O direito civil brasileiro está em luto
Rafael Domingos Faiardo Vanzella*
Fascinado pelo fenômeno da vida biológica, tal qual explicado pelo evolucionismo darwiniano, o professor Junqueira esforçou-se, nos últimos anos, para concertá-lo com sua notável produção acadêmica dos tempos de juventude intelectual. Nesses tempos, seu talento para elaborar modelos normativos – entre os quais o mais famoso é a doutrina dos três planos do negócio jurídico – vinha acompanhado de uma profunda lucidez sobre a principal função da dogmática jurídica: a promoção da segurança e da democracia. De forte inspiração estóica, foi, contudo, desde sempre sensível às dimensões individual e social desses valores, isto é, ao espaços de liberdade e de auto-determinação, de um lado, e de propulsão, de movimentação e de dinamismo, de outro. Atento, então, à necessidade de elaboração de modelos normativos, em nome da segurança e da democracia compreendidas naquelas dimensões, faltava-lhe, entrementes, um vetor interpretativo, que oferecesse uma conexão lógica entre aqueles modelos normativos e à sua função, por assim dizer, social. Depois de recorrer a um discurso quase metafísico, o valor da vida biológica consistiu, para o professor Junqueira, naquele vetor interpretativo, agora de feições claramente positivas. A vida biológica é a motivação e a limitação não apenas do saber dogmático, mas também dos valores a que serve, em todas as suas dimensões.
Foi assim que explicou a elaboração de dois de seus mais recentes modelos normativos: a dicotomia contratos existenciais e contratos de lucro, de um lado, e a instrumentalidade do art. 421 do Código Civil (clique aqui), o qual trata da função social do contrato, de outro. Ambos os modelos se comunicam, especialmente quando se considera a influência do valor da vida biológica na elaboração de cada qual. Pelo primeiro modelo, postula-se que a interferência dos juízes nas relações contratuais só é benvinda quando constituídas por contratos existenciais, isto é, aqueles em que pelo menos uma das partes as pessoas naturais. Ora, como as pessoas naturais não são descartáveis, justamente porque têm vida, os juízes têm de atender às suas necessidades fundamentais, tutelando seus direitos fundamentais. Pelo segundo modelo, assevera-se que a função econômico-social concreta, desempenhada concretamente por um contrato individual e realmente considerado, pode fazê-lo ineficaz especialmente quando exerce uma finalidade ou anti-social, sobretudo contra o meio-ambiente, ou atentatória aos direitos humanos. O valor da vida, e aqui mais claramente o da vida biológica, ressalta-se, aqui, com todas as suas tonalidades.
Esses modelos normativos não são, em si, o principal legado do professor Junqueira. Servem como exemplos do seu principal legado, o qual, como disse, é o método de sua elaboração. São exemplos de como se podem construir, em nome da segurança e da democracia, modelos normativos com a motivação e os limites impostos pelo valor da vida. Da vida biológica, que, no séc. XXI, em razão dos desafios ambientais, nunca se fez tão valiosa e tão penetrante em todos os ramos do direito. Dogmática jurídica concerta-se, enfim, com esse valor. Técnica, mas, sobretudo, política que nos deve animar a todos, juristas, na realização de nosso ofício. Legado de quem soube cultivar dois saberes que só aparentemente estão em conflito. É quase como um dos apotegmas que o professor Junqueira costumava divulgar em sala de aula: "o direito sem o homem não é direito; o homem sem a vida não é homem; a vida sem a natureza não é vida".
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*Professor da FGV DIREITO RIO
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