A lei imoral
Dóris de Souza Castelo Branco*
Até a Constituição de 1934 (clique aqui), os credores da Fazenda Pública não tinham certeza se receberiam os valores que lhes eram devidos. Tudo dependia do grau de influência do detentor do crédito, ou seja, quanto menor essa influência, maiores as chances de jamais receber o dinheiro.
Num insight de moralização, foi criada a figura dos precatórios, que se transformaram na salvação dos injustiçados credores do Poder Público. Funcionou bem por um período, mas, logo a conta do Fisco tornou-se alta, quase impagável, além, claro, de os precatórios protagonizarem inúmeros escândalos públicos.
Nesse rol de devedores, não está incluída a União, que vem se mantendo adimplente, cumprindo o que diz a Constituição. Contudo, em contrapartida, os Estados e os Municípios ostentam um débito de aproximadamente R$ 100 bilhões, gerados pela falta de alocamento das receitas e pelo total e absoluto desrespeito à nossa Carta Magna.
Esse é o atual panorama vivido no Brasil, onde saias curtas ofuscam os olhos da sociedade, impedindo que os desmandos sejam observados. Pois bem. Completando esse circo de horrores, o Senado Federal, pelo seu então Senador Renan Calheiros, lançou o PEC 12/06 (clique aqui), que, no aparente objetivo de sanear os débitos públicos, dilacerou a coisa julgada e outras garantias constitucionalmente asseguradas.
Não é uma surpresa, afinal, a obra de arte é o retrato do seu criador. O que surpreendeu foi a aprovação do restante do nosso Parlamento Bicameral, que, com expressivas votações, aclamaram o texto da denominada PEC do Calote. A última, em 2/12/09, registrou os votos de 56 Senadores favoráveis e apenas 1 contrário à PEC.
O texto da PEC cria um regime especial de pagamento dos precatórios atrasados em até quinze anos e permite que os Estados e os Municípios limitem o pagamento mensal dos precatórios a percentuais mínimos de suas receitas correntes líquidas, enquanto o valor total a pagar for superior aos recursos vinculados por meio desses índices. Ora, numa bola de neve que só aumenta a cada ano, será que alguém acredita na quitação desse saldo devedor? Muito improvável.
Como se não bastasse, a PEC criou a esdrúxula figura dos leilões com deságio, que irão funcionar de maneira inversa dos leilões convencionais, na qual os lances elevam os preços inicialmente ofertados No leilão do calote, ganha quem ofertar mais descontos, ganha quem optar por receber menos. Tudo isso, em troca do recebimento antecipado, sem o enfrentamento da ordem cronológica de pagamento.
Caro leitor, se você passou anos aguardando a decisão final de um cansativo processo judicial e agora, finalmente, obteve o direito de receber o que lhe é devido, sinto muito, pois para receber num menor espaço de tempo, você deverá abrir mão de boa parte do que lhe foi assegurado por decisão transitada em julgado, constitucionalmente garantida.
Agora, veremos como será a posição do Executivo, que não causará nenhuma surpresa se chancelar o texto da PEC. No entanto, espera-se que o Judiciário enxergue a gritante desautorização das suas decisões e possa, com isso, retomar a lucidez da nossa Constituição, impedindo que esses absurdos sejam perpetuados.
Depois de tudo isso, o que parece mais extravagante, mais imoral? A saia da Geisy ou a posição da grande maioria dos nossos representantes? Leiam o texto da PEC e vocês concordarão que a saia vermelha não era assim tão curta.
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Advogada do escritório do escritório Martorelli e Gouveia Advogados
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