Na última segunda-feira, 9, a Justiça paulista decretou a falência da rede de livrarias Saraiva. O pedido foi feito pela própria empresa dentro do processo de recuperação judicial ajuizado em 2018, em razão de dívida de R$ 674 milhões.
Tendo como pano de fundo a crise do livro impresso e o crescimento da economia de escala de e-commerces como Amazon, a lastimável falência não é isolada, vindo a reboque de outras, como a da Livraria Cultura.
Não se deve olvidar, porém, a importância de seu idealizador, Joaquim Ignacio da Fonseca Saraiva, responsável pela fundação de um locus livresco amado e respeitado por várias gerações de estudantes, advogados e professores.
O Livreiro Saraiva
Joaquim Ignacio da Fonseca Saraiva nasceu em Trás-os-Montes, numa pequena aldeia, em Portugal. Migrando para o Brasil, em 1914 fundou a Livraria Acadêmica, no Largo do Ouvidor, na velha São Paulo, destinada ao comércio de livros usados.
Nos arrabaldes do Largo de S. Francisco, a livraria atraía juristas, advogados, professores e estudantes da Velha e Sempre nova Academia de Direito de S. Paulo. Mas o je ne sais quoi do estabelecimento não era apenas a proximidade física; seu proprietário, o "livreiro Saraiva", tornou-se famoso pela afabilidade com os clientes.
Em suas saborosas memórias, quando colhia as “Rosas do Inverno”, Lauro Malheiros descreveu o conselheiro Saraiva: “alto, magro, não negando pelo sotaque ser português dos bons, Saraiva era um homem benquisto, por sua bondade, por sua conduta”.
O conselheiro - e jurisconsulto - Saraiva
Saraiva também era conhecido por seus conselhos. O jornalista Francisco Pati, evocando o “Espírito das Arcadas”, ressaltou que Saraiva, "mais do que um livreiro preocupado em colocar a mercadoria na praça, era um conselheiro e amigo".
Tão bem compreendidos eram os conselhos do livreiro, que uma tensão intelectual – no sentido positivo – firmou-se entre Saraiva e os lentes do Largo S. Francisco.
Conta-nos Francisco Pati, que um dos catedráticos de “Direito Judiciário Civil”, ao ter que indicar fontes no início de cada ano letivo, limitava-se a dizer aos moços, “quanto a livros para estudo, deixo de indicá-los porque sei que o Saraiva muda completamente a orientação da Cadeira...”.
Pati ainda narra que, quando os discentes procuravam afoitos os livros catedráticos das aulas de Processo Civil, Saraiva os tranquilizava, arguindo:
“Tudo isso, meninos, é muito bonito e eu louvo muito as suas intenções; são, em verdade, magníficas. Mas eu tenho aqui um livrinho que é tudo quanto vocês precisam no momento. Não tem retórica, não tem filosofia, não tem conversa fiada; tem apenas realidade.”
Resta-nos apenas imaginar qual livro “sem conversa fiada” sugeria o Conselheiro.
O jornal A Gazeta, em 1929, informa que não era raro Saraiva "opinar que o livro que convém ao estudante é o Gusmão e não o de outro qualquer processualista...". A matéria do velho periódico também ressalta que o português ministrava a velhos advogados seus profundos conhecimentos jurídicos.
Crédito facilitado
A benevolência de Saraiva se estendia para além de conselhos. O livreiro era maleável quanto às formas de pagamento e ficou conhecido por oferecer créditos aos estudantes que não conseguiam arcar com os altos valores das obras acadêmicas.
Esse fato foi recentemente lembrado pelo grando advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, em crônica veiculada em Migalhas:
"O crédito para aquisição de livros foi introduzido pelo velho livreiro Saraiva. Tornou-se ele um benfeitor dos estudantes de Direito que podiam adquirir as obras exigidas pelos mestres da São Francisco com facilidade. Durante anos estudantes do Largo e de outras faculdades, como eu que me formei na Católica, podiam formar as suas bibliotecas de forma suave. Abríamos contas na loja então existente na rua José Bonifácio, antiga do Ouvidor.'
Uma passagem veiculada pel'A Gazeta, em 1929, fornece ao leitor a imagem viva de um encontro entre Saraiva e um acadêmico que "ia chorar suas mágoas e pesares" na livraria.
“O Saraiva – o bom Saraiva – chega-se ao estudante e pergunta: ‘Que livro quer o amigo levar’? E o estudante responde: ‘Ora, ‘seu’ Saraiva não se tem nem dinheiro para pagar a matrícula, cujo prazo vence amanhã, e você ainda quer que se compre estas baboseiras jurídicas!’
Saraiva – notando o abtimento do seu freguez, bate-lhe nos hombros, camaradamente, e procura consolal-o: ‘Isto não é nada seu malandro. Quando Ruy era estudante, também era ‘prompto’. [...]
O estudante continua triste. Saraiva chega até a um canto e chama-o e pergunta, baixinho ‘De quanto precisas, oh seu malandro?’
Saraiva então passa algumas notas ao estudante e diz: ‘Ah! Tens o necessário para que te livres da rabujice do Julio da Maia e ainda sobre para que possas ‘visitaire’ alguma linda ‘cachoupa’...”
A reportagem do periódico ainda descreve que os estudantes podiam demorar alguns anos para pagar o débito, mas nunca deixavam de adimpli-lo (outros tempos!).
Homenagem I
Em 1929, o saudoso livreiro voltou para visitar os patrícios em Portugal. Ao retornar ao Brasil, em 27 de outubro, recebeu uma grande homenagem dos acadêmicos de Direito.
O Correio Paulistano daquele ano foi um dos jornais que relatou a comemoração, que contou com cinco carros decorados com flores, acompanhados de uma banda de música. O cortejo desceu a serra para encontrar Saraiva em Santos, quando este desembarcava do navio Flandria.
De Santos o cortejo subiu a serra do Cubatão em direção a São Paulo, acompanhado do cônsul de Portugal, José Augusto de Magalhães. Na capital paulista, alunos, advogados, juízes, desembargadores e representantes de diversas associações de classe aguardavam a chegada do livreiro.
O acadêmico Romeu de Andrade Lourenção discursou em nome dos estudantes e ofereceu um cartão de ouro a Saraiva com os dizeres “Ao grande amigo Conselheiro Saraiva – por ocasião do seu regresso da Europa – homenagem dos acadêmicos de Direito. São Paulo, 30 – 10 – 929”.
Na mesma ocasião, mas às 22h, os filhos do livreiro, Joaquim, Jorge e Paulino Saraiva ofereceram uma chopada aos estudantes presentes.
Homenagem II
Em 1943 a Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito de São Paulo, em homenagem aos 70 anos de Saraiva, promoveu um concurso de sonetos, os quais foram enfeixados posteriormente num simpático livro.
A passagem foi retratada na obra "Os Filhos Joviais de São Francisco - Recordações da Faculdade de Direito", de Sidney Gioielli.
Cinco foram os premiados no concurso: Clovis Nogueira de Sá (João Ninguém), Irineu Senise (Luiz Alves), José Malanga (Petrarca), Fernando Hernani Gentile (Nemo) e Walker C. Barbosa (Ariel). Na oportunidade, Saraiva agradeceu a estima dos organizadores.
“Muito e muito obrigado, minha velha e querida Faculdade! Felizes aqueles que, como eu, tiveram a suprema ventura insubstituível de conquistar-lhe a estima, estima de quem sempre timbrou em defender a Liberdade e amar a Justiça!”
A Livraria Acadêmica
O sucesso da Livraria Acadêmica, “de corpo pequeno e alma imensa”, como retratou Francisco Pati, fez com que o empreendimento deixasse o Largo do Ouvidor e se instalasse em prédios da rua José Bonifácio e da praça João Mendes.
Após o falecimento do proprietário, em 1944, seus filhos, Joaquim, Jorge e Paulino, assumiram a livraria, expandiram-na e fundaram uma editora de livros jurídicos.
Em 1947 a empresa transformou-se em sociedade anônima e, segundo consta, muitos antigos alunos subscreveram ações da empresa em homenagem a seu fundador. Em 1972, a Saraiva tornou-se uma companhia aberta.
Em 1996 a livraria foi a primeira a implantar o conceito de megastore, inaugurando a primeira dentro do Shopping Eldorado em São Paulo.
Em 1998, a Saraiva foi uma das primeiras a entrar no comércio on-line e em 2010 a rede chegou a operar mais de 90 lojas em todo o país.
Agora, com a bancarrota vai-se, além da Saraiva, um pouco da história do meio jurídico.
Este nosso poderoso rotativo, que assumiu há 23 anos a função de ser um memorialista do Direito brasileiro, não poderia deixar de fazer o registro da importância do livreiro Saraiva na criação do pensamento jurídico nacional.