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"Não é pelo batom": Pena de 14 anos a bolsonarista se funda em crimes graves

Críticas ao voto de Alexandre de Moraes ignoram série de crimes que vão além do vandalismo na estátua da Justiça.

22/3/2025

Em 1972, um homem comum — sem armas, sem explosivos — escalou o altar da Basílica de São Pedro, em Roma, e desferiu quinze marteladas na escultura Pietà, de Michelangelo. Laszlo Toth gritou: "Eu sou Jesus Cristo!", enquanto destruía parte do rosto e do braço da Virgem Maria.

O martelo era pequeno, mas o estrago não foi medido em centímetros de mármore: foi simbólico, espiritual, civilizacional. Não importava que a escultura fosse restaurável. Importava o que ela representava. Era o sagrado profanado — e, com ele, toda uma ideia de ordem, beleza e transcendência.

Mais de cinquenta anos depois, em outro continente, uma mulher se aproximou de outra estátua e, com batom vermelho, escreveu a frase "perdeu, mané", em "A Justiça", de Alfredo Ceschiatti, que está diante do STF. 

Agora, Débora Rodrigues dos Santos está sendo julgada pelo STF. O relator, ministro Alexandre de Moraes, acompanhado, até o momento, pelo ministro Flávio Dino, votou pela condenação de Débora a 14 anos de prisão.

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Desde que o voto do relator foi divulgado, comentários de "tudo isso por pichar uma estátua?" ecoam nas mídias sociais.

Porém, é preciso lembrar que o objeto danificado é um detalhe, perto do envolvimento amplo da mulher com o pacto pelo desmonte do Estado Democrático de Direito. O verdadeiro desvario dos que estiveram no "dia da Infâmia", levados a crer que estariam acobertados pelo manto da verdade.

Iter criminis

Na linguagem do Direito Penal, existe um conceito-chave: iter criminis — o "caminho do crime". Ele descreve a progressão entre a ideia criminosa e a concretização, passando por etapas como cogitação, preparação, execução e, se consumado, o resultado final.

No caso de Débora, o gesto com o batom foi apenas o último passo de um trajeto longo, consciente e articulado, como detalhado no voto do ministro Alexandre de Moraes.

Segundo o relator, Débora aderiu, desde o final das eleições de 2022, a movimentos que negavam a legitimidade do processo eleitoral.

Participou de acampamentos diante de quartéis, onde se pregava insistentemente uma intervenção militar, apoiou publicamente a ruptura da ordem constitucional e, no dia 8 de janeiro de 2023, integrou o grupo que invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes, em Brasília.

A frase na estátua foi a assinatura final de uma narrativa golpista escrita ao longo de meses.

"A denunciada [...] concorreu para a prática dos crimes, somando sua conduta, em comunhão de esforços com os demais autores, objetivando a prática das figuras típicas imputadas", escreveu Moraes.

Para o ministro, Débora não apenas participou do ato, mas "revelou desprezo para com as instituições republicanas" ao apagar registros do próprio celular, em tentativa de ocultar provas de sua participação nos atos.

Débora Rodrigues dos Santos é julgada no STF por participar dos atos de 8 de janeiro.(Imagem: Gabriela Biló/Folhapress)

Não foi só pela estátua — e nem poderia ser

Um dos equívocos mais comuns nas críticas ao julgamento é ignorar o conjunto de crimes imputados à ré.

Débora não está sendo processada "por pichar uma estátua". Se fosse apenas por isso, a pena seria simbólica: o crime de deterioração de patrimônio tombado tem pena máxima de três anos, e permitiria inclusive sanção alternativa à prisão.

Na realidade, ela responde por cinco crimes:

A pena sugerida — 14 anos — decorre do concurso material entre esses delitos, todos descritos como resultantes de uma "obra comum".

Segundo Moraes, "o desencadeamento violento da empreitada criminosa afasta a possibilidade de que a denunciada tenha ingressado na Praça dos Três Poderes de maneira incauta".

A conclusão não se baseia apenas no gesto com o batom, mas em laudos, imagens, mensagens apagadas e no depoimento da própria ré, que admitiu o vandalismo.

A força do símbolo e a denúncia contra o arbítrio

O episódio também lembra, em outro contexto histórico, o ambiente de paranoia e distorção que marcou o Caso Dreyfus, no fim do século XIX, na França.

Na época, o capitão Alfred Dreyfus foi falsamente acusado de traição, em processo conduzido sob pressão de setores do Exército e da opinião pública, alimentados por preconceito e por teorias conspiratórias.

Contra as evidências e contra a razão, formou-se uma crença coletiva de que Dreyfus era culpado — porque assim parecia servir melhor a determinados interesses políticos e ideológicos.

O escritor Émile Zola, ao publicar o célebre artigo "J’accuse…!", desafiou esse pacto de ilusão com uma denúncia frontal: o Estado estava disposto a sacrificar a verdade para manter intacta uma versão conveniente da realidade.

É justamente esse tipo de delírio que ressurge em parte dos discursos que tentam justificar os atos do 8 de janeiro. Na tentativa de reescrever os fatos, multiplicam-se versões alternativas — ora negando o vandalismo, ora alegando que tudo foi uma encenação, ora tratando os réus como vítimas de perseguição.

A frase escrita por Débora na estátua — "perdeu, mané" — foi mais do que deboche. Foi a tentativa de afirmar uma mentira como se fosse verdade: a de que o resultado das eleições seria ilegítimo, e de que uma nova ordem se impunha, pela força, contra a Constituição.

No Caso Dreyfus, o erro estava na condenação injusta. No 8 de janeiro, está na negação coletiva dos próprios crimes. Em ambos os casos, o pano de fundo é o mesmo: quando a verdade se torna incômoda demais, tenta-se apagá-la com versões inventadas.

O STF hoje se debruça sobre um julgamento que, embora envolva pessoas comuns e atos aparentemente pontuais, representa algo muito maior: o enfrentamento direto à legalidade democrática. O batom vermelho em "A Justiça" é só o gesto visível de uma intenção muito mais profunda — e perigosa.

A democracia, como a escultura de Michelangelo, também pode ser restaurada. Mas isso não significa que se deva tratar com leveza aqueles que tentaram destruí-la.

A pena proposta a Débora Rodrigues dos Santos, ainda em julgamento, não responde à cor do batom, mas ao conteúdo político do gesto. Não se pune a frase, mas a tentativa de rasgar com ela o pacto constitucional.

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