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Summum jus, summa injuria

Na hospitaleira cidade de Catanduva, no interior de São Paulo, ocorreu a troca de duas crianças quando ainda se encontravam na maternidade do hospital. A cor da pele, as características físicas sempre chamaram a atenção dos pais. Um deles, pardo, foi criado por mãe branca, de olhos azuis e pelo pai da mesma cor. O outro, de rosto alongado, claro, também divergia fisicamente dos pais.

1/12/2009


Summum jus, summa injuria

Eudes Quintino de Oliveira Júnior*

Na hospitaleira cidade de Catanduva, no interior de São Paulo, ocorreu a troca de duas crianças quando ainda se encontravam na maternidade do hospital. A cor da pele, as características físicas sempre chamaram a atenção dos pais. Um deles, pardo, foi criado por mãe branca, de olhos azuis e pelo pai da mesma cor. O outro, de rosto alongado, claro, também divergia fisicamente dos pais. Somente após 26 anos submeteram-se ao exame de DNA, que constatou o erro. O tema, em razão da sua complexidade, torna-se interessante não só para os profissionais ligados ao Direito, mas para qualquer pessoa, em razão de sua relevância: deve prevalecer a filiação sanguínea ou a estabelecida pelo afeto?

É certo que os pais registraram os filhos como sendo próprios, uma vez que desconheciam a troca dos bebês. Não havia nenhum motivo para pensar em tal hipótese, pois tal prática ainda não tinha uma certa freqüência nos hospitais. Assim, as crianças cresceram no seio de cada família, assimilaram a educação, costumes, religião e procuraram uma profissionalização. Nada de anormal se não tivesse vindo à tona a descoberta da paternidade biológica.

O povo brasileiro viveu durante muito tempo arraigado no princípio do "laços de sangue", procurando deixar sempre evidenciada a importância da herança genética, como o fator de segurança na prevenção de doenças futuras, em caso daquelas hereditárias. A própria legislação revogada vedava o reconhecimento de filhos adulterinos e incestuosos, além de restringir os direitos do adotado. O critério é que mais legítimo seria o filho quanto maior fosse o grau de consanguinidade.

Após a CF/88 (clique aqui) várias inovações foram inseridas no direito à procriação. Todos os filhos, havidos ou não fora do casamento, assim como aqueles provenientes da adoção, gozam dos mesmos direitos, sem quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Nasce, então, não só pela introdução legal, mas também como um novo conceito social, a paternidade socioafetiva, na qual alguém, sem qualquer vínculo sanguíneo e sem imposição legal, recebe uma criança como filho, tendo como sustentáculo o sentimento de afeto e amor.

No caso da troca das crianças, os filhos sentem-se filhos dos pais com quem conviveram e fizeram sua história de vida e os pais, da mesma forma, sempre agiram com a devoção peculiar daqueles que efetivamente geraram. Não há como se cogitar em desfazer a troca dos filhos, em razão da ética, da moral e de todos os preceitos pertinentes. A própria lei, sabedora da situação da troca das crianças, não obriga a mudança no registro civil, em respeito à decisão dos interessados. A desconstituição registral é possível, mas a advertência de Cícero é incisiva: summum jus, summa injuria. Procurar fazer a justiça após tanto tempo de consolidada uma situação é promover uma grande injustiça. Quer dizer, o desfazimento do ato é legal, mas arruína toda uma vida de afeto e a lei, como é sabido, deve retirar sua venda e atingir sua função eminentemente social, colaboradora que é da felicidade do homem.

Pai e mãe, desta forma, pelo novo perfil da família, não são aqueles que cederam o material procriativo e sim aqueles que dispensam afeto e carinho, procurando conferir uma educação responsável para que o filho possa desenvolver suas qualidades, viver em harmonia e atingir a plena realização. É o mesmo critério adotado pela lei de adoção, que agora permite ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica, após completar 18 anos de idade.

Nesta linha de pensamento, apesar do DNA ter apontado outro pai biológico, é de ser mantida a paternidade registral, como já assumido pelos próprios filhos, sem prejuízo do reconhecimento da paternidade biológica. Assim, os filhos trocados terão dois pais e duas mães, sem qualquer conflito. Privilégio para poucos. De um lado receberam todo o afeto e a educação necessários à formação de seu caráter. De outro, tomaram conhecimento da filiação biológica, que permite comportamento eugênico de cautela, pois poderia acontecer até mesmo um casamento entre irmãos, em caso dos filhos terem envolvimento amoroso com as filhas dos pais biológicos.

A decisão madura e consciente dos filhos demonstra que a vida deve ser vista como um rio e não como um lago. É o demonstrativo mais sincero que o afeto fala mais alto do que qualquer prova sanguínea. Bom para o homem, que ainda sabe cultivar a sensibilidade de sua alma. E vem ao encontro do ensinamento de Celso: jus est ars boni et aequi, enfatizando que o Direito é a ciência do bom e do justo.

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*Advogado, Promotor de Justiça aposentado e Reitor da Unorp





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