sexta-feira, 5 de setembro de 2008O Suicídio do Trânsito - Direto e Indireto
Suicídio de trânsito é figura não-conhecida do direito pátrio, mas deveria. O suicídio, mesmo o comum, ainda que sob o aspecto formal configure indiferente penal, tem crucial relevância em sua perfeita identificação.
Sabe-se que o suicídio e a tentativa de suicídio não são tipificados na legislação penal. O primeiro por razão óbvia, a segunda por política criminal, dado o risco de estimular novas tentativas.
Conquanto não configure crime, é inquestionável tratar-se de ação ilícita, vez que afrontosa a um bem supremo: a vida. O próprio Código Penal, implicitamente, assim a considera (art. 146, § 3º, II).
O suicídio (matar a si mesmo), assim como o homicídio (matar alguém), pode se dar de forma direta ou indireta.
Na direta, o agente tem a intenção de matar. Na indireta, embora não tenha intenção de matar, assume o risco do previsível resultado morte, com o qual anui (dolo eventual); ou, não anui, presumindo que não irá ocorrer (culpa consciente); ou mata, simplesmente, por imperícia, imprudência ou negligência (culpa inconsciente).
Pois bem, no suicídio de trânsito assim se dá. O agente pode, por exemplo, deliberadamente se jogar na frente de um veículo em movimento, visando dar cabo à própria vida (suicídio de trânsito direto), como cruzar movimentada avenida fora da faixa de pedestres, ou, ainda, atravessar o leito de rodovia ao invés de fazê-lo pela segura passarela (suicídio de trânsito indireto com culpa consciente), ou, inopinadamente, cruzar a rua sem a devida atenção (suicídio de trânsito indireto com culpa inconsciente).
O que é importante sublinhar, é que em qualquer dessas hipóteses o condutor do veículo envolvido no evento não é, nem em tese, autor de homicídio de trânsito, previsto no artigo 302 do CBT (Código Brasileiro de Trânsito). O veículo em movimento é mero instrumento do qual serviu-se o suicida (intencional ou não), para matar-se. O condutor é vítima de danos materiais e morais, além de testemunha ocular do suicídio.
Contudo, esse não é o entendimento corrente, tampouco o que ocorre na prática.
Na prática, o desafortunado condutor que se vê envolvido em trágico evento desse jaez - enquanto seguia licitamente pela via pública, observando as normas legais e regulamentares - além de vivenciar o intenso trauma que decorre da involuntária participação na morte violenta de um ser humano, é, em regra, indiciado como autor de homicídio de trânsito, e, logo adiante, denunciado perante a justiça criminal, transformando-se em réu de ação penal, gravosa condição que suporta até o momento em que seja proferida sua absolvição.
Cumpre indagar: é justo? É razoável? Não parece.
Nessas circunstâncias, sublinhe-se, o condutor não dá causa ao evento em que resulta morto o pedestre - que agiu de forma temerária, desatenta, ou até mesmo intencional - é vítima dele. Trafega regularmente, com veículo em perfeito estado, observando a velocidade permitida e demais regras de trânsito, com a atenção e prudência que se espera do homem médio, quando subitamente emerge na frente do veículo o pedestre suicida, que morre.
Então, o pedestre não foi morto, matou-se. Deixou deliberadamente de fazer uso da faixa de travessia para pedestres, cruzando movimentada via em local proibido, perigoso, assumindo assim o risco de matar-se. Anuindo, na lição de Nelson Hungria, ao advento do resultado; arriscando-se a produzi-lo, ao invés de renunciar a ação temerária e caminhar mais alguns metros realizando a passagem em segurança.
Aliás, em tais hipóteses o pedestre não apenas deixa de realizar a passagem em segurança, mas o faz de forma ilícita, descumprindo regras de circulação e conduta para pedestres ditadas pelo CTB, dispostas no artigo 69.
O Código de Trânsito também tipifica infrações no artigo 254, dentre as quais: “é proibido ao pedestre permanecer ou andar nas pistas de rolamento, exceto para cruzá-las onde for permitido; cruzar pistas de rolamento nos viadutos; atravessar a via dentro das áreas de cruzamento; andar fora da faixa própria, passarela, passagem aérea ou subterrânea; desobedecer à sinalização de trânsito específica”, proibições, em regra, ignoradas.
De outra parte, não se desconhece a fragilidade do ser humano frente às máquinas; que existem motoristas potencialmente assassinos, irresponsáveis, psicóticos, violentos, indivíduos que merecem sofrer as mais duras penas e restrições que se lhes possam legalmente impor.
Contudo, aqui o que se pretende questionar é o equivocado enquadramento padrão que habitualmente se dá ao atropelamento no trânsito, partindo da preconcebida premissa que o autor do evento é sempre o condutor do veículo e a vítima é sempre o atropelado, salvo a menos freqüente hipótese de suicídio direto, quando inequívoca e testemunhada.
Desse equívoco crucial derivam outros, como o sustentado por parte ponderável da doutrina e da jurisprudência que considera justa e adequada a presunção relativa de culpa dos condutores, daí autorizando a inversão do ônus da prova. Isso, bem entendido, na esfera da responsabilização civil.
O pior, como antes visto, é o que se passa na esfera penal. Ali o condutor, vítima do evento mortal a que deu causa o pedestre suicida (intencional ou não), torna-se, sempre, autor, em tese, de homicídio culposo de trânsito, submetido à injusta situação de coação processual.
Oportuno anotar, segundo matéria veiculada no jornal O Estado de São Paulo de 24 de setembro de 2007, que “Dez anos depois da entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro, 76% dos atropelamentos fatais investigados pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) em São Paulo no ano passado ocorreram em travessias ‘ao longo da via’, e não em cruzamentos. Mas, em 26% do total de casos, a culpa não foi do pedestre: automóveis desgovernados invadiram canteiros centrais ou calçadas.”
Deflui dos aludidos dados estatísticos oficiais que os pedestres têm culpa em 74% dos atropelamentos ocorridos na cidade de São Paulo. O elevado índice talvez se explique pelo fato de que, segundo consta, cerca de 50% dos atropelados revelaram a presença de álcool no sangue. E, como bem observado alhures, “ao contrário do que acontece com o condutor, não há legislação que permita a autoridade policial deter temporariamente o pedestre bêbado, a não ser que esteja perturbando a ordem”.
Quanto à equivocada presunção de culpa dos condutores, bastante arraigada na jurisprudência pátria, vale transcrever excerto de iluminado voto-condutor do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Antônio de Pádua Ribeiro, relator do Recurso Especial nº 169-937-RS, que frente a evento do gênero, assim deixou assente: “Trata-se, na espécie, de acidente de trânsito, atropelamento, envolvendo o veículo da ré e as duas autoras, em sinaleiro de via movimentada. Não há motivo aparente para que se presuma a culpa de qualquer uma das partes. O acidente poderia ser provocado tanto pela desatenção do motorista, como das pedestres.”
Assim, não parece razoável que cidadãos que trafeguem licitamente, observando as normas de trânsito, e que, inopinadamente, se vêem envolvidos em inevitável acidente fatal causado por pedestre que agiu de forma temerária e manifestamente ilícita (cruzando via movimentada em local proibido, sem fazer uso da faixa ou passarela de pedestre), ou com imprudência ou negligência, venham a ser automaticamente qualificados de autores de homicídio e submetidos a processo penal na condição de réus, sob tal gravosa imputação.