Ocean’s Forty
Por nossa tradição judaico-cristã, o crime está cercado de preceitos morais. Desde criança aprendemos que a verdade é mais importante do que a mentira, a vida virtuosa é superior à vida pecaminosa e a generosidade deve superar o nosso natural egoísmo. Em suma, que a vida, a integridade física, a honra e o patrimônio alheios devem ser por nós respeitados. Ou que “o crime não compensa”. Por que? Eis o Rubicão em que todo professor de deontologia empaca.
Comparemos dois fatos pretensamente históricos: no Monte Sinai os Dez Mandamentos foram promulgados por Moisés, sendo ele feito mediador entre Deus e os homens. Durante dois períodos de quarenta dias cada ele permanece concentrado no monte, recebendo diretamente de Deus os ensinamentos que transmitiria a seu povo. Ou seja, Moisés retorna da montanha com um decálogo, um conjunto de preceitos morais que dizem, antes e acima de tudo, com a vida terrena. Era preciso dar àquele bando de fugitivos algumas regras de conduta. A autoridade divina bastava para que tais regras fossem impostas de cima para baixo. E ele era o representante de Deus na Terra, a zelar pela observância de tais normas. O tal “imperativo atributivo” de que nos fala mestre Goffredo. Se seriam cumpridas ou não, isso era outra coisa.
O outro fato é a repetição da mesma cena, com Jesus no alto de um novo Monte Sinai, depois de passar seus quarenta dias no deserto, em contado com Deus. Ele não fala em regras, mas em bem-aventuranças. Bem-aventurados serão todos os que não pecarem, os que não infringirem a norma do amor fraterno. Os que, enfim, cumprirem a vontade de Deus. Em lugar de regras específicas, há recomendações genéricas. O “não matarás”, o “não cobiçarás coisas alheias” aparecerão na exortação a uma vida despojada: a mansidão e a compreensão de que a justiça não é coisa dos homens. E que a vida verdadeira não é esta, mas a que virá depois da morte.
Ora, na medida em que a sociedade estruturada juridicamente adota esses preceitos de cunho nitidamente religioso como base dos seus códigos de conduta, há, inquestionavelmente, um anacronismo, até porque os governantes, por mais poderosos que sejam, não podem impor a seus súditos que aceitem Deus como uma realidade inquestionável. O ateísmo e alguma das inúmeras religiões, mesmo quando sejam de origem cristã, estão entre aquilo que o homem livremente pode adotar. O Deus do Sinai existe para quem nele acredita e a mansidão do pregador da montanha a quem veja nisso algo digno de ser observado para uma vida melhor. Mas há os que não estão interessados numa vida melhor para depois da morte. Há que se viver bem hic et nunc. Para quem não gosta do som da harpa, o céu é um inferno, como dizia o velho S. Suannes.
E quem não quer mansidão nem deseja submeter-se ao Deus do Sinai?
Quando os homens puseram o nome de penitenciária a um local onde criminosos são recolhidos, e puseram nos criminosos o nome de convictos, confundiram dois conceitos inconfundíveis: o pecado e o crime. Ao pecado há de seguir-se o reconhecimento da infração da lei divina, o arrependimento e o desejo de não mais pecar. A penitência não é a contrapartida ao pecado, tal como a pena segue-se ao crime julgado e punido. É apenas a expressão dessa tomada de consciência. A cinza na cabeça é apenas uma satisfação que se dá à “eclesia”, isto é, à comunidade. A esse algo exterior há de corresponder algo interior, anterior a isso. Ou tudo será um faz-de-conta, indigno de uma vida interior sadia. Supor que o criminoso sempre se arrependerá é, quando menos, ingenuidade.
Como diz um catequista, “o coração do homem é rude e endurecido. É preciso que Deus dê ao homem um coração novo (cf. Ez 36,26-27). A conversão do homem é primeiramente uma obra da graça de Deus, que faz voltarem-se a ele os nossos corações: ‘Converte-nos, Senhor, e nos converteremos’ (Lc 5,21). Deus é quem nos dá a força necessária a que recomecemos uma vida pretensamente virtuosa. Ao descobrir a grandeza do amor de Deus, nosso coração se estremece ante o horror e o peso do pecado e começa a temer por novas ofensas a Deus e ver-se separado dele. O coração humano se converte à medida que olhamos nossos pecados passados (cf. Jo 19,37)”.
Tudo muito bonito, mas ocorre que Deus só existe para quem nele crê, digamos outra vez. Uma sociedade moderna não pode trabalhar com tal hipótese, nem pode impor a todos a crença de seus governantes. “Não concordo com teu ateísmo, mas defenderei até a morte o teu direito de seres ateu”, como diria o sábio francês.
Numa sociedade pluralista essa preocupação com uma vida ética pode soar como coisa de crianças, de velhos e de caducos. Na sociedade capitalista, onde o lucro é o grande objetivo de todos e o bezerro de ouro está entronizado nos mais diferentes altares, converter-se quem há-de?
O cinema tem-nos mostrado vezes e vezes esse equívoco de nossos governantes. Os Onze Homens do Ocean, que, na primeira versão, era apenas uma comédia despretensiosa para diversão do grupo do Sinatra, em sua refilmagem mostra o requinte que adquiriu a criminalidade no espaço de tempo que separa a primeira da segunda versão. E agora os Onze Homens já são Doze. Dia virá em que serão Os Quarenta Homens do Ocean, número, aliás, dos companheiros de Ali Babá, esse ícone de muitos homens públicos do mundo inteiro.
Outra refilmagem mostra como o tema é sempre atual: The Italian Job. O espectador é convidado (e aceita o convite) a torcer pelos “mocinhos”, que desejam vingar-se do “bandido”, por quem haviam sido traídos após um bem sucedido e milionário assalto. O fato de serem todos eles ladrões não tem a menor importância. Importante sim é que a esperteza de uns se sobrepõe à vilania do outro e, ao fim e ao cabo, um dos “mocinhos” consegue o seu carro ultramoderno, outro consegue seu moderníssimo aparelho de computação, outro consegue um castelo com mordomo e outros dois vão curtir a vida sem precisar trabalhar graças aos milhões de dólares obtidos no golpe.
Quem de nós, no fundo no fundo, não gostaria de estar entre os agraciados?
É necessário que a sociedade moderna encare a criminalidade apenas e tão somente como uma atividade lucrativa, que, conforme as circunstâncias, não interessa aos governantes. A venda de chá, de café, de cigarros, de bebida alcoólica, de filmes pornográficos, de marijuana, de cocaína, de heroína e de qualquer outro produto é apenas isso: ato de comércio. A mesma autoridade que permite a venda de alguns desses produtos pode proibir, por motivos de “conveniência e oportunidade”, a venda de outros, sem que haja qualquer preocupação moral nisso. Veja-se o que ocorre com o chamado “jogo do bicho”: tenta-se justificar sua proibição sob o falso argumento de que ele está sempre ligado a outras atividades criminosas. Tempo houve em que se dizia que o jogo (como o divórcio) desagrega a família. Ora, o fato de a heroína ser injetável não nos leva à proibição da produção de seringas, tanto quanto o fato de os cassinos clandestinos utilizarem dados e baralho não deve levar à proibição de sua fabricação. O jogo do bicho em nada se distingue das inúmeras loterias oficiais que os governantes, por “conveniência e oportunidade”, criam a cada dia. Isso nada tem a ver com a ética, mesmo porque muitos de nós tiveram a primeira experiência com o jogo na quermesse da paróquia.
Cada crime tem sua própria história. Basta ver que no Brasil ainda se pune algo como o “desacato” ou a “sedução”, velharias que não mais se justificam hoje em dia. Em Londres compra-se uma excelente pomada para a pele seca que se chama, sem falsos eufemismos, “Hemp”. E se o consumidor tivesse alguma dúvida, lá está na tampa a inconfundível folha do famoso vegetal que a afastaria. E lá está o respeitabilíssimo desembargador aposentado tendo sua primeira experiência com a cannabis sativa de Lineus.
E a escolha da pena correspondente é algo que mais não faz do que confirmar isso: ficar preso dois anos ou vinte anos para arrepender-se? E quem se arrepender no primeiro ano, que fazer com ele? E quem não se arrepender nunca? Impor-se a um homem-bomba a pena de morte será fazer exatamente o que ele deseja: chegar mais depressa ao paraíso das dez mil virgens. O que mostra que a palavra convicto (convencido de que errou) diz com o pecado, não com o crime.
Que conclusão tirar disso?
Dizem que a guerra é coisa muito séria para ficar nas mãos dos militares. É possível que, da mesma forma, acabemos por descobrir que o crime é coisa muito complexa para ficar só nas mãos dos criminalistas.
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* Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Criminal, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família)
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