A ditadura do heterossexualismo
Ontem foi a vez de Salvador e Curitiba. Cerca de 450 manifestantes protestaram contra documento lançado pelo Vaticano na semana passada que condena o casamento entre pessoas do mesmo sexo, queimando cópias do documento em frente às catedrais.
Veja abaixo o comentário de Adauto Suannes, desembargador aposentado do TJ/SP, sobre essas manifestações:
Heterossexualismo compulsório
Adauto Suannes*
Que dizer disso? Em primeiro lugar, é para indagar se compete ao chefe da Igreja Católica definir a natureza do homossexualismo, como se se cuidasse se mera opção, assim como alguém se dispõe, sem bem saber porque, a torcer pelo Milan ou pelo Udinese. Até outro dia, era, de fato, o homossexualismo considerado doença até mesmo por organismos internacionais, que, talvez em razão da complexidade do assunto, preferiram deixar o tema aos cuidados dos cientistas, no que fizeram muito bem. Um novo Papa vir a pedir perdão aos homossexuais daqui a 300 anos, como fez o atual em relação a Galileu Galilei, não evitará os estragos que tal equivocado enfoque vem trazendo e continuará a trazer a inúmeras pessoas cuja opção de vida só a elas interessa.
Em segundo lugar, o elo que liga duas pessoas no casamento não é o celebrante, seja ele padre ou pastor, nem a bênção que eventualmente recebam, nem a roupa branca que exprime a virgindade da noiva, mas o vínculo amoroso, que a igreja católica identifica com o Espírito Santo. Os tribunais canônicos anularam e ainda anulam casamentos de heterossexuais sob o fundamento de que foi contraído sem amor, faltando, assim, um dos seus requisitos básicos. Que nome terá então aquele vínculo afetivo que liga dois homossexuais por tantos anos? Quantos casamentos heterossexuais chegam a tanto hoje em dia?
Quanto ao beijo, os nossos penalistas de meados do século passado o consideravam, de fato, ato obsceno, distinguindo, porém, o beijo propriamente dito do mero ósculo. Basta ver os filmes dos anos 40 e os de hoje para ter-se clara a diferença entre o que ocorria naquela época e o que ocorre em nossos dias. Lá, homem e mulher comprimiam boca contra boca, ambas fechadas, em um gesto mecânico, longe certamente do que faziam no leito nossos pais e avós. Língua aparecendo nem pensar. O realismo cinematográfico ou o afrouxamento dos costumes acabou levando-nos para o canto oposto do córner: até mesmo os programas de televisão exibidos em horário adequado a crianças exibem não só os beijos mais calorosos como o próprio ato sexual.
A imoralidade, portanto, não estaria no ato em si, mas nas pessoas que o praticam, o que nos leva para o terreno da intolerância pura e simples. E essa intolerância tanto pode levar à luta entre católicos e protestantes, judeus e palestinos, brancos e negros, corintianos e palmeirenses, sem que se veja, sob qualquer critério objetivo, qual a finalidade dela. Digo melhor: a finalidade seria dizimar o inimigo, sem a menor preocupação em tentar descobrir o que no modo de ser de quem é diferente de nós tanto nos incomoda.
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* Desembargador aposentado do TJ/SP
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