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Lava Jato buscou dados da Receita de maneira informal, mostram novos vazamentos

Método foi usado com frequência durante investigação contra Lula, e também contra Rocha Loures.

18/8/2019

Novos vazamentos, divulgados neste domingo, 18, em parceria entre o site The Intercept Brasil e a Folha de S.Paulo, mostram que procuradores da operação Lava Jato contornaram limites legais para obter informalmente dados sigilosos da Receita Federal nos últimos anos.

Os diálogos indicam que procuradores buscaram informações da Receita sem requisição formal e sem que a Justiça tivesse autorizado a quebra do sigilo fiscal das pessoas que queriam investigar.

Para obter os dados, os procuradores contaram com a cooperação do auditor fiscal Roberto Leonel, que chefiou a área de inteligência da Receita em Curitiba até 2018 e assumiu a presidência do Coaf no governo Jair Bolsonaro, nomeado por Sergio Moro.

Requerimentos formais

A legislação brasileira permite que o MP peça informações à Receita durante investigações, mas é necessário que seus requerimentos sejam formais e fundamentados. Em casos de pedidos muito abrangentes, afirmam, é preciso obter autorização da Justiça.

Auditores da Receita têm o dever de comunicar indícios de crimes que encontrem ao fiscalizar contribuintes, mas existem limites para o compartilhamento dos dados, como dois ministros do STF indicaram recentemente.

Em julho, o presidente do STF, Dias Toffoli, suspendeu investigações baseadas em informações do Coaf, incluindo a que tem como alvo o senador Flávio Bolsonaro. Para Toffoli, órgãos como o Coaf e a Receita só podem compartilhar sem aval da Justiça dados genéricos, sem detalhes sobre movimentações financeiras.

No início deste mês, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu investigações conduzidas pela Receita sobre 133 contribuintes, incluindo as mulheres dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Para Moraes, a Receita selecionou seus alvos sem ter motivo razoável para investigá-los.

Roberto Leonel criticou a decisão de Toffoli publicamente, o que levou Bolsonaro a determinar sua substituição no Coaf. O governo decidiu transferir o órgão para o Banco Central. Levado para Brasília pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, que conheceu como juiz, Leonel deverá sair após a mudança do Coaf para o BC.

Lula

No início de 2016, os procuradores usaram o "atalho" com frequência durante as investigações sobre as reformas executadas por empreiteiras no sítio de Atibaia, frequentado pelo ex-presidente Lula, caso que levou à sua segunda condenação na Justiça.

De janeiro a março daquele ano, a força-tarefa pediu a Leonel que levantasse informações sobre uma nora de Lula, o caseiro do sítio, o patrimônio dos seus antigos donos e compras que a mulher do líder petista, Marisa Letícia, teria feito nessa época.

Em 15 de fevereiro, o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa, sugeriu aos colegas num grupo de mensagens do Telegram que pesquisassem as declarações anuais de IR do caseiro Elcio Pereira Vieira, conhecido como Maradona.

"Vcs checaram o IR de Maradona? Não me surpreenderia se ele fosse funcionário fantasma de algum órgão público (comissionado). (...) Pede pro Roberto Leonel dar uma olhada informal."

O então juiz Sergio Moro autorizou a quebra do sigilo fiscal do caseiro uma semana depois. No processo que trata do sítio, não há nenhuma informação do Fisco sobre ele nem sinal de que a hipótese de Deltan tenha sido checada.

As mensagens não permitem saber se Leonel atendeu aos pedidos, mas sugerem que o auditor era o primeiro a ser consultado sempre que a força-tarefa recebia dicas ou não tinha informações suficientes para pedir a quebra de sigilo à Justiça.

Em agosto de 2015, quando surgiram notícias de que um sobrinho de Lula fizera negócios em Angola com ajuda da Odebrecht, a primeira ideia do procurador Roberson Pozzobon foi chamar Leonel. “Quero pedir via Leonel para não dar muito na cara, tipo pescador de pesque e pague rsrsrs”, disse a Deltan.

Em setembro de 2016, o procurador Athayde Ribeiro Costa informou aos colegas que pedira a Leonel para averiguar se os seguranças de Lula tinham adquirido uma geladeira e um fogão em 2014 para equipar o tríplex que a empreiteira OAS reformou para o líder petista em Guarujá/SP.

O procurador enviou ao auditor da Receita nomes de oito seguranças que trabalhavam para Lula e duas lojas. Não se sabe se a verificação foi feita, mas no processo que tratou do tríplex, que levou à primeira condenação de Lula, ficou provado que a OAS comprara os eletrodomésticos, não ele.

Rocha Loures

As mensagens obtidas pelo Intercept mostram que, em pelo menos um caso, o auditor repassou à força-tarefa da Lava Jato informações sobre pessoas que nem sequer eram investigadas em Curitiba.

Em maio de 2017, Leonel informou a Deltan que fizera uma representação contra os pais do ex-deputado Rodrigo Rocha Loures e preparava outra contra sua ex-mulher, que acabara de declarar uma conta na Suíça.

Aliado do então presidente Michel Temer, Loures fora afastado do exercício do mandato pelo Supremo poucos dias antes, após ser flagrado carregando uma mala com R$ 500 mil recebida de um executivo da JBS, em ação policial executada após a delação dos donos da empresa.

Loures era investigado pela PGR num caso fora da alçada de Curitiba. Mesmo assim, Leonel procurou Deltan após ser questionado por seu superior, o chefe da Coordenadoria de Pesquisa e Investigação (Copei), Gerson Schaan, sobre a representação.

"Ele quis saber pq fiz etc e se tinha passado está inf a vcs”, disse Leonel, no dia 24 de maio. "Disse q NUNCA passei pois não tem origem ilícita suspeita !!! Por favor delete este assunto por enquanto."

Deltan quis saber de Leonel por que a Receita suspeitava que ele poderia ter repassado à força-tarefa a informação sobre os pais de Loures. O auditor fiscal deixou a pergunta sem resposta, mas contou que iria protocolar nova representação.

"Confidencial. A ex cônjuge do dep fed Rodrigo entregou dirpf retificadora incluindo conta no banco pictet suica Não menciona na dirpf se fez ou não dercat. Mas aproveitou o embalo e inseriu saldo de 1 milhão em cc na suica aem lastro."

Segundo Leonel, a ex-mulher de Loures retificara sua declaração anual de IR para informar conta na Suíça com saldo de US$ 1 mi. Ela parecia ter aderido ao programa de repatriação lançado no ano anterior, mas ele não tinha certeza.

O auditor perguntou a Deltan se tinha informações sobre o Pictet e quis saber onde as investigações sobre Loures seriam conduzidas. Deltan respondeu que o caso estava em Brasília e prometeu a Leonel o contato de uma colega.

Algumas semanas depois, o chefe da força-tarefa discutiu com o auditor a possibilidade de ter acesso amplo à lista de contribuintes que haviam aderido ao programa de regularização de ativos, que é mantida sob sigilo pela Receita Federal.

O Ministério Público e os auditores fiscais criticaram o programa publicamente na época porque temiam que corruptos e outros criminosos o usassem para legalizar dinheiro de origem ilícita sem que fossem descobertos.

O programa proibia que ativos de origem ilegal fossem regularizados, mas não exigia comprovação de origem lícita na adesão dos contribuintes.

Nada impede que a Receita analise esses dados e comunique indícios de crime, mas normas internas adotadas pela Receita restringiram o acesso às informações, para dar segurança aos contribuintes interessados no programa.

Repatriação

As mensagens examinadas pela Folha e pelo Intercept sugerem que a força-tarefa queria acesso amplo às informações do programa de repatriação, mas, ao mesmo tempo, pretendia evitar que a RF soubesse de todos os alvos da Lava Jato, e por isso optou pela consulta restrita.

Deltan pediu à Receita o cruzamento dos dados dos contribuintes que aderiram ao programa com os de investigados pela Lava Jato, o compartilhamento das informações com o Coaf e a exigência de comprovação da origem dos recursos declarados.

O procurador disse que a Receita ficou de estudar os pedidos. Leonel respondeu: “Acho q não vão fazer Ou se fizerem pouco abrirão ou pouco controlarão”.

Um mês depois desse diálogo, Deltan consultou Leonel sobre a possibilidade de buscar as informações do programa nos computadores da Receita sem que a cúpula do órgão fosse alertada.

Se eu pedir para consultar todos os nomes, Vc não tem como assegurar que o Paulo não vá ter acesso?”, escreveu Deltan. “Vc pode dizer que recebeu a demanda, e posso fazer expressamente, exigindo garantia de que não sairá do ESPEI. E negocia com o Paulo, não?

Paulo é o chefe da Coordenadoria de Programas e Estudos (Copes) da área de fiscalização, Paulo Cirilo dos Santos Mendes, até hoje no cargo. Ele é um dos responsáveis pelo controle do acesso aos dados do programa de repatriação.

Leonel explicou a Deltan que tinha como saber a identidade dos contribuintes que haviam aderido ao programa, mas não os valores e outros detalhes, e disse que era impossível consultar as informações sem deixar rastros nos sistemas usados pelos auditores. O auditor sugeriu que uma opção seria obter uma lista completa fora dos sistemas, mas não via como conseguir algo assim: “Só por um milagre eles me passarao a listagem”.

Deltan decidiu então restringir seu pedido de acesso às informações da Receita. “Acho que o melhor é pedir a consulta excluindo os mais sensíveis mesmo”, escreveu. “Envie ofício com eventual exclusão dos mais sensíveis e ainda sob sigilo e dai veremos como proceder”, disse Leonel.

Proximidade

De acordo com o The Intercept, a proximidade do auditor Leonel com as investigações da Lava Jato era frequentemente elogiada por Dallagnol e outros procuradores, mas foi motivo de críticas entre os funcionários da Receita.

Eles o viam mais como um funcionário do Ministério Público do que do Fisco. “Leonel está com muitos problemas internos na Receita”, escreveu o procurador Paulo Roberto Galvão no grupo Filhos de Januario 1 em outubro de 2016. “Estranhamentos decorrentes da percepção de que ele trabalha para o MPF e não para a arrecadação.” O procurador Diogo Castor de Mattos ponderou: “eh um cara que nos ajuda mto”.

Ao receber o convite de Moro para chefiar a Coaf, em novembro de 2018, Leonel consultou Dallagnol. “Meu Deus Falei com ele Tarefa difícil Mas temos de ajudar este país”, disse. “Exato. Alguns convites são irrecusáveis”, respondeu o coordenador da Lava Jato, que aproveitou para fazer lobby em prol da força-tarefa. “Povo vai lá e sai pra chefiar setores de compliance dos bancos. É evidente que assim eles jamais vão acusar os bancos de irregularidades. Vão levar na manha pra sair de bem com os bancos e serem chamados. É o que estamos constatando. Nós vamos pra cima dos bancos aqui na LJ e vamos precisar da sua ajuda”.

Apesar de ter deixado a inteligência da Receita em Curitiba, Leonel seguiu próximo à força-tarefa. No fim de março deste ano, ele encaminhou uma mensagem ao procurador Júlio Noronha se dizendo triste e preocupado com a chance da área que comandava na casa ser desmontada frente a uma possível reestruturação da Receita depois de “contribuir fortemente, juntamente com o MP e Polícia, em investigações de lavagem de dinheiro, de corrupção, e contra org criminosas”.

Em abril, fez questão de visitar pessoalmente a sede da força-tarefa na capital paranaense para apresentar um relatório feito pela inteligência do Coaf especialmente para os procuradores. O destino de Leonel está agora nas mãos de Paulo Guedes e de Bolsonaro.

Resposta

À Folha, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e a Receita Federal afirmaram que a troca de informações entre elas durante investigações é permitida pela legislação e ocorre dentro de limites que respeitam a proteção garantida ao sigilo fiscal dos contribuintes.

A Receita Federal afirmou que o MPF "tem o poder de requisitar informações protegidas por sigilo fiscal", e que a cooperação de seu escritório de inteligência em Curitiba respeita regras previstas no CTN, que exige procedimentos formais para troca de informações.

Vazamentos

Migalhas reuniu, em site exclusivo, todas as informações e desdobramentos dos vazamentos envolvendo a operação Lava Jato. Acesse: vazamentoslavajato.com.br

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