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#Vai ou não vai ter Copa – há quase 100 anos, Lima Barreto dava notícia de dissensão no futebol

Em texto de alto valor histórico, escritor brasileiro registra racismo e má-aplicação de verbas no futebol no início do século

12/6/2014

Gênero híbrido, que transita confortavelmente entre a notícia e a narrativa, a crônica jornalística presta-se ao registro histórico do cotidiano de maneira sarcástica, irônica ou bem-humorada.

Em texto escrito na imprensa carioca nos idos de 1921, com toda a ironia de que era capaz, o escritor Lima Barreto busca interpretar, para os leitores da época, o significado da apropriação do futebol – ainda football, naqueles tempos – pela incipiente cultura urbana brasileira. De partida, ao tentar enumerar possíveis benefícios que o esporte traria, afirma que o futebol “tem conseguido, graças a apostas belicosas e rancorosas, estabelecer não só a rivalidade entre vários bairros da cidade, mas também o dissídio entre as divisões políticas do Brasil”. E continua: “O futebol é eminentemente um fator de dissensão”, ideia que vai repetir ao longo do texto algumas outras vezes.

A história que inspirou o texto é mais ou menos esta: às vésperas da partida da seleção brasileira para um torneio internacional na Argentina, reúne-se secretamente “o Sacro Colégio do Football” para decidir se poderiam ser levados a Buenos Aires “campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue negro”.

“O conchavo não chegou a um acordo”, razão pela qual resolveu consultar o Presidente da República. “Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não deveria constar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano”.

Diante de tal resposta, todos os cavalheiros que “trabalham ‘pedestremente’ [provável alusão a uma ‘pérola’ dita por algum expoente da época] pela prosperidade intelectual e pela grandeza material do Brasil” decidiram nomear uma comissão de antropólogos para decidir quem poderia ser enviado ou não “ao certame de junta-pés na Argentina”.

A providência terminaria por ofender, nos cálculos do autor, cerca de metade da população do Brasil, corroborando a afirmação inicial de que o papel do futebol seria “causar dissensões no seio da nossa vida nacional”.

As imprecações contra o esporte bretão continuam, alcançando – vejam só! – “as gordas subvenções com que são aquinhoadas as sociedades futebolescas e seus tesoureiros infiéis”, que ironicamente o escritor sugere passem a ser financiados pela verba destinada ao médico sanitarista dr. Belisário Pena, que sem meios, não poderia cuidar dos pobres, que seriam dizimados, encerrando a necessidade de mais verbas, em um ciclo desvirtuoso coerente com os propósitos do governo. Ilógico, explica o autor, seria “querer conservar essa gente tão indecente e vexatória, dando-lhe médico e botica, para depois humilhá-la, como agora, em honra do football regenerador da raça brasileira, a começar pelos pés (...)”.

Por fim, em crítica que alcança também o fato de ser um esporte “importado”, o mordaz cronista sugere sejam contratados “alguns ingleses que nos representassem nos encontros internacionais de football”, resolvido o problema da inconveniência dos olhos dos outros sobre nós.

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