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A adoção de uma cláusula social nos tratados da OMC

Atualmente encarado como um dos temas mais controversos nas negociações da Organização Mundial do Comércio – OMC, a adoção de uma cláusula social em seus tratados reflete o quanto o fenômeno chamado de globalização e o comércio internacional transformaram o mundo.

18/2/2005

A adoção de uma cláusula social nos tratados da OMC


Gustavo Santamaria Carvalhal Ribas*

I. INTRODUÇÃO

Atualmente encarado como um dos temas mais controversos nas negociações da Organização Mundial do ComércioOMC, a adoção de uma cláusula social em seus tratados reflete o quanto o fenômeno chamado de globalização e o comércio internacional transformaram o mundo. Segundo Robert Gilpin, o comércio internacional seria, ao lado da guerra, o mais importante vínculo existente entre as nações do globo terrestre.

A cláusula social é, em suma, uma tentativa de abrandar os efeitos do selvagerismo advindo da alta competitividade do sistema capitalista, impondo o respeito a direitos e condições básicas do trabalhador, que de outro modo estaria entregue a uma incontrolável exploração. Assim, por meio da cláusula social, inserir-se-ia em tratados comerciais a imposição de padrões trabalhistas, assegurando uma existência minimamente digna ao trabalhador. É um resgate ético inserido na atmosfera altamente egoísta e individualista das negociações comerciais, obrigando-as a levar em conta estas normas sociais mínimas. Nesta mesma linha de pensamento, podemos citar o primeiro secretário do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, Alexander Hamilton. Para Hamilton, a economia não era uma realidade em si, imoldável aos objetivos políticos de ordem geral. A tarefa de construção do Estado se sobreporia aos interesses privados, subordinando estes às metas fixadas pelo governo.

O tema é controvertido, segundo Lafer, porque “nele se mesclam preocupações com a ‘concorrência desleal’; respostas políticas à agenda da opinião pública ao problema muito mais complexo de desemprego estrutural nos países desenvolvidos, por força da lógica de uma economia globalizada; sensibilidades éticas em matéria de direitos humanos, hoje prevalecentes no campo dos valores em escala mundial, e fundamentados receios de que tudo isso se converta em novas formas de protecionismo, prejudiciais aos países em desenvolvimento1. Para Amaral Júnior, esta associação entre direitos trabalhistas e comércio envolve, ao menos, quatro facetas principais: a preocupação com as práticas desleais de comércio, a busca de soluções que reduzam os níveis de desemprego nas economias que sofrem as conseqüências do processo de globalização, a expansão do desconforto ético e moral com a violação dos direitos humanos e o temor de que tais argumentos favorecerão o protecionismo, afetando as exportações dos países em desenvolvimento2.

Como assinalam os citados autores, a cláusula social pode ser utilizada como um cavalo de Tróia, escondendo objetivos protecionistas, como o de diminuir os altos índices de desemprego encontrados nos países desenvolvidos hoje em dia. Este é um argumento utilizado pelos países contrários a ela. Para seus defensores, entretanto, a adoção de uma cláusula social nos tratados comerciais ajudaria a melhorar as condições de trabalho em todo o mundo.

O tema da cláusula social é bastante recorrente no cenário internacional, não configurando, portanto, novidade para seus estudiosos. Ela advém da superposição existente entre o comércio internacional e os direitos humanos. Estas duas temáticas já eram relacionadas no século XIX com a proibição do tráfico negreiro e a luta pela extinção do trabalho forçado. Ele também está presente no Tratado de Versalhes, de 1919, quando este prescreve a seus signatários que desenvolvam esforços para garantir condições justas e humanas de trabalho na produção de bens destinados ao comércio internacional. Ainda, a Carta de Havana de 1948 prevê em seu artigo 7º padrões justos de trabalho, objetivando a melhoria de salários e das.

A controvérsia acerca da cláusula social também está presente na história da OMC. Os Estados Unidos tentaram sem sucesso incluí-la no General Agreement on Trade and Tariffs – GATT, instituição que resultou na criação da OMC, duas vezes. Em 1979, durante a Rodada Tóquio, foi proposta a adoção de um código de direitos trabalhistas e, em 1983, foi novamente proposta a adoção de uma cláusula sobre direitos trabalhistas. Porém, nem todas as tentativas foram fracassadas. O Caribean Basis Economic Recovery Act condiciona a isenção tributária de numerosos produtos advindos da região caribenha à manutenção de um núcleo básico de direitos trabalhistas naqueles Estados, quais sejam o exercício de liberdade de associação e de participação em negociações coletivas, a proibição ao trabalho forçado e ao uso abusivo de mão-de-obra infantil. O Tariff and Trade Act de 1984 adicionou aos requisitos para a concessão de benefícios fiscais a produtos de países em desenvolvimento do Generalized System of Preferences, os direitos trabalhistas reconhecidos internacionalmente. Outro exemplo é o North American Agreement on Labour Corporation, que obriga os países integrantes do North America Free Trade Agreement – NAFTA a cumprirem os direitos trabalhistas sob pena de contra ele serem aplicadas sanções comerciais.

Na OMC, a cláusula social foi objeto de dois non papers, um dos Estados Unidos e outro da Noruega.

Este artigo se destina não só a apresentar o que é a proposta de se incluir uma cláusula social nos tratados da OMC, mas também a refletir sobre sua razão de ser e sua possível efetividade. Como assinala José Pastore, há três questões principais assolando o tema: “(1) Como impor regras internacionais a leis nacionais no campo de trabalho? 2) Quais os fundamentos técnicos para adotar as regras dos países mais desenvolvidos como standards para os países menos desenvolvidos? 3) Qual é o órgão que tem a reputação necessária para fazer uma intervenção internacional e garantir que capital e trabalho conviverão em um ambiente harmônico em todo o planeta?”3. Estas questões permearão o texto.

II – A CLÁUSULA SOCIAL NO ÂMBITO DA OMC

Os Estados Unidos vêm a tempo tentando inserir o tema dos padrões trabalhistas nos tratados de comércio internacional. Eles tentaram, sem sucesso, coloca-lo na agenda de negociações da Rodada Uruguai, que deu origem à OMC, e fizeram uso de boa parte de seu aparato político para convencer os países contrários ao tema de suas benesses. Um exemplo deste jogo político é o relatório da Comissão Brandt, de 1980, concluindo que o respeito aos direitos trabalhistas reconhecidos internacionalmente ampliaria o comércio e incentivaria a economia. Ainda, a proteção destes direitos tem sido levada em consideração quando o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento concedem empréstimos. No entanto, o tema não foi objeto oficial em nenhuma rodada multilateral da OMC.

Conforme mencionamos, dois non papers foram apresentados tendo como objeto a cláusula social, um dos Estados Unidos e outro da Noruega. Para os americanos, deveria ser criado um Grupo de Trabalho que examinasse os padrões trabalhistas fundamentais – chamados de core-obligations – quais sejam, o direito à livre associação, o direito de organizar e reivindicar coletivamente, a proibição de trabalho forçado, a eliminação de formas exploratórias de trabalho infantil e não-discriminação em empregos ou ocupação. Para a Noruega, um diálogo sobre meios para elevar os padrões trabalhistas em nível mundial e como o comércio contribuiria para esse fim deveria ser mantido4. Estes cinco padrões trabalhistas fundamentais – liberdade de organização sindical, direito de negociação coletiva, proibição de trabalho forçado e infantil e da discriminação de gênero e raça no mercado de trabalho – são assim denominados por sete convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT, respectivamente as de número 87, 98, 29, 105, 138, 100 e 111.

A cláusula social pode ser aplicada de forma negativa ou positiva. Como forma negativa, ela preveria a aplicação de sanções retaliatórias ao país que não respeitasse as condições mínimas apresentadas; e como forma positiva ela ajudaria os países que a cumprissem, favorecendo-os de alguma maneira no comércio internacional.

No entanto, a OMC não se considera o local apropriado para esta discussão, muito menos para aplica-la na realidade. Na primeira Conferência Ministerial da OMC em Cingapura, em 1996, quando o tema foi levantado pela primeira vez em seu âmbito, os Ministros emitiram a seguinte resolução:

Renovamos nosso compromisso de respeitar as normas de trabalho fundamentais internacionalmente reconhecidas, sendo a Organização Internacional do Trabalho o organismo competente para estabelecer essas normas e ocupar-se das mesmas. Consideramos que o crescimento e o desenvolvimento econômico impulsionados pelo crescimento do comércio e a maior liberalização comercial contribuirão para a promoção dessas normas. Rejeitamos a utilização de padrões trabalhistas para propósitos protecionistas, e acordamos que a vantagem comparativa de alguns países, especialmente os países em desenvolvimento que mantêm salários baixos, não deve de maneira alguma ser posta em questão. Sobre este tema, os secretários da OMC e da OIT continuarão a colaborar mutuamente”.5

Em seu discurso à International Confederation of Free Trade Unions, na véspera da abertura da Terceira Conferência Ministerial em Seattle, o então Diretor-Geral da OMC, Mike Moore, frisou serem todos os países membros da organização signatários da Declaração de Cingapura, de 1996, comprometendo-se, portanto, a respeitar os padrões mínimos de direitos trabalhistas estabelecidos pela OIT e encontrados tanto em suas convenções como na Declaração de Princípios e Direitos Trabalhistas Fundamentais, de 1998, à qual se deve acrescentar a proibição ao trabalho infantil. Além disso, eles também são signatários da Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas – ONU. Por meio desta, se estabelece que os direitos humanos – dentre os quais se enquadram os trabalhistas – não são propriedade de um determinado povo ou nação, mas de toda a raça humana. Assim, assinala Moore, não são direitos americanos ou europeus, mas direitos humanos. No mais, em seu comunicado à imprensa sobre “Comércio e Padrões Trabalhistas”, a OMC reafirma ser a OIT a principal responsável por este tema e seu trabalho acerca dele ser de mera razão complementar ao da última. Ainda, enumera quatro fundamentos sobre os quais o debate deve ser realizado: 1) todos os países membros da OMC se opõem às práticas abusivas de trabalho, como pode se depreender de sua assinatura da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, 2) a OIT é o órgão internacional primariamente responsável por questões trabalhistas, 3) sanções comerciais de caráter retaliatório não devem ser utilizadas na solução de disputas sobre padrões trabalhistas, e 4) os países membros concordam que a vantagem comparativa de alguns países advinda dos baixos salários neles praticados não deve ser comprometida.

Principalmente, são os países desenvolvidos que apóiam esta proposta, liderados pelos Estados Unidos. Para eles, a existente oferta de mão-de-obra a preços mais baixos nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, e principalmente o uso nestes de mão-de-obra infantil, seria a causa do desemprego dos trabalhadores menos qualificados em seus países, conseqüentemente aumentando a desigualdade econômica entre suas classes sociais. Este seria o “dumping social” de Lafer. Segundo esta tese, a vantagem emergida do baixo custo de sua mão-de-obra, desarmonizaria o sistema internacional, desqualificando-o, e urgindo por medidas de correção.

Os Estados Unidos insistem em incluir o tema dos padrões trabalhistas no âmbito da OMC, abrindo nesta talvez um perigoso precedente. Com a inclusão da cláusula social na agenda de negociações, se inauguraria o caráter multifuncional da organização, que passaria a poder discutir temas que não só o do comércio internacional. A posição americana é apoiada por seu sistema legislativo. A Seção 5 da Resolução Simultânea do Congresso Norte Americano diz que os representantes americanos na OMC devem “instruir procedimentos claros para a inserção de padrões de trabalho a serem observados pelos países membros da OMC”6. A insistência, no entanto, é fácil de ser compreendida. A OMC é um dos fóruns mais atuantes hodiernamente e por ser a mais moderna das grandes instituições internacionais, é a que possui uma matriz organizacional mais adaptada à realidade que objetiva. Além disso, constitui ela o terceiro pilar do sistema internacional como concebido na Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, realizada em Bretton-Woods em 1944, ao lado do Fundo Monetário Internacional - FMI e do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD, cabendo a ela zelar pelo bom funcionamento do comércio internacional. Além disso, o artigo XX do GATT 1994, um dos documentos constitutivos da OMC, estipula que, em algumas questões, a economia deve ser deixada em segundo plano, como em casos que envolvam a moralidade pública e a proteção à vida humana. A ele se junta o preâmbulo do tratado constitutivo da OMC, que reconhece como objetivos da organização, dentre outros, a melhora das condições de vida e elementos de direitos sociais e trabalhistas. Porém o fator mais importante, o que mais destaca a OMC dentre as demais organizações internacionais, é seu sistema sancionador. O Órgão de Solução de Controvérsias é extremamente eficiente, realmente afetando a economia e a posição do Estado sancionado no comércio internacional. É este o principal objetivo dos países desenvolvidos, tornando a cláusula social um imperativo realmente efetivo no contexto global.

Exposto isso, é fácil compreender o repúdio à OIT. A carta constitutiva da OIT não autoriza o uso da força armada ou de sanções econômicas caso algum Estado desobedeça suas decisões, restando somente a confiança e o cumprimento voluntário. Assim, podendo emitir apenas sanções morais, falta à OIT exeqüibilidade para suas normas. Procurando contornar esta falha, ambos os non papers apresentados propõem um trabalho conjunto entre a OIT e a OMC.

Como alternativas à cláusula social, outras propostas também são encontradas no contexto internacional. Dentre elas podemos citar a do “selo social”, que propõe a colocação de uma etiqueta nos produtos dizendo que o país que o produziu respeita as normas internacionais de trabalho; e outra que visa estabelecer códigos corporativos de conduta, obrigando as empresas multinacionais a aplicar no estrangeiro as mesmas normas trabalhistas que são aplicadas em seu país de origem.

O pólo contrário à adoção de uma cláusula social nos tratados da OMC é ocupado, em sua maioria, pelos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos e pelas empresas transnacionais dos países desenvolvidos. Estes adotam a tese do livre mercado, segundo a qual a melhora das condições de trabalho será uma conseqüência do crescimento do nível de renda, e não o contrário. Eles argumentam que a globalização não atingiu as pessoas, mas somente bens, capitais e serviços e que diferenças salariais não são privilégio da relação países desenvolvidos – em desenvolvimento/subdesenvolvidos, mas também podem ser encontradas dentro destes, variando entre suas regiões e cidades. Os níveis de remuneração do trabalho estão condicionados pelo grau de desenvolvimento dos países e, dentro deles, de suas regiões, Estados e Municípios.

O “dumping social” argumentado pelos países desenvolvidos aqui passa a ser encarado como uma nova modalidade de protecionismo advinda de pressões dos sindicatos trabalhistas para diminuir o desemprego em seus países e as importações que recebe dos demais. A aplicação de padrões trabalhistas de países desenvolvidos, e a conseqüente sanção aos não-cumpridores, segundo eles, somente levarão à perpetuação da pobreza e ao atraso dos esforços desenvolvimentistas, incluindo aqueles que visam melhoras nas condições de trabalho, e muito menos fará pela extinção do trabalho infantil. Não é o comércio, mas a pobreza a responsável por péssimas condições de trabalho e esta só é vencida com mais comércio. Segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico - OCDE, uma nova rodada de liberalização do comércio levaria a um crescimento de 3% da economia mundial, tendo como principais beneficiários os países em desenvolvimento. O PIB indiano cresceria 9,6% e o da África Sub-Saariana, 3,7%. E este crescimento levaria a melhoras não só nas condições de trabalho, mas também na saúde e na educação. Para Bartolomei de La Cruz, “a maioria dos países em desenvolvimento encontra-se diante de uma situação de crescimento sem emprego7, não podendo, portanto, serem culpados pelo crescente desemprego dos países desenvolvidos.

A posição contrária também é apoiada por documentos de caráter internacional. O preâmbulo do acordo constitutivo da OMC reconhece como um dos objetivos da organização a manutenção de uma parcela do comércio internacional aos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos que se coadune com suas necessidades econômicas. Além disso, o parágrafo 4º da Declaração Ministerial da OMC de Cingapura de 1996 renova o compromisso de respeito às normas fundamentais de trabalho e dissipa qualquer dúvida de que a OIT é o local apropriado para tratar deste tema.

O problema recai no temor que estes países têm frente ao possível unilateralismo dos Estados Unidos que, devido à sua grande capacidade econômica, podem valer-se de meios individualistas para fazer com que seus parceiros comerciais adotem a cláusula social. Como assinala Amaral Júnior, “o free trade cada vez mais cede lugar ao fair trade, concebido para reduzir o impacto da perda das vantagens competitivas dos EUA na economia mundial8.

III – REFLEXÕES

Situando-se a discussão tanto na OIT como na OMC, a cláusula social deverá refletir anseios comuns à comunidade internacional como um todo. Estes anseios refletirão a melhor maneira encontrada pelos países para, através da conexão entre comércio internacional e políticas sociais, alcancem ou solidifiquem seu desenvolvimento. Enfim, a cláusula social refletirá o que é e como deverá ser alcançado o desenvolvimento, na concepção de cada país. Assim, qual, ou quais, deverão ser os valores atendidos pela cláusula social?

Tradicional é a teoria segundo a qual cada sociedade tem seus próprios anseios e necessidades, advindos tanto de diferenças culturais como de determinismos do meio. No entanto, será esta teoria ainda aplicável a um mundo cada vez mais conectado, cujas distâncias foram praticamente reduzidas a pó pelos avanços das telecomunicações e cujas diversas populações encontram-se imiscuídas num mesmo processo de produção e consumo a elas levado pela expansão dos conglomerados transnacionais e do comércio internacional?

Para Marshall Wolfe, o caminho para o desenvolvimento diverge de sociedade para sociedade. A partir de valores próprios a ela, cada sociedade escolheria sua forma de alcançar o desenvolvimento, por ele conceituado como um termo que designa as esperanças de um futuro melhor. Obviamente, o desenvolvimento não pode significar o que cada um quiser, devendo incluir uma determinada gama de combinações de fins e meios para que possa ser considerado um objetivo comum por todos os membros de determinada sociedade. Alguns estudiosos, no entanto, discordam de Wolfe. Para eles, as necessidades humanas foram uniformizadas no decorrer do século XX. Os diversos países estariam de tal forma interligados que os anseios e as necessidades de suas populações teriam se uniformizado, podendo, portanto, um mesmo preenchimento da cláusula social beneficiar a todos. Esta uniformização teria sido o produto da globalização, mas principalmente da expansão unilateralista dos países desenvolvidos e suas estruturas organizacionais, via o crescimento de seus conglomerados transnacionais. Para Celso Furtado, esta situação impõe uma dependência cultural que solidifica a estrutura geopolítica de poder e impede sua transformação, portanto, impedindo que países em desenvolvimento venham algum dia a se tornar países desenvolvidos.

Para os fins deste trabalho, a teoria adotada será uma mistura das duas posições acima analisadas. Mesmo Wolfe admite que o desenvolvimento não pode ser o que cada um quiser, mas tem que atender às necessidades de todas as camadas da população. Consideramos que no atual estágio de globalização, o conceito de sociedade foi transformado e que hoje possamos considerar a sociedade mundial como uma só, composta de várias camadas que se diferenciam, principalmente, pelo fator econômico. Cada sub-grupo desta sociedade global terá seus próprios anseios e caminhos para se desenvolver, mas o fim principal, a idéia central deste desenvolvimento, será a mesma para todos.

Tocqueville acreditava ser a questão principal do desenvolvimento uma possível coexistência pacífica entre a igualdade e a liberdade. Para ele, uma nação desenvolvida seria aquela onde a igualdade e a democracia se encontrassem perfeitamente instaladas sem, no entanto, limitar a liberdade individual, fator também indispensável a um completo desenvolvimento humano. Enfim, o constante aumento da igualdade de condições – este é seu conceito de democracia – não deveria inibir a liberdade humana; e o único modo de não permitir a destruição de uma pela outra é através da ação política de seu povo, ou seja, através de uma democracia realizada com liberdade. Esta visão de Tocqueville é inspirada na famosa frase de Thomas Jefferson : “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Apesar de se situar há mais de um século de distância, as idéias de Tocqueville em muito influenciam os estudos sobre o desenvolvimento hoje em dia. A posição central dos valores da liberdade e da igualdade, assim como a noção de que os principais fins do desenvolvimento são também seus mais importantes meios, embasaram diversos estudiosos. Nos anos 90, o economista indiano Sen diria ser a liberdade “o fim primordial e o principal meio do desenvolvimento. Podemos chamá-los, respectivamente ‘o papel constitutivo’ e o ‘papel instrumental’ da liberdade no desenvolvimento”9.

Em 1970, a Assembléia Geral da ONU aprovou a Estratégia Internacional de Desenvolvimento. Em seu parágrafo 18, encontramos três princípios adotados pelos países como fundamentais ao desenvolvimento: “(i) que “a finalidade do desenvolvimento é dar a todos maiores oportunidades de uma vida melhor”; (ii) os objetivos mais concretos relacionados com essa finalidade (o crescimento acelerado, as mudanças estruturais, a distribuição mais eqüitativa da renda e da riqueza, a ampliação dos serviços sociais, a proteção do meio ambiente) fazem “parte do mesmo processo dinâmico” e constituem, ao mesmo tempo, objetivos e meios; (iii) que é simultaneamente viável e desejável avançar ao mesmo tempo em direção a todos os objetivos, e faze-lo de uma forma ‘unificada’”10.

Analisando as duas últimas décadas, é possível formar um outro conceito que poderia ser o núcleo de nossa cláusula social. A liberdade e a igualdade de Tocqueville continuam como fins e meios, porém é necessário elaborar um fim mais palpável, realizável em médio prazo e que gere produtos concretos. Uma vez alcançado este fim, as aspirações mais nobres de liberdade, igualdade e paz poderiam ser novamente colocadas na janela central. Verifica-se que o comércio internacional cresceu bastante nas últimas décadas, mas que os problemas de subdesenvolvimento e péssimas condições de vida persistem. Dentro dos países desenvolvidos, existem segmentos da população em situações iguais ou até piores que as encontradas nos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. E, dentro destes últimos, são observáveis “ilhas de desenvolvimento”, com empresas semelhantes às dos países desenvolvidos, até com elas competindo, e pessoas que levam níveis de vida semelhantes às pessoas mais abastadas dos países desenvolvidos. O Brasil, por exemplo, possui uma das dez maiores economias do mundo e, no entanto, ainda é considerado um país em desenvolvimento. Com isso, se chega ao conceito de desenvolvimento com igualdade. Agora, o foco do desenvolvimento não é mais o contexto global macro, composto por países, mas também o contexto interno destes, observando-se, principalmente, os enormes desníveis de desconcentração de renda. E, assim, o fim do desenvolvimento torna-se o desenvolvimento com igualdade, aqui entendida na forma de eqüidade, de crescimento com desconcentração de renda. Como assinala Furtado, “o desenvolvimento verdadeiro só existe quando a população em seu conjunto é beneficiada”11. Ou nos dizeres de Aristóteles, “riqueza evidentemente não é o bem que procuramos, pois é meramente utilizável e para o bem de outra coisa”.

Para Sen, a globalização não é um mal em si mesma, ela até produz inúmeros benefícios através das inter-relações econômicas e sociais. O problema reside na ausência da distribuição eqüitativa de seus frutos. A questão, portanto, não é a de se adotar ou não a economia de mercado, mas a de como regula-la para atingir a desconcentração de renda. Como já foi mencionado, para Sen, a liberdade ocupa lugar central no desenvolvimento. Contudo, o processo de desenvolvimento deve procurar eliminar as privações pessoais para, aí, concentrar-se na liberdade. Para medir a eliminação destas privações, Sen criou o conceito de entitulamento – “entitlement”. “O entitlement de uma pessoa é representado pelo conjunto de pacotes alternativos de bens que podem ser adquiridos mediante o uso dos vários canais legais de aquisição facultados a essa pessoa. Em uma economia de mercado com propriedade privada, o conjunto do entitlement de uma pessoa é determinado pelo pacote original de bens que ela possui (denominado “dotação”) e pelos vários pacotes alternativos que ela pode adquirir, começando com cada dotação inicial, por meio de comércio e produção (denominado seu “entitlement de troca”)12. Assim, com a eliminação de suas privações, cresce o entitulamento de uma pessoa.

O desenvolvimento dos países mais pobres, conclue-se, só será possível após a realização de algumas reformas internas. A melhora das capacidades humanas só será possível através de aumentos salariais ou com programas públicos de capacitação profissional. Com a educação de seu povo, o país capacita sua economia local, agora contando com mão-de-obra qualificada, a responder mais rapidamente às mudanças no cenário mundial. “Sociedades modernas são menos vulneráveis a mudanças externas porque seus fatores têm mais mobilidade. Trabalhadores mais bem treinados podem desenvolver um número maior de tarefas. Mercados de capitais mais desenvolvidos podem realocar investimentos mais rapidamente13, aponta Stephen Krasner. Isto tudo significa uma economia mais forte e menos apoiada no cenário externo. Com o aumento salarial, cresce também o mercado de consumo, levando ao crescimento da produção, o que cria novos empregos e atrai investimentos. Ainda, no futuro, com uma população mais educada, o país terá acesso a uma classe de empresários nacionais, podendo responder positivamente às oportunidades exportadoras que lhe surgirem no mercado externo. Obviamente, durante todo este processo houve uma redução das privações da população, uma melhora no entitulamento e um aumento das liberdades pessoais. Houve desenvolvimento.

Por fim, a cláusula social deve ter seu conteúdo plasmado de duas maneiras. A primeira, objetivando o longo prazo e contando com os valores da igualdade e da liberdade como fins. A segunda, visando o médio prazo e contanto com o crescimento com desconcentração de renda e o aumento do entitulamento – eliminando as privações experimentadas pelas pessoas – como objetivos. Mais uma vez, lembrando Tocqueville, os fins devem também ser utilizados como meios, sempre de uma maneira controlada e vigilante, de maneira a evitar seu uso indiscriminado e voltado para fins egoístas. Deve-se evitar ao máximo a concepção de que seres humanos são apenas meios de produção. Afinal, o preço da liberdade seria a constante vigilância.

IV – CONCLUSÃO

O tema da adoção de uma cláusula social nos tratados de comércio é sem dúvida extremamente complexo e multifacetado, com efeitos e conseqüências tanto benéficos como maléficos. A tese liberalista de que as diferenças salariais são produto do livre mercado é falha na medida que o teorema “mais liberalização igual a crescimento econômico igual a mais emprego e respeito às normas de trabalho14 não se verifica na prática, onde a idéia de que melhores condições de vida serão conseqüência do crescimento da renda que virá com o crescimento econômico é pura ilusão, pois o crescimento econômico será, como sempre foi, concentrado, não levando ao sonhado aumento da renda de todos. Também é ilusória a visão de que a adoção dos direitos trabalhistas internacionalmente reconhecidos levará a uma expressiva diminuição das taxas de desemprego dos países desenvolvidos. Ainda que os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento adotem estes padrões trabalhistas, o custo de mão-de-obra dentro de suas fronteiras ainda será consideravelmente mais barato que o da mão-de-obra encontrada nos países desenvolvidos, fazendo com que os conglomerados transnacionais continuem a gerar empregos naqueles países em detrimento dos desenvolvidos. No mais, a exeqüibilidade destes direitos pode levar a mais desemprego nos países desenvolvidos, uma vez que neles também se encontram violações a estes core standards, como se observa nos sweatshops, empresas sub contratadas onde se empregam especialmente imigrantes clandestinos. Dificilmente elas continuariam a funcionar no mesmo local se tivessem que respeitar as normas internacionais de trabalho.

A cláusula social, apesar de provavelmente causar algum desemprego nos países mais pobres e, também provavelmente, constituir uma máscara ao protecionismo dos países mais ricos, deve ser adotada por todos. Os direitos envolvidos são extremamente mínimos e seu descumprimento é de tal forma abominável – como o trabalho infantil – que já deveriam ter sido adotados. A sua aplicação nos países mais pobres beneficiará sua população que, além de ter acesso a melhores condições de vida, não perderá seu emprego, uma vez que para os conglomerados transnacionais – que são quem tem acesso à mobilidade necessária para transplantar sua produção de um local para outro de acordo com o cenário mais favorável – ainda enfrentará custos maiores nos países desenvolvidos, vendo-se melhor estabelecidos onde já estão. Também o argumento de que como os salários continuarão baixos é impossível atingir o desenvolvimento é falso. Como assinala Sen, “uma economia pobre pode ter menos dinheiro para despender em serviços de saúde e educação, mas também precisa gastar menos dinheiro para fornecer os mesmos serviços, que nos países ricos custariam muito mais. Preços e custos relativos são parâmetros importantes na determinação do quanto um país pode gastar”15. Assim, se o país tem menos dinheiro para gastar em educação por ter uma economia mais fraca, não há problema, pois os salários dos professores nele também serão mais baratos. Um exemplo desta possibilidade na prática são os programas de bolsa-escola, por meio dos quais se garante às famílias a renda que seria auferida pela criança, mantendo-a na escola. Com o aumento salarial, a ajuda governamental passa a ser desnecessária, podendo a família dispensar a renda arrecadada com o trabalho infantil.

Paralelamente, deve ser realizado um forte programa de combate ao trabalho informal, se possível no âmbito global por intermédio da OMC, caso contrário este tende a aumentar com o empresariado tentando escapar às novas regras trabalhistas. Ainda, seria necessário impedir que o aumento salarial a ser experimentado gere inflação, igualando o poder de compra do novo salário com o antigo e não permitindo o surgimento de melhorias para a população.

Outro ponto importante de ser analisado é a possível emergência de ações unilaterais por parte dos países desenvolvidos frente a uma resposta negativa dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. A proposta do selo social, por exemplo, é facilmente aplicável unilateralmente, criando um péssimo marketing para os produtos que não o exibirem e, assim, forçando seus produtores a adotar as normas trabalhistas fundamentais. Ao aceitar discutí-la multilateralmente, os países contrários à cláusula social permitem o diálogo, acalmando o impulso unilateralista como a um leão faminto.

A cláusula social deve ser adotada por meio da OMC, e não da OIT, e contar com seus mecanismos de defesa. Deixar a imposição da cláusula social a uma organização sem mecanismos efetivos para tal é fazer com que os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento a adotem e os países desenvolvidos não, fazendo com que os primeiros percam a vantagem salarial comparativa que antes tinham e que as empresas transnacionais voltem a seus países de origem, onde a contratação de mão-de-obra não-qualificada é realizável pelo mesmo preço, quando não é mais barata, e se encontra mais perto dos grandes centros mundiais de consumo. Como aponta Liliana Jubilut, “a aproximação do comércio internacional, por meio da OMC, e dos direitos humanos, trará benefícios para ambos. Enquanto estes ganharão mais um fórum para serem debatidos, bem como um sistema de proteção mais aperfeiçoado e dotado de maior força no cenário internacional, a OMC passará a ter sua atividade relacionada com aspectos morais e éticos, o que reforçará a aceitação de suas regras. Além disto, ela terá a oportunidade de corrigir alguns efeitos negativos criados pela sua atuação, e com isto aperfeiçoar o seu sistema de ação”16. Isso tudo sem contar na abertura da OMC à multifuncionalidade, criando um poderoso precedente para negociações futuras de assuntos não diretamente relacionados ao comércio internacional, mas que interessem aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, vasta maioria na OMC, e que necessitem da efetividade do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC para serem devidamente aplicados contra seus opositores, possivelmente países desenvolvidos.

A adoção da cláusula social pode ser uma maneira dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento virarem o feitiço contra o feiticeiro.

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15SEN, Amartya, Desenvolvimento Como Liberdade, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

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*Advogado do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados





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