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A súmula vinculante e a blindagem da jurisprudência

Uma das inovações trazidas pela Emenda Constitucional 45 é a súmula vinculante, restrita, entretanto, àquelas futuramente aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal (novo artigo 103-A da CF), e às já existentes, desde que confirmadas por dois terços de seus integrantes (artigo 7o. da EC 45).

16/2/2005

A súmula vinculante e a blindagem da jurisprudência


Mário Gonçalves Júnior*

Uma das inovações trazidas pela Emenda Constitucional 45 é a súmula vinculante, restrita, entretanto, àquelas futuramente aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal (novo artigo 103-A da CF), e às já existentes, desde que confirmadas por dois terços de seus integrantes (artigo 7o. da EC 45).

Os que se opunham à idéia da súmula vinculante comumente invocavam a romântica (porém individualista) teoria da livre convicção do juiz. Já os partidários do efeito vinculante tinham por princípios os cânones da igualdade (afinal, não é justo que alguns sejam condenados e outros absolvidos em idênticas situações) e, principalmente, da celeridade processual (a efervescência própria da atividade jurisdicional não pode ser um fim em si, eternizando-se, havendo interesse público em se colocar ponto final nos conflitos sociais em tempo minimamente tolerável).

É bem verdade que o modelo adotado na Emenda Constitucional 45 deixou uma ponta de decepção mesmo para os defensores do instituto, já que a reforma poderia ter sido mais ousada e estender o efeito vinculante às súmulas de todos os Tribunais Superiores. Nos tempos que correm, de globalização, a segurança jurídica deixou de ser um capricho caseiro, para se tornar pressuposto indispensável para a concorrência econômica que não reconhece fronteiras políticas.

Os investidores internacionais levam em conta, nas avaliações de risco, o nível de segurança jurídica de cada país, e, na aferição dessa segurança jurídica, já se tem computado o grau de maturidade das instituições internas.

Por isso é que se tem ouvido falar, por exemplo, em "blindar" a Presidência do Banco Central, do "respeito aos contratos" (que depende, fundamentalmente, da eficácia das leis diante do próprio Estado e, conseqüentemente, dos marcos regulatórios) etc. Falta ainda inserir nessa discussão a insegurança que a oscilação demasiada das decisões judiciais pode causar, e, portanto, dos impactos indiretos e negativos, por melhor que sejam as intenções dos juízes, no tecido social como um todo.

Esse desinteresse jurídico sobre a questão não tem impedido que o fenômeno seja percebido em outras especialidades. Economistas renomados já vislumbram influência importante do Poder Judiciário no crescimento econômico das nações. O professor de Harvard, Elhanan Helpman, em entrevista à revista VEJA (edição 1887, 12.1.2005), pontuou:

"Veja - Qual é o papel do Judiciário na promoção do crescimento econômico?

Helpman - De modo geral, há muitas evidências de que as instituições têm um papel de relevância no crescimento econômico de longo prazo. Sabemos que direito de propriedade é importante. Sabemos que mecanismos que contrabalancem o poder do Executivo também são cruciais. O sistema legal está entre os mais vitais. Não sabemos ao certo porque alguns tipos de sistema legal incentivam mais os negócios do que outros. Ainda não conhecemos os processos de transmissão do sistema legal para a economia, mas que essa correlação existe, ela existe. Alguns estudos mostram que países que seguiram a tradição inglesa tendem a ser economicamente mais desenvolvidos do que os que adotaram a tradição romana".

Alterar as leis já é suficientemente complexo entre nós, mormente a Constituição Federal e as leis complementares, que dependem de quorum largo no Legislativo. Essa é uma espécie de "blindagem" própria do processo legislativo, que visa tornar as leis mais perenes e menos sujeitas aos sabores de interesses momentâneos ou minoritários.

As decisões judiciais não tinham outro instrumento de "blindagem" tão digno de nota. Com a súmula vinculante, o grau de incerteza jurídica das decisões judiciais sem sombra de dúvidas diminuiu.

Mas a segurança jurídica não atingirá o nível mínimo desejado somente com a jurisprudência imperativa, principalmente porque o efeito vinculante ficou restrito às súmulas do STF. O ideal seria que todas as súmulas, de todos os Tribunais Superiores, fossem categóricas, reservando-se, é claro, prevalência às do STF, em caso de contradição com a de outros Tribunais (assim também em havendo porventura conflito entre Súmulas de Tribunais Superiores com as de Tribunais intermediários).

Não apenas isto, entretanto. É saudável dificultar o cancelamento e a alteração das súmulas em si, porque a sua vulnerabilidade também pode comprometer a segurança jurídica. Isto porque o sistema possibilita relativa certeza da tendência atual em havendo súmula, mas não da sua sobrevida num ambiente de pressões sociais, políticas, econômicas etc. O contexto jurídico jurídico atual não protege o País nem mesmo contra o cancelamento e alteração de súmulas provocadas por casuísmos. Urge dotar as súmulas jurisprudenciais de instrumentos legais que lhes confiram o que poderíamos chamar, metaforicamente, de anticorpos.

Não basta ter certeza de que nenhum órgão ou juiz decidirá contrariamente às súmulas (enquanto elas existirem), expondo os jurisdicionados à injustiça do tratamento desigual; é preciso reconhecer a necessidade de se criar institutos outros que tenham por escopo tornar mais ESTÁVEIS as próprias súmulas de jurisprudência. Não se trata de eternizá-las evidentemente, pois a evolução natural da própria sociedade não admitiria um sistema jurídico estacionário. Mas não é desejável o outro extremo, o da volatilidade. Facilitar demais a metamorfose jurisprudencial é brincar com fogo.

No Brasil, com ou sem a atual súmula vinculante, é mais complexo mudar uma lei do que a sua interpretação nos Tribunais. Essa matéria - procedimentos de revisão e cancelamento de súmulas - é disciplinada pelos próprios Tribunais em seus regimentos internos, o que em nosso ver constitui um grave erro político. Dada a importância para a própria economia nacional, esse assunto deveria ser regulamentado em lei, ao menos quanto às normas básicas, e não integralmente pelos próprios Ministros do Judiciário, o que pode ser traduzido como uma deficiência institucional manter um sistema jurídico que possibilite, a qualquer momento, a flexibilização da revisão sumular (note-se, ademais, que a salvaguarda legal viria em benefício do próprio Poder Judiciário enquanto instituição, fortalecendo-o contra interesses escusos externos).

Para ilustrar ainda com o exemplo do Tribunal Superior do Trabalho, as Súmulas (denominadas especificamente de "Enunciados") podem ser canceladas ou alteradas por maioria absoluta dos seus membros, conforme artigo 161 do Regimento Interno daquele Tribunal:

"A edição, revisão ou revogação de Enunciado serão objeto de apreciação pelo Tribunal Pleno, considerando-se aprovado o projeto quando a ele anuir a maioria absoluta de seus Membros efetivos".

Até o advento da Emenda Constitucional 45, o Tribunal Superior do Trabalho era composto de 17 (dezessete) membros efetivos (antigo parágrafo 1o. do art. 114), e agora contará com um número bem maior: 27 (vinte e sete), de acordo com o novo artigo 111-A. Ou seja, aplicando-se a regra da maioria absoluta prevista no artigo 161 do Regimento Interno do TST, uma Súmula (Enunciado) Trabalhista poderá ser alterada ou cancelada com 14 (catorze) votos. Ou seja, no quadro vigente, as súmulas trabalhistas não estão suficientemente "blindadas", já que podem ser canceladas ou alteradas até numa situação de grande equilíbrio, por voto de desempate (exemplo: 13 Ministros entendendo num sentido, outros 13 Ministros noutro, com o 27o. voto de desempate). Essa fragilidade se torna ainda mais nítida se levarmos em conta que a própria composição do Tribunal Superior do Trabalho, como de resto a de todos os Tribunais, passa de quando em quando por inevitáveis substituições (aposentadorias, falecimentos etc.). Numa situação de equilíbrio como o ora exemplificado, a assunção de UM ÚNICO novo Ministro pode desencadear o cancelamento ou a alteração de Súmulas.

A solução não nos parece residir na simples majoração do quorum exigido nos regimentos internos dos Tribunais (de maioria absoluta para alguma maioria qualificada), porque ainda assim a vulnerabilidade das súmulas de jurisprudência estariam melhor aguardadas em lei, cujo processo legislativo é mais complexo. Da mesma forma que se pode alterar os regimentos internos dos Tribunais para tornar o quorum mais rígido, pode-se perfeitamente flexibilizá-lo. Garantido um bom quorum em lei, o sistema ganharia em segurança jurídica por estar mais protegido de vicissitudes temporais.

Tivemos oportunidade, noutras críticas (Quanto Custa a Criatividade Judicial, e O Justo e o Caro nas Decisões Judiciais, ambos disponíveis na internet), de apontar exemplo ímpar de jurisprudência consolidada colocada em cheque por recentes decisões do plenário (Seção de Dissídios Individuais I) do mesmo Tribunal (Tribunal Superior do Trabalho), após longos anos de remanso.

Trata-se da interpretação que o próprio TST vinha adotando em relação à possibilidade de negociação coletiva sobre turnos ininterruptos de revezamento, contida na parte final do inciso XIV do artigo 7o. da Constituição ("jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva"). A orientação jurisprudencial n°. 169 daquele Tribunal é no sentido de que pode ser estipulada jornada superior a seis horas em negociação coletiva ("Quando há na empresa o sistema de turno ininterrupto de revezamento, é válida a fixação de jornada superior a seis horas mediante a negociação coletiva"). Essa orientação jurisprudencial foi inserida em 26.3.1999, portanto razoavelmente antiga. No processo TST-E-RR-435.2000-003-15-00.0, a mesma Seção Especializada em Dissídios Individuais do TST decidiu remexer o assunto e, para surpresa de toda a comunidade jurídica, decidiu contrariamente à orientação 169: mesmo havendo negociação coletiva, a jornada em turnos ininterruptos de revezamento pode superior a seis horas diárias desde que não ultrapasse trinta e seis horas semanais. Ocorre que até então nunca se havia cogitado dessa (nova) exceção, de modo que empresas e sindicatos estabeleceram em normas coletivas, amplamente, a jornada de 08 horas diárias e 44 semanais para turnos ininterruptos de revezamento por todo o País. Da noite para o dia, o Tribunal Superior do Trabalho surpreendeu a todos, que se deram conta, somente agora, passados aproximadamente cinco nos da edição da orientação 169, com a ineficácia desses contratos coletivos de trabalho!

É um exemplo realmente ilustrativo sobre o grau de insegurança jurídica quanto aos entendimentos dos Tribunais sobre as leis (no caso específico, sobre um dispositivo da Constituição Federal, mas bem poderia partir de uma norma infraconstitucional qualquer, hipótese ainda mais dramática, porque não se teria sequer a esperança de reforma pelo Supremo Tribunal Federal).

Por qualquer ângulo de análise é preciso reconhecer, concluindo, que a súmula vinculante criada pela Emenda Constitucional 45 não se mostra suficiente para dotar as decisões judiciais de previsibilidade e segurança desejáveis. Por outro lado, o processo de revisão de Súmulas em si transcende a corporação Judiciária, interessando antes a toda a sociedade, o que não só aconselha como recomenda seja regulado essencialmente em LEI, deixando para os regimentos internos dos Tribunais Superiores os aspectos secundários e marginais, bem diferente do que se tem atualmente.
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*Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados









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