"Espelança". O vídeo da bebê Alice, de dois anos, contracenando com a veterana Fernanda Montenegro no comercial do banco Itaú já ultrapassou as 53 milhões de visualizações no Youtube.
A menina ficou famosa na internet pela boa dicção e por pronunciar palavras difíceis. Aproveitando a onda de sucesso, marcas procuraram a família da criança para sua participação em comerciais.
Hoje, a mãe da Alice, Morgana Secco (@morganasecco), além de fotógrafa, produz conteúdo para redes sociais, sobretudo Instagram e Youtube, e tem mais de 3,4 milhões de seguidores.
Após o sucesso do comercial do banco, Alice passou a aparecer em memes que deixaram a mãe descontente: "queria deixar claro que a gente não deu autorização pra nenhum deles, e a gente não concorda em associar a imagem da Alice com fins políticos ou religiosos", disse no Instagram.
O uso da imagem de crianças na internet, especialmente nas redes sociais, para documentar aspectos da vida dos filhos, experiências da maternidade ou paternidade, tem levantado questionamentos. Migalhas falou com especialistas sobre o tema.
Assista:
Criança em comercial: pode?
Promotora de Justiça em São Paulo, Angélica R. F. Sigollo explica que, em regra, crianças de até 12 anos não podem trabalhar, mas existem normas que admitem o trabalho quando se trata de manifestação artística, como em comerciais, novelas, filmes e outros.
Para tanto é preciso que seus pais ou responsáveis concordem e pleiteiem uma autorização do Juízo da Infância e Juventude (art 149, II do ECA c.c. STF, na ADIn 5.326), que será responsável pela verificação de compatibilidade concreta entre as condições de trabalho daquela criança e a preservação de seus direitos fundamentais.
É preciso lembrar que crianças se encontram em condição peculiar de desenvolvimento, portanto, são consideradas vulneráveis e devem receber proteção mais ativa e rigorosa do Estado, Sociedade e Família (art. 227 da CF), com vistas à sua proteção integral. Logo, sua atuação artística não será admitida se o conteúdo veiculado se mostrar incompatível com sua condição (armas, bebidas alcoólicas, loterias), se violar algum de seus direitos ou ainda se representar publicidade infantil (considerada abusiva e, assim, vedada pelo CDC).
Por fim, é necessário ter em mente que os recursos pela contraprestação do trabalho infantil artístico devem ser destinados aos interesses da criança, não podendo representar uma fonte de renda aos pais, que ficam responsáveis pela administração e submetidos à eventual prestação de contas em caso de risco de desvios.
Há riscos na exposição de crianças na internet?
A promotora Angelica Sigollo destaca que a exposição na internet gera riscos para toda e qualquer pessoa, mas para crianças os riscos são ainda maiores. Tanto postagens de fotos e relatos da vida realizadas pelas próprias crianças como aquelas pelos pais (conhecidas como "sharenting" - share: compartilhar + parenting: parentalidade) quando excessivas, comprometedoras de fotos e relatos das vidas de filhos, geram riscos de diversas naturezas.
Podem ser citados riscos: (i) à segurança da criança, com ameaças, sequestros, extorsão e golpes; (ii) segurança de seus dados pessoais (coleta e uso indevido); (iii) à saúde física e psíquica pela exposição da imagem, privacidade e intimidade na rede, como doenças mentais (ansiedade e depressão), transtornos alimentares (anorexia, bulimia) e cyberbullying; e, ainda (iv) manipulação indevida de imagens, com impactos morais e criminais (pedofilia e pornografia infantil).
A advogada Marília Golfieri Angella é especialista em Direito de Família, gênero e infância e juventude e, da mesma forma, alerta para a proteção especial a que têm direito as crianças e adolescentes, necessitando de uma força tarefa, principalmente por parte da Família e do Estado, que são dois dos responsáveis por garantir uma vida segura e saudável aos infantes, nos termos da Constituição.
Marília observa que, nas redes sociais, por exemplo, não há ferramentas administrativas para conter a violação da imagem de crianças, a não ser que haja cenas de nudez e pornografia – o que é, em sua opinião, inaceitável, situação que mostra a vulnerabilidade a que crianças e adolescentes estão expostos na internet.
Ela dá dicas que ajudam a garantir a proteção à criança:
"Além do monitoramento constante e regular de todas as redes sociais dos filhos menores, os pais devem orientá-los a deixar o perfil pessoal privado, não fornecer informações e dados pessoais, tal como onde mora, nome dos pais, documentos, lugares que frequenta, a não falar com pessoas que não conhecem pessoalmente, não divulgar fotos e a intimidade de forma desregrada, não seguir páginas inapropriadas com conteúdo pornográfico, agressivo, impróprio para cada idade, entre outras medidas."
Uso da imagem em memes
A promotora pontua que, como se sabe, após uma divulgação pública de foto ou imagem na web é quase impossível controlar o acesso a ela e ao fim que ela pode ter, podendo ganhar grande repercussão na forma de “memes”, normalmente com conteúdo humorístico, composto pela combinação de imagem e mensagem que não constavam originariamente na postagem inicial.
Todavia, fazer uso de imagem de pessoas (crianças ou não) sem autorização pode gerar responsabilidades legais, ainda que se trate de pessoa pública, por se tratar de direito fundamental inviolável (art 5º, X da CF e art 21 do CC).
"É comum o pensamento de que a imagem que se torna pública na internet dá aval para que qualquer pessoa dela se aposse para finalidades diversas, e isso não é verdade! O uso distinto daquele originariamente autorizado sujeita o responsável à reparação de danos, bem como à persecução criminal (ex. crimes contra a honra ou pornografia infantil). No caso de crianças, os pais podem se valer de medidas para os provedores e pessoas excluam os memes e impeçam novas divulgações, bem como respondam pela violação da imagem. Os desafios estão em identificar os autores e promover o rescaldo de tempos em tempos, já que a internet tem memória longa – senão eterna."
A advogada Marília Angella também alerta para o risco do uso da imagem da criança sem autorização por terceiros, ainda mais de forma inapropriada, como “memes”, visto que pode ser considerada uma situação vexatória à criança ou adolescente, sem que haja controle dos danos e extensão da publicação. "Nesse contexto é que vídeos como os da menina Alice precisam ser controlados e verificados de forma rígida, principalmente porque ela se encontra na primeira infância, época em que precisamos estar ainda mais atentos à peculiaridade do desenvolvimento da criança."
Por parte do Estado, Marília destaca a necessidade de se divulgar medidas de proteção e enfrentamento aos crimes cibernéticos praticados contra adolescentes e crianças.
Sharenting
A sociedade brasileira de pediatria publicou texto alertando sobre a prática de "sharenting", e os impactos que pode gerar na vida de crianças.
"O conteúdo compartilhado publicamente por falta de critérios de segurança e privacidade pode ser distorcido e adulterado por predadores em crimes de violência e abusos nas redes internacionais de pedofilia ou pornografia, por exemplo", alerta a coordenadora do Grupo de Saúde Digital da SBP, Evelyn Eisenstein.
No âmbito jurídico, a SBP destaca que o ECA trata do respeito à privacidade, intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada. Somado a isso, vale lembrar que todo conteúdo publicado na internet gera dados que, no futuro, podem ser desaprovados pelos filhos e gerar consequências.