A partir de agora o IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais tornará aberto ao público o editorial publicado mensalmente em seu boletim, cujo conteúdo é exclusivo aos associados.
O texto expressa a opinião do Instituto e incita o debate sobre os mais diversos temas da área criminal, usando para isso uma linguagem própria.
Confira o editorial deste mês na íntegra:
As agruras da execução criminal no Brasil: solução por via inconstitucional?
O Tribunal de Justiça de São Paulo tomou a iniciativa, tendo em vista os problemas atinentes ao sistema de execução de penas no Estado, de propor à Assembleia Legislativa projeto de lei com o objetivo de modificar substancialmente a estrutura administrativa da magistratura, no que concerne à jurisdição da execução penal.
Este Projeto de Lei Complementar 69/2011, de iniciativa do próprio Tribunal – já aprovado pelo Órgão Especial em 23 de janeiro último –, prevê, entre outras questões: (i) a regionalização e centralização da execução penal; (ii) a desvinculação das unidades prisionais com as respectivas regiões de execução; (iii) a nomeação de juízes para a execução penal por indicação do presidente do Tribunal e chancela do Conselho da Magistratura do Estado.
A nova legislação pretende criar o Departamento de Execuções do Estado de São Paulo e prevê, em seu primeiro artigo, que se crie o Departamento de Execuções e que “o Conselho Superior da Magistratura designará os juízes que atuarão nos Departamentos aludidos no caput deste artigo, a partir de indicação do Presidente do Tribunal de Justiça”.
O projeto substitutivo tem sérios problemas e tende a levantar a bandeira da necessidade de que se faça alguma coisa a qualquer custo. Importante que se reafirme que o sistema de execução penal no Estado de São Paulo, e mesmo em todo o país, sofre pela ineficiência e descontrole da situação carcerária. De outro revés, não se pode aceitar que a patologia seja medicada com a criação de outros cancros no próprio sistema.
De se ver que, já em seu introito, o projeto de lei despreza garantias previstas pela Constituição Federal, que não podem ser tocadas por qualquer legislação, muito menos por legislação estadual infraconstitucional. Não é legítimo que se pense em um departamento de execução penal, absolutamente desvinculado do local da execução e protagonizado por juízes indicados pelo próprio Presidente do Tribunal de São Paulo. Juízes estes, portanto, desprovidos de parte das garantias instituídas pela Constituição para garantir sua imparcialidade. A legislação proposta no Estado de São Paulo implica possibilidade de destituição do juiz de seu cargo por ato do Conselho da Magistratura e por indicação do Presidente do Tribunal, o que poderá ocorrer a qualquer tempo e, quiçá, em virtude de alguma decisão indesejada ou mal recebida.
A certeza acerca da titularidade do exercício perene do cargo, ou seja, a garantia constitucional da inamovibilidade do juiz justifica-se para assegurar a aplicação do devido processo legal, evitando a criação de tribunais “ad hoc”, ou tribunais de exceção – observando-se, assim, o princípio do juiz natural. A imparcialidade necessária ao exercício da jurisdição é resguardada pelos concursos de promoção e remoção previstos na legislação estadual.
Só está a salvo de pressões, para o exercício consciente e sereno de seu ofício, com total independência e sem controle que não seja o derivado da própria atividade recursal, o juiz que não possa ser afastado de onde exerce sua jurisdição por critérios de conveniência administrativa ou política.
Ademais, a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) prevê, em seu art. 2.º, a legalidade da jurisdição na execução penal, da mesma forma como está prevista para todo o ordenamento jurídico, sem exceções. Segundo o Código de Processo Penal, não é possível a indicação de juízes para locais específicos da jurisdição. Para cada vaga em aberto deve haver concurso de promoção e remoção, de acordo com a vontade e liberdade de cada magistrado candidato.
Desvincular o juiz competente pela execução do local onde a pena é executada acarretará imensas deficiências e dificuldades. O juiz, estando fisicamente distante, terá menor percepção dos problemas a serem solucionados nos presídios. Famílias – a maioria desprovida de meios para tanto – enfrentarão verdadeiro périplo para conseguir visitar o preso e obter informações sobre o processo de execução, assim como os advogados e defensores, que terão de se desdobrar entre as duas localidades. Levando em consideração os déficits já existentes nessa seara, tudo indica que o projeto debilitará ainda mais o exercício dos direitos dos presos.
Não é legítimo que se pretenda solucionar a morosidade e a lentidão do sistema de execução de penas com a destituição de garantias constitucionais consagradas ao longo da história do País, que estabelecem um processo penal racional, centrado na imparcialidade e objetividade do magistrado.
A situação da execução penal, por si só, já é preocupante. Contudo, mais preocupante do que isso é observar que são as nossas próprias casas legislativas, impulsionadas pelo Tribunal de Justiça do Estado, que pretendem resolvê-la valendo-se do descumprimento de regras constitucionais. A retórica do discurso utilitarista não deve ser – mais uma vez – responsável por frustrar a expectativa de melhora da condição carcerária no país. Precisamos, sim, de medidas eficazes, legítimas, e, acima de tudo, constitucionais.
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