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Florianópolis - Candidato obtém direito de concorrer às vagas da UFSC destinadas a negros

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3/12/2007


Em SC

Candidato obtém direito de concorrer às vagas da UFSC destinadas a negros

Um candidato ao curso de Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC obteve na Justiça Federal sentença que lhe assegura o direito de concorrer a todas as vagas em disputa no próximo vestibular, incluídas aquelas destinadas aos candidatos negros. O juiz Carlos Alberto da Costa Dias, da 2ª Vara Federal de Florianópolis, em decisão proferida no dia 29/11, considerou que a reserva de vagas prevista em resolução do Conselho Universitário e no edital do vestibular viola o princípio constitucional da igualdade (v. abaixo a decisão na íntegra). A sentença tem efeitos apenas em relação ao autor da ação e a UFSC pode recorrer.

O estudante impetrou MS contra a UFSC, alegando que a reserva de vagas estabelecida em normas da universidade seria ilegal e abusiva. De acordo com resolução do Conselho Universitário de 10 de julho, para execução da "ação afirmativa de acesso aos cursos de graduação", 30% das vagas do próximo vestibular terão destinação previamente definida, sendo 20% para candidatos que tenham cursado o ensino fundamental e médio integralmente em escolas públicas e 10% para candidatos auto declarados negros, que também não tenham cursado escolas privadas. Para o magistrado, a distinção é contrária à Constituição.

"A supressão de vagas ao ‘não-negro’ viola o princípio constitucional da igualdade, sem que haja real fator para privilegiar o denominado ‘negro’, em detrimento do denominado ‘não-negro’", afirmou Costa Dias. Na sentença, o juiz entende que é possível eleger um grupo de pessoas a fim de diminuir desigualdades sociais, como é o caso do percentual de vagas para portadores de deficiência em concursos públicos. Entretanto, "o fator de discrímen, para não ser arbitrário e, portanto, inconstitucional, deve ser pertinente, guardar relação de causa e efeito, ser determinante, explicar o motivo por que se considera aquele grupo ou categoria inferior".

Segundo o magistrado, o maior obstáculo ao acesso do negro ao ensino superior não seria a condição de negro, "mas o fato de o ensino público anterior ao vestibular ser de má-qualidade e a sua condição social, eventualmente, não possibilitar dedicação maior aos estudos, ou outros fatores que devem ser melhor estudados e debatidos". O juiz também se refere ao sistema norte-americano de ação afirmativa, dizendo que o modelo não pode ser aplicado à realidade brasileira.

Para Costa Dias, não é possível identificar com precisão quem é negro no Brasil. "Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos da América, a miscigenação entre os denominados ‘brancos’ e ‘negros’ torna a identificação por fenótipo absolutamente inconsistente", além disso, "o processo seletivo americano não é baseado constitucionalmente no princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola", havendo seleção de candidatos com aptidão para determinados esportes, por exemplo. "Se há dívida social – como de fato há – não é exclusivamente com o negro, mas com toda a universalidade dos que estejam socialmente em desvantagem", concluiu.

Veja abaixo a decisão na íntegra.

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MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2007.72.00.011867-0/SC

IMPETRANTE : TIAGO DUARTE DO NASCIMENTO

ADVOGADO : FRANCISCO JOAO LESSA

IMPETRADO : REITOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

: PRESIDENTE DO CONSELHO UNIVERSITARIO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UFSC

: PRESIDENTE DA COMISSÃO PERMANENTE DE VESTIBULAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA COPERVE UFSC

SENTENÇA

1. Tiago Duarte do Nascimento, assistido por seu genitor, Márcio Bittencourt do Nascimento, impetra mandado de segurança contra ato do Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina e do Presidente da Comissão Permanente do Vestibular - Coperve, com pedido de ordem liminar, inaudita altera parte, para assegurar direito líquido e certo de concorrer à totalidade das vagas ofertadas para o curso de Geografia Diurno no Vestibular 2008, incluídas as reservadas a "negros" ou "indígenas", e, em conseqüência disso, de ser classificado, exclusivamente, pelas notas que obtiver no concurso. Em provimento final, o impetrante pede a concessão da segurança para ver declarado o seu direito a concorrer à totalidade das vagas do curso aludido, vindo a ser considerada a sua posição na frente daqueles que obtiverem menor resultado na classificação geral, ainda que sejam auto-declarados "negros" e reconhecidos como tais por comissão própria para esse fim.

2. O ato ilegal e abusivo do direito, segundo o impetrante, consiste na Resolução Normativa 8/Cun/2007, bem como no Edital 4/COPERVE/2007, que institui o concurso vestibular, complementado pelo Edital 7/COPERVE/2007, os quais o impediriam "de concorrer pela totalidade das vagas" oferecidas para o curso.

3. A autoridade impetrada, notificada, em 22 de outubro de 2007, conforme certidão, à folha 44-verso, presta informações, às folhas 46 a 50, para defender a legalidade e a constitucionalidade da Resolução e dos Editais.

4. O Ministério Público Federal manifesta-se, às folhas 66 a 86.

É o relatório. Decido.

O ATO IMPETRADO

5. Com o objetivo de cumprir a ordem constitucional de "reduzir as desigualdades sociais" (artigo 3º. da Constituição Federal), a Universidade Federal de Santa Catarina editou a Resolução Normativa 8/Cun/2007, de 10 de julho de 2007, que cria o Programa de Ações Afirmativas, com orientação específica, entre outras, de garantir o acesso aos cursos de graduação (artigo 4º., inciso II) a candidatos indígenas (artigo 9º., §§ 1º. e 2º.), negros e outros provenientes do ensino fundamental e médio em instituições públicas, (artigo 6º., incisos I e II), nesses termos:

Artigo 6º. Para implementação da ação afirmativa de acesso aos cursos de graduação da Universidade a que se refere o inciso II do artigo 4º. será destinado 30% das vagas do vestibular, em cada curso, que serão distribuídas da seguinte forma:

I - 20% (vinte por cento) para candidatos que tenham cursado integralmente o ensino fundamental e médio em instituições públicas de ensino;

II - 10% (dez por cento) para candidatos auto declarados negros, que tenham cursado integralmente o ensino fundamental e médio em instituições públicas de ensino.

[...]

Art. 9º. Para a implementação do acesso aos candidatos pertencentes aos povos indígenas, a que se refere o inciso III do art. 2º., serão criadas 5 (cinco) vagas suplementares que serão preenchidas pelos candidatos melhor classificados no vestibular.

§ 1º. A vagas a que se refere o caput deste artigo serão criadas especificamente para este fim nos cursos em que houver candidatos aprovados, observado o limite de 2 (duas) vagas por curso.

§ 2º. O número de vagas a que se refere o parágrafo anterior será alterado, a cada ano, mediante a criação de uma nova vaga, até perfazer o total de 10 vagas em 2013.

6. No que se refere às vagas destinadas aos candidatos "indígenas", não há reserva, mas criação de vagas novas, destinadas exclusivamente àqueles candidatos que obtiverem a pontuação mínima exigida. Não havendo candidatos "indígenas" aprovados em determinado curso, não haverá criação de novas vagas. Logo, não há supressão de vagas do total oferecido e, conseqüentemente, não há interesse processual para o pedido para concorrer à totalidade das vagas.

7. Para concorrer às vagas reservadas a "negros" (termo a que, neste mandado de segurança, farei referência entre aspas, por ser um critério relativo e de difícil definição, conforme fundamentarei no momento oportuno), por outro lado, o candidato deverá fazer a sua opção pelo benefício da ação afirmativa no ato de inscrição do vestibular (artigo 6º., § 1º.); os candidatos que se interessarem em fazer a sua opção pelas vagas reservadas, também concorrerão às vagas pela classificação geral (artigo 6º., § 2º.). Caso o número de candidatos provenientes do ensino fundamental e médio em instituições públicas não for suficiente para preencher 20% das vagas totais, o percentual remanescente será preenchido por meio da classificação geral (artigo 6º., § 3º.). Caso o número dos candidatos auto-declarados "negros" e provenientes do ensino público não for suficiente para preencher 10% das vagas totais, o remanescente será preenchido por "negros", oriundos do sistema de ensino privado (artigo 6º., § 4º.). Se ainda existirem vagas remanescentes, serão destinadas ao preenchimento de acordo com a classificação geral (artigo 6º., § 5º.).

Conforme se vê, o candidato que não se declarar "negro", será automaticamente considerado "não-negro". Essa exigência de auto-declaração e classificação segundo o critério de cor da pele, é, por si só, constrangedora e racista, porque obriga aquele que pretender disputar as vagas reservadas a se auto-discriminar, sem que, para isso, haja fundamento científico ou empírico.

Depreende-se das normas transcritas que existe a possibilidade de um candidato considerado "negro", com menor pontuação, excluir uma vaga de "não-negro" com maior pontuação. Essa hipótese não ocorre, é certo, no caso de o candidato auto-declarado e reconhecido como "negro", ao concorrer na classificação geral, obter nota superior ao "não-negro" e, nesssa qualidade ainda, preencher vaga destinada exclusivamente a "negro".

Logo, o cerne da questão reside em identificar a razoabilidade e a proporcionalidade do fator de discrímen, especificamente da qualidade de "negro", para efeito de promoção de políticas afirmativas no âmbito do processo seletivo do vestibular universitário.

PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE DO FATOR DE DISCRÍMEN

8. O Edital supramencionado, ao eleger como fator de discrímen a qualidade de "ser negro", não resiste ao controle de razoabilidade e proporcionalidade, consideradas na forma escalonada da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.

O requisito da adequação consiste em responder à seguinte pergunta no caso concreto: o Edital do concurso vestibular, ao conceder 10% das vagas ao candidato "negro", proveniente de escola pública ou particular subsidiariamente, é o meio normativo próprio para fomentar o objetivo de não-discriminação no acesso do denominado "negro" ao ensino superior?

A título de perseguir o objetivo não-discriminatório, em realidade, a norma discrimina os estudantes "negros", por serem "negros", que concorrem em igualdade de condições, sob o critério de mérito, ao acesso à universidade, sem que este fator: "ser negro", seja o motivo pelo qual não têm acesso ao ensino universitário.

9. Quanto ao requisito necessidade, essa análise deve enfrentar a seguinte questão: comparativamente a outros meios de "democratização racial do ensino", o Edital que privilegia vagas universitárias ao auto-declarado "negro" é o melhor meio para que parte da população, que antes não tinha acesso ao ensino, agora o tenha?

A resposta é negativa. O melhor meio para fomentar a não-discriminação é a criação de mais vagas e a melhoria da qualidade do ensino a todos aqueles que desejem o ensino universitário, e não somente ao denominado "negro", exclusivamente por ser "negro".

10. Quanto ao requisito de proporcionalidade em sentido estrito, a análise deve enfrentar a seguinte questão: a limitação do número de vagas a candidatos "não-negros" em favor dos "negros" é condizente com a idéia de assegurar o direito fundamental de acesso ao ensino universitário em igualdade de condições?

Também nesse caso, a análise do Edital não atende ao requisito de proporcionalidade em sentido estrito, porque a reserva de vagas aos auto-denominados "negros" implica diminuição da oferta geral de vagas no ensino público gratuito e subtrai, com isso, direito subjetivo e fundamental dos "não-negros" que, em princípio, têm capacidade e habilitação para cursar o estudo universitário.

DISCRIMINAÇÃO POSITIVA E FATOR DE DISCRÍMEN

11. Não se nega, na análise deste mandado de segurança, evidentemente, que se possa eleger positivamente um grupo ou categoria de pessoas com o objetivo de erradicar as desigualdades sociais, o que, aliás, é o objetivo do Estado Brasileiro (artigo 3º. da Constituição Federal) e que constitucionalmente é objeto de nosso Direito Positivo. A teor da leitura do artigo 5º., inciso LXXIV (assistência judiciária gratuita), artigo 37, inciso VIII (acesso ao cargo público ao deficiente), artigo 40, parágrafo 1º., inciso III, letra a (tempo de contribuição da mulher), artigo 203, inciso V (salário mínimo ao deficiente e ao idoso), artigo 230, parágrafo 2º. (gratuidade de transporte aos idosos), são várias as hipóteses em que se privilegia uma situação ou categoria coerentes com o que se quer ver protegido ou positivamente discriminado.

12. O fator de discrímen, no entanto, para não ser arbitrário e, portanto, inconstitucional, deve se pertinente, guardar relação de causa e efeito, ser determinante, explicitar o motivo por que se considera aquele grupo ou categoria inferior. E diga-se o óbvio: ser negro não é o motivo determinante - por si só - de inferioridade intelectual.

Presumindo-se verdadeira a hipótese que a política afirmativa pretende modificar - a dificuldade de acesso ao ensino público ao denominado "negro" -, prevalece, ainda assim, como obstáculo ao acesso do "negro" ao ensino universitário, não o atributo de "ser negro", mas o fato de o ensino público anterior ao vestibular ser de má-qualidade e a sua condição social, eventualmente, não possibilitar dedicação maior aos estudos, ou outros fatores que devem ser melhor estudados e debatidos.

Admitir que o fator de discrímen - ser negro - seja, como política pública, determinante da dificuldade do acesso ao ensino é, por si só, mais do que discriminatório, é estigmatizante, e não tem, como demonstrarei no momento próprio, amparo na literatura especializada.

13. Não é sem relevância a análise, ainda que sintetizada, do modelo norte-americano de discriminação positiva em virtude da qualidade de ser "negro", para acesso ao ensino público, para demonstrar que, no contexto brasileiro, o Edital, da forma preconizada na Universidade Federal, deve ser entendido como retrocesso.

É consabido que a origem de modelos como ora atacado, que unem critérios de "meritocracia com processos seletivos sensíveis à qualidade racial" (meritocracy with race-sensitive safety valves), tem como fundamento teórico trabalhos acadêmicos norte-americanos (entre eles, cito por todos: "Race: The Reality of Human Differences". Editora Basic Books. 2004, autor Vincent Sarich), que não gozam, absolutamente, de unanimidade sequer na aplicação de sua teoria em sua própria Nação.

14. A Suprema Corte Americana, em sua fase mais restritiva ao acesso ao ensino público por negros, que se iniciou a partir do caso Plessy v. Ferguson, tinha como mote "iguais mas separados". Era assegurado aos "negros" o acesso ao estudo universitário, contanto que se mantivessem separados, exclusivamente por serem "negros".

Esse modelo não se aplica ao caso brasileiro. De fato, ao contrário de integrar o estudante "negro" no ambiente acadêmico, sob o mesmo critério de seleção por mérito, o critério racial de quotas, ao garantir o acesso, o estigmatiza por ser "negro" - ainda que tenha melhor qualificação intelectual. É o que se pretende com o modelo de quotas brasileiro. O "negro", ainda que proveniente de escola particular; ainda que com melhor qualificação na classificação geral; ainda que obtivesse a vaga sem o sistema de quotas, passa a ter de se auto-declarar "negro" e preencher a vaga segundo fenótipo racial e distinguir-se, separar-se, segregar-se dos demais por ter esse atributo. Enfim, retorna-se ao conservador mote "iguais mas separados", que tanto maculou o regime de liberdades públicas norte-americano.

15. Tampouco é aplicável ao contexto brasileiro a doutrina formada com a ampliação do acesso do negro americano ao estudo universitário, consubstanciada na corrente jurisprudencial que se formou a partir do julgamento do caso Brown v. Board of Education. Segundo esse julgamento, o negro americano ganhou a possibilidade de estudar no mesmo ambiente do estudante "não-negro", firme na convicção de que o melhor ambiente educacional é o que não estabelece diferenças por motivo de raça.

16. São basicamente dois os motivos pelos quais, ainda assim, o modelo norte-americano não serve à realidade brasileira. O primeiro, reside na impossibilidade de se identificar com precisão o que é ser "negro" no Brasil. Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos da América, a miscigenação entre os denominados "brancos" e "negros", torna a identificação por fenótipo absolutamente inconsistente, como desenvolverei posteriormente.

17. O segundo motivo consiste em que o processo seletivo americano não é baseado constitucionalmente no princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, como de fato é para nós brasileiros, nos termos do artigo 206, inciso I, da Constituição Federal. Lá, diferentemente daqui, não existe o vestibular e os critérios não se atêm à escolha do melhor aluno segundo um único critério, mas segundo vários, tais como: aptidão para esportes, aptidão para esta ou aquela atividade de natureza comportamental, relacionamento, parentesco e potencial para doações para fundos universitários, etc.

18. Assim, só é possível que se extraia alguma coerência da ampliação do acesso do "negro" americano ao estudo universitário por motivo racial porque nenhum dos outros critérios de admissão no ensino universitário seriam prevalentes ao de sua condição de "negro". O mesmo não se pode dizer do sistema de acesso ao ensino público universitário brasileiro. No Brasil, vige a igualdade de condições sob um único critério objetivo - a prova vestibular, que coloca o estudante "negro" em igualdade de condições com o "não-negro", desde que obedecido que o acesso ao ensino básico e secundário seja de qualidade, igualitário e universal.

19. Por fim, a partir do caso Parents v. Seattle and Meredith v. Jefferson, a Suprema Corte Americana deu fim à política de cotas ao julgar inconstitucional que o acesso ao ensino seja justificado por meio de classificação racial, o que denota a falência da discriminação racial positiva nos Estados Unidos da América.

20. Antes de prosseguir na análise de que a raça não deve ser o fator de discrímen para privilegiar o "negro" em detrimento do "não-negro", farei uma sintética referência à impossibilidade de se identificar o que seja o "negro", porquanto essa questão é anterior à primeira e exige da Universidade Federal "poder discricionário" sem fundamento científico ou empírico.

IMPOSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DO "NEGRO"

21. O auto-declarado "negro" submeter-se-á a uma comissão que lhe avaliará essa qualidade (artigo 8º., § 2º., da Resolução Normativa 8/CUN/2007, de 10 de julho de 2007). Esse critério, no entanto, não tem nenhum respaldo científico, servindo apenas à arbitrariedade.

Eugêne Schreider, especialista em antropologia física da Universidade de Paris, em artigo intitulado "Liaison anthropométriques dans l'espèce humaine" in Anthropologie, vol. LXVII, 1963, é peremptório em afirmar que o diagnóstico fundado na morfologia e constituição corporal não autoriza a identificação de raça. Basta dizer que, muitas vezes, o tipo étnico árabe, ou hindu, tem idênticas características do africano, sem que ninguém, nem mesmo o especialista em classificação étnica, para fins terapêuticos ou médicos, tenha condições de atestar a raça por intermédio de uma aferição visual. Tem exclusiva conotação estatística, portanto, a conclusão a que se chegou no Censo de 1991, no sentido de que a população de negros e pardos do Brasil era de 59,3 milhões, de uma população de 138,5 milhões. (Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, Pesquisa nacional por amostra de domicílios - 1987, Cor da População, v. 1, 1990, p. 2-3).

22. Por esse motivo, concluo que a comissão especialmente formada para validar a auto-declaração racial não tem fundamento científico para identificar o que seria o "negro", mormente no contexto brasileiro, em que, como se disse, a miscigenação é a característica essencial da Nação brasileira.

O NEGRO NÃO É INFERIOR PARA SER TUTELADO

RACISMO E ESCRAVIDÃO

23. Após concluir que não é possível identificar o "negro" por fenótipos de aferição visual, seja por conta da falta de fundamento científico, seja por conta da forte miscigenação, penso ser relevante anotar que não é procedente o argumento de que o fator de discrímen teria fundamento histórico em virtude da escravidão.

24. Não raras vezes se lê o argumento de que, passados mais de cem anos da abolição da escravatura, o povo Brasileiro continuaria ainda em débito para com o "negro". Absolutamente não se nega que a escravidão do "negro" no Brasil foi infame e teve conseqüências para a desigualdade social. O que parece, no entanto, imune à dúvida é que após a abolição se iniciou um processo irreversível de mobilidade social, não podendo ser considerado o "negro liberto", após a abolição, sujeito a tutela por hipossuficiência.

Sequer os defensores da abolição à época em que nossa Nação estava ainda em formação étnica admitiam que o "negro" continuaria a ser objeto de tutela, após a escravidão, por ser inferior. Alinho-me às idéias de Joaquim Nabuco, contidas no livro clássico "O Abolicionista". Ed. Nova Aguilar, 2002, p. 114, para desacreditar na inferioridade do negro após a abolição da escravatura:

Não há assim, entre nós, castas sociais perpétuas, não há mesmo divisão fixa de classes [...] Esse ente, [o escravo] assim equiparado, quanto à proteção social, a qualquer outra coisa de domínio particular, é, no dia seguinte à sua alforria, um cidadão como outro qualquer, com todos os direitos políticos, e o mesmo grau de elegibilidade. Pode mesmo, ainda na penumbra do cativeiro, comprar escravos, talvez quem sabe? - algum filho do seu antigo senhor.

Isso prova a confusão de classes e indivíduos, e a extensão ilimitada dos cruzamentos sociais entre escravos e livres, que fazem da maioria dos cidadãos brasileiros, se se pode assim dizer, mestiços políticos, nos quais se combatem duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado [...]

A escravidão, entre nós, manteve-se aberta e estendeu os seus privilégios a todos indistintamente: brancos ou pretos, ingênuos ou libertos, escravos mesmos, estrangeiros ou nacionais, ricos ou pobres; e dessa forma adquiriu, ao mesmo tempo, uma força de absorção dobrada e uma elasticidade incomparavelmente maior do que houvera tido se fosse um monopólio de raça, cono nos Estados do Sul [dos Estados Unidos da América]. Esse sistema de igualdade absoluta abriu, por certo, um melhor futuro à raça negra, do que era o seu horizonte na América do Norte.

25. Não se sustenta, portanto, a tese de que a escravidão teria deixado indelével a dívida histórica com a raça "negra". Se há dívida social - como de fato há - não é exclusivamente com o negro, mas com toda a universalidade dos que estejam socialmente em desvantagem. Se historicamente sofremos com a escravidão, condição análoga à dos escravos também tiveram os imigrantes europeus que para cá imigraram entre 1890 e 1930, porquanto não possuíam nenhuma qualificação nem recurso econômico, à exceção dos italianos urbanizados do norte da Itália, conforme noticia Carlos Hasenbalg, in Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. Humanitas. 2005, p. 175.

26. Evidentemente não se nega, com isso, a existência de recrudescimento preocupante de racismo contra o "negro" no Brasil, como testemunham vários estudiosos, entre eles Carlos Hasenbalg, em sua tese de doutorado: "Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil". Humanitas, 2005 e Lúcia Elena Garcial et al. "O Lugar do Negro na Força de Trabalho". Rio de Janeiro: IBGE. Rio de Janeiro. 1985. O que se deve ter em conta, contudo, na análise deste mandado de segurança, é "se" e "como" o racismo é obstáculo ao acesso ao ensino superior.

RACISMO E ACESSO AO ENSINO

Enfrentar o racismo sem combater as suas causas escamoteia o fim da política pública de eliminação das desigualdades, por fatores raciais. Com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE de 2004, as diferenças de acesso à educação dos diferentes tipos de cor, na definição do IBGE, é possível concluir dois pontos fundamentais. Primeiro: as diferenças de renda e de educação familiar, e não de cor, são os principais indicativos de o candidato ser aprovado no vestibular de uma Universidade concorrida. Segundo: o desempenho do candidato "negro" ou pardo não é absolutamente equivalente à melhoria do seu padrão de educação e de renda. Isso, no entanto, não significa que o acesso universitário tenha sido negado pela discriminação racial. Releva entender, com base nesses dados, é por que famílias que teriam condições de proporcionar as condições adequadas para o estudo não as proporcionam. (confronte a respeito dos números que sustentam essas conclusões, estudo de Simon Schwartzman, in Divisões Perigosas. Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo. Civilização Brasileira. 2007, p. 192 e 193)

Tenho por verdadeiro, portanto, que a discriminação racial não é fator direto de obstáculo do acesso ao ensino, nem há estudo que conclua dessa forma. "No Brasil contemporâneo, pelo menos, os negros, os mulatos em geral reduzem suas aspirações e deliberadamente limitam sua competição com os brancos, simplesmente para evitar serem lembrados 'de seus lugares' e sofrerem a humilhação pessoal e implícita em incidentes discriminatórios.

De fato, evitar a discriminação parece constituir a principal causa da técnica de socialização utilizada pelos pais não brancos, para ajustar aspirações subjetivas às possibilidades objetivas e proteger seus filhos de frustrações futuras" Carlos Hasenbalg, in Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. Humanitas. 2005, p. 210, fundamentado em idêntica conclusão de Florestan Fernandes. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 1965.

O enfrentamento e superação dessa questão de racismo demanda política pública de natureza muito mais difícil, complexa e onerosa do que a simples criação de quotas raciais na Universidade para ingresso do estudante. Penso que, de modo diverso, a solução não é simplesmente concorrer para atribuir Diploma de Bacharel mas, de fato, melhorar a qualidade do ensino e aumentar o número de vagas nas escolas públicas de ensino público médio e fundamental, de forma igualitária e universal, de modo a tornar também universal e igualitário o ensino universitário, seja a quem for e seja qual for a cor de sua pele. Diga-se o óbvio: atribuir título de Bacharel ao "negro" não significa eliminação do racismo e não tem o condão de abrir - por si só - oportunidade ao mais desfavorecido. Da forma preconizada pela Universidade Federal de Santa Catarina, não causaria surpresa se o ingresso do auto-denominado "negro" se transformasse em mais um fator de acirramento das relações inter-raciais, por ser - por si só - discriminatório no sentido negativo.

A obsessão da outorga do status universitário foi analiticamente denunciada por Sérgio Buarque de Holanda no seu livro Raízes do Brasil, Ed. Nova Aguilar, 2002, p. 1.056-1058, em que dedica especial atenção ao "sentido do Bacherelismo", como modelo colonial condenável em que se coloca em primeiro plano a posição social e em plano de descrédito a real capacidade de produzir e gerar riqueza, ou seja, o mérito. É temerária a crença de que a formação universitária outorgaria o status necessário ao indíviduo, de modo que apenas essa transformação bastaria para resolver as carências de mão-de-obra e de mercado, ou mesmo de "status social", e, por si só, estaria apta ou de alguma forma contribuiria para resolver os verdadeiros problemas sociais brasileiros.

Raymond Boudon, in Education opportunity and social inequality, p.XI, demonstra que "é possível haver um declínio no decorrer do tempo na desigualdade de oportunidades educacionais sem um correspondente declínio na desigualdade de oportunidades sociais." e sintetiza ainda Hasenbalg em nome do antropólogo norte-americano (opus cit. p. 204): "O raciocínio teórico de Boudon, junto com vários estudos empíricos realizados nos Estados Unidos - onde as relações entre as variáveis de estratificação nos grupos branco e não branco são analisadas - constituem forte evidência a favor da hipótese segundo a qual os relativos avanços educacionais dos não brancos não são necessariamente traduzidos em ganhos proporcionais em outras dimensões de estratificação."

CONCLUSÃO

27. O ensino é serviço público e deve ser, por isso, universal e igualitário. Não se nega que é sedutora, para não dizer demagógica, a idéia de se prover ensino público da população "negra", saneamento básico da população "negra", abastecimento de luz da população "negra", necessidades de água da população "negra", enfim, todas as necessidades básicas do "negro", mas isso não significa que os demais brasileiros devem deixar de ter acesso ao ensino, à luz, à água, ao esgoto, enfim, a todos os serviços públicos, em favor do "negro".

Ora, ser "negro" não é fator adequado para a promoção de política pública porque o que se objetiva com a ampliação do ensino, do saneamento, do fornecimento de água e de luz é a universalização do serviço público independentemente de raça. Portanto, a supressão de vagas ao "não-negro" viola o princípio constitucional da igualdade, sem que haja real fator para privilegiar o denominado "negro", em detrimento do denominado "não-negro".

DISPOSITIVO

28. Em face do exposto, concedo a segurança, considerando implicitamente prequestionados os artigos e incisos da Constituição Federal suscitados pelo impetrante, para reconhecer incidentalmente a inconstitucionalidade dos artigos 2º., inciso II, 6º., inciso II, 8º., caput e parágrafos, e 14, todos da Resolução Normativa 8/Cun/2007, de 10 de julho de 2007, bem como os itens 3.2, inciso II, 3.2.2, e 6.3.4.1, todos do Edital 4/COPERVE/2007, e determinar que o impetrante concorra, sem o óbice previsto na Resolução e no Edital, à totalidade das vagas do Curso de Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina, incluídas aquelas reservadas aos candidatos "negros". Não há custas a ser reembolsadas por ser o impetrante beneficiário da assistência judiciária gratuita. Não há, outrossim, condenação de honorários advocatícios, nos termos da Súmula 512 do Supremo Tribunal Federal e da Súmula 105 do Superior Tribunal de Justiça.

Sentença sujeita ao reexame necessário.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Florianópolis, 29 de novembro de 2007.

Carlos Alberto da Costa Dias
Juiz Federal

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