A discussão a respeito da presença de crucifixos e outros símbolos religiosos em prédios públicos no Brasil está em pauta no STF. Não se pode dizer que se trata de um debate "disruptivo e revolucionário" em homenagem ao Estado laico - por incrível que pareça, desde o século XIX o tema vem sendo analisado no Judiciário nacional.
Em dezembro de 1891, o pastor da igreja evangélica brasileira Miguel Vieira Ferreira iniciou um embate contra a exposição de imagens sacras em espaços públicos ao questionar a presença dessas representações nos prédios governamentais.
Poucos meses depois, em 24/3/1892, publicou um artigo no Jornal do Commercio, denunciando a presença de uma imagem de Cristo no salão do júri na então Capital Federal. Segundo ele, dois jurados pediram dispensa da sessão por motivos religiosos, solicitando a retirada da imagem.
O juiz responsável teria negado o pedido e ameaçado multá-los, enquanto o promotor afirmou que a recusa em participar poderia acarretar a perda de direitos políticos.
O pastor reagiu com firmeza, classificando a atitude como uma grave injustiça.
"Criminosos são o juiz e promotor que não cumprem a lei e se transformam em algozes do cidadão pelo simples fato de se acharem investidos de poder em um país que perdeu até a simples noção da justiça. Retirem os símbolos religiosos do júri e só então poderão multar os cidadãos não romanos que se recusarem a servir."
No dia seguinte, 25/3, o episódio ganhou contornos dramáticos.
Domingos Heleodoro Pereira, frequentador da igreja liderada por Miguel Vieira Ferreira, foi até o prédio do Júri e destruiu a imagem de Cristo e outra representação religiosa na sala secreta. Preso em flagrante, Domingos declarou que agiu inspirado pelos discursos do pastor. Isso foi suficiente para que ambos fossem denunciados: Domingos como autor do ato e o pastor como mandante.
A denúncia provocou intenso debate público e político.
Segundo a decisão, embora ninguém tenha testemunhado o momento em que a imagem foi destruída, Domingos teria declarado: "É a lei que se cumpre".
Já o pastor teria dito na véspera do incidente que "a imagem havia de sair; se não acabasse por bem, acabaria por mal".
Em novembro de 1892, Miguel Vieira Ferreira publicou novo artigo, desta vez pedindo a soltura de Domingos Heleodoro, que permanecia preso havia sete meses sem julgamento.
O pastor argumentava que a acusação contra Domingos se baseava no art. 185 do Código Penal, cuja pena máxima era de seis meses.
"Se não se pode conservar preso o sentenciado que já cumpriu a pena, quanto mais aquele acusado contra quem nenhuma criminalidade existe, mas que, fosse embora criminoso, já cumpriu o máximo da pena antes do julgamento", escreveu.
Crônica
Na época, Machado de Assis publicou crônica com o discurso de um parlamentar sobre o caso, destacando que a sentença de pronúncia absolveu Miguel Vieira Ferreira, mas reconheceu a criminalidade de Domingos Heleodoro.
A passagem é retratada na obra "Código de Machado de Assis", de autoria de Miguel Matos (2021):
"Sinto o gozo do serviço que vou prestar ao Sr. deputado Alcindo Guanabara. Este distinto representante, em discurso de anteontem, declarou que temia falar com liberdade, à vista do governo armado contra o Sr. Dr. Miguel Vieira Ferreira, pastor evangélico e acusado de mandante no desacato feito à imagem de Jesus Cristo no júri. Perdoe-me o digno deputado; vou restituir-lhe a quietação ao espírito.
Depois que o Sr. deputado Alcindo Guanabara falou, foi publicada a sentença de pronúncia. Que consta dela? Que havia dois denunciados, o Dr. Miguel Vieira Ferreira, pastor da igreja evangélica, dado como mandante do desacato, e Domingos Heleodoro, denunciado mandatário.
A sentença estabelece claramente dois pontos capitais: 1°, que Domingos Heleodoro, embora ninguém visse quebrar a imagem, ao perguntarem-lhe o que fora aquilo, respondera: É a lei que se cumpre; 2°, que o pastor Miguel V. Ferreira, na véspera do desacato, afirmando a algumas pessoas que a imagem havia de sair, acrescentou que, se não acabasse por bem, acabaria por mal. Tudo visto e considerado, a sentença proferiu a criminalidade de Domingos Heleodoro, e não admitiu a do Dr. Miguel V. Ferreira.
Veja o meu distinto patrício a diferença, e faça isto que lhe vou dizer. Quando houver de discutir matérias espirituais, evite sempre dizer: É a lei que se cumpre, — frase claríssima, a respeito de um certo nariz postiço, vago e obscuro. Ao contrário, diga: Há de sair por bem ou por mal, — expressão obscura e frouxa, apesar do aspecto ameaçador que inadvertidamente se lhe pode atribuir. Fale S. Ex. como pastor, e não como ovelha.
A verdade é que os desacatos podem reproduzir-se, sem que Deus saia da alma do homem."
Persistência
Embora o caso de 1892 tenha sido um marco, episódios semelhantes voltaram a ocorrer nas décadas seguintes.
Em 1931, um jurado no Tribunal do Júri do DF protestou contra a presença de uma imagem de Cristo no salão. O juiz responsável, Magarinos Torres, suprimiu a iluminação da imagem, considerando-a uma manifestação de culto, mas não ordenou sua retirada.
A reclamação foi levada ao ministério da Justiça, mas o parecer do Consultor-Geral da República, Levi Carneiro, negou a solicitação.
Mais recentemente, em 2005, o magistrado Roberto Arriada Lorea, de Porto Alegre/RS, apresentou em um congresso de juízes proposta para retirar os crucifixos das salas de audiência.
Na época, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o juiz disse que os símbolos colocados nas paredes ferem o art. 19 da CF, que veda relações de dependência entre o Estado e as instituições religiosas.
Durante o congresso, a discussão chegou a ser considerada inoportuna por alguns dos juízes participantes. Com uma votação conturbada, a tese foi vetada por 25 a 24 votos.
Em 2007, uma ONG pediu ao CNJ que determinasse a remoção dos crucifixos das paredes dos tribunais brasileiros, alegando que a prática feriria a laicidade do Estado. No entanto, o CNJ entendeu que a presença dos símbolos não configurava violação.
Já em 2012, o TJ/RS determinou, por unanimidade, a remoção de crucifixos e símbolos religiosos de seus prédios. Atendendo a um pedido da Liga Brasileira de Lésbicas, o desembargador Cláudio Baldino Maciel destacou que a presença desses símbolos compromete a imparcialidade do Estado laico e defendeu o uso exclusivo de símbolos oficiais do Estado em espaços públicos.
Entretanto, em 2016, a Arquidiocese de Passo Fundo/RS entrou com pedido para reverter a decisão e o CNJ autorizou a recolocação dos símbolos.
Em pauta
Atualmente, o debate continua no STF, que decidirá se os símbolos religiosos em prédios públicos Federais violam a laicidade do Estado.
O recurso teve origem em ação civil pública movida pelo MPF que pede a retirada de crucifixos e outros símbolos religiosos de prédios públicos, alegando violação ao princípio da laicidade do Estado.
A ação foi considerada improcedente pelo juízo de 1º grau e pelo TRF da 3ª região, que defenderam que os símbolos refletem aspectos culturais e não ferem a liberdade religiosa.
No recurso, o MPF questionou a decisão, argumentando afronta à CF.
Até o momento votaram o relator, ministro Cristiano Zanin, contra o pedido, acompanhado pelos ministros Flávio Dino, André Mendonça e Dias Toffoli. Ministro Fachin fez algumas ressalvas, mas acompanhou o relator no desprovimento do recurso e fixação de tese.
- Veja o voto do relator, do ministro Flávio Dino, do ministro André Mendonça e do ministro Edson Fachin.
Ambos destacaram o papel histórico-cultural do cristianismo na formação do Brasil e a inexistência de imposição religiosa. Afirmaram que os símbolos não violam a laicidade, não interferem na imparcialidade dos agentes públicos e respeitam a liberdade religiosa.
419995
Zanin propôs a tese de repercussão geral de que símbolos religiosos, quando manifestam a tradição cultural, não infringem os princípios constitucionais.
- Processo: ARE 1.249.095
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Referência
MATOS, Miguel. . Código de Machado de Assis: migalhas jurídicas. São Paulo: Migalhas, 2021. 592 p.