Migalhas Quentes

Circus - Adauto Suannes

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18/8/2006

Circus

Adauto Suannes

(0a0c0seoane@noruega.com)

 

Gente Indispensável

"Não há justificativa para ser excluído do Poder Judiciário o controle efetivo daqueles atos, e nem mesmo minimizar a atuação do advogado a mero espectador, quando é ele o único que tem a capacidade profissional para orientar os interessados."

 

(Luiz Flávio Borges D’Urso, Migalhas, 09/08/2006)

Ingressei na faculdade do largo há exatos 50 anos. Soube, dia desses, que, quando eu ainda vadeava pelos fjords noruegueses, o Candinho Dinamarco, mestre de todos nós, reuniu em seu belo sítio, no vale do Paraíba, alguns remanescentes de nossa turma e ali celebraram a primeira aula que nos foi dada pelo Goffredo, ao som das paródias do Vadim e depois de missa na capelinha do sítio, com toda certeza. Falarei mais disso em outro dia, pois o assunto aqui é outro.

 

Lembrei-me da figura esguia do Cândido, exemplo de disciplina alimentar que deveria ser imitada pelo gorducho Ítalo Antonio Fucci, colega de nós dois na fila do gargarejo das aulas do Vidigal, pela sua condição de insigne processualista, falo agora do Candinho, sempre preocupado com a instrumentalidade do processo.

 

O que eu queria de fato dizer é que, chegado seu tempo, inscrevi-me para estagiar no HC da Faculdade. Era assim que os alunos se referiam ao Departamento Jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto, que ainda funcionava numas salinhas ali na Quintino Bocaiúva, nome que parodiava nossos amigos que faziam medicina e estagiavam no Hospital das Clínicas. O orientador então era o Jaime Kawas, que já estava se aposentando, vindo a ser substituído pelo Paulo Gerab, nosso veterano, que de vez em quando costumava brindar-nos com um inusitado espetáculo. Sala cheia de estagiários, ele fingia tropeçar numa cadeira e se punha a discutir com ela, demonstrando que a culpa pelo incidente era dela, não dele. Se a cadeira não tivesse feito isto ou aquilo as coisas teriam sido diferentes. Embasbacados, os ouvintes custavam a perceber que ele estava apenas nos dando uma aula de retórica, a mostrar que o advogado, não poucas vezes, deve buscar argumentos onde eles parecem inexistir. Essa era, pelo menos para mim, a leitura daquele espetáculo divertidíssimo. “Sempre há o que dizer a favor de uma tese”, por mais esdrúxula que ela possa parecer, mesmo porque, o contrário também seria verdadeiro: “Nada pior para uma boa causa do que ser defendida com maus argumentos”. A questão que se propunha era: qual o limite ético disso?

 

Outro de nossos orientadores era o Miguelzinho Aith, que veio a convolar núpcias, como então dizíamos, pernósticos, com a Adma Abujamra, minha queridíssima colega de turma, tão mignon quanto a Mirna Cotait, também nossa colega, ambas sempre circulando a meu lado para lá e para cá. Muitíssimos anos depois eu vim a casar-me com a Maria Helena Rolim, de turma bem posterior, mas tão mignon quanto aquelas, que apresento aos que ainda não a conhecem, eu com meus mais de 1,90 de altura, como sendo “minha cara metade”. Nem todos percebem a dubiedade da frase. Não mais vi a Mirna, mas a Adma e o Miguel fizeram família, vários filhos, um dos quais é um corajoso jornalista que, pelas páginas da Veja, tem mostrado um sério trabalho de jornalismo investigativo. Parabéns, garoto!

 

O Miguelzinho era extremamente pragmático, não nos mandava ler isto nem aquilo, mas nos aconselhava sermos objetivos em nossos arrazoados. “Advogado não existe para complicar, mas para simplificar”. Não me lembro de haver ouvido dele alguma orientação como aquela que, muito tempo depois, o professor de “prática forense” de minha filha Patrícia, que também fez Direito, havia dado à classe. O trabalho elaborado por ela, uma contestação, estava repleto de preliminares, algumas sendo simplesmente ridículas. Mostrei a ela que aquilo não condizia com os chamados preceitos deontológicos, mesmo porque os artigos tais e quais do código de processo civil dizem que. Segundo ela, aquilo era orientação do seu desorientado orientador. O juiz que desbastasse aquilo tudo, rejeitando o que não servisse. Abri-lhe então o manual do Gabriel de Rezende Filho e lhe li o decálogo elaborado por Santo Afonso de Liguori, antes de ele trocar a beca pela batina. “Não suscitar incidentes irrelevantes”, ou coisa parecida, era um dos mandamentos do (bom) advogado.

 

Quando hoje vejo certos trabalhos forenses, fico a imaginar que número enorme de alunos deve ter tido aquele professor de prática forense.

 

No fim do estágio, nosso orientador era um advogado mais circunspecto do que o Gerab e o Miguelzinho. Em minha memória ele está sempre de terno, jaquetão e gravata de seda, com nó muito bem feito, tendo eternamente na mão direita uma pasta de couro, que ele deitava sobre sua mesa de trabalho e dali tirava sei lá que anotações. Falava de modo delicado, mas firme e respeitoso quando corrigia nossas petições. Era o D’Urso. Se guardei comigo alguma imagem de advogado padrão, essa corresponde ao D’Urso, que, ao que sei, ainda está vivo e com saúde, certamente também muito orgulhoso, tanto quanto a Adma, pelos caminhos que vem trilhando o filho dele, nosso bâtonier, como dizem os que são mais velhos do que eu.

 

Naquele tempo nós imaginávamos que nenhum conflito de interesses, absolutamente nenhum, poderia ser resolvido sem a intervenção do Judiciário. Com o tempo o Dinamarco foi mudando esse pensamento, tanto que, juntamente com o Kazuo e a Ada, passou a propor novas formas de resolução desses conflitos. Hoje se fala em Arbitragem, coisa impensável naquele tempo. Eu mesmo já propus a quem me quisesse ouvir a possibilidade da instituição de “Juízos Informais de Conciliação Municipais”, o que traria a grande vantagem de eliminar a demorada fase do chamado “juízo de conhecimento”. Feita a conciliação e homologada pela autoridade municipal (o que não exige reforma constitucional, pois isso é feito informalmente) o seu teor, o credor já teria em mãos um título apto a instruir um processo de execução, se este vier a ser necessário.

 

O próximo tabu a ser derrubado é o da “imprescindibilidade do advogado”, coisa que se mantém, como sabemos todos, mais para preservação de um nicho profissional do que por sincera convicção. Estudo Direito desde que me conheço por gente e me surpreendo a cada dia com o tamanho descomunal de minha ignorância jurídica. Quando leio alguma tabuleta mandada colocar por algum colega, que se diz “especializado em Direito de Família, Falência e Concordata, Direito Penal e Direito Tributário” fico a imaginar em que mãos cairá o incauto que o for procurar. E isso com o silêncio complacente da Ordem dos Advogados.

 

Fiz parte do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP e tive oportunidade de examinar o padrão de conduta de muitos colegas, que não cabe aqui relatar, pois, como diria o Machado de Assis, já me vai faltando página ao fim da escrita. Digo apenas que, recentemente, fui informado de um expediente curioso, inventado por certa advogada que cobra uma espécie de “mensalão” quando patrocina a obtenção de aposentadoria para seus clientes. Estes devem, contratualmente, pagar-lhe certa importância mensal enquanto dure o processo. Coisas que poderiam resolver-se em poucos dias são esticadas por meses, pois ela junta documento a documento, em lugar de anexá-los todos ao requerimento inicial. E só o faz quando intimada a fazê-lo. Isso é regra na advocacia? É exceção? Não sei. O que sei é que, em sua defesa, ela alega, ao que me diz o informante, que precisa sobreviver. Se a causa se encerrar muito rapidamente, ela vai viver de quê?

 

A esta altura da vida, estou convencido de que, imprescindível mesmo, nem o coveiro, como se pensava outrora. Com a possibilidade da incineração de cadáveres, eis o nicho dos coveiros encolhendo.

 

Vejo com tristeza, mas com certa esperança, a notícia de que alguns escritórios de advocacia estão sendo investigados pela polícia, sob a suspeita de serem autênticas lavanderias, o que produz reclamos compreensíveis de seus titulares. Juízes e mesmo desembargadores aparecem nas páginas policiais dos jornais. Alguns saem algemados do fórum, o que, naquele tempo, era coisa impensável. Não que não houvesse juiz que se vendesse por um par de sapatos ou que fosse sócio de advogado em imobiliária na sede da comarca. Em nome do prestígio da magistratura, era preferível promovê-lo ou convencê-o a aposentar-se. Talvez pudéssemos dizer que os corregedores daqueles tempos fossem mais benévolos. Foi por causa disso e em nome da necessária transparência que acabamos fundando a Associação Juízes para a Democracia, entidade que, certamente, poderia ter feito muito mais do que já fez, mas que, dentre outros feitos, tem o Celso Limongi como um dos seus primeiros associados.

 

Conseguir emprego para os que se formam em Direito é uma preocupação meritória. Tanto quanto assegurar aos coveiros condições para eles manterem a família, o que não poderá levar à proibição da incineração de cadáveres, especialmente porque o falecido talvez sofresse de claustrofobia. As faculdades de Direito continuam a despejar na rua número incalculável de bacharéis todo fim de ano. A velha academia produziu profissionais notáveis como o Mário Chamie, pai da Poesia Práxis; o Paulo Autran, príncipe de nossos palcos; Zé Celso Martinez Correa e sua paixão pelo teatro; o Modesto Carone, considerado o escritor que melhor traduziu Kafka para o português. E eu me demoraria horas relacionando outros bacharéis em Direito, pessoas certamente indispensáveis que, no entanto, jamais advogaram.

 

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