No panorama sociopolítico do Brasil, o 8 de janeiro de 2023 ficará na memória coletiva como o "Dia da Infâmia", marcado pelo ato de vandalismo perpetrado por um contingente de indivíduos contra as estruturas estatais, em uma manifestação de inconformismo com resultado eleitoral que reconduziu Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, pela terceira vez.
Tal ocasião transfigura-se em um marco imemorial, convocando os pensadores à profunda reflexão. Convidado por nós para este exercício, Walfrido Warde ilustra que o incidente transcendeu à mera polarização política ideológica, revelando-se um subproduto mais complexo e enraizado nas peculiaridades das redes sociais e de suas "bolhas autorreferentes".
Neste contexto, ele pontua a premente necessidade de uma regulação meticulosa e perspicaz da democracia brasileira, calibrada para se alinhar às emergentes realidades sociopolíticas e às modalidades de intervenção, com ênfase no risco de influências externas nos meandros políticos nacionais.
Warde sublinha ainda que a salvaguarda da democracia brasileira não se assenta na premissa de um resgate ou uma redenção. Pelo contrário, exige-se uma governança regulatória criteriosa e vigilante, harmonizada às dinâmicas transformações sociais e aos novos paradigmas de interferência no espectro político.
Confira o artigo na íntegra:
O domingo da vergonha pode ser o próximo
O país assistiu ao vilipendio de prédios públicos, de símbolos da República e da democracia, por hordas de brasileiros orgulhosos de seu compromisso com a pátria. Saíram do conforto de seus lares para expressar uma forte oposição aos poderes instituídos e para dar fundamento a um golpe, por meio de atos de vandalismo, sob a certeza de que as eleições, que levaram Luís Inácio Lula da Silva, sete dias antes, a tomar posse de seu terceiro mandato presidencial, foram fraudadas, com a ajuda do Supremo Tribunal Federal, da Justiça Eleitoral, dos meios de comunicação e de parte da classe política.
Seria um equívoco atribuir à propalada polarização o que se passou no Brasil, em especial na sua capital, naquele 8 de janeiro de 2023. A ideia de polarização pressupõe a existência de ideias políticas radicais e opostas. Mas apenas os vândalos estavam no polo, eram eles os radicais. Todos o resto, todos os demais cidadãos brasileiros, quando desejam manifestar decepção, dissenso ou mesmo revolta, fazem-no nas urnas, por meio de eleições, as quais, nas democracias como a nossa, substituem as revoluções para o fim de dar cabo de governos ruins. Quem ganha comemora e quem perde aceita o resultado, ainda que de mau-humor.
Acredito, portanto, que o que tenho chamado de “domingo da vergonha” tem outras causas.
O aparecimento das redes sociais e, com elas, a produção de bolhas autorreferentes engendraram sistemas políticos cognitivamente fechados e operacionalmente abertos. Explico-me. O modo como as redes sociais e os algoritmos “agregam por interesse” permite a criação de realidades políticas paralelas, que conhecem apenas o que lhes interessa, que acreditam somente no que lhes agrada e que, por isso, desconectam-se de todos os outros subsistemas políticos e do sistema político como um todo.
E é por isso que digo que são sistemas ou subsistemas políticos cognitivamente fechados.
Essa realidade paralela, que se autoalimenta, produz, todavia, efeitos para além de seus muros, como bem se viu no último 8 de janeiro, naquele domingo da vergonha. Daí dizer que são sistemas ou subsistemas operacionalmente abertos.
Ao observar esses novíssimos fenômenos, penso que a democracia não precisa ser salva de ataques autoritários e de tentativas de golpe no sentido tradicional. Aliás, a democracia não foi salva, precisamente porque o domingo da vergonha pode se repetir a qualquer momento, uma vez que suas causas não foram neutralizadas, em particular, porque permanecemos inertes diante da proliferação de subsistemas políticos autorreferentes, cognitivamente fechados e operacionalmente abertos. Ou seja, porque a nossa democracia e a sua disciplina jurídica permitem que grupos políticos se alheiem à realidade e interfiram nos desígnios do país.
Pior, porque permitimos que as redes sociais, sob intenso desregramento, sob intensa indisciplina jurídica, incentivem a criação desses subsistemas.
É uma perturbação grave do funcionamento dos processos democráticos pavimentada, por ação ou omissão, por empresas transnacionais, cujos interesses não podem prevalecer sobre os interesses nacionais.
Um memorial com as imagens deploráveis do domingo da vergonha não irá resolver o problema, porque é incapaz de convencer quem se informa apenas dentro da bolha. Um milhão de artigos, reportagens e mesmo livros inteiros serão solenemente ignorados por quem se informa apenas dentro da bolha.
Condenações judiciais serão abrandadas sob elevada apreciação dos condenados pelos membros da bolha. E todos sabemos que as mais duras punições advêm do seio da sociedade. Se o agressor pertence a um grupo autorreferente, que o idealiza e glorifica, o grosso do castigo se esvai e transmuda vergonha em heroísmo.
Não à toa, a atuação das redes e das empresas que a administram foi classificada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) como uma interferência indevida potencial nos processos democráticos, precisamente quando alimenta a criação, proliferação e o livre funcionamento desses subsistemas autorreferentes a que me refiro.
A democracia brasileira não precisa, repiso, ser salva, mas precisa se submeter a uma regulação fina, atenta às novas realidades político-sociais e às novas formas de interferência, sobretudo estrangeira, nos processos políticos nacionais.