Em 1944, o médium Chico Xavier, um dos mais importantes expoentes do espiritismo, era processado na Justiça por direitos autorais em psicografia.
O fenômeno da psicografia ainda é um mistério a ser explicado, e quando passa a ser fonte de provas nos tribunais, deixa de ser apenas uma discussão de convicções pessoais, que envolvem questões filosóficas e religiosas, para se tornar algo que pode interferir no destino de decisões no Judiciário.
Um dos casos mais famosos aconteceu há 75 anos: o escritor Humberto de Campos, desencarnado em 1934, iniciou em 1937, através da mediunidade de Chico Xavier, a emissão de diversas crônicas e reportagens, editadas e publicadas pela Federação Espírita Brasileira - FEB, sendo o livro "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", publicado em 1938, um dos mais notáveis.
Em 1944, a viúva de Humberto de Campos, Catharina Vergolino de Campos, ajuizou uma ação declaratória contra a FEB e Chico Xavier, com objetivo de esclarecer se as obras eram de fato ditadas pelos seu falecido marido e, caso comprovada a autoria, reclamava os direitos autorais dos livros.
Psicografia ante os tribunais
O assunto gerou grande polêmica e repercutiu durante dias nos principais periódicos do país, transformando-se em livro escrito pelo advogado Miguel Timponi, que atuou na defesa da FEB e de Chico Xavier.
Intitulado “A Psicografia ante os Tribunais”, Timponi relata todo o processo até a decisão final da justiça que reconheceu que, para fins legais, os direitos autorais não poderiam ser atribuídos a um espírito desencarnado.
O juiz do caso, Dr. João Frederico Mourão Russell, estabeleceu em sua sentença que:
“Ora, nos termos do art. 10 do Código Civil ‘a existência da pessoa natural termina com a morte’; por conseguinte, com a morte se extinguem todos os direitos e, bem assim, a capacidade jurídica de os adquirir. No nosso direito é absoluta o alcance da máxima mors omnia solvit. Assim, o grande escritor Humberto de Campos, depois de sua morte, não poderia ter adquirido direito de espécie alguma e, consequentemente, nenhum direito autoral poderá da pessoa dele ser transmitido para seus herdeiros e sucessores.”
Ainda na sentença, Russell aponta a competência do Poder Judiciário sobre o assunto:
“Do exposto se conclui que, no caso vertente, não há nenhum interesse legítimo que dê lugar à ação proposta. Além disso, a ora intentada (ação declaratória) não tem por fim a simples declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica [...], e sim a declaração de existência ou não de um fato. [...] Assim formulada, a inicial constitui mera consulta; não contém nenhum pedido positivo, certo e determinado, sobre o qual a Justiça se deva manifestar. O Poder Judiciário não é órgão de consulta.”
A viúva levou o processo ao Tribunal de Apelação do Distrito Federal, onde o relator, Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa, indeferiu o provimento ao recurso, confirmando a sentença. Ao analisar o caso, Rodrigo Kaufmann, em “Memória Jurisprudencial”, acredita que entre os vários casos no qual atuou o ministro Ribeiro da Costa, nenhum ganhou tanto destaque quanto o processo de Humberto de Campos.
Em entrevista ao jornal O Globo em 19 de julho de 1944, a mãe do escritor, D. Ana de Campos Veras, afirmou que enxergava semelhança de estilo entre as obras e as psicografias:
“Não conheço nenhuma explicação científica para esclarecer esse mistério (...) Só um homem muito inteligente, muito culto e de fino talento literário poderia ter escrito essa produção, tão identificada com a de meu filho “, explicou.
Jornal O Globo, 1944. (clique aqui)
Ainda sobre D. Ana de Campos Veras, há interessante passagem, quando rompeu o silêncio e ofertou ao médium de Pedro Leopoldo a fotografia do seu próprio filho, com expressiva dedicatória:
"Ao Prezado Sr. Francisco Xavier, dedicado intérprete espiritual do meu saudoso Humberto, ofereço com muito afeto esta fotografia, como prova de amizade e gratidão.”
Clímax
Na noite de 15 de julho de 1944, quando o processo atingia o clímax, o espírito de Humberto de Campos mais uma vez se manifesta pelo lápis de Chico Xavier que, em estilo inconfundível, dita uma emocionante mensagem, que pode ser apreciada no livro “A Psicografia ante os Tribunais”, sobre a incompreensão humana.
Deste dia em diante, o espírito de Humberto de Campos passou a assinar como “Irmão X”, versão evangelizada do Conselheiro XX, como era conhecido nos meios literários.
Contra provas psicografadas
Em 2007, visando desconsiderar como documento probatório os textos psicografados no âmbito do processo penal, o deputado Robson Lemos Rodovalho (DEM-DF) propôs o PL 1705, que visa a alteração do art. 232 do Código de Processo Penal, no qual são considerados documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares. A alteração propunha que seja incluído no texto a exceção de documentos resultantes da psicografia.
Na justificação do projeto, o deputado questionava a veracidade de algo ditado por alguém após a morte, afirmando que isso que trata de questões de fé e que não deveria fazer parte de questões jurídicas.
O projeto, no entanto, apesar de ter sido aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, foi arquivado em 2011.
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TIMPONI, Miguel. A psicografia ante os Tribunais: O caso Humberto de Campos. 7. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2010.
KAUFMANN, Rodrigo de Oliveira. Memória jurisprudencial: Ministro Ribeiro da Costa. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2012.