Migalhas Quentes

Críticas nas redes sociais podem configurar crime de stalking?

Advogada Luna Van Brussel Barroso esclarece se o cyberstalking pode ser aplicado a críticas feitas nas redes a pessoa pública, considerando o direito à liberdade de expressão.

21/5/2024

Imagine receber 500 ligações e 1,3 mil mensagens em um único dia, de uma mesma pessoa. Essa perseguição, vivenciada recentemente por um médico, veio a público com a prisão da stalker, a estudante de nutrição Kawara Welch.

A mulher conheceu o médico em 2018, durante uma consulta psiquiátrica em um hospital particular. Desde então, a perseguição foi incessante. O médico, que preferiu não se identificar, relatou que a stalker chegou a tentar contato com sua esposa e filho. "Ela ligava quando ele tinha 7, 8 anos, aí ele não entendia bem aquilo e falava: 'Papai, tem uma mulher me ligando, perguntando se eu estou na escola, onde estou'," afirmou a vítima em entrevista.

Entre 2019 e 2020, foram registrados 42 boletins de ocorrência. Em 2020, Kawara assinou um acordo no Ministério Público se comprometendo a parar com as perseguições. No entanto, em 2022, a stalker invadiu o consultório do médico e agrediu sua esposa. Kawara permaneceu foragida por mais de um ano até ser presa na última semana.

CNN noticiou a prisão de Kawara Welch por perseguir médico durante cinco anos.(Imagem: Reprodução/CNN)

O caso ilustra a perseguição no contexto privado, que é a forma mais comum de stalking, envolvendo relações domésticas ou íntimas. 

372546

Por outro lado, quando uma figura pública é vitimada por postagens críticas em uma rede social, trata-se de stalking ou apenas do exercício da liberdade de expressão?

Origens

O crime de stalking, ou “cyberstalking”, quando realizado de forma virtual, teve sua origem nos Estados Unidos. Em 1989, a atriz Rebecca Schaeffer foi assassinada por um fã obsessivo após três anos de perseguição. Este caso impulsionou a criação da primeira lei de stalking na Califórnia. Federalmente, o crime foi tipificado pela lei da violência contra as mulheres (Violence Against Women Act - VAWA), de 1996.

Na União Europeia, a tipificação evoluiu nos anos 2000, culminando na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra Mulheres e à Violência Doméstica de 2013, que instou os Estados a adotarem medidas legislativas para criminalizar a prática.

No Brasil, o crime foi tipificado em 2021 com a inclusão do art. 147-A ao CP pela lei 14.132, aprovada simbolicamente no Dia da Mulher. A lei visa combater casos de violência doméstica e proteger mulheres contra perseguições persistentes e indesejadas.

Relações públicas e privadas

Em parecer, a advogada Luna Van Brussel Barroso examinou a aplicabilidade do art. 147-A em situações nas quais a suposta vítima é uma figura pública que recebe críticas em redes sociais. Nesses casos, é possível questionar em que ponto as manifestações deixam de ser liberdade de expressão para se tornar perseguição.

Luna explica que a criminalização do stalking visa evitar a violência grave e a angústia emocional causadas por atos persistentes de perseguição. Assim, a configuração do crime fora de relações domésticas e/ou íntimas depende de demonstrações claras de atos concretos de perseguição ou, no caso de atos discursivos, que estes sejam direcionados diretamente à vítima ou seus familiares e causem ansiedade e angústia significativas.

No documento, a advogada analisa um caso no qual a vítima denunciou o autor das críticas feitas em redes sociais abertas pelo crime de stalking. Luna pontua que, por se tratar de um acionista de empresas de capital aberto, frequentemente mencionado em matérias jornalísticas, a tolerância a críticas e questionamentos públicos deve ser maior.

"Por isso, a interpretação do tipo penal de forma expansiva, para aplicá-lo aos fatos do caso, exerceria um efeito silenciador sobre a liberdade de expressão e o direito de criticar figuras públicas, sejam eles acionistas de empresas abertas ou outras figuras notórias, além de deslegitimar o funcionamento de instituições que desempenham função social/pública."

A advogada ainda relata que em pesquisa no STF, STJ e nos cinco maiores tribunais nacionais (TJ/SP, TJ/RJ, TJ/MG, TJ/RS e TJ/PR) não foram encontrados precedentes que tenham aplicado o crime de stalking a casos em que não houve comunicação direta entre o acusado e a vítima.

A grande maioria dos casos "comprova que o delito de perseguição é predominantemente aplicado no contexto de relações domésticas e/ou íntimas entre o ofensor e a vítima, sendo raros os casos de aplicação do crime fora dessas circunstâncias".

Assim, completa, "à luz desses elementos, é possível concluir que a aplicação do art. 147-A a casos em que (i) não houve perseguição física, (ii) tampouco direcionamento direto de mensagem à vítima ou seus familiares, (iii) nem mesmo violência emocional que ultrapasse mero dissabor, e (iv) a suposta vítima é pessoa pública, representaria uma restrição excessiva e desproporcional à liberdade de expressão."

Em parecer, advogada Luna van Brussel Barroso pontua que críticas em redes sociais a pessoas públicas podem não caracterizar cyberstalking.(Imagem: Zô Guimarães/Folhapress)

Liberdade de expressão

Segundo Luna, a liberdade de expressão é um direito fundamental e essencial para a democracia. A CF assegura a livre manifestação do pensamento, a livre expressão de atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, e o direito de acesso à informação.

O STF tem reiterado a posição preferencial desse direito, afirmando que restrições à liberdade de expressão devem ser excepcionais e justificadas, explica Luna. Ela afirma ainda que o Supremo reforça que críticas, mesmo que duras e desconfortáveis, desempenham um papel crucial na transparência e controle das atividades de pessoas públicas.

Dessa forma, a privacidade de indivíduos de vida pública está sujeita a um parâmetro de aferição menos rígido do que a de indivíduos privados. Informações verdadeiras obtidas por meios lícitos não podem ser proibidas apenas por serem consideradas frívolas ou de mau gosto, ressalta a parecerista.

Ao final, Luna ressalta que o crime de stalking existe e é grave, mas que a tipificação no caso de críticas em redes sociais a pessoas públicas contraria a lógica da inclusão do art. 147-A ao CP e representa ameaça à liberdade de expressão e críticas de pessoas famosas, "inclusive sob pena de esvaziar o tipo para aplicação nos casos em que ele é verdadeiramente necessário".

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Leia mais

Migalhas de Peso

O crime de stalking praticado contra a mulher

10/1/2023
Migalhas Quentes

Stalking: Homem é condenado por perseguir ex-namorada

29/8/2022
Migalhas de Peso

O crime de stalking previsto no art. 147-A do CP

14/7/2022
Migalhas de Peso

Stalking: a criminalização branda de um crime grave

30/3/2022
Migalhas de Peso

Primeiras linhas sobre o crime de perseguição (stalking)

27/3/2022
Migalhas de Peso

Crime de perseguição (stalking)

13/5/2021
Migalhas de Peso

O novo crime de Perseguição - Stalking

9/4/2021
Migalhas Quentes

Bolsonaro sanciona PL que tipifica crime de "stalking"

1/4/2021

Notícias Mais Lidas

Juiz que se recusou a soprar bafômetro consegue anular suspensão de CNH

14/11/2024

TJ/PR mantém extinção de execução por prescrição intercorrente

14/11/2024

Gkay pagará R$ 300 mil após danificar imóvel de luxo em SP

14/11/2024

Proclamação da República: a origem da promessa democrática e do STF

14/11/2024

TRFs: Lula nomeia duas mulheres e um homem ao cargo de desembargador

14/11/2024

Artigos Mais Lidos

Transição no Saneamento: Do monopólio ao oligopólio e o papel dos órgãos de controle

14/11/2024

Análise das modalidades de aumento do capital social: Conceitos e aplicações

14/11/2024

A nova resolução do CFM e os desafios da atuação dos profissionais de saúde

14/11/2024

Decisão do STJ abre caminho para regularização de imóveis comerciais no Distrito Federal

14/11/2024

Eficiência e celeridade: Como a produção antecipada de provas contribui para a resolução de conflitos

14/11/2024