Mulher que foi denunciada por enfermeira e acusada de fazer um aborto em Criciúma/SC não conseguiu o trancamento de ação penal. A decisão é da 2ª turma do STF, por 3 votos a 2, ao negar o recurso por questões processuais.
A paciente, assistida pela Defensoria Pública, foi denunciada pela prática do crime tipificado no art. 124 do Código Penal porque, no dia 30 abril de 2013, teria provocado aborto em si mesma, ingerindo comprimidos do medicamento Cytotec.
O boletim de ocorrência, de 6/5/13, foi inaugurado após denúncia pela enfermeira do centro obstétrico do Hospital São José, onde a paciente foi atendida.
Na Justiça, ela tentava o trancamento da ação penal, sob o argumento de atipicidade material da conduta ante a descriminalização da interrupção voluntária da gestação, bem como por prova prejudicada pela violação de sigilo profissional médico.
No STJ, a 6ª turma negou provimento ao agravo regimental. Ela, então, recorreu ao STF.
Inicialmente, o pedido foi negado monocraticamente pelo relator, ministro Ricardo Lewandowski, que se aposentou nesta semana.
S. Exa. ponderou que a jurisprudência do STF é firme no sentido de que “[a] ação de habeas corpus constitui remédio processual inadequado quando ajuizada com objetivo (a) de promover a análise da prova penal, (b) de efetuar o reexame do conjunto probatório regularmente produzido, (c) de provocar a reapreciação da matéria de fato e (d) de proceder à revalorização dos elementos instrutórios coligidos no processo penal de conhecimento”.
Ato contínuo o caso foi levado à 2ª turma. Novamente, Lewandowski considerou que a decisão atacada não merece reforma ou qualquer correção, “pois os seus fundamentos harmonizam-se estritamente com a jurisprudência desta Suprema Corte que orienta a matéria em questão”.
“Ademais, o presente recurso mostra-se inviável, pois contém apenas a reiteração dos argumentos de defesa anteriormente expostos, sem, no entanto, revelar quaisquer elementos capazes de afastar as razões decisórias por mim proferidas.”
O relator foi acompanhado por André Mendonça e Nunes Marques.
Divergência
Edson Fachin, por sua vez, inaugurou a divergência e votou pelo trancamento da ação penal.
“Haure-se dos autos que a paciente foi denunciada após notícia-crime de prática de aborto apresentada pela enfermeira que a atendeu na rede pública de saúde, fato que na minha compreensão consiste em violação de sigilo profissional suficiente para perfectibilizar a ilicitude da prova que amparou a deflagração da ação penal.”
Segundo Fachin, o art. 207 do CPP prevê a proibição de divulgação de informações por pessoas que vieram a acessá-las em decorrência do exercício da atividade profissional.
“Esta é a hipótese dos autos. A enfermeira que atendeu à ré está inserida entre aqueles que deve observar a norma proibitiva, eis que se encontra na condição de receptora de confissão de fato, pela ré, inserido entre os mais caros para a sua intimidade, além de ser protegido pela vedação a autoincriminação.”
Na avaliação do ministro, o Estado brasileiro, na condição de signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, tem o dever de garantir as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar (art. 12).
“Nesta direção, o Comitê dos Direitos Humanos tem recomendado que mulheres devem ter condições de acessar os serviços de saúde no pós aborto, em todas as circunstâncias, e em base confidencial, sem enfrentar ameaças de processo criminal ou medidas punitivas (Human Rights Committee, General Comment 36, para. 8).”
De acordo com S. Exa., a persecução instaurada nestes autos é mais uma das medidas que agravam o cenário das questões relacionadas ao aborto no Brasil.
“Para além da descriminalização (discussão hoje sediada no bojo da ADPF 442), o direito à saúde das mulheres, especialmente as mais pobres, vítimas dos arriscadíssimos clandestinos procedimentos abortivos, se torna amplamente violado diante da ameaça de notificação às autoridades acerca de eventual prática do crime aborto, na ocasião em que o serviço de saúde é acionado, em último recurso, diga-se, para atender intercorrências que expõe a riscos graves a vida das pacientes.”
Conforme consignou o ministro, obstar a oferta do serviço de saúde às mulheres no pós-aborto é perpetrar a discriminação contra as mulheres, ignorando os compromissos assumidos pelo Brasil através de documentos internacionais e normativos internos que impedem a desigualdade de gênero, a tortura e o tratamento degradante.
“Na hipótese dos autos, a paciente teve sua intimidade devassada em decorrência de comunicação às autoridades de informação que chegou ao conhecimento da comunicante em razão do exercício da sua profissão, sem que tivesse autorização para transmiti-la ou obrigação legal para fazê-lo. A ilicitude da prova, assim, é patente.”
Fachin ficou vencido junto com o ministro Gilmar Mendes.
- Processo: RHC 217.465
Leia os votos de Lewandowski e Fachin.