Migalhas Quentes

Exames orais

Confira parecer enviado pelo ilustre migalheiro

4/3/2005

 

Exames orais

 

Confira parecer enviado pelo ilustre migalheiro Adauto Suannes, apresentado há muitos anos, sobre inconstitucionalidade dos exames orais.

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A inconstitucionalidade dos exames orais

( Adauto Alonso S. Suannes - Des. do TJSP apos. )

Nélson Rodrigues, em uma de suas conhecidas provocações, deixou dito que “a unanimidade é burra”.

Trata-se de uma dessas afirmações diante das quais a primeira reação do leitor é contestá-la, dando a ela uma intenção que talvez o autor não houvesse tido. Vale sua lembrança, porém, para demonstrarmos a falácia do princípio, outrora tão prestigiado, de que cessat in claris interpretatio. Sendo clara a frase (até porque possui apenas sujeito, verbo e atributo), tudo o que seu autor pretendia dizer ele disse: cessa a interpretação (em se tratando de ) coisas claras.

Ao dizermos, porém, que as frases claras não exigem interpretação, estamos cometendo uma evidente contradição: somente sabemos que um texto é claro depois de interpretá-lo.

De fato, que é interpretar? É conhecer o conteúdo (a-preender) e a extensão (com-preender) do texto interpretando. Logo, cessa (encerra-se) a interpretação quando eu atinjo o sentido do texto. Mas essa interpretação teve um início (tanto que agora chega ao fim). Logo, houve.

Para lembrarmos outro autor leigo, fiquemos com Millôr Fernandes, em sua análise de um texto também bastante divulgado e repetido sem maiores cuidados: “toda regra tem exceção”. Eis o que diz o conhecido filósofo do Leme: eis aí uma regra. Que, como toda regra, terá alguma exceção. Se essa regra (aquela que diz “toda regra tem exceção”) tem exceção, segue-se que haverá regra sem exceção. E ele conclui, sem apelação: logo essa regra contém em si mesma uma inverdade. Logo, é uma afirmação absolutamente dispensável.

Fiquemos, porém, com os nossos autores de casa, lendo aquilo que eles escreveram sobre a procura da unanimidade (muito antes de se propor a adoção entre nós de súmulas vinculantes, note-se), o que muito leigo imagina seja a função dos julgamentos colegiados. Ou que muitos juízes comodamente adotam como razão de decidir, reportando-se a uma “jurisprudência” ilustrada com um ou dois acórdãos.

Carlos Maximiliano, padrão de homem e de juiz, abominava aqueles que se curvam, mesmo quando não convencidos, diante de decisões judiciais, sob o cômodo argumento de que Roma locuta, causa finita: “ Há verdadeiro fanatismo pelos acórdãos: dentre os freqüentadores dos pretórios, são muitos os que se rebelam contra uma doutrina, ao passo que rareiam os que ousam discutir um julgado, salvo por dever de ofício - ou quando pleiteiam a reforma do mesmo. Citado um aresto, a parte contrária não se atreve a atacá-lo de frente; prefere ladeá-lo, procurar convencer de que não se aplica à hipótese em apreço, versara sobre caso diferente”.1

Não era ele o único magistrado de escol a preconizar essa postura dos juízes. Mário Guimarães, outro modelo de Juiz, deixava claro aos iniciantes: “O haver jurisprudência indicadora de certo rumo será apenas indício de ser este o melhor. Não deixe, contudo, o magistrado de formar convicção própria. O reexame da matéria pode sugerir um argumento, pró ou contra, que tenha escapado a outros.”

E acrescentava: “As leis, ensina Jean Cruet, fazem-se em cima. As boas jurisprudências vêm de baixo. Surgem do contato mais direto do juiz com os litigantes. Por modesto que seja, não hesite, pois, o magistrado, quando acaso dissinta, em levar por diante o seu convencimento, desde que o faça estribando-o em razões honestas. Ante a asserção por todos proclamada, tenha presente que, não raro, a vida parodia o conto imaginoso de Andersen sobre a roupa do rei."2

Há entre nós, seja nos concursos para o ingresso na carreira universitária, seja no específico concurso para ingresso na Magistratura, prova eliminatória que consiste no questionamento oral do candidato. O que se pretende aqui é demonstrar que aí está mais um exemplo daquilo que acima se escreveu sobre a roupa do rei. Aceita-se isso como se fosse a coisa mais inquestionável do mundo.

Em verdade, dispõe o art° 5°, LV, da Constituição Federal, como é sabido, que a todo aquele que pretende sustentar a validade de sua pretensão (“litigante”) deve ser assegurado não só o contraditório (o conhecimento dos argumentos contrários à sua pretensão), como a ampla defesa (a possibilidade de ele sustentar a validade de sua pretensão) e a recorribilidade da decisão que a rejeitar.

O inciso XXXV, por seu turno, afirma que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Esse mesmo Judiciário deverá apreciar a pretensão que lhe é apresentada e fundamentar a decisão que venha a proferir, tal como exige o inciso IX do art° 93 da sempre citada Constituição Federal.

Posto isso, vejamos como funcionam as provas orais: alguém é argüído por um grupo de pessoas, às quais se atribui o direito de fazer qualquer tipo de pergunta, sob a premissa de que há um temário de conhecimento prévio do candidato. Ora, quem já lecionou sabe muito bem que o examinador pode assumir, nessas ocasiões, dois tipos distintos de conduta: ou pergunta para conhecer aquilo que o aluno efetivamente sabe; ou pergunta para convencer-se daquilo que o candidato ignora.

Para ilustrar concretamente isso nada como um exemplo pessoal: quando me submeti a exame para ingresso na Magistratura, em razão de meu nome (naquele tempo levava-se em conta o injusto critério de argüir-se o candidato a partir da ordem alfabética dos nomes), fui o primeiro a ser chamado. Fazia parte da banca examinadora um hoje bastante conhecido e merecidamente bem conceituado processualista que, naquele tempo, estava apenas começando, integrando a banca como representante da OAB. Com um ar de quem pretende derrubar o candidato e impor-se perante a banca de concurso (em concurso realizado em São Paulo, para ingresso na Magistratura, não foi o representante da OAB quem fez inserir no temário conhecimentos sobre a literatura nórdica?), o novel processualista lançou a questão, assim como quem falava da coisa mais banal do mundo: “fale-me sobre o princípio da efetividade”. Por mera coincidência, eu havia lido num rodapé do livro do prof. Frederico Marques sobre processo civil o que era isso e dei-lhe a resposta mais completa possível, para evidente espanto dele, que, a partir daí, passou a tratar-me como se eu fosse uma sumidade. Fui aprovado, tornei-me Juiz, aposentei-me como Desembargador e nunca, absolutamente nunca, precisei valer-me do tal “princípio da efetividade” para decidir alguma causa. Evidentemente, o examinador estava mais interessado em conhecer o que eu ignorava do que saber se eu estava preparado culturalmente para ser Juiz.

Partindo-se do princípio segundo o qual ubi homo ibi peccatum (princípio ético que informa a necessidade de assegurar-se a revisibilidade das decisões), nada nos assegura se os membros de uma banca examinadora, qualquer seja a sua finalidade, estão efetivamente interessados em avaliar o conhecimento do candidato, ou, levados por motivações menos sustentáveis moralmente, interessados em beneficiar Tício em detrimento de Caio, como ilustravam nossos antigos mestres de Direito.

Eis o busílis: considerando-se que haja aquele propósito menos nobre de incluir ou excluir determinado ou determinados candidatos (aliás, certo desembargador, ainda vivo mas já aposentado, nos interpelava, surpreso: “E se aparecer um excelente candidato que é gay, como vou reprová-lo sem a entrevista pessoal?”), como poderá o prejudicado exercer os direitos que lhe são assegurados pela Constituição Federal se a prova oral não deixa registro? Sintomaticamente, no Estado de São Paulo há uma placa na sala de exame oral: “é proibido entrar com gravador”.

Essa questão foi por nós certa ocasião suscitada junto à OAB, no que diz com o exame de proficiência que ela realiza. Seguramente por mera coincidência – pois certos absurdos entram pelos olhos de mais de uma pessoa, certamente -, acabou por eliminar a prova oral dos chamados “exames de Ordem”, além de assegurar recurso aos rejeitados.

Eis um exemplo a ser seguido por todas aquelas entidades que conhecem e respeitam a Constituição, mesmo porque, levados pelo temor reverencial, dificilmente um candidato rejeitado levantaria tal questão perante o Judiciário.

Aliás, veja-se o que ocorreu em prova escrita (cuja decisão, de acordo com o edital, tanto quanto aquela relativa à prova oral, é irrecorrível) em concurso para ingresso na Magistratura de São Paulo: indagou-se dos candidatos se a competência do Juizado Especial Cível, segundo o critério do valor da causa, é absoluto ou relativo, entendendo a banca ser ela absoluta. Tratando-se de opinião pelo menos discutível, tanto mais inaceitável será colocá-la em uma prova dessas porque ali não se dá aos candidatos a oportunidade de fundamentar eventual resposta divergente do entendimento da banca, o que fazem, aliás com bons argumentos, alguns autores contrários a tal conclusão.3

Segundo esses respeitáveis doutrinadores, “o autor pode dirigir sua pretensão tanto ao juizado especial quanto ao juízo comum, não se lhe podendo subtrair a possibilidade de ver essa pretensão examinada em toda sua plenitude, com ampla defesa, garantida pela CF, art° 5°, LV, o que só pode ocorrer mediante o procedimento previsto no sistema do CPC."4

Outra questão do mesmo concurso indagava como deveria proceder o Juiz se, ao encerrar o “sumário de culpa”, verificar que, mesmo sendo o réu inimputável, houvesse o julgador concluído haver o acusado agido sob amparo da legítima defesa. A resposta oficial manda desprezar a inimputabilidade e reconhecer a justificativa jurídico-penal, esquecida de que, se a inimputabilidade decorrer da menoridade5, a competência do Juizado da Infância e da Juventude é absoluta. Logo, salvo melhor juízo (o que sempre remeteria a resposta ao campo da argumentação), caberia àquele Juízo reconhecer sua incompetência e determinar a redistribuição do feito.

Entendemos que, nada obstante possa o edital desses concursos dizer o contrário, cabe a qualquer candidato excluído impugnar judicialmente, por força dos princípios constitucionais acima referidos, aquelas respostas oficiais, da mesma forma como poderá fazê-lo o candidato que, havendo sido aprovado nas provas escritas, venha a ser reprovado em razão do resultado da prova oral ou de qualquer outro teste que não lhe assegure o conhecimento dos argumentos contrários à sua pretensão, para que possa impugná-los judicialmente.

Seria de todo em todo conveniente, porém, que, para evitar eventual represália em prova futura, tal providência fosse tomada pelo Ministério Público, cujo concurso de ingresso, porém, também prevê tal tipo de prova.



1Carlos Maximiliano, “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, Ed. Freitas Bastos, 7ª ed., n° 194
2 Mário Guimarães, “O Juiz e a Função Jurisdicional”, Ed. Forense, n° 194
3cf. Nélson Néry Júnior, “Código de Processo Civil Comentado”, Ed. Revista dos Tribunais, 2ª ed., notas de rodapé relativas ao art° 275
4ob. cit., nota n° 9
5cf. Código Penal, art° 27
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