Os alunos do XI de Agosto, tradicional centro acadêmico do Brasil e a entidade de representação política dos estudantes das Arcadas, escreveram carta aberta ao AGU José Levi, questionando a participação do docente da USP no governo Bolsonaro.
Na carta, os alunos lembram o legado do Mestre Goffredo Telles Junior, professor ícone das Arcadas, autor da Carta aos brasileiros, símbolo na luta contra a ditadura militar; e também recordam que no mesmo período surgiu o jurista que redigiu o AI-5, professor Gama e Silva.
“Dada as atuais circunstâncias no Brasil, interpelar Vossa Senhoria não só é uma justa vontade, mas também um dever democrático, e, portanto, o fazemos: a sua referência, enquanto docente desta casa, é Goffredo da Silva Telles, jurista dos alunos e da democracia, ou é Gama e Silva, burocrata da tortura e do golpe?”
Goffredo Telles Junior lecionou por 50 anos na Faculdade, ficando conhecido por ser Professor-Símbolo, se aposentando compulsoriamente ao atingir 70 anos. Lutador incansável do Estado de Direito, dos Direitos Humanos e das Liberdades Democráticas, na noite de 8 de agosto de 1977 Goffredo leu sua "Carta aos Brasileiros", no Pateo da Faculdade de Direito, diante de grande multidão de estudantes, de gente do povo, de altas personalidades e de jornalistas. Esse famoso documento se tornou marco decisivo no processo de abertura democrática no país. Mestre Goffredo faleceu em 27 de junho de 2009.
Os atuais alunos das Arcadas prosseguem, no documento, afirmando que “infelizmente” já têm a resposta para a indagação a José Levi:
“Vossa Senhoria camufla-se de Gama e Silva ao participar da reunião de gabinete, em conjunto com o Presidente, que planejou a intervenção — felizmente não realizada — contra o Supremo Tribunal Federal.”
- Veja abaixo a íntegra da Carta.
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Carta a José Levi, Docente da USP e Advogado-geral da União: o seu currículo custará a Democracia?
Carta do XI de Agosto ao Docente do Dep. de Direito do Estado da Fac. de Direito da USP e atual Advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior.
A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (FDUSP) é um “Território Livre” no qual se chocam diversas contradições. Foi em nossas arcadas, em 1977, que Goffredo da Silva Telles Jr. leu a Carta aos Brasileiros e repudiou a ditadura dos militares. Sob essas mesmas arcadas, porém, foi gestado o jurista que redigiu e deu voz ao Ato Institucional de nº5 da Ditadura Militar, o professor Gama e Silva.
Sendo essas apenas duas das inúmeras posições e oposições que se apresentaram na Fac. de Direito, nós, diretores do XI de Agosto, não nos ausentamos de nos empenhar para que nestas arcadas se consolide a única síntese possível destas contradições. Em termos mais evidentes: uma justaposição que reivindique a necessidade de haver intransigência democrática, pois a democracia é um valor relevante para algo maior e mais necessário.
Logo, dada as atuais circunstâncias no Brasil, interpelar Vossa Senhoria não só é uma justa vontade, mas também um dever democrático, e, portanto, o fazemos: a sua referência, enquanto docente desta casa, é Goffredo da Silva Telles, jurista dos alunos e da democracia, ou é Gama e Silva, burocrata da tortura e do golpe?
Indagamos isso porque é preciso saber, enquanto seus estudantes, se o apagamento daquilo que nos ensina em sala de aula pode servir como objeto de barganha pela oportunidade de atuar em um governo aparelhado por autoritários, colorindo assim o próprio currículo com letras impressas com o sangue dos quase 100.000 brasileiros mortos na pandemia.
Infelizmente, é provável que à pergunta que realizamos já tenhamos a resposta: Vossa Senhoria camufla-se de Gama e Silva ao participar da reunião de gabinete, em conjunto com o Presidente, que planejou a intervenção — felizmente não realizada — contra o Supremo Tribunal Federal. Como publicou a Revista Piauí, incorporou-se “à discussão de como dar legalidade a uma eventual intervenção” no STF.
Não podendo ser diferente, a sua colaboração com o atual presidente nos causa consternação; reação semelhante à que temos para com os outros docentes e demais egressos desta Casa que auxiliam Bolsonaro e as suas brutalidades, contribuindo para poli-las com a “legitimidade jurídica”, elemento precioso e útil, sempre garimpado por juristas para ser oferecido aos mais vis governantes em troca de posições no Estado.
Se é o que aparenta ser, receba o nosso repúdio, transmita-o para o Presidente e para os demais bacharéis comissionados deste governo. Nós os rejeitamos porque sabemos que para cada Gama e Silva, há muitos Goffredos. E, para os burocratas formados, aqueles que buscam disfarçar as suas próprias consciências com a ilusão de servir ao Estado e não ao seu governante, há nas escolas de direito brasileiras uma nova geração de Luizes Gama comprometidos em abrilhantar a democracia.
06/08/2020
Centro Acadêmico XI de Agosto
Fundado em 11.08.1903