Imagine receber 500 ligações e 1,3 mil mensagens em um único dia, de uma mesma pessoa. Essa perseguição, vivenciada recentemente por um médico, veio a público com a prisão da stalker, a estudante de nutrição Kawara Welch.
A mulher conheceu o médico em 2018, durante uma consulta psiquiátrica em um hospital particular. Desde então, a perseguição foi incessante. O médico, que preferiu não se identificar, relatou que a stalker chegou a tentar contato com sua esposa e filho. "Ela ligava quando ele tinha 7, 8 anos, aí ele não entendia bem aquilo e falava: 'Papai, tem uma mulher me ligando, perguntando se eu estou na escola, onde estou'," afirmou a vítima em entrevista.
Entre 2019 e 2020, foram registrados 42 boletins de ocorrência. Em 2020, Kawara assinou um acordo no Ministério Público se comprometendo a parar com as perseguições. No entanto, em 2022, a stalker invadiu o consultório do médico e agrediu sua esposa. Kawara permaneceu foragida por mais de um ano até ser presa na última semana.
O caso ilustra a perseguição no contexto privado, que é a forma mais comum de stalking, envolvendo relações domésticas ou íntimas.
372546
Por outro lado, quando uma figura pública é vitimada por postagens críticas em uma rede social, trata-se de stalking ou apenas do exercício da liberdade de expressão?
Origens
O crime de stalking, ou “cyberstalking”, quando realizado de forma virtual, teve sua origem nos Estados Unidos. Em 1989, a atriz Rebecca Schaeffer foi assassinada por um fã obsessivo após três anos de perseguição. Este caso impulsionou a criação da primeira lei de stalking na Califórnia. Federalmente, o crime foi tipificado pela lei da violência contra as mulheres (Violence Against Women Act - VAWA), de 1996.
Na União Europeia, a tipificação evoluiu nos anos 2000, culminando na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra Mulheres e à Violência Doméstica de 2013, que instou os Estados a adotarem medidas legislativas para criminalizar a prática.
No Brasil, o crime foi tipificado em 2021 com a inclusão do art. 147-A ao CP pela lei 14.132, aprovada simbolicamente no Dia da Mulher. A lei visa combater casos de violência doméstica e proteger mulheres contra perseguições persistentes e indesejadas.
Relações públicas e privadas
Em parecer, a advogada Luna Van Brussel Barroso examinou a aplicabilidade do art. 147-A em situações nas quais a suposta vítima é uma figura pública que recebe críticas em redes sociais. Nesses casos, é possível questionar em que ponto as manifestações deixam de ser liberdade de expressão para se tornar perseguição.
Luna explica que a criminalização do stalking visa evitar a violência grave e a angústia emocional causadas por atos persistentes de perseguição. Assim, a configuração do crime fora de relações domésticas e/ou íntimas depende de demonstrações claras de atos concretos de perseguição ou, no caso de atos discursivos, que estes sejam direcionados diretamente à vítima ou seus familiares e causem ansiedade e angústia significativas.
No documento, a advogada analisa um caso no qual a vítima denunciou o autor das críticas feitas em redes sociais abertas pelo crime de stalking. Luna pontua que, por se tratar de um acionista de empresas de capital aberto, frequentemente mencionado em matérias jornalísticas, a tolerância a críticas e questionamentos públicos deve ser maior.
"Por isso, a interpretação do tipo penal de forma expansiva, para aplicá-lo aos fatos do caso, exerceria um efeito silenciador sobre a liberdade de expressão e o direito de criticar figuras públicas, sejam eles acionistas de empresas abertas ou outras figuras notórias, além de deslegitimar o funcionamento de instituições que desempenham função social/pública."
A advogada ainda relata que em pesquisa no STF, STJ e nos cinco maiores tribunais nacionais (TJ/SP, TJ/RJ, TJ/MG, TJ/RS e TJ/PR) não foram encontrados precedentes que tenham aplicado o crime de stalking a casos em que não houve comunicação direta entre o acusado e a vítima.
A grande maioria dos casos "comprova que o delito de perseguição é predominantemente aplicado no contexto de relações domésticas e/ou íntimas entre o ofensor e a vítima, sendo raros os casos de aplicação do crime fora dessas circunstâncias".
Assim, completa, "à luz desses elementos, é possível concluir que a aplicação do art. 147-A a casos em que (i) não houve perseguição física, (ii) tampouco direcionamento direto de mensagem à vítima ou seus familiares, (iii) nem mesmo violência emocional que ultrapasse mero dissabor, e (iv) a suposta vítima é pessoa pública, representaria uma restrição excessiva e desproporcional à liberdade de expressão."
Liberdade de expressão
Segundo Luna, a liberdade de expressão é um direito fundamental e essencial para a democracia. A CF assegura a livre manifestação do pensamento, a livre expressão de atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, e o direito de acesso à informação.
O STF tem reiterado a posição preferencial desse direito, afirmando que restrições à liberdade de expressão devem ser excepcionais e justificadas, explica Luna. Ela afirma ainda que o Supremo reforça que críticas, mesmo que duras e desconfortáveis, desempenham um papel crucial na transparência e controle das atividades de pessoas públicas.
Dessa forma, a privacidade de indivíduos de vida pública está sujeita a um parâmetro de aferição menos rígido do que a de indivíduos privados. Informações verdadeiras obtidas por meios lícitos não podem ser proibidas apenas por serem consideradas frívolas ou de mau gosto, ressalta a parecerista.
Ao final, Luna ressalta que o crime de stalking existe e é grave, mas que a tipificação no caso de críticas em redes sociais a pessoas públicas contraria a lógica da inclusão do art. 147-A ao CP e representa ameaça à liberdade de expressão e críticas de pessoas famosas, "inclusive sob pena de esvaziar o tipo para aplicação nos casos em que ele é verdadeiramente necessário".
- Veja o parecer na íntegra.