No longínquo ano de 1764 o Marquês de Beccaria trazia a público o seu manifesto iluminista Dos delitos e das penas, em que denunciava a má condição dos cárceres europeus e mais do que isso, propunha novas balizas para a ideia de pena, lançando aquelas que seriam as bases para o Direito Penal moderno.
Exatos 250 anos passados, pode-se dizer que no Brasil as condições do sistema carcerário ainda são muito próximas daquelas, e que nos casos em que melhoraram materialmente, ainda demandam um novo olhar para o fenômeno da criminalidade e o sentido da pena.
Tão vasto quanto as boas experiências colhidas, o programa do encontro estendeu-se das 9:20 da manhã às 16:30 da tarde, sem interrupção para cafés e até mesmo para almoço. Muita gente tinha o que falar, muitos profissionais tinham o que mostrar – após breves explanações sobre a atividade proposta para as presas, cada um dos profissionais mostrava um pequeno vídeo feito in loco – com autorização judicial, é claro – e algumas chegaram mesmo a propor atividades com a plateia. Meditação e relaxamento, dança, canto, música, poesia são algumas das atividades que vêm colhendo bons frutos no CPP Feminino do Butantan.
Para Rosana Munhoz, que prefere ser chamada de Siari, a meditação segundo as regras da yoga permite às presas vivenciarem o silêncio, o que aos poucos contribui para o desenvolvimento da autorresponsabilidade, mas sobretudo da consciência de que o espaço em que vivem é interno, é o ser de cada uma, que pode e deve ser cuidado e cultivado, mesmo enquanto na prisão.
Tão surpreendente quanto a história do professor foi ouvir a diretora interdisciplinar de segurança e disciplina da penitenciária do Butantan, a bacharel em Direito Rosângela dos Santos Silva de Souza, narrar à plateia a transformação operada em sua visão das próprias presas a partir do contato com profissionais de fora do sistema – em sua maioria voluntários – que desenvolvem diferentes trabalhos com as reeducandas. “Eu preciso dessa parceria”, reconheceu a diretora de disciplina, em uma fala que remete à capacidade humana de constituir-se a partir do olhar do outro.
O evento foi fechado com chave de ouro com a narrativa da experiência pioneira desenvolvida dentro da penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos/SP. A partir da sugestão de um agente penitenciário, foi criado um grupo de teatro integrado por presos e funcionários, que resultou no filme Na quebrada, em cartaz em cinemas Brasil afora. Juiz da Corregedoria do TJ/SP, Jayme Garcia Junior, um dos avalistas do projeto, foi quem chamou a atenção para algo óbvio, mas que ainda teimamos em não ver, e que corrobora a visão externada pela diretora de disciplina Rosângela de que o sistema carcerário é um assunto que diz respeito a toda a comunidade: “O cárcere não está fora da sociedade. Não temos que falar em reintegrar, e sim em olhá-lo como algo que já faz parte do agrupamento social”.
Em metáfora tão perfeita como só é permitido pela arte, minutos antes boa parte do auditório havia deixado suas cadeiras e dado as mãos em uma roda proposta pela professora de dança Jacqueline Carla Sandes: advogados, estudantes de direito, familiares de detentos, egressos do sistema penitenciário e até mesmo um preso em cumprimento de pena no regime aberto, a quem o estigma tem pesado demais, segundo seu próprio relato, giravam todos sob a mesma música: a crença em um iluminismo que começou lá atrás mas que ainda luta para se firmar.