Emoção e ética
Veja abaixo a íntegra da matéria publicada pelo jornal A Tribuna sobre o Juiz Marcelo Coelho que atualmente responde por cinco varas no fórum de Rio Branco/AC.
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Juiz responde por cinco varas no fórum de Rio Branco/AC
Rostos complacentes de gente engravatada e sem gravata, de bebês de colo e idosos encurvados entrecruzam-se e ignoram-se, iluminam-se e mal se percebem. Natural. Instintivamente, eles sabem que, ali, todos os caminhos levam à deusa da Justiça.
Tamanha legitimidade sinaliza mais um sucesso da Justiça burguesa. Franz Kafka ficaria tonto: diferentemente do que denunciara em sua obra O Processo, a burguesia pede uma burocracia eficaz do Estado.
Fiador de sonhos e de utopias individuais, o Estado, ideologicamente neutro, flagra-se em um difícil dilema ao esbarrar, nas escadarias do fórum, com rostos desfigurados pelo sofrimento.
Trêmulos, desesperados, os rostos observam a estátua da Justiça - símbolo do seu único, cruel e invencível inimigo.
É talvez por isso que a passagem de Marcelo Coelho de Carvalho, o juiz, causa tanta celeuma.
O "doutor" se deixa emocionar ao ouvir a queixa de uma mãe desesperada, chorosa, pouco antes de ouvir as partes de um julgamento no Tribunal do Júri.
"Por favor, doutor, lhe peço até pelo amor de Deus, tenho um filho preso que pode até ser morto. Por favor, remova ele do pavilhão, transfira ele", suplicou.
O brilho, no desesperado olhar materno, diminui e as mãos, outrora trêmulas e juntas como que a rezar, libertam-se quando o homem que representa a lei - a lei neutra, a impessoal lei burguesa - acusa o golpe. E a voz embargada do magistrado, toldada pela emoção, se faz ouvir.
"Vou fazer, sim, está bem, vou fazer. Vou transferi-lo. Inclusive, já transferi. Só não precisa chorar, tá?".
O gesto é automático. Quase imperceptível. A mão direita do magistrado desliza no ar, precisa, consciente de sua missão, até o ombro esquerdo da mãe lamuriosa. É um ato de carinho? É sim. É quase uma tentativa de transferência de forças. Jesus de Nazaré, aquele da Bíblia, que o diga.
Fordismo no Judiciário
A notável vitória da riqueza da subjetividade humana atraiu pessoas na manhã de ontem (23/10). Outra senhora também quis a soltura do filho, sentenciado por assassinato. A jovem mãe, em som quase inaudível, emocionou-se ao narrar seu drama ao homem da lei. Lágrimas. Mãos. Gestos. Promessas.
A extraordinária overdose diária de emoções, mais a lógica temporalidade das éticas humanas - oposta ao aspecto positivista da lei contemporânea - deixa marcas. O estresse, como pode comprovar o magistrado, é só uma delas.
"Estressa mesmo, mas temos que conviver com isso. E não é só comigo, outros colegas também acumulam varas e se submetem ao mesmo sacrifício. Há algumas semanas, eu fiquei de férias e outro colega ficou acumulando o mesmo número de varas em meu lugar", esclarece Carvalho.
A queixa não é inédita. Outros já reclamaram da sobrecarga de funções no Fórum Barão do Rio Branco.
A questão que se recoloca, urgente e lógica, é a possibilidade de Justiça no ato do julgamento, por um lado, diante de um neo-fordismo que abandonou as fábricas do século 19 e assentou-se, soberano e sisudo, no Poder Judiciário brasileiro, por outro.
Positivismo e fordismo, heranças de um estreitamento burguês do Estado de Direito, são também legados profundos na sociedade acreana. Na construção dessa ética, porém, subjazem questões tão pragmáticas quanto reveladoras: o Judiciário, no Acre e no Brasil, é dentre os poderes constituídos o que recebe a menor fatia do orçamento público.
Coincidência ou absurdo? A resposta dependerá da sua capacidade de exigir uma sociedade melhor para os outros e para si mesmo. Somente a partir daí a proposição dessa ética insana, economicista e consumidora de almas, como norma para os nossos esquemas de sentido, costumes e valores, poderá ser inquirida, questionada, redefinida.
Há um porém. Atualmente, esta função de inquirir, de questionar, de redefinir, também, não é sua, nem do Judiciário. É do Legislativo. Aliás, o orçamento público também é formatado lá. E agora, José?
O magistrado e a fome
Se a demonstração do carinho, da delicadeza tão escassa entre os homens - e também tão característica deles - é também um golpe na pretensão de neutralidade da lei, o que dizer de um modo fordista de produção no Judiciário acreano?
Um ritmo massacrante, diário e desumano, de audiências e de julgamentos, obriga Marcelo Coelho, por exemplo, a responder por cinco varas - algumas vezes, confessou ele à reportagem, desobriga-se almoçar. O problema aqui é óbvio: haverá impessoalidade - de novo ela - nas sentenças de um magistrado estressado e com fome?
"O ritmo é realmente alucinante e todos os dias chegam processos novos. Às vezes, mal termina uma audiência em uma vara e a gente já tem que correr para outra, onde um novo julgamento ou audiência nos esperam", disse o juiz, esbaforido, enquanto descia alguns degraus do fórum e pouco depois de atender a mãe do presidiário.
Mãe e juiz, aliás, aprenderam no cotidiano o que muitos manuais de direito ignoram: a sujeição ao "império das leis" é professora. Ela ensina que a propaganda de uma ética quintessencial, da imparcialidade burocrática, anula-se pela riqueza da percepção e da experiência humana. Experiência que desafia o fordismo jurídico. Que desafia uma visão linear da história.
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