O dia 21 de abril de 2024 marca 232 anos da morte de Tiradentes. O inconfidente é figura emblemática na luta pela independência do Brasil, e sua história oportuniza uma análise do contexto jurídico de sua época.
Ele é nacionalmente conhecido por liderar a conspiração separatista denominada Inconfidência Mineira, contra o domínio português. Quando a trama foi descoberta pelas autoridades, Tiradentes foi preso, julgado e enforcado publicamente.
Se fizermos um paralelo com o Direito como conhecemos hoje, é possível dizer que Joaquim José da Silva Xavier teve um julgamento justo? Quais foram as motivações políticas que levaram à sua morte?
Buscando reflexões para estas questões, conversamos com o advogado e professor Clovis Volpe, doutor em Direito Constitucional e especialista em Ciências Criminais.
Em um breve resgate histórico, à medida em que mergulhamos nos detalhes de sua condenação e execução, emergem questões profundas sobre justiça e Direitos Humanos, que mostram como a legalidade evoluiu desde os tempos coloniais.
Acompanhe.
Contexto histórico
No final do século XVIII, o mundo era marcado por ideias iluministas, e intensas transformações políticas, econômicas e sociais, que influenciaram diretamente as ideias revolucionárias de Tiradentes e seus contemporâneos.
Naquela época, o Brasil ainda era uma colônia de Portugal, sujeita a um sistema econômico mercantilista rigoroso, com altos impostos e a exploração de recursos naturais, como o ouro em Minas Gerais. Em razão do Ciclo do Ouro, o Estado tornou-se importante centro econômico, com rápido povoamento.
É neste contexto que surge Tiradentes, ou Joaquim José da Silva Xavier. Foi dentista, tropeiro, minerador, comerciante, militar e ativista político brasileiro. É mais conhecido como o líder da Inconfidência Mineira, um movimento revolucionário que buscava a independência da colônia de Minas Gerais do domínio português.
O “quinto dos infernos”
Nesse período, a Coroa portuguesa cobrava uma taxa de 20% sobre todo o ouro encontrado nas colônias – ou seja, um quinto do metal extraído. A exigência da cota de ouro (o quinto real) gerava evidente descontentamento entre os colonos. Nasce daí o descontentamento político que culminaria na morte de Tiradentes.
E aqui vai uma curiosidade: é daí que vem a expressão “quinto dos infernos”, que deu nome a uma minissérie da TV Globo exibida em 2002.
O declínio da produção de ouro no final do século XVIII exacerbou as tensões.
Inconfidência mineira
Em 1751, foi criada a "derrama", que consistia na cobrança forçada do quinto não recebido. O rei passou a exigir que Minas Gerais recolhesse 1.500kg de ouro por ano. Se não atingisse a cota, o imposto era "derramado" sobre todos os residentes da capitania mineira, independentemente de sua relação com a atividade.
Em 1789, havia indícios de que a derrama seria aplicada pela segunda vez. Este foi o estopim para a deflagração da “Inconfidência Mineira”, movimento que buscava a separação de Minas Gerais da coroa portuguesa. Nesse movimento estavam Tiradentes e Joaquim Silvério dos Reis.
Em meio à evidente importância, para Portugal, de conter esse movimento, Silvério dos Reis torna-se delator, traindo o movimento separatista. Após detalhar o plano dos inconfidentes e entregar todos os envolvidos, ele teria o perdão pelo crime de lesa majestade e o perdão de suas dívidas com a coroa.
Julgamento
Na análise do professor Clovis Volpe, se fizermos um paralelo entre o julgamento de Tiradentes e o Direito como é aplicado hoje, a conclusão será a de que Joaquim José da Silva Xavier não teve um julgamento justo. Isto porque, hoje, o "justo processo penal" é guiado pelo contraditório, ampla defesa e sistema acusatório, muito distinto das regras e do sistema da época.
Siga a leitura para entender como isto se deu.
Volpe explica que o procedimento instaurado para apuração e julgamento do crime de lesa majestade, previsto nas Ordenações Filipinas, foi a "devassa", que não assegurava direito de defesa e contraditório. Durante o malfadado processo, todos os acusados ficaram incomunicáveis e a defesa só poderia se manifestar ao final, após o encerramento dos autos de devassa.
Em maio de 1789, Tiradentes e os outros inconfidentes foram presos durante a devassa, em uma espécie de prisão cautelar. Foram instaurados dois procedimentos: um em Minas Gerais e outro no Rio de Janeiro. Em razão do conflito de jurisdição, a coroa instalou no Brasil um Tribunal de Alçada, representando a casa de suplicação – a mais alta Corte da Coroa portuguesa.
O procedimento transcorreu de forma rígida e inquisitorial, sem defesa. No quarto interrogatório de Tiradentes, ele confessou ser o idealizador da Inconfidência, eximindo as demais pessoas da autoria intelectual da tentativa de levante contra a Coroa.
Condenações
34 pessoas foram processadas, todas defendidas pelo mesmo advogado: José de Oliveira Fagundes, nomeado pelo Tribunal de Alçada.
A principal tese da defesa é que o crime jamais se materializou, não passando de uma ideia que nunca ocorreu.
Com relação a Tiradentes, o advogado alegou que, embora tenha confessado, ele não tinha nenhuma condição material de colocar o plano em prática – estaria, portanto, comprovada sua insanidade, visto que confessou algo que não ocorreu. Veja um trecho da defesa apresentada em favor de Tiradentes:
“O pobre inventário dos bens que lhe foram achados, conforme documentos da devassa, dão uma cabal certeza das suas débeis forças, e que tudo quanto ele cogitava e proferia a respeito do levante era um furor do entendimento, que tinha perdido a ordem e a regularidade natural.”
Dos 34 réus acusados, 24 foram considerados culpados e condenados. As penas variavam de pena de morte, castigo corporal e pena de degradado (banimento da terra de origem), além de confisco de bem. Todas as penas de morte, por sua vez, foram alteradas para banimento – exceto a de Tiradentes.
Ele foi enforcado e 21 de abril de 1792 no Campo da Lampadosa, no RJ, onde atualmente fica a praça Tiradentes.
O dia de sua execução, 21 de abril, é feriado nacional. A cidade mineira de Tiradentes, antiga Vila de São José do Rio das Mortes, foi renomeada em sua homenagem. Seu nome está inscrito no Livro dos Heróis da Pátria desde 21 de abril de 1992.
Pena de morte
A pena de morte no Brasil passou por várias mudanças ao longo da história.
Clovis Volpe explica que as Ordenações Filipinas, que vigoraram por quase 200 anos no Brasil, da era colonial até o fim do Império, previam várias modalidades de pena capital, detalhadas conforme o crime e suas circunstâncias. Veja algumas:
- Morte Natural por Enforcamento: Era a forma mais comum de execução, usada para diversos crimes, incluindo traição e homicídio.
- Morte Natural de Fogo: Consistia em queimar o condenado vivo até que fosse transformado em pó. Era frequentemente reservada para crimes considerados particularmente hediondos, como heresia.
- Morte Natural Cruelmente: Nesta forma, o condenado era morto de acordo com as diretrizes sádicas da decisão, ao bel prazer dos juízes e carrascos. Isso poderia incluir desmembramento, esquartejamento, ou outras formas de tortura antes da morte, dependendo da gravidade do crime.
- Morte Natural para Sempre: Após ser executado, geralmente por enforcamento, o corpo do condenado era exposto publicamente, e seus ossos eram recolhidos e levados em procissão anualmente, no dia 1º de novembro.
Estas modalidades refletiam a natureza punitiva e exemplar que a coroa portuguesa queria impor, usando a pena de morte não apenas como punição mas também como uma ferramenta de controle social e dissuasão de crimes.
Com a independência do Brasil, sobreveio a Constituição de 1824, que previa, no art. 179, item 19, a proibição de açoites, torturas, marca de ferro quentes e todas as demais penas cruéis. No entanto, continuaram a entender que a pena capital não se enquadrava no conceito de penas cruéis, e por isso ela continuou a ser aplicada. O Código Criminal de 1830 manteve a pena de morte, determinando que seria aplicada por enforcamento, proibida a execução aos sábados, dias santos ou de festa nacional. Também proibia a aplicação em mulher grávida, devendo aguardar quarenta dias após o parto para a execução.
Abolição da pena capital
O Código Penal de 1890, editado logo após o golpe que derrubou o império, já não mais previa a pena de morte, o que foi uma antecipação à Constituição da República de 1891, que formalizou essa abolição, tornando o Brasil um dos primeiros países das Américas a eliminar a pena capital em tempos de paz. A exceção era para crimes militares em tempo de guerra.
Com a sedimentação da República, a pena de morte para outros casos, que não o militar, voltou à cena em 1937, com a Constituição Ditatorial do Estado Novo, que passou a prever sete possibilidades de pena capital, sendo seis vinculadas a crimes políticos e uma a crime comum, que era homicídio cometido por motivo fútil e com perversidade.
Este texto constitucional não gerou efeito prático, pois, muito embora a Lei de Segurança Nacional de 1938 contemplasse a pena de morte, o Código Penal de 1940, que vigora até os dias atuais, não estipulou a pena capital como consequência de crime comum.
Pena de morte - Exceção
A Constituição de 1946 aboliu a possibilidade de pena de morte para crime políticos e comuns, o que se mantém até os dias atuais.
O que poucos sabem é que existe uma exceção: a Constituição de 1988, no art. 5, inciso 47, alínea “a” prevê a possibilidade de pena de morte apenas em caso de guerra declarada.
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
O Código Penal Militar vigente estipula mais de três dezenas de crimes que se sujeitam à pena capital, como por exemplo traição, covardia qualificada, espionagem e violência contra superior. Na pouco provável aplicação da pena de morte em solo brasileiro, a execução se dará por fuzilamento, na forma do art. 56 do Código Penal Militar.
Pena de morte
Art. 56. A pena de morte é executada por fuzilamento.
Atualmente, a pena de morte é um tema que raramente surge na discussão política brasileira, visto que há um consenso sobre sua proibição. Enquanto foi uma realidade durante o período colonial e parte do Império, o Brasil moderno se posiciona firmemente contra sua aplicação, exceto sob circunstâncias muito específicas e extremas relacionadas a conflitos armados. Hoje, o Brasil é signatário de tratados internacionais de direitos humanos que condenam a pena de morte, como o Pacto de San José da Costa Rica, reforçando seu compromisso com a abolição.