do laptop.  Contudo, todos esses bens não são típicos "bens de produção"? O laptop pode ser e pode não ser. Os outros dois são.  Seria adequado dizer, então, que o Código regula aquelas três situações? Sem dúvida que não. Em casos nos quais se negociam e adquirem bens típicos de produção, o CDC não pode ser aplicado por dois motivos óbvios: primeiro, porque não está dentro de seus princípios ou finalidades; segundo, porque, dado o alto grau de protecionismo e restrições para contratar e garantir, o CDC seria um entrave nas relações comerciais desse tipo, e que muitas vezes são de grande porte. A resposta para o caso da usina e da montadora é, portanto, a aplicação do direito comum:  Acontece que essa resposta não resolve o problema do despachante. Quer dizer, então, que o laptop é um bem de produção, e quando ele tiver vício o despachante não poderá utilizar-se da Lei n. 8.078/90? Ora, que diferença existe entre o despachante pessoa jurídica, que utiliza o laptop para preencher guias, e o despachante enquanto pessoa física, que leva o laptop para casa e escreve uma carta de amor?  A solução não pode ser a mesma que a da usina e a da montadora. Tem de ser outra.  O CDC ajuda em parte, pois o despachante é "destinatário final", mas o bem é de produção. Porém, para encontrarmos uma solução, precisamos utilizar certos princípios do Código e transferi-los para a noção de bens - aliás, conforme fizemos para falar de "bens de produção", excluindo-os de sua abrangência.  O Código de Defesa do Consumidor regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira.  Aí está o caminho indicativo para a solução. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o Código, independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros.  É claro o que estamos falando: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a produção de seu serviço de despachante.  Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis.  Assim, podemos responder que, como o despachante adquiriu o laptop produzido e entregue ao mercado como um típico bem de consumo, a relação está protegida pelo CDC.  ***  Continua na próxima semana.
Hoje continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda com o conceito de consumidor.  No artigo anterior apontávamos o problema do uso do termo "destinatário final", que está relacionado a um caso específico: o daquela pessoa que adquire produto ou serviço como destinatária final, mas que usará tal bem como típico de produção. Por exemplo, o usineiro que compra uma usina para a produção de álcool. Não resta dúvida de que ele será destinatário final do produto (a usina); contudo, pode ser considerado consumidor?  E a empresa de contabilidade que adquire num grande supermercado um microcomputador para desenvolver suas atividades, é considerada consumidora?  Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinaremos, detalhadamente, cada situação.  Não se duvida do fato de que, quando uma pessoa adquire um automóvel numa concessionária, estabelece-se uma típica relação regulada pelo CDC. De um lado, o consumidor; de outro, o fornecedor:  Em contrapartida, é evidente que não há relação protegida pelo Código quando a concessionária adquire o automóvel da montadora como intermediária para posterior venda ao consumidor.  Nos dois quadros acima as situações jurídicas são simples e fáceis de serem entendidas. Numa ponta da relação está o consumidor (relação de consumo). Na outra estão fornecedores (relação de intermediação/distribuição/comercialização/produção). O Código de Defesa do Consumidor regula o primeiro caso; o direito comum, o outro.  Mas o que acontece se a concessionária se utiliza do veículo como "destinatária final", por exemplo, entregando-o para seu diretor usar?  A resposta a essa questão é fácil: para aquele veículo a concessionária não aparece como fornecedora, mas como consumidora, e a relação está tipicamente protegida pelo Código (o que será confirmado pela exposição que se segue).  Todavia, existem outras situações mais complexas.  Quando, por exemplo, a montadora adquire peças para montar o veículo, trata-se de situação na qual as regras aplicadas são as do direito comum. São típicas relações entre fornecedores partícipes do ciclo de produção, desde a obtenção dos insumos até a comercialização do produto final no mercado para o consumidor:  A visualização do quadro é simples. Estamos diante de situações cíclicas da produção, em que num dos polos aparece alguém adquirindo o produto como "destinatário final".  Porém, vamos recolocar o exemplo da usina: um fazendeiro resolve transformar-se em usineiro e para tanto encomenda uma usina para produção de álcool. Seria esse usineiro "destinatário final" da usina? Denotaria essa relação uma típica situação protegida pelo Código de Defesa do Consumidor? Examinemos o gráfico:  A situação parece diversa da anterior, porque, diferentemente da montadora, que envia as peças com o automóvel para o consumidor, na produção do álcool, este vai para o consumidor, mas a usina fica.  Contudo, há coisas na montadora que também não vão para o consumidor. Por exemplo, o prédio utilizado para a montagem do veículo. Nesse caso, a montadora é "destinatária final" do prédio e, portanto, consumidora?  Mas não serão simplesmente a usina e o prédio "bens de produção", e, assim, não se pode querer aplicar ali a lei consumerista?  Responderemos à essas questões no próximo artigo. ***  Continua na próxima semana.
Hoje examino a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), especificamente o conceito de consumidor.  Com efeito, o CDC incide em toda relação que puder ser caracterizada como de consumo. Insta, portanto, que estabeleçamos em que hipóteses a relação jurídica pode ser assim definida.  Conforme se verá na sequência, haverá relação jurídica de consumo sempre que se puder identificar num dos polos da relação o consumidor, no outro, o fornecedor, ambos transacionando produtos e serviços.  Vejamos, então, primeiramente, como é que a lei 8.078/90 trata o consumidor.  O CDC resolveu definir consumidor. Sabe-se que a opção do legislador por definir os conceitos em vez de deixar tal tarefa à doutrina ou à jurisprudência pode gerar problemas na interpretação, especialmente porque corre o risco de delimitar o sentido do termo. No caso da lei 8.078/90, as definições foram bem-elaboradas1. É verdade que na hipótese do conceito de "consumidor" restam alguns obstáculos a serem superados, para cuja suplantação vamos propor alternativas.  Apesar de algumas dificuldades, a definição de consumidor tem a grande virtude de colocar claramente o sentido querido na maior parte dos casos.  De qualquer maneira, antes de buscarmos a delimitação do conceito, é necessário dizer que ele está basicamente exposto no art. 2º, caput e seu parágrafo único2, sendo completado por outros dois artigos. São eles os arts. 17 e 293.  Para bem elucidar a definição de consumidor, parece-nos mais adequado começar a interpretar o caput do art. 2º, que é exatamente o que apresenta a maior oportunidade de problemas, especialmente pelo uso do termo "destinatário final".  Temos dito que a definição de consumidor do CDC começa no individual, mais concreto (art. 2º, caput), e termina no geral, mais abstrato (art. 29). Isto porque, logicamente falando, o caput do art. 2º aponta para aquele consumidor real que adquire concretamente um produto ou um serviço, e o art. 29 indica o consumidor do tipo ideal, um ente abstrato, uma espécie de conceito difuso, na medida em que a norma fala da potencialidade, do consumidor que presumivelmente exista, ainda que possa não ser determinado.  Entre um e outro, estão as outras formas de equiparação.  Comecemos, então, a tratar do caput do art. 2º.  A mera interpretação gramatical dos termos da cabeça do artigo não é capaz de resolver os problemas que surgem. Todavia, devemos lançar mão dela, porquanto permitirá a explicitação da maior parte das questões.  Diga-se, de início, o que decorre da obviedade da leitura. Consumidor é a pessoa física, a pessoa natural e, também, a pessoa jurídica. Quanto a esta última, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação, fundação etc.  A lei emprega o verbo "adquirir", que tem de ser interpretado em seu sentido mais lato, de obter, seja a título oneroso ou gratuito.  Porém, como se percebe, não se trata apenas de adquirir, mas também de utilizar o produto ou o serviço, ainda quando quem o utiliza não o tenha adquirido. Isto é, a norma define como consumidor tanto quem efetivamente adquire (obtém) o produto ou o serviço como aquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o consome.  Assim, por exemplo, se uma pessoa compra cerveja para oferecer aos amigos numa festa, todos aqueles que a tomarem serão considerados consumidores4.  A norma fala em "destinatário final". O uso desse termo facilitará, de um lado, a identificação da figura do consumidor, mas, por outro, trará um problema que tentaremos resolver.  Evidentemente, se alguém adquire produto não como destinatário final, mas como intermediário do ciclo de produção, não será considerado consumidor. Assim, por exemplo, se uma pessoa - física ou jurídica - adquire calças para revendê-las, a relação jurídica dessa transação não estará sob a égide da lei 8.078/90.  O problema do uso do termo "destinatário final" está relacionado a um caso específico: o daquela pessoa que adquire produto ou serviço como destinatária final, mas que usará tal bem como típico de produção. Por exemplo, o usineiro que compra uma usina para a produção de álcool. Não resta dúvida de que ele será destinatário final do produto (a usina); contudo, pode ser considerado consumidor?  E a empresa de contabilidade que adquire num grande supermercado um microcomputador para desenvolver suas atividades, é considerada consumidora?  Responderemos à essas questões no próximo artigo. ***  Continua na próxima semana. __________ 1 Há definições de fornecedor, produto, serviço, contrato de adesão etc. 2 Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo." 3 "Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento." "Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas." 4 Bem como os que, não as tendo tomado, participarem de um acidente de consumo. Por exemplo, a garrafa de cerveja explode, atingindo os convivas. Comentaremos esse aspecto posteriormente.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a terceira parte da avaliação do caráter principiológico do CDC - Código de Defesa do Consumidor e, também, dos pressupostos para interpretação de seu texto. No artigo anterior, terminamos lembrando que a lei 8.078/90 tinha de vir, pois já estava atrasada. O Código Civil de 1916, bem como as demais normas do regime privatista, já não davam conta de lidar com as situações tipicamente de massa. É verdade que já dispúnhamos de algumas normas tratando da questão da economia popular1, bem como, no campo adjetivo, tínhamos a lei da ação civil pública, que é de 27/7/85 (lei 7.347). Contudo, era necessário que tivéssemos uma lei capaz de dar conta das relações jurídicas materiais que haviam surgido e estavam em pleno vigor, porém sem um suporte legal que lhes explicitasse o conteúdo e que impedisse os abusos que vinham sendo praticados. Já dissemos, e é importante frisar, o regime privatista do Código Civil é inoperante em questões ligadas à sociedade de massa, como da mesma forma o é o sistema das ações judiciais individuais do CPC. Assim, consigne-se que, para interpretar adequadamente o CDC, é preciso ter em mente que as relações jurídicas estabelecidas são atreladas ao sistema de produção massificado, o que faz com que se deva privilegiar o coletivo e o difuso, bem como que se leve em consideração que as relações jurídicas são fixadas de antemão e unilateralmente por uma das partes - o fornecedor -, vinculando de uma só vez milhares de consumidores. Há um claro rompimento com o direito privado tradicional. O Código Civil de 2002 revela essa tendência ao atenuar o direito privado, que deixa de ser puramente individualista para considerar que em certas relações jurídicas as partes não estão em pé de igualdade, criando mecanismos de proteção aos direitos destas, como as hipóteses de responsabilidade objetiva, por exemplo. Conforme o art. 927, parágrafo único, "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". É exatamente a hipótese de responsabilidade objetiva que têm aqueles que desenvolvem atividade de risco. O novo Código Civil, portanto, incorporou no seu regramento um dos aspectos marcantes das sociedades capitalistas contemporâneas, o de que o sistema de produção e a consequente exploração das reservas naturais, a criação, a produção e a distribuição de produtos e serviços com seus reflexos no modo de vida social, na alimentação, na saúde, na moradia, no transporte etc., implicam riscos à integridade das pessoas. E esse risco se põe independentemente da ação do produtor, vale dizer, há risco - e eventual dano - mesmo que não haja culpa. O modelo é, assim, o mesmo da lei consumerista. E, com efeito, a partir de 11/3/91, com a entrada em vigor da lei consumerista, não se cogita mais em pensar as relações de consumo (as existentes entre fornecedores e consumidores) como reguladas por outra lei. Conforme exposto, o CDC compõe um sistema autônomo dentro do quadro constitucional. Dir-se-á um subsistema próprio inserido no sistema constitucional brasileiro. Dessa forma, de um lado as regras do CDC estão logicamente submetidas aos parâmetros normativos da Carta Magna, e, de outro, todas as demais normas do sistema somente terão incidência nas relações de consumo se e quando houver lacuna no sistema consumerista. Caso não haja, não há por que nem como pensar em aplicar outra lei diversa da 8.078. O CDC, como sistema próprio que é, comporta, assim, que o intérprete lance mão de seus instrumentos de trabalho a partir e tendo em vista os princípios e regras que estão nele estabelecidos e que interagem entre si. O uso da técnica de interpretação lógico-sistemática é tão fundamental para o entendimento das normas do CDC como a de base teleológica, que permitirá entender seus princípios e finalidades. Assim, como a lei 8.078 é norma de ordem pública e de interesse social, geral e principiológica, ela é prevalente sobre todas as demais normas anteriores, ainda que especiais, que com ela colidirem. As normas gerais principiológicas têm prevalência sobre as normas gerais e especiais anteriores. Dito de outro modo: A norma jurídica principiológica, como é o caso do CDC, atinge para afastar toda e qualquer norma jurídica da mesma hierarquia que com ela conflite. A outra não é revogada, mas é deixada de lado da incidência do caso concreto, sendo substituída pelos princípios e regras da lei consumerista. __________ 1 Por exemplo, a lei n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951, que regula crimes contra a economia popular; a lei n. 4.137, de 10 de setembro de 1962, que trata da repressão ao abuso do poder econômico; a lei Delegada n. 4, de 26 de setembro de 1962, que regulamenta a intervenção no domínio econômico para assegurar a distribuição de produtos necessários ao povo etc.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a segunda parte da avaliação do caráter principiológico do CDC e, também, dos pressupostos para interpretação de seu texto. Lembro que a Constituição Federal estabelece que o regime econômico brasileiro é capitalista, mas limitado (CF, art. 1º, IV, c/c arts. 170 e s.): São fundamentos da república os valores sociais do trabalho e os valores sociais da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV), e a defesa do consumidor é princípio fundamental da ordem econômica (CF, art. 170, V). Ora, o CDC nada mais fez do que concretizar numa norma infraconstitucional esses princípios e garantias constitucionais. Assim está previsto expressamente no seu art. 1º. O respeito à dignidade, à saúde, à segurança, à proteção dos interesses econômicos, e à melhoria de qualidade de vida está, também, expressamente previsto no seu art. 4º, caput. A característica de vulnerabilidade do consumidor prevista no inciso I do art. 4º decorre diretamente da aplicação do princípio da igualdade do texto magno. O CDC é categórico no que respeita à prevenção e reparação dos danos patrimoniais e morais (art. 6º, VI), e o acesso à justiça e aos órgãos administrativos com vistas à prevenção e reparação de danos é outra regra manifesta (art. 6º, VII). A adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral é, da mesma forma, norma clara na lei (art. 6º, X) etc. Logo, fica patente o caráter principiológico da lei 8.078/90. Agora, avalio alguns outros pontos que são fundamentais para a compreensão das regras instituídas pela lei consumerista. Lembre-se que as bases jurídicas existentes no século XIX estão ligadas ao liberalismo econômico e às grandes codificações, que se iniciam com o Código de Napoleão de 1804. Os pressupostos do pensamento liberal aparecem no sistema jurídico codificado, como, por exemplo, foi estabelecido em nosso Código Civil de 1916 (e que entrou em vigor em 1917).i Destaque-se, dentre os vários pontos de influência do liberalismo, a chamada autonomia da vontade, a liberdade de contratar e fixar cláusulas, o pacta sunt servanda etc. Nessa mesma época, ou seja, no começo do século XX, instaura-se definitivamente um modelo de produção, que terá seu auge nos dias atuais. Tal modelo é o da massificação: Fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, no intuito de diminuição do custo da produção, atingimento de maiores parcelas de população com o aumento da oferta etc. Esse sistema de produção pressupõe a homogeneização dos produtos e serviços e a estandartização das relações jurídicas que são necessárias para a transação desses bens. A partir da Segunda Guerra Mundial o projeto de produção capitalista passou a crescer numa enorme velocidade, e, com o advento da tecnologia de ponta, dos sistemas de automação, da robótica, da telefonia por satélite, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação etc., a velocidade tomou um grau jamais imaginado até meados do século XX. A partir de 1989, com a queda dos regimes não capitalistas, o modelo de globalização, que já se havia iniciado, praticamente completou seu ciclo, atingindo quase todo o globo terrestre.  O Direito não podia ficar à margem desse processo e, em alguma medida, seguiu a tendência da produção em série, mormente de especialização (outra característica desta nossa sociedade). Mas, de início, a alteração observada foi a do lado do fornecedor, que passou a criar contratos-padrão e formulários (que depois vieram a ganhar o nome de contratos de adesão) de forma unilateral e a impingi-los aos consumidores. A lei 8.078/90 tinha de vir, pois já estava atrasada. O Código Civil de 1916, bem como as demais normas do regime privatista, já não davam conta de lidar com as situações tipicamente de massa. *** Continua na próxima semana. _________ i No novo Código Civil esses pressupostos do pensamento liberal, embora ainda presentes, sofreram mitigação pela inserção de outras de cunho social e ético. Assim, por exemplo, está assegurada a função social do contrato (art. 421), estabelecendo-se a boa-fé objetiva como o modelo de conduta (art. 422) etc.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje mostrando o caráter principiológico do Código de Defesa do Consumidor (CDC).  Antes de examinar as normas estabelecidas na lei 8.078/90 (CDC) é necessário avaliar  uma questão preliminar, que deve nortear o trabalho de todos aqueles que pretendem compreendê-las.  Chamo a atenção para um fato conhecido: o CDC tem vida própria; foi criado como subsistema autônomo e vigente dentro do sistema constitucional brasileiro.  Além disso, os vários princípios constitucionais que o embasam são elementos vitais ao entendimento de seus ditames.  Não é possível interpretar adequadamente a legislação consumerista se não se tiver em mente esse fato de que ela comporta um subsistema no ordenamento jurídico, que prevalece sobre os demais - exceto, claro, o próprio sistema da Constituição, como de resto qualquer norma jurídica de hierarquia inferior -, sendo aplicável às outras normas de forma supletiva e complementar1.  Além disso, a edição do Código de Defesa do Consumidor inaugurou um novo modelo jurídico dentro do Sistema Constitucional Brasileiro.  Em primeiro lugar, a lei 8.078/90 é Código por determinação constitucional (conforme art. 48 do ADCT/CF), o que mostra, desde logo, o elemento de ligação entre ele e a Carta Magna.  O CDC é uma lei principiológica, modelo até então inexistente no Sistema Jurídico Nacional.  Como lei principiológica entende-se aquela que ingressa no sistema jurídico, fazendo, digamos assim, um corte horizontal, indo, no caso do CDC, atingir toda e qualquer relação jurídica que possa ser caracterizada como de consumo e que esteja também regrada por outra norma jurídica infraconstitucional.  Assim, por exemplo, um contrato de seguro de automóvel continua regulado pelo Código Civil e pelas demais normas editadas pelos órgãos governamentais que regulamentem o setor (Susep, Instituto de Resseguros etc.), porém estão tangenciados por todos os princípios e regras da lei 8.078/90, de tal modo que, naquilo que com eles colidirem, perdem eficácia por tornarem-se nulos de pleno direito.  E mais e principalmente: o caráter principiológico específico do CDC é apenas e tão somente um momento de concretização dos princípios e garantias constitucionais vigentes desde 5 de outubro de 1988 como cláusulas pétreas, não podendo, pois, ser alterados.  Com efeito, o que a lei consumerista faz é tornar explícitos, para as relações de consumo, os comandos constitucionais. Dentre estes destacam-se os Princípios Fundamentais da República, que norteiam todo o regime constitucional e os direitos e garantias fundamentais.  Assim, à frente de todos está o superprincípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), como especial luz a imantar todos os demais princípios e normas constitucionais e apresentando-se a estes como limite intransponível e, claro, a toda e qualquer norma de hierarquia inferior.  A seguir, no texto constitucional estão os demais princípios e garantias fundamentais que são reconhecidos no CDC e que aqui relembramos: o princípio da igualdade (CF, art. 5º, caput e inciso I); a garantia da imagem, da honra, da privacidade, da intimidade, da propriedade e da indenização por violação a tais direitos de modo material e também por dano moral (CF, art. 5º, V, c/c, os incisos X e XXII); ligado à dignidade e demais garantias está o piso vital mínimo insculpido como o direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à maternidade etc. (CF, art. 6º); e unidos a todos esses direitos está o da prestação de serviços públicos essenciais com eficiência, publicidade, impessoalidade e moralidade (CF, art. 37, caput). Não se pode olvidar que é também cláusula pétrea, como dever absoluto para o Estado, a defesa do consumidor (CF, art. 5º, XXXII).  ***  Continua na próxima semana. __________ 1 A designação do alcance específico da lei 8.078/90 se dá pela explicitação do sentido de relação de consumo, fixada no estabelecimento da definição do conceito de consumidor, de fornecedor, de produto e de serviço.
quinta-feira, 2 de maio de 2024

Aspectos básicos da publicidade

Continuo a avaliação dos direitos básicos dos consumidores. Hoje cuidando de aspectos importantes sobre a publicidade.  Com efeito, a publicidade como meio de aproximação do produto e do serviço ao consumidor, tem guarida constitucional, ingressando como princípio capaz de orientar a conduta do publicitário no que diz respeito aos limites da possibilidade de utilização desse instrumento.  É que todos os demais princípios constitucionais, em especial os aqui retratados anteriormente, devem ser respeitados, além, é claro, dos próprios limites impostos pelo princípio da publicidade da Carta Magna.  Mas, antes de prosseguirmos, é importante elucidar um problema muito comum do uso da linguagem sobre o assunto. Costuma-se usar o vocábulo "publicidade", algumas vezes, como espécie de "propaganda"; noutras, a palavra "propaganda" é reservada para a ação política e religiosa, enquanto "publicidade" é utilizada para a atividade comercial etc. Mas não há razões para a distinção.  Tomado pela etiologia, vê-se que o termo "propaganda" tem origem no latim "propaganda, do gerundivo de 'propagare', 'coisas que devem ser propagadas'"1. Donde afirmar-se que a palavra comporta o sentido de propagação de princípios, ideias, conhecimentos ou teorias.  O vocábulo "publicidade", por sua vez, aponta para a qualidade daquilo que é público ou do que é feito em público2.  Ambos os termos, portanto, seriam bastante adequados para expressar o sentido buscado pelo anunciante de produto ou serviço.  O mais importante, porém, é o fato de que a própria Constituição Federal não faz a distinção. Assim, por exemplo, ela fala em "propaganda" (art. 220, § 3º, II), "propaganda comercial" (art. 22, XXIX, e § 4º do art. 220), "publicidade dos atos processuais" (art. 5º, LX), "publicidade" (art. 37, caput e § 1º).  Poder-se-ia objetar que o tipo da "propaganda comercial" é aquele voltado para o meio utilizado pelos empreendedores para estabelecer contato com os consumidores, uma vez que quando fala em propaganda e propaganda comercial a Carta Magna está-se referindo a bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e agrotóxicos (§ 4º do art. 220) ou a produtos, "práticas e serviços" nocivos à saúde e ao meio ambiente (inciso II do § 3º do art. 220).  Acontece que os serviços públicos são também em parte dirigidos ao consumidor e a todos os indivíduos, e ao tratar desses serviços a norma constitucional usa o termo "publicidade" (§ 1º do art. 37).  Logo, os dois vocábulos podem ser usados como sinônimos3.  Continuando, anoto que não se deve confundir a publicidade com a produção, ainda que aquela represente a "produção" realizada pelo publicitário, agência etc., pois sua razão de existir funda-se em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender.  Dessa maneira, é de ver que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção.  Já tivemos oportunidade de verificar que a exploração de qualquer atividade tem fundamento na Constituição Federal, que estabelece limites para harmonizá-la com as demais garantias fundamentais. E se, então, a própria exploração e produção primária são limitadas, por mais força de razão pode e deve haver controle da atividade publicitária, que, como se disse, é instrumental, ligada àquela de origem, uma vez que serve como meio de fala dos produtos e serviços: a publicidade anuncia, descreve, oferece, divulga, propaga etc.  Assim, tanto a atividade de exploração primária do mercado, visando a produção, tem limites estabelecidos na Carta Magna quanto, naturalmente, a publicidade que dela fala (da produção) é restringida.  E há mais. A Constituição Federal cuidou da publicidade do serviço público no art. 37, que regula, entre outros, o princípio da moralidade (§ 1º desse art. 37). E tratou da publicidade de produtos, práticas e serviços no capítulo da comunicação social (inciso II do § 3º do art. 220), guardando regra especial para anúncios de bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias (§ 4º do art. 220).  Pois bem. O inciso II do § 3º do art. 220 referido estabelece que se deve proteger a pessoa e a família contra a publicidade nociva à saúde e ao meio ambiente. A pessoa e a família, além de outras garantias, têm assegurado o respeito a valores éticos (inciso IV do art. 221).  Assim, tanto no art. 37 quanto no capítulo da comunicação social, a Carta Magna protege a ética. E para fins de publicidade em matéria de relações de consumo, o valor ético fundamental é o da verdade.  O anúncio publicitário não pode faltar com a verdade daquilo que anuncia, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para, de maneira confusa ou ambígua, iludir o destinatário do anúncio. __________ 1 Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2 Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3 Do ponto de vista das normas infraconstitucionais somente o uso dos termos como sinônimos resolve a confusão. É que a situação nessa esfera é pior: A lei 8.078 fala em "publicidade" (arts. 6º, IV, 30, 35, 36, 37, Seção III, arts. 67, 68 e 69) e "propaganda" (especificamente "contrapropaganda": arts. 56, XII, e 60, caput e § 1º). A lei 4.137, de 10 de setembro de 1962, que regulou a repressão ao abuso do poder econômico, fala em "propaganda publicitária" (art. 2º, V, a). O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, criado pelos experts no assunto, usa os dois termos: "publicidade" (art. 5º, 7º etc.); "publicidade comercial" (art. 8º, 10 etc.); "propaganda política" (art. 11); "publicidade governamental" (art. 12) etc. E a Lei n. 4.680, de 18 de junho de 1965, que regulamenta a profissão de publicitário e agenciador de propaganda, dispõe: "compreende-se por propaganda qualquer forma remunerada de difusão de ideias, mercadorias ou serviços por parte de um anunciante identificado" (art. 5º - a regra é repetida no regulamento da lei: decreto 57.690, de 1º -2-1966, art. 2º).
Continuo a avaliação dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a terceira parte da análise dos princípios gerais da atividade econômica fixados na Constituição Federal e que afetam diretamente as relações de consumo e o direito do consumidor.  No artigo anterior, terminamos apontando que outro aspecto fundamental para o entendimento do direito material do consumidor é o princípio que se extrai da harmonização dos demais princípios do art. 170 na relação com os outros mais relevantes (dignidade da pessoa humana, vida sadia, justiça etc.). É o do risco da atividade do empreendedor.  Pois bem. A garantia da livre iniciativa tem uma contrapartida: a pessoa  empreendedora age porque quer. Cabe unicamente a ela decidir se vai ou não explorar o mercado. Ela não está obrigada a desenvolver qualquer negócio ou atividade. Se o fizer e obtiver lucro, é legítimo que tenha o ganho. Mas, se sofrer perdas, estas também serão suas.  Assim, a pessoa (física ou jurídica) que quiser promover algum negócio lícito, pode fazê-lo, mas deve saber que assume integralmente o risco de a empreitada dar certo ou não. E o Código de Defesa do Consumidor assimilou do texto constitucional corretamente essa imposição.  Repise-se, então, que, do ponto de vista do texto constitucional, a possibilidade de produção implica um sistema capitalista de proteção e livre concorrência, o que importa em risco para quem for ao mercado explorá-lo.  A característica fundamental da produção na sociedade capitalista a partir do sistema jurídico constitucional brasileiro é esse do risco da atividade. Quem corre risco ao produzir produtos e serviços é o fornecedor, jamais o consumidor.  Desse modo, um banco, uma operadora de plano de saúde, uma indústria de automóveis, uma prestadora de serviço público essencial, enfim, qualquer empreendedor está proibido de repassar o risco de seu negócio para o consumidor.  Portanto, quem quiser se estabelecer produzindo pneus, abrindo bancos, vendendo produtos e serviços, pode fazê-lo, mas, repetimos,  corre o risco natural de seu empreendimento. É por isso que, quando se vai estudar responsabilidade civil objetiva na lei 8.078, vê-se que ela foi estabelecida de forma clara e precisa, impedindo qualquer possibilidade daquele fabricante, produtor, prestador de serviço etc. se esquivar.  Esse risco fará com que aquela pessoa que vai ao mercado oferecer produtos e serviços assuma integralmente a responsabilidade por eventuais danos que seus produtos e seus serviços possam causar aos consumidores, assim como impede que, mesmo mediante cláusula contratual, ele seja repassado ao consumidor.  É preciso que se afirme esse princípio com todas as letras: a decisão de empreender é livre; o lucro decorrente dessa exploração é legítimo; o risco é total do empreendedor. Isso implica que, da mesma forma como ele não repassa o lucro para o consumidor, não pode, de maneira alguma, passar-lhe o risco, nem mesmo parcial. Ressalte-se que esse risco não pode ser dividido quer por meio de cláusula contratual, quer por meio de ações concretas ou comportamentos reais.  A outra previsão importante, como dissemos, é a da livre concorrência, estampada no inciso IV do art. 170 da Constituição Federal.  Por que é que a Constituição Federal brasileira assimilou da história essa ideia de livre concorrência? Na verdade, ela assimilou porque a livre concorrência implica proteção ao consumidor.  Pensar, então, essa questão constitucional é entender o que ela quer dizer com livre concorrência e isso só pode significar melhores produtos e serviços a iguais ou menores preços. "Melhor" produto ou serviço quer dizer mais segurança, mais eficiência, mais economia de uso, maior durabilidade, menor índice de quebra (vício) e menor possibilidade de acidente (defeito) etc.
Continuo a avaliação dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a segunda parte da análise dos princípios gerais da atividade econômica fixados na Constituição Federal e que afetam diretamente as relações de consumo e o direito do consumidor. Repito que, é importante lembrar que os princípios e as normas constitucionais têm de ser interpretados de forma harmônica, ou seja, é necessário definir parâmetros para que um não exclua o outro e, simultaneamente, não se autoexcluam. No artigo anterior, eu havia dito que a livre iniciativa está garantida. Porém, a leitura do texto constitucional define que: o mercado de consumo aberto à exploração não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que se permite sua exploração; como decorrência disso, o explorador tem responsabilidades a saldar no ato exploratório; tal ato não pode ser espoliativo; se lucro é uma decorrência lógica e natural da exploração permitida, não pode ser ilimitado; encontrará resistência e terá de ser refreado toda vez que puder causar dano ao mercado e à sociedade; excetuando os casos de monopólio do Estado (p. ex., do art. 177), o monopólio, o oligopólio e quaisquer outras práticas tendentes à dominação do mercado estão proibidos; o lucro é legítimo, mas o risco é exclusivamente do empreendedor. Ele escolheu arriscar-se: não pode repassar esse ônus para o consumidor. Essas considerações são decorrentes da interpretação dos princípios já expostos e que devem ser harmonizados. Com efeito, a da letra a decorre das garantias constitucionais da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da construção de uma sociedade livre, justa e solidária e da promoção do bem comum. Tudo fundado no princípio máximo da garantia da dignidade da pessoa humana. Quanto ao estabelecido nas letras b, c, d e e, as bases são as mesmas. Contudo, reforce-se o aspecto da livre concorrência e da defesa do consumidor. O estabelecimento de um princípio como o da livre concorrência tem uma destinação específica. Pretende que o explorador seja limitado pelo outro explorador e, também, pelo próprio mercado. Investiguemos de perto. Que é o mercado? De que ele se compõe? O mercado é uma ficção econômica, e além disso é uma realidade concreta. Como dissemos, ele pertence à sociedade. Não é da propriedade, posse ou uso de ninguém em particular e também não é exclusividade de nenhum grupo específico. A existência do mercado é confirmada por sua exploração diuturna concreta e histórica. Mas essa exploração não pode ser tal que prejudique o próprio mercado ou a sociedade. O mercado é composto, como se sabe, não só pelos empreendedores da atividade econômica, mas também pelos consumidores. Não existe mercado sem consumidor. Ao estipular como princípios a livre concorrência e a defesa do consumidor, o legislador constituinte está dizendo que nenhuma exploração poderá atingir os consumidores nos direitos a eles outorgados (que estão regrados na Constituição e também nas normas infraconstitucionais). Está também designando que o empreendedor tem de oferecer o melhor de sua exploração, independentemente de atingir ou não os direitos do consumidor. Ou, em outras palavras, mesmo respeitando os direitos do consumidor, o explorador tem de oferecer mais. A garantia dos direitos do consumidor é o mínimo. A regra constitucional exige mais. Essa ilação decorre do sentido de livre concorrência. Quando se fala em regime capitalista fundado na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais e na cidadania, como é o nosso caso, o que se está pressupondo é que esse regime capitalista é fundado num mercado, numa possibilidade de exploração econômica que vai gerar responsabilidade social, porque é da sociedade que se trata. Livre mercado composto de consumidores e fornecedores tem, na ponta do consumo, o elemento fraco de sua formação, pois o consumidor é reconhecidamente vulnerável como receptor dos modelos de produção unilateralmente definidos e impostos pelo fornecedor. A questão não é, pois - como às vezes a doutrina apresenta -, de ordem econômica ou financeira, mas técnica: o consumidor é mero espectador no espetáculo da produção1. O reconhecimento da fragilidade do consumidor no mercado está ligado à sua hipossuficiência técnica: ele não participa do ciclo de produção e, na medida em que não participa, não tem acesso aos meios de produção, não tendo como controlar aquilo que compra de produtos e serviços; não tem como fazê-lo e, na medida em que não tem como fazê-lo, precisa de proteção. É por isso que quando chegamos ao CDC há uma ampla proteção ao consumidor com o reconhecimento de sua vulnerabilidade (no art. 4º, I). A livre concorrência é essencialmente uma garantia do consumidor e do mercado. Ela significa que o explorador tem de oferecer ao consumidor produtos e serviços melhores do que os de seu concorrente. Essa obrigação é posta ad infinitum, de forma que sempre haja melhora. Evidente que esse processo de concorrência se faz não só pela qualidade, mas também por seu parceiro necessário: o preço. O forte elemento concorrencial na luta pelo consumidor é o binômio "qualidade/preço"2. Dessa maneira, há sim uma meta na exploração: é a da produção e oferta de produtos e serviços com a melhor qualidade e o menor preço possíveis. Além disso, como todo substrato dos princípios é o da garantia da dignidade da pessoa humana, mesmo atingindo esse nível de excelência constitucional o empreendedor ainda remanesce com uma imputabilidade ética: seu lucro, ainda que legítimo nos termos que apresentamos, deve contribuir para a construção de uma sociedade fundada nesse princípio. Todo explorador tem responsabilidade social para com todos os indivíduos, mesmo para com aqueles que não são seus clientes3. O outro aspecto fundamental para o entendimento do direito material do consumidor é o princípio que se extrai da harmonização dos demais princípios do art. 170 na relação com os outros mais relevantes (dignidade da pessoa humana, vida sadia, justiça etc.). É o do risco da atividade do empreendedor. __________ 1 Há, claro, consumidores abastados, pessoas físicas ou jurídicas, o que não lhes retira a vulnerabilidade técnica. 2 O grande desenvolvimento da indústria japonesa deveu-se, em larga medida, à compreensão dessa dicotomia. Tornou-se conhecida a capacidade dos empreendedores japoneses de oferecer produtos de melhor qualidade que a concorrência a menores preços 3 No caso brasileiro, infelizmente, há pessoas que não podem ser clientes de ninguém, por falta de condições mínimas de subsistência.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a primeira parte da análise dos princípios gerais da atividade econômica, fixados na Constituição Federal e que afetam diretamente as relações de consumo e o direito do consumidor.  Desde logo, é importante lembrar que os princípios e as normas constitucionais têm de ser interpretados de forma harmônica, ou seja, é necessário definir parâmetros para que um não exclua o outro e, simultaneamente, não se autoexcluam.  Isso, todavia, não impede que um princípio ou uma norma limite a abrangência de outro princípio ou norma. Assim, por exemplo, deve parecer evidente ao intérprete que "dignidade da pessoa humana" é um princípio excludente de qualquer outro que possa atingi-lo. E, também, essa constatação não elimina outros princípios e normas; apenas os delimita nos exatos termos em que devem ser interpretados.  Realcemos, então, alguns princípios estampados na Carta Magna para contrapô-los a outros que interessam diretamente à questão das relações de consumo. Guardemos em mente a garantia absoluta da "dignidade da pessoa humana", depois a dos "valores sociais do trabalho e valores sociais da livre iniciativa"; a da construção de "uma sociedade livre, justa e solidária"; a da erradicação da "pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais"; a da promoção do "bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação", e ainda a da igualdade de todos "perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", com a garantia da "inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".  Agora, remetamo-nos diretamente aos princípios gerais da atividade econômica, capítulo importante do título que cuida da ordem econômica e financeira. Vejamos o art. 170, seus incisos e parágrafo único - que terá de ser examinado à luz dos princípios acima mencionados (e em consonância com eles).  Dispõe o art. 170, in verbis: "Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei".  O art. 170, como um todo, estabelece princípios gerais para a atividade econômica. Estes têm de ser interpretados, também, como já o dissemos, de modo a permitir uma harmonização de seus ditames. Acontece que não basta examinar os princípios estampados nos nove incisos dessa norma apenas entre si mesmos. É necessário adequá-los àqueles outros aos quais chamamos a atenção.  O caput do art. 170 está já em harmonia com aqueles outros princípios. Dos nove princípios instituídos nos incisos, quatro nos interessam em nosso exame. São eles: propriedade privada; função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor, e a possibilidade de exploração da atividade econômica - com seu natural risco - prevista no parágrafo único do art. 170. Ora, a Constituição Federal garante a livre iniciativa? Sim. Estabelece garantia à propriedade privada? Sim. Significa isso que, sendo proprietário, qualquer um pode ir ao mercado de consumo praticar a "iniciativa privada" sem nenhuma preocupação de ordem ética no sentido da responsabilidade social? Pode qualquer um dispor de seus bens de forma destrutiva para si e para os demais partícipes do mercado? A resposta a essas duas questões é não.  Os demais princípios e normas colocam limites - aliás, bastante claros - à exploração do mercado. É verdade que a livre iniciativa está garantida. Porém, a leitura do texto constitucional define que: a) o mercado de consumo aberto à exploração não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que se permite sua exploração; b) como decorrência disso, o explorador tem responsabilidades a saldar no ato exploratório; tal ato não pode ser espoliativo; c) se lucro é uma decorrência lógica e natural da exploração permitida, não pode ser ilimitado; encontrará resistência e terá de ser refreado toda vez que puder causar dano ao mercado e à sociedade; d) excetuando os casos de monopólio do Estado (p. ex., do art. 177), o monopólio, o oligopólio e quaisquer outras práticas tendentes à dominação do mercado estão proibidos; e) o lucro é legítimo, mas o risco é exclusivamente do empreendedor. Ele escolheu arriscar-se: não pode repassar esse ônus para o consumidor.  Essas considerações são decorrentes da interpretação dos princípios já expostos e que devem ser harmonizados.  *** Continua na próxima semana.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a terceira parte da questão da informação.  Lembro que a informação, ou melhor, o direito de informação, na Constituição Federal pode ser contemplado sob três espécies: a) o direito de informar; b) o direito de se informar; c) o direito de ser informado1.  O direito de se informar cuidei na semana passada e de informar na semana anterior. Falta cuidar do direito de ser informado.  O direito de ser informado No âmbito constitucional o direito de ser informado é menos amplo do que no sistema infraconstitucional de defesa do consumidor. O direito de ser informado nasce, sempre, do dever que alguém tem de informar.  Basicamente, o texto magno estabelece o dever de informar que têm os órgãos públicos. No que tange ao dever de informar das pessoas em geral e das pessoas jurídicas com natureza jurídica privada, é o Código de Defesa do Consumidor que estabelece tal obrigatoriedade ao fornecedor. Tendo em vista que a Lei n. 8.078/90 nasce das determinações constitucionais que obrigam a que seja feita a defesa do consumidor, implantada em meio a uma série de princípios, todos interpretados e aplicáveis de forma harmônica, não resta dúvida de que o dever de informar só podia ser imposto ao fornecedor.  A Carta Magna regra o dever dos órgãos públicos. Essa obrigação nasce do estabelecido no inciso XXXIII do art. 5º, em consonância com o princípio da publicidade do caput do art. 37.  Com efeito, dispõem tais normas: "Art. 5º (...) XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo em geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado". "Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:" (grifamos).  Vê-se, pela leitura dos dois dispositivos, que os órgãos públicos têm não só a obrigação de prestar informações como a de praticar seus atos de forma transparente, atendendo ao princípio da publicidade. A exceção fica por conta das hipóteses em que o sigilo seja necessário para o resguardo da segurança da sociedade e do Estado, como acontece nos casos em que a informação possa causar pânico.  A publicidade prevista no caput do art. 37 impõe ao Poder Público, nos seus atos regulares, que aja aberta e transparentemente. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou a esse respeito, dizendo que tal princípio impede que a Administração avalie, mediante procedimento secreto, os antecedentes e a conduta de candidato em concurso público, para alijá-lo da disputa2.  Dessa maneira, no sistema constitucional, o dever de informar - donde decorre o direito de ser informado - está dirigido aos órgãos públicos.  Além disso, como a informação está ligada ao princípio da moralidade, é de extrair daí o conteúdo ético necessário que deve pautar a informação fornecida. E ele é o valor ético fundamental da verdade.  A informação não pode faltar com a verdade daquilo que informa de maneira alguma, quer seja por afirmação, quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para, de maneira confusa ou ambígua, iludir o destinatário da informação. __________ 1 Cf. Vidal Serrano Nunes Júnior, A proteção constitucional da informação e o direito à crítica jornalística,  São Paulo: FTD, 1997. p. 31 e s. 2 RDA 184/124.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a segunda parte da questão da informação. Lembro que a informação, ou melhor, o direito de informação, na Constituição Federal pode ser contemplado sob três espécies: o direito de informar; o direito de se informar; o direito de ser informado1. O direito de informar cuidei na semana passada. Falta cuidar do direito de se informar e do direito de ser informado. O direito de se informar O direito de se informar é uma prerrogativa concedida às pessoas. Decorre do fato da existência da informação. O texto constitucional, no inciso XIV do art. 5º, assegura primeiramente esse direito no que respeita à informação em geral, mas garante o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. Esse é um limite. Mas há outros: o do inciso X, já estudado (no artigo anterior) e o do inciso XXXIII, que ainda examinaremos. Quando se trata de informação relativa à própria pessoa, a Constituição Federal garante-lhe inclusive um remédio processual específico: o habeas data, tratado no inciso LXXII do art. 5º. Mas vejamos cada um desses dispositivos. Inciso XIV: "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional". Sabe-se que o exercício de um direito subjetivo significa a possibilidade da exigência de alguém. Isto é, a prerrogativa de um corresponde à obrigação de outro. Assim, quando a Constituição garante a todos o acesso à informação, tem-se de entender que essa informação deve estar com alguém que terá a obrigação de fornecê-la. Já falamos do direito de informar no artigo anterior. Trata-se de uma garantia de comunicação social (com os limites também já abordados). Uma vez produzida, essa informação torna-se pública, social, pertencendo a toda a coletividade. É desse caráter difuso da informação que decorre o direito de todos receberem-na - e exigirem-na -, previsto no inciso em comento. O acesso à informação, todavia, não é absoluto: encontra limites no próprio inciso XIV e no inciso X, já comentado. Com efeito, é possível exigir a informação de quem a detém, desde que sejam respeitadas a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, da maneira como se deve entender tais outras garantias. Quanto ao sigilo profissional, dois aspectos devem ser abordados: de um lado, a efetiva garantia do sigilo nos casos em que profissionalmente ela seja necessária ou signifique a garantia de outros direitos. Por exemplo, no caso do sigilo de fonte do jornalista, ela é necessária; na hipótese do psicanalista e seu cliente, ela é necessária e representa também a garantia do direito à intimidade; de outro lado, o sigilo da fonte não pode significar o acobertamento de violações a garantias constitucionais, especialmente aquelas entendidas como princípios fundamentais ou supranormas, tais como a garantia do direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Dizendo em outros termos, ainda que o sigilo profissional esteja previsto como possibilidade de garantia, é necessário compreender sua correlação com as garantias constitucionais primeiras. *** Continua na próxima semana ____________________  1 Cf. Vidal Serrano Nunes Júnior, A proteção constitucional da informação e o direito à crítica jornalística,  São Paulo: FTD, 1997. p. 31 e s.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje analiso a questão da informação.  Com efeito, a informação, ou melhor, o direito de informação, na Constituição Federal pode ser contemplado sob três espécies: a) o direito de informar; b) o direito de se informar; c) o direito de ser informado1.  O direito de informar é basicamente uma prerrogativa conferida pela Carta Magna; os outros dois são obrigações e bastante relevantes para a questão do consumidor. Examinemos cada um deles. O direito de informar  O direito de informar é uma prerrogativa constitucional (uma permissão) concedida às pessoas físicas e jurídicas. Vale ler o texto magno. É o dispositivo do caput do art. 220 que dispõe, in verbis: "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição".  Essa norma é solidificada por outra pétrea das garantias fundamentais. A do inciso IX do art. 5º, que dispõe, in verbis: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".  Esses dispositivos, todavia, não são absolutos, uma vez que o direito de informar encontra limites no próprio texto constitucional.  É no mesmo art. 5º que esses limites aparecem. Inicie-se pelo inciso X. Lembremos sua dicção: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".  "São invioláveis", diz o texto. Logo, o direito de informar não pode transpor os limites estabelecidos nessa norma. Não pode violar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.  Como decorrência do direito de informar, a norma fundamental deixou garantido o direito da informação jornalística, e já nesse aspecto até mesmo declarou certos limites. Leia-se a propósito o § 1º do citado art. 220, que dispõe: "§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV".  O inciso X acabamos de comentar. De fato ele é um limite à informação em geral e à informação jornalística em particular.  Todavia, gostaríamos de recolocar nossa tese a respeito da informação jornalística e do interesse público que a norma envolve.  O direito de informação jornalística é, com efeito, simultaneamente um direito de receber informação jornalística. É o interesse público que está em jogo. Como a norma constitucional do direito de informar aparece com uma prerrogativa, isto é, está posta com o modal deôntico da permissão, tem-se uma espécie de paradoxo: permissão dos dois lados. O direito de informar tem relação com o direito de ser informado.  Dois direitos, nenhum dever. O ciclo normativo mandar-obedecer não se completa.  Todavia, é exatamente esse outro direito de ser informado que vai permitir, em nossa opinião, a construção da teoria capaz de fazer com que, também, os limites estabelecidos no inciso X do art. 5º não sejam absolutos.  Se há direito de se informar há, portanto, interesse público e é este que definirá a possibilidade de ser transmitida a informação jornalística. __________ 1 Cf. Vidal Serrano Nunes Júnior, A proteção constitucional da informação e o direito à crítica jornalística, São Paulo: FTD, 1997. p. 31 e s. 
Amanhã, 15 de março, é comemorado o dia mundial do consumidor. Famoso, porque foi nesse dia, há mais de sessenta anos (1962), que o então Presidente dos Estados Unidos da América, John Kennedy, enviou uma mensagem ao Congresso Americano tratando da proteção dos interesses e dos direitos dos consumidores. Foi um marco fundamental do nascimento dos chamados direitos dos consumidores e que causou grande impacto nos EUA e no resto do mundo. Na mensagem foram estabelecidos quatro pontos básicos de garantia aos consumidores: a) o do direito à segurança ou proteção contra a comercialização de produtos perigosos à saúde e à vida; b) o do direito à informação, incluindo os aspectos gerais da propaganda e o da obrigatoriedade do fornecimento de informações sobre os produtos e sua utilização; c) o do direito à opção, no combate aos monopólios e oligopólios e na defesa da concorrência e da competitividade como fatores favoráveis ao consumidor; d) e o do direito a ser ouvido na elaboração das políticas públicas que sejam de seu interesse. O Dia Mundial dos Direitos do Consumidor foi instituído no dia 15 de março em homenagem ao Presidente Kennedy; inicialmente foi comemorado em 15 de março de 1983; em 1985 a Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) adotou os Direitos do Consumidor como Diretrizes das Nações Unidas, o que lhe deu legitimidade e reconhecimento internacional. Não resta dúvida que, de 1962 para cá houve um avanço na proteção ao consumidor em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. No nosso caso, a verdadeira proteção surgiu com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor  (CDC) em 11-9-1990 (e que entrou em vigor em 11-3-1991).   É mesmo importante que se comemore esta data. Mas, falta ainda muito para que a batalha pelos direitos dos consumidores esteja ganha. Aproveitemos, então, este dia para fazer uma reflexão a partir de certos fatos. Sempre que me deparo com abusos perpetrado pelas empresas, me vem à mente não só a imagem do empresário aproveitador, mas também a do funcionário que executa suas ordens. Esse mesmo empregado, que sabe muito bem que está abusando de alguém, ele próprio é também consumidor e certamente será enganado em algum lugar: numa loja, pelo serviço de transporte ou telefônico, por um gerente de um banco etc. É, podemos dizer, uma falta de consciência de que todos somos consumidores. É essa falta de consciência que faz com que no telemarketing ativo o atendente viole a tranquilidade do consumidor em seu lar e, muitas vezes, o engane com ofertas miraculosas; ou no telemarketing passivo, quando o atendente se nega a fazer o cancelamento solicitado etc. A ironia é que neste mercado que só conhece o lucro, todos esses "pequenos infratores" a mando de seus patrões violam o direito de outras pessoas no horário de seu trabalho, mas assim que vão às compras são também enganados e violados É por essas e outras que os consumeristas têm defendido que o mercado de consumo precisa ser mais diretamente controlado pelo Estado, posto que se deixado à própria sorte os abusos contra os consumidores existirão sempre em grandes quantidades. Para ficarmos apenas com um exemplo: o da crise financeira internacional de 2008. Ficou demonstrado como é perigoso para toda a sociedade (mundial!) deixar que os próprios operadores criem as regras de trabalho. O capitalismo contemporâneo exige vigilância sobre os procedimentos e observância estrita do cumprimento das normas já existentes.                                  Não é possível mais acreditar que o mercado de consumo resolve suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" natural que fosse capaz de corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: o empresário moderno e as grandes corporações que ele dirige quer, cada vez mais e sempre, faturar mais alto, nem que para isso ele tenha que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios e piorar a qualidade de seus produtos e serviços. Há esperança? Já comentei por aqui, que vejo com bons olhos os empresários que se preocupam com a questão ambiental, com o impacto que seus produtos e serviços tem na sociedade, que se envolvem em projetos sociais etc. Tudo isso é bem-vindo, mas penso que para melhorar mais é necessário que o consumidor possa e saiba escolher os produtos e serviços que adquire e que o Estado tenha regras rígidas de controle do sistema de produção capitalista, fazendo com que a lei seja cumprida.
quinta-feira, 7 de março de 2024

A imagem do consumidor pessoa jurídica

Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje analiso a imagem da pessoa jurídica como consumidora. Como se sabe, a pessoa jurídica é também considerada consumidora (caput do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor) Inicialmente, anoto que a pessoa jurídica não sofre dano estético, nem pode ser violada em sua honra. O primeiro por compor o aspecto físico, mecânico e fisionômico do corpo humano e a segunda por dizer respeito a valor que só pode ser atribuído ao indivíduo1. Não sofre também, propriamente, dano moral, uma vez que sentir dor é uma exclusividade humana. Nem tem intimidade, essa esfera mais concêntrica dentro da órbita privada. A pessoa jurídica, porém, goza de privacidade e tem imagem. Privacidade, que, oposta à publicidade, garante-lhe o direito a segredos comerciais, fórmulas e métodos que lhe pertencem reservadamente. Esses elementos compõem a esfera privada da pessoa jurídica. De resto, a característica básica de atuação da pessoa jurídica é sempre pública, independentemente de sua natureza jurídica (pública, privada, sociedade civil, comercial etc.). Isto porque a ação da pessoa jurídica sempre se dá no meio social: no mercado ou na ação política governamental. Ela é, por isso, essencialmente pública. A pessoa jurídica tem, também, imagem. Apesar da discussão que já se fez a respeito, atualmente não resta dúvida de que a pessoa jurídica tem imagem, e, como visto, protegida constitucionalmente. A imagem da pessoa jurídica pode ser classificada nos moldes da imagem da pessoa física. Ela tem imagem-retrato, representada por seu nome, sua marca, seu logotipo, seus produtos, seus serviços, enfim, por tipos, sinais, letras e símbolos que a representem. É claro que, ao colocarmos aqui a pessoa jurídica como possuidora de uma imagem-retrato, o estamos fazendo de forma figurativa, por analogia ao conceito de imagem-retrato da pessoa física. Todavia, o tipo "imagem-retrato" encaixa-se como uma luva quando se quer entender o que está ocorrendo no uso sem autorização de uma marca ou na violação de um logotipo ou mesmo de um produto ou serviço. Percebe-se que no caso do produto há várias circunstâncias que envolvem não só o nome do produto mas também sua embalagem, seu conteúdo, a ligação de tudo isso ao nome do fabricante e sua respectiva imagem etc. A pessoa jurídica tem, ainda, imagem-atributo. E é aqui que residirá certa confusão, no caso, não só para admitir a outra, a imagem-retrato, como para entender a distinção entre os dois tipos. Com efeito, a imagem-atributo é construída pelo meio social. Ela é, pode-se dizer, mais o que os outros reconhecem na pessoa jurídica do que sua própria designação ou construção. Seria uma espécie de "reputação" da pessoa jurídica. É por isso que, embora a imagem-retrato guarde em alguns casos relação com a imagem-atributo, com ela não se confunde: é que a imagem-retrato é criada pela própria pessoa jurídica tão logo ela passe a existir. Por exemplo, o nome. Mas a imagem-atributo dependerá da atuação dessa pessoa jurídica - desse nome - no meio social. Quando se disser que esse nome ou essa marca tem alta credibilidade, estar-se-á diante da imagem-atributo. E o texto constitucional protege a ambas: a) a imagem-retrato de uma simples e inócua empresa de contabilidade, conhecida apenas por seu único cliente ou que ainda não tenha nenhum. Ninguém pode usar aquele nome sem autorização; b) a imagem-atributo daquela mesma empresa, que formou a maior auditoria do País, com notável reputação ou credibilidade. Ninguém poderá usar seu nome sem autorização, nem poderá denegrir sua imagem e reputação. Não nos esqueçamos de dizer, que a Constituição não faz distinção de pessoa jurídica: pode esta ser nacional ou estrangeira, pública ou privada, sociedade comercial ou civil, fundação, associação sem fins lucrativos, enfim, qualquer figura reconhecida como pessoa jurídica. Por extensão, garante-se a imagem do ente despersonalizado, como a "massa falida". __________ 1 Quando se fala em honra de uma instituição, tal conceito aparece em sentido meramente figurativo: estar-se-á referindo tecnicamente à imagem. É, na verdade, reputação, garantida constitucionalmente pela imagem-atributo, como se verá.
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

As compras compulsivas se alastram

O aumento do consumo, especialmente, de produtos, nem sempre é bom. Se tiver fundamento na necessidade dos consumidores, tudo bem. Mas, o que ocorre quanto a ampliação do consumo está relacionada ao simples ato (e prazer) de consumir?  Volto, pois, ao tema do vício das compras.    O vício, como se sabe, é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente. E  que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. E um dos vícios marcantes da sociedade de consumo em que vivemos é a chamada oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e também é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como viciada.  A pessoa compradora compulsiva é aquela que se satisfaz não com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode literalmente adquirir qualquer coisa que lhe surja na frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra a satisfará.  O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, esse tipo de pessoa é uma consumidora típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares que as demais. Daí, ela acaba comprando imoderadamente, mas os produtoso são aqueles que todos compram, inclusive ela mesmo quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, artigos de luxo etc. e com isso, às vezes, nem ela nem as demais que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de colecionadora.  O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo.  E, como se sabe, a partir da segunda metade do século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação para as compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica.                                 Na atualidade, com a espetacular utilização da web/internet/redes sociais, não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de dentro do lar, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line (ted e pix), os pagamentos com cartões de crédito e débito, os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele.  Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, pode-se dizer que o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer pessoa mais ou menos avisada, já que as armadilhas estão muito bem engendradas.  Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância. É importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento das demais, para tentar detectar a doença.  Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo ou a compradora compulsiva adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele ou ela não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. Essa pessoa gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do limite de crédito em conta, e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta.  É claro que, se o comprador ou a compradora com oneomania for uma pessoa de posses e puder gastar muito dinheiro, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize. Assim, um outro modo  de  identificação da doença está em verificar o excesso da compra de bens, que jamais são usados.                                   Como já fiz antes neste espaço, encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em algumas cidades brasileiras os grupos de autoajuda intitulado "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", que acolhem os doentes pessoalmente ou virtualmente (on line). Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.
Os consumidores estão sendo violados na Europa.  No artigo de 4 de janeiro deste ano, eu já havia mostrado uma violação feita pelo sistema bancário em Portugal.  E há mais violações em outros países. Vejamos.  Meu amigo Outrem Ego foi, recentemente, passar férias na Europa. E, para sua decepção, viu que o consumidor por lá não está sendo respeitado como devia e numa questão básica: a forma de pagamento.  Centenas de estabelecimentos comerciais só aceitam pagamento com cartão de crédito ou débito. E não só fornecedores privados, locais públicos também.  Por exemplo, no Museu Van Gogh, em Amsterdam, se a pessoa quiser comprar uma garrafa de água e pagar com moeda corrente não pode. Lá só se compra algo pagando com cartão. No Aeroporto de Barcelona, dá-se o mesmo: pagamento só com cartão.  Não dá para entender o que  está acontecendo. Sempre foi direito básico do consumidor, em qualquer lugar do mundo, poder pagar suas compras com moeda corrente. E, do outro lado, sempre foi obrigação receber nessa forma de pagamento.  A violação é flagrante, pois pode muito bem acontecer de alguma pessoa (por motivos que não interessam) não possuir cartão de crédito ou débito e precisar (ou querer) comprar algo, pagando em moeda corrente. Digamos que ela esteja com sede dentro do Museu em Amsterdam ou no Aeroporto em Barcelona, não poderá comprar uma garrafa de água?  Por aqui, temos leis que cuidam do tema.  No Código de Defesa do Consumidor, há a regra do inciso V do artigo 39, nesses termos: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:             (...) V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;"  E a Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.699, de 3-10-1941), apesar de desatualizada,  é expressa nesse sentido:  "Art. 43. Recusar-se a receber, pelo seu valor, moeda de curso legal no país: Pena - multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis."  O que está acontecendo na Europa é, realmente, lamentável.  Espero que o modelo não se alastre.
Hoje começo a analisar as garantias constitucionais previstas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal e que são relevantes para uma reflexão sobre os direitos do consumidor, eis que, na realidade há violações que a norma magna pretende evitar. Vejamos o conteúdo expresso do inciso X: "Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Como se observa, a Constituição Federal pretende dar guarida absoluta ("são invioláveis") à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. Tomemos cada um desses conceitos para compreender a extensão do preceito normativo. Primeiramente, a intimidade e a vida privada. Os dois termos não podem ser dissociados, uma vez que, obviamente, o valor semântico de um lembra o outro. Porém, como a norma constitucional utiliza os dois, é preciso esclarecê-los. Aliás, de pronto, surge a indagação: são os dois conceitos designativos do mesmo sentido? A doutrina que já analisou a questão respondeu que não, apesar da necessária imbricação de ambos1. Para entender o exato significado dos conceitos, tem-se de lembrar certos aspectos da vida social na qual estão presentes as pessoas, naquilo que diz respeito a sua individualidade na relação com o coletivo. É preciso distinguir o âmbito público do âmbito privado. Com efeito, o público é sempre aquilo que, como o nome diz, aponta para a participação aberta a todos ou para a possibilidade de participação de todos. É o que pertence ao povo ou à coletividade; ou mesmo apenas os atos vivenciados por poucas testemunhas, mas, assim, com caráter público. É ainda o formato real e abstrato dos atos do governo2. O privado é o oposto do público, e, embora o conceito seja da Antiguidade, ainda guarda o sentido de privus, "ser privado de", isto é, ser privado do público. É o que ocorre no domínio do lar, na órbita pessoal, no restrito âmbito doméstico. Dessa maneira, pode-se perceber que todo indivíduo tem uma esfera privada de direitos e interesses. Mas nem todos têm uma atuação no âmbito público. As pessoas, em geral, podem, é verdade, ter uma aparição ou reconhecimento público, quando, por exemplo, agem, ainda que esporadicamente, de forma pública: participando de um programa de televisão, cometendo um delito numa praça, enganando consumidores na venda de produtos falsificados. A distinção entre as duas esferas pode ser feita a partir da hipótese do papel social, conforme estudado pela sociologia jurídica3. O surgimento dos papéis está ligado ao crescimento da sociedade, de maneira que o conceito atualmente utilizado é o de complexidade, ou melhor, alta complexidade social. O sentido de complexidade social está relacionado ao dado concreto e real das ações possíveis do indivíduo. Ou, melhor dizendo, o mundo real se apresenta ao indivíduo oferecendo latentemente ações que ele pode realizar. Mas a quantidade de ações é tão grande que, de fato, real e historicamente, o mundo apresenta sempre muito mais possibilidades do que aquelas que o indivíduo vai realizar em toda a sua vida. O indivíduo está, assim, fadado a escolher. Desde que entra no mundo, vai agindo a partir de escolhas; não há alternativa. A essas escolhas se dá o nome de seletividade. Esta é uma operação de seleção para optar diante da complexidade de ações possíveis. A cada ato, a cada passo, o indivíduo age por seleção e vai compondo o quadro de seu destino. A inexorabilidade da seleção tem como função reduzir a complexidade do mundo: a cada escolha que a pessoa faz, opera-se a seleção e reduz-se a complexidade - escolheu algo entre muitos4. Mas, simultaneamente, enquanto se opera a seleção, vai-se produzindo um enorme contingente que ficou de lado: escolheu ser advogado; em compensação, não será juiz, promotor de justiça, procurador, delegado etc. Continuo na próxima semana. __________ 1 Acompanho aqui os Professores David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva,  1998. Item 2.1.1). 2 Ressalvem-se os chamados "segredos de Estado", justificáveis apenas na exata medida em que são segredos para preservar o bem público: segurança, paz etc. 3 Assim, por exemplo e pelos demais: Niklas Luhmann, Legitimação pelo procedimento.,Brasília: Ed UNB, 1980. Especialmente, p. 71 e s. 4 A escolha gera um alívio ao indivíduo. Como o mundo se apresenta com alta complexidade e milhões de possibilidades, isso por si só é fator gerador de angústia. A seleção a diminui.
Em matéria de violação ao direito dos consumidores, quando pensamos que já vimos de tudo, sempre aparece alguma novidade estranha.  Veja isso caro leitor e cara leitora: o sistema bancário de Portugal, a partir deste mês de janeiro, passou a violar flagrantemente o direito dos consumidores. Trata-se de uma operação casada inacreditável e claramente abusiva. A partir de agora, para que o consumidor possa efetuar o pagamento de alguma conta, boleto, imposto etc. online, pela internet, em seu Banco, ele tem que possuir um cartão de crédito ou débito do próprio banco. A medida, além de abusiva, é sem sentido. Os clientes dos bancos em Portugal fazem os pagamentos online, regularmente, possuindo ou não algum cartão do banco. E há muitos clientes residentes fora do país,  que fazem esses pagamentos regularmente. Seria o mesmo que obrigar os clientes de bancos brasileiros a possuírem um cartão para poderem acessar sua conta bancária via internet e assim fazerem pagamento de boletos, contas de serviços públicos, Darfs etc. Por aqui, esse tipo de exigência está vedada por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor, que proíbe as chamadas operações casadas ou vendas casadas. É o que dispõe o inciso do artigo 39 do CDC: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:             I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;" De minha parte, aguardo que as Associações de Defesa do Consumidor portuguesas e até o Ministério Público local tomem medidas contra essa estipulação incrível.
Hoje analiso o princípio da igualdade como uma das bases das relações jurídicas de consumo. E, naturalmente, o faço a partir da norma do caput do art. 5º da Constituição Federal. Com efeito, dispõe o art. 5º, caput: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi­lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:" É fato conhecido que: a) o princípio da igualdade ou isonomia é dirigido ao legislador e ao aplicador; b) a interpretação adequada de tal princípio é tão antiga quanto Aristóteles, que já explicava que seu resultado adequado advinha da fórmula: dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade; c) essa fórmula, que em abstrato é bastante adequada, é difícil de ser aplicada concretamente: a medida da desigualdade não surge tão facilmente. Mas, ainda assim, é determinação obrigatória ao intérprete e ao aplicador, que devem seguir todos os esforços possíveis a fim de obter a igualdade como resultado prático de seu mister. Uma das funções da lei é discriminar situações, e isso não fere, por si só, o princípio da igualdade. Assim, é plenamente constitucional a lei dizer que a maioridade penal se inicia aos 18 anos. Nenhum menor pode dizer que foi discriminado, uma vez que se trata de uma das funções da lei. A constatação da existência de discriminações, portanto, não é suficiente para definir se o princípio constitucional de isonomia está ou não sendo respeitado, pois, como visto, em determinadas situações a discriminação empreendida está em consonância com o preceito constitucional. Ao contrário, é exatamente da discriminação que nasce o princípio. Mas para aferição da adequação ao princípio da igualdade é necessário levar em conta outros aspectos. Todos eles têm de ser avaliados de maneira harmônica: se adotado o critério discriminatório, este tem de estar conectado logicamente com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade apontada. Além disso, há que existir afinidade entre essa correlação lógica e os valores protegidos pelo ordenamento constitucional. Ou seja, nenhum elemento, isoladamente, poderá ser tido como válido ou inválido para verificação da isonomia. É o conjunto que poderá designar o cumprimento ou não da violação da norma constitucional. Assim, resumidamente, afere-se a adequação ou não ao princípio da isonomia verificando-se a harmonização dos seguintes elementos: a) discriminação; b) correlação lógica da discriminação com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade; c) afinidade entre essa correlação e os valores protegidos no ordenamento constitucional. Na questão do consumidor existem várias práticas que violam o princípio constitucional. Veja-se, por exemplo, um caso antigo e típico de discriminação ao consumidor: o sucesso do filme "Titanic", ganhador de vários Oscars, levou, durante semanas, milhares de pessoas (consumidores do serviço de diversão) às salas de cinema. A procura era tamanha que o público tinha de chegar mais de três horas antes do início de cada sessão (sendo que o próprio filme tem mais de três horas de exibição). Era um enorme esforço. Mas, ao que tudo indica, os consumidores não se importavam. Acontece que os exibidores firmaram um contrato com os administradores do cartão de crédito Diners Club, que permitia que seus usuários pudessem adquirir os ingressos para assistir ao filme sem pegar fila. Foi um verdadeiro "fura-fila". Esses consumidores privilegiados passaram a gozar de um direito não oferecido aos demais. Isso porque somente podiam comprar pelo telefone os portadores do indigitado cartão de crédito. Não resta dúvida de que aquela prática era ilegal, na medida em que feria o princípio de isonomia previsto na Carta Magna1. Com efeito, utilizando-se dos critérios acima elencados, percebe-se que a discriminação do exibidor não poderia ser efetuada, uma vez que não tem correspondência lógica com o tratamento jurídico oferecido de maneira diferenciada (o que os portadores do cartão têm para serem mais bem tratados que os demais que ficam na fila?), bem como não há afinidade dessa correlação com os valores protegidos pelo ordenamento constitucional (só se justifica o tratamento diferenciado em questões de consumo desse tipo quando o consumidor protegido merecer o tratamento favorável: p. ex., atendimento privilegiado para idosos e mulheres grávidas). O fato de alguns consumidores, dentre muitos, serem portadores de um cartão de crédito específico não pode ser motivo legitimador da discriminação. Diga-se, também, que o poder constituinte, ao elaborar o texto magno, desde aquele instante tratou de deixar estabelecidos certos grupos de pessoas e certos indivíduos que merecem a proteção constitucional, isto é, a Constituição Federal reconhece de plano a vulnerabilidade de certas pessoas, que devem, então, ser tratadas pelo intérprete, pelo aplicador e pelo legislador infraconstitucional de maneira diferenciada, visando a busca de uma igualdade material. É o caso, por exemplo, da reserva de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência (art. 37, VIII). Da mesma forma é de observar que a Constituição reconhece a vulnerabilidade do consumidor2. Isso porque, nas oportunidades em que a Carta Magna manda que o Estado regule as relações de consumo ou quando põe limites e parâmetros para a atividade econômica, não fala simplesmente em consumidor ou relações de consumo. O texto constitucional refere-se à "defesa do consumidor", o que pressupõe que este necessita mesmo de proteção. Assim está no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ("O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor" - grifamos), no art. 5º, XXXII ("O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" - grifamos); e assim está no art. 170, V ("A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V - defesa do consumidor" - grifamos). Lembre-se, também, que entre os objetivos da República está a promoção do bem de todos "sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (inciso IV do art. 3º). __________ 1 E que está reproduzido no inciso II do art. 6º do CDC. 2 E o CDC o faz expressamente (arts. 4º, I, e 6º, VIII).
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Por uma sociedade solidária

Para falar dos fundamentos básicos das relações jurídicas de consumo, lembro, mais uma vez, que o art. 3º, I, da Constituição Federal estabelece ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.  Anoto, também, que nossa Carta Magna estabelece, no inciso III do art. 3º, outro objetivo fundamental da República brasileira: o da erradicação da pobreza.  Em matéria de Direito do Consumidor esse aspecto é importantíssimo: é a própria Constituição Federal - de maneira inteligente - que reconhece algo real, o de que a população brasileira é pobre!  A pobreza é elemento a ser levado em conta para a análise do sistema jurídico nacional, sempre visando encontrar alternativas para suplantá-la.  E o texto maior é tão cioso deste problema que ao designar um piso vital mínimo de cidadania - conforme tratei em outro artigo ("O princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana", dia 30/11/23)  - estabelece que a assistência aos desamparados é direito social fundamental1.  Logo, quando se vai estudar o Código de Defesa do Consumidor, tem-se que levar em consideração esse dado real e fundamento constitucional: a população é pobre; o consumidor é pobre.  Estudar a lei 8.078/90 não é, portanto, avaliar aspectos jurídicos de uma comunidade rica, mas ao contrário é compreendê-la na sua incidência num mercado constituído de pessoas pobres, para perceber por que é que a proteção deve ser bastante ampla.  Além disso e, também, como decorrência do estabelecido no inciso I do art. 3º do texto constitucional, a República brasileira tem como objetivo a construção de uma sociedade solidária.  O sentido de solidariedade se pode extrair de dois tipos de concepções sistêmicas: mecânicas e orgânicas. As primeiras relacionando o funcionamento das partes ao todo e o deste àquelas, bem como das partes entre si para o próprio funcionamento do sistema total. E as segundas apontando para uma divisão do trabalho a indicar funções diversas a cada parte, mas que devido a sua solidariedade faz o todo funcionar.  São exemplos desses sistemas o mecanismo do relógio, do corpo humano etc. Mas interessa-nos a aplicação da solidariedade ao sistema social, formado da somatória dos indivíduos.  E, como é da forma organizada do grupamento social que se trata, e esta é composta de pessoas, cuja dignidade se garante e que têm para dirigi-las, orientá-las, norteá-las em suas condutas, é de acrescer àqueles elementos sistêmicos - tidos como de fato - outro, ligado ao sistema social concretamente em funcionamento, elevado a uma categoria moral. Trata-se de um dever ético que se impõe a todos os membros da sociedade, de assistência entre seus membros, na medida em que compõem um único todo social.  Dessa maneira, podemos definir solidariedade com uma dupla condição, que designa: a) relações concretamente concebidas, díspares nas condições reais de cada participante, mas ligadas por solidariedade entre si, com o todo; b) situações individuais, relações entre essas situações e suas ligações com o todo e deste com cada uma, geridas por um dever maior, como norma que imputa solidariedade a todos. __________ 1 "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
Hoje cuido da justiça e de sua capacidade de funcionar como fundamento para as relações jurídicas de consumo. Lembre-se que o art. 3º, I, da Constituição Federal estabelece ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O conceito de justiça espelhado no texto maior é aquele dirigido à realidade social concreta. Não se trata de uma abstração da norma máxima, mas sim de um objetivo a ser alcançado realmente no contexto histórico atual pela República. Isso dará ao intérprete, tanto das regras constitucionais quanto das infraconstitucionais e, naturalmente, nas do Código de Defesa do Consumidor, alternativas de resolução de problemas não só a partir dos princípios regulares da justiça, como daqueles tradicionalmente conhecidos como equidade na aplicação de cada caso concreto. Com efeito, dada a "natureza social" do ser humano, sua vivência em grupos fez com que certos conflitos nascessem da natural relação surgida nesse agrupamento social. O ajuntamento gerava conflitos interpessoais em função das capacidades, possibilidades e exigências próprias de cada indivíduo, como, também, por sua vez, necessidades próprias à sociedade que surgia, quer em relação a seus componentes, quer em relação a outras sociedades. Em função da complexidade das relações nascentes, tornou-se necessário, então, que se estabelecessem normas para que, atendendo-as, os indivíduos e a própria sociedade pudessem caminhar rumo àquilo a que se haviam proposto: busca de harmonia e paz social. Esse aspecto de normas sociais válidas, visando encontrar harmonia e paz social, impõe-se, na verdade, a qualquer sociedade, desde uma pequena sociedade comercial até a sociedade de consumo contemporânea, ainda que o objetivo da primeira seja apenas econômico ou financeiro. Assim, numa sociedade comercial, o objetivo pretendido é, naturalmente, a obtenção do lucro, mediante o cumprimento de determinados requisitos preestabelecidos. Acreditam os componentes dessa sociedade que, cumpridas as normas fixadas, satisfeitas suas exigências, o objetivo será alcançado. Essas normas, por sua vez, podem e devem ir-se modificando na medida em que a sociedade se aproxime ou se afaste de sua finalidade, pois é próprio a qualquer sociedade o movimento contínuo, uniforme ou não, com a modificação de suas normas, visando ao atingimento do fim estabelecido. Numa macrossociedade moderna, como as atuais, esses conceitos se aplicam da mesma forma. É sabido que o objetivo da sociedade, entendida como uma nação ou comunidade, é a busca da paz e harmonia social. As normas jurídicas são o instrumento para que tal fim seja atingido. E esse objetivo só será alcançado numa sociedade justa. Pode-se aqui, a título de ilustração, apresentar uma dentre as várias posições doutrinárias que pretendem construir uma teoria da justiça, capaz de explicitar seu funcionamento. Vejam-se, por exemplo, os dois princípios da justiça na teoria de John Raws1. Diz o autor, desenvolvendo sua estratégia contratualista, que as partes, estando numa posição original do contrato, perguntar-se-iam o que iriam escolher. A resposta estaria coberta por um véu de ignorância que as impediria de ver os próprios interesses. E, assim, dentre várias concepções de justiça postas à sua disposição, as partes nessa posição original escolheriam os seguintes princípios de justiça: a) cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas iguais, que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos; b) as desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas de forma que, simultaneamente: b.1) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de forma compatível com o princípio da poupança justa; b.2) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos, em circunstâncias de igualdade de oportunidades. Não resta dúvida de que tais princípios abstratos são interessantes, mas necessitam de toda uma história real para se realizar, pois a justiça se faz concretamente, e é isso que espera o texto constitucional: realização social real e justa. A justiça soma-se ao princípio da intangibilidade da dignidade humana, como fundamento de todas as normas jurídicas, na medida em que qualquer pretensão jurídica deve ter como base uma ordem justa. Valem aqui as conhecidas palavras de Eduardo Couture no seu Os mandamentos dos advogados: "Teu dever é lutar pelo direito, mas no dia em que encontrares o direito em conflito com a Justiça, luta pela justiça"2. A justiça é, assim, o objetivo da República e fundamento da ordem jurídica, como condição de sua possibilidade de realização histórica. Por isso, na aplicação das normas jurídicas aos casos concretos, muitas vezes tem-se de atenuar os rigores do texto normado, mitigando seu apelo formal: é necessário agir com equidade. Cícero, tratando dessa questão, citou o adágio summum jus, summa injuria: supremo direito, suprema injustiça. Mas a equidade já aparecia antes em Aristóteles3. Ele diz que o equitativo é justo, mas é uma correção da justiça legal. A razão disso, diz o filósofo, é que a lei é universal, mas, relativamente a certas coisas, não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta. Dessa forma, quando é necessário falar de modo universal, não sendo possível fazê-lo corretamente, a lei considera o caso mais usual, sem ignorar a possibilidade de erro. Logo, quando surge um caso que não é abrangido pela declaração universal da lei, é justo corrigir a omissão. A essa correção dá-se o nome de equidade. A equidade supre o erro proveniente do caráter absoluto da disposição legal. Ela é, portanto, a justiça levada a cabo no caso concreto. __________ 1 Uma teoria da justiça, p. 27 e s. Lisboa: Presença, 1993. 2 4º Mandamento: "Lucha. - Tu deber es luchar por el derecho; pero el día que encuentres en conflicto el derecho con la justicia, lucha por la justicia" (Los mandamientos del abogado - traduzi). 3 Ética a Nicômaco, Livro V, 10.
Hoje cuido da liberdade, não no amplo sentido de liberdade garantido na Carta Magna, mas tão somente naquilo que interessa para compreender sua existência como suporte aos princípios e normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Trato da liberdade de ação: dos consumidores de agirem e escolherem e dos fornecedores de empreenderem. Com efeito, a liberdade aparece estampada no texto constitucional como princípio, logo no art. 1º (inciso IV) e no art. 3º (inciso I), e é garantia fundamental do caput do art. 5º, especificando-se em alguns dos incisos lá elencados na forma de liberdade de manifestação do pensamento (inciso IV), liberdade de consciência e de crença (inciso VI), liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (inciso IX) etc., e está espalhada em várias outras normas (inclusive como garantia processual do devido processo legal - inciso LIV do art. 5º - e do habeas corpus - inciso LXVIII do mesmo artigo), e, em particular, aparece como princípio da atividade econômica (art. 170). Como antecipei, o princípio da liberdade garantido constitucionalmente que aqui interessa é o que aponta para uma condição material - real - de ação. E, basicamente, para essa hipótese, podemos ficar com as regras dos arts. 1º e 3º citados. Com efeito, dispõem o inciso IV do art. 1º e o inciso I do art. 3º: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa"; "Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária". A liberdade de iniciativa é conferida a todos aqueles que decidam, sponte propria, tomando seus bens e constituindo-os em capital, ir ao mercado empreender alguma atividade - qualquer atividade permitida e/ou regulada constitucional e infraconstitucionalmente. O sentido de "livre" iniciativa aí, então, significa o direito de escolher correr o risco do empreendimento. A pessoa tem, portanto, o direito garantido de, caso queira, empreender um negócio. Em relação a pessoa consumidora, a liberdade que o texto lhe garante é objetivo da República, ou seja, o Estado brasileiro tem entre seus objetivos o de assegurar que a sociedade seja livre. Isso significa que, concretamente, no meio social, dentre as várias ações possíveis, a da pessoa designada como consumidora deve ser livre. A consequência disso é que o Estado deverá intervir quer na produção, quer na distribuição de produtos e serviços, não só para garantir essa liberdade mas, também, para regular aqueles bens que, essenciais às pessoas, estas não possam adquirir por falta da capacidade de escolha. Explico. Primeiramente, como disse, o sentido de liberdade da pessoa consumidora, aqui, é o de "ação livre". Essa ação é livre sempre que a pessoa consegue acionar duas virtudes: querer + poder. Quando a pessoa quer e pode, diz-se, ela é livre; sua ação é livre. Assim, a regra básica será a da escolha com possibilidade de aquisição: a pessoa quer algo, tem dinheiro ou crédito para adquiri-lo, então é livre para fazê-lo. Contudo, haverá casos em que, justamente por não poder escolher, a ação da pessoa não será livre. E nessa hipótese a solução tem de ser outra. Estou me referindo à necessidade. O conceito é clássico: liberdade é o oposto de necessidade. Nesta não se pode ser livre: ninguém tem ação livre para não comer, não beber, para sair voando etc. Aplicado o conceito à realidade social, o que se tem é o fato de que o objetivo constitucional da construção de uma sociedade livre significa que, sendo a situação real de necessidade, o Estado pode e deve intervir para garantir a dignidade humana. Isso justifica, por exemplo, o controle pelo Estado da distribuição de produtos essenciais, do controle de seus preços, da garantia de acesso a hospitais e demais serviços públicos etc., bem como se verifica a obrigação do Estado em garantir esses mesmos direitos à pessoa. Ou, em outros termos, no estado de necessidade, a própria pessoa pode exigir do Estado essa conduta de garantia a seus direitos. Além disso, o tema da liberdade envolve a da possível opção da pessoa consumidora para adquirir produtos e serviços. Acontece que, em larga medida, é impróprio falar que essa pessoa age com "liberdade de escolha". Isso porque, como ela não tem acesso aos meios de produção, não é ela quem determina o quê nem como algo será produzido e levado ao mercado. As chamadas "escolhas" da pessoa consumidora, por isso, estão limitadas àquilo que é oferecido. São restritíssimas as chances dela optar: pode, quando muito, escolher o preço mais barato, as melhores condições de pagamento etc., mas a restrição é dada pela própria condição material do mercado. Examinemos um exemplo, com uma analogia, ainda que imperfeita, mas que permite a elucidação desse problema. Tomemos um desempregado, dentre as dezenas de milhares do Estado de São Paulo. Suponhamos que, em um final de semana, esse desempregado, procurando emprego em sites de ofertas, tenha tido a sorte de encontrar duas interessantes. Vamos supor que as tais duas ofertas de emprego estejam localizadas em indústrias perto de sua residência: uma à esquerda de sua casa, no quarteirão próximo, e outra à direita, também no quarteirão próximo: estão à mesma distância, em direções opostas. Duas alternativas para trabalhar. Na segunda-feira cedo ele procura a da esquerda, faz um teste e é aprovado: oferecem-lhe emprego com oito horas de trabalho por dia, décimo terceiro e décimo quarto salários mais os direitos legais, e sábados livres, pagando um salário de R$2.000,00 por mês. À tarde procura a da direita, faz um teste e é aprovado: oferecem-lhe emprego com oito horas de trabalho por dia, décimo terceiro e décimo quarto salários mais os direitos legais, e sábados livres, pagando um salário de R$3.000,00 por mês. Agora, pergunta-se: qual dos dois empregos ele vai aceitar? Duas ofertas de emprego idênticas; a única diferença é o salário. Obviamente, ele vai escolher a que paga salário de R$3.000,00 por mês. É o máximo que ele tem de "opção", porque, aliás, o desempregado é não só vulnerável, como prisioneiro da impossibilidade de não trabalhar: ele não tem opção; tem de arrumar emprego e aceitar aquilo que lhe oferecem. Com a pessoa consumidora acontece algo similar. Ela vai ao mercado procurar e adquirir produtos e serviços dos quais precisa. Se existir um fornecedor único (monopólio) ela já está perdendo; o mesmo ocorrerá se se tratar de oligopólio; se existir mais de um fornecedor, ela pode escolher, mas, claro, a escolha é sempre limitada pela oferta. Ela não tem como inventar, criar oferta; só pode escolher dentro do que lhe oferecem. A pessoa consumidora é sempre atraída pela oferta, às vezes de preços e pagamentos menores, de prestações menores. E mesmo a pessoa consumidora com mais poder aquisitivo é vulnerável, pois não tem acesso nem determina o ciclo de produção.
Começo neste artigo a examinar os princípios constitucionais que influenciam as normas e princípios do CDC. Inicio pelo princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Com efeito, as constituições federais do ocidente são documentos históricos políticos ideológicos que refletem o andamento do pensamento jurídico da humanidade. Tanto é verdade, que a primeira Constituição do pós-guerra, da Segunda Grande Guerra, a Constituição alemã, traz exatamente, por força desse movimento, desse pensamento jurídico humanitário, no seu art. 1º, que a dignidade da pessoa humana é um bem intangível. Foi a experiência com o nazismo da Segunda Guerra Mundial que fez com que as nações produzissem textos constitucionais reconhecendo esse elemento da história. Existem autores que entendem que é a isonomia a principal garantia constitucional1, e explicam como, efetivamente, ela é importante. Contudo, no atual diploma constitucional, pensamos que o principal direito constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana. É ela, a dignidade, o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. A isonomia (como demonstrarei em outro artigo), servirá para gerar equilíbrio real, visando concretizar o direito à dignidade. Mas, antes, há que se fazer uma avaliação do sentido de dignidade. Coloque-se, então, desde já, que, após a soberania, aparece no texto constitucional a dignidade como fundamento da República brasileira. Leiamos o art. 1º: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indis­solúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana". E esse fundamento funciona como princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional2. Lembro, agora, da expressão "mínimo vital", utilizada pelo Professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo3. Diz ele que, para se começar a respeitar a dignidade da pessoa humana, tem-se de assegurar concretamente os direitos sociais previstos no art. 6º da Carta Magna, que por sua vez está atrelado ao caput do art. 225. Tais normas dispõem, verbis: "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". "Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". De fato, não há como falar em dignidade se esse mínimo não estiver garantido e implementado concretamente na vida das pessoas. Como é que se poderia imaginar que qualquer pessoa teria sua dignidade garantida se não lhe fosse assegurada saúde e educação? Se não lhe fosse garantida sadia qualidade de vida, como é que se poderia afirmar sua dignidade? A dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato já de ser pessoa. Se - como se diz - é difícil a fixação semântica do sentido de dignidade, isso não implica que ela possa ser violada. Como dito, ela é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais. Ainda que não seja definida, é visível sua violação, quando ocorre. Ou, em outros termos, se não se define a dignidade, isso não impede que na prática social se possam apontar as violações reais que contra ela se realizem4. __________ 1 Por exemplo, José Souto Maior Borges, Sobre a atualização de créditos do sujeito passivo contra o Fisco, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 32, p. 45. 2 O § 7º do art. 226 da CF também se refere expressamente à dignidade: "Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas". 3 O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil, passim. São Paulo: Saraiva, 2000. 4 Para uma completa análise do sentido de dignidade como garantia constitucional consulte-se o nosso O princípio constitucional da dignidade humana. São Paulo: Saraiva, 2002.
No que respeita às normas constitucionais que tratam da questão dos direitos e garantias do consumidor, elas são várias, algumas explícitas, outras implícitas. A rigor, como a figura do consumidor, em larga medida, equipara-se à do cidadão, todos os princípios e normas constitucionais de salvaguarda dos direitos do cidadão são também, simultaneamente, extensivos ao consumidor pessoa física. Dessarte, por exemplo, os princípios fundamentais instituídos no art. 5º da Constituição Federal são, no que forem compatíveis com a figura do consumidor na relação de consumo, aplicáveis como comando normativo constitucional. Lembre-se, que o motivo que deve levar todo estudioso de qualquer sistema dogmático infraconstitucional à análise, em primeiro lugar, dos princípios e normas da Constituição aplicáveis ao setor jurídico escolhido é simplesmente o fato irretorquível da hierarquia do sistema jurídico. Como se sabe, o sistema jurídico brasileiro (como de resto os demais sistemas constitucionais contemporâneos) é interpretável a partir da ideia de sistema hierarquicamente organizado, no qual se tem no topo da hierarquia a Constituição Federal. Qualquer exame de norma jurídica infraconstitucional deve ser iniciado, portanto, da norma máxima, daquela que irá iluminar todo o sistema normativo. A análise e o raciocínio do intérprete se dão, assim, dedutivamente, de cima para baixo. A partir disso o intérprete poderá ir verificando a adequação e constitucionalidade das normas infraconstitucionais que pretende estudar.  A inconstitucionalidade ele resolverá, como o próprio nome diz, apontando o vício fatal na norma infraconstitucional. A adequação será norteadora para o esclarecimento, ampliação e delimitação do texto escrito da norma infraconstitucional, bem como para a apresentação precisa de seus próprios princípios. É a Constituição Federal, repita-se, o órgão diretor. É um grave erro interpretativo iniciar a análise dos textos a partir da norma infraconstitucional, subindo até o topo normativo e principiológico magno. Ainda que a norma infraconstitucional em análise seja bastante antiga, aceita e praticada, e mesmo diante do fato de que o texto constitucional seja muito novo, não se inicia de baixo. Em primeiro lugar vem o texto constitucional. Com efeito, o ato interpretativo está ligado diretamente à noção de sistema jurídico. Na verdade, é da noção de sistema que depende grandemente o sucesso do ato interpretativo. A maneira pela qual o sistema jurídico é encarado, suas qualidades, suas características, são fundamentais para a elaboração do trabalho de interpretação. A ideia de sistema está presente em todo o pensamento jurídico dogmático, nos princípios e valores dos quais ele parte e na gênese do processo interpretativo, quer o argumento da utilização do sistema seja apresentado, quer não. Sua influência é tão profunda e constante que muitas vezes não aparece explicitamente no trabalho do operador do direito - qualquer que seja o trabalho e o operador -, mas está, pelo menos, sempre subentendido. Diríamos também, aqui, que a noção de sistema é uma condição a priori do trabalho intelectual do operador do direito. O sistema não é um dado real, concreto, encontrado na realidade empírica. É uma construção científica que tem como função explicar a realidade a que se refere. Além de ser um objeto construído, o sistema é um objeto-modelo que funciona como intermediário entre o intérprete e o objeto científico que pertence à sua área de investigação. É uma espécie de tipo ideal, para usar da expressão cunhada por Max Weber1. O tipo ideal é construído a partir da concepção de sentido, como sendo aquilo que "faz sentido", como se, de repente, todas as conexões causais fossem uma totalidade. Não surge o sentido como significação de acontecimentos particulares, mas como algo percebido em bloco: unidades que não se articulam são captadas em conjunto. O tipo ideal é um produto racional que seleciona as conexões causais, removendo o que há de alheio. É uma espécie de modelo; o que não se encaixa não serve e é deixado de lado. Construído o modelo, capta-se o sentido. Como produto, tipo-ideal, objeto-modelo, o sistema é uma espécie de mapa, que reduz a complexidade do mundo real, à qual se refere, mas é o objeto por meio do qual se pode compreender a realidade. No sistema jurídico os elementos são as normas jurídicas, e sua estrutura é formada pela hierarquia, pela coesão e pela unidade. A hierarquia vai permitir que a norma jurídica fundamental (a Constituição Federal) determine a validade de todas as demais normas jurídicas de hierarquia inferior. A coesão demonstra a união íntima dos elementos (normas jurídicas) com o todo (o sistema jurídico), apontando, por exemplo, para ampla harmonia e importando em coerência. A unidade dá um fechamento ao sistema jurídico como um todo que não pode ser dividido: qualquer elemento interno (norma jurídica) é sempre conhecido por referência ao todo unitário (o sistema jurídico). Mas a construção do sistema jurídico, como objeto-modelo que possibilite a compreensão do ordenamento jurídico e seu funcionamento, ainda não está completa (na verdade, a história mostra que o objeto-modelo "sistema jurídico" está sempre sendo aperfeiçoado pelo pensamento jurídico como um todo). Por isso se fala em completude, cuja definição remete ao conceito de lacuna. Esta, por sua vez, pressupõe ausência de norma, que se colmata pelo princípio da integração executada pelo intérprete2 e que, no sistema jurídico brasileiro, tem regra de solução expressa: a do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Civil Brasileiro3. ____________ 1 Economía y sociedad, p. 706 e 1057. 2 Sobre o tema da completude e das lacunas ver o nosso Manual de introdução ao estudo do direito, Capítulo 6, subitem 6.7. 3 "Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
O Código de Defesa do Consumidor é, ele próprio, formado por princípios que hão de ser respeitados pelo intérprete, como, num futuro artigo eu demonstrarei. Mas, antes de ingressar no exame do arcabouço dogmático do CDC, é necessário que conheçamos as normas constitucionais às quais ele está ligado e que, portanto, devem dirigi-lo. Além disso, é forçoso que se reconheça, da mesma forma, os princípios constitucionais que conduzam à interpretação não só do próprio texto magno como também do CDC. A Constituição, como se sabe, no Estado de Direito Democrático, é a lei máxima, que submete todas as pessoas, bem como os próprios Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. As normas constitucionais, além de ocuparem o ápice da "pirâmide jurídica", caracterizam-se pela imperatividade de seus comandos, que obrigam não só as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito privado, como o próprio Estado. A Carta Magna exprime um conjunto de normas supremas, que demandam incondicional observância, inclusive pelo legislador infraconstitucional. Não é por outro motivo que se diz que a Constituição é a lei fundamental do Estado. Logo, não há como duvidar que as normas jurídicas mais importantes encontram-se na Constituição. É ela que indica quem detém os poderes estatais, quais são esses poderes, como devem ser exercidos e quais os direitos e garantias que as pessoas têm em relação a eles. Mas mesmo na Constituição existem normas mais relevantes que outras. Essas, mais importantes, são as que veiculam princípios, verdadeiras diretrizes do ordenamento jurídico. É deles que me ocuparei. Os princípios constitucionais são verdadeiras vigas mestras, alicerces sobre os quais se constrói o sistema jurídico. Eles dão estrutura e coesão ao edifício jurídico. Assim, devem ser estritamente obedecidos, sob pena de todo o ordenamento jurídico se corromper. O princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos horizontes do sistema jurídico e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam. O princípio jurídico influi na interpretação até mesmo das próprias normas magnas. Se um mandamento constitucional tiver pluralidade de sentidos, a interpretação deverá ser feita com vistas a fixar o sentido que possibilitar uma sintonia com o princípio que lhe for mais próximo. Da mesma maneira, se surgir uma aparente antinomia entre os textos normativos da Constituição, ela será resolvida pela aplicação do princípio mais relevante no contexto. Na realidade o princípio funciona como um vetor para o intérprete. E o jurista, na análise de qualquer problema jurídico, por mais trivial que este possa ser, deve, preliminarmente, alçar-se ao nível dos grandes princípios, a fim de verificar em que direção eles apontam. Nenhuma interpretação será havida por jurídica se atritar com um princípio constitucional. Percebe-se, assim, que os princípios exercem uma função importantíssima dentro do ordenamento jurídico-positivo, já que orientam, condicionam e iluminam a interpretação das normas jurídicas em geral. Por serem normas qualificadas, os princípios dão coesão ao sistema jurídico, exercendo excepcional fator aglutinante. Embora os princípios e as normas tenham a mesma estrutura lógica, aqueles têm maior pujança axiológica do que estas. São, pois, normas qualificadas, que ocupam posição de destaque no mundo jurídico, orientando e condicionando a aplicação de todas as demais normas. Pode-se dizer, portanto, que os princípios são regras-mestras dentro do sistema positivo, cabendo ao intérprete buscar identificar as estruturas básicas, os fundamentos, os alicerces do sistema em análise. Se se tratar da Constituição, falar-se-á em princípios constitucionais; se se referir ao CDC ou ao Código de Processo Civil, serão princípios legais daqueles sistemas normativos, de natureza infraconstitucional. Assim, a partir dessas considerações, percebe-se que os princípios funcionam como verdadeiras supranormas, isto é, uma vez identificados, agem como regras hierarquicamente superiores às próprias normas positivadas no conjunto das proposições escritas.
Hoje continuo a cuidar de mais alguns aspectos históricos para uma boa compreensão do Código de Defesa do Consumidor. Falo da importância da Constituição Federal para o funcionamento do regime capitalista no Brasil. Com efeito, as constituições federais do ocidente são documentos históricos políticos ideológicos que refletem o andamento do pensamento jurídico da humanidade. Tanto é verdade, que a primeira Constituição do pós-guerra, da Segunda Grande Guerra, a Constituição alemã, traz exatamente, por força desse movimento, desse pensamento jurídico humanitário, no seu art. 1º, que a dignidade da pessoa humana é um bem intangível. Foi a experiência com o nazismo da Segunda Guerra Mundial que fez com que as nações produzissem textos constitucionais reconhecendo esse elemento da história. No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 também o fez no art. 1º, III: a dignidade da pessoa humana é um bem intangível. Quando examinamos o texto da Constituição Federal brasileira de 1988, percebemos que ela, inteligentemente, aprendeu com a história e também com o modelo de produção industrial que relatei nos dois artigos anteriores. Podemos perceber que os fundamentos da República Federativa do Brasil são de um regime capitalista, mas de um tipo definido pela Carta Magna. Esta, em seu art. 1º, diz que a República Federativa é formada com alguns fundamentos, dentre eles a cidadania, a dignidade da pessoa humana e, como elencados no inc. IV do art. 1º, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa1. E sobre esse último aspecto, deve-se fazer um comentário específico. Tem-se dito, de forma equivocada, que esse fundamento da livre iniciativa na República Federativa do Brasil é o de uma livre iniciativa ampla, total e irrestrita. Na verdade, trata-se de uma interpretação errônea do texto. O inciso IV do art. 1º é composto de duas proposições ligadas por uma conjuntiva "e": "os valores sociais do trabalho 'e' da livre iniciativa". Para interpretar o texto adequadamente basta lançar mão do primeiro critério de interpretação, qual seja, o gramatical. Ora, essas duas proposições ligadas pela conjuntiva fazem surgir duas dicotomias: trata-se dos valores sociais do trabalho "e" dos valores sociais da livre iniciativa. Logo, a interpretação somente pode ser que a República Federativa do Brasil está fundada nos valores sociais do trabalho e nos valores sociais da livre iniciativa, isto é, quando se fala em regime capitalista brasileiro, a livre iniciativa sempre gera responsabilidade social. Ela não é ilimitada. Ou seja, o regime é capitalista. Logo há livre iniciativa, ela é possível, e aquele que tem patrimônio e/ou que tem condições de adquirir crédito no mercado pode, caso queira, empreender algum negócio. Mas, há de respeitar os limites impostos pelos princípios constitucionais. Assim, quando se chega ao art. 170 da Constituição Federal, que trata dos princípios gerais da atividade econômica, com seus nove princípios, esses elementos iniciais têm de ser levados em conta. ___________ 1. "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
Hoje continuo a cuidar de mais alguns aspectos históricos para uma boa compreensão do Código de Defesa do Consumidor (CDC). No artigo anterior, mostrei que partir do período pós-Revolução Industrial, com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais, para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para um maior número de pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização da produção. Pois bem. Este é o modo de produção, de oferta de produtos e serviços de massa do século XX. Só que, no caso brasileiro, nós aplicamos até 10 de março de 1991, o Código Civil às relações jurídicas de consumo, e isto gerou problemas sérios para a compreensão da própria sociedade. Passamos a interpretar as relações jurídicas de consumo e os contratos com base na lei civil, inadequada para tanto e, como isso se deu durante quase todo o século XX, tivemos dificuldade para entender e aplicar o CDC em todos os seus aspectos por muito tempo. Dou um exemplo: na questão contratual, nossa memória privatista pressupunha que, quando vemos o contrato, assistimos ao aforismo que diz pacta sunt servanda, posto que no direito civil essa é uma das características contratuais, com fundamento na autonomia da vontade. Ora, nas relações contratuais no direito civil, no direito privado, durante todo o século XX havia o pressuposto de que aqueles que querem contratar, sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento subjetivo volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo: proposições que, organizadas em forma de cláusulas impressas num pedaço de papel, faziam surgir o contrato escrito. Era a tentativa de delineamento objetivo de uma vontade, portanto elemento subjetivo. Era a escrita - o tipo de contrato - que o direito civil tradicional pretendia controlar1. Então, quando nos referíamos às relações contratuais privatistas, o que se fazia era uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que deveriam representar a vontade subjetiva das partes que estavam lá, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, os pactos devem ser respeitados. Acontece que isto não servia para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é completamente equivocado, porque o consumidor não se senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados em contratos de adesão, verbais ou escritos, elaborados unilateralmente pelos fornecedores. Tais elementos, o CDC pretendeu controlar, e de forma inteligente. O problema foi que, a aplicação da lei civil, assim como a memória dos operadores do direito, geraram uma série de equívocos. Até a oferta, para ilustrarmos com mais um exemplo, é diferente nos dois regimes: no direito privado é um convite à oferta; no direito do consumidor, é uma oferta que vincula o ofertante. Enfim, essa foi uma situação que, por um bom tempo, acabou afetando o entendimento da lei. __________ 1 Claro que não estamos esquecendo o contrato verbal, pois ele tem a mesma característica de tentativa de objetividade; só não foi escrito.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), como sabemos, foi editado em 11 de setembro de 1990; é, portanto, uma lei muito atrasada de proteção ao consumidor. Por exemplo, passamos quase o século XX inteiro aplicando às relações de consumo o Código Civil, lei que entrou em vigor em 1917, fundada na tradição do direito civil europeu do século anterior. Pensemos num ponto de realce importante: em relação ao direito civil, pressupõe-se uma série de condições para contratar, que não vigem para relações de consumo. No entanto, durante todo aquele tempo, no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para resolver os problemas que surgiram e, por isso, o fizemos de forma equivocada. Esses equívocos remanesceram na nossa formação jurídica, ficaram na nossa memória influindo na maneira como enxergávamos as relações de consumo, e, demoramos bastante para fazer uma limpeza dessa influência. E,  em algumas situações, ainda temos dificuldades para interpretar e compreender um texto que é bastante enxuto, curto, que diz respeito a um novo corte feito no sistema jurídico, e que regula especificamente as relações que envolvem os consumidores e os fornecedores. No entanto, apesar de atrasado no tempo, o CDC acabou tendo resultados altamente positivos, porque o legislador, isto é, aqueles que pensaram na sua elaboração - os professores que geraram o texto do anteprojeto que acabou virando a Lei n. 8.078 (a partir do projeto apresentado pelo, na época, Deputado Geraldo Alckmin) -, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. O resultado foi tão positivo que a lei brasileira já inspirou a lei de proteção ao consumidor na Argentina, reformas no Paraguai e no Uruguai e projetos em países da Europa. Olhemos, então, um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E essa sociedade tem uma origem bastante remota que precisamos pontuar, especialmente naquilo que nos interessa, para entendermos a chamada sociedade de massa, com sua produção em série, na sociedade capitalista contemporânea. Vamos partir do período pós-Revolução Industrial. Com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais, para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para um maior número de pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização da produção. Essa produção homogeneizada, "standartizada", em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção é um modelo que deu certo; veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial houve um incremento na produção, que se solidificou e cresceu em níveis extraordiná­rios a partir da Segunda Guerra Mundial com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações etc. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passa a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos do século passado se pudesse implementar a ideia de globalização. Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo destaca-se uma que interessa: nele a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar um único produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e a partir desta reproduzem-se milhares, milhões de vezes em série. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta uma quantia X de dinheiro na criação de um único modelo e, depois, o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas. Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Quem planeja a oferta de um serviço ou um produto qualquer, por exemplo, financeiro, bancário, para ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o imprime e distribui milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela lei 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor: no seu art. 54 está regulado o contrato de adesão. E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor, e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. __________ Continuarei na próxima semana.