Migalhas Quentes

Churrasco em Urubupungá

17/3/2006


Churrasco em Urubupungá


Confira abaixo a crônica "Churrasco em Urubupungá", elaborada pelo migalheiro advogado Helio Silva.


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Churrasco em Urubupungá


Outubro, antes das chuvas. Um verão escaldante. A primeira paisagem é o “mundão” de água, refletindo um céu azul pleno de luz. No meio dessa água toda contida rio acima em quase um mar e estrangulada rio abaixo em vazante inquieta, as hidrelétricas majestosas. Na segunda paisagem, quase monótona, a planície a perder de vista, ora verde, ora amarelecida, e nela, impossível contar, aqueles pontos brancos em movimento. É o boi “nelore”, rústico e ligeiro, multiplicado aos milhares. Em passo firme, os animais lambem a pastagem rasteira e procuram na sombra das árvores poucas o refrigério nas margens dos lagos imensos. Quadro austero e soberbo, isso é Urubupungá!


Em Urubupungá, já disseram, as mulheres são bonitas, os homens são brabos e o “nelore” é gordo. Em Urubupungá um churrasco de carne tenra e suculenta, precedido de uma boa cachaça e regado a cerveja bem gelada, pode acontecer assim num repente, sem ensaio e sem aviso, a pinga para aquecer a conversa, a “loira” para refrescar as idéias, a carne para matar a fome enquanto as pessoas celebram a fraternidade tão própria do rincão festeiro. Contam que em Urubupungá, um candidato a fiscal do Banco Brasil, saído de um desses encontros típicos, foi inventariar uma propriedade da região e lá, quem sabe vencido pela comilança e amolecido pelo calor da tarde estival, relatou ter visto “alguns bois ao longe”; questionado pelo seu chefe se os bois não seriam vacas, o fiscal em perspectiva respondeu “pode ser” e, no decorrer do diálogo surrealista, perdeu a promoção . . . Bem, verdade ou não, o fato é que em Urubupungá a reunião de homens brabos e mulheres bonitas em um churrasco pode ter desfechos inusitados. Vejam, por exemplo, o que segue.


Zé Chico chegara recentemente à cidade e logo ganhou fama com o seu porte vistoso, o estilo “country” nos chapéus finos, nas botas lustrosas, nas camisas e calças justas realçando o corpo atlético; seu vozeirão, suas gargalhadas, seus gestos largos, fizeram-no imediatamente notado aonde chegasse, quase sempre na camioneta vermelha e brilhante. Todos falando de Zé Chico, da sua conta polpuda no banco, dos seus empreendimentos em franco progresso, das suas fazendas no Texas e na Austrália. E o sucesso de Zé Chico entre as mulheres? Elas o cercavam em algazarra, as velhinhas chamando-o de “meu filho”, as jovens descompromissadas derramando frases soltas de duplo sentido, as honestas surpreendidas em furtivos e dúbios olhares, as de vida fácil, damas enjeitadas, disputando o “cow-boy” em jornadas de pecado naquelas casas de luzes vermelhas à porta. Pudera . . . Zé Chico era “from Dallas”.


Na cidade havia o “seu” Martins, uma reserva moral, um notável. Em “seu” Martins a estatura mediana, o físico atarracado, a voz baixa e o linguajar educado resumiam um conjunto de moderação e sobriedade em um homem já “cinquentão” e de quem se contavam aventuras passadas em outras terras de onde, entre tiroteios e sopapos, viera a safar-se para ser padrão de respeitabilidade mesmo para os que, à surdina, o chamavam de “minerim tipim” de ‘Berlândia”. “Seu” Martins, casado com Dona Ceja, mulher de uns trinta anos e lindíssima, por ele chamada de “nossa esposa”, era um homem poderoso no lugar e, ademais, temido.


Zé Chico e “seu” Martins, sendo o que sempre foram e estando tão próximos, haveriam de partilhar interesses e confundir destinos. Tudo começou na Festa Agropecuária, quando Zé Chico em noite apoteótica, além de montar um potro indomado, logo depois saltou na arena e se enlaçou com um novilho mau. A platéia aplaudiu em delírio, mais freneticamente as mulheres, Dona Ceja à frente. “Seu” Martins que, dias antes, não conseguira castrar o “Pavão”, um cavalo velho e manco e preso ao tronco, passando a tarefa, trivial em lides do campo, para um dos peões de sua fazenda, assistiu à exibição de Zé Chico, naturalmente sem entusiasmo, mas, logo depois chamou o “texano” à sua mesa para fecharem “um negócio de uns bois”. Foi quando Zé Chico, já enfastiado do assédio feminino de até então, notou que entre as mulheres presentes, muitas delas deslumbrantes, nenhuma entretanto poderia igualar-se à “nossa esposa” que, de beleza tão ímpar, valeria a loucura de uma “loucura”, não importa a vida pregressa de “seu” Martins, “um matador”.


Dessa noite para frente, Zé Chico mudou; conservou as roupas chiques, o chapéu, a camioneta e a conta no banco, mas deixou de falar e rir alto e de marcar presença diária na zona de meretrício. Zé Chico apaixonou-se por Dona Ceja e, em segredo, não pensava em mais nada, a não ser no momento em que, na fazenda do “seu” Martins e no dia do “negócio dos bois”, faria a loucura maior da sua vida: raptar a mulher do fazendeiro e irem os dois para a Austrália.


A loucura acalentada se deu naquele domingo de muito sol batendo a pastagem da bela propriedade. Ali estavam os donos, “seu” Martins e Dona Ceja, e Zé Chico para realizarem o negócio a que se propuseram. “Seu” Martins, trêfego como nunca se vira antes, ele que sempre fora protocolar, de pouco falar e pouco rir, então a assobiar uma música desconhecida e de acordes desconexos, vez e outra rindo baixinho, um risinho maroto e contínuo, irritante mesmo, quase diabólico. Contando anedotas grosseiras e, quase sem deixar se perceber, “seu” Martins aumentou o preço das reses que pretendia vender, pois a manada “sabe como é, é tudo cabeceira”. Zé Chico, ao contrário, tinha o rosto fechado, estava trêmulo, sobretudo desatento com a conversa e com os números, concordando sem discutir com o novo preço imposto. E Dona Ceja? A de sempre, uma fada que parecia deslizar entre os animais pequenos no quintal, irradiando luminosidade a cada sorriso dos dentes alvos e perfeitos e desfiando música doce em cada palavra dita; e havia ainda o perfume que a mulher deixava à sua passagem, tão suave e ao mesmo tempo tão intenso, que fazia esquecer os cheiros vindos do curral onde as vacas aliviavam-se com a sem cerimônia que a Natureza lhes concedeu.


Zé Chico, desconfiado da súbita mudança de humor no “seu” Martins, via uma cilada, mas, remoia consigo mesmo, teria de ir à frente em seu intento de conquistar a mulher que vinha lhe custando tantas vigílias. Mal sabia Zé Chico que “seu” Martins estava feliz apenas pela expectativa de realizar o negócio do ano e com isso chegar até ao gerente do banco, aquele mesmo de nariz empinado e burocrático e, sem dizer “boa tarde” nem “até logo”, quitar a promissória vencida que lhe roubara, além do sono, antes tão reparador, outras vontades, antes tão freqüentes.


“Seu” Martins, por seu turno, também desconfiava do muxoxo de Zé Chico; pensava, o “texano” não se sentia bem na propriedade, uma beleza, todos confirmavam, mas longe dos requintes de um rancho no Texas; as risadas nunca sabidas e o assobio sem ritmo do fazendeiro apenas disfarçavam o medo de que, à última hora, acontecesse um arrependimento do comprador. Soubesse “seu” Martins o que atormentava Zé Chico, deixaria de lado os gracejos e mais do que se apressar em reunir o gado negociado, voltaria logo, ou melhor, nem arredaria o pé da sede da fazenda.


Dona Ceja, essa, em nada se preocupava com as cismas dos dois homens, envolvida que estava nos preparativos do almoço, nos cuidados com os animais, na arrumação do alpendre, enfim, cumprindo com a graça de uma senhora prendada as obrigações que melhor caberiam à alguma serviçal. Qualquer um concordaria, Dona Ceja não era apenas uma bela mulher, uma a mais; Dona Ceja era a mulher mais bela, única e insuperável, entre tantas que um homem pudesse escolher.


No que “seu” Martins saiu ao campo, Zé Chico, “texano”, foi “direto ao ponto” e em desajeitado arroubo confessou-se à Dona Ceja e disse de seu projeto de irem os dois para o outro lado do Mundo cuidar de bois pastando entre cangurus e aborígines. Dona Ceja não sabia bem o que seria um aborígine ou onde ficava a Austrália, mas não teve dúvida quanto à sedutora proposta: aceitou tudo prontamente, com a condição de avisar antes o marido, porque ela não era de cometer ingratidões, ainda mais com o homem que a elevara às alturas da mulher mais honorável do lugar.


Zé Chico não contava com um “sim” tão rápido e com os zelos da mulher em avisar ao marido que pretendia ir-se para não mais voltar. Pela primeira vez em sua vida, Zé Chico se arrependeu do seu jeito de ser, de “atirar e depois perguntar”, como ele mesmo dizia, e pediu a Dona Ceja, tão recatada dama, que não levasse a sério sua proposta e que, para o bem de todos, guardasse segredo sobre tudo o que fora dito entre os dois. Mas, ah! Dona Ceja transformara-se, já não era mais a mulher de antes. Sua cabeça era um dilema só, uma estrada entre duas direções: uma que vinha da cidade, passava pela fazenda bem cuidada e terminava no homem maduro e sóbrio que era seu marido; outra, que parecia vir do Texas e apontar para a Austrália, à espera, um homem exuberante, moço, afoito, pronto a suprir todas as expectativas de uma mulher jovem e bonita. Uma única perda, dolorosa para a mulher: deixaria o cavalo “Pavão”, inútil e manco e a sofrer a indiferença de todos da fazenda. O coração de Dona Ceja balançou, balançou e bateu forte porque o marido vinha chegando.


“Seu” Martins trouxe o gado e, com os mesmos assobio e riso de antes, disse que faltavam umas cinco reses, “desgarradas, as danadas”, mas que, pela qualidade do lote, não era possível reduzir o preço combinado. Zé Chico, mais nervoso e desatento, concordou com tudo. “Seu” Martins, mais engraçado, disse que em compensação Zé Chico iria saborear um almoço inigualável.


De fato, a mesa posta era opulenta: arroz temperado com urucum, fina salada curtida em ervas variadas, farofa crocante, feijão gordo, uma costela de boi sustentada em ripas finas, cupim amanteigado e, de entrada, miúdos de frango combinados à dourada cachaça mineira e à cerveja geladíssima; um aparador forrado por toalha de rendas exibia, provocantemente, doces caseiros e adornada garrafa de licor caseiro. Tamanha tentação não venceu Zé Chico que, subitamente perdeu a fome, os ares efusivos e o controle da situação; toda sua concentração, ou desconcentração, estava no que Dona Ceja poderia dizer ao marido, o que aconteceu em seguida, na faísca daqueles dentes alvos mostrados em sorriso tímido e na voz entrecortada, avisando que Zé Chico lhe fizera uma proposta.


O “texano” estremeceu e mediu a enorme distância entre ele e a pistola Beretta, guardada na sua camioneta. Que distância! Justo em momento tão urgente e dramático, frente a um “matador” que exibia à cintura um revólver reluzente, necessário porque “ladrões de gado rondam a região”, Dona Ceja, baixando os olhos, disse que Zé Chico queria adquirir o “Pavão” e estava disposto a pagar valor maior que o da vaca “Graciosa”, detentora de um colar de medalhas. O fazendeiro desfez, num relance, os ares marotos que exibira até então e retomou a fleuma de costume, porque, na sua seriedade e já acossado moralmente pelas vantagens financeiras do “negócio dos bois”, envergonhou-se, protestou por não aceitar o que lhe era oferecido e tentou demover Zé Chico dizendo que o “Pavão” não valia os carrapatos que acolhia; o animal, imprestável, ficaria na fazenda, como futuro prêmio para os urubus.


Dona Ceja insistiu; na verdade, por capricho feminino, seu propósito era medir o quanto Zé Chico faria para tê-la. E Zé Chico fechou a questão assinando o cheque bom que pagava os bois e o cavalo. Só isso, pois, ato contínuo, dispensou o almoço, correu para a camioneta e se foi com o veículo em uma nuvem de poeira, sem os semoventes que adquirira. No mesmo dia, sem dizer a ninguém dos “porquês” de sua decisão, Zé Chico deixou a cidade, para trás os espaços largos daquelas águas plácidas e das campinas mergulhando nos horizontes. Do “texano” ninguém mais se lembra, mas do “seu” Martins, pouco depois vítima de misteriosa e fatal doença, todos são reverentes a ponto de lhe tomarem o nome para o recinto da Festa Agropecuária. Dona Ceja, como diria “seu” Martins, “jamais prevaricou”: permanece na cidade, cultivando a impoluta e endinheirada viuvez entre festas beneficentes e redobrados cuidados com o bom e velho “Pavão”.
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