A reabertura política do Brasil à democracia teve como marco a promulgação da Constituição Federal de 1988. Desde então, instituições brasileiras, pilares do país, se organizaram e trabalharam para dar efetividade à inclusão e justiça social, desafio ainda vigente.
Nesse cenário de mudanças, a Defensoria Pública foi incumbida, conforme expresso na Carta Magna, de cumprir o dever constitucional de prestar "assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos" (inciso LXXIV, art. 5º).
Apesar de se reconhecer a nobre missão da Defensoria e a importância da disposição, fica o questionamento: quem é o "necessitado" de que trata a lei? Brasileiro, 36 anos, casado, 7 filhos, recebe 3,5 salários mínimos? Brasileira, solteira, 18 anos, sem filhos, recebe 2 salários mínimos?
A amplitude do conceito e os parâmetros definidos em diferentes Estados do país são questões ainda controversas.
Variação
Em atenção às disposições a respeito da verificação de necessidade, algumas unidades da Federação disciplinaram a forma de comprovação, para fins de assistência jurídica integral e gratuita, estabelecendo critérios para sua aferição.
Necessitado | |
Estado | Critério econômico* |
AM | R$ 2.640,00 (3 SM)** |
BA | Valor da isenção de pagamento do IR (R$ 2.046,38) |
DF | R$ 4.400,00 (5 SM) |
MT | R$ 2.640,00 (3 SM) |
MG | R$ 2.640,00 (3 SM) |
PR | R$ 2.640,00 (3 SM) |
PI | R$ 2.640,00 (3 SM) |
RJ | Sem critério econômico fixo |
SC | R$ 2.640,00 (3 SM) |
SP | R$ 2.640,00 (3 SM) |
*Para a composição da tabela foi utilizado apenas o critério salário mínimo, não sendo inseridos outros fatores cumulativos como posse de bens móveis, imóveis ou direitos e de recursos financeiros em aplicações ou investimentos.
**SM: Salário mínimo
No DF, por exemplo, a resolução 140/15 estabelece que considera-se hipossuficiente a pessoa natural que não possua condições econômicas de contratação de advogado particular sem prejuízo de seu sustento ou de sua família.
Presume-se a hipossuficiência de recursos de quem, cumulativamente, aufira renda familiar mensal não superior a cinco salários mínimos; não possua recursos financeiros em aplicações ou investimentos em valor superior a 20 salários mínimos; e não seja proprietário, titular de direito à aquisição, usufrutuário ou possuidor a qualquer título de mais de um imóvel.
Já em SP (deliberação 89/08), estabeleceu-se a hipótese de atendimento pela Defensoria Pública mediante o atendimento das seguintes condições: aufira renda familiar mensal não superior a três salários mínimos; não seja proprietário, titular de aquisição, herdeira, legatária ou usufrutuária de bens móveis, imóveis ou direitos, cujos valores ultrapassem a quantia equivalente a 5.000 UFESP's; não possua recursos financeiros em aplicações ou investimentos em valor superior a 12 salários mínimos federais.
O critério econômico de limitação em três salários mínimos também é estipulado pelas Defensorias Públicas de SC (resolução 15/14), PI (resolução 26/12), AM (resolução 12/14), PR (deliberação 19/14), MT (resolução 46/11), entre outros.
Em MG, a resolução 1/12 dispõe que "presume-se necessitada toda pessoa natural, nacional ou estrangeira, residente ou não no Brasil, cuja renda mensal individual não ultrapasse o valor de três salários mínimos, ou cuja renda mensal familiar não seja superior a cinco salários mínimos".
Na BA, por sua vez, é necessário que o "necessitado" aufira renda mensal não superior ao valor da isenção de pagamento do imposto de renda (R$ 2.046,38) – resolução 3/14.
Para a Defensoria Pública do RJ, entretanto, têm Direito à assessoria todas as pessoas sem condições financeiras de contratar advogado e pagar despesas de processo judicial, ou por certidões, escrituras, etc, sem prejuízo do seu sustento e de sua família.
Desta forma, segundo a instituição, "o importante não é o valor do salário da pessoa mas se as despesas dela e de sua família permitem a contratação de advogado ou permitem que ela pague por documentos, certidões, etc".
Conceito no STJ
A conceituação de "necessitado" também já foi alvo de discussão em diversas oportunidade na mais alta Corte infraconstitucional do país. A mais recente delas, em novembro de 2015, teve lugar na Corte Especial, quando em julgamento do REsp 1.192.577 firmou-se entendimento de que a Defensoria Pública tem legitimidade para ajuizar ação civil pública em que se discute abusividade de aumento de plano de saúde de idosos, devendo a comprovação individualizada sobre a insuficiência de recursos ficar postergada para o momento da liquidação ou execução.
Naquele julgamento, o ministro Herman Benjamin afirmou que, no campo da ação civil pública, o conceito deve incluir, ao lado dos estritamente carentes de recursos financeiros – os miseráveis e pobres –, os hipervulneráveis.
Em seu voto, o ministro Benjamin afirmou que a expressão inclui "os socialmente estigmatizados ou excluídos, as crianças, os idosos, as gerações futuras; enfim, todos aqueles que, como indivíduo ou classe, por conta de sua real debilidade perante abusos ou arbítrio dos detentores de poder econômico ou político, ‘necessitem’ da mão benevolente e solidarista do Estado para sua proteção, mesmo que contra o próprio Estado". A relatora concordou com a definição.
Projeto de lei
No Estado de São Paulo, a questão motivou a OAB/SP a propor discussão no Congresso da definição do termo "carente'. Para isso foi entregue ao deputado Federal Arnaldo Faria de Sá, no início deste mês, o texto de um projeto de lei que conceitua quem é carente na lei orgânica da Defensoria Pública.
"Carente é aquele inscrito nos cadastros dos programas sociais do governo federal. Assim acabará a situação de subjetividade da Defensoria, de escolher quem ela atende, para que sirva aquele que de fato não tem recurso para pagar um advogado", afirmou o presidente da seccional, Marcos da Costa.